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PEDAGOGIA SURDA: PEDAGOGIA REVOLUCIONÁRIA
FERREIRA, ADEMILSON DIAS 1
SOUZA, FABRÍCIA BATISTA DE2
CRUZ, GABRIELA FRAGA GARCIA DA3
SANTOS, ZILMA DE LOURDES GASPARINI4
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar através das lentes teóricas de Dermeval Saviani
a Pedagogia Surda para além da pedagogia da essência e da existência e, ainda verificar na
obra Escola e Democracia os elementos teóricos e metodológicos que possibilitam a
realização de inferências com a pedagogia surda (capítulo 3). Como também descrever a
concepção e a perspectiva teórica e metodológica da pedagogia surda numa perspectiva sóciohistórica, lingüística e cultural. Este trabalho foi desenvolvido através de pesquisa
bibliográfica, tomando-se, para tanto, como referência básica os livros: Escola e Democracia
de Dermeval Saviani e A surdez: um olhar sobre as diferenças de Carlos Skliar e, como
suporte bibliográfico complementar, pesquisas em textos de internet, outros livros, revistas
científicas, anais e outros. Tal temática se justifica pela quantidade de surdos residentes no
município de Linhares e ainda pela historicidade da educação dos surdos, suas lutas e
conquistas frente a uma pedagogia de caráter corretivo, normalizador, homogeneizador, que
tenta, a todo custo, negar a existência da comunidade surda e seus artefatos históricoculturais.
PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia surda, Pedagogia revolucionária, Educação especial,
Inclusão, língua de sinais.
ABSTRACT
The present article has as objective to analyze through the theoretical lenses of Dermeval
Saviani the Deaf Pedagogy it stops beyond the pedagogy of the essence and the existence and,
still to verify in the workmanship SCHOOL AND DEMOCRACY the theoretical and
1
Professor e Intérprete de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais – PROLIBRAS - MEC; Graduando em
LETRAS-LIBRAS – UFSC/UFES; Graduando em LETRAS: Língua Portuguesa e respectivas Literaturas –
UNOPAR; Graduando em PEDAGOGIA - FACELI; Tradutor/ Intérprete de LIBRAS da FACELI; Vicepresidente da Associação de Profissionais Tradutores/Intérpretes de LIBRAS do Espírito Santo – APILES; email: [email protected].
2
Surda, Professora de LIBRAS; Graduando em Pedagogia – FACELI; e-mail:
[email protected].
3
Graduando em Pedagogia – FACELI; e-mail: [email protected].
4
Prof. MSc. Em Educação pela UFV; Orientadora do grupo; e-mail: [email protected].
2
metodológicos elements that make possible the accomplishment of inferences with the deaf
pedagogy (chapter 3). As well as, to describe the conception and the theoretical and
metodológica perspective of the deaf pedagogia, in a partner-historical perspective, linguistic
and cultural. This work was developed through bibliographical research, we take, for in such
a way, as basic reference for this text the books: School and Democracy of Dermeval Saviani
and the Deafness: one to look at on the differences of Carlos Skliar and, as complementary
bibliographical support, research still, texts of Internet, other books, scientific magazines,
annals and others. Such article if still justifies for the amount of resident deaf people in the
city of Linhares and for the historicidade of the education of the deaf people, its fights and
conquests front to a pedagogy of corrective, normalizador, homogeneizador character, that it
tries, all the cost, to deny the description-cultural existence of the deaf community and its
devices.
KEY WORD: Deaf pedagogy, Revolutionary Pedagogy, Special Education, Inclusion,
language of Signs.
3
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo originou-se na inquietação quanto à pedagogia aplicada sobre o aluno surdo,
uma vez que a mesma é pensada e criada por e para ouvintes (não surdos), tornando, assim,
um caráter corretivo, normalizador, homogeneizador que tenta mascarar a surdez.
Objetiva-se, então, analisar através das lentes teóricas de Dermeval Saviani a Pedagogia
Surda para além da pedagogia da essência e da existência e, ainda, verificar na obra Escola e
Democracia os elementos teóricos e metodológicos que possibilitam a realização de
inferências com a pedagogia surda (capítulo 3). Como também, descrever a concepção e a
perspectiva teórica e metodológica da pedagogia surda, numa perspectiva sócio-histórica,
lingüística e cultural.
Por ser uma pesquisa bibliográfica têm-se como referência básica para este texto os livros:
Escola e Democracia, de Dermeval Saviani e A surdez: um olhar sobre as diferenças, de
Carlos Skliar e, como suporte bibliográfico complementar, pesquisas em textos de internet,
outros livros, revistas científicas, anais e outros. Este trabalho justifica-se pela quantidade de
surdos residentes no município de Linhares e ainda pela historicidade da educação dos surdos,
suas lutas e conquistas.
A opção pelas obras supracitadas, como base teórica, se deve ao fato de as mesmas
apresentarem críticas concisas quando à pedagogia e a marginalidade/exclusão, frente à
desvalorização da historicidade do sujeito.
Saviani (1997) explana sobre as diferentes teorias de educação que tentaram dissipar o
problema da marginalidade, e, propõe uma pedagogia que vai além das pedagogias: a)
tradicional, que identificava a marginalidade/exclusão com ignorância; b) da escolanovista,
que, por sua vez afirmava que o marginalizado era o anormal; e, ainda, c) da tecnicista, que
encarava o marginalizado como o incompetente ou improdutivo. A essa pedagogia chamou
de: Pedagogia Revolucionária.
Skliar (2005) discute a respeito dos olhares sobre as diferenças, sobre o movimento de tensão
e ruptura entre a educação de surdos e a educação especial; reflexão sobre o ouvintismo como
ideologia dominante; reflexões sobre o fracasso educacional do surdo; reflexão sobre o
consenso das potencialidades educacionais dos surdos, dentre outras reflexões.
Analisar-se-á também sobre a história da educação dos surdos, suas lutas e conquistas.
4
Mostraremos através do relato de um (a) surdo (a) as diferentes facetas da educação proposta
aos surdos, suas angústias que acarretam problemas psíquicos, por causa da negação da
identidade-cultural e da experiência visual deste sujeito. Para então, refletir sobre os objetivos
propostos neste artigo.
2 UM POUCO DE HISTÓRIA
Vários personagens envolveram-se com a educação dos surdos, como por exemplo, Ponce de
Leon, século XVI, Charles Michel de L‟éppé, século XVIII, Thomas Hopkins Gallaudet,
século XIX, dentre tantos outros. O primeiro, de acordo com registros de seus discípulos, foi
o inventor do alfabeto manual, que o utilizava junto a alguns sinais, com esforço centrado na
escrita e na fala. O segundo, já no século XVIII, com a permissão do Rei Luiz, fundou a
primeira escola pública para surdos em Paris, França; o último fundou uma instituição de
ensino para surdos nos Estados Unidos da América, esta instituição, atualmente, é a Gallaudet
Universit, situada em Washington. Todos os esforços centravam-se no ensino da fala
(FENEIS, 2005).
Na Alemanha Samuel Heinick, inaugura o método de oralização e funda a primeira escola
pública baseada no método oral (1750), rejeitando a língua de sinais. O inventor do
(patenteador) telefone, Alexander Graham Bell, abre no Canadá uma escola oralista e
defendia “[...] o ensino da fala e que o surdo não poderia casar entre si, nem lecionar para
outros surdos” (FENEIS, 2005, p. 4).
Lopes (2005) critica tais ações afirmando que:
As representações realistas sobre a „normalização do surdo‟ através da fala,
produzidas, também pela escola, confortam os pais de surdos com a esperança da
fala e com a possibilidade de as pessoas não perceberem a surdez. (LOPES, 2005,
apud SKLIAR, 2005, p. 111)
Ströbel (2007), corroborando com Lopes, diz que:
[...] quanto mais insistem em colocar „máscaras‟ nas suas identidades e quanto mais
manifestações de que para o surdo é importante falar para serem aceitos na
sociedade, mais eles ficam nas próprias sombras, com medos, angústias e ansiedade.
As opressões das práticas ouvintistas são comuns na história passada e presente para
5
o povo surdo (STRÖBEL, 2007, apud QUADROS & PERLIN, 2007, p.27).
E falando em máscaras ela elenca vários surdos mascarados pela sociedade, entre eles
Thomas Edson (o inventor da luz elétrica), Gastão de Orléans, o Conde d‟Eu, marido da
Princesa Isabel, herdeira do trono de D. Pedro II, dentre outros (STRÖBEL, 2007, apud
QUADROS & PERLIN, 2007).
Falando de Brasil... Não se sabe o real interesse pela educação dos surdos demonstrado por D.
Pedro II, mas em 1855, a convite do imperador chega ao Brasil o professor surdo, discípulo
de L‟éppé, Eduard Huet, com a intenção de fundar, no Rio de Janeiro, antiga capital do país,
uma escola para surdos. E, com pesquisa nas comunidades surdas brasileiras inaugura, em
1857, o Instituto dos Surdos-mudos, atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES).
(FENEIS, 2005, p. 4).
Voltando ao globo... Lulkin (2005, apud SKLIAR, 2005, p. 36) afirma que “antes da primeira
metade do século XIX, as investigações sobre o ouvido e a audição não passavam de uma
antologia de atos científicos”. O autor diz ainda que as crianças surdas, usadas como cobaias,
“ficavam cobertas de bolhas, inchaço e cicatrizes envolta das orelhas”.
Segundo Lulkin, o Dr. Blanchet que ocupava o cargo de médico na instituição de Paris “[...]
investe na reeducação do ouvido através de uma emissão de sons em crescente intensidade e
por uma excitação dos „nervos da sensibilidade geral‟”. E, em 1853, gera uma violenta
polêmica acerca de seus extravagantes métodos: “abertura do crânio e colocação de um
perfurador, cortes de bisturi no ouvido médio, entre outros procedimentos empíricos”
(LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 36).
No dia 11 de Setembro de 1880 realiza-se em Milão, Itália, o Congresso Internacional de
Educadores de Surdos. “Neste congresso ficou decidido pelos professores ouvintes a
proibição da língua de sinais. Os professores surdos foram excluídos desta votação”.
(FENEIS, 2005, p.4 - grifo nosso). Esse dia ficou conhecido, entre os surdos como o dia do
diabo, ou início do holocausto.
Dos 174 votos válidos, dois terços eram de congressistas italianos, os demais eram franceses,
ingleses, suecos, suíços, alemães e americanos. Destes apenas quatro votaram a favor da
língua de sinais, os outros 170 votaram contra a língua de sinais e a favor do
oralismo/ouvintismo (LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005).
6
As manifestações da época, “marcada pela racionalidade em oposição à emoção” eram
fácilmente percebidas na fala de um congressista italiano, como afirma Lulkin (2005) citando
Grémion, que dizia que se as instiuições interessadas em introduzir, sincera e eficazmente, “o
verdadeiro método da palavra” deveria separar os surdos experientes dos iniciantes, a fim de
“desenraizar a erva daninha da língua de sinais”, pois “[...] exalta os sentidos e provoca,
demasiadamente, a fantasia e a imaginação‟(LULKIN, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 37).
Lulkin (2005), ainda citando Grémion, afirma que os documentos erigidos a partir das atas
finais do Congresso determinaram as propostas educacionais e as políticas públicas até cerca
de 1970, as quais recomendavam o seguinte:
O Congresso, considerando a incontestável superioridade da palavra sobre os signos
para devolver o surdo à sociedade e para dar-lhe um melhor conhecimento da língua,
declara que o método oral deve ser preferido ao da mímica para a educação e
instrução dos surdos-mudos. (...) O Congresso, considerando que o uso simultâneo
da palavra e dos signos mímicos têm desvantagem de inibir a leitura labial e a
precisão das idéias, declara que o método oral puro deve ser preferido. (...) A
terceira resolução é um voto em favor da extensão do ensino dos surdos-mudos.
Considerando que um grande número de surdos-mudos não receberam os benefícios
da instrução; que essa situação provém dos poucos recursos das famílias e dos
estabelecimentos, emite o voto que os governos tomem as medidas necessárias para
que todos os surdos e mudos possam ser instruídos (LULKIN, 2005, apud SKLIAR,
2005, p. 37).
A primeira medida para colocar em prática o que determinava as resoluções do Congresso foi
“obrigar os alunos surdos a sentarem sobre as mãos”. E para tentar impedir a comunicação
sinalizada, retiraram “as pequenas janelas das portas”. Quanto aos professores surdos e seus
auxiliares e demais surdos adultos envolvidos com a educação, responsáveis pela irradiação
de aspectos culturais, “deveriam deixar as escolas e os institutos”5. (LULKIN, 2005, apud
SKLIAR, 2005, p. 38).
Essa nova pedagogia, “[...] o controle sobre os estudantes surdos, o conhecimento e as
disposições sobe a sua educação – clínica, consultórios, escolas, instituições, centros
profissionalizantes – passaram para o domínio dos cientistas médicos e sociais” (LULKIN,
2005, apud SKLIAR, 2005, p. 38)
5
Em 1960 havia apenas 12% dos professores surdos envolvidos na educação. (FENEIS, 2005, p.5)
7
2.1 QUASE UM SÉCULO DEPOIS... O QUE MUDOU?
Quase um século depois se percebe o grande declínio ocorrido na educação dos surdos e
surge, então, uma oportunidade de regressar/avançar o ensino a partir da língua de sinais.
O lingüista Willian C. Stokoe tornou-se um ícone importantíssimo na história da língua de
sinais, pois, após pesquisar a estrutura lingüística das línguas de sinais, lança, em 1965, a obra
“Dictionary of American Sign Language on Linguistic Principles, apresentando as principais
características dessa língua em relação à sua dupla articulação (morfemas e queremas), a não
existência de artigos, preposições, e outras partículas” (LEITE, 2005, p. 32).
Skliar (2005, p.7) resume o período anterior como sendo:
[...] mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção,
normalização e pela violência institucional; instituições especiais que foram
reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente
que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da
comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências
visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer
outro grupo de sujeitos.
Atualmente, no Brasil, há muitos “discursos e práticas alternativas” buscando a recolocação
da “discussão num contexto mais apropriado à situação” sócio-histórico-cultural e lingüística
do sujeito surdo. Uma vez que a pedagogia aplicada para os surdos, e que “ainda hoje se
arrasta, não considerou sua diferença, sua língua, sua cultura e suas identidades, que por
supervalorizar a voz, lhes negou a vez” (SÁ, 2003, apud ESPAÇO, 2003, p. 90).
Entretanto os conhecimentos são administrados como forma de medicalização para surdez,
considerando-os como anormais e, por este viés, aplica-se uma pedagogia corretiva,
normalizadora, isso porque, como afirma Wriglei (1996), citado por Ströbel (2007) os surdos
são vistos como pessoas com ouvidos defeituosos “[...] se pudéssemos consertar...”
(STRÖBEL, 2007, in QUADROS & PERLIN, 2007, p. 24).
Assim sendo, muitos materiais são forjados para essa correção/conserto. A exemplo disso, o
Ministério da Educação e do Desporto (MEC) através da Secretaria de Educação Especial
(SEESP) lança, em 1997, a Série Atualidades Pedagógicas que, no seu número quarto,
intitulado de “Programa de Capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental –
Deficiência Auditiva”, gasta aproximadamente 700 páginas, subdivididas em dois volumes,
8
para tratar de assuntos inerentes à patologia da surdez, objeto a ser consertado e, um volume
com pouco mais de 120 páginas, para tratar da lingüística da LIBRAS e sua aquisição. Esta
série é enfática, quando se aborda a integração dos alunos surdos, dando à aprendizagem da
fala e escrita da Língua Portuguesa um caráter prioritário, como sendo o único meio de
efetivar sua integração na rede regular de ensino (RINALD, 1997, apud BRASIL, 1997, vol. I
p. 297)6.
Ancorados nesta ótica, surgem práticas e discursos opondo-se às escolas especiais e escolas
de surdos com um receio infundado da chamada “segregação escolar”. Deixando transparecer,
como afirma Machado (2008, p.24), citando Souza &Góes (1999), uma impressão de que para
o aluno surdo o mais importante é a convivência com os “normais” “do que a própria
aquisição de conhecimento mínimo necessário para a sua, aí sim, integração social. E, ainda
“um consenso mudo” de que “se todos falam este estudante deve também falar”.
Sendo o ensino dos surdos baseados numa pedagogia que é pensada por e para ouvintes,
criam-se assim, simulacros de ouvintes. Tal assunto torna-se inquietante, como assegura
Machado (2008, p.23), citando Lacerda (1989), porque as diferentes práticas pedagógicas,
nessa ótica, “apresentam uma série de limitações, geralmente levando esses alunos, ao final da
escolarização básica, a não serem capazes de desenvolver satisfatoriamente a leitura e a
escrita na língua portuguesa, e a não terem o domínio adequado dos conteúdos acadêmicos”.
Schorn (2004), em seu artigo “Salud Mental y Sordera: Sofrimiento Psiquico El Niño e El
Adolescente Sordo”, afirma que sendo a criança surda uma criança com experiência visual, a
mesma “não entra nos jogos orais de referências [...] de maneira espontânea” 7 a. E, pelo fato
de a criança surda não adquirir a língua oral, de maneira espontânea, natural, a mesma precisa
adquirir a de sinais “em tempos e formas adequadas”2
b
e caso isso não ocorra ela estará
propensa a sérios e graves problemas emocionais. Esses problemas são os que, segundo a
autora, “originam o SOFRIMENTO PSÍQUICO”c (SCHORN, in ANAIS INES, p. 195). O
que nos conta Souza8 no relato a seguir.
6
É importante ressaltar que o MEC tem propiciado mudanças no que tange a educação dos surdos, à exemplo
disso é o apoio à graduação LETRAS-LIBRAS (licenciatura para surdo e bacharelado para ouvinte).
7
Nossa tradução para: a) “no entra em los juegos orales de referencias [...] de manera espontanea”; b)“em
tiempos y forma adecuadas”; c)“originan el SUFRIMENTO PSIQUICO”.
8
SOUZA, Fabrícia Batista de. Co-autora do presente artigo.
9
3 RELATO DE UM SOBREVIVENTE DA PEDAGOGIA NORMALIZADORA9
Em 1990 iniciei minha vida escolar, tinha quatro anos de idade, não tínhamos aulas
significativas, lembro-me apenas da professora forçando-me a ler-lhes os lábios10. Sentia-me
frustrada e triste por não conseguir aprender. E percebia que o sentimento era semelhante ao
dos demais alunos daquela turma.
Nas aulas não havia momentos para histórias, ou brincadeiras, como vejo nas aulas da minha
filha, que a propósito tem três anos de idade. Era algo sem sentido, sem significado. O único
momento que aproveitava e gostava de estar naquele espaço era o momento em que eu podia
brincar com os meus amigos surdos. Livres, sem precisar ler lábios de ninguém, comunicando
com gestos11.
Como não havia muitas instruções, imaginava que os seres humanos fossem fabricados e que
o crescimento se dava como que em manutenções (tipo robô ou coisa parecida). Imaginava
que a chuva, o sol, raios, etc. eram criados por uma pessoa residente no céu, que abria e
fechava alguma comporta com uma alavanca, depois descobri, essa pessoa é Deus, e que a
natureza já tinha seu curso estabelecido, bem diferente da forma que eu imaginava.
Algo comum entre nós surdos, quando criança, é pensar que quando crescer, ou se transforma
em ouvinte (não surdo) ou morre ainda na adolescência, pelo fato de não haver contato com
surdos adultos, pois toda a comunidade é composta por pessoas que ouvem (STRÖBEL,
2008, p. 40).
Até completar oito anos minhas noites eram compostas por pesadelos, não conseguia dormir
se não fosse junto dos meus pais. O dia corria naturalmente, mas à noite, uma angústia me
dominava, sentia-me depressiva e ao dormir era atacada por pesadelos.
Schorn (2004) explica que a depressão sofrida por crianças é diferente da dos adultos, e é
perceptível nos hábitos alimentar e dificuldades em dormir, etc. e tais sintomas são
9
Relato de Souza, em LIBRAS, traduzido para a Língua Portuguesa por Ademilson Dias Ferreira.
“Práticas enceguecidas”, segundo SKLIAR (2005, p.7)
11
“Gestos”, aqui significa, como afirma Stöbel(2008, p.44 – noras de rodapé), citando Albres, uma construção
simbólica inventada no âmbito familiar (STRÖBEL, Karin Lilian. As Imagens do Outro Sobre a Cultura
Surda. – Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008).
10
10
“conseqüências de traumatismos precoces, produto da deficiência na integração inicial” 12. E
que tais sintomas são “zonas de ausência na relação entre mãe e filho” (SCHORN, 2004 apud
ANAIS INES, 2004, p. 199).
Mudamos para Belo Horizonte, MG, em 1994, enfrentei uma dupla jornada, estudava em duas
escolas: comum e especial. Mas não consegui acumular muito capital cultural. Não sabia nada
sobre sexualidade, gravidez, entre outras coisas relacionadas ao meu próprio corpo.
Embora estudasse em duas escolas, como disse, não conseguia entender muita coisa das
disciplinas, em especial a de língua portuguesa e a de ciência. Lopes (2005) afirma que esse
envolvimento integral do aluno surdo com sua educação e pseudo-recuperação “[...] colabora,
entre outros elementos, para que esses desenvolvam identidades subalternas, que dificultam a
organização cultural” (LOPES, 2005, apud SKLIAR, 2005, p. 113).
Retornamos para Linhares no ano de 2000, com pouco conhecimento sobre tudo e nenhum
sobre minha própria língua, a LIBRAS 13.
Em 2001 fui admitida em uma empresa de exportação de mamão e conheci uma surda que me
iniciou no aprendizado da LIBRAS. Partindo daí comecei o contato com outros surdos. Meu
universo se expandiu. Casei-me com um surdo, tive/tenho uma filha, como já informei. Voltei
aos estudos, passei no ENCCEJA para o Ensino Médio.
Ingressei no ensino Médio na rede estadual, amparada pelo decreto de lei 5.626/05 que me
garante, dentre outros, o direito de ser atendida na minha língua materna, que efetivou-se, por
força da justiça, intervenção do Ministério Público, com a presença do profissional
tradutor/intérprete de LIBRAS/Língua Portuguesa.
Novamente passei no ENCCEJA e, quase que simultaneamente, no vestibular da Faculdades
Integradas de Ensino Superior de Linhares – FACELI – para o curso de pedagogia, a qual
providenciou, desde o vestibular, o apoio devido com a contratação deste profissional.
Atualmente sou professora de LIBRAS para rede municipal de ensino e atuo como professora
bilíngüe na rede estadual de ensino. Tenho uma vida independente.
12
Nossa tradução para: “consecuencias de traumatismos precoces, producto de déficits em la integración
inicial”; e, “zonas de ausencias en La relación entre la madre y el hijo”.
13
Língua Brasileira de Sinais, reconhecida como segunda língua oficial do Brasil através da lei 10.436/02.
11
4 E SAVIANI COM ISSO?
Discorremos até então sobre a história do ensino de surdos, ou da língua de sinais, mas... E
Saviani com isso? Que elo existe (existe algum elo) entre a pedagogia surda e a pedagogia
revolucionária apresentada por Saviani? Quais elementos teóricos e metodológicos dessas
pedagogias possibilitam fazer tais inferências?
Saviani (1997, p.17) afirma que a escola conhecida como escola tradicional, a qual acumulou
críticas por sua pedagogia educacional, tentava corrigir a marginalidade que era “identificada
com a ignorância” e que a escola se organizava/organiza, “como uma agência centrada no
professor” o qual transfere, de forma bancária, um acervo cultural aos alunos, que “cabe
apenas assimilar os conhecimentos” transmitidos. O autor discorre ainda sobre um movimento
que passa a encarar a marginalidade não mais sob o prisma da ignorância, mas da rejeição,
“os marginalizados são os „anormais‟, isto é, os desajustados e desadaptados de todos os
matizes”. Nesta ótica a pedagogia inicia a temporada de caça aos anormais, mune-se de
“testes de inteligências, de personalidades etc., que começam a se multiplicar”.
No que tange à pedagogia tecnicista, o marginalizado é visto não mais como o ignorante ou o
rejeitado, mas como o incompetente, “isto é, o ineficiente e improdutivo”. Sendo assim, “do
ponto de vista pedagógico conclui-se que, se para a pedagogia tradicional a questão central é
aprender e para a pedagogia nova aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que
importa é aprender a fazer” (SAVIANI, 1997, p. 25-26).
Saviani (1997, p. 73) e Machado (2008, p. 76) concordam que nessas pedagogias ausenta-se
as considerações quanto à historicidade do aluno (sendo surdo ou não). O primeiro afirma que
“faltam-lhes a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação”. O segundo
afirma que “não são considerados, nas práticas escolares, os sujeitos reais com suas histórias,
seus valores, crenças, ritmos, comportamentos, origem social e econômica, experiência e
vivência”. Isto é, negam-lhes a idiossincrasia num discurso hegemônico e homogeneizador.
Saviani (1997, p. 74) salienta que a pedagogia revolucionária “centra-se, pois, na igualdade
essencial entre os homens. Entende, porém, a igualdade em termos reais e não apenas
formais”. E que a transposição da igualdade formal, aquela garantida pela constituição de
1988, para a igualdade real implica passar pela igualdade de acesso ao saber.
Com intenção de aprimorar a educação surgem tentativas de constituir, o que Saviani (1997,
12
p. 77) chamou de “Escola Nova Popular”, citando Paulo Freire como um dos representantes
deste movimento que “se empenhou em colocar essa concepção pedagógica a serviço dos
interesses populares”. Dermeval Saviani (1997, p. 79) afirma que “uma pedagogia articulada
com os interesses populares” estará empenhada no bom funcionamento da escola e favorecerá
o diálogo entre os pares e com o professor, sem desprezar “o diálogo com a cultura acumulada
historicamente” e ainda respeitarão “os interesses dos alunos, ritmos de aprendizagem e
desenvolvimento psicológico” sem, no entanto, perder o foco “a sistematização lógica do
conhecimento”.
O autor aponta cinco passos/métodos que, segundo ele, mantêm “continuamente presente a
vinculação entre educação e sociedade” e, ainda, que “o ponto de partida do ensino não é a
preparação dos alunos cuja iniciativa é do professor”, “nem a atividade que é de iniciativa
dos alunos” (SAVIANI, 1997, p. 79).
Os passos apresentados por Saviani iniciam-se e finalizam-se pela prática social perpassando
pela problematização, instrumentalização e catarse. O primeiro, o ponto de partida, é o
comum a professores e alunos, a prática social, entretanto não tão comum assim, pois o
professor possui “certa articulação dos conhecimentos e experiências”. Enquanto que os
alunos, “por mais conhecimentos e experiências que detenham, sua própria condição de
alunos implica uma impossibilidade, no ponto de partida, de articulação da experiência
pedagógica na prática social de que participa” (SAVIANI, 1997, p.80).
O segundo passo, a problematização, consiste em identificar que “questões precisam ser
resolvidas no âmbito da prática social e, em conseqüência, que conhecimento necessário para
dominar”. O terceiro passo, “trata-se de se apropriar dos instrumentos teóricos e práticos
necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social”. Saviani (1997)
salienta que a apropriação de tais instrumentos dependerá da transmissão direta ou indireta
por parte do professor, uma vez que os mesmos são produzidos e preservados sóciohistoricamente (SAVIANI, 1997, p. 80).
O quarto passo é a “efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em
elementos ativos de transformação social”. O quinto e último passo é o próprio ponto de
partida, a prática social, todavia, compreendidos no mesmo nível do professor, ou seja,
desigual no ponto de partida e igual no ponto de chegada (SAVIANI, 1997, p. 81).
Desta forma, é nestes passos/metodologias que a pedagogia revolucionária e a pedagogia
13
surda se fundem, por tratar de uma luta no campo pedagógico para que prevaleçam os
interesses dos, até agora, marginalizados/excluídos (SAVIANI, 1997). E, no que tange à
pedagogia surda, além do processo ensino-aprendizagem com vista à prática social, que
respeite o sujeito sócio-histórico, insere-se a preocupação inerente a questão lingüística e
cultural dos alunos. Uma vez que, como afirma Quadros (2008), a pedagogia praticada
esquece “que os surdos são surdos, tornando-os invisíveis”, pois desconsidera a questão
lingüística e a importância dos pares surdos (QUADROS, 2008, apud MACHADO, 2008,
14).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo iniciou-se com o objetivo de analisar a pedagogia surda através das lentes
teóricas de Saviani, elencando possíveis inferências com a pedagogia revolucionária, proposta
por este autor, e ainda, descrever a concepção e a perspectiva teórica e metodológica da
pedagogia surda. Para tanto, o tecemos através de pesquisa bibliográfica tendo como
referência básica as obras: Escola e Democracia, de Dermeval Saviani e A Surdez: Um olhar
sobre as diferenças, de Carlos Skliar, como também, como suporte bibliográfico
complementar, pesquisas em textos de internet, outros livros, revistas científicas, anais e
outros. Descreveu-se, quase que minuciosamente, a história da educação dos surdos, desde o
século XVI, passando pelo Congresso de Milão de 1880, quando por uma concepção
etnocêntrica ouvintista, proibiram o uso da língua de sinais na educação dos surdos, propondo
o método de oralização e outras providências, que se arrastou por quase um século. O caráter
clínico consertador, normalizador da pedagogia numa tentativa de transformar os surdos em
ouvintes, criando assim meros simulacros dos tais. Quase um século depois, o retorno da
valorização do uso da língua de sinais na educação dos surdos, o reconhecimento lingüístico
das línguas de sinais através do trabalho do lingüista Willian C. Stokoe. Vimos também,
através do “Relato de um sobrevivente de uma pedagogia normalizadora”, que a pedagogia,
mesmo com legislações e estudos apontando para outros caminhos, continua com o caráter
normalizador. Por fim, analisamos os passos/métodos que Saviani apresenta, na obra base de
nossa pesquisa, como sendo caráter fundamental da pedagogia revolucionária, numa
perspectiva histórico-dialética que respeita os aspectos sócio-histórico, econômico e cultural
14
do aluno. Apontamos também que a pedagogia surda casa-se com a pedagogia revolucionária
por estes aspectos e acrescentamos uma nova preocupação com o processo ensinoaprendizagem, o da língua usada pelos alunos surdos. Finalizamos, porém sem concluir,
apontando estes ligamentos entre a pedagogia surda e a pedagogia revolucionária implícitas
desde o início do artigo. Sugerimos também que sejam feitas novas pesquisas nesta área.
Como também mais seriedade por parte dos gestores educacionais, uma vez que no decorrer
da pesquisa não encontrou-se sequer dados concretos quanto à quantidade de alunos surdos no
sistema público de ensino de Linhares, apenas informações desencontradas14.
6 REFERENCIAS
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Ferreira Brito et. Al. - Brasilia: SEESP, 1998. V. III. – (Atualidades Pedagógicas, n.4).
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<http://www.leidireto.com.br/lei-10436.html> ultimo acesso em: 15/11/08.
______. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/> ultimo acesso em: 15/11/08.
FENEIS, Política Educacional para Surdos do Rio Grande do Sul, 2005.
<http://www.cultura-sorda.eu/resources/FENEIS_politica_educacional_para_surdos.pdf>
acesso – 11/11/2007
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Inclusiva. Petrópolis-RJ. 2005. Editoração eletrônica. Disponível também em:
<www.editora-arara-azul.com.br> – ultimo acesso em 05 de março de 2007.
LOPES, Maura Corci Lopes. Relação de Poderes o Espaço Multicultural da Escola para
Surdos. In SKLIAR, Carlos (org.). A SURDEZ: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre:
Mediação, 2005, 3. ed.
LULKIN, Sergio Andres. O Discurso Moderno na Educação dos Surdos: Práticas de Controle
do Corpo e a Expressão Cultural Amordaçada. In SKLIAR, Carlos (org.). A SURDEZ: um
olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005, 3. ed.
MACHADO, Paulo Cesar. A Política Educacional de Integração/Inclusão: Um Olhar
Sobre o Egresso Surdo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2008.
PERLIN, Gládis T. T. Identidades Surdas. In SKLIAR, Carlos (org.). A SURDEZ: um olhar
sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005, 3. ed.
14
Pesquisando sobre a quantidade de alunos surdos inseridos nas escolas municipais foi detectado divergência de
informação. Informaram-nos que há mais ou menos 15 surdos inseridos. Todavia, encontramos um artigo na qual
este levantamento, afirma que das instituições que entregaram o “levantamento de dados quanto aos alunos com
necessidades especiais”, 16 “possuem surdos matriculados [...] totalizando um número de 22” e não 15 alunos
como informado pela mesma autora (RUY, 2007, in ANAIS – SEGUNDO SEMINÁRIO NACIONAL DE
PEDAGOGIA SURDA, 2007, p. 187).
15
RINALDI, Giuseppe. In BRASIL, Secretaria de Educação Especial: A Educação dos
Surdos.. Brasilia: MEC/SEESP, 1997. V. I. e V.II. Atualidades Pedagógicas, n.4.
RUY, Thalita. O Retrato Linharense Perante a Educação dos Surdos nas escolas da Rede
Municipal de Ensino. ANAIS – 2º Seminário Nacional de Pedagogia Surda. – Vitória:
UFES, Centro de Educação, 2007.
SÁ, Nídia Regina de. Convite a uma revisão da pedagogia para minorias: questionando
as práticas discursivas na educação de surdos. In ESPAÇO: Informativo Técnico-científico
do INES - nº 18/19 (dezembro/2002 – julho/2003). Rio de Janeiro: INES, 2003.
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olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005, 3. ed.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: Teoria da Educação, Curvatura da Vara, onze
teses sobre Educação e Política. 31. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1997.
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SKLIAR, Carlos. A SURDEZ: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005,
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