Reflexões sobre vivências musicais: Musicoterapia com crianças surdas
Resumo: Este trabalho apresenta reflexões sobre vivências musicais que aconteceram no
decorrer do estágio curricular do curso de Musicoterapia da Faculdade de Artes do Paraná, em
uma escola de ensino especial para crianças surdas. No estágio foi possível colocar em prática
as técnicas e teorias musicoterápicas dentro do universo do sujeito surdo. O desafio maior foi
o de desconstruir e reconstruir conceitos a respeito da musicalidade, da música e de como
fazer música. Para o sujeito surdo a música é muito mais do que som, vibração, freqüência e
ressonância. A música, no universo dos surdos passa a ser apreendida como imagem, tato e
sensação corporal. Nas sessões de musicoterapia, a criança surda tem a oportunidade de
expressar-se e revelar-se se por meio de sua musicalidade, mostrando-se capaz de comunicarse por meio da música.
Palavras Chave: Musicoterapia; música; crianças surdas;
Reflexões sobre vivências musicais: Musicoterapia com crianças surdas
Autora: Thereza Christina Accioly de Salles 1
Orientadoras: Noemi N. Ansay 2
Rosemiriam Cunha 3
Este trabalho apresenta reflexões sobre vivências musicais que aconteceram no decorrer do
estágio curricular do curso de Musicoterapia da Faculdade de Artes do Paraná.
Nosso estágio acontece na Escola de Educação Especial Epheta, fundada em 1950 com o
nome de “Escola para surdas mudas” por Nydia Moreira Garcez
A escola comemorou neste ano 60 anos de existência. A metodologia de ensino da instituição
está baseada em dois eixos básicos: a linguagem oral com ênfase no desenvolvimento da
audição, da voz e da fala e a linguagem escrita, que incentiva a produção e a análise
lingüística. Para a atual diretora da escola, esse método permite a inclusão dos alunos no
sistema regular de ensino.
A clientela atendida constitui-se de crianças e adolescentes surdos que estão inseridos no
sistema de ensino regular e freqüentam a Escola Epheta como um reforço e apoio para o
desenvolvimento oral e escrito. Ali eles estão organizados em turmas de acordo com a idade e
seu nível escolar, mas também respeitando os graus de perda auditiva.
Os estagiários de Musicoterapia atendem um grupo de quatro a cinco crianças e também
realizam processos individuais. Os alunos que participam têm idade que varia de 4 a 12 anos.
A indicação desses alunos para a Musicoterapia foi feita pela coordenação pedagógica da
própria escola. O tempo de cada sessão é de 45 min. O início do estágio se deu em março de
2010, e permanecerá durante todo o ano, mas com a troca de estagiários a cada semestre.
Thereza Christina Accioly de Salles, graduando do 3ºano de Musicoterapia da Faculdade de Artes do Paraná,
[email protected]
2 Noemi N. Ansay. Mestre em Educação, Musicoterapeuta e psicopedagoga, professora da Faculdade de Artes
do Paraná[email protected]
3 Rosemiriam Cunha, Doutora em Educação, professora do curso de Musicoterapia da Faculdade de Artes do
Paraná, [email protected]
1
A Musicoterapia une música, ciência e terapia num esforço primordial de prevenir e promover
a saúde dos sujeitos. A saúde por sua vez, está intimamente ligada à qualidade de vida desse
sujeito, e esta compreende as dimensões psíquica, física, espiritual e social do ser humano.
Sendo assim temos um sujeito que é biopsicosocioespiritual e como tal, ele é e se mostra na
música. A Musicoterapia, através de suas diversas abordagens teóricas e suas técnicas, utiliza
as vivências musicais e as relações que se desenvolvem através delas como forças dinâmicas
de mudança (Bruscia, 2000). Na prática Musicoterapeutica a música passa a ser o meio
primordial para a efetivação da prevenção, promoção ou reabilitação de saúde dos indivíduos.
No contexto Musicoterapêutico, acredita-se que a música e seus elementos (melodia, ritmo,
harmonia, timbres, intensidade, altura) podem se colocar como uma ponte capaz de ligar o
indivíduo a suas emoções, seus sentimentos, e seu pensamento. Essa forma de comunicação
também irá ressoar sobre a propriocepção da pessoa, ou seja, na forma como ela percebe seu
corpo suas posturas e atitudes nas suas relações pessoais e interpessoais. A premissa se
confirma nas proposições de Purdon (apud Shapira, 2007), que destacou as cinco funções
constantes da música em Musicoterapia: música como ponte, como território seguro, como
portadora e relatora da história do paciente, música como resposta às necessidades humanas e
como base para o desenvolvimento da identidade.
Segundo Shapira (2007), há um consenso entre os estudiosos de que as pessoas constroem
uma dimensão sonora chamada música interna. Essa sonoridade sentida e percebida pela
audição interna seria como que um fundo emocional que ressoa por trás da estrutura dos
pensamentos. Entende-se que a música interna está presente no núcleo da psique, portanto a
musicalidade se constitui em um elemento inerente ao ser humano.
Por essa via, compreende-se que toda a produção sonora musical que se manifesta nas
experiências musicais revela o sujeito, fala de como ele está no mundo, sua estruturação
psíquica, até os limites de sua música interna. E isso ocorre também com a pessoa surda.
Barcellos, (1994) apresentou uma reflexão sobre a prática da Musicoterapia com pessoas
surdas. Para ilustrar seus pensamentos a autora apresenta um estudo de caso relacionado ao
tratamento de uma criança e esclarece que existe uma diferença entre a abordagem da Música
no contexto da Educação Especial e da Musicoterapia.
No tratamento e na vivência musical no contexto Musicoterapêutico, a autora considerou que
os objetivos do tratamento estão muito além da contribuição para a reeducação auditiva e
desenvolvimento da fala. A partir das idéias de teóricos especializados na educação de surdos
a autora afirma que “o espaço sonoro é o primeiro espaço psíquico do ser humano”, e que a
“Musicoterapia se constitui numa abordagem fundamental para a evolução psíquica” dos
surdos. Na seqüência, Barcellos trata da hipótese de que, através da música e seus elementos a
criança surda tem a possibilidade de reconstruir sua evolução auditiva, contribuindo assim
para o seu desenvolvimento psíquico.
No que se refere ao caso relatado, Barcellos indicou a utilização de recursos como as
vibrações do som. Essa técnica tem por objetivo despertar o interesse e o gosto dessas
crianças surdas para o “mundo dos sons”. O profissional, Musicoterapeuta deve estar atento a
qualquer resíduo de capacidade auditiva e à possibilidade de captação sonora que a criança
possa apresentar para poder utilizar as freqüências que estejam dentro do espectro de audição
da pessoa surda. Assim, a prática se estende para além da percepção óssea do som. O
Musicoterapeuta poderá fazer o aproveitamento da percepção da criança surda pelas duas
vias, tanto a aérea como a óssea, e estimular, portanto a capacidade de “ouvir” o som.
Autores como Baratto, Fernandes e Martins (1998), também entendem que o trabalho
Musicoterapêutico vai além da percepção das vibrações. Segundo os autores pode-se trabalhar
a descoberta desse mundo sonoro e liberação de emoções e a socialização desses sujeitos.
Segundo Bugalho Filho (2001) num processo Musicoterapêutico, a relação entre terapeuta e
paciente tem como objeto intermediário o(s) instrumento(s) musical (is). Um sujeito surdo se
relaciona sensorialmente com os instrumentos e desenvolve, uma unidade acústica, visual e
motora, a partir de um fazer lúdico, com a finalidade de compreender, detectar, identificar e
discriminar o som desses instrumentos. Portanto, para essas pessoas, não é somente pelos
aspectos sensório-táteis que acontece a intervenção de um determinado instrumento musical,
mas é também pelo visual e motor.
Para Ansay (2009), é a relação que se estabelece de confiança e empatia, entre cliente e
terapeuta, num processo Musicoterapêutico, que permite ampliar a abertura de canais de
comunicação e proporcionar assim, para a pessoa surda vivenciar a música de forma
prazerosa e gradativa.
Através do estágio curricular do curso de Musicoterapia na Escola Epheta para crianças
surdas abriu-se a oportunidade de observar, na prática, os conceitos teóricos aqui
representados. Cada sessão com os alunos surdos tem sido um desafio que convida à
modificação de pressupostos a respeito da conceituação de música e de como fazer música.
Para a pessoa surda, a música é imagem, é tato e corpo.
Em uma das sessões com um grupo de quatro meninas, duas delas, com oito anos de idade,
ambas com surdez profunda, pediram para a estagiária tocar a cantiga infantil “Nana neném”
e acompanharam a canção cantando. Millecco (2001), em seu livro “Musicoterapia, cantos e
canções”, diz que o canto está presente no universo simbólico de todas as culturas. O ser
humano canta nas mais variadas situações, ele afirma. As canções de acalanto são cantadas
por mães do mundo todo para ninar seus filhos, e segundo Millecco criam um clima afetivo e
de segurança geralmente associado ao contato corporal. Para Anzieu (1989) a voz da mãe e
suas cantigas, a música que ela proporciona, “põe a disposição um primeiro espelho sonoro do
qual a criança se vale a princípio por seus choros e depois por seus balbucios e por fim, seus
jogos de articulação fonemática”. Segundo Lia Rejane (1994) a estruturação do Self só
acontece se a mãe exprimir para o bebê “alguma coisa que diga respeito às primeiras
qualidades psíquicas vividas pelo então nascente Self do bebê, e isso vai acontecer antes pelo
“banho melódico” que a mãe pode proporcionar do que pelo “olhar e sorriso dessa mesma
mãe que alimente e cuida”.
Daí pode-se compreender que mesmo crianças com surdez profunda possuam esse repertório
de cantigas de acalanto e o quanto se faz necessário, fundamental que essa criança mesmo
com uma perda auditiva, receba todos os estímulos possíveis, inclusive musicais, como o
canto, para que ela venha a ter um aproveitamento de qualquer que seja seu resíduo auditivo e
se não houver nenhum resíduo que ela possa construir uma imagem musical através da
linguagem corporal e afetiva da mãe.
Em atendimento individual outro aluno, de oito anos de idade e do sexo masculino expressou
sua musicalidade de forma surpreendente. O menino manifestou pulso, ritmo, criatividade e
uma capacidade de criar sonoridades diferentes com o mesmo instrumento, conseguindo
assim comunicar seus sentimentos e emoções de forma não-verbal, mas efetiva. Embora não
escutasse, o aluno revelou possuir um repertório variado de elementos de sua musicalidade
interna.
Acreditar na Música tem feito cada vez mais sentido, já que, é ela, a música, que tem de fato
sido a linguagem capaz de operar a integração, o vínculo entre alunos surdos e as estagiárias
de Musicoterapia.
Esse mesmo aluno citado anteriormente, em uma das sessões chegou diferente para o
encontro. Explorou os instrumentos como sempre fazia, mas não conseguia encontrar nenhum
que o satisfizesse, ou melhor, não parava com nenhum por muito tempo. Ficou trocando de
instrumento e também não conseguiu entrar em um ritmo com um pulso como também é
característico dele nas sessões. Pediu para que a estagiária tocasse o violão. A mesma iniciou
tocando os acordes da sessão anterior, mas não era o que ele queria, tentou então a canção
“Peixe vivo”, mas também não era isso, ele continuou inquieto, agitado, por alguns momentos
percutindo nos instrumentos com muita força. Pediu o violão, imprimiu bastante força nas
cordas ao ponto de quase arrancá-las, coisa que nunca tinha feito. Expressava com todo seu
corpo uma inquietação, até que faltando 15min. para acabar a sessão, ele pegou um par de
pratos pequenos, tocou com força e falou: “Acabou”(é um aluno que possui bem pouca
oralidade e tem surdez profunda). A estagiária percebendo que para ele havia concluído sua
manifestação encerrou a sessão.
O esforço que um uma pessoa com perda auditiva tem que empreender para se comunicar e
para ser compreendido é constante. Esse esforço com certeza é gerador de outro esforço que é
o de natureza psíquica.
Thelma Álvares (2009) em sua pesquisa sobre “Aulas de Música para crianças surdas - o
desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais”, afirma que “a surdez contribui para
o isolamento da criança, dificultando a interação dela com seu meio”. Em função dessas e
outras dificuldades, é comum que crianças surdas tenham em sua maioria um comportamento
hiperativo, agressivo, sejam inquietas, e tenham dificuldades para a concentração e atenção.
Pode-se levantar a hipótese, segundo as teorias acima descritas, que esse aluno, pela forma
como ele percutia os instrumentos e a própria troca dos instrumentos durante toda a sessão,
estivesse tentando comunicar sua insatisfação naquele dia, seu sentimento de inadequação,
sua raiva por não conseguir se fazer compreendido na maioria das vezes pelas pessoas.
Através da Musicoterapia, da música, de um profissional atento, com uma boa escuta e boa
reflexão, com um vínculo estabelecido e com as técnicas de que a Musicoterapia dispõe,
pode-se construir um processo de ajuda e auxilio para que o indivíduo faça a integração
consigo mesmo, para daí se integrar com o outro em suas relações interpessoais.
É na interação cliente-música, segundo Bruscia (2000), que está o núcleo central da
Musicoterapia e que vai moldar as dinâmicas de todas as outras relações. Nessas interações
cliente-música-terapeuta, que ocorrem nas sessões de Musicoterapia e que provocam as
dinâmicas da terapia, é que podem acontecer a movimentação de energia psíquica e a
liberação e expressão de conteúdos do inconsciente tornando-os consciente e trazendo sentido
para o sujeito de quem ele é e a que veio ao mundo.
A partir daí esse sujeito, com alguma perda auditiva ou não, será capaz de transformar sua
forma de vida e de ver a vida, tornando-se assim mais humano, mais inteiro e mais integrado.
ANEXO I
Sessão de Musicoterapia na Escola Epheta - Junho de 2010 - Curitiba- Pr.
Estagiária: Thereza Christina
Sessão de Musicoterapia na Escola Epheta - Junho de 2010 - Curitiba- Pr.
Estagiária: Thereza Christina
Sessão de Musicoterapia na Escola Epheta - Junho de 2010 - Curitiba- Pr.
Estagiária: Thereza Christina
Bibliografia
Álvares, T. S. in Anais V Simpósio de Cognição e Artes Musicais – Internacional, Goiás,
p.361, 2009
Ansay, N et.al. in Anais XIII Simpósio Brasileiro de Musicoterapia, Curitiba, p.516, 2009
Anzieu, D. O Eu - Pele, Casa do Psicólogo; São Paulo, 1989
Baratto, A. C. H; Fernandes, J. O; Martins, W. Uma abordagem Musicoterápica junto a
crianças deficientes auditivas. 77p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em
Musicoterapia) – Setor de Pesquisa e Graduação, Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba,
1998
Barcellos, L. R. Cadernos de Musicoterapia 3, Enelivros; Rio de Janeiro, 1994
Bruscia, K. Definindo Musicoterapia, Enelivros; Rio de Janeiro 2ªed. 2000
Millecco Filho, L. A. É preciso cantar – Musicoterapia, cantos e canções, Enelivros; Rio de
Janeiro, 2001
Schapira, D. et.al. Musicoterapia Abordagem Plurimodal, ADIM Ediciones; Argentina, 2007
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Reflexões sobre vivências musicais: Musicoterapia com crianças