CÚRIA GERAL
DOS FRADES DA ORDEM DOS PREGADORES
Roma, 31 de Maio de 2012
Prot. N. 50/12/484
Laudare, Praedicare, Benedicere
Carta sobre a celebração litúrgica das horas
Caríssimos irmãos e irmãs,
«Onde ides, dom Henrique?, ele respondeu: vou a Betânia. (Libellus, 75) «De
surpresa, mas oportunamente, despojámo-nos rapidamente do homem velho, vestimos ali
o novo para que, o que eles cantavam, fosse em nós realidade». Foi numa quarta-feira de
cinzas, que frei Henrique, frei Leão e frei Jordão entraram na Ordem, a «casa da
obediência». Assim eles inscreviam a sua vocação de irmãos pregadores no dinamismo
do caminho para a Páscoa, e enraizavam-na na celebração comum da liturgia.
No começo do «tempo comum», depois da celebração da Páscoa e do
Pentecostes, é à luz deste episódio da vida dos nossos primeiros irmãos, que vos escrevo
esta carta sobre a nossa celebração comum da liturgia (ACG Roma 2010, 79). Não me
vou centrar na necessidade de celebrar em comum a liturgia das horas ou recordar-vos o
que prometemos: cada um de nós conhece as Constituições da Ordem e as cartas de
promulgação dos vários livros litúrgicos do Proprium OP, mais ainda, cada um de nós fez
já a experiência do que poderá representar na sua vida a falta de fidelidade a esta
celebração. Ao construir a nossa vida regular, pessoal e comunitária, sobre a celebração
comum, fizemos a escolha de não submeter a construção paciente da unidade da nossa
comunidade ao subjectivismo arbitrário de cada um. Também não quero centrar-me nas
formas de celebração: itinerante na Ordem, depois de um ano e meio, pude constatar
como as formas podem ser diversas, mas também como a unidade de uma comunidade e
de uma Província se pode tecer a partir do cuidado que se dá à celebração litúrgica.
Precisamos de celebrações litúrgicas bem preparadas, porque podemos partilhar em
comum a alegria nas celebrações de qualidade mesmo que elas sejam simples: Pelo
contrário, saímos delas cansados, tensos e às vezes desencorajados de celebrações
muito pesadas seja pelo excesso de formalismo, seja pelo excesso de informalidade.
Nestes dois casos, o centro da celebração corre o risco de ficar descentrado, retira-nos
Cristo para nos centrarmos em nós próprios.
Queria, antes de mais, lembrar duas evidências simples e ao mesmo tempo
radicais. A primeira evidência é que a celebração comum é como uma série de estacas
que marcam aquilo que queremos que seja a nossa vida, dada à pregação: um caminho
de conversão, das Cinzas à Luz da Ressureição, uma passagem do homem velho ao
homem renascido da graça do Sopro da vida do Ressuscitado. A segunda evidência faz
eco da expressão lembrada pelo Beato Jordão: a celebração comum é o lugar onde
podemos voltar à fonte da obediência, da obediência ao mistério da Palavra que vem
«habituar-se» ao homem para que o homem aprenda a se habituar a Deus. Celebração
comum desta Palavra à qual nós pedimos a graça de nos consagrar («Consagra-os na
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tua Verdade. A Palavra é verdade»). A celebração aparece, então, como a origem da
nossa obediência ao apelo à «pregação», à «evangelização da Palavra de Deus», e
portanto, como a origem da nossa unidade.
Casa de obediência, a celebração litúrgica convida-nos a deixarmo-nos cativar,
sempre de novo, por este apelo à unidade considerada sob três pontos de vista.
Celebração da unidade na Palavra
Cada um de nós, quando foi atraído por esta convicção interior de querer dar a sua
vida pela pregação na Ordem, foi também animado pela alegria da poder rezar com os
irmãos e irmãs, escutar com eles a Palavra e deixá-la vir a si e habitar progressivamente
as suas próprias palavras, bendizer e implorar Aquele que vem incessantemente ao
coração da humanidade. Normalmente rezamos no coro, dispostos à volta do espaço
central vazio, como que aberto, precisamente, para acolher Aquele que vem. Nós não
vamos ao coro só para cumprir uma obrigação perante a qual nos comprometemos: nós
reunimo-nos no coro para esperar juntos Aquele que vem, acolhê-lo e, sobretudo,
aprender a reconhecê-lo.
A celebração litúrgica deve ser a ocasião, repetida várias vezes ao dia, e com os
irmãos, de nos expor ao que a Palavra nos descentra de nós próprios, que ela se prenda
a nós, que ela agarre o nosso desejo de dar a nossa vida para a darmos ainda muito
melhor, bem mais, que não saberíamos fazer só por nós próprios. A celebração, repetida
em cada dia e a cada Hora, dá-nos a coragem de nos expor a ouvir a Palavra, a escutar
as palavras da Escritura e das orações da tradição, a nos acostumar à familiaridade que a
Palavra quer ter connosco, a discernir através das palavras da Escritura o rosto do Filho
que se revela, origem da própria obediência. Precisamos, sem cessar, de recuperar as
nossas forças, de ter ânimo, e é no mistério da liturgia que o sabemos poder fazê-lo, ou
melhor, poder pedir ao Senhor que no-lo conceda.
Mas qual é a obra da graça que se opera em nós, individualmente e em comum,
pela celebração litúrgica? Ousaria dizer, antes de mais, que cada celebração do ofício nos
leva a ancorar de novo a nossa vida nos gestos que foram os da nossa profissão. Que
pedis? A misericórdia de Deus e a vossa. Quem de nós não ficou já profundamente
comovido pelos momentos iniciais da celebração de Completas onde, fazendo eco da
pergunta que precedeu a sua profissão, cada um se apresenta em verdade na presença
de Deus, ajudado pelo desejo de se colocar em verdade na presença dos irmãos, e
recebe a certeza da misericórdia e do perdão que permitem ter a ousadia de levantar o
olhar? Cada uma das Horas não começa com este pedido de ajuda daquele que pode
amparar a nossa vida, a nossa fraternidade, a nossa pregação? Sabemos todos, que há
dias em que não gostaríamos de ser orgulhosos, dias em que gostaríamos de ter sido
mais justos, mais próximos, mais atentos, de estar menos satisfeitos só com isso e
esperar menos o Senhor. Há dias em que a adaptação tem o entusiasmo dos começos, a
radicalidade da resposta, a generosidade do dom de si não estão no lugar certo. A oração
das Horas, a «santificação das horas» é este ato de fé em que, apesar das nossas faltas,
não falta a Presença de Deus. É certeza que celebramos, doxologia após doxologia,
inclinação após inclinação. «Levantai-vos», é-nos respondido no dia da profissão.
«Levantai-vos», pôde entender o Beato Jordão, e despi o homem velho para revestir o
homem novo.
A intuição destes jovens rapazes que vão para a casa de Betânia indica-nos que o
caminho que se abre no dia da nossa profissão é figura de um caminho que nos conduz à
Páscoa. A celebração litúrgica das Horas coloca este mistério da Páscoa no centro do
mais banal de cada um dos nossos dias, e envolve o nosso tempo num tempo que nos
ultrapassa e, portanto cria-nos a nós próprios. Tempo da promessa da aliança, escutada
na Escritura e cantada nos Salmos, que nos dão as palavras que nos dominam e
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deixarmo-nos dominar por esta presença, que em cada instante se dirige a nós, e para
responder a esse apelo. Tempo da presença de Cristo, reconhecido à luz dos que foram
as primeiras testemunhas da sua Presença e do seu mistério. Tempo da humanidade,
que, reconhecendo-o, ousa com os irmãos de Emaús implorar-lhe para que fique com
eles. Se celebramos dia-a-dia, e ao longo de cada dia, a liturgia das Horas, é para que o
nosso tempo se encontre real e fortemente, agarrado por esta Presença e se desdobra
como para fazer eco deste mistério. Revestir o homem novo, é realmente deixar que o
mistério de Cristo revista o homem velho.
Nós sabemos, a tradição da Ordem insiste (e as Constituições pedem) que, no
centro da celebração das Horas, os irmãos celebrem a Eucaristia e que o façam em
comum, na missa conventual. É necessário considerar novamente a força desta
exigência, que na verdade, muitos de nós, sublinham nas pregações dos retiros nas
comunidades religiosas: a comunhão fraterna enraíza-se, encontra o seu vigor e a sua
alegria, na celebração eucarística comunitária. Pode acontecer que por causa do seu
ministério os frades tenham de celebrar a missa na sua paróquia, com este ou aquele
grupo, … Mas devemos encarar a questão da celebração da eucaristia comunitária, não
como uma celebração possível para cada padre se não teve a ocasião nesse dia de
celebrar a «sua» missa, mas o convite urgente a qualquer frade, padre ou não, de receber
a sua vida, de receber o dom de si mesmo, da partilha eucarística com os irmãos. Fica
connosco, Senhor… Que Ele nos explique, reunidos, a Escritura e inflame os nossos
corações, impacientes de o seguir na itinerância apostólica! Inquietos por viver juntos
verdadeiramente, enraizando a nossa pregação na unidade da comunidade dos irmãos,
recebida dia-a-dia no Pão partido e no Cálice partilhado.
Celebração da unidade na fraternidade
A celebração litúrgica das Horas deve ser um acontecimento fraterno. Os anos e os
séculos passam, talvez a celebração litúrgica se tenha tornado progressivamente a figura
de uma observância, de um sinal da regularidade à qual nos envolvemos, de um rito
formal que é necessário realizar como que para marcar um elemento da check-list de um
dia. Mas ao celebrar as Horas, é a vinda da Páscoa que celebramos (é por isso que
colocamos o caixão de um irmão que morreu no meio de nós, para que Ele o leve na Sua
Páscoa), e então estaremos longe do formalismo e da obrigação de cumprir um rito, de
«dizer o nosso ofício». É a Páscoa que nos faz ir ao ofício, é o mistério da vida sempre
dada de novo que nos deve pôr impacientes para este encontro, é a alegria da
fraternidade selada na partilha eucarística que nos reúne para celebrar em comum a
esperança da vinda da Palavra da salvação.
Celebramos, profundamente, a vinda da Palavra como segredo, fonte, fundamento
da nossa fraternidade. Reunirmo-nos no coro algumas vezes ao dia não será para nos dar
a possibilidade de fazer memória deste mistério insondável da graça? Ele vem dirigir-se
ao mundo, e a nós, e dar-nos a força e as palavras para ousarmos, pela nossa parte,
dirigirmo-nos a Ele. Abandonar os nossos próprios discursos, e as nossas sabedorias, e
tudo aquilo que acreditamos conhecer muito bem, para deixá-Lo falar. É várias vezes ao
dia que devemos rezar o mistério do voltar ao Templo: só Ele é quem ensina, que revela o
sentido das Escrituras! A celebração litúrgica é a linha contínua dos nossos dias sobre a
qual se inscreve esta «consagração à verdade, que é a Palavra», consagração que nós
nos lembramos mutuamente, na qual nos sustentamos reciprocamente, que nós nos
oferecemos uns aos outros. A liturgia das Horas, diz a tradição santifica de alguma forma
o tempo cronológico de Deus; na sua duração e repetição, consagrando a «duração»
interior do homem na verdade que é Palavra que vem.
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É nesta perspetiva que as nossas Constituições nos convidam a fundar as nossas
comunidades na celebração comum do mistério eucarístico (LCO 3). Que tenhamos sido
particularmente generosos na primeira ou na sexta Hora, que nós tenhamos sido capazes
de afrontar o desânimo apostólico ou pessoal na terceira ou nona hora, é uma hora,
sempre favorável, é o tempo de ir buscar à fonte da vida dada a força e a alegria de dar
lugar à vida que recebemos, trazendo no coração o desejo da salvação do mundo. Mais
uma vez, podemos fazer valer as objeções, como a do número de missas que temos de
celebrar nalguns lugares apostólicos e pastorais, ou como a do rito no qual queremos
celebrar. A Ordem funda-se na celebração comum do mistério que está no centro de todo
o mistério e deve fazer-nos renunciar, definitivamente, a qualquer tentação de relativismo,
preferindo fazer valer as nossas próprias ocupações ou preferências em vez das
necessidades desta fundação comunitária. Há uma unidade entre a celebração da liturgia
que santifica as Horas e a celebração eucarística que gera a comunhão, como há uma
unidade, no desenrolar da vida apostólica, entre a pregação sobre os caminhos do mundo
e o serviço da caridade dado ao mundo. Existe uma unidade profunda, e que nos faz
viver, entre a celebração litúrgica das Horas, o diálogo apostólico e o estudo tranquilo
porque, isso será sempre para nós uma espera para reconhecer e acolher o Verbo que
vem. Procurando em comum viver desta unidade, celebramos, no meio de nós, a
presença d’Aquele, que desejamos oferecer como a esperança da salvação.
Celebração de uma unidade recebida para a salvação do mundo
No coração da fraternidade reunida pela e para a celebração, não é só Cristo que
vem, mas entra também o mundo. A celebração é, com efeito, o momento em que se
cultiva na fraternidade o amor do mundo. De Domingos dizemos que ele falava de Deus
ou a Deus, falando das pessoas a Deus e de Deus às pessoas. Diz-se dele que não
cessava de interceder pelo mundo. A celebração litúrgica das Horas é o lugar por
excelência onde as nossas comunidades trazem à presença de Deus as aspirações do
mundo ao qual somos enviados como Pregadores.
Nós trazemo-las já, ao retomarmos as palavras dos Salmos que exprimem com
muita pertinência os desejos do homem, os seus desejos de salvação, as suas
incompreensões de que se faz a sua história. Trazemos as aspirações porque, cantando
os salmos, fazemos nossa a história do povo escolhido por Deus para ser um povo para
Deus, e assim, no mundo um sinal da promessa do mundo que quer ser um «mundo para
Deus». Ousamos nós dizer que, cantando a história do povo para Deus no coração do
mundo, abrimos na história contemporânea uma brecha que permite levantar o olhar, para
lá daquilo que parece ser um destino já traçado, para lá do que parece um impasse ou
obstáculo absurdo mas definitivo no caminho do mundo? Cantamos a promessa de uma
Presença e de uma Vinda que não pode acomodar-se aos «impasses para o homem»,
mas ao contrário, projeta sobre as situações de um momento a Luz de uma promessa de
eternidade. Cantar, hora após hora, a liturgia, é fazer entender no rumor do mundo a
convicção de que o mundo está salvo. E para os Pregadores, é colocar-se, hora após
hora, sob o sinal do que anima a nossa consagração à Palavra: o desejo de salvação do
mundo.
Estas aspirações do mundo, levamo-las, certamente, à oração de intercessão, tão
importante na nossa tradição. Depois do clamor de Domingos «que será dos
pecadores?», a intercessão é efetivamente um traço específico da nossa tradição
espiritual, da nossa tradição de oração. A escolha da vida apostólica traz consigo mesmo
como consequência que tomamos como nossas as lágrimas e as alegrias do mundo, as
suas esperanças e os seus desalentos, as suas certezas e as suas dúvidas. Como a
consagração à Palavra convida a deixar a Palavra saciar as nossas vidas, atravessá-las,
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erguê-las para as levar ao Pai, também o destino partilhado com o mundo deve habitarnos, convidar-nos a compreensões sempre nopas da Promessa, a fazer-nos levantar o
olhar para o Pai para Lhe apresentar as expetativas e as necessidades do mundo. «Não
te peço só por eles, mas por todos que acreditarão por meio deles». Este duplo
movimento da surpresa da Palavra e de dirigir a Deus uma palavra humana quer fazer
eco da preocupação de Cristo pelo mundo, este duplo movimento «configura-nos» com
Aquele que abriu o caminho da vida apostólica. É só uma e a mesma coisa levar ao
mundo a Palavra de Deus na qual queremos ser consagrados, e dirigir a Deus as
palavras do mundo, as suas esperanças e as suas necessidades. Às vezes, na nossa
oração de intercessão, somos demasiado tímidos ou ainda demasiado formais: o que está
em jogo é que ousemos comprometer-nos mais nesta oração de intercessão que é um
traço essencial da escola espiritual de Domingos, porque ela foi a oração d’Aquele que
ele queria seguir como pregador.
Domingos pediu aos irmãos que celebrassem as Horas publicamente. Por isso, ao
longo de cada dia, as nossas comunidades são convidadas a abrir a sua oração às
dimensões do mundo, a fazerem-se eco, na presença de Deus, das alegrias e
esperanças, das tristezas e desânimos do mundo. A celebração litúrgica é assim parte
envolvente da nossa missão de evangelização («alargar a Igreja às dimensões do
mundo»), ela é uma dimensão do nosso ofício da pregação. Dar graças e glorificar Deus
pelo admirável amor que Ele deu ao mundo e pelo qual, sem cessar, Ele sustém a sua
criação. Humildemente, receber a graça que Deus nos dá de poder interceder junto d’Ele
pelo mundo, falar-Lhe daqueles e daquelas que se confiam à nossa oração. Graça que
Deus nos dá de comprometer a nossa vida para Lhe implorar a salvação do mundo.
Através da oração de intercessão, nós ousamos acreditar que o Espírito, dia após dia,
apesar das nossas palavras desajeitadas e das nossas indignidades, nos configura à
imagem do Filho que rezava ao Pai: «Pai, quero que onde Eu estiver estejam também
comigo aqueles que tu me confiaste». No fundo, é estar incessantemente inquieto por
descobrir que a celebração das Horas, que deixar o mundo para entrar na oração, é em
cada dia a ocasião de dar graças pela Presença santificante de Deus que entra no
mundo. Não é assim que nos constituímos como comunidade de pregadores pelo Espírito
que, pacientemente, nos configura à imagem d’Aquele que é o único Pregador? E deixar
que Ele leve a nossa oração desajeitada ao Pai e inscrever em nós o desejo da salvação
pelo qual Ele mesmo deu a sua vida, e pelo qual nós queremos, pela nossa parte e à
nossa medida, ser pregadores.
E então, com Ele, subir cada dia para a Páscoa, e pedir o Espírito, para pregar.
Na festa da Visitação
Fr. Bruno Cadoré, op
Mestre da Ordem dos Pregadores
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