FRY, Peter. “Feijoada e “Soul Food”: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais”. In: Para Inglês Ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. - Artigo publicado originalmente em 1977. - “Em julho último, em Nova York, decidi oferecer a meus amigos um prato brasileiro típico. Com muita dificuldade consegui encontrar feijão-preto, costeletas de porco defumadas, couve e demais pertences e assim pude preparar uma feijoada, que servi com a devida pompa. Foi aí que um de meus amigos, um preto do Alabama, depois de ter cuidadosamente olhado e cheirado a travessa, destruiu todo o suspense observando que se tratava simplesmente da comida à qual estava acostumado desde criança. O que é, no Brasil, um prato nacional é, nos Estados Unidos, soul food” (p. 47). - A origem do prato é a mesma nos dois países – era elaborado pelos escravos utilizando sobras de porco desprezadas por seus senhores. “A diferença está no significado simbólico do prato. Na situação brasileira, a feijoada foi incorporada como símbolo da nacionalidade, enquanto nos Estados Unidos se tornou símbolo de negritude, no contexto de liberação negra” (p. 47). - Assim como a feijoada, o samba e o candomblé também são utilizados como símbolos nacionais brasileiros – e, como tal, exibidos em cartazes e guias turísticos (p. 47). E todos esses itens produzidos e elaborados pelos negros em situação de dominação foram apropriados pelos “produtores” da “cultura de massas” e incorporados em filmes, na música, em livros e revistas (p. 47). - “Gilberto Freyre usa esses exemplos, entre outros, para demonstrar que a colonização foi, no Brasil, um processo essencialmente harmônico, marcado pela ausência de preconceito racial. Tratando a cultura como se fosse transmissível geneticamente, Freyre opõe a experiência colonial portuguesa à inglesa, francesa e alemã, as quais, por motivos culturais, seriam mais contaminadas pelo preconceito racial” (p. 47-48). - “Gilberto Freyre comete o erro imperdoável de considerar os traços culturais como variáveis independentes, abandonando a análise da situação na qual se desenvolvem” (p. 48). - Neste artigo, analisa o candomblé e o samba. Inspira-se em Eunice Durham. - Candomblé. 1 - Nasceu da escravidão negra. Forma religiosa na qual divindades africanas podiam se esconder atrás de máscaras de santos católicos (p. 48-49). Foi desde o início reprimido. Mas muitos membros eram da elite branca (p. 48). - Com o tempo, foram terreiros absorvidos como elementos da “cultura nacional”. Ganharam a mídia. “Apesar da oposição que ainda possa existir em relação aos cultos (...), está claro que o que era originalmente província dos negros de classe baixa foi transformado, em parte, pelos membros brancos das classes médias e superiores. Os produtores originais deste item cultural foram, em certa medida, desapropriados de seu papel de liderança e relegados à posição de “extras” adicionais” (p. 51). - Samba. - Estreita relação histórica entre samba e candomblé. O samba era perseguido e ocorria nos terreiros. O Carnaval tornou-se, depois, uma atração turística lucrativa (p. 51). - “Como ocorreu com o candomblé na Bahia, o samba não é mais simplesmente a expressão cultural de um pequeno grupo localizado. Transformou-se num símbolo nacional e isto não apenas pela infiltração da zona sul em atividades puramente culturais, mas pela sutil manipulação do capital” (p. 52). - “Tentei mostrar de modo muito esquemático como dois itens culturais, produzidos originalmente por negros, foram sutilmente apropriados pela burguesia branca e transformados em instituições nacionais lucrativas (tanto econômica quanto politicamente)” (p. 52). Reconhece que essa é uma visão simplificada de uma realidade mais complexa. Nem todos os terreiros ou rodas de samba estão sob as luzes da publicidade ou patrocínios. - A questão, voltando à anedota do início do artigo é: porque no Brasil os produtores de símbolos nacionais e da cultura de massa escolheram itens culturais produzidos originalmente por grupos dominados? E por que isso não ocorreu nos EUA e em outras sociedades capitalistas? (p. 52). - São questões difíceis de responder. “Uma possibilidade é que tanto o candomblé como o samba constituíam os produtos culturais mais originais do Brasil e eram, portanto, capazes de distinguir simbolicamente o Brasil de outras nações latinoamericanas e do mundo desenvolvido. Outra interpretação possível, e a que realmente prefiro, é que a adoção de tais símbolos era politicamente conveniente, um instrumento para assegurar a dominação mascarando-a sob outro nome. Assim, o casamento entre colonizadores postugueses e princesas negras em 2 Moçambique, uma sagaz manobra política, foi interpretado pelos apologistas do colonialismo português como prova da ausência de preconceitos racistas. Gilberto Freyre (...) deduz da troca aparentemente livre de traços culturais entre vários grupos étnicos a natureza essencialmente democrática da estrutura social brasileira. Penso, ao contrário, que a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. Quando se convertem símbolos de “fronteiras” étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo „limpo‟, „seguro‟ e „domesticado‟. Agora que o candomblé e o samba são considerados chiques e respeitáveis, perderam o poder que antes possuíam. Não existe soul food no Brasil” (p. 52-53). ............................................................... FRY, Peter. “Política, nacionalidade e o significado de „raça‟ no Brasil”. In: A Persistência da Raça – Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. - Texto foi publicado originalmente em 2000. - Contexto do início do debate sobre as cotas (p. 207). - Começa falando sobre a apropriação de idéias estrangeiras no Brasil. Diz que muitos/as hoje rejeitam a ação afirmativa, especialmente em sua forma mais categórica de cotas, em nome do “liberalismo” – uma idéia que é também “importada”. As cotas parecem contradizer a democracia social e a democracia liberal – e por isso para muitos eram desagradáveis (p. 208). - Diz que o Brasil, até recentemente, era, assim como outros países, considerado contra-exemplar do “modelo americano” de relações raciais. E que há uma crítica de que a tradição americana teria imposto arbitrariamente a outras realidades uma dicotomia entre brancos e negros. O uso de “categorias raciais americanas para descrever o Brasil” foi muito denunciado como “violência simbólica” e derivaria do poder norte-americano (p. 208). - “Desde os dias da escravidão, bem antes da globalização moderna, as „relações de raça‟, reais e imaginadas, no Brasil e nos Estados Unidos, têm sido apresentadas como modelos contrastantes que, em certo sentido, passaram a definir para muitos as duas identidades nacionais” (p. 209). - “O mecanismo de personificar nações e depois atribuir-lhes homogeneidade cultural e projetos objetivos de hegemonia pode ofuscar os temas que realmente estão em jogo, que são endógenos em todas as sociedades modernas: ou seja, o 3 conflito entre a posição pós-boasiana de que „raça‟ não é uma realidade biológica, mas sim um artefato histórico e social, e a sobrevivência persistente e a presença cada vez mais poderosa da „raça‟ como princípio condutor da formação de categorias e grupos sociais significativos. O mecanismo, é claro, também ignora o modo como indivíduos, grupos e categorias distintos, presentes em sociedades ‟subalternas‟, compreendem as mensagens que recebem e a elas reagem em termos de suas próprias categorias culturais e seus programas políticos” (p. 210). - A sugestão dele é a de que se a sociedade brasileira tem qualquer especificidade em relação a esses temas, em contraste com os Estados Unidos, ela assenta-se no campo da lei. “No Brasil, a discriminação racial é e tem sido ilegal desde a instauração do regime republicano, em 1889. Nos Estados Unidos, a „raça‟ foi, até o movimento dos direitos civis da década de 1960, um constructo legal que dividia a população segundo linhas „raciais‟ em todas as esferas da vida social” (p. 211). Diz que a ação afirmativa foi relativamente fácil de se implantar nos EUA por ter sido construída sobre premissas compartilhadas de diferença „racial‟. “No Brasil, esta questão é muito mais espinhosa, já que corre contra a noção de democracia racial”. A ironia é que, enquanto nos EUA cresce a pressão para questionar a ação afirmativa e a dicotomia fácil entre negros e brancos, no Brasil a pressão cresce na direção oposta (p. 211). - O desenvolvimento da idéia de mistura e democracia racial no Brasil. - O conde Joseph Arthur de Gobineau chegou ao Rio de Janeiro em 1859 para permanecer por um ano, como embaixador da França na corte de D. Pedro II. Ele escreveu sobre e foi inspirador do chamado “racismo científico”. Quatro anos após sua chegada, escreveu um artigo sobre o Brasil que exaltava as riquezas naturais e a beleza do país, mas era pessimista quanto aos seus habitantes. - “Ao observar a formidável mistura de „raças‟ no Brasil e alegando que os mulatos „não se reproduzem além de um número limitado de gerações‟, concluiu, com base na análise dos dados censitários disponíveis, que a população iria „desaparecer completamente, até o último homem‟, dentro de, no máximo 270, e, no mínimo duzentos anos” (p. 211-212). Defendia então alianças com “raças européias”. Essa aversão à mistura refletia as preocupações de seu país natal que, desde a Revolução Francesa, sofria o que se chamava então de “decadência da „pureza racial‟” e do controle político de uma elite de ascendência supostamente alemã, à qual o próprio Gobineau afirmava pertencer (p. 212). Ele tentava universalizar a reação à Revolução Francesa. 4 - Havia outros estudiosos debruçando-se sobre a questão racial no país. “Nina Rodrigues imaginou uma complexa classificação racial e previu que a população tenderia a três tipos básicos – brancos, mulatos e negros - , que poderiam ser definidos não tanto por critérios genealógicos quanto pela aparência”. Ele era inspirado pela escola italiana de antropologia criminal. Ele propunha que cada grupo tivesse seu próprio código penal, já que suas “inclinações morais” diferiam. - No entanto, “Desde a abolição da escravatura em 1888 e da proclamação da República em 1889, as Constituições e leis brasileiras não discriminaram com base em „raça‟ ou „cor‟, ainda que as políticas de imigração revelassem o pensamento racial da época. Por meio da importação de brancos da Europa, esperava-se „embranquecer‟ aos poucos a população” (p. 212). - “Em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala, em que dizia que a „miscigenação‟ e a mistura de culturas não eram a danação do Brasil, mas sim sua salvação. “Reunindo um vasto conjunto de documentos sobre o Brasil colonial e imperial, assim como suas próprias lembranças de filho de uma família nordestina de proprietários de terras, e embelezando seu texto com considerável licença poética, ele descreveu o Brasil como uma sociedade híbrida na qual africanos, ameríndios e europeus (especialmente os portugueses) se haviam entrecruzado pelo intercâmbio de genes e culturas. Freyre descreveu uma sociedade baseada numa série de antagonismos culturais e econômicos (...) Ele afirmou que essa dualidade [indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia] não era inteiramente „prejudicial‟ e que existia um certo equilíbrio (...) Mas, acima de tudo, os antagonismos eram „harmonizados‟” (p. 213-214). - Freyre, como outros, estava preocupado tanto com a descrição do Brasil quanto com identificar a sua especificidade em relação a outros países, em particular os EUA. Como diz Fry: “Casa-Grande & Senzala foi um exercício de construção da nação e também etnografia histórica” (p. 214). - “Como argumentou Célia Azevedo, a noção de que as relações entre senhores e escravos eram mais harmoniosas no Brasil do que nos Estados Unidos cresceu rapidamente durante o século XIX, quando abolicionistas de ambos os países „contruíram pouco a pouco a imagem do Brasil como uma sociedade imune à violência racial‟ (Azevedo, Célia. “O abolicionismo transatlântico e a memória do paraíso racial”. In: Estudos afro-asiáticos, v. 30. 1996: 152). - Freyre rompeu de nodo importante com uma imagem negativa das culturas ameríndia e africana. Enfatizou a contribuição positiva que cada uma deixou para 5 a sociedade brasileira como um todo. Todos os brasileiros, afirmava, eram culturalmente africanos, ameríndios e europeus. “Na sociologia de Freyre, as três „raças‟ eram imaginadas como aglomerações culturais que, combinadas, permitiam a imaginação de um Brasil racial e culturalmente híbrido” (p. 215). - Ataque à democracia racial. - Essa imagem do Brasil foi amplamente aceita aqui e no resto do mundo até a década de 1940 (p. 216). O Brasil era visto como uma “democracia racial” – “onde as relações entre pessoas de cores diferentes eram fundamentalmente harmoniosas” (p. 216). - II Guerra Mundial. Racismo nazista. Horror. Unesco, por sugestão de Arthur Ramos, patrocina um projeto-piloto de pesquisa no Brasil com o objetivo de estudar as relações étnico-raciais aqui. [Brasil era considerado caso ímpar e precisava ser estudado] (p. 216). Unesco também tinha interesse especial pelos problemas específicos do “mundo em desenvolvimento”. O que ficou demonstrado no estudo foram provas da imensa desigualdade e preconceito em todo o país (p. 216-217). Ainda assim, não foi negado o mito. O que fez foi revelar as tensões entre o mito da democracia racial e o “racismo à brasileira” (p. 217). - Continuou-se a perceber as relações raciais aqui como diferentes das dos EUA. Brasil, por exemplo – importância não só da ascendência, mas da “aparência” levaria a classificações mais complexas do que “negros” e “brancos” (p. 217). - A partir dos anos 1980, estudos estatísticos, sociológicos e antropológicos vão mostrar as enormes desigualdades raciais no país (p. 217-218). [Vão mostrar, por exemplo, as disparidades na escolaridade, educação, salários, acesso a serviços e à Justiça, entre negros/as e brancos/as] (p. 217-218). - [Ler exemplo de estudos sobre criminalização – p. 218-219]. - “A demonstração e o reconhecimento da existência de racismo indicaram o abismo entre a ideologia da „democracia racial‟ do Brasil e a realidade sociológica. Poucos discordarão disso. Na verdade, as pesquisas de opinião pública mostrar com bastante clareza que a maioria dos brasileiros (...) está bastante consciente da discriminação. Em 1995, uma pesquisa realizada pelo jornal Folha de S. Paulo revelou que quase 90% da população admitia a existência de discriminação racial no Brasil. Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro em 1996 mostrou que 68,2% dos habitantes da cidade concordavam que os „negros‟ sofrem mais que os „brancos‟ os „rigores da lei‟. No entanto, as duas pesquisas revelaram que, em sua maioria, os brasileiros adotam o ideal da „democracia racial‟ e negam ter qualquer 6 preconceito. Oitenta e sete por cento dos pesquisados que se classificaram como brancos e 91% dos que se definiram como pardos afirmaram não ter nenhum preconceito contra negros, enquanto 87% dos negros entrevistados negaram ter qualquer preconceito contra brancos. De modo ainda mais surpreendente, 64% dos negros e 84% dos pardos negaram ter sofrido preconceito racial. É como se os brasileiros tivessem preconceito do preconceito racial, como um informante branco dissera a Florestan Fernandes e Roger Bastide anos atrás. “„Nós, brasileiros‟, disse um branco, „temos preconceito contra ter preconceito‟” (Bastide e Fernandes, 1971: 148) (p. 220). - Embora a maioria concorde que o mito da democracia racial coexiste com o preconceito e a discriminação, as interpretações divergem (p. 220). “A interpretação que inspirou principalmente a imaginação dos ativistas negros no Brasil é que o mito faz mais do que apenas negar a verdadeira democracia racial. Ele tem a poderosa função de mascarar a discriminação e o preconceito e de impedir a formação de um movimento negro de protesto em grande escala. Segundo esta interpretação, o racismo brasileiro tornou-se ainda mais insidioso por ser oficialmente negado” (p. 220-221). Para vários autores, o que começou como glória do Brasil é hoje sua danação (p. 221). Mais uma vez, a comparação é com os EUA, mas nesse caso o Brasil é visto como negativo. - O Brasil é considerado, nessa interpretação, carente da “normalidade” e “modernidade” norte-americana – “por não ter „raças‟ polarizadas, por definir a „raça‟ de alguém por sua aparência e não pela genealogia, por não ter gerado um forte movimento negro de massa, por não ter sido palco de confrontos raciais e por subordinar oficialmente a especificidade das raças à desigualdade de classes” (p. 222). O mito da “democracia racial”, que já foi símbolo predominante do nacionalismo brasileiro, passou a ser demonizada em certos círculos acadêmicos e ativistas como ideologia responsável pelo insidioso racismo do Brasil. - “Esta interpretação do Brasil em particular tornou-se cada vez mais forte nos últimos anos, não só por causa da influência dos estudiosos norte-americanos e da utilização de categorias „raciais‟ desenvolvidas para descrever as „raças‟ e as „relações de raça‟ norte-americanas como também por causa do crescimento paralelo de um movimento negro articulado que, em geral, tem-se aliado fortemente aos pesquisadores acadêmicos” (p. 223). - Mas a interpretação do mito como engodo apresenta problemas. Em primeiro lugar, desrespeita aqueles que dizem nele acreditar (a maioria da população); em segundo, traz embutidos os defeitos das interpretações funcionais. “Quando se aborda o „mito da democracia racial‟ de um ponto de vista mais antropológico, 7 quer como estatuto para a ação social quer como sistema ordenado de pensamento social que encerra e expressa sentimentos fundamentais a respeito da sociedade, ele pode então ser compreendido não tanto como „impedimento‟ à consciência social, mas como base do que a „raça‟ ainda significa de fato para a maioria dos brasileiros” (p. 224). - Ação política. - Constituição de 1988 – lei contra o preconceito racial (desde 1951 já existia lei punitiva à discriminação racial, mas a partir de 88 ela define a prática racista como crime e não simplesmente contravenção) (p. 225). - Constituição reconheceu os direitos de propriedade dos descendentes dos antigos quilombos que continuavam a ocupar suas terras (p. 225). A situação especial de determinadas comunidades negras foi reconhecida em sentido afirmativo, com concessões de direitos legais semelhantes às recebidas pelas comunidades indígenas. [Muitas pesquisas surgiram sobre comunidades remanescentes de quilombos – dentre elas Cafundó, de Fry e ?????]. - “O processo de reconhecimento da simples existência dessas comunidades vem tendo (...) efeito importante sobre o modo como a questão da raça é pensada no Brasil. Os efeitos do processo de identificação são ao mesmo tempo práticos e simbólicos: práticos porque se garante a posse da terra; simbólicos porque o Brasil se confronta com uma „realidade‟ que desafia a auto-imagem de sociedade mestiça e substitui por outra em que há autenticidades „raciais‟” [Produção de um Brasil multicultural e multirracial, como blocos de Carnaval de inspiração africana em Salvador e em outros lugares] (p. 226). - Em 1988, centenário da abolição, havia fundos governamentais para eventos culturais. Com FHC, a questão racial [questões afro-brasileiras] é transferida do Ministério da Cultura para do Trabalho e da Justiça. Em 1995, o governo iniciou o Programa Nacional de Direitos Humanos. Medidas ministeriais “antidiscriminatórias” foram tomadas (p. 226-227). - O Programa Nacional de Direitos Humanos vai além deste objetivo anti-racista, propondo na verdade intervenções para reforçar uma definição bipolar das “raças” no Brasil e implementar políticas em favor dos brasileiros negros/as. Por exemplo, instrui o IBGE a adotar o critério de considerar “mulatos”, “pardos” e “pretos” como “população negra”, alinhando o sistema brasileiro de classificação racial com o dos Estados Unidos. São estratégias distintas das “desracializantes” no combate ao racismo (p. 227). “Em vez de negar a importância da „raça‟, celebram o reconhecimento e a formalização da „raça‟ como critério para definir e objetivar a 8 política. Pela primeira vez desde a abolição da escravatura, o governo brasileiro não só reconheceu a inexistência e a iniqüidade do racismo como também optou por contemplar a aprovação de leis que reconheçam a existência e a importância de „comunidades raciais‟ distintas no Brasil” (p. 227). - Alguns estudiosos, como Fábio Wanderley Reis, fazem certas objeções à aplicação “racial” da ação afirmativa. Ele afirmou, num seminário em 1996 que visava discutir “ação afirmativa e multiculturalismo”, em Brasília, que a “democracia racial”, embora algo irreal, pode ser uma meta e que o governo deveria investir na educação contra o preconceito de cor. E que a ação afirmativa deveria ser social e não racial, concentrando-se na redução da pobreza, reduzindo ao mesmo tempo a desigualdade racial, pois para ele cor e classe andam juntas no Brasil (p. 228-229). - Roberto Da Matta também se posicionou mais a favor de campanhas para explicar o modo como a discriminação racial funciona no Brasil e para exaltar a idéia de democracia racial (p. 229). - O argumento a favor da ação afirmativa no Brasil foi apresentado por Antônio Sérgio Guimarães. Ele afirmou que um programa temporário de ação afirmativa seria compatível com o individualismo e a igualdade de oportunidades, sendo uma forma de promover a equidade e a integração social. - O que distingue com mais clareza a posição de Guimarães da de Reis e Da Matta é sua defesa da celebração das “identidades raciais”. “Para Guimarães, este é um dos resultados positivos das políticas de ação afirmativa” (p. 230). - Posição de Guimarães é a mesma dos/as que imaginam para o futuro um Brasil não de ambigüidade e mediação, mas de identidades raciais e sexuais claramente demarcadas, que precisam ser “fortalecidas” [ou seja, elas já “existem” dessa perspectiva] (p. 230). - “Alguns que argumentariam, e sou um deles, que a política de integração cultural efetuada com tanta diligência e até violência no Brasil tem sido tão bem-sucedida que as identidades que Guimarães gostaria de ver valorizadas teriam primeiro de ser construídas. E na verdade é isto o que indica o registro etnográfico. A história do movimento negro no Brasil tem sido em boa parte a história de tentativas nem sempre muito bem-sucedidas de construir uma identidade negra que as pessoas de cor se sentissem impelidas a adotar” (p. 230-231). - Fry resume as posições assim: “De um lado, há um forte compromisso com a „democracia liberal‟ que, embora muito contestada pela realidade do clientelismo, 9 da corrupção, do nepotismo, do preconceito e do poder puramente violento, permanece como ideal a que muitos aspiram. De outro, não muito diferente, está o apelo à „tradição‟, à „inteligência sociológica brasileira‟, que evoca a especificidade da sociedade brasileira presa entre os „ideais‟ de democracia e a „tradição‟ da hierarquia e da ambigüidade. E ainda num terceiro lado está a exigência de mudança radical, um descarte da „tradição‟, o reconhecimento formal de „raças‟ distintas e a criação de medidas temporárias para amenizar a desigualdade entre elas”. Embora o debate tenha sido provocado pela experiência norte-americana de ação afirmativa, sua existência mostra como o “modelo americano” não se tornou “hegemônico” no Brasil. - Ação social. - Surgiram no país iniciativas variadas visando abordar a desigualdade e discriminação, financiadas pelo governo, fundações internacionais, igrejas ou por combinações entre os três (p. 231-232). Há uma gama de iniciativas. Algumas levaram casos aos tribunais, baseando-se nas leis contra a discriminação; outras concentraram-se na construção da auto-estima e da identidade negra; outras exigiram sistemas de cotas para negros e negras no serviço público e nas universidades. Outras apontavam soluções “híbridas”, que atacassem ao mesmo tempo questões de desigualdade racial e pobreza em geral, por meio por exemplo de cursos pré-universitários para “negros e carentes”. [Uma gama enorme de atividades estavam em andamento quando o texto foi escrito, em 2000]. - “Tradicionalmente, os movimentos negros brasileiros deram maior ênfase à criação de uma identidade negra específica. Como os acadêmicos, sentiram que o sistema complexo e com gradações sutis de classificação „racial‟ do Brasil, como parte do „mito da democracia racial‟, era responsável pelo mascaramento da verdadeira divisão bipolar dos brasileiros entre brancos e negros. Além disso (...), para poder existir, o movimento foi obrigado a defender no Brasil uma identidade negra que incluísse todos aqueles que não fossem brancos (...) Além disso, sempre foi difícil para os grupos negros o estabelecimento de emblemas diacríticos da cultura negra, porque, sob o toldo da democracia racial, muitos bens culturais importantes, como a feijoada, o samba e a capoeira, que podem ser rastreados até a África, tornaram-se símbolos da nacionalidade brasileira” (p. 233). [Daí a importância do texto sobre feijoada e soul food]. - Talvez seja mesmo por isso que os símbolos da identidade negra vieram frequentemente de fora do Brasil, como o reggae no Maranhão, o hip hop no Rio de Janeiro e em São Paulo e da própria África, especialmente na Bahia, onde 10 grupos de Carnaval “afro”, como o Ilê Aiyê, trouxeram desde o início da década de 1980 temas de inspiração africana para o desfile de carnaval e restringiram seus membros a pessoas de pele bem escura (p. 233). - A partir desta experiência desenvolveu-se um estilo musical, o axé e seus derivados, que se tornou também nacionalmente querido. - Contudo, de forma relacionada a essas iniciativas, surgiu um forte movimento para celebrar o que, segundo alguns, marca a “raça” no Brasil – a aparência. “O sucesso comercial da revista Raça Brasil, que está hoje em seu quinto ano de existência [2000] baseia-se, com certeza, em sua ênfase na estética da negritude (p. 233-234). - Menciona algumas tentativas de implementação de ações afirmativas pelo sistema de cotas “raciais”, que haviam sofrido resistência para implementação. - Diz que partes do Movimento Negro se haviam tornado mais inclusivas, buscando alianças e reconhecendo que nem todos os brasileiros vêm com bons olhos a troca de seu complexo sistema de classificação racial pelo modelo bipolar. Dá também o exemplo da Marcha para Brasília, de 1995, para comemorar o aniversário da morte do líder escravo e herói nacional Zumbi [Quilombo dos Palmares, Alagoas, século XVII] e protestar contra a discriminação racial, mas que fora um evento bem “brasileiro”, com homens e mulheres de todas as cores possíveis, dançando e vestidos com cores vivas, ao estilo de uma “escola de samba” (p. 235-236). [Dá para pensar nas Paradas LGBT também]. - “Dessa maneira, e ao evitar uma colisão frontal com os ideais de mistura e „democracia racial‟, o movimento foi capaz de atrair mais apoio e conquistar maior credibilidade” (p. 236). - Dá o exemplo da experiência do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (MPVNC), da PUC-RJ. Junção da questão racial com a econômica, ou de classe (p. 236-237). - O debate sobre a questão “racial”, seja no Brasil, na França ou nos Estados Unidos, está sempre baseado na dúvida e na contradição, “acima de tudo porque as questões em jogo entrelaçam-se de forma tão íntima com questões de identidade e projetos nacionais e pessoais” (p. 239). “Por mais particular e específico que possa ser o „modelo americano‟, ele tem a vantagem política e epistemológica da simplicidade e da coerência. E, como tal, o „modelo brasileiro‟, 11 com toda a sua ambigüidade e contradição interna, é muito mais difícil de perceber intelectualmente, quanto mais como base de ação política” (p. 240). - Conclusão. - O caso do MPVNC é um bom exemplo da maneira como idéias “estrangeiras” são interpretadas em termos locais e adquirem no processo novo significado e considerável eficácia simbólica e prática (p. 240-241). 12