Colóquio de Direito Luso-Brasileiro. Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP / Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (12 a 16 de Maio de 2014) A INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO DIREITO BRASILEIRO* Antonio Magalhães Gomes Filho** 1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A INADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA s questões relacionadas ao tema da prova judiciária são quase sempre difíceis e polêmicas. Isso decorre, certamente, do caráter social dos procedimentos probatórios: as provas não visam somente a estabelecer a verdade sobre os fatos discutidos no processo, mas objetivam, de forma mais ampla, justificar perante a sociedade a decisão que vier a ser adotada. Daí porque não se trata de simples atividade técnica e neutra, mas, ao contrário, de tarefa influenciada por fatores culturais, políticos, ideológicos e até mesmo religiosos, cujas características têm sido muito variáveis no tempo e no espaço. Isso explica a formação de dois diferentes sistemas probatórios na Europa continental e na Inglaterra: no continente desenvolveu-se a técnica do inquérito, na qual a busca de uma verdade absoluta era praticamente ilimitada e constituía verdadeira obsessão do juiz inquisidor – admitindo-se qualquer tipo de informação, até mesmo com o recurso à tortura. Mesmo depois das transformações introduzidas no processo penal pela A * Palestra proferida no “Colóquio de Direito Luso-Brasileiro”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nos dias 12 a 16 de maio de 2014. ** Professor Titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ano 1 (2015), nº 1, 5-19 6 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 Revolução liberal do século XVIII, a consagração do sistema misto ou reformado permitiu que traços inquisitórios se mantivessem nesse sistema, confundindo-se o livre convencimento com uma liberdade quase incontrolada na aquisição da prova. Ao contrário, na tradição inglesa, depois levada aos outros países de “common law”, as características dos julgamentos pelo júri popular conduziram a um modelo em que a atividade probatória é confiada às partes e, ao mesmo tempo, limitada por uma série de regras de exclusão (“law of evidence”), cujo objetivo é evitar que o convencimento dos jurados seja contaminado por informações irrelevantes ou errôneas. Nessa ótica, interessa menos a verdade do que o bom método para chegar a ela. Essa diferença fundamental não impediu que na evolução mais recente desses dois modelos muitas daquelas características tenham se alterado. E tal mudança ocorreu muito especialmente a partir do final da Segunda Guerra - sobretudo com a internacionalização das garantias processuais relacionadas à prova, propiciada pela edição dos documentos supranacionais de direitos humanos -, sendo possível constatar então uma progressiva e recíproca influência entre os dois sistemas. Exemplo disso é a vedação do ingresso no processo das chamadas “provas ilícitas”. A restrição ao ingresso de tais provas tem uma função política, em sentido amplo, e visa à proteção de certos valores importantes para a sociedade, especialmente os direitos fundamentais do indivíduo, cujo sacrifício representaria um custo desproporcional em comparação com o interesse na apuração da verdade processual. Isso vale principalmente na justiça criminal, pois seria absurdo que o Estado, para impor a pena ao autor de um crime, permitisse a prática de métodos criminosos para apurar a verdade sobre o fato. O fundamento mais importante das proibições de prova é, portanto, relacionado à proteção dos direitos fundamentais RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 7 assegurados aos indivíduos pelas Constituições dos países que adotam o regime democrático. Isso significa que o interesse da apuração da verdade dos fatos discutidos no processo judicial deve conviver com outros interesses que também são protegidos pela ordem jurídica. Como escreveu Foriers, a disciplina da prova deve permitir a coexistência entre o interesse da sociedade e o interesse de apuração da verdade. A vedação da prova contra legem constitui resultado de longa elaboração jurisprudencial, iniciada na Suprema Corte americana no final do século XIX e, depois, nas décadas de 60 e 70 do século passado, pelo Tribunal Supremo Federal alemão (BGH) e pela Corte Constitucional italiana. Coube à jurisprudência norte-americana a primazia na consideração da inadmissibilidade processual da prova obtida ilicitamente. Até o final do século XIX, prevalecia o entendimento de que a admissibilidade da prova não era afetada pela ilegalidade nos meios utilizados para sua obtenção. Somente no célebre julgamento do caso Boyd v. United States, de 1885, a Suprema Corte americana entendeu inadmissível como prova um documento que o acusado fora obrigado a apresentar no processo, entendendo que isso configurava, a um só tempo, violação das Emendas IV, que assegura a inviolabilidade dos papéis privados, e V, que garante o acusado contra a autoincriminação. Depois disso, em 1914, na importante decisão do caso Weeks, a Suprema Corte considerou ter sido um prejudicial error a admissão, por uma corte federal, de documentos apreendidos na casa do acusado sem o respectivo mandado, com violação da IV Emenda; a partir daí, fixou-se, nas cortes federais, a regra de exclusão segundo a qual são inadmissíveis as provas obtidas com violação das garantias constitucionais; e essa regra passou a vigorar também, posteriormente, na maioria dos estados americanos. 8 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 Na justificação dessa orientação, a maioria dos juízes da Suprema Corte observou que a previsão de sanções civis, penais ou administrativas não constitui freio suficiente à atuação ilegal da Polícia; assim porque, em primeiro lugar, na maioria dos casos os abusos são cometidos contra pessoas das classes menos favorecidas, que não teriam recursos para promover ações de ressarcimento; segundo, porque a repressão penal dependeria da iniciativa dos mesmos órgãos de persecução aos quais se destinavam as provas obtidas ilicitamente e, em um sistema dominado pela oportunidade da ação penal, dificilmente tal ocorreria; finalmente, seria muito otimismo esperar que os próprios organismos policiais aplicassem penalidades disciplinares em seus membros, incentivando-os a somente agir dentro da lei; por tais motivos, entendeu-se que apenas a exclusão das provas conseguidas ao arrepio da lei seria um eficaz impedimento a tais abusos. O interesse pelo tema nos países de civil law, embora mais recente, tem sido intenso, resultando não somente em trabalhos doutrinários e decisões dos tribunais, mas, posteriormente, em previsões legais e constitucionais a respeito da inadmissibilidade das provas resultantes de procedimentos ilegais. Assim é que, mesmo em ordenamentos como o alemão, no qual a componente inquisitória do sistema misto e a crença na verdade material, como objetivo supremo do processo penal, representam sérios obstáculos à aceitação das regras de exclusão, a partir da década de 60 o Bundesgerichtshof (BGH) vem fixando a orientação de que, no Estado de Direito, existem limites intransponíveis à busca da verdade processual: não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo preço; o objetivo de esclarecimento e punição dos crimes é, seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode representar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevalente do Estado. RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 9 Essa observação foi consagrada no conhecido dictum da Corte Federal de Justiça Alemã, de 1960: “It is not a principle of criminal procedure to arrive at the truth at any cost”, que tem sido seguido de forma praticamente unânime nos países de “civil law” a partir de então. A tarefa de esclarecer e punir os crimes é, sem dúvida, muito importante, mas não ao ponto de derrogar a proteção dos direitos constitucionais dos individuos. Também na Itália, onde a doutrina e a jurisprudência vinham relutando em aceitar, definitivamente, a inadmissibilidade das provas obtidas com violação de normas de direito material, a Corte Constitucional, em decisão de 1973, a respeito de interceptações telefônicas realizadas sem prévia e motivada autorização judicial, assentou a impossibilidade de utilização de provas obtidas com infrigência a garantias constitucionais. Em alguns países, a proibição foi consagrada na própria Constituição, como se verifica na Carta portuguesa de 1976, cujo texto, nesse particular, foi mantido na revisão de 1982: Artigo 32.o... 6. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. O Código de Processo Penal italiano, de 1988, também inseriu disposições expressas, no art. 191, nos seguintes termos: 1. Le prove acquisite in violazione dei divieti stabiliti dalla legge non possono essere utilizzate. 2. L’inutilizzabilità è rilevabile anche di ufficio in ogni stato e grado del procedimento; com base nisso, a doutrina, embora sem unanimidade, vem entendendo que a ampla previsão da norma se aplica não somente às proibições previstas na lei processual, mas também inclui os tipos incriminadores da lei penal, que, evidentemente, também constituem una legge che vieta. 2. A INADMISSIBILIDADE NO BRASIL, ANTES DA CONSTITUIÇÃO DE 88 10 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 No Brasil, durante muito tempo vigorou nessa matéria o que Ricardo Cintra Torres de Carvalho denominou “princípio da veracidade da prova”, segundo o qual a prova era analisada pela carga de convencimento que continha, abstraída a forma de sua obtenção; eventual irregularidade era vista como matéria de ilícito administrativo ou penal, a ser apurada em órbita própria, sem repercussão em sua admissibilidade. A partir do final da década de 1960, registrou-se, no entanto, acentuada tendência do Tribunal de Justiça de São Paulo de considerar que irregularidades cometidas pela Polícia, principalmente em casos de buscas e apreensões realizadas em casos de entorpecentes, contaminavam todo o processo. Também significativa, foi a posição do Supremo Tribunal Federal, antes mesmo de ser incluída a proibição no texto constitucional, em três julgamentos – dois em matéria de família e um criminal -, ao proclamar a inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos1. 3. O ART. 5º, LVI, DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição de 1988 veio a consolidar essa posição do STF, afastando do processo brasileiro – e qualquer natureza, civil penal ou administrativo – a admissibilidade das provas ilícitas. “São inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Em primeiro lugar, deve-se observar que a Constituição trata inquestionavelmente das provas obtidas com violação do direito material, especialmente as que decorrem de violação dos direitos e garantias individuais. Em segundo lugar, ao prescrever expressamente a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a Constituição 1 . RTJ 84/606, 110/798 e 122/47. RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 11 brasileira considera a prova materialmente ilícita também processualmente ilegítima, estabelecendo a sanção de inadmissibilidade. O que equivale dizer que essas provas simplesmente não podem ter ingresso no processo e portanto não existem como provas para o julgamento. Mais do que isso, a recente reforma do Código de Processo Penal, de 2008, estabeleceu que essas provas (rectius, a sua documentação) devem ser desentranhadas dos autos e inutilizadas (art. 157, § 3º, CPP). Esta última providência parece ser excessiva, pois em alguns casos a prova obtida mediante um ato ilegal pode ser necessária para a punição desse mesmo ato ilícito. Observe-se que no direito português, embora a Constituição e o Código de Processo Penal declarem “nulas” as provas obtidas com violação às proibições expressas pela lei, ligando as proibições de prova ao regime das nulidades, observase uma tendência mais atual em distinguir o sistema das proibições de prova em face do sistema das nulidades. O primeiro é organizado em torno de regras de proibição de produção de provas, com a consequência da proibição de valoração de provas, enquanto o segundo enfatiza a distinção entre nulidades e irregularidades, segundo a gravidade do vício do ato, que conduz às distinções entre nulidades absolutas ou relativas, sanáveis e insanáveis etc. No entanto, o que se tem por assentado é que a consequência ligada à proibição de prova é a proibição de sua valoração pelo juiz. Depois da Constituição de 1988, com a proibição expressa do ingresso da prova ilícita no processo (art. 5º, LVI), em inúmeros julgados, os tribunais estaduais, federais e superiores vinham aplicando o preceito constitucional, sem que fosse necessária qualquer regulamentação legislativa. 4. AS DISPOSIÇÕES DA LEI 11.690/2008: ERA NECESSÁRIA A REGULAMENTAÇÃO DO ART. 5º, LVI, DA 12 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL? Com a nova redação dada ao art. 157 CPP e pela inclusão de três parágrafos, a Lei 11.690/2008 pretendeu disciplinar, no plano infra-constitucional, a matéria das provas ilícitas, antes restrita à previsão do art. 5, LVI, da CF: “ são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. A opção pelo tratamento legislativo de tema tão controverso e sujeito a variadas interpretações não parece ter sido a melhor, especialmente diante de certos equívocos e imprecisões do legislador, que em seguida serão indicadas. Daí porque as disposições trazidas pela Lei 11.690/2008, naquilo que confirmam o preceito constitucional – e também os entendimentos jurisprudenciais assentados -, eram perfeitamente dispensáveis. Mas o pior, como se verá, é que em determinados pontos os textos poderão gerar confusões e, em outros, consagram mesmo flagrante inconstitucionalidade, como se verá adiante . 5. SEGUE: O CONCEITO LEGAL DE PROVA ILÍCITA (ART. 157 CAPUT CPP, NA REDAÇÃO DA LEI 11.690/2008 O caput do novo art. 157 do CPP fornece uma definição do que se deve entender por provas ilícitas: “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. A vedação processual da admissibilidade da prova ilícita, como se viu (supra, n. 1), foi a solução encontrada pelas cortes constitucionais para a proteção de certos direitos e garantias fundamentais, que não devem ceder nem mesmo diante do interesse estatal na obtenção de provas. Trata-se, em resumo, de uma forma especial de tutela destinada a assegurar a efetividade daqueles direitos e garantias. Daí a distinção, proposta por Nuvulone e acolhida na RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 13 doutrina, entre provas ilícitas e provas ilegítimas: as primeiras constituem o resultado de uma violação do direito material, enquanto nas segundas o vício decorre da infringência de normas processuais. Outra diferença entre elas decorre do momento em que se configura a ilegalidade: nas ilícitas, ela ocorre quando da sua obtenção; nas ilegítimas na fase de produção. Também é diversa a conseqüência dos respectivos vícios: as ilícitas são inadmissíveis no processo (não podem ingressar e, se isso ocorrer, devem ser desentranhadas); as ilegítimas são nulas e, por isso, a sua produção pode ser renovada, atendendose então às regras processuais pertinentes. Não parece ter sido a melhor, assim, a opção do legislador nacional por uma definição legal de prova ilícita, que longe de esclarecer o sentido da previsão constitucional, pode levar a equívocos e confusões, fazendo crer, por exemplo, que a violação de regras processuais implica ilicitude da prova e, em conseqüência, o seu desentranhamento do processo. O descumprimento da lei processual leva à nulidade do ato de formação da prova e impõe a necessidade de sua renovação, nos termos do que determina o art. 573 caput do CPP. 6. SEGUE: A PROVA ILÍCITA POR DERIVAÇÃO (ART. 157, § 1º) A disposição contida no § 1º, do art. 157, cuida da chamada prova ilícita derivada, ou seja, do problema da extensão dos efeitos da ilicitude da prova. Trata-se aqui de verificar se, reconhecida a violação de uma regra do ordenamento para a obtenção da prova, deve ser excluída somente a prova assim conseguida, ou, por derivação, devem também ser afastadas eventuais outras provas cuja descoberta somente foi possível a partir daquela inicialmente viciada. Essa questão foi colocada à Suprema Corte norte- 14 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 americana no julgamento do caso Silverthone Lumber Co. v. U.S., em 1920, que a partir de então formulou a chamada fruit of the poisonous tree doctrine ou taint doctrine, segundo a qual a regra de exclusão é aplicável a toda prova maculada por uma investigação inconstitucional. O tema também tem sido objeto de consideração pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, que, não sem dissensões, tem-se manifestado contra o chamado efeito à distância (fernwirkung) em relação à prova proibida: entende o BGH, por exemplo, que se o acusado é confrontado com o resultado de uma gravação ilícita, as declarações daí resultantes não podem ser valoradas como prova; mas, se nas mesmas condições, menciona fatos novos, estes já não constituem prova ilícita. Em sentido contrário, segundo informa Gössel, o tribunal tem reconhecido um efeito à distância em casos de interceptação telefônica quando, através de uma operação autorizada para apuração de um dos crimes catalogados, descobre-se uma prova de um outro crime, não relacionado entre os que admitem a interceptação. Apesar das evidentes dificuldades que se apresentam para uma solução uniforme de tais situações, dadas as particularidades de cada caso concreto, é impossível negar a priori a contaminação da prova secundária pela ilicitude inicial, não somente por um critério de causalidade, mas principalmente em razão da finalidade com que são estabelecidas as proibições em análise. De nada valeriam tais restrições à admissibilidade da prova se, por via derivada, informações colhidas a partir de uma violação ao ordenamento pudessem servir ao convencimento do juiz; nessa matéria importa ressaltar o elemento profilático, evitando-se condutas atentatórias aos direitos fundamentais e à própria administração correta e leal da justiça penal. Nesse sentido, no Brasil, a orientação consagrada pelo STF no julgamento do HC n. 69.912-0-RS, em que prevaleceu RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 15 voto do Ministro Sepúlveda Pertence: “vedar que se possa trazer ao processo a própria degravação das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações, não colheria, evidentemente, é estimular e, não, reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas privadas”. Na jurisprudência norte-americana, a adoção do critério dos frutos da árvore envenenada não tem levado, entretanto, a uma proibição absoluta da utilização de elementos derivados da prova ilícita, sendo admitidas algumas exceções, dentre elas a da independent source, e a da inevitable discovery, casos em que a prova derivada pode vir a ser aproveitada. A exceção pela “fonte independente” (independent source limitation) foi reconhecida pela Suprema Corte, no caso Bynum v. U.S., de 1960, assim resumido: o acusado havia sido preso ilegalmente e, nessa ocasião, foram tiradas suas impressões digitais que comprovavam seu relacionamento com um roubo; a prova foi excluída porque derivada da prisão ilegal. Num segundo julgamento, a acusação trouxe, para comparação, outras impressões digitais, mais antigas, que estavam nos arquivos do F.B.I.; assim, reconheceu-se a validade da prova, pois agora não havia conexão com a prisão arbitrária. Com outra linha de argumentação, no caso Nix v. Williams (Williams II), de 1984, a Suprema Corte concluiu que a doutrina dos frutos envenenados também não se aplicava aos casos em que a prova seria inevitavelmente descoberta por uma investigação legal (inevitable discovery). Na situação então examinada, o acusado havia matado uma criança e ocultado o corpo. Iniciadas buscas pela Polícia, com a ajuda de cerca de 200 voluntários, o acusado fez uma confissão, ilegalmente obtida, indicando a localização do corpo. A Corte considerou ilegal essa confissão, mas válida a descoberta do corpo, pois 16 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 era inevitável e não tinha relação com a ilegalidade. Os fundamentos dessas duas exceções à contaminação da prova são evidentemente diversos: na hipótese de haver uma fonte independente, a prova derivada tem concretamente duas origens: uma ilícita e outra lícita, de tal modo que, ainda que suprimida a fonte ilegal, o dado probatório trazido ao processo subsiste e, por isso, pode ser validamente utilizado. Já na situação de descoberta inevitável, a prova tem efetivamente uma origem ilícita, mas as circunstâncias do caso permitem considerar, por hipótese, que seria inevitavelmente obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita. Assim, no primeiro caso (fonte independente) nem mesmo seria correto falar em exceção à regra de contaminação da prova derivada, pois na verdade o que se exclui é a própria relação de causalidade. Esse é, por sinal, o entendimento do Tribunal Supremo espanhol, que tem aplicado o conceito de fonte independente afirmando que não se dá a contaminação da prova derivada quando for possível estabelecer desconexão causal entre a prova que fundamenta a condenação e as obtidas ilicitamente. Daí porque a questão não está colocada como exceção à regra de exclusão, mas como permissão de valoração por não ocorre derivação de prova inconstitucional. O legislador nacional, com a nova redação dada ao art. 157 e parágrafos do CPP, a Lei 11.690/2008, acolheu expressamente a orientação que reconhece a inadmissibilidade processual das provas derivadas da ilicitude inicial, ressalvando, no entanto, duas situações: a) “quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras”; e b) “quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”. Em relação à primeira situação, era perfeitamente desnecessária a previsão normativa, na medida em que o conceito de prova derivada supõe, por si só, a existência de uma relação de causalidade entre a ilicitude da primeira prova e a obtenção RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 17 da segunda. Se o vínculo não estiver evidenciado, é intuitivo que não se trata de prova derivada. Mas, apesar de redundante, essa parte do texto legal não parece trazer inconvenientes na sua aplicação. 7. SEGUE: O EQUIVOCADO CONCEITO DE FONTE INDEPENDENTE Mais grave foi o equívoco da lei ao consagrar a exceção da fonte independente. Aqui o legislador afastou-se completamente da noção original fixada na jurisprudência americana, que, como visto, supõe que o dado probatório possua efetivamente duas origens, uma ilícita e outra lícita, subsistindo como elemento de convicção válido, mesmo com a supressão da fonte ilegal. Com efeito, já na parte final do § 1º, ao empregar o verbo no condicional - “puderem ser obtidas” -, a lei dá a entender que basta a simples possibilidade de que a prova viesse a ser obtida por meio lícito para afastar a sua contaminação pela ilegalidade inicial. Não bastasse isso, no § 2º, aventurou-se o legislador a estabelecer um conceito normativo de fonte independente que subverte não só aquela idéia original, mas também coloca em risco a própria finalidade da vedação constitucional, que não é outra senão a de coibir atentados aos direitos individuais estabelecidos na Lei Maior. Ao dizer que “considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”, a disposição analisada abre as portas para que, sob esse fundamento, toda e qualquer prova derivada de outra ilícita venha a ser convalidada. Pense-se, como exemplo extremo, numa confissão obtida mediante tortura e na qual o suspeito indique o local em que 18 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 se encontra uma prova documental. Realizada uma busca e apreensão, com mandado judicial e com observância de todas as formalidades, o documento é apreendido. Segundo o entendimento consagrado a respeito da inadmissibilidade da prova derivada, essa segunda prova será também ilícita, uma vez que tem como causa uma grave violação de direito fundamental. Mais do que isso, admitir tal prova seria, na verdade, incentivar atividades ilegais, como sublinhado no acórdão do STF antes mencionado. Mas, pelo que se depreende do texto do § 2º introduzido pela Lei 11.690/2008, nem mesmo seria necessário que a prova derivada tivesse sido efetivamente conseguida de forma regular, bastando que houvesse uma mera possibilidade disso. Trata-se, à evidência, de disposição que subverte o espírito da garantia constitucional do art. 5º, LVI. Parece ter havido aqui uma confusão do legislador entre as exceções da fonte independente e da descoberta inevitável. Assim mesmo, como antes anotado, na situação de inevitable discovery, são circunstâncias especiais do caso concreto (como no exemplo do encontro do cadáver) é que permitem considerar que a prova seria inevitavelmente obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita. Ao contrário disso, o texto legislativo examinado permite que se suponha sempre a possibilidade de obtenção da prova derivada por meios legais, o que esvazia, por completo, o sentido da garantia. Em resumo, como está redigido, o texto do art. 157 § 3º estabelece exceção à regra de contaminação da prova derivada que limita, indevidamente, a garantia constitucional. No entanto, em recente decisão - HC 91.867-PA, julgado em 24.4.2012, relator Ministro GILMAR MENDES –, a Segunda Turma do STF concluiu pela licitude de prova derivada, argumentando justamente com o suposto acolhimento, pelo referido art. 157 § 3º CPP, da teoria da descoberta inevitável construída pela Suprema Corte norte-americana. RJLB, Ano 1 (2015), nº 1 | 19