INVENCIONICES: UM CONTO, UM MEDIADOR, SEU PÚBLICO
Cristina Maria Rosa (UFPel)
INTRODUÇÃO
A leitura literária ofertada às crianças tem sido eventual, aleatória, não planejada e
nem registrada em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade intelectual à
literatura por parte dos mediadores, especialmente alfabetizadores. A partir de pesquisas
realizadas1, afirmo que a origem desta “menoridade intelectual” está localizada no
desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos – os gêneros e as
obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados e no demasiado valor atribuído
aos demais conteúdos, preponderantemente o ensino da estrutura da escrita da língua
materna2, o que me permite lamentar que, da escola saiam escreventes. Leitores,
raramente. No artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons contatos com o
mundo da leitura literária desde tenra idade e utilizo como argumento resultados obtidos em
uma experiência bem sucedida de interação entre autor, mediador e público ouvinte.
DISCUSSÃO
O “desaparecimento” da leitura literária na escola tendo o mediador como referência
– um professor exemplar, leitor, apreciador de obras e autores, preparado para apresentar
às crianças a leitura através de obras criteriosamente escolhidas –, reflete o tratamento
amador que a leitura recebe: é comum que o professor abra mão de seu protagonismo
como leitor em nome de uma leitura dos iguais, ou seja, logo que as crianças aprendem a
balbuciar sílabas, substituem os professores na tarefa de ler para os colegas. Além disso, a
leitura é utilizada para acalmar crianças ou como prêmio por bom comportamento; a
1
Refere-se à pesquisa intitulada: “Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas”
(ROSA, 2014). Tendo como informantes professoras alfabetizadoras descritas quanto à formação,
idade, tempo de magistério e local onde atua, foi desenvolvida em 2013 e teve como curiosidades as
seguintes questões: A professora lê para as crianças? Qual a frequência? O que lê para suas
crianças? Registra o que lê? Onde? Há eventos de leitura na escola? Quais? Onde ocorrem? Quais
os autores que admira? Como escolhe o que vai ler para as crianças? O que indica da Biblioteca da
escola para ser lido em sala de aula? Especialmente no que tange aos clássicos infantis, a pesquisa
buscou saber se a professora conhecia, quais contos e autores apreciava, se possuía acervo, se lia e
com que frequência, quais as obras que lidas em 2013 e se estas eram originais ou recontos.
2
A aprendizagem da língua materna, nos anos iniciais de escolaridade, tem como atributo principal, a
inserção das crianças no mundo da escrita socialmente valorizada. No entanto, de acordo com
pesquisa realizada (ROSA, 2014a), ainda é vista como “ensino” e a maioria dos professores opta por
ignorar que o processo de aprendizagem é anterior ao ingresso da criança na escola. Iniciam a
alfabetização pela apresentação de parcelas ínfimas da língua como a letra, a sílaba e/ou a
sonoridade, com um muito restrito universo vocabular, além de procedimentos de ensino que
denotam falta de método e metodologia.
qualquer momento é suspensa, como castigo; a escolha do que ler é aleatória, sem critérios
pré-definidos; a biblioteca da escola não é conhecida nem utilizada pelo professor; os
clássicos, pouco conhecidos e, quando lidos, substituídos por recontos; os modernos ficam
restritos a autores estrangeiros famosos ou a um ou dois brasileiros em igual condição; na
escolha do que ler, os textos curtos são os mais acionados; há predomínio da imagem sobre
o texto entre os prediletos dos professores e, na maior parte das escolas pesquisadas; não
há eventos contínuos e permanentes de leitura literária. Entre os professores, poucos
investem em repertório e acervo pessoal no que tange à literatura.
Tendo como princípios que ler é atribuir significado ao lido, que a leitura literária é
condição para a formação do leitor e o gosto pela leitura não é um atributo genético, precisa
ser ensinado, produzido entre os seres humanos (Antunes, 2013), uma de minhas
ocupações tem sido produzir impacto entre os mediadores. Formadora de professores que
atuam na faixa etária conhecida como infância – de zero a onze anos ou do maternal ao
quinto ano – tenho buscado propor e acompanhar resultados de proposições de leitura
literária na escola. Busco, com isso, ofertar aos professores ferramentas de conhecimento3 e
atitudes mediadoras (como ler). O intuito é a atuação na sala de aula através do contato
com bons livros e metodologias adequadas.
LITERATURA INFANTIL
Frágil pela sua temporalidade, a infância tem difícil definição, segundo Hunt (2010) e
a literatura para ela também. Em suas conclusões acerca do que é a criança 4, ele escreve:
“A definição de infância muda, mesmo no âmbito de uma cultura pequena, aparentemente
homogênea, tal como muda o entendimento das infâncias no passado” (p. 94). O autor
afirma, ainda: “Em suma, a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um conceito
estável. Por conseguinte, não se pode esperar que a literatura definida por ela seja estável”
(p. 94).
A literatura infantil ou literatura escrita e destinada à infância tem como característica
3
Estudos sobre o que é a literatura para crianças, seus autores e obras, critérios para escolha do que
ler, frequência de leitura adequada para a formação de leitores, o que são e como se organizam
eventos literários na sala de aula, na escola e na sociedade, organização e uso da Biblioteca escolar,
diferença entre repertório e acervo além de acesso à crítica literária, representada por estudiosos
como Hunt (2010), Machado (2011), Paulino (2010) e Todorov (2012), entre outros.
4
Entre as características transculturais e diacrônicas que definem a infância, segundo Hunt (2010),
está “a brincadeira espontânea, a receptividade à cultura vigente, os constrangimentos fisiológicos e
a imaturidade sexual. Crianças tendem a formar laços emocionais com figuras maduras, a ter
dificuldades quanto ao abstrato, a ter menor grau de concentração que os adultos e a estar
vulneráveis a percepções imediatas. Por isso, se adaptam mais facilmente que a pessoa adulta e há
consideráveis indícios que as habilidades cognitivas das crianças se desenvolvem numa lógica
comum, embora haja muita discussão sobre até que ponto esses ‘estágios’ podem ser identificados”
(HUNT, 2010:91).
maior o seu imaginado, desejado, suposto público: a criança. Assim, e “por inquietante que
seja, pode ser definida como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou
especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças” (HUNT,
2010:96). Esse modo de pensar possibilita agregar a ideia de que livros infantis seriam
apenas os “essencialmente contemporâneos” (p. 96) uma vez que os “conceitos de infância
mudam tão depressa” que um livro “envelheceria” junto com a geração para a qual foi
criado. Será?
Ao buscar compreender como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter se
tornado o que é atualmente, Todorov (2012) reconhece como preponderante, no ambiente
universitário, a “tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo” (p.
40). Diz, ainda, que essa “tendência” exerce uma “influência notável sobre a orientação dos
futuros professores de literatura” e que, diferente do estruturalismo clássico, o pósestruturalismo “só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que
ela se mantém para sempre inacessível”. Para além, informa que “a tese segundo a qual a
literatura não mantém ligação significativa com o mundo e que, por conseguinte, sua
apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo”, tem uma “história longa e
complexa paralela ao advento da modernidade” e sugere que, na escola, diferentemente da
Universidade, o que se deve destinar a todos é “a literatura” (p. 40). Eu perguntaria: E o que
é a literatura?
Arte, diriam alguns. Artesania e beleza, outros. Palavras para serem apreciadas,
metáforas especialmente escolhidas para nos fazerem pensar, a literatura pode muito,
segundo Todorov (2012: 76). Dolce e utile, a literatura não nasce como arte ou
contemplação estética, apenas. A “contemplação estética”, o “juízo do gosto” e o “sentido do
belo”, como características da arte, são instituídos como “entidades autônomas” nos séculos
XVII e XVIII, de acordo com Todorov (2012: 49-50). Do reconhecimento da dimensão
estética como uma “característica humana universal” se passou a uma nova perspectiva: o
isolamento dessa característica ou aspecto secundário “instituindo-o como encarnação de
uma única atitude, a contemplação do belo” e, como consequência, a cisão entre útil e belo,
que levará à criação do próprio termo “estética” ou, “ciência da percepção”.
Todorov (2012) ao reunir ensaios em “A literatura em Perigo”, se insurge contra essa
tentativa de afirmar a Literatura à margem de ligações significativas com o mundo. Ao
mencionar apontamentos em um diário de Benjamin Constant – análise de um trabalho
sobre a estética de Kant – o pesquisador informa que ali aparece, pela primeira vez em
francês, a expressão “a arte pela arte”. Indicando a posição de Constant – que situa a
prática literária no cerne de outros discursos públicos – Todorov (2010), menciona uma
passagem, datada de 1807, que representa a posição insurgente:
A literatura refere-se a tudo. Não pode ser separada da política, da religião,
da moral. É a expressão das opiniões dos homens sobre cada uma das
coisas. Como tudo na natureza, é efeito e causa. Imaginá-la como fenômeno
isolado é não imaginá-la (CONSTANT in TODOROV, 2012:59).
Conceituada como “tudo que concerne ao exercício do pensamento na forma de
escritos, excetuando-se as ciências físicas” (STAËL in TODOROV, 2012: 60), a literatura
seria a grande expressão humana. Mais que isso, penso, evidenciaria a impossível
separação entre o doce – o prazer, o deleite, a fruição de palavras, expressões, metáforas,
sons, silêncios, menções, esquecimentos –, e o útil, representado pela reflexão,
elucubração,
diletantismo,
engenhosidade,
suposição,
hipotização.
No
literário,
indiferentemente se para adultos ou crianças.
Entre os estudiosos brasileiros de literatura há forte tendência em afirmar que a
literatura é arte que produz, ao mesmo tempo e com igual intensidade, experiência estética
e pensamento. A literatura infantil é, “antes de tudo, literatura”, diz Novaes Coelho (2010:
28). Fenômeno “visceralmente humano”, a noção de literatura que vem predominando entre
os estudiosos, de acordo com Novaes Coelho (2010), é a de identificá-la como “um
dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em
favor de intervenção sociológica, ética ou política”, estando implícita a “transformação das
noções já consagradas” de, entre outras, “tempo, espaço, personagens, ação, linguagem,
estruturas poéticas, valores éticos” (p. 28). E é enfática ao afirmar que, para “além do
prazer/emoção estéticos, a literatura contemporânea visa alertar ou transformar a
consciência crítica de seu leitor/receptor” (NOVAES COELHO, 2010:29).
Abramovich (1997: 14) por sua vez, afirma que “ler é um ato fluido, ininterrupto, de
encantamento e de necessidade vital”. Em busca de um exemplo, cita o ficcionista Erico
Verissimo, para dizer de seu entendimento a respeito da função do escritor:
... o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e
injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a
realidade de seu mundo, evitando que sobre ela caia a escuridão, propícia
aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a
despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica,
acendamos o nosso toco de vela, ou, em último caso, risquemos fósforos
repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto
(VERISSIMO em ABRAMOVICH, 1997: 100).
Para a pesquisadora do Letramento Literário, Graça Paulino (2010), a literatura
depende de valores a ela atribuídos em cada época histórica, o que significa que para
conceituá-la é necessário que esteja sendo manipulada, ou, que esteja em “mãos de leitores
de carne e osso”. Em suas palavras: “A validade artística de cada produção, seja teatro, seja
uma música, depende de quem está ‘lendo’. Não há e nunca houve uma verdadeira arte que
valesse o mesmo para todos no mundo, em todas as épocas, porque as pessoas têm
expectativas, preferências e repertórios diferentes” (PAULINO, 2010: 139). No entanto, deixa
clara sua posição: “O prazer e o crescimento humanos que uma experiência artística pode
trazer nunca seriam perda de tempo. Tempo é muito mais que dinheiro, porque a nossa vida
inteirinha se faz do tempo, a nossa realização intelectual se faz no tempo, assim como
nossos amores, nossas tristezas, nossos sonhos, nossas amizades, nossas brincadeiras”
(p. 139-140).
Ao conceituar a literatura como um caminho na direção de “mais tolerância nesse
atormentado planeta” e, também, “alguns passos para uma vida menos aborrecida”, Fischer
(2011:30), busca leitores que tomem “as palavras tidas como sagradas em sua dimensão
humana”, ou seja, “como textos que interpretam a vida e a morte e procuram aliviar nossa
imensa ignorância sobre o mundo, nossos insuperáveis temores sobre o destino individual e
coletivo, nosso eterno pânico por não controlar a natureza” (p. 30). Em um interessante texto
intitulado “Escrever para quê?” o professor tece, de maneira bastante sucinta, sua reposta à
questão, ancorado na descrição de um personagem que “conseguiu comprar um velho
caderno de notas e resolve fazer um diário”. Vigiado, ele “precisa esconder-se numa
reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade – a
liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças”. O texto produzido,
“atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas da
caneta”, não tem importância alguma para Fischer que, neste momento, declara: “era um
homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade” (FISCHER, 2011: 100).
A literatura, então, é inimaginável como fenômeno isolado (TODOROV, 2010), pois é
um fenômeno “visceralmente humano” (NOVAES COELHO, 2010), expressão antropológica,
portanto. Literatura é “encantamento” e “necessidade vital” além de indicação que “não
desertamos nosso posto” (ABRAMOVICH, 1997). É “prazer e crescimento humano”
(PAULINO, 2010) e liberdade de expressar-se (Fischer, 2011) e, por tudo isso, ler, escrever,
ouvir, imaginar é direito. De todos e de qualquer um e deve ser ofertado desde a mais tenra
idade, como condição para realização humana.
LITERATURA PARA CRIANÇAS: DA HIGIENE A BOBICES QUAISQUER
A escrita literária para as crianças tem uma história muito recente no Brasil.
Exatamente por isso, o “discurso teórico, crítico e historiográfico que sobre ela se tem
produzido no país é um fenômeno ainda mais recente” (CECANTINI in HUNT, 2010).
Diferente de outras escritas por ter “predomínio da função estética”, a literatura busca
sustentar-se e expressar-se pela ludicidade, invencionice, imaginação e estética da
linguagem. É através dessas manifestações que a literatura pode existir e evidenciar os
desejos mais profundos do ser humano, no caso infantil, um humano em formação. Doce e
útil, a literatura para crianças tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo
tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais curioso: uma porta para a
literatura adulta?
A obra literária tem como função primordial apresentar ao leitor uma visão estética da
palavra, da forma como essa palavra se organiza em um texto e da forma que podemos dar
ao texto ao editá-lo. Nela, imaginação, ancestralidade, elementos mágicos, linguagem
metafórica e ludicidade se conectam para lapidar a imaginação e a impossibilidade de existir
sem ler. Ao estabelecer uma conexão imediata com a imaginação – o mundo que existe
como desejo –, o texto literário remete a situações inusitadas e pode-se, através dele,
transgredir a ordem, as leis, as regras, as idades ou mesmo só pensar que se faz isso.
Através dele, podemos brincar de ser outro, mais novo, mais alto, com poder, sem nenhuma
beleza, com muito ouro, com quase nada. Além disso, o texto literário insere qualquer um na
ancestralidade e pertença à espécie e ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvia-se e
contava-se e, desse modo, inventava-se a linguagem...
Nascido com o intuito de ensinar5, o texto literário para crianças pode ser um
brinquedo, invencionice, bobice. Inventado por adultos através de um mecanismo incrível
ainda pouco conhecido – a imaginação – à revelia da razão e apesar da ciência, o texto
literário infantil evidencia e mesmo denuncia a infância que gostaríamos de ver nas ruas,
nas casas, nas praças, nas escolas. Pode ter personagens que ainda não existem e que,
talvez, nunca existam. O texto literário infantil pode ser repleto de situações impensáveis, e,
por isso mesmo, desejável. Pode descrever e antever tramas imponderáveis e, assim
mesmo, convencer. A literatura para crianças, desse modo, é criação pura, invencionice,
“gostosuras e bobices”, como diz Fanny Abramovich (1997) e é condição para a existência
infantil: brincalhona, espontânea, imatura, dispersa, vulnerável, perceptiva, curiosa,
adaptável.
METODOLOGIA
Bons contatos com o mundo da leitura literária necessitam de planejamento,
5
Como exemplo, os textos todos da primeira metade do século XX, produzidos pelos inventores da
literatura para crianças no Brasil, entre eles, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Erico Verissimo, Mário
Quintana. Há muito de pedagógico, formador, educador dos bons hábitos nesses pioneiros. Uma
literatura útil, portanto.
conhecimento, disponibilidade e reconhecimento de que a escola é um bem público ao qual
todas as crianças têm acesso garantido por lei. Nela, no entanto, nem todas aprendem a
gostar de ler, o que é, de algum modo, uma sonegação de direitos. Tendo como pano de
fundo que a tarefa primordial da escola é inserir crianças no mundo da leitura e que esta
inserção deve ter efeito duradouro, a proposição, desenvolvida em 2013 com um grupo de
professoras6 no sul do Rio Grande do Sul, foi estabelecer um vínculo imediato entre
autor/mediador; incentivar o mediador a ler em voz alta para seus alunos; gerar efeito
duradouro da literatura com a presença do autor na escola e; produzir um resultado
integrado, representado pela produção de um e-book com o trabalho integrado de escritor,
professor e crianças.
Inspirada nos princípios da pesquisa qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 1986) – os
procedimentos desenvolvidos em um período de seis meses foram: a) contato com os
mediadores via correio eletrônico, convidando-os ao projeto; b) envio de três narrativas
infantis para que o professor escolhesse, a partir de seus critérios, o mais adequado para
suas crianças; c) leitura da narrativa escolhida pelo mediador às crianças; a ilustração da
narrativa pelas crianças; d) visita do autor na escola; e) edição de texto e inserção das
imagens pelo autor, produzindo um livro em mídia digital; f) impressão de um banner com o
novo formato para retorno do conto ilustrado à escola.
Tendo como produto livros em mídia digital (e-books), contou com o trabalho de
professoras leitoras – as mediadoras – com as ilustrações de crianças de três a doze anos e
com o trabalho do escritor que deu novo tratamento ao texto e as imagens, mesclando-os.
Os resultados indicam que a proposição atingiu seus propósitos – gerar efeito duradouro da
literatura integrando escritor/professor/crianças – e pode ser generalizada.
RESULTADOS
Entre os vários contos enviados às professoras, escolhi dois7 para representar o
projeto desenvolvido em 2013: Frederico, o Príncipe e Irmãzinha de Estimação. O primeiro8,
trata do silêncio imposto ao rei pelo processo de formação da índole de seu filho, um
príncipe cheio de argumentos, vontade de diálogo, energia para a luta, embora ainda
criança. O pai, um rei “repleto de sabedoria” que “gostava de bibliotecas, cinema, viagens e
6
A condição para integrar a experiência foi atuar em escolas públicas (com crianças entre zero e
onze anos) e ter uma das seguintes formações: Projeto de Extensão em Leitura Literária Alfabeta;
Disciplina Optativa Literatura Infantil (Pedagogia/FaE/UFPel); Especialização em Alfabetização e
Letramento (FaE/UFPel).
7
Ambos passaram pelo processo de leitura, ilustração e produção de novo formato e hoje estão
disponíveis em endereços eletrônicos e em formato banner nas salas de aula.
8
Disponível em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2014/02/frederico-o-principe.html
música” e que “tinha lido muito na vida, ponderado muito, errado algumas vezes, acertado
outras tantas” decidiu “por adulto, por sábio, por saber do fim dos homens”, que o mundo
precisava de um príncipe: “um novo homem, um homem melhor e mais sábio, herdeiro de
tudo que já se sabe, inventor de coisas novas, planejador de estripulias”. Em um “reino
repleto de ideias esvoaçantes, de coerências tumultuantes, de certezas indignadas e de
ponderações itinerantes”, Frederico, o príncipe, nasceu. Em um “castelo encantador, com
escadas emolientes, cômodos vasculháveis, abraços estonteantes e banhos de piscina”, diz
a narrativa, Frederico crescia, amadurecia e virava rei. Ao explorar o encantamento que os
adultos indicam ter quando planejam o nascimento de um filho, as expectativas e as
apostas, a narrativa denuncia que as coisas nem sempre saem como se planeja. Ao ilustrar
a narrativa, as crianças selecionaram cenas marcantes, como a piscina (Figura 1), o rei, o
príncipe e o castelo (figura 2) e o príncipe em diálogo com a irmã (Figura 3), o que pode ser
visualizado em páginas do e-book reproduzidas a seguir:
Frederico, o
príncipe, crescia
em um castelo
encantador, com
escadas emolientes,
cômodos
vasculháveis,
abraços
estonteantes e
banhos de piscina.
Frederico, o príncipe,
virava rei não só por herança.
Gostava do
mando, até de
algum embate,
quem sabe um
enfrentamento,
por que não uma
celeuma?
Pendengas,
rusgas, rosnados,
nada lhe
desagradava.
Olhares
atentos, objetivos,
desafiadores, seu
método.
Palavras.
Elas nos faltam, às vezes.
A segunda narrativa escolhida para ilustrar o trabalho desenvolvido foi Irmãzinha de
Estimação9. Tema bastante corriqueiro na vida de crianças – ter ou não um animal de
estimação – no conto é evidenciada a postura adulta que descarta a lógica infantil através
de argumentos racionais – bicho é muito nojento, traz doenças, toma o lugar das pessoas, é
barulhento, cheira mal e não sabe o seu lugar. A vontade imensa de ter um animalzinho,
espelhado nos relatos dos colegas, leva o personagem infantil da trama ao extremo de
escolher irmã caçula como “de estimação”. Ao levá-la à escola, os amigos passam a
experimentar relações de mando com a “de estimação”, empregando com ela o que
conhecem com seus animais: mandam sorrir, dar oi, sentar, caminhar, rolar, buscar a bola. O
fechamento da narrativa insere a perplexidade dos adultos – pai, mãe, tia, avó e até alguns
vizinhos – que diante do ocorrido, se tornam mais sensíveis à vontade da criança. Nas
ilustrações, as crianças foram explícitas, vigorosas (uso da cor e de expressões faciais) e
indicaram profunda conexão com narrativa, como pode ser observado em três das cenas do
e-book reproduzidas a seguir.
9
Disponível em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2014/02/irmazinha-de-estimacao.html
Ele não tinha
nenhum bichinho
em casa.
A mãe dizia que bicho é muito nojento.
O pai insistia que bicho traz doenças.
A avó falava que bicho toma o lugar das pessoas.
Os colegas acharam muito engraçada a
“de estimação”,
e resolveram experimentar:
Importante ressaltar que a participação das crianças – ilustradoras das narrativas
escolhidas como representativas do projeto desenvolvido em 2013 – ocorreu de acordo com
o trabalho desenvolvido pelas professoras. A primeira narrativa, Frederico, o Príncipe, teve
como ilustradores, crianças entre cinco e seis anos de uma EMEI do município do Capão do
Leão. A segunda, Irmãzinha de Estimação, foi ilustrada por crianças entre oito e onze anos
que frequentaram uma segunda série de uma EEEF em Pelotas.
CONCLUSÕES
Ouvir histórias lidas, desde há muito tempo é um hábito que envolve prazer,
instrução e informação. Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática
necessária na Idade Média, pois, segundo Manguel (1999), até a invenção da imprensa, a
alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um pequeno punhado
de leitores.
Diferenciada das demais linguagens por ser intrinsecamente interdisciplinar, a leitura
literária é comprometida com a capacidade ancestral de imaginar e confunde,
intencionalmente, o belo com o útil, o lúdico com o razoável, devendo ser apresentada às
crianças logo que elas dão início ao contato com o mundo. Para Machado (2012), ela se
expressa, inicialmente, nas cantigas de pai e mãe para seu bebê ao colo e, depois, à
medida que este vai crescendo, “novas formas de criação verbal lhe vão sendo oferecidas
pelos mais velhos – jogos, brincadeiras, parlendas, adivinhas, trovas. E histórias, muitas
histórias” (MACHADO, 2012:11) que ficam guardadas na memória integrando seu legado
cultural, sua herança, seu repertório particular.
A literatura na escola, para que ocorra, pressupõe um processo de letramento
literário que não é espontâneo. Como resultado de uma intencionalidade, deve ter
planejamento. Neste cabem algumas etapas, sem as quais o processo poderá não ter êxito.
O objetivo do letramento literário é tornar as crianças leitoras fluentes e, o processo de
formação desse leitor ocorre, de acordo com Machado (2008), quando a criança entra em
contato com narrativas, provérbios, ditos populares, adivinhas, parlendas, textos ficcionais e
poéticos através das vozes do universo familiar e, logo depois, de forma organizada e
frequente, passa a conhecer os impressos – preponderantemente livros – que apresentam,
em verso e em prosa, o repertório de nossa cultura escrita.
Quando as crianças ingressam nos anos finais do Ensino Fundamental, se estiverem
inseridas no processo de letramento desde a escola infantil, poderão interagir sem
mediadores com a cultura literária que as envolve. Desse modo, passam a escolher o que
ler, quando, com que frequência e até mesmo indicar livros que gostam. Mesmo nesse
momento, segundo Machado (2008), “o trabalho dos professores, continua a ser
imprescindível no sentido de ampliar, a cada etapa da escolaridade, as experiências
literárias de seus alunos”.
Na experiência desenvolvida, a proposição de estabelecer um vínculo imediato entre
autor/mediador através do envio de narrativas às professoras e seus alunos, foi alcançado.
Como primeiro passo, as professoras puderam ler as narrativas na tela do computador,
escolher entre várias a mais adequadas aos seus, incentivá-los a ilustrar com materiais
gráficos variados. Ao ver o resultado, professoras e crianças puderam usufruir de um
produto partilhado em que cada ator estava representado em igual tamanho e importância,
dividindo a criação e projetando novas experiências. As crianças, na escola, puderam ver
seus desenhos em outras dimensões, partilhar sua produção com os demais e ler
novamente o conto, agora ilustrado.
Doce, a “literatura infantil contemporânea deve deleitar os pequenos leitores,
cumprindo seu destino estético”, mas, “ao mesmo tempo, deve ser útil, atendendo as
demandas históricas” sugere Paulino (2010: 115).
REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, F. Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
ANTUNES, C. Mediadores de Leitura. Entrevistas. São Paulo: TV Cultura, 05/08/2013.
FISCHER. L. A. Filosofia Mínima. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2011.
HUNT, P. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LÜDKE, M. & ANDRÉ, M. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo:
EPU, 1986.
MACHADO, A. M. Uma rede de casas encantadas. São Paulo: Moderna, 2012.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NOVAES COELHO, N. Literatura Infantil: Teoria, Análise e Didática. São Paulo: Moderna,
2000.
PAULINO, G. Das leituras ao letramento literário. 1979-1999. Belo Horizonte – Pelotas:
Editora FaE/UFMG - EDUFPel, 2010.
ROSA, C. M. Infância sem literatura: não em casa, na escola menos... In: ROSA, C. M.
(org.). Escritas, Leitores e História da Leitura. Pelotas: Editora da UFPel, 2012.
ROSA, C. M. Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas. Licenciatura
em Pedagogia. Literatura Infantil. Pesquisa de Campo. Pelotas: UFPel, 2014.
ROSA, C. M. Entrevistas com Alfabetizadoras. Licenciatura em Pedagogia. TPP IV.
Pesquisa de Campo. Pelotas: UFPel, 2014a.
ROSA, C. M. Literatura no Rio Grande do Sul: autores, gêneros, eventos. X Jogo do Livro.
Belo Horizonte: CEALE/UFMG, 2013.
TODOROV, T. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2012.
Download

cristina maria