INVENCIONICES: UM CONTO, UM MEDIADOR, SEU PÚBLICO Cristina Maria Rosa (UFPel) INTRODUÇÃO A leitura literária ofertada às crianças tem sido eventual, aleatória, não planejada e nem registrada em diários de classe, indicando um tratamento de menoridade intelectual à literatura por parte dos mediadores, especialmente alfabetizadores. A partir de pesquisas realizadas1, afirmo que a origem desta “menoridade intelectual” está localizada no desconhecimento do poder da literatura, bem como de seus sujeitos – os gêneros e as obras literárias –, na falta de repertório e acervo adequados e no demasiado valor atribuído aos demais conteúdos, preponderantemente o ensino da estrutura da escrita da língua materna2, o que me permite lamentar que, da escola saiam escreventes. Leitores, raramente. No artigo apresento uma reflexão acerca da premência de bons contatos com o mundo da leitura literária desde tenra idade e utilizo como argumento resultados obtidos em uma experiência bem sucedida de interação entre autor, mediador e público ouvinte. DISCUSSÃO O “desaparecimento” da leitura literária na escola tendo o mediador como referência – um professor exemplar, leitor, apreciador de obras e autores, preparado para apresentar às crianças a leitura através de obras criteriosamente escolhidas –, reflete o tratamento amador que a leitura recebe: é comum que o professor abra mão de seu protagonismo como leitor em nome de uma leitura dos iguais, ou seja, logo que as crianças aprendem a balbuciar sílabas, substituem os professores na tarefa de ler para os colegas. Além disso, a leitura é utilizada para acalmar crianças ou como prêmio por bom comportamento; a 1 Refere-se à pesquisa intitulada: “Literatura Infantil Clássica na Escola: Autores, Obras, Práticas” (ROSA, 2014). Tendo como informantes professoras alfabetizadoras descritas quanto à formação, idade, tempo de magistério e local onde atua, foi desenvolvida em 2013 e teve como curiosidades as seguintes questões: A professora lê para as crianças? Qual a frequência? O que lê para suas crianças? Registra o que lê? Onde? Há eventos de leitura na escola? Quais? Onde ocorrem? Quais os autores que admira? Como escolhe o que vai ler para as crianças? O que indica da Biblioteca da escola para ser lido em sala de aula? Especialmente no que tange aos clássicos infantis, a pesquisa buscou saber se a professora conhecia, quais contos e autores apreciava, se possuía acervo, se lia e com que frequência, quais as obras que lidas em 2013 e se estas eram originais ou recontos. 2 A aprendizagem da língua materna, nos anos iniciais de escolaridade, tem como atributo principal, a inserção das crianças no mundo da escrita socialmente valorizada. No entanto, de acordo com pesquisa realizada (ROSA, 2014a), ainda é vista como “ensino” e a maioria dos professores opta por ignorar que o processo de aprendizagem é anterior ao ingresso da criança na escola. Iniciam a alfabetização pela apresentação de parcelas ínfimas da língua como a letra, a sílaba e/ou a sonoridade, com um muito restrito universo vocabular, além de procedimentos de ensino que denotam falta de método e metodologia. qualquer momento é suspensa, como castigo; a escolha do que ler é aleatória, sem critérios pré-definidos; a biblioteca da escola não é conhecida nem utilizada pelo professor; os clássicos, pouco conhecidos e, quando lidos, substituídos por recontos; os modernos ficam restritos a autores estrangeiros famosos ou a um ou dois brasileiros em igual condição; na escolha do que ler, os textos curtos são os mais acionados; há predomínio da imagem sobre o texto entre os prediletos dos professores e, na maior parte das escolas pesquisadas; não há eventos contínuos e permanentes de leitura literária. Entre os professores, poucos investem em repertório e acervo pessoal no que tange à literatura. Tendo como princípios que ler é atribuir significado ao lido, que a leitura literária é condição para a formação do leitor e o gosto pela leitura não é um atributo genético, precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos (Antunes, 2013), uma de minhas ocupações tem sido produzir impacto entre os mediadores. Formadora de professores que atuam na faixa etária conhecida como infância – de zero a onze anos ou do maternal ao quinto ano – tenho buscado propor e acompanhar resultados de proposições de leitura literária na escola. Busco, com isso, ofertar aos professores ferramentas de conhecimento3 e atitudes mediadoras (como ler). O intuito é a atuação na sala de aula através do contato com bons livros e metodologias adequadas. LITERATURA INFANTIL Frágil pela sua temporalidade, a infância tem difícil definição, segundo Hunt (2010) e a literatura para ela também. Em suas conclusões acerca do que é a criança 4, ele escreve: “A definição de infância muda, mesmo no âmbito de uma cultura pequena, aparentemente homogênea, tal como muda o entendimento das infâncias no passado” (p. 94). O autor afirma, ainda: “Em suma, a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um conceito estável. Por conseguinte, não se pode esperar que a literatura definida por ela seja estável” (p. 94). A literatura infantil ou literatura escrita e destinada à infância tem como característica 3 Estudos sobre o que é a literatura para crianças, seus autores e obras, critérios para escolha do que ler, frequência de leitura adequada para a formação de leitores, o que são e como se organizam eventos literários na sala de aula, na escola e na sociedade, organização e uso da Biblioteca escolar, diferença entre repertório e acervo além de acesso à crítica literária, representada por estudiosos como Hunt (2010), Machado (2011), Paulino (2010) e Todorov (2012), entre outros. 4 Entre as características transculturais e diacrônicas que definem a infância, segundo Hunt (2010), está “a brincadeira espontânea, a receptividade à cultura vigente, os constrangimentos fisiológicos e a imaturidade sexual. Crianças tendem a formar laços emocionais com figuras maduras, a ter dificuldades quanto ao abstrato, a ter menor grau de concentração que os adultos e a estar vulneráveis a percepções imediatas. Por isso, se adaptam mais facilmente que a pessoa adulta e há consideráveis indícios que as habilidades cognitivas das crianças se desenvolvem numa lógica comum, embora haja muita discussão sobre até que ponto esses ‘estágios’ podem ser identificados” (HUNT, 2010:91). maior o seu imaginado, desejado, suposto público: a criança. Assim, e “por inquietante que seja, pode ser definida como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças” (HUNT, 2010:96). Esse modo de pensar possibilita agregar a ideia de que livros infantis seriam apenas os “essencialmente contemporâneos” (p. 96) uma vez que os “conceitos de infância mudam tão depressa” que um livro “envelheceria” junto com a geração para a qual foi criado. Será? Ao buscar compreender como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter se tornado o que é atualmente, Todorov (2012) reconhece como preponderante, no ambiente universitário, a “tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo” (p. 40). Diz, ainda, que essa “tendência” exerce uma “influência notável sobre a orientação dos futuros professores de literatura” e que, diferente do estruturalismo clássico, o pósestruturalismo “só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que ela se mantém para sempre inacessível”. Para além, informa que “a tese segundo a qual a literatura não mantém ligação significativa com o mundo e que, por conseguinte, sua apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo”, tem uma “história longa e complexa paralela ao advento da modernidade” e sugere que, na escola, diferentemente da Universidade, o que se deve destinar a todos é “a literatura” (p. 40). Eu perguntaria: E o que é a literatura? Arte, diriam alguns. Artesania e beleza, outros. Palavras para serem apreciadas, metáforas especialmente escolhidas para nos fazerem pensar, a literatura pode muito, segundo Todorov (2012: 76). Dolce e utile, a literatura não nasce como arte ou contemplação estética, apenas. A “contemplação estética”, o “juízo do gosto” e o “sentido do belo”, como características da arte, são instituídos como “entidades autônomas” nos séculos XVII e XVIII, de acordo com Todorov (2012: 49-50). Do reconhecimento da dimensão estética como uma “característica humana universal” se passou a uma nova perspectiva: o isolamento dessa característica ou aspecto secundário “instituindo-o como encarnação de uma única atitude, a contemplação do belo” e, como consequência, a cisão entre útil e belo, que levará à criação do próprio termo “estética” ou, “ciência da percepção”. Todorov (2012) ao reunir ensaios em “A literatura em Perigo”, se insurge contra essa tentativa de afirmar a Literatura à margem de ligações significativas com o mundo. Ao mencionar apontamentos em um diário de Benjamin Constant – análise de um trabalho sobre a estética de Kant – o pesquisador informa que ali aparece, pela primeira vez em francês, a expressão “a arte pela arte”. Indicando a posição de Constant – que situa a prática literária no cerne de outros discursos públicos – Todorov (2010), menciona uma passagem, datada de 1807, que representa a posição insurgente: A literatura refere-se a tudo. Não pode ser separada da política, da religião, da moral. É a expressão das opiniões dos homens sobre cada uma das coisas. Como tudo na natureza, é efeito e causa. Imaginá-la como fenômeno isolado é não imaginá-la (CONSTANT in TODOROV, 2012:59). Conceituada como “tudo que concerne ao exercício do pensamento na forma de escritos, excetuando-se as ciências físicas” (STAËL in TODOROV, 2012: 60), a literatura seria a grande expressão humana. Mais que isso, penso, evidenciaria a impossível separação entre o doce – o prazer, o deleite, a fruição de palavras, expressões, metáforas, sons, silêncios, menções, esquecimentos –, e o útil, representado pela reflexão, elucubração, diletantismo, engenhosidade, suposição, hipotização. No literário, indiferentemente se para adultos ou crianças. Entre os estudiosos brasileiros de literatura há forte tendência em afirmar que a literatura é arte que produz, ao mesmo tempo e com igual intensidade, experiência estética e pensamento. A literatura infantil é, “antes de tudo, literatura”, diz Novaes Coelho (2010: 28). Fenômeno “visceralmente humano”, a noção de literatura que vem predominando entre os estudiosos, de acordo com Novaes Coelho (2010), é a de identificá-la como “um dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em favor de intervenção sociológica, ética ou política”, estando implícita a “transformação das noções já consagradas” de, entre outras, “tempo, espaço, personagens, ação, linguagem, estruturas poéticas, valores éticos” (p. 28). E é enfática ao afirmar que, para “além do prazer/emoção estéticos, a literatura contemporânea visa alertar ou transformar a consciência crítica de seu leitor/receptor” (NOVAES COELHO, 2010:29). Abramovich (1997: 14) por sua vez, afirma que “ler é um ato fluido, ininterrupto, de encantamento e de necessidade vital”. Em busca de um exemplo, cita o ficcionista Erico Verissimo, para dizer de seu entendimento a respeito da função do escritor: ... o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ela caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela, ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto (VERISSIMO em ABRAMOVICH, 1997: 100). Para a pesquisadora do Letramento Literário, Graça Paulino (2010), a literatura depende de valores a ela atribuídos em cada época histórica, o que significa que para conceituá-la é necessário que esteja sendo manipulada, ou, que esteja em “mãos de leitores de carne e osso”. Em suas palavras: “A validade artística de cada produção, seja teatro, seja uma música, depende de quem está ‘lendo’. Não há e nunca houve uma verdadeira arte que valesse o mesmo para todos no mundo, em todas as épocas, porque as pessoas têm expectativas, preferências e repertórios diferentes” (PAULINO, 2010: 139). No entanto, deixa clara sua posição: “O prazer e o crescimento humanos que uma experiência artística pode trazer nunca seriam perda de tempo. Tempo é muito mais que dinheiro, porque a nossa vida inteirinha se faz do tempo, a nossa realização intelectual se faz no tempo, assim como nossos amores, nossas tristezas, nossos sonhos, nossas amizades, nossas brincadeiras” (p. 139-140). Ao conceituar a literatura como um caminho na direção de “mais tolerância nesse atormentado planeta” e, também, “alguns passos para uma vida menos aborrecida”, Fischer (2011:30), busca leitores que tomem “as palavras tidas como sagradas em sua dimensão humana”, ou seja, “como textos que interpretam a vida e a morte e procuram aliviar nossa imensa ignorância sobre o mundo, nossos insuperáveis temores sobre o destino individual e coletivo, nosso eterno pânico por não controlar a natureza” (p. 30). Em um interessante texto intitulado “Escrever para quê?” o professor tece, de maneira bastante sucinta, sua reposta à questão, ancorado na descrição de um personagem que “conseguiu comprar um velho caderno de notas e resolve fazer um diário”. Vigiado, ele “precisa esconder-se numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade – a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças”. O texto produzido, “atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas da caneta”, não tem importância alguma para Fischer que, neste momento, declara: “era um homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade” (FISCHER, 2011: 100). A literatura, então, é inimaginável como fenômeno isolado (TODOROV, 2010), pois é um fenômeno “visceralmente humano” (NOVAES COELHO, 2010), expressão antropológica, portanto. Literatura é “encantamento” e “necessidade vital” além de indicação que “não desertamos nosso posto” (ABRAMOVICH, 1997). É “prazer e crescimento humano” (PAULINO, 2010) e liberdade de expressar-se (Fischer, 2011) e, por tudo isso, ler, escrever, ouvir, imaginar é direito. De todos e de qualquer um e deve ser ofertado desde a mais tenra idade, como condição para realização humana. LITERATURA PARA CRIANÇAS: DA HIGIENE A BOBICES QUAISQUER A escrita literária para as crianças tem uma história muito recente no Brasil. Exatamente por isso, o “discurso teórico, crítico e historiográfico que sobre ela se tem produzido no país é um fenômeno ainda mais recente” (CECANTINI in HUNT, 2010). Diferente de outras escritas por ter “predomínio da função estética”, a literatura busca sustentar-se e expressar-se pela ludicidade, invencionice, imaginação e estética da linguagem. É através dessas manifestações que a literatura pode existir e evidenciar os desejos mais profundos do ser humano, no caso infantil, um humano em formação. Doce e útil, a literatura para crianças tem o compromisso de encantar o leitor e, ao mesmo tempo, torná-lo mais culto, mais perspicaz, mais inteligente, mais curioso: uma porta para a literatura adulta? A obra literária tem como função primordial apresentar ao leitor uma visão estética da palavra, da forma como essa palavra se organiza em um texto e da forma que podemos dar ao texto ao editá-lo. Nela, imaginação, ancestralidade, elementos mágicos, linguagem metafórica e ludicidade se conectam para lapidar a imaginação e a impossibilidade de existir sem ler. Ao estabelecer uma conexão imediata com a imaginação – o mundo que existe como desejo –, o texto literário remete a situações inusitadas e pode-se, através dele, transgredir a ordem, as leis, as regras, as idades ou mesmo só pensar que se faz isso. Através dele, podemos brincar de ser outro, mais novo, mais alto, com poder, sem nenhuma beleza, com muito ouro, com quase nada. Além disso, o texto literário insere qualquer um na ancestralidade e pertença à espécie e ensina que, um dia, em torno do fogo, ouvia-se e contava-se e, desse modo, inventava-se a linguagem... Nascido com o intuito de ensinar5, o texto literário para crianças pode ser um brinquedo, invencionice, bobice. Inventado por adultos através de um mecanismo incrível ainda pouco conhecido – a imaginação – à revelia da razão e apesar da ciência, o texto literário infantil evidencia e mesmo denuncia a infância que gostaríamos de ver nas ruas, nas casas, nas praças, nas escolas. Pode ter personagens que ainda não existem e que, talvez, nunca existam. O texto literário infantil pode ser repleto de situações impensáveis, e, por isso mesmo, desejável. Pode descrever e antever tramas imponderáveis e, assim mesmo, convencer. A literatura para crianças, desse modo, é criação pura, invencionice, “gostosuras e bobices”, como diz Fanny Abramovich (1997) e é condição para a existência infantil: brincalhona, espontânea, imatura, dispersa, vulnerável, perceptiva, curiosa, adaptável. METODOLOGIA Bons contatos com o mundo da leitura literária necessitam de planejamento, 5 Como exemplo, os textos todos da primeira metade do século XX, produzidos pelos inventores da literatura para crianças no Brasil, entre eles, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Erico Verissimo, Mário Quintana. Há muito de pedagógico, formador, educador dos bons hábitos nesses pioneiros. Uma literatura útil, portanto. conhecimento, disponibilidade e reconhecimento de que a escola é um bem público ao qual todas as crianças têm acesso garantido por lei. Nela, no entanto, nem todas aprendem a gostar de ler, o que é, de algum modo, uma sonegação de direitos. Tendo como pano de fundo que a tarefa primordial da escola é inserir crianças no mundo da leitura e que esta inserção deve ter efeito duradouro, a proposição, desenvolvida em 2013 com um grupo de professoras6 no sul do Rio Grande do Sul, foi estabelecer um vínculo imediato entre autor/mediador; incentivar o mediador a ler em voz alta para seus alunos; gerar efeito duradouro da literatura com a presença do autor na escola e; produzir um resultado integrado, representado pela produção de um e-book com o trabalho integrado de escritor, professor e crianças. Inspirada nos princípios da pesquisa qualitativa (LÜDKE e ANDRÉ, 1986) – os procedimentos desenvolvidos em um período de seis meses foram: a) contato com os mediadores via correio eletrônico, convidando-os ao projeto; b) envio de três narrativas infantis para que o professor escolhesse, a partir de seus critérios, o mais adequado para suas crianças; c) leitura da narrativa escolhida pelo mediador às crianças; a ilustração da narrativa pelas crianças; d) visita do autor na escola; e) edição de texto e inserção das imagens pelo autor, produzindo um livro em mídia digital; f) impressão de um banner com o novo formato para retorno do conto ilustrado à escola. Tendo como produto livros em mídia digital (e-books), contou com o trabalho de professoras leitoras – as mediadoras – com as ilustrações de crianças de três a doze anos e com o trabalho do escritor que deu novo tratamento ao texto e as imagens, mesclando-os. Os resultados indicam que a proposição atingiu seus propósitos – gerar efeito duradouro da literatura integrando escritor/professor/crianças – e pode ser generalizada. RESULTADOS Entre os vários contos enviados às professoras, escolhi dois7 para representar o projeto desenvolvido em 2013: Frederico, o Príncipe e Irmãzinha de Estimação. O primeiro8, trata do silêncio imposto ao rei pelo processo de formação da índole de seu filho, um príncipe cheio de argumentos, vontade de diálogo, energia para a luta, embora ainda criança. O pai, um rei “repleto de sabedoria” que “gostava de bibliotecas, cinema, viagens e 6 A condição para integrar a experiência foi atuar em escolas públicas (com crianças entre zero e onze anos) e ter uma das seguintes formações: Projeto de Extensão em Leitura Literária Alfabeta; Disciplina Optativa Literatura Infantil (Pedagogia/FaE/UFPel); Especialização em Alfabetização e Letramento (FaE/UFPel). 7 Ambos passaram pelo processo de leitura, ilustração e produção de novo formato e hoje estão disponíveis em endereços eletrônicos e em formato banner nas salas de aula. 8 Disponível em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2014/02/frederico-o-principe.html música” e que “tinha lido muito na vida, ponderado muito, errado algumas vezes, acertado outras tantas” decidiu “por adulto, por sábio, por saber do fim dos homens”, que o mundo precisava de um príncipe: “um novo homem, um homem melhor e mais sábio, herdeiro de tudo que já se sabe, inventor de coisas novas, planejador de estripulias”. Em um “reino repleto de ideias esvoaçantes, de coerências tumultuantes, de certezas indignadas e de ponderações itinerantes”, Frederico, o príncipe, nasceu. Em um “castelo encantador, com escadas emolientes, cômodos vasculháveis, abraços estonteantes e banhos de piscina”, diz a narrativa, Frederico crescia, amadurecia e virava rei. Ao explorar o encantamento que os adultos indicam ter quando planejam o nascimento de um filho, as expectativas e as apostas, a narrativa denuncia que as coisas nem sempre saem como se planeja. Ao ilustrar a narrativa, as crianças selecionaram cenas marcantes, como a piscina (Figura 1), o rei, o príncipe e o castelo (figura 2) e o príncipe em diálogo com a irmã (Figura 3), o que pode ser visualizado em páginas do e-book reproduzidas a seguir: Frederico, o príncipe, crescia em um castelo encantador, com escadas emolientes, cômodos vasculháveis, abraços estonteantes e banhos de piscina. Frederico, o príncipe, virava rei não só por herança. Gostava do mando, até de algum embate, quem sabe um enfrentamento, por que não uma celeuma? Pendengas, rusgas, rosnados, nada lhe desagradava. Olhares atentos, objetivos, desafiadores, seu método. Palavras. Elas nos faltam, às vezes. A segunda narrativa escolhida para ilustrar o trabalho desenvolvido foi Irmãzinha de Estimação9. Tema bastante corriqueiro na vida de crianças – ter ou não um animal de estimação – no conto é evidenciada a postura adulta que descarta a lógica infantil através de argumentos racionais – bicho é muito nojento, traz doenças, toma o lugar das pessoas, é barulhento, cheira mal e não sabe o seu lugar. A vontade imensa de ter um animalzinho, espelhado nos relatos dos colegas, leva o personagem infantil da trama ao extremo de escolher irmã caçula como “de estimação”. Ao levá-la à escola, os amigos passam a experimentar relações de mando com a “de estimação”, empregando com ela o que conhecem com seus animais: mandam sorrir, dar oi, sentar, caminhar, rolar, buscar a bola. O fechamento da narrativa insere a perplexidade dos adultos – pai, mãe, tia, avó e até alguns vizinhos – que diante do ocorrido, se tornam mais sensíveis à vontade da criança. Nas ilustrações, as crianças foram explícitas, vigorosas (uso da cor e de expressões faciais) e indicaram profunda conexão com narrativa, como pode ser observado em três das cenas do e-book reproduzidas a seguir. 9 Disponível em: http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2014/02/irmazinha-de-estimacao.html Ele não tinha nenhum bichinho em casa. A mãe dizia que bicho é muito nojento. O pai insistia que bicho traz doenças. A avó falava que bicho toma o lugar das pessoas. Os colegas acharam muito engraçada a “de estimação”, e resolveram experimentar: Importante ressaltar que a participação das crianças – ilustradoras das narrativas escolhidas como representativas do projeto desenvolvido em 2013 – ocorreu de acordo com o trabalho desenvolvido pelas professoras. A primeira narrativa, Frederico, o Príncipe, teve como ilustradores, crianças entre cinco e seis anos de uma EMEI do município do Capão do Leão. A segunda, Irmãzinha de Estimação, foi ilustrada por crianças entre oito e onze anos que frequentaram uma segunda série de uma EEEF em Pelotas. CONCLUSÕES Ouvir histórias lidas, desde há muito tempo é um hábito que envolve prazer, instrução e informação. Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária na Idade Média, pois, segundo Manguel (1999), até a invenção da imprensa, a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um pequeno punhado de leitores. Diferenciada das demais linguagens por ser intrinsecamente interdisciplinar, a leitura literária é comprometida com a capacidade ancestral de imaginar e confunde, intencionalmente, o belo com o útil, o lúdico com o razoável, devendo ser apresentada às crianças logo que elas dão início ao contato com o mundo. Para Machado (2012), ela se expressa, inicialmente, nas cantigas de pai e mãe para seu bebê ao colo e, depois, à medida que este vai crescendo, “novas formas de criação verbal lhe vão sendo oferecidas pelos mais velhos – jogos, brincadeiras, parlendas, adivinhas, trovas. E histórias, muitas histórias” (MACHADO, 2012:11) que ficam guardadas na memória integrando seu legado cultural, sua herança, seu repertório particular. A literatura na escola, para que ocorra, pressupõe um processo de letramento literário que não é espontâneo. Como resultado de uma intencionalidade, deve ter planejamento. Neste cabem algumas etapas, sem as quais o processo poderá não ter êxito. O objetivo do letramento literário é tornar as crianças leitoras fluentes e, o processo de formação desse leitor ocorre, de acordo com Machado (2008), quando a criança entra em contato com narrativas, provérbios, ditos populares, adivinhas, parlendas, textos ficcionais e poéticos através das vozes do universo familiar e, logo depois, de forma organizada e frequente, passa a conhecer os impressos – preponderantemente livros – que apresentam, em verso e em prosa, o repertório de nossa cultura escrita. Quando as crianças ingressam nos anos finais do Ensino Fundamental, se estiverem inseridas no processo de letramento desde a escola infantil, poderão interagir sem mediadores com a cultura literária que as envolve. Desse modo, passam a escolher o que ler, quando, com que frequência e até mesmo indicar livros que gostam. Mesmo nesse momento, segundo Machado (2008), “o trabalho dos professores, continua a ser imprescindível no sentido de ampliar, a cada etapa da escolaridade, as experiências literárias de seus alunos”. Na experiência desenvolvida, a proposição de estabelecer um vínculo imediato entre autor/mediador através do envio de narrativas às professoras e seus alunos, foi alcançado. Como primeiro passo, as professoras puderam ler as narrativas na tela do computador, escolher entre várias a mais adequadas aos seus, incentivá-los a ilustrar com materiais gráficos variados. Ao ver o resultado, professoras e crianças puderam usufruir de um produto partilhado em que cada ator estava representado em igual tamanho e importância, dividindo a criação e projetando novas experiências. As crianças, na escola, puderam ver seus desenhos em outras dimensões, partilhar sua produção com os demais e ler novamente o conto, agora ilustrado. Doce, a “literatura infantil contemporânea deve deleitar os pequenos leitores, cumprindo seu destino estético”, mas, “ao mesmo tempo, deve ser útil, atendendo as demandas históricas” sugere Paulino (2010: 115). REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, F. Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione, 1997. ANTUNES, C. Mediadores de Leitura. Entrevistas. São Paulo: TV Cultura, 05/08/2013. FISCHER. L. A. Filosofia Mínima. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2011. HUNT, P. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LÜDKE, M. & ANDRÉ, M. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MACHADO, A. M. Uma rede de casas encantadas. São Paulo: Moderna, 2012. MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NOVAES COELHO, N. Literatura Infantil: Teoria, Análise e Didática. São Paulo: Moderna, 2000. PAULINO, G. Das leituras ao letramento literário. 1979-1999. Belo Horizonte – Pelotas: Editora FaE/UFMG - EDUFPel, 2010. 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