A Mina do Morro das Almas A Mina do Morro das Almas ________ King Rosso, o rei vermelho (conto verossímil de uma luta) 2008 Adriles Ulhoa Filho Adriles Ulhoa Filho 1 A Mina do Morro das Almas Para Sérgio Ulhoa Dani Paulo Maurício Serrano Neves Alessandro Silveira Cylene Gama Márcio José dos Santos Uldicéia Oliveira Rui Nogueira Sandro Neiva baluartes de uma Inconfidência Paracatuense. Para outros “preás” e ”pardais” que aos milhares se juntam nesta luta. 2 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas 1 A mina Foi o primeiro a perceber que não era normal a irritante poeira que cobria todos os dias as folhas das plantas, o telhado, o piso e a mureta do alpendre de sua casa. Era poeira pesada, encardida, bem diferente da fria poeira de piçarra da ladeira do Lajedo onde brincava na infância. Chegou a cheirar para certeza de que não se tratava de algum Não! produto Não era inadvertidamente nenhum derramado. produto doméstico derramado, e nem a poeira das suas peraltices na infância - leve e cheirosa quando caíam as primeiras chuvas - que, de propósito, levantava ao arrastar os pés, para desespero das lavadeiras que retornavam do Córrego Rico com trouxas de roupas lavadas. Aquela servia até para estancar, sem risco à saúde, o sangue dos arranhões, nos jogos de bola no largo sem grama. A que o atormentava agora era mal cheirosa, amarelada e pegajosa, encardia roupas e secava as folhas das árvores. Adriles Ulhoa Filho 3 A Mina do Morro das Almas Estava certo que as freqüentes corizas, ardor nos olhos e desarranjos sem motivos que vinha sofrendo era tudo culpa dela e da água tratada, de gosto ruim, que chegava pelos canos. Bem diferente da água que apanhava gratuitamente nas cacimbas feitas nos cascalhos do córrego. Diziam que aquelas águas davam papo, mas eram bem mais saborosas que as que agora bebia. Melhores que as que nos vendem hoje em garrafões plásticos. Lembrava sempre com quem conversava como era a cidade há algumas décadas passadas. O córrego morreu, secaram suas cacimbas, seus puxados, morreram piabas, traíras e timburés. Desapareceu tudo quando vieram as máquinas que entraram pelo seu leito e moeram seixos, lajes e barrancos. Só restou lodaçal fedorento, misturado com esgotos domésticos sem tratamento, conseguem que as parcialmente poucas afastar. chuvas só Levar a poluição para um pouco mais adiante. Para outros córregos, outros rios, onde deságuam as águas do poluído Córrego Rico. Os espinheiros já tomaram conta do que sobrou das antigas praias e buscam agora o filete 4 de água que restou. Adriles Ulhoa Filho Loteamentos A Mina do Morro das Almas clandestinos avançaram pelo seu antigo leito e casebres são foram construídos. Aparentemente não há mais o perigo das enchentes, que eram atração, mas também receio dos ribeirinhos. A enchente de São José, ou das goiabas, era a mais esperada no fechamento do verão. Muita gente se apinhava as margens do córrego para ver a fúria das águas derrubando barrancos e engolindo quintais. Troncos de árvores e animais mortos rolavam nas fortes corredeiras. Era a anual limpeza do leito para renascer o córrego. Para abrir aos garimpeiros novos locais de trabalho nos dias que se seguiam. Hoje, não é possível sequer se encantar com o reflexo de um clarão de lua nas águas dos puxados, onde garotos brincavam e nadavam, até nas quentes noites de Verão. Ficou para a cidade esse pó insuportável, essa temperatura cada vez mais elevada, essa verdadeira estufa, que nem capeta agüenta! Em noites mal dormidas, como a última, pesadelos povoaram o sono de Pardal. Ele que raramente sonhava, essa noite sonhou que: “Aninha Preta Velha, gargalhava ao seu redor, e que outra, a Maurícia, cuspia fumo Adriles Ulhoa Filho 5 A Mina do Morro das Almas mascado aos seus pés, enquanto diversas negras escravas, semi-nuas, dançavam, piscavam e sorriam vitoriosas ao seu redor. Tudo ao som de um batuque candomblé ensurdecedor. de caboclo, Uma com dança todas de elas apontando para ele, como se fosse o único culpado de uma grande tragédia. Vai moleque! Vai Pardal, levanta de novo a poeira. Mate os preás agora, seu malvado! Cadê os canarinhos cabeça de fogo que você aprisionou? As piabas que engoliu? Cadê? Cadê seu estilingue com forquilha de goiabeira, moleque? Cadê? Cê agora que dê jeito!” Acordou num sobre-salto, ensopado de suor, na quente madrugada. A boca seca pedia água e a primeira que encontrou foi da pia do banheiro. Quente, salobra e com cheiro de amoníaco. Sorveu alguns goles que fizeram seu estômago roncar, reclamando da má qualidade do líquido. Saiu porta fora para o quintal e sentou debaixo da velha mangueira de dias contados. Suas folhas estão amareladas, ou já mesmo secas, e só vem produzindo frutos brocados. Sua sina parece ser mesmo virar lenha. Talvez do tronco façam uma gamela. 6 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas Uma brisa quase fresca tapeou por instante o ar, despertando alguns galos ali por perto e outros mais ao longe. Cantavam em dueto anunciando a madrugada de mais um quente dia Os primeiros pardais, sempre famintos, iniciavam o irritante e repetitivo piar sem nenhuma beleza sonora. Parece ser por isso que conseguem sobreviver e multiplicarem nas mais inóspitas situações. São insistentes. Piam, piam, piam... Até obterem comida. Tá aí! Deve ter sido pela minha reconhecida intransigência, pela minha insistência para reclamar até obter o desejado, que minha mãe me apelidou de Pardal. Pois agora vou ser mesmo um pardal. Vou piar. Vou piar noite e dia ao ouvido das autoridades desta cidade. Vou infernizar a vida deles e desses ambiciosos produtores de poeira assassina, até que me ouçam ou que acabem comigo! *** Pela manhã, postou-se defronte ao Fórum à espera do Juiz de Direito. Vai ser o primeiro. Terá que me ouvir, pois dia a dia a situação se agrava e poucos parecem perceber. Do jeito que estão indo as coisas não demora muito para que isto Adriles Ulhoa Filho 7 A Mina do Morro das Almas aqui se transforme numa cidade fantasma. Chego antever: “vagando por seus becos e ruas, pequenos grupos de pessoas. Esqueléticas, sonâmbulas, sobreviventes de um flagelo a procura de sobras. E outro grupo, com roupas especiais e máscaras, tal qual astronautas, os “guardiões da mina” tentando retê-los e enxotá-los. Pode ser também que chegue um dia, em que a turba de esfarrapados famintos - como os mineiros descritos por Zola em Germinal - avance desesperada, depredando e destruindo tudo numa revolta sangrenta, sem vencedores, pois o mal maior já estará consumado. natureza local estará destruída”. - Bom dia doutor! 8 Adriles Ulhoa Filho A A Mina do Morro das Almas 2. A busca pela Justiça - Bom dia, Pardal. - Dá licença, doutor? - Pois não Pardal, que foi agora? - O pó, doutor! O pó da mina da MKR que está matando nossa gente e as nossas plantas. - Mas do quê é que você está falando, rapaz? Que pó? Você não vê que a cidade hoje está bem melhor, mais bonita, pois quase toda asfaltada e... - E mais quente. -... menos lamacenta. Já nem precisamos no período de chuvas calçarmos galochas gracejou o Juiz. - Não estou falando daquele pó e nem mesmo daquele barro, doutor. Estou falando é do pó amarelo ou cinzento, sei lá, de agora! Do pó químico venenoso, com cianeto e arsênico, que vem por cima trazido pelos ventos lá da mina, ou arrastado de lá pelas águas das chuvas. Do veneno que infiltra nos lençóis freáticos da água que bebemos. Do pó que aspiramos no ar durante todo tempo, que nos corrói por dentro Adriles Ulhoa Filho 9 A Mina do Morro das Almas causando câncer, doenças renais, alérgicas e outras mais. Veja as estatísticas, doutor! - Onde você leu isso Pardal? Quem botou essas minhocas em sua cabeça? Deve ser coisa de algum comunista! De algum desinformado que não quer ver a cidade progredir. Você precisava ver como era este fim de mundo quando aqui cheguei. Nem água encanada tinha. - É, mas foi só encanar a água que eles apareceram! Foi só a cidade dispor de energia elétrica suficiente, para cuja produção e rede de transmissão, aliás, não contribuíram, para virem. Agora, por pagarem alguns poucos impostos, pois gozam de benefícios, pensam que tudo podem. O lucro verdadeiro, com melhoria de vida, quem vai dele se beneficiar são os endinheirados, os gringos donos do capital. O imposto e royalty, pagos à prefeitura e aos antigos proprietários do morro não são claros à população e, acredito, nem honestamente calculados. Pois não existe controle algum de órgão externo independente, sobre o ouro produzido. Tudo é calculado sobre planilhas que a própria mineradora monta. Sequer sabemos também como arrecadados 10 são pela empregados Prefeitura Adriles Ulhoa Filho os a recursos favor da A Mina do Morro das Almas comunidade. A favor dos verdadeiros donos da riqueza que o município possui. Apenas migalhas e pequenas doações como patrocínios de festas públicas e contribuições cala a boca são transparentes. Cadê a construção de um hospital, seu aparelhamento e manutenção, ainda que temporária, para mitigar os danos que produzem? Cadê a construção de uma escola técnica para aqui formarem os técnicos que a empresa necessita, sem precisar trazer essa mão de obra de fora? Não! Usam sempre a conhecida tática de dar migalhas em público com enorme propaganda e levar milhões no escondido. Ainda são poucos os que percebem que estão levando quase de graça nossas riquezas, que estão mudando até a nossa deixando problemas; paisagem de saúde e e só nos falta de segurança. É o que já se nota, doutor, uma transformação para pior. São mais pessoas para serem atendidas, alimentadas, mais educadas correspondente equilíbrio pessoas e para protegidas, pelo serem sem explorador. E quando o morro acabar? Quando a mina esgotar e acabarem os interesses internacionais dos fundos que mantêm a MKR? Se não tivermos construído uma boa infra-estrutura para enfrentar os problemas advindos da exploração Adriles Ulhoa Filho 11 A Mina do Morro das Almas da mina, que vai adiantar o sofrimento de tantos? Ficaremos a ver navios, ficaremos com o buraco e com os... - Pare, pare, por favor! Você parece estar emocionalmente abalado. - Está bem doutor. Vou parar, pois o senhor deve entender também, e mais, de medicina que de justiça, pois acaba de diagnosticar que sou louco. Não vou mais incomodá-lo com minhas conversas malucas. Sei bem o que vou fazer. O senhor me parece um dos já contaminados. -????Olhe lá, Pardal! Não vá se meter em trapalhadas que podem ser ruins para você. Tenho muita consideração por você e sempre fui amigo do seu falecido pai. – Deixa pra lá, doutor! Já vi que bati em porta errada. – Outra instância Na ante-sala do Promotor esperam para serem atendidos, dois advogados seus conhecidos e algumas outras pessoas. Cidadãos que procuram aquela autoridade na esperança de conseguirem 12 orientações ou esclarecimentos Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas sobre problemas particulares e coletivos. Para denunciarem injustiças ou irregularidades praticadas por pessoas, empresas ou órgãos públicos. São muitos para serem atendidos, mas resolve aguardar. Passam minutos, hora, hora e meia e finalmente, dez minutos após a saída da última pessoa, chega a sua vez. Para sua surpresa o Promotor vem pessoalmente à sala de espera falar com ele.. - Olá Pardal, tudo bem? Conversam ali mesmo na ante-sala. Que está havendo? O Juiz acaba de me ligar dizendo que você esteve com ele reclamando um monte de coisas? Se eu não conhecesse bem o doutor, diria até que ele está pensando que você está doido. Louco varrido! - Ah, é! Quer dizer que ele já ligou para falar do nosso improdutivo encontro? - Hum, hum! - Que foi que ele disse? Posso saber? Ou é segredo de Justiça? - Você sempre bem humorado, hein! Não, não há segredo algum que eu não possa lhe dizer. O doutor Juiz disse apenas que você esteve com ele pedindo ajuda para expulsar a MKR da cidade, o que ele acha que só mesmo estando louco para querer reclamar de uma Adriles Ulhoa Filho 13 A Mina do Morro das Almas empresa como esta que só trouxe progresso e bem estar para a cidade. Parecia estar mesmo muito preocupado com você. - Ah, é! Preocupado comigo, ou com a MKR? E o senhor o que acha? Estou mesmo maluco? Ele já lhe contou o que fui comentar, não é? - Bem... - Acha então o Juiz que é tudo invencionice da minha louca cabeça. Que está tudo bem e que a MKR não está envenenando nossas águas e destruindo até nossa identidade ao destruir o Morro das Almas, cartão postal da cidade há mais de dois séculos. - Não, não foi bem isso que ele disse. Falou mesmo foi do ruim para a cidade o fechamento da mina. Da perda de muitos empregos... - Ah, ele está preocupado é com o desemprego! - Lógico! Todos nós temos interesse no progresso e desenvolvimento da cidade e o desemprego é um dos maiores dos males. - Sem dúvida doutor, mas quem falou em fechamento da mina? Eu também acho que a essa altura não há como falar em fechamento da mina. O que precisa haver é uma compensação para mitigar os estragos que a exploração dela produz. 14 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas - É, mas temos que agir com calma, com prudência. Sei que a MKR tem feito doações a entidades públicas e ONGs que ajudam no social, além de colaborar com a prefeitura na construção e manutenção de praças e jardins. - Isso mesmo, doutor! Pracinhas, canteiros, bonés e lanches no carnaval temporão e nos campeonatos de futebol de veteranos. É o pão e o circo para iludir as pessoas. - Mas ela tem ajudado também na construção de prédios para o Poder Público, como este onde estamos. - E deviam fazer isto? Desculpe doutor, mas isso me parece uma forma de prender rabos? - Calma, calma Pardal. Não é bem assim. - Por que não constroem e doam à cidade um hospital, uma escola técnica, se os seus interesses em explorar nosso ouro ainda vão longe? Por muitos anos! Por que não divulgam com transparência o montante exato de ouro extraído e quanto dele vai para fora do município e do país? Quanto de ouro aqui permanece para ser trabalhado pelos nossos ourives artesão? Sem matéria prima eles estão desaparecendo, pois os garimpeiros de bateia que os abasteciam já não podem extrair nem o ouro de aluvião. Adriles Ulhoa Filho 15 A Mina do Morro das Almas - Não é bem assim. Há regras e leis que precisam ser observadas, Pardal. Trata-se de empresa internacional com muito capital estrangeiro, que precisa dar bom lucro, senão não investem. Você sabe que a MKR é constituída por fundos de investimentos? Você sabe o que é isso? - Fundos? Sei sim doutor. Como sei dos nossos fundilhos que estão chutando. - Ah, não sei como vou poder ajudar! - Será apenas mais um, doutor. Mas há de aparecer uma solução. A propósito, o senhor sabe quantos e como andam os processos trabalhistas contra a MKR na Justiça aqui na cidade? - Os processos são públicos, meu amigo, mas não sei quantos são atualmente nem a situação deles. - Está bem doutor. Agradeço a sua atenção, mas acho que só mesmo os preás para dar jeito nesta situação. - Preás? - Um dia o senhor ouvirá sobre eles. 16 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas Com o prefeito – Uma última tentativa - O prefeito não vai poder atendê-lo Pardal. Está em reunião com diretores de uma grande empresa interessada em estabelecer na cidade. O vice-prefeito também não está, pois viajou para a Capital com diretores da MKR. - Não tem problema senhora secretária, apesar de estar a duas semanas esperando a oportunidade de falar com ele, posso esperar mais um pouco. - Ah, ele disse que se você quiser pode ser atendido pelo Secretário de Meio Ambiente. - Então já sabe que o assunto que me traz até ele é de meio ambiente? Ótimo, falo então com o secretário. - Espere um momento, por favor.. - Tudo bem. A secretária foi ao fundo do corredor e, minutos depois, voltando, pediu que Pardal a acompanhasse até a sala do secretário. Deu um toc, toc na porta que ela mesma entreabriu e anunciou a visita. De dentro da sala escapou ar frio do condicionador ligado e também um forte cheiro de tabaco. Entrou depois de autorizado pela secretária, mas permaneceu de pé. Adriles Ulhoa Filho 17 A Mina do Morro das Almas Por trás de uma enorme mesa de jacarandá roxo estava sentado recostado em cadeira giratória de encosto alto o senhor secretário. Sobre a mesa, um cinzeiro de cristal com vários tocos de cigarros e, desordenados, alguns papéis empilhados pareciam aguardar despachos ou providências. Sem desligar o telefone em que falava, o secretário fez um gesto para que o visitante sentasse. Ainda ficaram alguns minutos a conversar ao telefone, ora sussurrando com a mão esquerda protegendo disfarçados olhares para o fone, ora com o visitante. Alguns sorrisos e uma gargalhada final antes do “Deixa comigo! Até mais tarde! Eu ligo informando”. - Então Pardal, o senhor anda preocupado com a poeirinha que cai sobre suas plantas? Muito bem, uma bela preocupação com o meio ambiente! Gracejou. - Não, senhor secretário. O que me traz aqui não é apenas esta diminuta preocupação. Primeiro, converso com o senhor porque o prefeito não pôde me atender. Mas parece que a comunicação entre o poder executivo, o judiciário, bem como com o ministério público da cidade está em boa sintonia, não é? Acho que nem vou precisar repetir minhas preocupações. 18 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas Fico, pois, esperando a sua opinião sobre o que conversei com o Juiz e com o Promotor. - Bom, não é bem assim! Você sabe que em cidade pequena os assuntos, os boatos, correm rápidos de boca em boca, e... - E sempre são deturpados ao gosto de interesses. - Mas o que eu queria lhe dizer é que em nossa gestão todo apoio temos dado a iniciativas e a todos àqueles que de uma forma ou outra lutam para que nosso município seja exemplo de preservação do meio ambiente. Cuidamos para que desmatamentos desnecessários, assoreamentos de córregos e envenenamento por garimpeiros das rios e nossas águas aconteçam. Estamos, para isso, recebendo efetivo apoio da MKR e estreita colaboração da Polícia Militar através dos quatro policiais da Guarda Florestal. - Quatro valentes policiais e um velho Jeep, para fiscalizarem os mais de oito mil quilômetros quadrados do município... - É o que temos! - E quem fiscaliza a segurança das barragens de dejetos, a poluição das águas de rios, ribeirões e córregos que são bombeadas para tratamento e distribuição à população? Adriles Ulhoa Filho 19 A Mina do Morro das Almas Quem fiscaliza o desaparecimento das águas que outrora perenizavam entorno de fiscaliza onde quem pequenos está as hoje roubam córregos a mina? sem no Quem nenhum pagamento? Ou simplesmente sumiram estas águas? Evaporaram. Escafederam-se? Quem vai fiscalizar, a fim de se evitar a invasão, das poucas e pequenas áreas de preservação que a enorme custo foram criadas? E a biota? - Biota? Quem é biota? - Ah! Quem é biota! Deixa pra lá senhor Secretário do Meio Ambiente. Boa sorte para vossa secretaria e boa tarde! Com licença. -???? 20 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas 3 A família de Pardal e a premonição da Negra Maria. A visão do Morro das Almas posto rés da praia. Noite mais fresca nesse início do outono, com uma linda lua cheia no céu que propicia momento de reflexão. É quando a lembrança dos pais e de amigos que já se foram vêm à mente de Pardal. Recordações. Pensou nos pais e também como conheceu Negra Maria, moradora do sopé do Morro das Almas, e como construíram uma sincera amizade. Sua mãe era ainda moçoila quando veio da roça para trabalhar sem paga na cidade, como ama de crianças de famílias abastadas. Mais tarde, trabalhou sem registro e sem horário como empregada doméstica. Estudou apenas até o terceiro ano no Grupo Escolar, pois não dispunha de tempo para prosseguir estudos. Por ter nascida e sido criada na religião católica, por nada perdia uma missa aos domingos. Conduziu Pardal, enquanto pôde, nessa mesma religião, mas ele assistia por assistir as missas, já que Adriles Ulhoa Filho 21 A Mina do Morro das Almas não entendia nada do latinório rezado pelos padres e repetido parcialmente pelos fiéis. Seu pai era carpinteiro muito procurado na cidade, hábil com formão e enxó, especialista em montar telhados. Diferentemente da esposa ele era protestante, mas pouco participava da igreja. Rigoroso era mesmo para com o filho e esforçou bastante para que aprendesse ofício e estudasse. Conseguiu apenas tirar o Ginásio, mas não aprendeu o ofício do pai. Parou com os estudos por não ter como sair da cidade para continuar os estudos fora. Àquela época a cidade não dispunha nem de Ensino Médio completo. Ficoulhe, no entanto, o bom gosto pelos estudos e pela leitura, e assim muito aprendeu sozinho. Mas... Por que pensava em tudo isso agora? Talvez pelo cheiro que sentiu de leite que havia deixado fervendo e que derramou no fogão e o fez recordar a mãe. Lembrou dela e de um doce que fazia para aproveitar leite bispado. Leite bispado! Não posso desperdiçar este leite, só porque entrou fumaça da lenha molhada no fogão, pareceu ouvi-la dizer. Sorriu. Negra Maria ele conheceu quando ainda era criança, e caminhava pelas praias do Córrego Rico. 22 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas “Foi numa manhã de domingo. Cabulei a missa e fui beirar praia, subindo desde o Lajedo até a Praia dos Macacos. Armado de um bom estilingue, forquilha de goiabeira, um bornal médio para as pedras da atiradeira e guarda de possível caça, lá fui eu. Descalço como gostava de andar subi córrego acima cumprindo o ritual pré-estabelecido. Ora n’água, ora nos barrancos vistoriando tocas e ninhos de garrinchas, ticoticos e das pombas mato-virgem. Umas baitas! Percorria nos barrancos as trilhas de preás. Sabia dos seus hábitos noturnos, mas sempre havia a possibilidade de encontrar alguma não entocada que pudesse tornar alvo fácil para as pedras do meu estilingue. Sempre fui bom no manejo dessa atiradeira. As águas frescas do córrego convidam a um mergulho nessa manhã de Verão. Frescas, fartas e limpas, só turvavam rapidamente quando alguma pequena traíra assustada com a nossa presença se escondia em um monturo de garranchos ou na fresta de alguma pedra. Aquele dia, ser domingo, não tinha garimpeiro algum nos puxados, só os galhos de espinheiros demarcam os locais que não devíamos nadar. Todos respeitavam. Quase todos! Adriles Ulhoa Filho 23 A Mina do Morro das Almas No barranco do Matinho cedi ao convite da água. Tirei toda a minha roupa e me atirei pelado para um mergulho. Estava tão fundo o poço que não conseguia tomar-pé. Nadei, mergulhei e até bebi daquela gostosa água. Vesti ainda molhado a velha camisa branca encardida de três botões – que nem abotoei – e a calça curta de suspensório de pano. Prossegui o passeio pelo barranco até chegar ao Vigário. Já estavam por ali alguns garotos para o futebol no macio gramado encharcado pelas águas das chuvas dessa época do ano. Olha lá! Avistei uma folha de piteira cortada. Não resisti. Sentado nela escorreguei lá do mais alto barranco. Subi e desci várias vezes. O futebol ainda ia demorar, pois ainda eram poucos os garotos. Por isso, continuei minha caminhada pelo leito do córrego. Observei na barra do Córrego do Espalha com o Rico, que as águas daquele eram bem mais frias. Por aquele córrego não era fácil caminhar, pois as matas às suas margens eram profundo. Segui pontilhão que densas caminho levava à e e o seu passei Estrada de leito sob o Goiás. Observei grandes lagartixas negras tomando sol nas madeiras da ponte. De vez em quando moviam as cabeças como que assuntando o 24 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas perigo. Arrisquei uma pedrada numa grandona, mas felizmente, digo hoje, errei. Fugiram todas para o outro lado da viga e eu continuei zerado nas minhas maldades naquele domingo. Nem um passarinho, um preá ou mesmo um ovinho de beija-flor. O sol já ia alto quando alcancei o lugar onde se encontram os Córregos de São Gonçalo e dos Macacos. Lugar lindo. Lá no sopé do morro, num pequeno achatado que existia no barranco do São Gonçalo, morava a Negra Maria, apelidada Tortuga, carregando seus muitos anos. Alguns garotos tinham medo até de se aproximarem da casinha. Comentavam que os pais diziam que ela era uma bruxa. Ela mesma deve ter espalhado a lenda para não ser perturbada pela molecada invasora de quintais. Fiquei seu amigo num desses meus passeios. Certo dia, com muita fome e grande dose de coragem, resolvi pedi a ela uma bonita manga Sabina madurinha, que vi dependurada num galho quase sobre a cerca de varas do seu quintal. Olhou-me de modo fixo, séria – quase corri – mas abriu em seguida um sorriso bondoso em seu rosto me autorizando apanhar a manga. Enquanto eu devorava a fruta ela puxou conversa. Perguntou aquelas coisas Adriles Ulhoa Filho que os 25 A Mina do Morro das Almas adultos sempre perguntam às crianças que encontram pela primeira vez: “quem é seu pai, sua mãe, onde você mora e o que faz por aqui”. Achei que estava era mesmo com vontade de conversar e comecei também a indagar. - A senhora mora aqui sozinha? Tem marido não? Filhos meninos? - Não, não meu amigo! Verdade. Ela me chamou de amigo. - Não mais tenho marido e nem filho. Meu marido morreu há muito tempo e o único filho que eu tive sumiu aí no morro. - Sumiu? - É, sumiu. - Por que a chamam de Tartaruga? Ela sorriu. - Não, não é Tartaruga, meu filho! É Tortuga, mas acho até que é a mesma coisa. Nome inventado por um espanhol, meu amigo, que morou numa outra casa que existia ali mais em cima no São Gonçalo. Foi meu único vizinho por muitos anos. Tinha mulher e duas filhas, mas como enviuvou cedo criou sozinho as meninas. Estas, assim que ficaram mocinhas foram embora. Deixa pra lá que isto não é assunto que interessa a uma criança. Como ia dizendo, era ele que me chamava de Tortuga. Dizia que eu era 26 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas tão vagarosa no caminhar que até parecia uma tortuga. Aí ficou! Não me incomodo de me chamarem assim, apesar do meu nome ser Maria de Jesus da Silva. Não conheci meu pai e minha mãe era escrava. Ela chamava Aparecida. Aparecida de Jesus, ou Cida do Morro como todos a chamavam. Mas vai embora que já está ficando tarde e sua mãe vai ficar incomodada com sua demora. - Até outro dia, dona Tarta... Tartaruga... - Tortuga, meu amigo. Foi assim que conheci Negra Maria. Agora, já passado alguns anos, eu a visito sempre - como hoje confiança. Ando por seu e desfruto pequeno de sua quintal e conheço toda sua posse. Uma fresca casinha num achatado no sopé do morro, aonde o sol sempre chega mais tarde. Paredes de adobes crus, sem reboco, telhado sem forro - em quatro águas coberto de velhas telhas coloniais, pesadas e patinadas pelo tempo. Uma sala, um quarto, uma cozinha e pequeno despejo. Tudo em chão batido, mas em boa ordem. No quintal, algumas outras árvores frutíferas além do pé de manga Sabina Um de romã, um sabugueiro e algumas Adriles Ulhoa Filho 27 A Mina do Morro das Almas laranjeiras. Laranja da terra, da China e da Ásia. Moitas de bananas, ouro e prata e capim cidreira para o chá. Duas roseiras, medicinal, e outra vermelha. uma branca, Três ou quatro canteiros elevados, para plantio de verduras e pequeno forno de lenha debaixo da mangueira. E uma latrina de fossa a uns quinze passos da casa. O terreno é coberto de terra preta misturada em pedregulho, um pouco esconso, mas bastante fértil. Basta adubar com um pouco de esterco de cavalo, queimado, misturado com cinzas do fogão de lenha, para produzir lindas cabeças de alface, couve e cebolinha de grossas folhas. O esterco é batido e sapecado antes de utilizar nos canteiros, a fim de evitar pragas e também para não ‘queimar’ as plantas. Certo dia Dona Maria me contou o que aconteceu com o seu único filho. “Ele se chamava Francisco, mas era mais conhecido por Chico, - como todo Francisco. Chiquinho Preá. O apelido veio por ser pardinho miúdo de corpo, dentes superiores da frente salientes e olhos muito pequenos e espertos. Acho até que parecia mesmo um preá! Disse sorrindo. Ele gostava muito dos bichinhos e vivia 28 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas os protegendo das caçadas dos outros meninos e dos gaviões predadores aí do morro. Quando os viam se aproximarem do morro, fazia o maior barulho prevenindo os amiguinhos. Com ele os preás eram mansos e até o deixava tocá-los. Acho que conversava com eles. Pois bem, viveram essa amizade por algum tempo, mas certo dia apareceu por aqui um pessoal de fora, dizendo ter comprado as terras e que iam explorar o ouro do Morro das Almas. Até esse terreno aqui onde moro diziam ser deles. Deles! Como deles? Se desde o tempo de minha avó, escrava alforriada, e depois minha mãe, escrava liberta pela Princesa, vivemos aqui? “A senhora é quem sabe. Vamos ver se agüentará as explosões, o barulho das máquinas e a poeira por muito tempo! Até sua cisterna vai secar. Melhor aceitar a indenização e procurar outro lugar para morar”. Desaforo! Chiquinho ficou muito assustado e passava os dias no morro com os animais seus amigos. Voltava para casa só depois que escurecia e acordava quase todas as noites aos gritos ordenando que corressem. “Não, não... Fujam! Vão embora!” gritava sem parar. E um dia eles vieram mesmo para as primeiras escavações. Enorme máquina raspou o Adriles Ulhoa Filho 29 A Mina do Morro das Almas terreno, bem aqui acima onde existia uma baixada. Lugar mais fresco onde minava água e o capim era sempre verde. Ali morava a maioria dos roedores. esmagando aprisionaram Arrasaram muitos, as adultos outros suas e tantos. tocas, filhotes Diziam e os maquinistas, que dariam um ótimo “tira-gosto”. Judiação! *** Meses encontrei depois Negra numa Maria de muito minhas visitas triste! Parecia muito doente e dizia coisas confusas. Muito pálida e com o olhar sempre parado. - Algum problema dona Maria? Era assim que habituei chamá-la. - São eles! Estão chegando para destruir tudo. - Destruir o quê? - O Morro das Almas, meu filho! Fiquei observando as rugas no rosto da minha amiga. Pareciam formar letras Achei um “m” de medo, um “a” de aflição e um “t” de temor, sobre os olhos. - Você, meu amigo, já é um rapazinho e precisa saber tudo o que está para acontecer e 30 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas tentar amenizar terrível! Esta o sofrimento noite eu ouvi de muitos. minha É gente; conversei com ela! - Que gente dona Maria? A senhora sempre me disse que não tem mais ninguém no mundo! - Tenho sim Pardal! Muitos! Muita gente, muitas almas sofridas que perambulam aí pelo morro, com os pés acorrentados, cavando sem razão aqui e acolá há mais de um século. O morro está cheio delas. Estão agitadas e falam em destruição. Disseram que uma verdadeira guerra vai ser travada. Virão enormes e estranhas máquinas explodir e moer o morro, afugentar os bichos, transformar tudo a pó. O Morro das Almas vai se transformar num inferno, exalando gases de enormes buracos, um lago negro vai se formar e, por fim, um deserto. O pó que vai do morro soprar cobrirá toda a cidade e não vingará nem um pé de fruta, uma mangueira, ou qualquer outra árvore. Você já ouviu falar de uma cidade de um distante país que foi totalmente destruída, soterrada pelas larvas de um vulcão? - Sim, já estudei sobre isso no ginásio, respondi. Foi Pompéia, cidade italiana, que no ano 79 da Era de Cristo, foi totalmente destruída pelas larvas da erupção do Vesúvio. Mas o que Adriles Ulhoa Filho 31 A Mina do Morro das Almas tem a ver essa história, se em nosso país nem tem vulcões e apenas alguns pequenos montes? Quem, por que e para que fará isso, dona Maria? - Pelo ouro, meu filho, pelo ouro! O Morro das Almas tem ainda muito ouro, meu filho e não produz apenas mangabas e serve de abrigo para preás, lobos guará, pássaros e para fornecer as águas que vazam das pedras e abastecem os córregos lá embaixo. - E vão destruir isto, dona Maria? Não compreendo. Deve ter sido apenas um sonho, um pesadelo que a senhora teve. - Não, meu filho, elas estavam inquietas esta noite, e eu até senti que o morro tremia. Tive uma visão desses estranhos que estão chegando. Vão ser recebidos com muitas festas. Virá um que chamam de “rei vermelho”, alegre, sorridente, folgadão, fazendo enormes promessas. Chegará pelos ares como um pássaro e será recebido com muita pompa pelo povo e autoridades. Distribuirá durante algum tempo presentes e fará pequenas doações “em benefício do povo da cidade”, discursará. Muitos acreditarão em sua palavra dizendo que trará empregos, que virá progresso e bem estar para os habitantes da cidade. - Mas, isto não será bom, dona Maria? 32 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas - Seria, meu filho, seria se a ambição não fosse maior que o morro. Quando o ouro acabar, vão embora à procura de outra reserva e ficaremos somente com os problemas de saúde que a extração vai deixar. Com pouca água boa para consumo pelo homem e pelos animai a cidade vai aos poucos desaparecer. Do céu vai chover ácido, Pardal! - Que horror, dona Maria! - Mas ainda há uma esperança! Os preás vão reagir à destruição de sua casa. A princípio poucos, mas vão se multiplicar enormemente e logo virão até de outros mundos. Virão de todos os lados, mil, milhares, milhões de preás grunhindo tal qual javalis, roendo tudo que encontrarem pela frente, exigindo reparos, exigindo respeito. Não sei o que vai resultar. Quem vencerá, quem se salvará dessa guerra, se os preás ou o “rei vermelho”. Agora vá embora, pois estou bastante cansada. Foi minha última conversa com a Nega Maria. Dois dias depois a encontraram morta. Foi se juntar aos seus no Morro das Almas. Adriles Ulhoa Filho 33 A Mina do Morro das Almas King Rosso, o rei vermelho. Como a mineradora tomou conta da cidade. Grande aparato foi armado para receber o presidente, Mister Scott – o rei vermelho – que veio finalmente conhecer a mina adquirida por sua empresa. A cidadezinha ficou agitada pelo acontecimento. Escolares foram desde muito cedo colocados alinhados ao sol junto à pequena banda musical convocada para a recepção no pequeno aeroporto. Sol inclemente, calor insuportável, amenizado apenas pelo uso dos bonés amarelo-vermelho com emblema da MKRMineração King Rosso distribuídos às crianças, e mais uma garrafinha plástica com suco vermelho gelado. . Meia hora antes do horário previsto para a chegada já se encontram no local, além dos escolares e dos componentes da banda, o prefeito, o padre, policiamento evangélicos na e o tenente, cidade, quatro chefe três vereadores do pastores do partido situacionista. A diretora do grupo escolar e mais duas professoras ficam também ao sol cuidando das barulhentas crianças que em algazarra acham tudo muito divertido. Um pouco afastados das autoridades municipais e do gerente-chefe da mina, alguns funcionários menos graduados 34 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas da MKR marcam presença engrossando o público para a recepção. Foram convocados pela chefia e dispensados do trabalho por algumas horas. Tudo perfeito! O gerente-chefe sorri para todos e confere todo momento um ponto no horizonte aéreo por onde deve chegar o helicóptero do rei. Dois luxuosos automóveis haviam chegado a cidade no dia anterior, trazendo da capital alguns membros menos graduados da diretoria e alguns seguranças. Já é de quarenta minutos o atraso da chegada prevista para as dez e trinta. Mesmo as autoridades protegidas do sol sob o teto de zinco do pequeno hangar transformado em saguão de recepção, suam sufocadas nos seus ternos com cheiro de naftalina e gravatas escuras. Olhe lá, estão chegando! Por fim, sobre a pequena serra que emoldura a cidade aparece o pássaro de ferro, raro por aquelas bandas, trazendo em seu bojo a importante visita. Alguns fogos espocam e o romper executado de um pela dobrado banda de euterpe boas vindas saúdam os visitantes. Os colegiais agitam as bandeirolas coloridas; alguns se assustam com o barulho, o vento e a poeira que levanta da pista sem asfalto pelo possante helicóptero. Olhos arregalados e brilhantes de crianças curiosas. Adriles Ulhoa Filho Adiantam-se 35 A Mina do Morro das Almas autoridades para cumprimentos e apresentações, curvaturas de dorsos e até beija-mão da esposa do rei, Miss Scott, que sorridente não entende nada do que falam os nativos. Responde sempre prauzer e muuto obrigadô! Simpática e perfumada, a jovem esposa do magnata até parece ser sua filha. Sorri o tempo todo. A caravana se forma com o Fiat 147 do chefe de policiamento de batedor, dirigindo devagar e com muito cuidado para não levantar poeira. Seguem os carros do prefeito com os ilustres visitantes, os diretores da empresa com as bagagens e os seguranças. Quatro outros carros com as autoridades civis, militares e eclesiásticas e, por último, o velho ônibus escolar amarelo doado pelo governo canadense, como se lê em uma estudantes euterpe de em suas grande ficou por ali laterais, levando algazarra. mesmo no A os banda campo de aviação. Depois de entoar mais alguns dobrados se dispersou, carregando cada músico o seu instrumento para casa. 36 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas A festa À noite, no Social Clube, aconteceu o jantar e baile oferecido visitantes. Seletos autoridades degustar pela membros tiveram os cidade direito saborosos aos ilustres da sociedade e de participar e pratos da culinária mineira e goiana às custa do erário público municipal. Vinhos portugueses de boa qualidade, discretas cervejas e água mineral. Os visitantes não tomam da água da cidade, temerosos da sua qualidade. Bebem somente águas minerais de Caxambu ou São Lourenço, cujas garrafas são abertas somente na hora de servir. Fazem enorme sucesso o goiano peixe na telha e as sobremesas de doces de mamão lascado, manga verde e de laranja da terra. Mister Scott e sua jovem esposa sorriem o tempo todo. Na visita acompanhado autoridades, que do mister fez à tarde mina, prefeito e Law informado foi de a outras dos detalhes da mina, sobre a história da cidade e das reservas minerais da região. O que conversa em inglês com o gerente-chefe, quando interessa, é traduzido às autoridades. Para a compreensão de Mister Scott foi traduzida as Adriles Ulhoa Filho 37 A Mina do Morro das Almas palavras escritas em português nas faixas de saudação pela cidade. Música suave de aparelho eletrônico durante o jantar e, mais tarde, música dançante executada por um conjunto local. No final da noite o vermelho e suado rei se mistura à plebe e dança de modo desajeitado com a sua rainha e sociedade. com algumas Arrisca até alegres remexer damas as da cadeiras dançando um forró executado pelo conjunto com uma bela morena a ele oferecida para a dança. Uma galhofa! No dia seguinte a Praça da Matriz ainda está no silêncio de uma manhã de domingo. O barulho que se ouve é de um garoto com um cestinho enfiado no braço a apregoar de porta em porta o bolo de domingo, e o repicar do sino da Matriz convocando fieis à missa. Pardal, após mais uma noite mal dormida pelo calor e pelo barulho do Social, comenta com seu amigo Zé Pindoba: - Zé, pra onde estamos indo, Zé! A farra aqui no Social foi grande, pois até uma meia hora atrás tinha gente saindo cambaleando daqui. Muitos, só pela boca-livre e para puxar-saco de um grupo de gringos que aqui vêm nos explorar. 38 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas E tudo, tudo pago com o nosso rico dinheirinho, Zé! - Quem é gringo, Pardal? Quem deu dinheiro? Você deu? A mim não pediram dinheiro algum para esse jantar! - Você não sabe mesmo é de nada, hein cara! Um alienado é o que você é. Santa ignorância essa sua! Você deu sim, seu burro. Ou por acaso não paga impostos? - Ih! Você já amanhece azedo. Vá rezar ali na igreja pra essa sua santa. Essa sua Santa Ignó, vai! - Ah! Deixa pra lá! Você é mais um daqueles que custa compreender as coisas. Daqueles que acham bonito uma pracinha singela com várias placas informando: esta praça foi restaurada pela MKR em parceria com a Prefeitura Municipal. Acha mais importante o patrocínio de um carnaval temporão, de um show sertanejo que enche praças de bêbados inconseqüentes, de depredadores eventuais, do que de uma escola. Grande dádiva! Esses gringos são sim uns grandes filhos da pauta, Zé! Como pagam alguns impostos e distribuírem migalhas, iludem pessoas e acham que podem tudo. E nós, bestas, concordamos. Adriles Ulhoa Filho 39 A Mina do Morro das Almas - Ô louco! Onde você tomou dessa, Pardal? Acordou com a macaca? - Ah! Você ainda não percebeu. Vai demorar entender o que vai sobrar depois da festa! - Mas a festa não foi de ontem pra hoje? Já não acabou? - Desisto. Vou dar uma enquanto posso; até logo! 40 Adriles Ulhoa Filho caminhada A Mina do Morro das Almas 5 A revolta dos preás e pardais O triste fim de Pardal. Pardal passou dias horríveis depois das frustradas tentativas de conseguir apoio de autoridades e pessoas para as suas reclamações contra a MKR. Com quase todos que conversava pareciam contentes e satisfeitos com a grande empresa que a cidade abrigava. Ela dá emprego a muita gente! Não percebiam que a maioria dos técnicos e engenheiros apenas veio de outras cidades. uns poucos operários sem Daqui, formação especializada. Será que mais ninguém vai entender a fria que estamos entrando? Pensava em sua solidão, nos seus delírios quixotescos. Será que nem as almas penadas, que a Negra Maria dizia vagarem pelo morro, não vão se levantar? Ou estarão planejando forasteiros vingança e àqueles maior que aos se ambiciosos vendem e os seguem por vinte dinheiros? Adriles Ulhoa Filho 41 A Mina do Morro das Almas Sentia cansado pelas noites mal dormidas e pela dificuldade encontrando para que vinha respirar. Uma ultimamente espécie de asma, da qual só sentia alívio pelo uso de uma bombinha com um produto para aspergir na garganta, que passou a carregar consigo por recomendação de um farmacêutico seu amigo. Poucos colegas do armazém onde trabalhava ainda davam atenção à sua conversa. Pensou estar chateando os colegas e por isso, se trancou. Noites e noites sozinho, já que não tinha irmãos e os únicos parentes que lhe restavam eram os dois tios que moravam e trabalhavam como bóias-frias em fazendas da região. Em mais uma noite quente, febril e com a respiração ofegante, Pardal sonhou: De cima de alta pedra que restou, qual um totem, no centro do morro destruído, Pardal e Chiquinho Preá comandam o ataque. Pássaros e preás aparecem de todos os lados e devoram tudo. Dezenas, centenas, milhares, bilhões de preás e pardais fazem tremer o que resta do antigo morro. Os primeiros invasores foram dois preás, que mesmo perseguidos por dois vigilantes de 42 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas fardas vermelho-amarelo que tentaram abatê-los para mais um tira-gosto, se evadiram. Depois, os vigilantes enorme começaram quantidade a sorrir deles e ao de verem a pardais sobrevoando a mina pousando nos arredores. Roedores começaram então a varar cercas e portões. Assustados, ligaram para o escritório do gerente da mina. - Preás? Pardais? Mas que história é essa? Presta atenção, vocês não estão aí para brincadeira, certo? Pleck. - Ele desligou. - Acho melhor darmos uns tiros para o alto e cairmos fora... E cada vez era maior o número dos invasores roendo tudo que não fosse pedra. Máquinas, caminhões, esteiras, canais, dutos e bombas d’água, tudo sendo devorado como se fossem migalhas. As migalhas distribuídas, as mentes e consciências compradas pela MKR, tudo sendo consumido numa voracidade jamais vista. Sede, muita sede de esqueléticas figuras, que a água borbulhante e negra não sacia. E as negras rindo! Adriles Ulhoa Filho 43 A Mina do Morro das Almas Togados, engravatados, rezadores e políticos correm sem direção. E os negros rindo! Vento forte escuridão. arrasta Pessoas, por aves fim e tudo para animais e a um tremendo estrondo se ouve. Um big-bang que fará renascer de novo o morro. Chiquinho gargalhava de cima da pedra. Anh! Acordou mais uma vez ensopado pelo suor da febre bastante alta e dirigiu-se ao chuveiro. Na madrugada, tremendo e batendo queixo após o frio banho, se armou de velha bacia que dizia a si mesmo ser uma bateia, atravessou a cidade em direção a mina. Pela portaria principal não poderia entrar, por isso contornou a fralda do que restava do morro, e atravessando quintais vazios já pertencentes à MKR, alcançou a área de dejetos onde numa valeta profunda escorria em direção ao lago negro um líquido grosso semi-coberto por fumaça amarela que exalava forte cheiro ácido. - Pare! Advertiu um vigilante armado de uma escopeta. Continuou andando e depois correndo com a velha bacia às mãos. 44 Adriles Ulhoa Filho A Mina do Morro das Almas - Pare! Repetiu o vigilante, quando ele já alcançava o final da valeta que terminava em um sumidouro que levava ao lago. Um tiro, e o seu corpo rolou pelas margens da valeta desaparecendo no sumidouro. Mais uma alma foi se juntar no morro às almas penadas de muitos escravos, de muitos sonhadores e também as de Chiquinho Preá e a de dona Maria Tortuga, na esperança de um dia poderem renascer em um mundo mais justo e fraterno. Fim Adriles Ulhoa Filho 45 A Mina do Morro das Almas Publicado por INSTITUTO SERRANO NEVES www.serrano.neves.nom.br Edição 46 Adriles Ulhoa Filho