Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 Leitura crítica do filme A Fonte das Mulheres1 Roger BRADBURY2 RESUMO Este estudo fez uma leitura crítica do filme “A Fonte das Mulheres”, ressaltando aos aspectos relativos às relações de poder e de gênero no Islamismo, a partir da contribuição de autores das Ciências da Religião. Foi apresentado como monografia da disciplina “Religião, Sociedade e Cultura: questões epistemológicas” e também foi apresentado para debate no Grupo de Pesquisa Mandrágora / NETMAL, pertencentes ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da UMESP. O filme trata do poder de mobilização – conseguido a partir do domínio da cultura letrada, da greve de sexo e busca da hegemonia - de mulheres muçulmanas de uma aldeia, no Oriente Médio, contra da tradicional divisão sexual do trabalho e seu reflexo na qualidade de vida daquelas mulheres. PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Mídia; Educação; Gênero; Islamismo Introdução O filme A Fonte das Mulheres 3(La source des femmes, 2011), que estreou em 20 de janeiro de 20124, o qual mescla bem os gêneros ficção e documentário, drama e sutil comédia, é uma crônica moderna a respeito de um pequeno vilarejo muçulmano de qualquer parte que se situe entre o Norte da África e o Oriente Médio, onde as políticas públicas e o desenvolvimento urbano demoram a chegar, e quando chegam, mais fazem é instigar o consumismo – como creem os varões do filme, e testemunha a “modernidade”, a exemplo do celular e a televisão. Uma região, a qual depois de tantas colonizações vive o drama da resistência da tradição (dos anciões) contra a as inovações 1 Trabalho apresentado na VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical (Eclesiocom), realizada em São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 2 Mestrando em Ciências da Religião na UMESP. 3 Indicado Palma de Ouro no Festival de Cannes 2011, rendeu meio milhão de ingressos na França em apenas um mês. Disponível em: http://casadecultura-uel.blogspot.com.br/2012/02/fonte-das-mulheres-estreia-hoje-no-cine.html. Acesso em: 22. mar.2013. 1 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 da “modernidade”, por um lado e a necessidade imperiosa de adquirir condições dignas e mínimas de subsistência perante a seca, o desemprego e a falta de serviços públicos de saúde, educação e a distribuição de água e energia elétrica, por outro lado. É uma sutil comédia dramática que tem como foco principal a condição da mulher na sociedade islâmica, que como diz Pierucci (1997, p. 117), realiza-se com a “sanção religiosa da dominação masculina na esfera privada”, que torna estas mulheres objeto de posse de seus maridos - e pais, inclusive com a possibilidade de renda devido à instituição do dote de casamento – com papéis sexuais delimitados à esfera privada (espaço doméstico, aos cuidados da prole e “obrigações” sexuais para com o marido). 1. Sinopse do filme O filme introduz com o narrador perguntando: “Conto de fadas ou uma história real? Um conto de fadas é claro, o que é real? Não estamos na corte de um sultão”. Inspirada em um caso real ocorrido na Turquia em 2001, a história do drama mescla a temática da opressão e do poder de articulação e superação da mulher na vida real, na literatura árabe (Alcorão e os Contos das Mil e uma Noites) e numa peça de teatro de Aristófanes (Lisístrata). Continua o narrador dizendo que a história se passa “numa pequena aldeia norteafricana ou árabe, onde uma fonte corra e o amor seque”. Ou seja, no interior do mundo árabe e das tradições islâmicas, onde as condições de vida dos (as) moradores (as) de pequena comunidade muçulmana se deterioram – em especial aquelas condições de vida das mulheres - com as mudanças ambientais devido à seca e ao subdesenvolvimento. Uma região situada no “velho mundo”, que após sucessivas colonizações, as quais impregnaram a população local de seu “espírito do Império”, tal como afirmam os autores Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 16): Com essa expressão, [...] vamos referir-nos [...] a um ethos, uma forma de pensar, administrar, uma cosmovisão e até de certa teologia [...]. Ou seja, aquelas condições de subjetividade e de auto concepção cultural que o Império gera em si e nos outros, mas que são ao mesmo tempo resultado e condição do seu modo de propor o político e de exercer seu domínio econômico. O fato do Império como conformação de governo e poder, dada, além disso, a pretensão de globalidade que hoje adquire, gera um "espirito coletivo", uma construção antropológica, se se preferir, que permite e avaliam certas 2 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 condutas, reações, sentimentos e atitudes dos atores sociais e políticos, que conforma uma determinada lógica e modo de conceber a vida, que se impõe e se traduz em valores e cosmovisões hegemônicas. O espírito do império, de certo modo, se fundiu à cultura popular, que não tardou a população assimilar mais um imperialismo, o Islamismo, expandir-se na conquista da península ibérica, na designação conhecida de mouros ou sarracenos, sendo responsáveis pela islamização da região. Esta situação é agravada pela falta de investimentos de infraestrutura por parte do governo, que por sua vez, gera a baixa produtividade no campo, a pobreza, o desemprego, e consequentemente a ociosidade (juntamente com a falta de sensibilidade e solidariedade) dos homens, a qual, por sua vez, gera a sobrecarga de trabalhos domésticos para as mulheres. Que no dizer da personagem principal Leila (interpretada por Leïla Bekhti, uma atriz francesa de origem argelina, nascida em março de 1984): “a falta de emprego, de dinheiro e a seca fez o coração dos homens virar pedra antes de morrer”, e ironiza outra personagem, a velha Fuzil (interpretada por Biyouna, que é cantora, dançarina e atriz argelina nascida em 1954): “ você quer que o amor volte à aldeia através de uma tubulação?”. Enquanto que os desocupados varões e patriarcas da aldeia passam o tempo, se divertindo, fumando, jogando conversa fora e bebendo chá, as mulheres têm de transportar água nos ombros por escorregadios caminhos de difícil acesso de um local distante no topo do monte até suas casas. Não importando se estão grávidas ou com cólicas menstruais (indispostas). É justamente para defender as gestantes – que por vezes se acidentam, causando abortos em metade da prole das famílias – que a jovem estrangeira Leila, sempre apoiada pela intrépida viúva e curandeira, apelidada de velha fuzil, propõe uma medida revolucionária de sensibilização dos maridos – do estrato social dominante: os homens de modo que resolvam o problema do transporte de água: a greve de sexo. A polêmica se inicia no interior do próprio grupo de mulheres, algumas zombam outras resistem enquanto outras ignoram devido ao medo das consequências. Tal medida acaba interferindo nas relações familiares, religiosas e organizacionais 3 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 (profissionais e administrativas) de todos os habitantes, provocando uma discussão de valores (amor, solidariedade, respeito, violência, educação, liberdade, entre outros). A questão, então, coloca em choque não apenas a divisão sexual das tarefas entre homens (mais ligadas ao espaço público) e mulheres (mais ligadas ao espaço privado do lar), mas as arcaicas relações contratuais de matrimônio como: a instituição do dote; a possibilidade do repúdio da mulher e novo consórcio - inclusive para o caso dissolução do matrimônio pela não virgindade da mulher, o tabu devido ao casamento fora do “clã” e do casamento arranjado em detrimento das uniões por amor. E também, nas relações religiosas, onde somente os homens tem o direito de se reunir e decidir em assembleia oficial e legal nos espaços públicos (como na sinagoga, no salão comunitário) – diferente das mulheres que se reuniam em assembleia de forma extraoficial e informal, na clandestinidade de uma sala de banho (espaço privativo); na interpretação androcêntrica do Alcorão que é questionada pela esperta e bem preparada líder “feminista” Leila, pois aprendeu a ler; e também nas práticas (como o servir do chá) e nos símbolos de dominação masculina (como o uso do véu). O exemplo disso encontramos a citação no filme pelo Imam: “Em Sura 4:34 está escrito as mulheres virtuosas são obedientes; aquelas da parte das quais você teme insubordinação exorte-as, recuse-se a dividir a cama com elas, e bata nelas”. Ao que responde Leila ao provar nas escrituras a igualdade de homens e mulheres: “todo o resto é apenas, é apenas interpretação; é um desvio da escritura por interesses pessoais.” E por último, nas relações organizacionais, onde se colocou em cheque a ética profissional do professor, do Imam (líder religioso da mesquita local) e do prefeito; também como se estruturam as relações de trabalho entre homens e mulheres, e mais importante como se estabelece a divisão entre o lazer e trabalho, seguidos do direito à comunicação: ao celular, e à televisão. 2. Da Contextualização Sóciohistórica O filme é uma coprodução entre França, Bélgica e Itália e foi dirigido pelo o judeu romeno Radu Mihaileanu - que também colaborou na elaboração do roteiro com 4 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 Alain-Michel Blanc – já agraciado pela crítica, no Festival de Veneza de 1998, com a produção Trem da Vida. Em uma entrevista que deu à Agência O Globo, o diretor judeu romeno assim justifica o termo “fonte” no título da produção: “ Acreditar na força do poder feminino é acreditar na serenidade. Eu uso a palavra ‘fonte’ no título do meu filme porque as mulheres são a fonte de tudo o que é sereno.”5 O choque em entre o tradicional e o moderno é uma constante no filme. Como num jogo de antíteses, o diretor faz-nos refletir sobre os problemas e limites na comunicação, antiga e moderna. Bom exemplo disto são as cenas em que aparecem o celular e aquelas em que a comunicação é por carta – embora o meio decisivo para resolução do problema foi o bom e velho meio de comunicação de massa, o jornal. Diz o diretor que o que lhe inspirou foi uma notícia que leu “em 2001 sobre uma aldeia no interior da Turquia na qual as moradoras fizeram uma greve de amor para forçar seus maridos a resolver o problema de abastecimento de água no local”. Continua ele: “aquela notícia me fez rir, pelo inusitado de ver uma reação assim, similar ao que ocorria na antiguidade, ser tomada neste mundo de alta tecnologia” (Agência O Globo). 3. Da Resistência e do Reclamo dos Oprimidos Esta tensão ocorre por vez de forma imperceptível, pela “mão invisível” do mercado, mas neste conflito de interesses não há conciliação possível, pois como afirmam Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 34-35): Só a livre concorrência em todas as esferas da vida produz a verdadeira liberdade, e qualquer interferência não faz senão alterar as possibilidades de expressão da pessoa. Esta deve ser posta a salvo de qualquer elemento que obstaculize sua livre capacidade de posse, portanto o Estado (e, por conseguinte, a política e a democracia) deve ser reduzido a sua mínima expressão. Apenas o necessário para que o mercado opere livremente. Portanto, conceitos como "solidariedade" ou "justiça social" ficam explicitamente injuriados, em seus escritos, como expressões de um passado de opressão a ser superado. 5 Percebe-se que o diretor não conseguiu fugir aos estereótipos típicos das representações de gênero que colocam qualificativos opostos para homens e mulheres. 5 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 Entretanto a moral da história (do filme), é que de onde menos se espera, do “infinitamente pequeno”, do lado mais fraco e mais oprimido levanta-se um poder contestador da ordem vigente. Esta moral foi sintetizada nas palavras do intelectual disfarçado de entomólogo (jornalista?): “Nunca devemos nos dar por vencidos. O infinitamente pequeno pode se relevar, mais majestoso do que tudo que parece grande. A água, o frescor, a vida e até o amor podem brotar a qualquer momento.” Assim, podemos concluir que não há uma uniformidade na adesão dos colonizados ao “espírito do império”, ou seja, “que não existe uma homogeneidade unívoca, e isso produz, por sua vez, certos antagonismos: ora, assim como existe um "espirito do Império", surge uma visão contra imperial, que não se deve desconhecer. (MÍGUEZ, RIEGER e SUNG, 2012, p. 16). Assim a mesma força que move o império, ou seja, a força do trabalho do oprimido, do colonizado, do escravizado também pode insurgir-se contra o império, e colocar fim a este: Na medida em que as relações humanas foram imperializadas, a crítica ao Império só pode vir de um extra novis, a partir de um fora que manifeste o limite [...]. É aqui que o poder "laocrático", o reclamo do excluído, da não pessoa, para a Império, torna-se o fator dinamizador do tempo político, anúncio de tempos messiânicos, escatológicos, se nos perdoam a linguagem teológica que hoje se tornou novamente referência em escritos políticos. (MÍGUEZ, RIEGER e SUNG, 2012, p. 45) O poder de mobilização e de denúncia gerado pela greve de sexo obteve uma repercussão que transpassou os limites da comunidade ganhando destaque na imprensa. Esta transparência representou uma ameaça aos poderes constituídos, que para não causar um levante maior, diz o personagem Sami: A prefeitura me convocou. Foi organizada uma grande comissão. O artigo de Sofiani causou um terrível debate na assembleia. Ele acusa o governo de deixar o povo passar sede. Eles temem que as mulheres por todo o pais se aliem à causa por solidariedade com outras exigências além da água. Podemos concluir que as situações de hegemonia – como aquela conseguida no filme – são resultantes do desenlace de situações de crise orgânica. Assim, na medida em que as relações entre os sexos, e as relações entre religião e secularização, entre 6 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 comunidade local e governo, entraram em uma crise, é quando se encontra uma situação propícia para mudanças profundas na sociedade. Fazendo uma leitura weberiana do conflito entre a ordem estabelecida pelo sacerdócio oficial – nas figuras da mesquita local e do Imam - e aquela reclamada por Leila, pode-se ver a personagem principal como o (a) "profeta" (tiza) de Weber (2000, p. 303) entendida “aqui o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino”. Embora não haja nenhuma referência no filme à ideia de profecia atribuída a Leila, antes ela é desprezada como feiticeira, esta é outra categoria explorada por Weber, a do “mago”, mas creio que Leila enquadre-se mais com a revolucionária categoria de “profeta”. O conceito weberiano de “profeta” é bastante elástico para abarcar também a figura de Leila, não se importando queremos em “fundamentalmente entre o profeta que anuncia de novo uma revelação antiga (de fato ou suposta) e aquele que reivindica para si uma revelação totalmente nova” (2000, p. 303). Não era a intenção de Leila fundar nova religião, mas apenas reformar exatamente naquilo que considerava desumano, antiético e um descumprimento da vontade divina escrita no Alcorão – tal como outras figuras históricas como Jesus, Maomé ou Lutero que sem o pretender, fundaram novas religiões. Diz Weber (2000, p. 305) que “não é a intenção do próprio profeta que decide se de sua revelação nasce ou não uma nova comunidade; esta pode surgir também devido às doutrinas de reformadores não-proféticos”, ou seja, são fatores históricos (sociais, políticos, econômicos, culturais entre outros) que transcendem a esfera de controle do profeta que irão determinar o surgimento de nova ordem religiosa dissidente ou apenas uma nova adequação interna da doutrina religiosa. Para Weber (2000, p. 303) o decisivo está na distinção entre o profeta e o sacerdote – e para nosso caso entre Leila e o Imam – baseada na “vocação pessoal”, enquanto que “o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua revelação pessoal ou de seu carisma”. 7 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 Inicialmente não se pode atribuir qualquer carisma a Leila, senão aquele de enfeitiçar seu esposo (Sami) pela sua beleza e personalidade cativante, seu carisma junto à comunidade é construído a partir do momento em que levanta a bandeira de uma providência urgente aos abortos provocados por acidentes no transporte de água da fonte para a aldeia, e a consequente degradação social destas como párias – tal como Sara esposa do personagem bíblico Abraão – por se tornar estéreis e não podem mais “gerar pros seus maridos [bravos guerreiros de Atenas] os novos filhos de Atenas” – parafraseando Chico Buarque6. Tanto para os autores Míguez, Rieger e Sung (2012) – como vimos anteriormente - quanto para Weber o (a) profeta (tiza) – como a personagem fictícia Leila - surge em momentos de tensão social com o papel de poder moderador, tais quais os legisladores (aisimnetas), diz Weber (2000, p. 305): Ao contrário, ele é chamado - nem sempre, mas em regra - para exercer seu cargo quando existem tensões sociais. Isto ocorre com muita frequência quando se apresenta a situação típica, a mais antiga por toda parte, na qual se exige uma "política social" planejada: [...] O aisimneta deve reconciliar os estamentos e criar um novo direito "sagrado", vigente para sempre e divinamente confirmado. Os (as) profetas (tizas) weberianos (as) são interessados em problemas políticosociais. Diz Weber (2000, p. 305) que estes (as) “Advertem aqueles que oprimem e escravizam os pobres, acumulam cada vez mais terras, violam a jurisdição em troca de presentes”. Não é esta a crítica de Leila? Da opressão e escravização das mulheres em condições pauperizadas e “melindrosas” como a gestação e o casamento arranjado? Conceitua ainda Weber (2000, p. 306) que é específico na categoria de “profeta”, estes (as) assumam suas missões não por serem encarregados e empossados nesta função pelas autoridades (políticas, militares e/ou religiosas) mas o fazem por usurpação do poder constituído – até aqui nossa amotinada e subversiva líder Leila bem se enquadra na categoria weberiana de “profeta” - sob a alegação de suposta “revelação divina e preponderantemente para fins religiosos, e sua propaganda religiosa típica segue o caminho oposto ao da política religiosa” – neste aspecto não há qualquer 6 HOLANDA, Chico Buarque de; BOAL, Augusto. Mulheres de Atenas. Letra de canção popular composta para a peça de Augusto Boal “Mulheres de Atenas”. Gravada no álbum “Meus caros amigos”, de Chico Buarque de Hollanda [Música], 1976. 8 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 menção implícita ou explicita de uma hierofania ocorrida com Leila, aqui nossa personagem se afasta de Weber e aproxima-se mais de uma liderança feminista e classista (sindicalista) do tipo marxista e/ou gramsciana. Logo, como adverte Weber (2000, p. 306) - e serve também para a figura de Leila: se excluem do conceito todas as formas até aqui mencionadas, muitas vezes bastante próximas dele, arte da categoria dos profetas por não pretenderem atuar em virtude nem de uma revelação substancialmente nova, nem muito menos de um encargo divino especial, [...] a falta da efetiva prédica emocional, a qual, ocorra ela ora1mente ou em forma de panfletos ou revelações propagada por escrito [...] Estes estão sempre mais próximos dos demagogos ou dos publicistas políticos [...]. 4. Da Educação como Instrumento Revolucionário É por isso que a estas camadas de excluídos – em especial às mulheres – nega-se ou dificulta-se o acesso à cultura letrada para que não possam acessar informações privilegiadas na literatura – como a perspicácia de uma Scheherazade, personagem feminina do clássico "Mil e Uma Noites", a qual consegue se livrar da morte e opressão do sultão que matava diariamente uma das mulheres de seu harém, ou como ousadia da personagem também feminina Lisístrata, nome homônimo de uma comédia escrita por Aristófanes7 no ano 411 AEC, que organiza entre as mulheres atenienses uma greve de sexo até que seus maridos parem a guerra e estabeleçam a paz. Foi de maneira intencional que o diretor Mihaileanu colocou como personagens principais um professor e uma jovem alfabetizada, pois para ele (Agência O Globo, 2012): O analfabetismo é sempre um fantasma social. E ninguém, num âmbito institucional, representa melhor a luta em prol da educação do que as mulheres. Basta você pensar no arquétipo clássico de família: são as mulheres que zelam pela formação dos filhos [...] Depois das minhas visitas ao Brasil, eu me dei conta de que o maior desafio de vocês, mesmo com todo o desenvolvimento econômico alcançado na década passada, é a educação. 7 Disse o diretor em entrevista à Agência O Globo (2012) “Voltei a Aristófanes para buscar seu humor preservando a dimensão política do gesto daquelas mulheres. A atitude delas foi uma afirmação de poder pelo sexo. Era um gesto que servia para criar uma alegoria cinematográfica sobre a recente ascensão feminina à liderança governamental de vários locais em diversos países.” 9 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 A falta de energia elétrica no vilarejo tornava a leitura e escrita além do aspecto de superação, pois na sua ausência usavam lanternas de mineração nas testas, mas o ar de clandestinidade, de resistência à proibição do ato de ler. Sami e Leila leem as páginas de "Mil e Uma Noites", à noite em seu quarto privativo. Sami transcrevendo a opinião da comunidade confessa: “Eles dizem que fiz mal em ensina-la a ler. Que despertei o diabo dentro de você.” A escrita também é clandestina, principalmente quando Leda escreve para sua cunhada correspondências de amor. A prática da escrita é por vezes insinuada como poderoso instrumento de autoridade, um tom de protesto, de manifestação anônima de insatisfação, na “pichação” da parede do bar – sede do reduto masculino, ou na manifestação declarada pela reprodução da fonte d’água em galhos secos de espinheiros com uma “faixa” com dizeres de ordem. É também às escondidas que Sami prepara Leda para enfrentar o Imam da comunidade, escolhendo trechos do Alcorão que demonstram a igualdade entre os sexos: “Em nome de Deus, o misericordioso. Homens temam seu Senhor que os criou a partir de um só ser, e dele criou sua esposa.” Lembremos que Antônio Gramsci (1891-1937), pensador marxista italiano, foi um defensor da escolarização aos filhos dos trabalhadores, como forma de o acesso à cultura. Assim definem Rosana Mara C. Rodrigues e Antônio Dias Nascimento (2011) a contribuição de Gramsci para a educação em busca da hegemonia: Enquanto os marxistas clássicos afirmavam que a escola estava fadada a reproduzir as desigualdades sociais produzidas pelo sistema capitalista, Gramsci acreditava que ela poderia ser transformadora, à medida em que se ofereçam às classes subalternas os meios necessários para que, após uma longa trajetória de conscientização e luta, esta se organizassem e se tornassem capazes de assumir o comando da sociedade. 5. Da Busca da Hegemonia Diz Antonio Gramsci que a busca da hegemonia perpassa pela conquista de intelectuais, chamados orgânicos. Tomemos de empréstimo o conceito de hegemonia de Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 41): 10 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 Em nossa concepção, a hegemonia é uma dimensão da construção social, onde entram em jogo os fatores que provocam a dominação, que opera no campo do político e da cultura política, e nesse espaço intermediário em que se gera a relação entre o político e a subjetividade, tanto individual como na criação dos sujeitos coletivos, dos sujeitos que se tomam atores sociais e atores políticos. Não equivale a domínio ou a imposição, e sim ao consenso internalizado do domínio, a participação do dominado no espaço ideológico do dominante, assumindo-o como sua própria construção ideológica: "a ideologia dominante e a ideologia do dominado", no sentido em que a simbólica dominante é integrada na expressão também daqueles que ficam subalternizados, e terminam incorporando esta simbólica em seu próprio imaginário. Não e a simples aceitação resignada do domínio, e sim uma incorporação ativa que introduz a cosmovisão, o "espirito" da dominação como ethos dominante. O conjunto social opera segundo a simbólica que geram as forças hegemônicas, de tal maneira que mesmo aquilo que parece diverso e expresso na simbólica dele; por isso é totalizante [Grifos nossos]. Como se pode perceber, não é simples a ação contra ideológica em busca de uma nova hegemonia, mesmo dentre grupos oprimidos, pois estes já incorporaram o discurso dominante que legitima como natural e divino mesmo aquelas condições mais degradantes – como aquelas vividas pelos dalits na Índia, cuja identidade “tem sido construída e reforçada ao longo de gerações em um contexto indiano regido por esses critérios, que determinam todos os aspectos da vida dos dalits, incluindo educação, adoração, ocupação, moradia e casamento” (DA FONSECA, 2012, p. 658). No filme, a estrangeira e rejeitada Leila, tratada de feiticeira e de pária por ter abortado e não ter condições de procriar, para conseguir a adesão incondicional do grupo de mulheres buscou a apoio e aliança com a velha anciã (curandeira) da aldeia (velha fuzil). Muitas mulheres incorporavam o próprio discurso dominante (o “espírito do império”), reproduzindo um forte preconceito da sociedade contra elas próprias. Mas para conquistar seus objetivos, a Leila precisou conquistar o próprio esposo, que após alguns vacilos (a ameaça de desemprego, de traição por Leila ter escondido o namoro anterior ao casamento, a ameaça de mal estar com os pais) defendeu a reivindicação das mulheres em sua própria casa, na sinagoga local, em seu local de trabalho (a escola primária), na prefeitura e na imprensa. 11 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 É por Sami, o professor e esposo de Leila, que conquista parte da ala masculina da aldeia, a mais jovem e mais liberal que rivaliza com a outra ala, a dos mais velhos e conservadores, representantes de uma estrutura tradicionalmente patriarcal, que leva em conta também os preceitos islâmicos. E aqueles que se mostram tolerantes passam a ser hostilizados pelos mais velhos do grupo. O próprio irmão mais velho de Sami espanca e estupra sua esposa todas as noites, na presença dos filhos que dormem no mesmo compartimento. Ainda mais decisiva foi a conquista do intelectual orgânico, que cumpre o papel de jornalista. A princípio ela rejeita a ideia (dada pela velha fuzil) de pedir esta adesão ao ex-namorado. Mas a intervenção do ciumento esposo Sami, o jornalista consegue a publicação da matéria na impressa, fato este que desencadeará na mobilização da prefeitura para a canalização urgente da água da para a aldeia. De certa forma também a conquista da neutralidade do Imam chefe, foi importante para o movimento. Leila sendo alfabetizada pode advogar a causa “feminista” provando que no próprio Alcorão havia bases para um tratamento mais igualitário entre homens e mulheres. 6. A Religião como Espaço e Fator de Coesão Social Embora oprimidas pela religião o grupo de mulheres resguardava para si espaços de interação e convivência grupal, onde a religião era mais “um cimento” social a manter a coesão social mesmo sob as mais terríveis condições para elas. O que é o Islã? [pergunta Leila ao Imam] E a sabedoria santa do profeta? O que é a religião? É a feliz comunhão com Alá? O Islã nos dá regras de vida em comunidade, respeito e amor, e sacia nossa cede de espiritualidade, e nos eleva a todos os homens e mulheres... Para Eliade (1992, p. 18) a vida em sociedade se dá em dois tipos de espaço, o sagrado que para o homem religioso este é heterogêneo apresentando porções qualitativamente (simbolicamente) diferentes das outras; e o profano que é homogêneo e neutro, sem nenhuma diferenciação qualitativa, entretanto ressalva o autor: É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do 12 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. Isto ficará mais claro no decurso de nossa exposição: veremos que até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. Assim são os espaços das assembleias na sala de banho, na fonte e no local coletivo de lavar roupa, espaços estes reservados, onde elas fazem as suas várias tarefas diárias, sem ter os homens por perto. Outro espaço de coesão do grupo, dividido sexualmente, é o espaço das manifestações musicais. Espaço, por vezes, de protesto e reivindicação, e outras vezes de descontração e rivalidade ou a manifestação da tristeza e lamentos da condição feminina. Considerações finais Com tantas revoluções sangrentas que raiam no horizonte de uma “primavera árabe”, onde rebeldes lutam e matam seus próprios irmãos das forças aliadas a governos ditatoriais de despóticos na Tunísia, no Egito, na Síria e em outros países muçulmanos, o diretor de “A fonte das mulheres” acredita que as mulheres “têm a habilidade de encarar crises preservando sempre o bem-estar de seus pares. É assim em casa, é assim no governo, vide os exemplos de Indira Gandhi e Golda Meir” (Agência O Globo, 2012). Quem sabe se Aristófanes não tinha razão, e as mulheres, com sua “serenidade” e seu dom de seduzir e encantar, consigam concretizar a utopia que sonhou Geraldo Vandré, em seu clássico musical (Para não dizer que não falei das flores): “ E acreditam nas flores vencendo canhão”. REFERÊNCIAS A FONTE DAS MULHERES (La source des femmes) Direção: Radu Mihaileanu. Bélgica/ Itália/ França: Paris Filmes, 2011 [produção]. 1 filme (135 min). AGÊNCIA O GLOBO (2012). A fábula do poder feminino em 'A fonte das mulheres'. Disponível em:< http://br.noticias.yahoo.com/f%C3%A1bula-poder-feminino-fonte-dasmulheres-102100076.html>. Acesso em: 22 março.2013. 13 Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 ARISTÓFANES. Lisístrata. Disponível em:< http://www.encontros dedramaturgia.com.br /wpcontent/uploads/2010/09/Arist%C3%B3fanes-LIS%C3%8DSTRATA.pdf >. Acesso em: 22 março.2013. DA FONSECA, Gabriela Torres. Teologia Dalit. La teología de la liberación en prospectiva, p. 658-669. Disponível em:<http://www.elpuente.org.mx/wp-content/uploads /2013/01/Libro-ICongreso-Continental-de-Teolog%C3%ADa-San-Leopoldo-Brasil.pdf# page=660>. Acesso em: 11 maio.2013. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. (Tradução de Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 1992. HOLANDA, Chico Buarque de; BOAL, Augusto. Mulheres de Atenas. Letra de canção popular composta para a peça de Augusto Boal “Mulheres de Atenas”. Gravada no álbum “Meus caros amigos”, de Chico Buarque de Hollanda [Música], 1976 (CD). IMPÉRIO: novas perspectivas em política e religião. São Paulo: Paulinas, 2012. MÍGUEZ, Nestor; RIEGER, Joerg; SUNG, Jung Mo. PARA ALÉM DO ESPÍRITO DO PIERUCCI, Antonio Flávio. REENCANTAMENTO E DESSECULARIZAÇÃO: A propósito do auto-engano em sociologia da religião. NOVOS ESTUDOS N.° 49, NOVEMBRO DE 1997. RESENDE, Lino Geraldo. Intelectuais orgânicos e contra-hegemonia. Revista Agora, Vitória, n. 4, p. 1-17, 2006. Disponível em:<http://www.ufes.br/ppghis/agora/ Documentos/Revista_4_PDFs/Lino%20Geraldo%20Resende%20-%20%C3%81gora_4.pdf>. Acesso em: 11 maio.2013. RODRIGUES, Rosana Mara Chaves; NASCIMENTO, Antônio Dias. EDUCAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E LIBERTAÇÃO: Gramsci e Freire e os fundamentos teóricos da proposta de educação do MST. Disponível em:<http://www.ieppecpb2011.xpg.com.br/conteudo/GTs/GT%20-%2001/07.pdf>. 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