Revista Época Online – 22 de janeiro de 2007
De quem é a culpa?
A tragédia em São Paulo foi provocada por uma soma de erros. Eis os principais pontos
Leandro Loyola, Wálter Nunes e Solange Azevedo
Apenas alguns segundos foram suficientes para produzir uma cratera de 80 metros de
diâmetro e milhares de toneladas de entulho, mas será necessário muito tempo para
descobrir o que provocou o maior acidente da história da construção de metrô no Brasil.
Desabamentos são relativamente comuns em obras do gênero. A regra, no entanto, é que
os primeiros sinais sejam notados dois ou três dias antes de o episódio ocorrer, o que
possibilita a retirada dos operários e a interdição da área. O que aconteceu em São Paulo
configura uma trágica exceção. O primeiro sinal de que algo estava errado - um
rebaixamento de 12 milímetros do teto de um túnel - foi notado na quinta-feira à tarde
por funcionários do consórcio Via Amarela, formado pelas empreiteiras OAS,
Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez, responsável pela
construção do trecho. Na sexta-feira, às 14h15, os operários ouviram o primeiro
estampido. Às 14h45, ocorreu a tragédia que fez pelo menos seis vítimas na construção
da Estação Pinheiros da Linha 4 do Metrô de São Paulo.
O desastre entra para um rol de raridades na história da engenharia. Há pouquíssimos
precedentes conhecidos - entre eles, casos em Londres, Seul, Los Angeles, Porto e
Cingapura. Acidentes assim só ocorrem quando há uma conjunção incomum de erros de
projeto, de execução da obra e de outros fatores de risco. "Eu vi os registros que
indicavam o rebaixamento de 12 milímetros", diz Tarcísio Celestino, professor da
Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas do país em construção de
túneis. "Eles estavam dentro dos padrões. Já vi alertas maiores que não deram em nada."
Os engenheiros responsáveis decidiram que seriam instalados tirantes (barras de aço)
para reforçar a estrutura. Quando isso começou a ser feito, na sexta-feira 12, equipes de
engenheiros notaram trincas na estrutura e pedras começaram a cair. Rapidamente, tudo
desabou. Os operários na obra escaparam correndo. "Não é normal uma ocorrência
dessa magnitude ser súbita", afirma Roberto Kochen, professor da USP e diretor do
Instituto de Engenharia de São Paulo. "Um acidente dessa complexidade só acontece
quando vários fatores ocorrem simultaneamente."
O terreno onde está sendo construída a estação é o antigo leito do Rio Pinheiros,
formado por uma camada de argila mais perto da superfície. Logo abaixo vem um leito
de areia de 7 metros de profundidade e, em seguida, rocha no fundo (veja o infográfico
com os destaques do acidente à pág. 40). É um terreno difícil, onde as rochas s são
formadas por um tipo de granito muito fragmentado. Essa condição torna a escavação
dos túneis do Metrô um trabalho mais complicado - mas é totalmente possível fazê-la
sem riscos. Por causa do terreno, o consórcio trocou o método de perfuração. Em vez de
usar o "tatuzão", máquina com um disco formado por vários dentes que corta o terreno
em forma de túnel, optou pelo uso de escavadeiras, uma perfuratriz e explosivos para
abrir as rochas. "Os dois métodos de escavação são eficientes", diz Tarcísio Celestino.
Técnicos do consórcio afirmam que o tatuzão só é usado em longas distâncias e com
largura menor. Por isso, teriam usado o sistema com escavadeiras. Essa técnica serve
para distâncias menores e túneis mais largos.
Entre as causas a ser investigadas pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) escolhido para fazer o relatório técnico do acidente - e pelo Ministério Público paulista
estão a qualidade do material utilizado na obra, problemas não detectados no solo,
possíveis negligências no trabalho de medidas preventivas e até a chuva. Em geral,
obras subterrâneas como as do Metrô seguem um projeto básico, que vai sendo
reexaminado. Se necessário, ele é modificado a cada metro devido às condições do
terreno. Equipes de segurança precisam fazer leituras até quatro vezes por dia para saber
se é seguro continuar o trabalho. Cabe ao IPT averiguar em quais etapas desse processo
houve falhas.
Esse tipo de investigação costuma ser complicado e leva muito tempo. Às vezes, dá
resultado. Outras, não. Em 2001, uma mulher morreu na cidade do Porto, em Portugal,
quando sua casa desabou devido à construção de um túnel do metrô da cidade. Apesar
de os laudos técnicos indicarem falhas no estudo do solo da área, apenas na semana
passada o Ministério Público português decidiu que as provas eram insuficientes. Seis
anos depois, o caso foi arquivado. Em 1994, um túnel desabou em Londres durante a
construção de ligação de metrô entre a Estação de Paddington e o Aeroporto Heathrow.
A comissão de investigação recomendou medidas de segurança que resultaram na
redução pela metade das mortes em acidentes de trabalho na construção civil. No caso
de São Paulo, ninguém arrisca dizer quanto tempo esse trabalho vai demorar e se ele
resultará em alguma evolução para o futuro.
ANTES E DEPOIS
Em 1 minuto e 50 segundos, a obra da Estação Pinheiros da Linha 4 do
Metrô de São Paulo (foto menor) transformou-se em uma gigantesca cratera
de 80 metros (foto maior, feita no dia do desmoronamento). Toneladas
de escombros soterraram veículos e mataram pelo menos seis pessoas.
O desastre é o maior ocorrido em obras de metrô no Brasil
Na semana passada, ÉPOCA ouviu especialistas em engenharia para tentar obter
respostas para as dúvidas que serão objeto da investigação. Eis as principais:
1. Houve economia de material?
Uma das hipóteses que serão investigadas é o uso de material de qualidade inferior, que
poderia ter provocado a ruptura do teto da estação. Há denúncias de engenheiros que
trabalharam na obra de que havia uma determinação das empreiteiras para que os
responsáveis pelas equipes de trabalho economizassem o máximo possível em cada
etapa. "A preocupação maior passou a ser o preço, e não a qualidade", disse um
engenheiro a ÉPOCA, sob a condição de não ser identificado. "Em alguns casos, usavase menos material do que determinava o projeto." A lógica desse processo é que, devido
ao preço da obra ter sido fechado, a empreiteira não poderia pedir aumentos. Ou melhor,
já havia pedido uma complementação de verba - que foi negada. Engenheiros do
consórcio responsável pela obra do Metrô disseram que houve alteração no método de
perfuração porque as empreiteiras constataram que o tipo de solo do local da obra não
era o especificado no contrato. No lugar de rochas sólidas (biotita gnaisse), o que havia
sob a superfície eram pedras apodrecidas (saprolito gnaisse). As empreiteiras disseram
que, por causa da diferença no solo, materiais e métodos tiveram de ser substituídos. As
paredes do túnel teriam de ser presas por cambotas metálicas (arcos de metal que
contornam o túnel), em vez dos cabos chumbados na parede, como previa o projeto
básico. As mudanças, segundo as empreiteiras, teriam resultado num acréscimo de 25%
no custo da obra. No ano passado, o consórcio responsável pelas obras da Linha 4
protocolou um pedido de acréscimo de R$ 200 milhões ao Metrô. O governo do Estado
não aceitou.
O presidente do Metrô, Luiz Carlos David, não acredita que as empreiteiras, mesmo
premidas pelo aumento de custos, tenham economizado em material de construção. "É
tudo inspecionado por empresa credenciada, e nós auditamos. Que se tenha detectado,
nada foi alterado. Mas o IPT vai fazer os laudos agora e vai comprovar isso ou não", diz
David. O consórcio Via Amarela também nega o uso de material de qualidade inferior.
2. Este é o quinto acidente na Linha 4 do Metrô paulista. Há relação entre eles?
Por enquanto, nada aponta para uma relação direta entre os acidentes anteriores e a
tragédia. Os casos anteriores foram muito menos graves. No pior deles, um operário
morreu soterrado num túnel por um desabamento de proporções infinitamente menores.
Em outro, uma casa foi tragada para dentro do túnel. Mas os dois aconteceram em
condições completamente diferentes. Segundo denúncias de engenheiros que trabalham
para o consórcio, o traço comum entre os acidentes seria a prática de dar prioridade ao
corte de custos em vez da qualidade. Um funcionário das obras da Linha 4 diz que, em
2005, uma casa desabou e três foram interditadas na região das escavações de uma das
estações do Metrô por esse motivo. "O terreno afundou porque ali o material usado foi
insuficiente. As paredes do túnel que estava sendo construído deveriam ser mais
espessas, com o dobro do concreto projetado", diz ele. O consórcio Via Amarela nega
qualquer relação entre os acidentes.
3. Houve negligência na fiscalização pública?
Provavelmente sim, de acordo com vários especialistas. Eles afirmam que a fiscalização
da obra por parte do governo era branda. A razão disso é o tipo de contrato adotado,
conhecido pela expressão em inglês turn key, que significa "vire a chave". Essa
modalidade de contrato é recomendada pelo Banco Mundial (Bird), que financiou R$
209 milhões nessa obra, com o objetivo de evitar aditamentos que encareçam a
construção - e, assim, minimizar a corrupção. Nesse tipo de contrato, a empreiteira tem
de entregar ao governo a obra pronta, por um preço fechado. Ela é responsável inclusive
pela fiscalização técnica do trabalho. "A fiscalização do governo, nesse caso, é mais
gerencial", afirma o engenheiro Roberto Kochen. Isso quer dizer que os engenheiros do
Metrô se preocupam mais em checar se a obra foi entregue e se está no prazo. Nas obras
anteriores do Metrô, a fiscalização era diferente. Ao final de cada etapa, o trabalho da
empreiteira sofria uma inspeção técnica, e depois tinha de ser aprovado por um fiscal do
Metrô. Só com a aprovação do fiscal era possível s passar para uma etapa seguinte. "As
empreiteiras reclamavam porque atrasava a obra. Era freqüente a construtora ter de
refazer o trabalho por irregularidade", diz Manuel Xavier, diretor do Sindicato dos
Metroviários de São Paulo. "Hoje, o técnico do Metrô só faz a medição para o Estado
poder pagar pela obra." O presidente do Metrô, Luiz Carlos David, nega que o Estado
não fiscalize as empreiteiras. "A fiscalização da Linha 4 tem gerência específica com 50
pessoas. São 32 engenheiros, nove técnicos especializados, fora a equipe de gerência de
projetos do Metrô que, no geral, tem 120 pessoas", diz ele. O IPT e o Ministério Público
vão verificar se essa fiscalização era acurada.
4. Houve negligência na fiscalização por parte das empreiteiras?
É possível que sim. Um técnico que trabalhou na obra diz que o corte de custos costuma
recair sobre a fiscalização interna. "Nós sabíamos que alguns técnicos estavam
sobrecarregados. Eles eram responsáveis por várias áreas e não poderiam dar a atenção
que cada região merecia", afirma um engenheiro. O fato de os fiscais serem contratados
pelo próprio consórcio é colocado sob suspeição por especialistas. "Seria importante ter
um grupo de especialistas independentes, com poder decisório na obra", diz o
engenheiro Paulo Helene, diretor do Instituto Brasileiro do Concreto.
5. As empreiteiras erraram em não ter avisado o poder público do perigo?
Segundo a Defesa Civil, sim. A Secretaria Estadual de Transportes e o Metrô dizem não
ter sido alertados pelo consórcio sobre a possibilidade de um colapso. "A empresa
deveria ter acionado um plano para que os moradores do local fossem avisados do
problema", afirma o coordenador da Defesa Civil, Jair Paca. De acordo com a Defesa
Civil, se as autoridades tivessem sido avisadas, teria sido possível bloquear a rua e
alertar os pedestres e veículos que trafegavam pelo local, talvez evitando as mortes. Em
abril do ano passado, oito casas na Rua João Elias Saada, em Pinheiros, foram
evacuadas por problemas de rebaixamento de teto de um túnel em outro trecho da Linha
4. Na ocasião, o consórcio providenciou a remoção imediata dos moradores. Outro fato
a ser levado em consideração é que, em agosto, o Metrô admitiu que as obras da Linha 4
eram problemáticas e mereciam atenção redobrada. O parecer consta de um relatório
solicitado pelo Ministério Público na ocasião.
6. Houve negligência no resgate?
Não. A operação foi lenta devido ao solo instável, que se movia e lançava cada vez mais
escombros sobre o microônibus soterrado. "As condições eram extremamente
perigosas", diz o coronel Cláudio Teixeira, comandante operacional do Corpo de
Bombeiros de Minas Gerais e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. "Do
ponto de vista objetivo e racional, não se justificava correr o risco de produzir novos
cadáveres." Teixeira afirma que seria praticamente impossível as vítimas terem
sobrevivido à tragédia. Ele diz que a aposentada Abigail Rossi de Azevedo, de 75 anos,
teria uma chance em 10 mil de sobreviver se tivesse sido resgatada em menos de dez
minutos. Ela teve o corpo todo soterrado e não havia espaço para respirar. Abigail só foi
localizada no quarto dia de buscas.
Os ocupantes do microônibus parecem também não ter tido chance. O veículo foi
encontrado retorcido e com o vidro traseiro quebrado, o que provocou a entrada de terra.
Em casos de terremotos, as chances de haver sobreviventes são maiores, já que bolsões
de ar são formados nos vãos dos escombros. As famílias das vítimas reclamam que as
autoridades demoraram a aceitar que o microônibus havia sido tragado pela cratera,
mesmo após relatos de várias testemunhas, e que isso teria atrasado as buscas. "Isso
pode ter atrapalhado na avaliação do cenário e retardado a definição de prioridades. Mas
não mudaria o resultado", diz o coronel Teixeira.
7. Quem mora perto de uma obra do Metrô tem motivos para ter medo? E quem
anda de metrô?
O acidente do dia 12, como já se disse, foi uma exceção entre exceções. Uma estação do
Metrô só entra em operação depois de passar por várias inspeções. Não há registro de
acidentes graves de metrô no Brasil. O usuário do transporte público não precisa ter
medo. Em relação aos moradores de áreas próximas das obras do Metrô, é desejável,
como aponta o item anterior, que as concessionárias alertem o Poder Público ao
primeiro sinal de perigo. Mesmo assim, não há razão para pânico. "Nós convivemos
com obras do Metrô por toda a cidade e isso não é motivo para medo", afirma o
engenheiro Tarcísio Celestino, da USP.
8. Será possível descobrir as causas do acidente por meio do laudo do IPT?
Talvez sim, talvez não. O ideal é que investigadores das causas dos acidentes sejam
auditores externos independentes - e o IPT, ligado à Universidade de São Paulo, tem
vínculos com o governo do Estado. O problema é que, no Brasil, os maiores
especialistas em obras desse tipo trabalham ou prestam consultoria para as grandes
empreiteiras do país. José Luiz Portella, secretário de Estado dos Transportes de São
Paulo, diz ter autorizado a contratação de consultores nacionais e internacionais de fora
do IPT para dar ao laudo "mais credibilidade". "A secretaria ainda solicitou que haja a
contratação de uma empresa internacional para certificar o laudo e auditá-lo", afirma
Portella.
9. Há chances de as vítimas ganharem as indenizações? Quem será
responsabilizado?
Sim. Juristas afirmam que as famílias dos mortos e todos os que se sentirem
prejudicados pelo desabamento podem pleitear indenizações por danos morais e
materiais e lucros cessantes. Eles recomendam que as ações sejam individuais, já que as
coletivas costumam retardar o andamento do processo. O Consórcio Via Amarela, o
Metrô e o governo do Estado podem ser acionados, mas, do ponto de vista prático, vale
mais a pena processar o consórcio. "São empresas sólidas, que têm patrimônio e
condições de pagar", diz o advogado Leonardo Amarante, que trabalha para as famílias
de mortos nos acidentes do barco Bateau Mouche, no Réveillon de 1989, e dos
acidentes aéreos da TAM, de 1996, e da Gol, no ano passado. Mas é preciso estar
preparado, porque os processos são longos. Os moradores do edifício Palace 2, que
desmoronou no Rio de Janeiro em 1998, até hoje brigam na Justiça por indenização.
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