ESTARÁ O DESTINO DO BRASIL POR UMA CANETADA?
Ruben Bauer Naveira
A canetada em questão é declarar inidôneas as empreiteiras corruptoras da Petrobras, e assim
suspender todos os seus demais contratos pagos com dinheiro público.
Uma vez que no Brasil essas empresas respondem pela quase totalidade das obras públicas de vulto,
declará-las inidôneas significa desorganizar, em alguma medida e por algum tempo, a economia do
país, acarretando preços a serem pagos tanto a curto (desemprego) quanto a médio prazo
(crescimento).
Ninguém, em sã consciência, deseja algo assim. Mas, e quanto ao preço do descrédito nas
instituições (sim, ainda não chegamos ao fundo do poço) como consequência das ações e pressões
dos agentes do Estado para salvar as empreiteiras?
E se de todo modo elas forem declaradas inidôneas? Pode-se adotar medidas que atenuem o
impacto? Pode-se procurar chegar a algum benefício em meio aos prejuízos?
Procurar responder tais perguntas de forma intelectualmente honesta (o propósito deste artigo é
contribuir para isso) seria do mais alto interesse nacional. Não é o que vem ocorrendo, infelizmente.
Tem-se abusado da expressão “parar o país”, não apenas simplista mas de óbvio impacto psicológico.
Com que intuitos? Alertar a opinião pública, ou amedrontá-la?
Encarar a Realidade
Por mais que se deseje que a economia não padeça nenhuma desorganização, recusar admitir a
hipótese de que isso aconteça não deveria ser uma opção. Vejamos: quase todo o dinheiro para
obras públicas (da União, estados e municípios) encontra-se contratado às empreiteiras investigadas.
Quase todo ele embute superfaturamento (ninguém carece de mais revelações como as da operação
Lava-jato para estar seguro disso). Não é à toa que, a partir dos indícios já constatados com base na
Lava-jato, a Polícia Federal afirmou já estar se preparando para abrir noventa e cinco novos
inquéritos, que demandarão, no mínimo, quinze novas operações...
Uma obviedade até aqui despercebida vai-se revelando: a partir do momento em que as
empreiteiras forem declaradas inidôneas, elimina-se a totalidade desses superfaturamentos (porque
cancelam-se todos os contratos em vigor). Vai-se tornando cada vez mais evidente que salvaguardar
os contratos significa salvaguardar também o status quo histórico da corrupção.
A pergunta de um zilhão de reais é: o que a sociedade iria preferir? Pagar o preço (conjuntural) de
uma desorganização da economia, ou pagar o preço (estrutural) de se preservar o status quo da
corrupção no país?
É claro que a maioria das pessoas não dispõe de uma noção prévia acerca dos sacrifícios a serem
incorridos no caso de uma desorganização da economia, logo, o mais correto seria o Estado dirigir-se
às pessoas com franqueza e transparência. Winston Churchill, em seu primeiro discurso após ter sido
nomeado primeiro-ministro para comandar a guerra contra o nazismo, anunciou aos britânicos que
nada lhes prometia além de sangue, suor e lágrimas. Não poderia a luta do país contra a corrupção
ser considerada também uma guerra (que atravessa séculos: o primeiro tratado sobre a corrupção
no Brasil, A Arte de Furtar, foi escrito pelo padre Antonio Vieira no ano de 1652), impondo sacrifícios
a serem padecidos como em qualquer guerra de verdade? Quanto mais as pessoas forem
respaldadas como cidadãos em vez de tuteladas como se incapazes fossem, mais elas se predisporão
a serem chamadas a dividir responsabilidades.
No que se refere à magnitude da desorganização da economia, quem pode de antemão afirmar que
será mesmo catastrófica? Em função das ações (preventivas e corretivas) que viermos a adotar desde
logo, porque não poderá haver no fim das contas meramente um freio de arrumação (coisa que um
economista chamaria de destruição criativa)?
Rompendo o Círculo Vicioso
Façamos agora uma suposição, e digamos que a nossa expectativa seja a de que as empreiteiras
acabarão mesmo declaradas inidôneas. Apresenta-se a seguir então um livre exercício de
imaginação, no intuito de mostrar que um futuro do qual só se consegue sentir medo pode acabar
por se revelar não apenas palatável como também portador de benefícios surpreendentes.
Um benefício óbvio para o governo será assumir o protagonismo na luta conta a corrupção, pois um
esforço para salvar as empreiteiras seria uma versão abrasileirada do “too big to fail” dos EUA em
2008 (aqui no Brasil poderia ser chamado “too big to jail”...), quando trilhões de dólares dos
contribuintes americanos foram malversados para salvar bancos falidos. Promover algo assim aqui
no Brasil seria passar uma mensagem negativa de complacência com a corrupção, quando se deve
buscar justamente o oposto. Ou: se o governo perderá na economia (emprego, crescimento) ele
ganhará na política (credibilidade).
Na economia, para que se perca menos, o lapso de tempo para a retomada das obras de
infraestrutura deverá ser o menor possível. Isso requererá duas condições: 1) que novos contratos
sejam firmados; e 2) que haja empreiteiras em condições de firmá-los. Examinemos ambas, a
começar dos novos contratos.
Não seria interessante para todos os governos (também dos estados e municípios) que a
recontratação das obras se desse da forma mais ágil e rápida possível? Ora, isso requer que o marco
legal facilite as coisas. Só que o marco legal existente complica as coisas. Uma legislação
simplificadora ainda terá que ser produzida.
Acontece que o Brasil acabará por exigir um novo marco legal por outro motivo, muito mais crítico:
de nada terá valido cancelar contratos fraudulentos se for para substituí-los por novos contratos
igualmente fraudulentos – tal qual um fumante que, após sobreviver a uma cirurgia para retirada de
um câncer na garganta, continuasse a fumar. O sistema em vigor encontra-se flagrantemente falido:
sofisticado, complexo e custosamente burocrático (cuja fiscalização é igualmente sofisticada,
complexa e custosamente burocrática), ilusoriamente no propósito de coibir fraudes, ele acaba por
inibir a livre concorrência privilegiando aquelas empresas especializadas não em prestar melhor os
serviços, mas em vencer as licitações (especializadas em recursos, embargos, impugnações,
liminares...), bem como favorece a que editais sejam de antemão redigidos nos termos mais
convenientes à empresa que ao final se sagrará vencedora.
A confecção de um novo marco legal precisa começar pela definição das suas premissas. Proposta:
simplicidade e transparência. Simplicidade para uma universalização, ao invés de restrição, do
acesso; e transparência para permitir fiscalização por parte de todo e qualquer cidadão (o que
reforça o requisito pela maior simplicidade possível). Se a simplicidade traz vulnerabilidade
(lembrando que a complexidade não garantiu nada, muito pelo contrário), uma transparência a
máxima possível, com empoderamento da sociedade bem como severidade na punição às fraudes
que vierem a ser descobertas, pode ser o seu contrabalanço. A simplicidade virá ainda contribuir
para reduzir a histórica ineficiência do Estado pelo seu desengessamento.
As definições para essa nova legislação devem ficar a cargo da sociedade, uma vez que os técnicos do
governo, Congresso, TCU e CGU estão por demais impregnados do espírito da legislação atual e assim
automaticamente a tomariam por referencial. Uma comissão composta de nomes inquestionáveis
por sua credibilidade conferirá respaldo da sociedade ao modelo que vier a ser concebido. Pode
parecer contraditório, acrescentar os tempos do trabalho de uma comissão aos já morosos (e
conflituosos) tempos processuais do Congresso Nacional. No entanto, tudo o que o Congresso
precisa para aprovar uma matéria em rito acelerado é de consenso, que poderá decorrer do endosso
da sociedade ao anteprojeto produzido pela comissão (coisa que o governo, se autor da proposta
fosse, não teria como angariar).
Uma vez que se almeja reduzir o lapso de tempo para retomada das obras e ainda substituir o marco
legal vigente, não há tempo a perder. A tarefa de elaboração de um novo marco legal é para ser
deslanchada de imediato, até porque o testemunho de que o marco existente fracassou já se
encontra patente diante de todos. E que não se venha alegar que a Petrobras conta com um estatuto
próprio para licitar ao largo da lei 8.666, pelo que o problema seria localizado (esse certamente será
o discurso dos defensores do status quo: avançar para uma ainda maior complexidade, ao invés de
para a simplificação). É de se perguntar: seremos todos obrigados a aguardar até que a operação
Lava-jato se desdobre às hidrelétricas, metrôs etc. (o que fatalmente acabará ocorrendo), para
atestar aquilo que todo mundo já sabe? Se já há elementos mais que suficientes para declarar a
inidoneidade das empreiteiras, fazê-lo logo poupará anos de trabalho da Polícia Federal, ministério
público e judiciário (permitindo assistir outras prioridades).
Crise É Oportunidade
Alardeia-se que, privadas de seus contratos com o poder público e impedidas de celebrar novos, as
empreiteiras irão falir. Isso é no mínimo uma meia-mentira, senão uma rematada mentira mesmo.
As empreiteiras, todas elas, recorrerão à “plasticidade acionária”. É evidente que falências haverá.
Mas não será o patrimônio que irá falir, e sim apenas um (dentre muitos) CNPJ. As participações
cruzadas serão redefinidas (os contadores terão bastante trabalho), e alguma outra razão social
(preexistente ou criada) assumirá os negócios. Como todas são negócios familiares, o patrimônio
(leia-se o poderio) permanecerá detido pelas mesmas pessoas físicas. Aos credores das massas
falidas das pessoas jurídicas declaradas inidôneas não caberá sequer o maquinário pesado
(guindastes etc.), posto que este em grande parte não foi comprado mas sim arrendado por leasing
(fato que virá favorecer a retomada do ritmo das obras no país).
Poucos teriam sintetizado tal estado das coisas com tanta argúcia como Janio de Freitas: “Nem a pior
das punições legais – a declaração de inidoneidade para qualquer transação com o setor público –
representa ameaça real para as empreiteiras [...] Fusão, remodelação acionária, partilhamento, são
muitas as maneiras de modificar a fisionomia. E, caso a pena incida sobre as pessoas de donos e
dirigentes, o testa de ferro é uma instituição prática e vigorosa. A vida não é difícil para todos” (Folha
de São Paulo, 20/11/2014).
Ainda Janio: “Nenhum dos cabeças do sistema de contratação de obras públicas por meio de
corrupção foi alcançado pela operação Lava Jato [...] a exclusão não se deve a que o jato lançado
pelos investigadores tenha orientação seletiva. ‘Executivos’ profissionais são postos nos altos cargos,
até na presidência das empreiteiras, também ou sobretudo para arcar com os riscos de complicação
pessoal e, no dia a dia, entrar com o rosto nas ações indecentes. É para dar essa fachada aos donos e
acionistas majoritários, detentores do verdadeiro comando, que os ‘executivos’ têm as elevadas
remunerações que os levam a ser audaciosos e arrogantes” (FSP, 14/12/2014).
Punir as empreiteiras não é necessariamente a mesma coisa que punir os corruptores. A sociedade
precisará aceitar que a mais severa punição possível aos corruptores (afora a prisão de um ou outro
mais imprevidente) consiste na perda da polpuda carteira de contratos superfaturados detida pelas
suas (atuais) empresas, sem que isso no entanto os impeça de vir a constituir novas carteiras. Por
isso mesmo é que a legislação tem que ser refeita – de nada adiantará cancelar contratos
fraudulentos se for para substituí-los por novos contratos igualmente fraudulentos, já foi dito aqui.
Paradoxalmente, esse não é um quadro necessariamente ruim, pois o Brasil precisa de empreiteiras.
A repaginação das atuais empreiteiras (sob novos CNPJs) afasta o risco de catástrofe que vem sendo
falaciosamente alardeado. Agora, é fato que as empreiteiras encolherão de tamanho, o que abrirá
uma gorda fatia de mercado que precisará ser preenchida a bem da retomada do país. Como de
praxe, os alarmistas (nada desinteressados) trombeteiam o risco de uma desnacionalização, pela
abertura do setor de serviços do país às empreiteiras americanas e europeias. Mas isso só ocorreria
se o governo se omitir, pois tal vazio de mercado somente necessita dos incentivos adequados para
ser naturalmente preenchido por empresas nacionais, uma vez que as condições para tanto não
poderiam ser mais favoráveis:
– Haverá abundância de demanda, ou seja, de mercado (já que a maioria dos contratos em vigor terá
sido encerrada);
– A concorrência se dará em justa medida, porque as grandes empreiteiras terão encolhido e ainda
estarão se reestruturando, além do que a instauração de um novo marco legal restringirá os riscos de
cartelização; e
– Haverá abundância da disponibilidade, no mercado de trabalho, daquele que é o ativo mais valioso
de qualquer empreiteira: os engenheiros e técnicos especializados, tarimbados por anos de
experiência, dispensados pelas empreiteiras declaradas inidôneas em busca de se recompor.
Este último ponto representa um diferencial ímpar. Pode-se dizer que montar uma nova empreiteira,
a partir do zero, sairá praticamente de graça, pois bastará atrair no mercado os engenheiros
dispensados e começar a pagar os seus salários. Aqueles que vierem a obter proveito da
disponibilidade repentina e maciça, no mercado de trabalho, de uma mão-de-obra altamente
especializada, qualificada e valiosa, terão se beneficiado de uma circunstância histórica causada não
por qualquer interferência indevida do Estado mas pelas próprias empreiteiras, como consequência
dos seus malfeitos.
É claro que caberá ao governo atuar para que esse vazio seja preenchido no melhor interesse
nacional (leia-se, por reais empreendedores ao invés de oportunistas de ocasião). Seguem quatro
propostas, como contribuição:
1.) O BNDES subsidiará, por meio de financiamento abundante e barato, as inúmeras pequenas e
médias empreiteiras que existem no Brasil (muitas das quais já atuam nas principais obras, como
subcontratadas das grandes), para que cresçam pela absorção dos engenheiros e técnicos disponíveis
no mercado.
2.) Em paralelo, o BNDES cria um programa de incentivo à constituição de novas empreiteiras
(novamente, por financiamento barato e abundante), uma vez que muitos desses engenheiros, em
especial os sêniores, terão vontade e capacidade de se associar entre si para fundar a própria
empresa.
3.) O governo deve estimular a que empresas tanto públicas (por exemplo a Petrobras) quanto
privadas (por exemplo a Vale) que são clientes habituais dos serviços das empreiteiras aproveitem a
oportunidade para se verticalizar, constituindo áreas de engenharia próprias (afinal elas já dispõem
de setores internos de especificação de projetos, de contratação de fornecedores e de
acompanhamento e fiscalização de obras) no propósito da retenção, no país e na profissão, dos
engenheiros que tiverem sido dispensados, mão-de-obra estratégica que o Brasil não pode perder.
Nesse sentido, à maior absorção deve corresponder o maior estímulo (por exemplo pela
desoneração dos respectivos encargos trabalhistas).
4.) Poderia ser promovida, de forma seletiva, uma abertura do mercado de serviços às empreiteiras
estrangeiras, exclusivamente para setores socialmente prioritários em que uma redução dos custos
seja crucial para estados e municípios (saneamento básico é o caso mais flagrante; outra
possibilidade seria mobilidade urbana).
O saldo final de todo esse processo será um Brasil em que haverá dezenas ou mesmo centenas de
empreiteiras compondo um mercado de livre concorrência, em lugar da atual situação cartelizada
por umas poucas empresas contumazmente corruptoras. O futuro do país agradece.
O Papel de cada um
Raymundo Faoro, no clássico Os Donos do Poder, dissecou a presunção do Estado em tutelar a
sociedade: no Brasil, historicamente, e sempre em nome do suposto interesse nacional maior,
vicejaram e foram salvaguardados interesses particulares menores de todo tipo.
Pois não tem sido diferente no caso atual. Declarar as empreiteiras inidôneas é algo que vem sendo
tomado pelos agentes do Estado na qualidade não de uma disposição da Lei, mas de uma escolha
discricionária. Ou seja, estaria na alçada do Estado, em nome do sempre invocado interesse nacional
maior (“não parar o país”), a prerrogativa de livrá-las de serem declaradas inidôneas.
Que o governo aja assim é até esperado, conhecida sua obstinação em defender os níveis de
emprego e perseguir o crescimento. Ao que parece, não sem constrangimentos: dispensado de
fazê-lo (uma vez que todos os ministros foram instados a escrever cartas colocando seus cargos à
disposição), o ministro da CGU Jorge Hage (o mesmo que em 2012 não hesitara em declarar inidônea
a Construtora Delta) fez questão, à la Marta Suplicy, de anunciar o seu pedido de demissão.
Mas mesmo o ministério público parece ter assimilado enquanto uma verdade axiomática a tese do
“interesse nacional maior”. Em entrevista coletiva a 11 de dezembro,1 o procurador à testa da
força-tarefa para as investigações da operação Lava-jato, Deltan Dallagnol, iniciou um raciocínio
desnudando de forma cortante e certeira o coração do problema (grifos meus): “existem indicativos
de que essas empresas não só corromperam Petrobras mas estão envolvidas em corrupção com
outros órgãos públicos. O único jeito de estancar esse esquema criminoso seria paralisar todos os
contratos com todos os órgãos públicos, administração municipal, estadual e federal” (coisa que é
automaticamente alcançada ao se declarar inidôneas as empreiteiras)...
... para, na complementação do raciocínio, assumir de forma aberta aquilo que seus pares em
entidades como o TCU ou a CGU vêm pregando de forma velada. Dizia ele, “o único jeito de estancar
esse esquema criminoso seria paralisar todos os contratos com todos os órgãos públicos,
administração municipal, estadual e federal, o que é inviável porque prejudicaria de sobremaneira a
população. A única saída, descartada essa primeira, é a prisão dos envolvidos para que o esquema
não se perpetue”. Não desmerecendo o laborioso e imprescindível trabalho do ministério público, se
procurou ponderar que a prisão “dos envolvidos” não alcançará os verdadeiros corruptores nem os
privará de seus meios de corromper.
Numa paradoxal inversão de papéis, foi do advogado de defesa de várias empreiteiras Antonio Carlos
de Almeida Castro (o “Kakay”) que se ouviu: “Dentro da normalidade, você teria de declarar essas
empresas inidôneas”.
Ativistas progressistas vêm também reforçar a tese conservadora. Luis Nassif defendeu como pena
para as empreiteiras “que seus dirigentes sejam penalizados, multados, até o limite da perda de
controle das companhias, se for o caso. Mas é importante a preservação de sua capacidade
operacional, para que a atividade econômica não seja mais penalizada ainda” (portais GGN, “O
desafio de punir dirigentes e poupar empresas”, e Carta Maior, “Punir a corrupção, não a Nação”,
ambos em 23/12/2014; grifos meus).
A intenção é louvável, mas, como se poderia impor aos donos (não os “dirigentes”, mas os acionistas
majoritários) a perda do controle das suas companhias? Não há nada na legislação que dê abrigo a
uma captura (confisco) por parte do Estado do capital acionário de uma empresa, a menos que se
queira dar razão àqueles que comparam o Brasil à Venezuela. O que a Lei dispõe é que pessoas,
sejam físicas ou jurídicas, são responsabilizáveis pelos seus atos.
1
Ver http://globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/t/todos-os-videos/v/procuradores-falam-da-importanciade-que-os-envolvidos-em-esquema-continuem-presos/3825910/ ; a fala do procurador Dallagnol está a partir de 1’27”.
Em uma nova abordagem, os defensores do status quo agora alarmam que a inidoneidade das
empreiteiras coloca em risco todo o sistema bancário. Nada porém justifica a desfaçatez de terem
divulgado uma cifra estratosférica (cento e trinta bilhões de reais) que, ardilosamente, embaralha
alhos (a dívida das empreiteiras, que tende a não ser paga) com bugalhos (a dívida da Petrobras,
empresa que obviamente não será declarada inidônea), sem sequer discriminar a proporção de cada
uma. Ainda que se admita tal risco como real, um discurso assim visa paralisar o discernimento e a
reflexão – visa paralisar a sociedade, de modo a que o Estado (como de hábito) possa sozinho
resolver o que seja “melhor” para ela.
Quanto ao risco inverso, o das empreiteiras serem salvas, ninguém parece se afligir. Há porém no
Brasil milhares de pequenas e médias empresas que por muito menos foram declaradas inidôneas
(por alguma inconsistência documental, por exemplo). Se o instrumento da inidoneidade for
desautorizado haverá insegurança jurídica, já que essas empresas acionarão o Estado alegando
isonomia (a Lei não poderá ser uma para as empreiteiras e outra para os demais) e os juízes de
primeira instância, que mais prezam as coerências jurídico-legais do que os imperativos políticos,
tenderão a lhes dar ganho de causa gerando repercussões que podem arrastar-se por décadas, com
judicialização das licitações e mesmo da execução dos contratos nos casos de litígio (afora os pleitos
por reparações).
Ainda outra nova abordagem consistiria numa invenção normativa, a figura do “acordo de leniência”,
pelo qual as empreiteiras deixariam de ser declaradas inidôneas em troca da devolução dos valores
malversados e da colaboração com as investigações. Ora, tal figura seria uma sobreposição no
âmbito do executivo – portanto algo redundante – a figura idêntica preexistente no campo do
judiciário, que é precisamente a delação premiada. A redundância serviria então para salvar as
aparências.
Mas, digamos que as empreiteiras acabem afinal declaradas inidôneas (ou seja, que os agentes do
Estado se vejam obrigados a fazer isso, mesmo contra sua vontade). O preço da tão temida
“paralisação do país” terá então que ser pago de qualquer modo, só que nesse meio tempo (quanto
tempo? meses? anos?) outros preços adicionais já estarão também sendo pagos, elevando em muito
o valor total da fatura: tempo terá sido perdido (em que o país terá ficado em compasso de espera
ao invés de cuidar logo de retomar o rumo), desgaste terá sido padecido (por todos os órgãos do
Estado, mas em especial pelo governo), e se terá abdicado do protagonismo em combater a
corrupção. Tudo isso, a troco de nada.
Evitar que as empreiteiras sejam declaradas inidôneas pode até parecer, à primeira vista, a atitude
mais sensata. Mas não se deveria desconsiderar a magnitude do significado da Petrobras (e dos
riscos de sua degradação) nos corações e mentes do povo brasileiro. Nem se deveria esquecer tão
rapidamente que milhões de pessoas tomaram as ruas, espontaneamente, em junho de 2013.
Tampouco se deveria ignorar os estados de espírito sinalizados pelo eleitorado em outubro de 2014.
São sinais de que o Brasil ingressa numa mutação, sinais de um novo zeitgeist. Darcy Ribeiro avisou
que esse tempo chegaria.
Conjecturar sobre o futuro é um exercício aberto. O que foi aqui exposto é apenas um caminho,
dentre inúmeros outros, de construção do amanhã. Se quis apenas fazer lembrar que outros futuros
são sempre possíveis, para além da obstinação em se agarrar às seguranças conquistadas no
presente. E é claro que construir o futuro sonhado requer engenho e arte: talento. Provavelmente irá
requerer também alguma dose de sorte. Ou seja, é incerto. Requer fundamentalmente, porém, algo
que tem andado escasso: firmeza de propósitos, valores, determinação para fazer o correto e não
apenas o que seja conveniente.
Vale então reiterar: nada do que foi proposto aqui teve a pretensão de fazer crer que não haverá
perdas, ou que sacrifícios não precisarão ser feitos.
O Brasil sempre foi um país em que a riqueza e o bem-estar existem para ser apropriados por
detentores de poderes econômicos em compadrio com detentores dos poderes de Estado (ter Paulo
Maluf virado ficha-limpa foi apenas um evento recente). Transformar o Brasil num país em prol da
totalidade da sua população não tem como ser um processo asséptico e indolor. Assim, mais que
falar em perdas ou sacrifícios cabe entender que se trata de uma verdadeira travessia. O que está
agora em jogo por meio das escolhas de alguns dos agentes do governo e do Estado é muito mais
que o destino deles (governo e Estado), é o destino do Brasil enquanto nação, é a definição de que
país iremos ser. Ser ou não ser esse Brasil, eis a questão. Uma nação que se faz senhora do seu
próprio destino assume, conscientemente, que empreender a travessia custa preços a serem pagos.
Estará o destino do Brasil em risco por uma canetada? Os defensores do status quo dizem que sim,
caso a canetada seja dada. Nós (me permito usar o plural) dizemos que sim, caso ela não seja.
Ruben Bauer Naveira tem 52 anos, é pai de dois filhos, tricolor de coração e cidadão brasileiro, e
agradece a Antonio Sales de Melo e Fabiano Barros da Rocha pela crítica e revisão deste artigo.
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Estará o destino do Brasil por uma canetada (1)