INTRODUÇÃO
Em 14 de outubro de 1941, Nelson Rodrigues, até então repórter pouco
conhecido, iniciou uma história em quadrinhos em parceria com o desenhista Alceu Pena para
O Globo Juvenil, revista especializada do gênero. A HQ chamava-se O Mágico de Oz,
inspirada no filme com o mesmo nome que fizera muito sucesso. O roteiro e o texto estavam a
cargo de Nelson que o escreveu dentro do seu estilo revolucionário.
Esta pesquisa histórica, documental, baseada em fonte primária, um corpus
composto de todos os capítulos, num total de 31, publicados entre 14 de outubro de 1941 e 5
de maio de 1942, tem os seguintes objetivos:
Analisar a única e desconhecida HQ de Nelson Rodrigues divulgando-a para os
estudiosos do gênero. Demonstrar que se trata de uma paródia em que é feita uma crítica
social onde os elementos dramáticos são substituídos pelo cômico. Que Nelson encarnou no
protagonista batizado de Autor e o fez viver, junto com o restante do elenco, situações
absurdas e cruéis, baseadas na experiência existencial. E, como o seu pathos fosse, na época,
desconhecido dos leitores e Nelson não enfatizasse na narrativa os princípios básicos da
literatura de massa, a HQ causou estranheza em relação as outras convencionais do Globo
Juvenil, forçando a sua interrupção repentina.
NELSON RODRIGUES
Nelson Rodrigues nasceu em Recife em 23 de agosto de 1912. Filho de Mário
Rodrigues e de Maria Esther Falcão. Seu pai, formado em direito, não exercia a profissão,
militando na política partidária e no jornalismo como proprietário do Jornal da República,
apoiando a corrente de Dantas Barreto, então governador de Pernambuco. Chegou a eleger-se
deputado mas emigrou para o Rio, quando cessou a influência daquele líder político no Estado.
No Rio, Nelson morou, desde 1916, no bairro de Aldeia Campista, um subúrbio
da Zona Norte e iniciou-se na leitura valendo-se de O Tico-tico e, posteriormente, do vasto
caudal folhetinesco das obras de Sue, du Terrail, Escrich, Montepin, Michel Zevaco e até
os fascículos de A Morta Virgem, de Hugo de América. Aos treze anos, leu Crime e
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Castigo de Dostoievski em folhetim. Em 1919 descobriu os filmes seriados e também o
futebol do qual seria um dos mais vibrantes cronistas.
Em 1925, Mário Rodrigues, que até então trabalhava para Edmundo Bittencourt
no jornal Correio da Manhã, desentendeu-se com o patrão e fundou o jornal A Manhã, onde
Nelson Rodrigues passou a trabalhar, fazendo contatos sucessivos por telefone com as
delegacias policiais, surpreendendo os colegas pela dramaticidade que imprimia aos relatos
insossos, trazidos à redação pelos repórteres itinerantes, onde já apareciam todos os
componentes de seus contos curtos, publicados com o título geral de A Vida como ela é ...,
no jornal Última Hora, a partir de 1951.
Nelson abandonou os estudos na 3ª série ginasial que hoje corresponde a 7ª do
1º grau. Em 1926, aos 15 anos, criou seu próprio jornal, Alma Infantil, de curtíssima duração.
Dois anos depois, escrevia uma coluna semanal na A Manhã, quando o pai, endividado,
perdeu o jornal para o sócio. Em novembro desse mesmo ano, Mário Rodrigues fundou seu
terceiro periódico, o jornal A Crítica, de estilo sensacionalista que lhe rendeu inúmeros
inimigos.
Quando seu irmão Roberto Rodrigues, desenhista de talento, foi assassinado na
redação por uma senhora da sociedade, envolvida num escândalo passional divulgado pelo
jornal, a tragédia abateu-se sobre a família Rodrigues. Dois meses depois da morte do filho,
Mário Rodrigues, vítima de trombose, faleceu em 15 de março de 1930. Em 24 de outubro do
mesmo ano, o jornal que sempre defendera Washington Luiz foi empastelado, deixando-os em
péssima situação financeira. Recusando-se a procurar emprego fora do jornalismo, os cinco
membros mais velhos da família ficaram sem trabalho e dona Maria Esther foi, pouco a pouco,
desfazendo-se de seus haveres, inclusive móveis e utensílios. Sempre em dívida com os
locatários, os Rodrigues eram obrigados a constantes mudanças e nos nove anos seguintes
teriam sete endereços diferentes, todos na Zona Sul do Rio.
Roberto Marinho, proprietário de O Globo e amigo de Mário Rodrigues Filho,
contratou-o em maio de 1931. Mário levou consigo Nelson e outro irmão, Jofre, que
inicialmente não receberiam pagamento. Em 1932, Nelson teve a sua carteira assinada e passou
a receber 500 mil réis mensais para trabalhar como redator de esportes.
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Em 1934, Nelson, tuberculoso, licenciou-se de O Globo e ficou até meados de
1935 internado em um sanatório em Campos do Jordão. A partir de então iria conviver com a
doença durante 15 anos até tratá-la definitivamente com estreptomicina em 1949. Jofre, o
irmão mais querido de Nelson, morreria do mesmo mal em dezembro de 1936, causando-lhe
grande depressão e seu retorno ao sanatório, em fevereiro de 37. Nos meados desse ano,
retornou ao Globo e conseguiu transferência para O Globo Juvenil, um tablóide de HQ
recentemente fundado por Roberto Marinho. Acometido por novo surto de tuberculose em
1939, voltou a Campos de Jordão por quatro meses. Em 29 de abril de 1940, casou-se com
uma datilógrafa de O Globo Juvenil, Elza, voltando a residir na Zona Norte, no Engenho
Novo.
Em 1941, Nelson resolveu escrever a peça A Mulher sem pecado. Com família
e precisando reforçar os seus 500 mil réis semanais, conseguiu convencer Djalma Sampaio a
adaptar para os quadrinhos uma história americana, O Mágico de Oz, que tivera um sucesso
fantástico no cinema, estrelado por Judy Garland. O ilustrador seria Alceu Penna.
A Mulher sem pecado só foi encenada em dezembro de 1942 e, apesar de
elogiada por Mário Bandeira e Álvaro Lins, ficou apenas duas semanas em cartaz.
Nelson Rodrigues escreveu a seguir Vestido de Noiva, em janeiro de 1943. Uma
peça complexa, com simultaneidade de planos, ora na realidade, ora na memória, ora na ação
da protagonista, uma mulher chamada Alaíde. Tudo era tão inovador que o espectador podia
perder a noção de quando se tratava de realidade, memória ou alucinação. Um desafio para a
platéia, Vestido de Noiva foi um sucesso total e consagrou seu autor, tornando-o famoso de
uma hora para a outra.
Contratado logo depois pelos Diários Associados, Nelson deslanchou também
na carreira de folhetinista com Meu destino é pecar, assinado com o pseudônimo de Suzana
Flagg no O Jornal.
Quando morreu em 21 de dezembro de 1980, depois de ter passado pela Última
Hora e Correio da Manhã, Nelson Rodrigues tinha um acervo de obras que incluiam nove
romances, dois livros de contos, quatro de crônicas, três novelas de TV, 17 peças teatrais e 12
filmes. Depois de sua morte foram realizados mais quatro filmes baseados em suas peças e,
recentemente, a minissérie A vida como ela é.
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Sua vida foi cheia de tragédias que o envolveram
e a seus parentes mais
próximos.
ALCEU PENA
O desenhista de O Mágico de Oz ficou famoso por duas páginas na revista O
Cruzeiro onde desenhava semanalmente uma seção intitulada As Garotas do Alceu. Durante
a década de 50, elas alegraram os leitores com enquetes envolvendo lindas jovens vestidas com
esmero e que apresentavam o texto em versos. Alceu trabalhou também no O Globo Juvenil e
na Cigarra Magazine como ilustrador de contos. Nessa última publicou uma série em
quadrinhos, O Marido de Dorinha, influenciada pelo americano Paul Robinson, criador de
Etta Kett em 1925. Seu estilo era facilmente reconhecido pela ordenação e sinuosidade de
linhas, formando um desenho claro e elegante. Além do Mágico de Oz, adaptou a HQ O
Fantasma de Canterville para O Globo Juvenil. Terminou sua carreira como conhecido
desenhista de moda feminina.
MÁGICO DE OZ - O LIVRO
Lyman Frank Baum, nascido em Chittenango, New York, em 1856, tentou
várias profissões até que, aos quarenta anos, descobriu seu verdadeiro talento - o de escritor
de contos fantásticos. Seu trabalho mais famoso, O Maravilhoso Mágico de Oz, foi
publicado em 1900 e seguido por mais treze novelas da série, baseadas nos personagens da
história inicial.
Na história do livro, Dorothy Gale, uma menina do Kansas, é arrastada por um
ciclone para o país de Oz junto com seu cachorrinho Totó. Para regressar ao lar, o único jeito
é ir à cidade de Esmeralda pedir ao seu todo poderoso governante, O Mágico de Oz, que
consiga o seu retorno. Nessa jornada por terras estranhas, faz, sucessivamente, amizade com
três personagens que se tornam seus companheiros de viagem, pois têm pretensões que só O
Mágico de Oz pode atender. O Homem de Lata deseja um coração, o Espantalho, um
cérebro e o Homem Leão, ser corajoso. Há ainda a Fada Boa e a Feiticeira que protegem e
ameaçam Dorothy respectivamente. No final percebe-se que o Mágico é um simpático
farsante e que a história toda não passara de um sonho da menina.
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O Mágico de Oz alcançou tremendo sucesso como musical da Broadway em
1903 e em 1939 repetiu o êxito com um filme estrelado por Judy Garland que Nelson
Rodrigues aproveitou para sua HQ.
GLOBO JUVENIL
Seguindo o exemplo de Adolfo Aizen que criou em 20 de junho de 1934, O
Suplemento Juvenil, um tablóide que apresentava história em preto e branco e coloridas em
quadrinhos, oriundas dos Estados Unidos, Roberto Marinho, dono do jornal O Globo,
lançou em 1937, O Globo Juvenil. O tablóide saia as terças, quintas e sábados, dias deixados
vagos pelo Suplemento, editado às segundas, quartas e sextas,
publicava os heróis
americanos da chamada época de ouro dos quadrinhos: Fantasma, Mandraque, Príncipe
Valente e vários outros. O intermediário com os sindicatos americanos era Alfredo Machado;
o secretário Djalma Machado e os redatores Antônio Callado e Nelson Rodrigues. O
trabalho consistia em traduzir os balões dos quadrinhos e escrever seções fixas de variedades,
manchetes e frases publicitárias sobre as HQ. Nelson, que só sabia português, encarregava-se
da parte nacional e Callado, das traduções. Embora nos meses iniciais O Globo Juvenil
publicasse histórias em quadrinhos, desenhadas e argumentadas por brasileiros, em 1941, isso,
há muito, já não acontecia e a inserção de O Mágico de Oz foi uma surpresa.
O MÁGICO DE OZ - OS QUADRINHOS
A apresentação gráfica e a diagramação de O Mágico de Oz, obedecem os
padrões da época. Os quadrinhos são distribuídos ao longo de quatro tiras numa página
vertical. O título é sempre diferente tanto nos letreiros como na ilustração de fundo. Nos
primeiros capítulos os desenhos representam um castelo renascentista, nuvens brancas e um
arco-íris. As variações que se sucedem incluem personagens e até um bonde. Balões e legendas
são empregados de acordo com a técnica e os letreiros são de excelente qualidade.
CONTEXTO DA ÉPOCA
A HQ, influenciada pelo contexto da época, reflete os costumes cidadinos dos
personagens e a situação internacional.
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A história se passa entre outubro de 1941 e maio de 1942. O Brasil estava
vivendo o regime imposto por Getúlio Vargas, denominado o Estado Novo, ditadura de viés
fascista. A II Guerra Mundial era o principal problema e as tropas do Eixo haviam vencido os
Aliados na Europa, buscando outra vitória na África. O pacto russo-alemão terminara e os
nazistas combatiam em solo russo. As manchetes diárias noticiavam o conflito e os telegramas
de guerra resumiam a situação das operações nas frentes de combate. Ataques de submarinos
eram comuns.
Os jornais ainda apresentavam folhetim de rodapé. O rádio era o principal meio
de comunicação de massa. O cinema gozava de grande prestígio e o circo ainda mantinha o
seu. O bar Amarelinho, na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, era a choperia de maior
sucesso e mais tradicional, bem como Café Nice, na Galeria Cruzeiro junto à avenida Rio
Branco. A tuberculose continuava uma doença muito difundida, de difícil tratamento e
recuperação. Os livros policiais de Edgar Wallace e os românticos volumes da Coleção das
Moças estavam na moda. O carro que conduzia os presos para a delegacia chamava-se
tintureiro. Não havia supermercado, o comércio de secos e molhados era feito nas vendas. As
crianças, brincavam com armas que disparavam rolhas de cortiça. O futebol era o esporte das
multidões. O turfe, outro favorito, levava, aos domingos, grande quantidade de apostadores e
espectadores ao hipódromo. Ary Barroso era o famoso locutor esportivo e compositor. O
bonde era o grande transporte de massa e um deles mais barato, destinado ao transporte de
operários, chamava-se caradura. O pagamento do funcionário, público ou privado, sempre
com atraso, induzia ao uso do vale que era um comprovante escrito, sem formalidade e
representativo de empréstimo ou adiantamento do salário. Mordedor era a gíria para quem
pedia dinheiro emprestado freqüentemente.
MÁGICO DE OZ - A HISTÓRIA EM QUADRINHOS
Mágico de Oz começa com a apresentação do cenário e de alguns personagens
da história, por uma figura que se auto-intitula o Autor. O cenário é Kansas, que ele mesmo
não sabe onde fica, mas que o leitor percebe logo se tratar de um bairro do Rio. Os
personagens são Dorinha, tio Gerofredes e Gumercinda Pereira, três fadas , uma Boa e duas
Ruins.
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O Autor avisa os leitores, com franqueza rude porém sincera, que não
costuma matar personagem na sua história. A casa de Dorinha é levada por um ciclone e vai
parar na estratosfera. O Autor telefona para o seu jornal avisando onde se encontra e é
entrevistado. Ele monopoliza o espaço, apresentando-se como grande intelectual. Seu retrato
aparece no jornal, com manchete e texto elogioso. Ele é convidado por um dono de circo para
se exibir ao lado de uma foca. Recusa ofendido, mas aceita o papel de palhaço, cargo que julga
importante e faz questão de usar guizos. Tem início uma campanha publicitária sobre sua
estréia no circo: rádio, painéis de propaganda, telegrama de parabéns. É apresentado a outros
elementos do circo: um jumento que o trata por irmão e o Leão Banana, um homosexual.
Freqüentadores do Amarelinho homenageiam o Autor com uma coroa de louros. Conhece,
também, outra personagem circense, a sardinha Ercília, um fenômeno, que desde criança vive
debaixo d’água num aquário sem afogar-se. O Autor entrevista a sardinha para seu jornal e
causa grande polêmica em torno da veracidade do fato. Há discussões científicas sobre o
assunto. Tentando provar que ninguém consegue ficar igual a Ercília, dezenove anos debaixo
da água sem afogar-se, Alconforado Camelo, um sábio, mergulha numa piscina e morre,
causando indignação popular e sendo considerado mártir da ciência. A sardinha é acusada de
mentirosa e acaba presa. Julgada num tribunal é absolvida, sendo ameaçada de rapto por
gangsters que saem de um livro de Edgar Wallace. O Autor tenta deter os criminosos, mas
recebe um telefonema de Alconforado Camelo, falando das maravilhas que é estar no outro
mundo. O Autor deixa-se matar pelo bandido que lhe dá um tiro com uma pistola de rolha e se
encontra com Alconforado que está treinando para camelo, de olho num emprego no Jardim
Zoológico e resolve treinar também para quadrúpede. Os dois candidatam-se mas para isso
precisam disputar um concurso em que devem vencer os adversários a coice, dar uma volta
com o filho do juiz nas costas e beber uma caixa d’água para provar que são camelos
autênticos e não imitação da Casa Sloper. O Autor e Camelo são classificados e recebem
homenagens na Academia dos Quadrúpedes.
Sete Facadas, o gangster de Edgar Wallace, pede a Fada Ruim que o
transforme em sardinha e passa para o aquário de Ercília, propondo-lhe casamento. Caso ela o
rejeite, suicidar-se-á, atirando-se da barca da Cantareira ao mar. Repudiado por uma Ercília,
embuída do papel de mulher fatal, cumpre o prometido. O suicídio de Sete Facadas tem
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grande repercussão e cria uma mania de suicídios prevista pelos cientistas que em vão tentaram
dissuadi-lo.
Um Espantalho que não se conforma com seu rosto e não tem dinheiro para
modificá-lo, o Leão Banana que está cansado de ser covarde, Dorinha com Totó e Ercília,
que está arrependida e deseja rever Sete Facadas, também se suicidam, lançando-se da barca.
No fundo do mar há uma inspeção para averiguar a consciência das pessoas que chegam. Só
poderão entrar, as honestas. Sete Facadas, sabendo dos problemas de todos, convida-os a
consultar o Mágico de Oz e telefona-lhe avisando que vai levar a freguesia. O Mágico, em
situação financeira precária, pede que venha logo. Anacleto Cardoso, um tubarão, pretende
casar, também, com Ercília, pois está interessado nas terras que ela tem na Penha e quer se
integrar à caravana.
O Mágico de Oz, esquecido, relê seu livro de mágicas. O primeiro grupo que
segue ao seu encontro é composto por Dorinha, Espantalho Pereira e Leão Banana. Eles
serão transportados num caradura transatlântico. A Fada Ruim, enciumada porque estão
procurando o Mágico, contrata um bandido para eliminar o motorneiro do caradura. O
Autor pede auxílio à Fada Boa que, para proteger Dorinha de acidentes, presenteia-a com
um par de sapatos de prata, avisando-a que nada lhe poderá fazer mal. A Fada Ruim sabendo
da doação e que uma pisada do sapato é mortal para ela, suicida-se. O Autor contrata nova
Fada Ruim para a continuação da história.
Os sapatos de prata de Dorinha dão-lhe o dom de acertar os chutes e
empresários de futebol querem contratá-la. O Autor intervém nas negociações, exigindo um
emprego, oferecem-lhe o de apanhador de bolas, atrás do gol. Orgulhoso, o Autor reúne a
imprensa para uma entrevista.
A outra Fada Ruim é contratada como bandeirinha e Dorinha, como jogadora.
O time adversário suborna a Fada Ruim para roubar os sapatos de prata. Inicia-se a partida, o
locutor é parecido com o Ary Barroso. Dorinha pisa no calo preferido da Fada Ruim e ela
morre. O jogo termina com a vitória do seu time por 307 a zero, todos marcados por ela. A
alma da Fada Ruim visita o Autor pedindo ajuda, pois roubaram-lhe os quinhentos réis,
furtados do médico que a atendera. O Autor propõe uma vaquinha, sendo recolhido duzentos
réis que dá para um copo de água no Café Nice.
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O Autor, Dorinha, Leão Banana, o Espantalho e a alma da Fada Ruim
ocupam seus lugares no transatlântico caradura. O condutor quer pagamento à vista. A alma
da Fada Ruim vai no colo para não pagar passagem e tem medo de ser torpedeada. O Autor
avisa que submarinos não o assustam, só os credores. O condutor sugere que ele use um
disfarce para despistar os credores. Ele escolhe o de jumento e ficando de quatro vai testar sua
camuflagem com o condutor que lhe manda sair do caradura, pois não transporta animais.
Potências estrangeiras ficam temerosas com a descoberta do Autor que pode
modificar o curso da guerra. Uma delas manda uma sedutora agente secreta juntar-se a ele no
caradura. Outra, manda prender qualquer jumento, pois pode ser um inimigo camuflado. Num
dos países beligerantes, soldados observam um tipo suspeito e decidem prendê-lo porque
freqüenta porta de livraria, faz versos e pertence ao Grêmio dos Laranjas.
O Mágico de Oz é interrompido no capítulo 31, em 5 de maio de 1942, sem
desfecho e sem explicações.
UM ROTEIRO EXTRAVAGANTE
Para melhor entendimento do leitor, resumiu-se O Mágico de Oz numa forma
linear, ao contrário da HQ que tem um roteiro sinuoso e extravagante. Além disso, excetuando
os personagens apropriados do filme por Nelson Rodrigues e o objetivo comum de procurarem
o Mágico para a solução de seus problemas, pouco mais se relaciona com a história original.
Isto é reconhecido pelo próprio Nelson, quando o OZ do título, em certas ocasiões, é colocado
entre aspas com a conotação irônica de falsidade.
O roteiro, uma colcha de incidentes costurados de maneira aleatória como se
fosse feito no decorrer de cada semana, apresenta três importantes complicadores:
O primeiro, num prenúncio caricato dos planos que Nelson imaginou para
Vestido de Noiva, refere-se aos cenários onde se desenrola o fio inconsistente da narrativa.
A ação, toda ela burlesca, tem início num lugar chamado Kansas que o próprio Autorpersonagem não sabe onde fica, mas que os leitores identificam como a cidade do Rio de
Janeiro. No terceiro capítulo, um ciclone levou a casa de Dorinha para a estratosfera, lugar
indefinido acima do Pão de Açúcar, que tem jornal, telégrafo e seu próprio Amarelinho. A
partir do nono capítulo, o Autor assassinado no anterior, passa para um terceiro cenário, o
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outro mundo. No capítulo 16, quando há o suicídio coletivo de Dorinha, Ercília e seus
amigos que se atiram nas águas da Baia de Guanabara, a ação passa a transcorrer no fundo do
mar. Lá pelo capítulo 28, a confusão de cenários é total. Embora o Autor negocie com o
condutor do caradura transatlântico a viagem para o país do Mágico que vive em Vila
Izabel, o cenário é indistinto, pode ser o fundo do mar, mas nada dá certeza ao leitor. A ação
pode ser em Kansas, na estratosfera, no outro mundo ou até mesmo no Rio, já que as
notícias são veiculadas pelo jornal O Globo.
Outro complicador é a multidão de figurantes que interagem com o Autor e os
demais personagens, escorando o diálogo sem sentido ou interligando a ação fragmentada.
Inclui gente das mais variadas profissões e animais que falam, além de uma alma do outro
mundo e uma sereia.
Finalmente, o monólogo, o diálogo ou qualquer que seja a forma de
conversação entre os componentes do elenco é paradoxal, incoerente, senão disparatada e
estapafúrdia. Predominando o discurso amoral e o non sense.
O roteiro da HQ O Mágico de Oz, excetuando a crítica social, não passa de um
exercício daquilo que, no dias de hoje, receberia a classificação de besteirol..
O AUTOR E SEUS PERSONAGENS
O protagonista de O Mágico de Oz não é o mágico, é o Autor. Ele é o
primeiro a surgir na HQ e, depois de introduzir parte do elenco, faz sua auto-apresentação:
E eu sou o Autor. Na redação de A Fosforescência da Verdade ponho títulos
em telegramas de guerra. Tenho uma vasta cultura, pois li O Conde de Monte Cristo e
Por quê morreste Elvira? Também escrevi o soneto... e nenhum goivinho ornava a cova
dela.
Mais adiante, entrevistado pelo O Globo, insiste com o repórter:
Pode botar no jornal que eu sou um gênio de porta da livraria. Eu me
consagrei quando fiz o seguinte telegrama mãe é sempre mãe. Outra prova do meu
cartaz: freqüento a porta da Livraria José Olimpio.
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O Autor é obsecado por sua imagem de pseudo-intelectual e preocupado com
dinheiro, emprego, morte e ... credores. Tenta evitar que seus personagens morram,
estabelecendo regras e multas. Procura mantê-los sob controle que não é absoluto. Considerase responsável por aqueles que, como Dorinha, têm menos de 21 anos.
O Autor, vestido com fraque, colete, plastron, luvas e polainas, seria
confundido com um milionário indo para uma festa a rigor. Porém, a cartola, amassada como
uma sanfona, o desmascara. Rosto rechonchudo e simpático por detrás das grandes lentes dos
óculos de armação circular, sorridente e confiante, ventre enorme, insinua opulência,
determinação, cultura e até um pouco de dignidade, não fosse a cartola ridícula. Basta abrir a
boca que essa imagem positiva se desintegra, O Autor é um fanfarrão, um bobo alegre, um
pobre diabo sem tostão. Um cabotino às avessas que, em vez de jactar-se de qualidades,
alardeia defeitos. Mais do que isso, homenageia-os. Ele não é exceção porque na narrativa
todos agem mais ou menos assim.
Os personagens, seres heterogêneos que transitam pelos quadrinhos do Mágico
de Oz, foram feitos a imagem psíquica do Autor. Por isso, todos glorificam os próprios
defeitos e, se por ventura, apresentam alguma qualidade, é avaliada por critérios simplórios ou
absurdos. Assim, Camelo Alconforado, um sábio, é considerado um homem culto porque lê
as notícias todos os dias e não vai atrás do conto do vigário. O tio de Dorinha tem uma
idéia luminosa: vai fazer uma fábrica de tijolos.
Conseqüência do emprego de repórter mal remunerado, o Autor está pronto para
substituí-lo por um outro qualquer. Homem que se sustenta de vales e dívidas não pagas, sua
maior preocupação na viagem para Oz não são os ataques de submarinos, mas o encontro com
os credores que fez em reconhecidos 50 anos de calotes. O fato de ser caloteiro e um
mordedor nato, motivos de orgulho do Autor, contamina os demais personagens, a quem
falta dinheiro até para a comida. Da Fada Ruim ao Mágico de Oz todos estão devendo e
fazem qualquer coisa por dinheiro. A exceção é o Espantalho que paga suas dívidas porque
em vez de cérebro tem palha na cabeça.
O Autor, embora afirme que não morre ninguém na história e só quem pode
levar tiros é o seu senhorio, tem uma fixação com a morte, induzindo seu próprio assassinato,
engedrando o suicídio coletivo dos personagens principais e de outros menos importantes. O
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Mágico de Oz fez uma mágica para se livrar do senhorio, batendo-lhe com um paralepípedo
na cabeça para que não volte jamais. Os desenhos nunca retratam violência e quase todos
permanecem vivos em outra dimensão. Contrapondo-se a tendência mórbida, o Autor
preocupa-se com a saúde dos personagens, levando em conta os freqüentes mergulhos que dão
no mar. Recomendando, a todo instante, o uso de capas, galochas, guarda-chuva e até
aplicação de injeções para prevenir gripes e resfriados.
CONCLUSÕES
Não precisa ser um psicanalista para ver em O Mágico de Oz um reflexo da
vida vivida por Nelson Rodrigues e no personagem Autor o seu alter ego. Ruy Castro, que
analisou superficialmente a HQ, já assinalava que ao citar os gênios de porta de livraria,
Nelson Rodrigues fazia uma auto crítica, pois sob o pretexto de procurar os amigos de seu
irmão, Gilberto Freire e José Lins do Rego, frequentadores assíduos da Livraria José
Olimpio, na Rua Primeiro de Março, ele se incluía no grupo dos inéditos que costumava
postar-se junto a ela para agradar e trocar cumprimentos com os autores famosos.
Selecionou-se aspectos de sua vida, colocados por Nelson, conscientemente ou
não, nos quadrinhos desenhados por Alceu. O nome do jornal e a função, que o Autor
personagem exercia, são ironias em relação à sua atividade no O Globo Juvenil (A
Fosforescência da Verdade), um jornal de pura ficção ou inverdades, onde escrevia frases e
manchetes publicitárias (telegramas de guerra), anunciando ou fazendo suspense para os
leitores da continuação dos capítulos dos quadrinhos. A Fada Boa, que aparece com um bebê
no colo, sem dúvida é Elza, sua mulher e a criança seu primogênito Joffre que tinha três
meses, no início da HQ. Do mesmo modo, explica-se certas idiossincrasias do roteiro, como
os cuidados com a saúde, uma constante para Nelson que poderia ter sua tuberculose
rescindida caso apanhasse um resfriado. A família Rodrigues, muito numerosa, também é
lembrada quando o Autor, interrogado por Camelo sobre o motivo de não ter trazido a sua
para o outro mundo, responde: para comportar minha família, o além não chega!... Só
mesmo o chopp-duplo ou o estádio do Vasco. As dívidas e os calotes, seguidamente em foco
na HQ, são o reflexo direto do repórter pobre, casado e com filho, que fazia até biscates como
histórias em quadrinhos para arrumar um dinheirinho extra.
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O Mágico de Oz não traz somente referências da vida pregressa e presente de
Nelson Rodrigues, mas também ao que poderia ser e foi no futuro. Ele é como um cadinho em
que se realiza a mistura da sua obra posterior tanto no teatro, como na literatura e na crônica
esportiva. O primeiro indicativo surge no início do capítulo dois, com uma abordagem teatral:
abre-se a cortina (tipo veludo de liquidação) e autor aparece (sempre esse homem fatal).
A importância que Nelson já dava ao futebol fica clara na trama que envolve o contrato de
Dorinha que, com seus mágicos sapatos de prata, não perde um gol. A descrição da partida
entre os dois clubes adversários remetem ao famoso cronista do esporte-rei que ele viria a ser.
Ainda que em embrião, também aparece no Mágico de Oz a sua vocação de
frasista que, com o óbvio ululante e outras, marcaria sua atuação nas letras brasileiras.
Começa o ciclone. Parece até tempestade de orquestra. Um folhetim em honra de um
camarada que só sabe escrever vales. Nem Dante escreveria vales com tanta inspiração.
Uma HQ escrita por um gênio como Nelson Rodrigues teria de ser diferente.
Não há um herói específico, a oposição mítica não é caracterizada, inexiste uma atualidade
informativo-jornalística fidedigna e nem a preservação da retórica culta é considerada com
seriedade.
Conclui-se, que por não ter essas características de literatura de massa
definidas, O Mágico de Oz despertou pouco interesse aos leitores do Globo Juvenil, um
público, majoritoriamente, na faixa etária entre 7 e 16 anos. Evidentemente o humorismo
sarcástico e as aventuras herméticas do Autor e seus personagens não poderiam competir com
o humor explícito do Brucutu ou o heroísmo épico do Fantasma. Seu desaparecimento no
31º capítulo não deixou lembranças, exceto na cabeça de adultos mais intelectualizados que
tinham condições de filosofar em cima das tiradas criptográficas rodriguianas em relação à
morte e à humanidade, onde o comportamento humano, ontem como hoje, tem dificuldade em
alicerçar-se nos valores do indivíduo, abalado pelo pragmatismo econômico e a competição
social.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Fontes Primárias
1.1 Periódicos
O Globo Juvenil - Rio de Janeiro – out. 1941 a mai. 1942
2. Livros
CASTRO, Ruy. O Anjo pornográfico. A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Cia.
das Letras, 1992.
GOIDANICH, Hiron Cardoso. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Alegre, L&PM,
1990.
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INTRODUÇÃO Em 14 de outubro de 1941, Nelson