POLCA, GUARÂNIA E CHAMAMÉ
A PERSISTÊNCIA DA MÚSICA PARAGUAIA EM CAMPO GRANDE
Evandro Rodrigues Higa
Mestrando em musicologia
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: A persistência dos gêneros musicais “polca paraguaia”, “guarânia” e
“chamamé” na cidade de Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do
Sul, seja em suas configurações e repertórios tradicionais, seja diluída em
influências sobre a produção musical local se constitui em uma de suas mais
vigorosas manifestações culturais, delineando um cenário musical singular no
contexto da música popular brasileira. As origens desse processo identitário
podem ser investigadas a partir da historiografia e estão associadas à “alma
guarani” – configuração simbólica da resistência cultural guarani sobrevivente
em alguns aspectos do cotidiano mestiço no Paraguai, norte da Argentina e
centro-sul de Mato Grosso do Sul.
Palavras chaves: Identidade, Música Paraguaia, Campo Grande
Abstract: The persistence of the musical genres such as “polca paraguaia”,
“guarânia” and “chamamé” in the town of Campo Grande, capital of Mato
Grosso do Sul State, even in its configurations and traditional repertories or
even diluted in influences over the local musical production composes one of its
most vigorous cultural manifestation, delineating a singular scene in the context
of the Brazilian popular music. The origins of this identitary process can be
associated to the “guarani soul” – symbolic configuration of the guarani cultural
resistance still remaining in some aspects of the daily mestizo life in Paraguay,
north of Argentina and center-south of Mato Grosso do Sul.
Key words : Identity, Paraguaian Music, Campo Grande
POLCA, GUARÂNIA E CHAMAMÉ
A PERSISTÊNCIA DA MÚSICA PARAGUAIA EM CAMPO GRANDE
A polca paraguaia e a guarânia se constituem em gêneros
musicais representativos da identidade cultural do Paraguai, enquanto o
chamamé, a despeito de ter se originado da polca paraguaia, é identificado
como produto cultural do norte da Argentina. Os três gêneros integram o
universo identitário da região centro-sul de Mato Grosso do Sul e sua capital
Campo Grande. Seus componentes estruturais tem influência marcante sobre a
produção musical da região, contribuindo para a manutenção de um sistema de
representações culturais configurado no mito da “alma guarani”.
A mais antiga denominação de um gênero musical
especialmente paraguaio é o “purajhéi asy”, referido pelos cronistas ingleses
irmãos Parish Robertson em seu “Cartas sobre el Paraguay”(1838) como “aire
plañidero que cantaban los paraguayos acompañandose con las guitarras”
(Szaran,1997:396).
Foi durante o século XIX ao fundir componentes da música
tradicional espanhola (compasso 6/8, larga utilização da guitarra e tiple e
técnica do “rasgueo” no acompanhamento) com as danças de salão da moda
(valsas, polcas, mazurkas, schottish e habaneras) que plasmou-se, no
ambiente rural, a configuração musical do que veio a se chamar “polca
paraguaia”. Sem guardar familiaridade com a polca originária da Bohêmia,
Carlos Vega em “Panorama de la Musica Popular Argentina – Un Ensayo sobre
la ciência del Folklore”, citado por Cerruti (1965:6/7) afirma que no Paraguai o
músico popular em geral identificava com o nome de “polca” não apenas a
polca européia, mas a tangos antigos, milongas e habaneras. É de Cerruti
(1964:7) a afirmativa de que o epicentro da polca foi, desde o princípio, a
República do Paraguai, daí sua denominação “polca paraguaia” ter se
expandido à toda região guaranítica bem como à fronteira Argentina.
Segundo Szaran (1977:391/393) a polca paraguaia se
constitui em uma dança e canção de movimento rápido cujas características
rítmicas, melódicas, harmônicas e contrapontísticas não guardam relação com
a polca européia. A polca paraguaia combina ritmos ternários com binários e
utilização de síncopas.
A guarânia se constitui em gênero criado na década de 20
pelo compositor José Asunción Flores (1908-1972) e segundo Ocampo
(1980:296) evocaria o antigo “purajhéi asy”pela manutenção de um andamento
lento e caráter melancólico. Em entrevista realizada em 24.02.03 com o
harpista Geraldo Ortiz – músico paraguaio radicado em Campo Grande –
colhemos o seguinte depoimento:
“A polca paraguaia, nós por exemplo, nós começamos desse tipo
de música, a música paraguaia, a raiz é a polca paraguaia e
depois que já surgiu a guarânia. (...) A guarânia já é classificada
como já música clássica. E a gente nós começamos da raiz, da
polca paraguaia.”
Quanto ao chamamé, comumente identificado com o norte
da Argentina, tem se constituído em verdadeira bandeira de afirmação cultural
da região, celebrado na mídia como “a maior expressão da cultura sul-matogrossense” (Costa, 2001:C-1).
http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html
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Plasmado no norte da Argentina, na fronteira com o
Paraguai, como decorrência da transformação da polca pela substituição da
harpa pelo acordeón (Szaran,1997:142), o chamamé seria apenas uma nova
denominação à antiga variante da polca paraguaia denominada “polca syryry”,
de andamento mais moderado (Ocampo, 1997:240). O termo “chamamé” que
em guarani significa “coisa feita rapidamente, improvisada”foi criado a partir de
uma estratégia mercadológica arquitetada pela gravadora RCA Victor na
década de 30 (Szaran,1997:142/143).
É o músico Benitez de Campo Grande que, ao admitir a
disputa da paternidade do gênero entre argentinos e paraguaios, identi
fica dois
tipos de chamamé: um mais triste e expressivo (mais lento) e outro semelhante
à polca paraguaia e também chamado de “polca correntina”, feito para dançar:
“Há uma luta interna, ou seja, entre paraguaios
e entre correntinos mas acontece que antigamente eu acho até
que não existia Corrientes. Existia só uma nação ali, que dançava
e mesmo saltitava, o mesmo costume: o chamamé. Pra mim,
existem dois tipos de chamamé: existe o chamamé que você
senta, saboreia um traguito de caña como se dice, de alpargata,
você de bombachita, de bombacha, pega seu violão a dueto e
canta um chamamé correntino de forma triste, de forma
expressiva, de forma de corazón de alma e existe chamamé,
polca correntina, que quase que tem a mesma sensibilidade da
polca paraguaia, que às vezes você observa e o sentimento de
escrever a letra se difere um pouco da polca paraguaia e da
guarânia. Então aí vem o chamamé, a polca correntina, que é
mais acelerada, donde se sapateia, donde se los casales se
sapateia, se solta o corpo e só com a ponta dos dedos fica
rodeando à la derecha, la esquierda, e fazendo pequenos firuletas
para que se torne gracioza la dança correntina que é o
chamamé.” (Entrevista realizada em 19.02.03)
Em entrevista concedida em 1997, o compositor
campograndense Almir Sater confirma as influências recebidas da música da
fronteira que ele também chama de música pantaneira: a guarânia, a polca e,
principalmente, o chamamé (Rasslan,1997:anexo 1). Na mesma monografia
consultada, o compositor Paulo Simões relaciona os gêneros locais que o
influenciaram: a música sertaneja tradicional e a música paraguaia “que se
escutava nas grandes festas, nos grandes aniversários ou nas churrascarias”
(Rasslan,1977:16).
À época da chegada dos colonizadores europeus, toda a
vasta região que hoje abrange os estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, bem como o norte da Argentina e
todo o Uruguai e Paraguai era habitada pelos índios guarani
(Monteiro,1998:476/477), os quais, ao longo dos ervais do rio Paraná e
Paraguai enfrentavam as hostilidades dos guaykuru (incluídos aí os payaguá–
índios canoeiros que dominavam todo o rio Paraguai) (Carvalho,1998:463/464).
Enquanto os portugueses se fixavam na zona litorânea da
colônia, os espanhóis fundavam núcleos castelhanos na província de Itatim,
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atual Mato Grosso do Sul (Tolentino,1986:37). Nos séculos XVI e XVII, toda a
jurisdição da imensa área que se limitava ao norte com a capitania de São
Vicente, ao sul com o Rio da Prata, a leste com o oceano Atlântico e a oeste
com a província de Tucuman, atualmente Argentina, pertencia à então
chamada província do Paraguai (Tolentino,1986:52).
A partir de 1609 com a determinação de Felipe II para que
os índios fossem “reduzidos”pelos jesuítas (Campestrini e Guimarães,1991:14)
teve início a incrível história das reduções jesuítico-guarani na região.
Conforme Chaunu (1979:36) os jesuítas desenvolveram no transcorrer dos
séculos XVII e XVIII um “trabalho lingüístico e etnológico de compreensão em
profundidade”, exercendo sobre os índios das missões “uma proteção vigilante,
mas muitas vezes tirânica”, repelindo os ataques dos bandeirantes paulistas e
dos caçadores de escravos. No afã catequizador, os jesuítas descobriram um
poderoso canal para a efetivação de seu trabalho: a música. A política de
aculturação musical adotada nas reduções desconsiderava as peculiaridades
musicais autóctones e cultivava a música da Igreja como importante ferramenta
de controle cultural.
Está configurado o primeiro momento importante na futura
conformação do gênero “polca paraguaia”: a manutenção de esquemas formais
e harmônicos característicos do classicismo europeu bem como a configuração
instrumental (violão, harpa paraguaia, requinto, violino, flauta, etc.) copiada dos
modelos trazidos pelos missionários da Companhia de Jesus. Apenas o idioma
guarani foi cuidadosamente preservado pelos religiosos, o que acarretou o
bilingüismo paraguaio cultivado até hoje.
No território do atual Mato Grosso do Sul, a historiografia
aponta pelo menos cinco missões conhecidas como Missões Jesuíticas
Espanholas do Itatim; Missão Garambaré, Missão Araquay ou Araguary
(Miranda), Missão Neumitang, Missão Ybu (todas a oeste do Estado) e Missão
Taraqui (Camapuã, ao norte) (Weingartner,1988: Mapa no. 2). Em virtude do
constante estado de conflito vivido entre os colonos espanhóis e os jesuítas
missionários (motivado pelo jogo de interesses econômicos e contradições
entre os sistemas empregados pelas partes no tratamento com os guarani),
essas missões tornaram-se alvos fáceis dos bandeirantes paulistas, sendo que
todas foram completamente destruídas no período de 1628 a 1648
(Tolentino,1986:47/48).
Conforme Chaunu (1979:43) é após a destruição das
missões do Guayrá e do Itatim que uma estrutura estável de estabelecimento
de reduções tomará forma na segunda metade do século XVII. Serão essas as
missões cujas ruínas são hoje admiradas no Rio Grande do Sul, Argentina e
Paraguai. Com a expulsão dos jesuítas em 1767, todas as reduções entraram
em acelerado processo de deterioração física, econômica e social.
A partir de 1717 a atenção dos bandeirantes foi desviada
para o norte de Mato Grosso motivada pela descoberta de ouro na região de
Vila Bela e Cuiabá (Tolentino,1986:49). O sul da capitania, na ausência de
jazidas auríferas só seria efetivamente incorporado ao espaço nacional após a
Guerra do Paraguai (1865-1870) na esteira do ciclo da erva-mate e da
dinamização da pecuária tradicional (Cabral,1999:28).
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Em 1872 chegam os pioneiros provenientes da região de
Uberaba ao sítio onde se ergueria a cidade de Campo Grande
(Cabral,1999:28). Com a vantagem estratégica de ter se constituído em
importante entroncamento da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil no início do
século XX, bem como de ter recebido de Corumbá a transferência da sede da
Circunscrição Militar em 1921 (Cabral,1999:32), Campo Grande desenvolveuse rapidamente e, ao receber imigrantes japoneses, árabes, portugueses,
italianos, espanhóis, armênios, palestinos, bolivianos e paraguaios tornou
-se
uma cidade moderna onde o caldeamento cultural representa uma de suas
mais importantes características identitárias.
Conforme Bianchini (2000:25) a ocupação efetiva das terras
do atual Mato Grosso do Sul iniciou-se após a Guerra do Paraguai (18651870), tendo sido a erva-mate a principal motivação. Em 1920 o censo
demonstrava que quase 50% da população estrangeira no Estado de Mato
Grosso era constituída por paraguaios, concentrados principalmente nos
municípios ervateiros de Bela Vista, Ponta Porã e Porto Murtinho (Bianchini,
2000:218).
“Não há dúvida, que o paraguaio soube
enfrentar o sacrifício do viver em sertão bruto, onde o transporte
era o lombo do burro, as carretas da Companhia, ou as próprias
pernas, suportando toda sorte de desafios. Contribuiu com sua
presença, para influir na língua, no vestuário, na alimentação, na
música da sociedade sul mato-grossense, e principalmente no
desbravamento das terras sulinas de Mato Grosso.”
(Bianchini,2000:202)
Apenas no censo de 1980, quando Campo Grande se torna
capital do novo Estado de Mato Grosso do Sul, desmembrado do antigo Mato
Grosso, é que os imigrantes paraguaios aparecem discriminadamente e não
por acaso como o maior grupo de estrangeiros em Campo Grande: 796
membros (Cabral,1999:56). Nos censos anteriores efetuados a partir de1920
os paraguaios que deviam ser muito numerosos, encontravam-se diluídos na
categoria “outros”, embora Cabral (1999:51) assevere que:
“De qualquer forma, eles são uma presença
que se avoluma a cada censo, tendo em vista que é muito fluida a
linha de fronteira com aquele país vizinho, ensejando o
entrelaçamento de brasileiros e paraguaios pela via do
matrimônio, sobretudo nas cidades fronteiriças. Assim, desde os
primórdios, esses irmãos latinos estiveram na formação da
cidade, mas, ao se criarem correntes de migração intra-regional,
Campo Grande passa a receber grande número de
amambaienses,
ponta-poranenses,
bela-vistenses
e
murtinhenses, dentre os quais, não raro, incluem-se paraguaios.
Assim, entende-se a influência dos costumes
para cá trazidos e cuja absorção pôde ser realizada sem
dificuldade, tendo em vista a base cultural comum guarani, que
cimenta a identidade paraguaia e é tão forte no sul de Mato
Grosso.”
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É através do mesmo censo de 1980, que se verifica o
grande aumento de migrantes sulistas provenientes do Paraná, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul totalizando 19.081 membros, o que levou Cabral
(1999:55) a afirmar que:
“(...) tem-se evidenciada a quase imposição
cultural gauchesca, que fez a polca paraguaia perder terreno para
o vanerão e o chamamé, ritmos típicos dos pampas. Agora, nem
sempre a erva-mate é usada com a água fria do tereré, pois,
convive com o vapor fumegante do chimarrão.”
Hoje, embora restritos os espaços permanentes de trabalho
para os conjuntos e músicos paraguaios (churrascarias, casas de show,
clubes), músicos como Benitez, Abel Baez, Clemente, Charles, Victor Hugo e
a dupla “Los Divinos” continuam se apresentando principalmente em festas
particulares e participando de gravações de discos.
Os tradicionais representantes da música sertaneja local
como as irmãs Beth e Betinha, Délio e Delinha, Tostão e Guarany, Aurélio
Miranda, Amambai e Amambaí entre outros também se constituem não apenas
em importantes intérpretes de polcas paraguaias, guarânias e chamamés mas
trazem para suas próprias canções elementos estruturais daqueles gêneros.
Segmento que tem crescido consideravelmente e obtido
cada vez mais espaço na mídia é o dedicado à animação de bailes – os
“baileiros” – grupos que se identificam mais com a cultura gaúcha e o
chamamé (“Tradição”, “Canto da Terra”, “Grupo Zíngaro”, “Alma Serrana”,
“Azes do Chamamé”, etc.).
Ocupando uma posição intermediária entre a cultura urbana
e rural, estão os músicos veteranos como Paulinho Simões, Geraldo e Celito
Espíndola, Almir Sater e os novos talentos como o violonista Marcelo Loureiro
que adaptam a conformação rítmica da música paraguaia às suas composições
e performances, sendo a “polca-rock” de Jerry Espíndola a mais recente
tentativa de incorporação desse ritmo aos padrões do rock nacional.
Desde os autênticos fronteiriços paraguaios até a urbana
“polca-rock”, o que surpreende é a força da persistência da polca paraguaia, da
guarânia e do chamamé no universo cultural de Campo Grande e, de forma
mais extensiva, na região centro-sul do Estado, denotando uma personalidade
musical única no contexto brasileiro: a “alma guarani” traduzida em música e
configurando-se em um dos nossos mais importantes suportes identitários.
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