0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:08 AM Page 1 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:08 AM Page 2 ficha técnica Direcção . Jorge Augusto Paulus Bruno Patrocínios Design Gráfico . DallDesign Tiragem . 1000 exemplares Depósito legal . 174164/01 ISSN . 1645-6815 Apoios Esta revista é propriedade de . Instituto Açoriano de Cultura Alto das Covas - Apartado 67 9700-220 Angra do Heroísmo T. F. 295 214 442 [email protected] www.iac-azores.org Instituição de Utilidade Pública por Resolução nº 45/86, do Conselho do Governo Regional dos Açores, de 5 de Março de 1986 Preço. 20,00 euros Sócios Patronos Câmara Municipal da Calheta Câmara Municipal da Praia da Vitória Junta de Freguesia dos Altares, Angra do Heroísmo Junta de Freguesia da Conceição, Angra do Heroísmo Junta de Freguesia da Fajã de Baixo, Ponta Delgada Junta de Freguesia do Porto Judeu, Angra do Heroísmo Pedro Bicudo Teles Travel Agency 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:08 AM Page 3 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:08 AM Page 4 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:08 AM Page 5 sumário DOSSIÊ TEMÁTICO ESTUDOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA ESTUDOS E CRIAÇÃO LITERÁRIA 9. SESSÃO EVOCATIVA DE HOMENAGEM A MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO 37. A ARQUITECTURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MEREDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA 63. A ILHA PERDIDA Fabiano Teixeira dos Santos O Instituto não é de cultura açoriana mas açoriano de cultura Jorge Augusto Paulus Bruno No primeiro centenário do nascimento de Monsenhor José Machado Lourenço 53. MÚSICA ELECTRÓNICA DOCUMENTA Artur Cunha de Oliveira João Marques Carrilho Onésimo Teotónio de Almeida 73. CONTOS VII-XI DA CANÇÃO “VOZES EM UNÍSSONO” António de Névada 49. ENERGIA MUSICAL IRREALIZADA Jorge Lima Barreto O verbo e a verve de Monsenhor José Machado Lourenço: aulas que o vento não levou Maria Alice Borba 81. GABRIELA SILVA NA ESSÊNCIA DO ILHEUNISMO Nuno A. Vieira 87. DOR DE DENTES Manuel Machado 93. UMA LEITURA POSSÍVEL: OS TRABALHOS E OS DIAS António de Névada 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:09 AM Page 6 sumário (cont.) CIÊNCIAS HUMANAS OUTROS SABERES 105. CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES 235. 2009, “ANO DARWIN” SOBRE CHARLES DARWIN E O EVOLUCIONISMO Luís M. Arruda Sérgio Avelar Duarte [6] 175. PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX Paulo Silveira e Sousa 193. A DIFÍCIL NOMEAÇÃO DO CARDEAL COSTA NUNES Maria Guiomar Lima 207. A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE Sérgio Alberto Fontes Rezendes 223. FERREIRA DEUSDADO: UM TRANSMONTANO NOS AÇORES Filipe Pinheiro de Campos 245. A ESCASSA DIFUSÃO, NOS AÇORES, DAS NOTÍCIAS EUROPEIAS João Aranda e Silva 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 12:09 AM Page 7 0. revista ATL1as págs (cor) 6/17/09 DOSSIÊ TEMÁTICO PEDRO MADEIRA PINTO Saudade, 2008 técnica mista sobre papel medida 100x70 cm 12:09 AM Page 8 6/17/09 10:17 AM Page 9 Jorge Augusto Paulus Bruno Artur Cunha de Oliveira Onésimo Teotónio de Almeida SESSÃO EVOCATIVA DE HOMENAGEM A MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO [9] 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 10 O INSTITUTO NÃO É DE CULTURA AÇORIANA MAS AÇORIANO DE CULTURA. NÃO QUEREMOS FAZER AÇORIANISMO, MAS AÇORIANIDADE. O NOSSO ESPÍRITO É UNIVERSAL E UNIVERSALISTA. [10] TUDO O QUE É AÇORIANO É NOSSO, MAS TUDO O QUE É HUMANO É AÇORIANO. Jorge Augusto Paulus Bruno Estas significativas palavras foram escritas pelo nosso homenageado, o Monsenhor José Machado Lourenço, e publicadas na revista Atlântida. Elas atestam bem o lúcido pensamento deste homem, a quem devemos a direcção e a condução dos destinos deste Instituto ao longo dos seus primeiros vinte anos de actividade. Este, porém – volvidos que são mais de cinquenta anos –, é um pensamento actual e por isso também continua norteando, ainda hoje, o projecto cultural desta instituição. É, sobretudo, uma visão que não perde actualidade nem sentido com o passar do tempo; antes pelo contrário, ganha cada vez mais substância, fundamento e justificação neste limiar do século XXI. Cerca de cinquenta anos atrás, quando José Machado Lourenço escreve estas palavras, o Instituto Açoriano de Cultura estava a dar os seus primeiros passos. As circunstâncias que rodearam a sua fundação em 1955 estão no essencial apuradas, e são conhecidas, no contexto das dinâmicas culturais que se faziam sentir na sociedade açoriana nos meados do século passado. Tenhamos por agora apenas presente que o aparecimento do IAC não pode ser entendido sem termos em conta que, uns anos antes da sua fundação, em cada uma das três capitais de distrito foi sendo criado um instituto cultural (Instituto Histórico da Ilha Terceira, Instituto Cultural de Ponta Delgada e Núcleo Cultural da Horta). Os agentes culturais da época alinhados com o regime encontram nestas instituições o bom porto para as suas aspirações intelectuais, enquanto o regime, através das Juntas Gerais, empenhava, por um lado, um contido apoio financeiro nas suas actividades e colhia, por outro, um oportuno entusiasmo no campo dos estudos históricos, com alguma predominância para a problemática do descobrimento e povoamento das ilhas, o que, de resto, se conjugava bem com a política do Estado Novo de exaltação dos feitos dos portugueses no período das descobertas. Mas ao Instituto Açoriano de Cultura estava reservado num outro contexto cultural, mais distante desta sociedade civil. É outra visão da sociedade e um outro género de preocupações que sustentam o seu aparecimento no seio do Seminário Maior de Angra. É aqui que um grupo de sacerdotes, alguns deles formados no estrangeiro e por consequência varridos pela visão moderna e renovadora da sociedade do pós-guerra, ao regressarem à sua actividade neste estabelecimento de ensino, congregam os objectivos que estão na base da sua fundação, cuja presidência do órgão directivo é entregue a José Machado Lourenço, figura decana e do maior prestígio no meio. Logo nos primeiros anos verificou-se uma verdadeira dinâmica de inovação e modernidade, coincidente com a presença activa, na direcção ou muito próximo dela, dos dois nomes de proa desta geração de jovens professores, José Enes Pereira Cardoso e Artur Cunha de Oliveira (que aqui hoje se encontra connosco), em especial manifestada através da realização das celebradas Semanas de Estudos, de que estes foram os mentores. Estes encontros, que marcaram decisivamente a memória desta instituição, foram autênticas pedradas nos charcos que eram os deprimidos meios sócio-culturais açorianos de então. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 11 O INSTITUTO NÃO É DE CULTURA AÇORIANA MAS AÇORIANO DE CULTURA É, pois, a memória e a obra deste grande homem de cultura e de saber – que muito bem conciliou o seu entendimento conservador da sociedade com a vontade de acção de uma geração mais nova e portadora de uma visão adjiornada, mantendo-se ao longo de duas décadas como timoneiro desta instituição – que a actual direcção deste Instituto pretende hoje, quando decorrem cem anos sobre o seu nascimento no dia 12 de Agosto de 1898, prestar-lhe um ajusta e devida homenagem. E para este efeito resolveu convidar a dar um testemunho duas personalidades que com ele tiveram a grata oportunidade de conviver: • o Dr. Artur Cunha de Oliveira, que, como trás referi, foi um dos ideólogos das Semanas de Estudos e membro da equipa de José Machado Lourenço, que justamente nos trará um valioso contributo para o nosso conhecimento do que foram esses primeiros anos e do papel interventor e dinamizador do homenageado; • por seu lado, o Prof. Onésimo Teotónio e Almeida, a quem formulámos o outro convite, que na sua condição de antigo aluno do Seminário de Angra, teve a felicidade também de conhecer José Machado Lourenço como mestre, e disso nos dará relatos e testemunhos. Quer ao Dr. Artur Cunha de Oliveira – a quem a história desta instituição também tanto deve – que ao Prof. Onésimo Teotónio de Almeida – incansável colaborador de décadas deste Instituto, que só por muito boa vontade e empenho consegue estar aqui hoje para este efeito – a direcção do Instituto Açoriano de Cultura está muito grata. Tranquiliza-nos a consciência a nossa certeza de que são as pessoas que melhor poderiam contribuir para esta homenagem, que todos nós aqui presentes prestamos ao Monsenhor José Machado Lourenço. Mas esta homenagem ganha – permitam-me que o diga a título pessoal – particular significado quando estamos a pouco mais de dois meses de terminarmos o nosso último mandato à frente desta instituição, à qual também procurámos dar o melhor das nossas capacidades. Em grande parte o que fizemos foi norteado pelo pensamento de José Machado Lourenço com que comecei estas palavras. Ao longo destes anos tive sempre presente que este Instituto não é de cultura açoriana mas sim açoriano de cultura e de que o seu espírito é universal e universalista. Hoje, no quadro de um projecto cultural coerente e sobretudo de acordo com as dinâmicas culturais do seu tempo, o Instituto Açoriano de Cultura continua, tal como ontem, a assumir-se como um agente no processo da construção da identidade cultural açoriana e um participante activo no progresso e desenvolvimento desta Região, O Instituto Açoriano de Cultura, com cinquenta e três anos de actividade regular, declarado Pessoa Colectiva de Utilidade Pública, dispõe hoje uma sede adequada e tem mais de quatrocentos associados. Mas acima de tudo tem um património experiencial de apreciável dinâmica cultural, onde pontifica a sua capacidade de regeneração e adaptação a cada momento que passa, nunca aceitando modelos fixos nem perfeitos. José Machado Lourenço foi um homem que dotou esta instituição de um rumo claro e comprometido com a contemporaneidade. Resta-nos saber entende-lo a cada momento. A todos vós, quero também agradecer o facto de se terem associado a esta homenagem, singela certamente face à dimensão do homenageado, mas sincera e sentida como se presta homenagem aos mestres. [11] Mas o território do presidente Monsenhor José Machado Lourenço foi a revista Atlântida – a outra imagem de marca deste Instituto, fundadora da sua actividade, assegurada e projectada desde os primeiros tempos, em 1956 –, onde ele imprimiu, sem quaisquer rodeios, a sua orientação. Ao longo dos seus números, o presidente da direcção, e simultaneamente director da revista, assina editoriais que expressam bem o seu entendimento sobre o papel que cabia a este Instituto e ao seu órgão no âmbito da sociedade açoriana. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 12 NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO Artur Cunha de Oliveira INTRODUÇÃO [12] Em boa hora decidiu a Direcção do Instituto Açoriano de Cultura realizar uma sessão evocativa da figura e acção cultural de Monsenhor José Machado Lourenço, no ano do I Centenário do seu nascimento1. Para tanto tive a honra de ser convidado a testemunhar “a acção cívica de José Machado Lourenço, especialmente no que respeita à fundação e orientação do Instituto Açoriano de Cultura, ao longo do período em que foi presidente da sua Direcção”, o que faço com muito gosto e por múltiplas razões. Hoje em dia – e, até certo ponto, ainda bem que assim é –, vivemos um momento do processo evolutivo da humanização em que tudo, ou quase tudo, é imagem e som, é presente em tempo real, não havendo por isso lugar, pouco ou mesmo nenhum lugar, para a memória, para o espelho do passado que é a memória3. Daí que se faça cada vez menos “memória” das pessoas e dos feitos do passado. Uma segunda razão é a da solidariedade que nos une a todos neste mundo, desde o princípio das gerações. A bem dizer, o que cada um de nós é em cada momento da existência senão fruto e resultado do concurso de múltiplas (possivelmente milhões) de acções das mais diversas origens e naturezas? Dou-vos um exemplo tirado do meu mundo físico: O que aqui sou, neste momento, aos meus 84 anos de idade, é, fisicamente, resultado de quê? De um inumerável, de um inimaginável concurso de acções de agentes os mais diversos, alguns dos quais das mais remotas gerações, que, de diversíssimo modo, concorreram, com o alimento, com o agasalho, com os cuidados de saúde e de defesa, com tudo o mais que foi necessário e tornou possível estar aqui hoje, diante de vós, em carne e osso. Sem esses outros, que jamais saberei quem foram, e quem são – a não ser que haja uma justiça Imanente e aquilo a que os cristãos chamam Céu onde todos nos encontraremos, nos conheceremos, nos entrecomunicaremos e saberemos o 1 José Machado Lourenço nasceu a 12 de Agosto de 1908, na freguesia A primeira razão por que o faço com muito gosto é justamente por se tratar de um acto de memória. A memória, que foi o que, unicamente, alimentou durante dezenas (se não mesmo centenas) de milhar de anos as conquistas culturais no processo evolutivo da humanização da espécie, quase se não usa hoje. Caiu em desuso. Nesse tempo, nesse longínquo tempo que perdurou em alguns dos nossos ambientes rurais quase até aos nossos dias2, tudo foi memória e só memória. das Cinco Ribeiras, Concelho de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, onde viria a falecer na tarde do Domingo, dia 15 de Janeiro de 1984, aos 75 anos e 5 meses de idade. 2 Lembro-me, no meu tempo de criança, e no lugar da Vitória onde cresci, freguesia de Guadalupe, Concelho de Santa Cruz da Graciosa, ouvir contar histórias do passado, tornando-o presente, aos homens idosos do lugar: principalmente aos “tios” Picanço, Cumprido, Genrinho e, sobretudo, ao “tio” Cosminho, que andara na caça à baleia e trazia na garganta os sinais de uma tentativa de assassinato para o roubarem. É que ele navegara pelos mares das “Uastinjas” (West Indies), isto é, pelas Antilhas, e conseguira um pecúlio invejável. Lugar da Vitória. Antes de conhecer dos livros a razão destes designação, soube-a da boca desses sábios: lembrava a vitória dos habitantes da ilha sobre a investida, nesse lugar, de corsários argelinos no ano de 1643. 3 Veja-se que já pouco há quem faça “contas de cabeça”, quem saiba de cor a tabuada. As calculadoras resolvem tudo!... 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 13 NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO A minha segunda razão de ter aceite estar aqui hoje é esta: a da solidariedade. Não a solidariedade no mundo físico. Mas a solidariedade no mundo do espírito, a solidariedade cultural. Com efeito, aquilo que, quanto à solidariedade, e resumidamente, acabo de aplicar ao mundo físico com o caso do trigo (sem referir a repercussão que ainda hoje tem na minha vida o tímido gesto desse meu antepassado asiático, quando, há muitos e muitos milhares de anos!, experimentou se tal grão lhe serviria de alimento), isso mesmo podemos aplicar ao mundo cultural. O que não devemos, em termos de progresso, a uma simples ideia, que um dia brotou do cérebro de um pobre mortal e foi aproveitada por alguém que a pôs por escrito, assim passando-a de geração em geração? O que não devemos, já não direi aos sábios de todos os tempos, aos mentores de todas as idades, aos cientistas de agora e de sempre, mas a esse Gutenberg4 que inventou a imprensa, que assim tornou fácil o acesso ao livro, aos jornais, às revistas, a todas as formas de linguagem impressa, dando asas ao pensamento, às ciências, à arte poética, à ficção literária, a tudo quanto pode, melhor que outro qualquer meio, concorrer para a humanização do ser humano e a civilização dos povos? O que não devo eu, o que não deve cada um de nós, no que sabemos e no que conhecemos, a Gutenberg? Não pelos livros que escreveu, mas pelo facto de ter inventado o modo de nos tornar acessível o pensamento e o saber alheio por meio da imprensa? Nós, que somos pessoas do livro, podemos compreender melhor que ninguém a repercussão que a criação literária de seja que género for, seja sobre que assunto for, tem tido e terá pelas gerações e séculos fora, só pela razão de haver imprensa. E – tenhamo-lo bem presente – há e haverá livros e imprensa porque houve um Gutenberg. O que não deve, pois, o mundo da literatura, das ciências, das artes e da história por ter havido um Gutenberg? O que não devemos; o que não deve cada um de nós a esse, para nós desconhecido e quase nunca lembrado e nomeado, Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg? O que não deve a Cultura e, consequentemente, a humanização da nossa espécie animal a Gutenberg? Chegados a este ponto, creio que não será demasiada ousadia aplicar à criação do Instituto Açoriano de Cultura e a cada um dos seus fundadores, nomeadamente a Monsenhor José Machado Lourenço, que foi um deles; à revista “Atlântida”; e a tudo quanto, em termos culturais, lhes devemos (ao Instituto e à Revista), aquilo que, como segunda razão desta minha fala, deixei dito mais acima. Entramos, deste modo, numa terceira e última razão – a da justiça, que esta iniciativa da actual Direcção do Instituto cumpre para com Monsenhor Machado Lourenço. MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO Do convite que o exmo. Senhor Presidente, encarregado pela Direcção do Instituto Açoriano de Cultura, me dirigiu para participar nesta sessão evocativa “com um testemunho sobre a acção cívica de José Machado Lourenço, especialmente no que respeita à fundação e orientação desta instituição ao longo do período em que foi presidente da sua Direcção”, é lógico que me não possa desembaraçar do encargo sem antes vos dar a conhecer o essencial da biografia do cidadão José Machado Lourenço. É que o presente de cada ser humano, como de cada um de nós, deve muito ao seu passado. 4 Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, de seu nome completo, natural da Mogúncia (Alemanha), onde faleceu a 3 de Fevereiro de 1468. Não teve vida fácil. As corporações de ourives conseguiram que fosse exilado em 1448 em Estrasburgo. Mas voltou pouco depois a Mogúncia, continuando as suas experiências de tipografia, e acabando por imprimir em 1455 a Bíblia em latim. Estava lançada a arte tipográfica! [13] que devemos uns aos outros –, não seríamos nunca aquilo que somos hoje. Penso só no trigo que consumi durante toda a minha vida até hoje: quem o semeou? Quem o colheu? Quem o preparou para com ele fazer pão? Quem me trouxe esse pão? Quem me proporcionou o dinheiro com que foi possível comprar tal pão? Quem mo pôs na mesa? Etc., Etc., Etc.. Meu Deus! O que aí vai de gente e de gestos que me fizeram o que, fisicamente, sou hoje! O que devo a essa gente! Como não me sentir solidário com esse mundo ignoto, mas real? 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 14 José Machado Lourenço nasceu a 12 de Agosto de 1908 ali, na freguesia das Cinco Ribeiras, onde viria a falecer na tarde de Domingo, 15 de Janeiro de 1984, aos 75 anos e 5 meses de idade. Aos 12 anos foi levado para Macau com mais 7 jovens terceirenses, 1 faialense e 2 picoenses5, por mão do Padre João Machado de Lima, também natural das Cinco Ribeiras, mas missionário em Macau, que cá viera em licença graciosa6. Ordenado de presbítero em 16 de Agosto de 1931, missionou em Singapura e em Malaca, foi anos e anos secretário particular de D. José da Costa Nunes, primeiro em Macau e a partir de 1941 em Goa, aposentando-se em 1947 e fixando residência na sua freguesia e ilha natais. [14] Desde então foi professor de Português, de Latim e de Inglês no Seminário Episcopal de Angra, de Inglês e de Francês no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo, assistente do capelão católico do Destacamento Militar norte-americano na Base Aérea nº4, nas Lajes, e director do diário “A União”, propriedade da Diocese de Angra, de Junho de 1973 a Maio de 1978. Em Abril de 1947, o Papa Pio XII conferiu-lhe a dignidade de Prelado Doméstico (com direito ao título de Monsenhor) e em 1956 foi nomeado cónego da Sé de Angra por D. Manuel Afonso de Carvalho. O Presidente da República Portuguesa, General Ramalho Eanes, agraciou-o nesse ano com a Comenda da Ordem de Santiago da Espada. Entretanto, e durante todo o tempo da sua vida activa, manifestou-se intelectual curioso e cultor dos mais diversos géneros literários: desde a poesia à história, passando pela ficção, hagiografia, etnografia, ensaio, jornalismo e, até, pela didáctica7. Pelo facto de toda a formação intelectual, religiosa e sacerdotal, assim como a maturidade cultural e humana de Monsenhor Machado Lourenço se terem feito no Seminário de S. José, em Macau, e através da missionização por, praticamente, todo o antigo império português do Oriente: Macau – a pérola do Oriente, Singapura, Malaca e, nomeadamente, Goa – a Roma do Oriente, não admira que a personalidade de José Machado Lourenço possa ter tido, bem vincados, os traços de uma religiosidade e teologia católica tradicionais e, sob o ponta de vista cívico, os de um acendrado patriotismo, apoiado nas glórias do passado e concorde com a situação política de então, marcada pelo nacionalismo, pela estabilidade social e, não menos importante no caso, pela concórdia Estado-Igreja, Igreja-Estado, se não mesmo pela protecção do Estado à Igreja Católica, nomeadamente no que dizia respeito às missões católicas 5 Um destes foi Jaime Goulart, que viria a ser o primeiro bispo de Timor e cujo I Centenário do nascimento tem vindo este ano a ser celebrado na Diocese de Angra. 6 Este Padre João Machado de Lima frequentava o Seminário de Angra ao tempo em que era seu reitor o Dr. João Paulino de Azevedo e Castro (o primeiro picoense a ser bispo no Oriente) que, feito bispo de Macau, o levou para lá como seu fâmulo. Aí continuou estudos, tomou ordens sacras, missionou e veio a acabar na Cartuxa “Aula Dei”, em Saragoça. Era, então, hábito dos missionários açorianos no Oriente, quando cá vinham em licença graciosa, arrebanharem jovens para o Seminário de S. José, em Macau. O mesmo fez o Padre José Machado Lourenço, quando veio na sua primeira licença graciosa em 1938: levou consigo quatro adolescentes, entre os quais o futuro Padre José Barcelos Mendes, natural das Cinco Ribeiras, e o picoense Arquiminio Rodrigues da Costa, que viria a ser bispo de Macau, felizmente ainda vivo, residindo na sua freguesia natal, S. Mateus do Pico. 7 Na Poesia temos: A Mãe do Amor (versos), Macau, 1934, 137 pags.; Aleluias da Alma (sonetos), Macau, 1937, 111 pags.; Lusa Estrela (tercetos), Singapura, 1940, 109 pags.; Benedicite, Angra do Heroísmo, 1968, 160 pags.; Poetas do Povo, Angra do Heroísmo, 1969, 80 pags.; Três Poetisas angrenses, Angra do Heroísmo, s.d.. No que diz respeito à História: A Malásia e os Malaios, Macau, 1934; Pelo Oriente: Odisseia de um Missionário (acerca de D. José da Costa Nunes), Angra do Heroísmo, Jornal “A União”, de 20 a 27 de Janeiro de 1943; O Padroado Português do Oriente (Oração de Sapiência no Seminário Episcopal de Angra), 1950, 19 pags.; Macau, Portugal na China, Angra do Heroísmo, “Atlântida”, 1957, 14 pags.; Cinco Ribeiras: A Freguesia Branca, Angra do Heroísmo, 1979, 320 pags.. Quanto a Ficção: O Romance dum Malaio, Macau, 1934; O Romance dum Malaio (Novela Folclórica), Angra do Heroísmo, 1954, 227 pags.; Vitória! (Novela Folclórica), Angra do Heroísmo, 200 pags.; Contos Semi-Históricos, Angra do Heroísmo, 1980, 132 pags.. Hagiografia: Mensagem Cristã à Índia, Bastorá, 1945, 119 pags.; Vida Divina, Angra do Heroísmo, 1954, 143 pags.; Beato João Baptista Machado de Távora (Mártir do Japão), Angra do Heroísmo, 1965, 311 pags.; Por Terras do Sagrado Ganges, s.d.. Sob a rubrica Etnografia, aponto: Cantigas que se cantavam nos “terços” e festas das Cinco Ribeiras, Angra do Heroísmo, 1983, 40 pags.. Como Ensaios, registo: Goa e a Nossa Politica Ultramarina, Angra do Heroísmo, “Atlântida”, 1957, 11 pags.; Os Lusíadas – Poema Barroco, Angra do Heroísmo, “Atlântida”,1959, 14 pags.; Dívida ao Infante Dom Henrique, Angra do Heroísmo, “Atlântida”, 1960, 13 pags.; De Camões, do Seu Poema e do Espírito Lusíada, Angra do Heroísmo, 1982, 249 pags.; Finalmente, a Didáctica: Regras da Gramática da Língua Inglesa, Angra do Heroísmo, 1ª edição em 1952, 78 pags.; 2ª edição, em 1962, 82 pags.. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 15 NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO Em resumo: sob o ponto de vista religioso, Monsenhor Machado Lourenço era um católico tradicionalista e conservador. Sob o ponto de vista cívico, um homem do Estado Novo e admirador inconcusso de Salazar. A comprová-lo, permita-se-me que transcreva o que Monsenhor Machado Lourenço, então director da revista “Atlântida”, escreveu, em Nota Editoral, por ocasião do 70º aniversário de Salazar: “No dia 28 de Abril último Portugal celebrou o 70º aniversário de um dos seus Filhos mais ilustres – o Senhor Doutor António de Oliveira Salazar […] Verdadeiro criador do Portugal moderno, ele salvou-nos da bancarrota, que ameaçava a própria independência da Pátria! […] Em pleno século 20, Portugal era a terra das revoluções […] E em poucos anos ele impôs a ordem nas ruas como a impusera nas finanças! Em pleno século 20, não tínhamos estradas nem portos; não tínhamos Exército nem Marinha; não tínhamos moeda aceitável para além fronteiras nem crédito sequer para um simples fornecimento de carvão aos navios do Estado […] E ele mudou esse estado de coisas tão profundamente, que nos apontaram depois como exemplo a seguir […]. Deus, Pátria e Família – eis a triologia que esteve sempre na base da nossa Tradição e que fez a glória deste País através da nossa incomparável História. Deus, Pátria e Família – eis a base em que assenta a ideologia com que o grande Timoneiro dotou a Constituição Portuguesa, de inspiração nitidamente cristã! …” grama IAC, cujo primeiro Estatuto, preparado por uma Comissão Organizadora9, apoiada pelo restante corpo docente, inclusivamente pelo reitor de então10, viria a ser aprovado por Despacho ministerial de 28 de Janeiro de 1956, Do número 4 do artigo 5º do Estatuto já constava o nome de Monsenhor Machado Lourenço como presidente da Direcção, o que deve ser coisa rara em texto original de estatutos de fundação, mas se compreende perfeitamente dadas as circunstâncias sociais e, sobretudo, políticas da altura, que esclarecei melhor depois. Uma das coisas que importa deixar bem clara desde já, é não ter sido nossa primeira intenção criar um instituto, mas sim uma revista. E porquê uma revista? Os poucos (aqueles poucos) tínhamos plena consciência de ser necessário renovar a “face da terra” açoriana principiando justamente pelo pensamento11, pela criação da autonomia pessoal e crítica do pensamento, sobretudo pela maneira de pensar das classes dirigentes e de quantos exerciam alguma influência na sociedade. Até porque, como servidores oficiais da Mensagem Evangélica que nós éramos, mensagem que, na sua essência, é mensagem de libertação, de liberdade, de autonomia pessoal, não podíamos nem devíamos proceder de outro modo. A Palavra de Ordem desses poucos (muito poucos) era então: “Primeiro, o Homem. Depois, o Cristão”. “Primeiro, a Natureza. Depois, a Graça”, o que não deixou, na altura, de causar algum engulho e escândalo farisaico em muito boa e 8 Atlântida, vol.III, nº 3, Maio-Junho, 1959, 126-128. 9 Compunham-na, por ordem alfabética: Artur da Cunha Oliveira, José de E assim por diante, até ao voto de que – e cito – “Salazar continue para ser a garantia da Ordem, da Paz, do Progresso, do Bem-estar de todos nós, a garantia da continuação de Portugal cristão, de Portugal português!”8 O INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA Em Maio de 1955 foi criado no Seminário Episcopal de Angra o Instituto Açoriano de Cultura, que passo a designar pelo mono- Oliveira Lopes, José Enes Pereira Cardoso, José Machado Lourenço, José Pedro da Silva. 10 Padre Dr. José de Oliveira Lopes, membro da Comissão Organizadora. 11 Não deixa de ser oportuno lembrar que uma das primeira preocupações desses poucos, através de alguns dos seus alunos, foi criar no diário diocesano “A União” um suplemento literário quinzenal, com, precisamente, o título de “Pensamento”, por onde principiou, não direi a revolução, mas a desejada renovação. Durou de 5 de Dezembro de 1953 a 16 de Junho de 1956. A par, foram sendo publicados os “Cadernos do Pensamento”, assinados por alunos do Seminário e por professores, a par de outras pessoas de fora desse estabelecimento de ensino e de formação eclesiástica, como Cândido Forjaz e Tomás da Rosa. [15] no Ultramar e ao Padroado Português do Oriente, à sombra do qual Monsenhor Machado Lourenço, como aliás os restantes missionários (leigos e padres), gozavam de regalias semelhantes às de funcionários do Estado. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 16 santa gente, nem de trazer a uns dos protagonistas da mudança e do progresso reveses de toda a sorte e epítetos nada abonatórios12. Mas quanto à origem quer da revista quer, sobretudo, do instituto só nessa altura, isto é, em Maio de 1955, e porque nos encontramos numa “sessão de evocação em memória” de Monsenhor Machado Lourenço, nada como recordar, em primeiro lugar, palavras dele a respeito. Foi no discurso de abertura da V Semana de Estudo dos Açores, em Angra do Heroísmo e a 24 de Abril de 1966, que Monsenhor Machado Lourenço, na qualidade de presidente do IAC, afirmou o seguinte: “Foi há dez anos… e um pouco de mistério dar-nos-ia a razão deste nosso encontro, notável em toda a linha, na capital do Espírito Açoriano que é Angra do Heroísmo. [16] Um grupo de jovens professores do Seminário Episcopal (eu era o único de cabelos grisalhos) reuniu-se numa sala daquele estabelecimento, animados todos dum generoso pensamento: a publicação duma revista de cultura geral, à luz da doutrina católica13. Reconhecíamos, porém, que financeiramente a iniciativa era inviável sem um subsídio. Dirigimo-nos, assim, à Junta Geral, cujo secretário (actualmente dinâmico governador deste distrito) nos informou ser, legalmente, impossível tal subsídio. Providencial dificuldade, que nos descortinou mais vastos horizontes, quando o Sr. Dr. Teotónio Machado Pires nos sugeriu a fundação dum instituto, que a Lei permitiria subsidiar. Presidia ao nosso primeiro organismo administrativo o sr. dr. José Leal Armas, que não só nos prometeu o auxílio pecuniário, mas até nos animou com palavras de entusiasmo, que jamais esqueceremos. Nasceu, destarte, o Instituto Açoriano de Cultura. Note-se o nome: Instituto Açoriano de Cultura e não de Cultura Açoriana”. De facto, isto explica a razão de ser da seguinte afirmação inicial da Nota Preambular do Estatuto do Instituto Açoriano de Cul- tura: “Atendendo à falta, no Distrito de Angra do Heroísmo, duma instituição que vise, fomente e oriente a cultura geral das classes superiores da nossa sociedade, alguns professores do Seminário Episcopal de Angra tomaram a iniciativa de fundar, com sede no mesmo estabelecimento, um instituo cultural…”. Isto porque já havia no Distrito de Angra do Heroísmo, com sede na Junta Geral e subsidiado por ela, um instituto, não de cultura geral, mas dedicado particularmente à história e à etnografia, como acentuou o presidente da primeira direcção, Dr. Luís da Silva Ribeiro, na sessão inaugural do Instituto Histórico da Ilha Terceira, no dia 25 de Março do ano de 194314. Eis, pois, como e porque teve origem o Instituto Açoriano de Cultura e, consequentemente, o seu órgão oficial – a revista “Atlântida”. Eis também por que não podemos dissociar da fundação do IAC as pessoas de três distintos leigos terceirenses: o Dr. Teotónio Machado Pires, que nos abriu o caminho jurídico da fundação; o Dr. José Leal Armas, que no-lo pavimentou com um subsídio da Junta Geral, e o tenente-coronel José Agostinho, o cientista, que nos animou e assistiu desde o primeiro momento. 12 Um desses epítetos, o mais injusto e caricato de todos, com origem em bem conhecidas eminências intelectuais, naturalmente incomodadas com a novidade, foi sem dúvida o de serem (esses tais) “Peixinhos vermelhos nadando em pias de água benta”, para não lhe chamarem, abertamente, comunistas – o horribile dictu da altura. O estupor do epíteto até nem deixava de ter sua piada! Mas, só isso… 13 Este mesmo acto de justiça aos colegas mais novos do corpo docente do Seminário já o fizera Monsenhor Machado Lourenço no discurso de abertura da I Semana de Estudos, em Ponta Delgada e em Abril de 1961. V Livro da I Semana de Estudos dos Açores, edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1964, 1. 14 Veja-se o órgão oficial do novo instituto, o Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Vol. I, nº1, 1943, 1-6. À semelhança deste, assim o Instituto Cultural de Ponta Delgada, que embora com sede no Museu de Santo André daquela cidade, era subsidiado pela Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada e cujo órgão oficial é a “Insulana”, que se publica desde 1945, como também o Núcleo Cultural da Horta, criado em 1960, já depois do Instituto Açoriano de Cultura, com sede na Junta Geral do Distrito Autónomo da Horta e por ela subsidiado. Na contracapa do Boletim, órgão do Núcleo Cultural, lê-se que é seu objecto: “Promover ou patrocinar estudos históricos, etnográficos, linguísticos e científicos, relativos ao Arquipélago dos Açores e, em especial, às ilhas do Distrito da Horta…”. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 17 NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO Embora com certo pudor, não poderei deixar de lembrar que faziam igualmente parte da Comissão Organizadora do IAC outros dois nomes de jovens professores, que tinham tido a sorte de fazerem toda a sua formação universitária em Roma no imediato pós-guerra; quer dizer: de 1945 a 1951. Haviam, portanto, sofrido a influência das correntes de pensamento que sempre se formam de novo nos pós-guerra; assistido, inclusivamente, à mudança de regime (de monarquia para república), à difícil implantação do regime democrático na Itália e aos primeiros passos na regionalização do país com a criação da Região Autónoma da Sicília. E do mesmo passo que a mentalidade e personalidade de Monsenhor Machado Lourenço se haviam formado no ambiente religioso e patriótico do Padroado Português do Oriente, assim o dos restantes elementos da Comissão Organizadora do IAC, ora “no cadinho da guerra”15, ora no “do imediato pós-guerra”16, para usar expressões do Preâmbulo da primeira revisão dos Estatutos do IAC em 197817. Do que acima deixo dito, é fácil inferir que pudessem existir – e existiam, de facto – no seio da Comissão Organizadora do IAC e nos sócios mais activos, como que três grupos distintos: um mais conservador, outro mais progressista e outro intermédio. Em abono da verdade, porém, é bom que se diga: nunca ninguém ocultou o que pensava nem nunca houve acesas discussões e, muito menos, discussões irreconciliáveis. Sempre se honrou a liberdade de opinião e fez prevalecer o bem-comum, o que parecia melhor e mais cordato. Ademais, estávamos em plena ditadura. E era permanente, se não a vigilância, pelo menos a desconfiança sobre tudo o que não trazia a chancela oficial e pudesse contribuir para a formação de mentalidades e opiniões contrárias, ou apenas divergentes das da “situação”. Neste aspecto, e com plena consciência do que fazia, Monsenhor Machado Lourenço foi, sob múltiplos aspectos, o pára-raios do IAC e das suas actividades. Era o mais velho, o mais sábio e o mais experiente de todos nós. Benemérito e virtuoso missionário do Padroado Português do Oriente, intelectual ilustre e ilustrado, já havia concitado a admiração e o respeito dos seus pares, quer na ilha quer fora dela. Quem melhor do que ele para presidir ao IAC? Daí que, logo no Estatuto fundador do IAC, apareça como presidente da sua Direcção, e no mesmo Estatuto se faça referência a ilustres “membros originários”: da Igreja, do Estado e da Sociedade Civil18. Enfim, Monsenhor Machado Lourenço foi a pessoa mais capaz e mais digna de encabeçar a primeira Direcção do IAC não só pela sua envergadura intelectual e cultural, pela sua grandeza de alma e lúcida compreensão da situação, como pelo conhecimento que dele tinham e respeito que por ele nutriam as autoridades governativas e os presidentes e membros dos institutos 15 José Pedro da Silva e José de Oliveira Lopes. 16 José Enes Pereira Cardoso e Artur da Cunha Oliveira. 17 Uma outra revisão, embora sem esse nome expresso nem qualquer Nota Preambular, Preâmbulo ou fosse o que fosse que precedesse a leitura dos Estatutos do IAC, “aprovados em reunião da Assembleia Geral de 24 de Janeiro de 2002”, dá ideia de que o mesmo nasceu de geração espontânea, sem história nem ascendência, o que não deixa de ser estranho, além de tremendamente injusto. 18 Respectivamente, parágrafo 4 do artigo 5º, e parágrafo 5 do artigo 3º do Estatuto. [17] A história da origem do IAC e a evocação da memória de Monsenhor Machado Lourenço a ela ligado não ficariam inteiramente esclarecidas se não procurasse responder a uma pergunta que porventura baila no espírito de alguns de vós. E a pergunta é a seguinte: Se Monsenhor Machado Lourenço fazia parte do corpo docente do Seminário Episcopal de Angra desde 1947, e se, já antes dele, cá estavam leccionando e preparando jovens açorianos para o sacerdócio dois dos mais ilustres membros da Comissão Organizadora do IAC: o Dr. Padre José Pedro da Silva, futuro bispo de Tiava e depois bispo residencial de Viseu, e o Dr. Padre José de Oliveira Lopes, reitor do Seminário, como se explica que, só passados 10 anos, tenha surgido no corpo docente daquele estabelecimento de ensino, não só a ideia da fundação de uma revista de cultura geral como a criação de um instituto açoriano de cultura? 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:17 AM Page 18 culturais já existentes nos Açores, com os quais o IAC se propunha colaborar e mancomunar. Ademais, pela idade, pela disponibilidade, pela experiência de vida, pela autoridade moral e riqueza cultural, ninguém melhor que Monsenhor Machado Lourenço, do corpo docente do Seminário, podia e devia ser o primeiro presidente da Direcção do IAC. [18] Ainda bem que o foi durante vinte e dois anos (quase o tempo de uma geração), até que em 1978 tivemos de proceder à revitalização e a uma maior abertura do Instituto. Se assim não fora, se o primeiro presidente da Direcção do IAC não tivesse sido Monsenhor Machado Lourenço, e por tanto tempo, talvez o IAC tivesse soçobrado bastante cedo. Ainda conservo o original de uma convocatória dos sócios do IAC residentes no Seminário para uma reunião deliberativa e cujo 1º ponto era, justamente, a “possível fusão do IAC com o I.H.I.T., caso este a isso não se oponha”, e 5º, deliberar sobre a continuação das Semanas de Estudo dos Açores (já se tinham realizado três), “por iniciativa do Instituto ou por meio dum Secretariado Permanente”, que foi criado na altura. Isto em 29 de Outubro de 1964. Termino. E termino com um pensamento de Frei Bento Domingues na sua crónica dominical no jornal “Público” do dia 2 do passado mês de Novembro – Dia dos Fieis Defuntos: “Quando morre uma personalidade célebre, faz-se o elogio da sua obra, mas o autor parece que já não conta. Só há futuro para o património. Destaca-se a obra e as pessoas são reduzidas à categoria de cinzas, de estrume. Nos cemitérios, as lápides e os jazigos podem evocar um itinerário, mas a obra mais digna de nota, de cada ser humano, é ele próprio”. Agora, e a propósito dela, permitam-me que transcreva parte do que deixei escrito no jornal “A União”, no dia do I Centenário do nascimento de Monsenhor Machado Lourenço: “Monsenhor Machado Lourenço e eu, quer num campo (a Igreja do Vaticano II) quer noutro (o Estado Novo), sempre militámos em lados opostos: ele era um convicto conservador; eu, um inquieto progressista. Mas nunca, por nunca ser, nos desrespeitámos nas nossas opções; sempre transigimos com a conveniência ou a oportunidade da prevalência de uma sobre a outra; jamais alterámos a voz ou cerrámos o cenho; sempre nos respeitámos na liberdade da diferença; e, mais que tudo, nunca guardamos qualquer tipo de malquerença, antes pelo contrário. Não sei o que se passou com ele a meu respeito, mas posso garantir que sempre “bebi os fôlegos” por Monsenhor Machado Lourenço: pela sua bondade, pela sua bonomia, pela sua mansidão, pela sua pacatez, pela sua humildade, pelo seu desprendimento, pelo seu exemplo de sacerdote e de intelectual. E também – porque não dizê-lo? – pela graça das suas anedotas, pelo divertimento das suas partidas de cartas e, até, pela cumplicidade no cigarrinho que fumávamos no quarto dele entre uma e outra aula. Ah! Monsenhor Machado Lourenço, como tenho saudades de si e de ver e conviver com colegas como Você! Ah! Como a sua prática da tolerância fraterna (na religião e na politica) faz tanta falta hoje em dia! Obrigado, sempre Muito Obrigado, Monsenhor. E até breve”. 6/17/09 10:18 AM Page 19 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU Onésimo Teotónio de Almeida Começarei esta minha intervenção expressando o prazer muito especial que para mim foi receber este convite. Poderá parecer estranho se lhes disser que não gosto muito de escrever. Costumo mesmo dizer que gosto sim é de ter coisas escritas. Mas quando me chegou este convite do IAC aceitei-o com júbilo. Na verdade, há muito que pensara registar por escrito as estórias do Monsenhor Lourenço fazendo-lhe assim a minha homenagem de antigo aluno perpetuando-lhe a memória em registo de ficar. Palavras leva-as o vento, como todos bem sabemos. Nas suas aulas ele lançou muitas ao vento, mas não poucas ficaram na memória dos alunos. Eu queria fazer a minha parte: pô-las no papel. Daí o júbilo ao surgir-me esta ocasião. Fica implícito neste meu parágrafo introdutório que não venho fazer qualquer balanço nem biográfico do saudoso Monsenhor Lourenço, nem sequer um balanço literário da sua vasta obra, que aqui apenas referirei de passagem. Pura e simplesmente procurarei servir de intermediário, mero gravador que ouviu da sua boca estórias e apartes, comentários irónicos fora-de-página que me parece não se dever perder. Marginália pura. Obviamente que não esconderei a intenção ou a tentativa de procurar revelar uma faceta não-transparente para quem não conheceu o Monsenhor Lourenço de perto e que dele tem agora apenas os seus escritos. Destas minhas recolecções sairá naturalmente um retrato, que reconheço parcial. Antecipo-me a frisar que não pretende ser mais. Direi mesmo: é um retrato captado da oralidade das aulas, já que me sentei muitos anos nos bancos de aluno com ele como professor tanto de Inglês como de História Eclesiástica. Aliás, um magnífico e sintético retrato do Monsenhor foi elaborado com mestria por um outro aluno seu, meu antigo colega e hoje companheiro de diáspora, o florentino Nuno Álvares Vieira. Quando lhe disse que viria a Angra com esta missão, respondeu-me com o seguinte e-mail: “Encheu-me de emoção saber que tu ias ou vais falar numa homenagem ao Mons. Lourenço. Ainda mais emocionado fiquei por saber que tal homenagem estaria nas tuas mãos, pois sei através dos teus escritos que tu és um admirador do velho sábio – intelectual diversificado, historiador, teólogo sem ser de grandes beatices – batia uma só vez, de mão leve no peito, para dizer “mea culpa”, escritor, poeta (até as musas o inspiraram a escrever versos bonitos à rainha das festas da cidade), bom terceirense (amigo da sua terra), humorista, calmo, observador, bom medidor das proporções, compreensivo, altamente humano, etc. etc. Mais do que alguém poderia pensar – nada lhe passava desapercebido. Nada! Não te esqueças de quando dizia que os ministros do antigo governo asseguravam o povo de manter as suas petições debaixo de olho: sentavam-se sobre elas.”1 Tivesse eu o talento de James Boswell e escreveria, aposto, uma versão moderna de The Life of Samuel Johnson, tantas são as estórias que ao longo dos anos os seus alunos foram acumulando na memória. Não fiz qualquer pesquisa entre os colegas para esta ocasião. Socorro-me apenas da minha memória e, nalguns casos, das minhas sebentas, pois fosse eu pesquisar entre todos os seus antigos alunos e veriam que não exagero comparando-o com Johnson. O Monsenhor Lourenço repetia, aliás com muita frequência: As minhas aulas são de cultura geral. E tanto assim era que delas foi o que melhor se me colou na mente: os seus ditos, as suas estórias tão cheias de sabedoria, a que ao longo dos anos tenho 1 E-mail de 20 de Setembro de 2008. [19] 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 20 recorrido para ilustrar as mais diversas ideias. Há um livro americano intitulado Everything I Needed to Know in Life I Learned in Kindergarden, pois sem desprimor para o magnífico corpo docente que tive a sorte de me acompanhar no Seminário de Angra, poderia também eu dizer que muito do que necessitava na vida aprendi nas aulas do Monsenhor. Na verdade, os seus ensinamentos eram, mais do que dados, factos, ou peças epistémicas (para usar o jargão corrente), autênticas pérolas de sabedoria – e por sabedoria aqui eu refiro-me à mais clássica sofia dos gregos. Assim o avaliámos desde cedo e, por isso, quando a propósito do Centenário do Seminário em 1962 eu escrevi uma paródia parcial d’Os Lusíadas em que figuravam como deuses do olimpo todos os professores do Seminário, escolhi para o Monsenhor Lourenço a figura de Saturno. No final do panfleto, numa “Tábua dos Deuses”, eu explicava: “Saturno: Monsenhor Lourenço – Paz e abundância na idade de ouro”.2 [20] Era assim que o entendíamos, uma espécie de avô livre e magnânimo que ensina os netos sobre a sua experiência com uma atitude livre, uma dose de candura e uma certa bonomia que se fixam indelevelmente na memória deles, colando-se-lhes também ao coração. Aludi à obra literária do Monsenhor Lourenço e adverti que não me iria debruçar sobre ela. Não é de facto essa a minha intenção. Conheço-a e posso dizer que a li toda nos anos sessenta. Mas ela é do domínio público e prefiro aproveitar esta oportunidade para complementá-la com uma faceta da obra não escrita. No entanto, constato que não posso deixar completamente de referir também a escrita, cujos títulos recordo na íntegra quase por ordem de publicação, porque cada livro trazia a lista das obras publicadas e eu, que sempre tive, não sei porquê, uma pecha para os livros (escrevi sobre isso uma crónica intitulada “O meu último fetichismo”3), admirava a produtividade do meu professor, mesmo se já naquela altura os versos de À Mãe do Amor, Aleluias da Alma, ou Lusa Estrela e, mais tarde, de Benedicite, me pareciam demasiado datados no mundo clássico em que o Monsenhor sempre gostou de viver, e o fez assumidamente, nunca escondendo as suas preferências políticas de católico, apostólico, português (para mais monárquico) e, em literatura, poeta da velha escola. Nunca isso, porém, deu azo a que fosse ostracizado ou hostilizado por uma juventude que vivia fascinada com o novo e voltada toda para o mágico e revolucionário futuro. A sua novela Vitória era assim como que um rito de passagem obrigatório. Lia-o quem começava a entrar nos dilemas da idade de se descobrir o outro sexo. Conta a vida de um seminarista do Seminário de S. José de Macau, com estórias muito parecidas às nossas de Angra. Por lá os seminaristas não eram conhecidos por “melros pretos”, como em Angra, mas a sua situação era semelhante. De uma vez, num jornal local, apareceu um comentário de um anticlerical referindo o facto de num jardim da cidade só ter visto suínos e seminaristas. Reagindo em verso, alguém que parece ser o próprio Machado Lourenço, pergunta: se àquele jardim só iam suínos e seminaristas e o autor daquele comentário não era seminarista, então era o quê? Mas nessa novela o clímax era a descrição de uma ida do protagonista (o autor? seria autobiográfico esse livro? nunca o pudemos apurar) a Hong Kong para consultar um dentista especializado e que na viagem de barco se reencontra com uma jovem que por ele vivia apaixonada mas até ali sem ele saber. A tensão dramática adensa-se e, perto do final, há uma castíssima cena de beijo, na altura de tão explosivo efeito que os mais velhos e sabidos, os que nos recomendavam a leitura, esperavam pela nossa reacção: – Já chegaste à página… não sei qual agora, que para aqui trago tudo do saco da memória dos anos sessenta sem consulta aos livros que infelizmente perdi nas múltiplas andanças da vida4. 2 É breve a referência que na paródia lhe faço. Marte (o Dr. Valentim Borges de Freitas) ia falar em defesa dos alunos. Antes de começar a narrar essa sua intervenção, na estância 22, os primeiros quatro versos referem-se assim a Saturno: Muito perto e um pouco mais adiante Estava o velho e ridente Saturno Que o fizera rir havia um instante, Mas já estava agora sério e seguro. Onésimo Teotónio Pereira de Almeida, O Centenário (Paródia). Edição do Autor, 1963). 3 Que Nome É Esse, ó Nézimo? – e outros advérbios de dúvida (Lisboa: Salamandra, 1994), pp. 43-47. 4 Nos anos sessenta eu tinha todas os livros do Monsenhor, mas deixei-os nos Açores, juntamente com muitos outros, quando primeiro fui para Lisboa. Não poucos deles levaram descaminho. É, por isso, com imensa 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 21 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU Os seus apartes eram lendários. Saíam-lhe com uma naturalidade assombrosa. De certa vez, numa prova oral do primeiro ano de Inglês, perguntou ao António Filomeno Maia qual era o presente do indicativo do verbo to be. Nervosíssimo, o Filomeno gaguejou: I bee, you bee, he bees… E o Monsenhor: Pois, pois… Eu abelha, tu abelhas, ele abelha. Noutra ocasião, ouviu-se na aula o ruído de um avião. Os alunos mais próximos da porta para o jardim, que estava sempre aberta, esticaram o pescoço para ver melhor. O Monsenhor: Ok, não distraiam o aviador. Tinha uma predilecção por estórias que envolviam incongruências lógicas. Uma das suas clássicas era a dos grilos do padre Patagónia. Guardava-os o padre numa caixa de fósforos e todos os dias ia alimentá-los. Uma manhã, ao abrir a caixa, não os encontrou. Conclusão do padre Patagónia: Comeram-se um ao outro. Entre essas predilectas incongruências lógicas figuravam os famosos silogismos que não apresentava como seus. Aliás, não reclamava nunca originalidade nas estórias que contava: Tudo o que é raro é caro Um cavalo bom e barato é raro. Logo um cavalo bom e barato é caro. Outro exemplo de incongruência era o silogismo: Quanto mais se estuda, mais se sabe; Quanto mais se sabe, mais se esquece; Quanto mais se esquece, menos se sabe; Quanto menos se sabe, menos se esquece; Quanto menos se esquece, mais se sabe; Logo, não vale a pena estudar. O inglês era, segundo ele, uma língua estranha sem lógica correspondente na nossa gramática portuguesa. Uma palavra lê-se Roma, escreve-se Jerusalém e significa Jericó. satisfação que registo aqui o facto de agora voltar a possuir um exemplar de Vitória. Foi-me oferecido pelo meu amigo e antigo colega (um ano mais novo no curso) Heriberto Herculino Silveira Brasil, patrício do Monsenhor, pois é também natural das Cinco Ribeiras. Hoje meu @migo internético, convidou-me a almoçar no dia da homenagem do IAC e surpreendeu-me com essa bela oferta desfazendo-se do seu único exemplar. Cabe aqui um agradecimento muito sincero à sua generosidade. Nesse almoço, que teve lugar em S. Mateus à vista de bela água, e a que se juntou o Doutor Cipriano Franco Pacheco, ouvi aos dois várias novas estórias que no final deste meu texto serão reproduzidas. Pus-me, entretanto, imediatamente a reler essa “novela folclórica”, como o autor lhe chama em subtítulo, e foi com imenso prazer que facilmente recordei inúmeras passagens da primeira e única leitura que do livro fiz há 45 anos. A título de exemplo, menciono os versos do Palito Métrico, do folclore académico coimbrão, que um colega do protagonista de Vitória tentou verter para português, também em verso. Assim, Filius ille putae, qui primus carmina fecit saiu: Aquele filho da mãe / Que primeiro versos fez, / Merecia na cabeça / O que tem bovina rez! (Angra do Heroísmo: União Gráfica Angrense, 1958), p.p. 136s. O Monsenhor contava esta estória nas aulas. [21] Li também as obras de etnografia: O Romance de um Malaio e Por Terras do Sagrado Ganges, bem como o Beato João Baptista Machado – Mártir do Japão, Prémio João de Barros, da Agência Geral do Ultramar, que na altura me encheu de orgulho. Era o reconhecimento de um autor dos Açores, para mais meu professor. E o prémio não era desprezível: 15 mil escudos, se bem me lembro. Havia um capítulo sobre “Goa Dourada”, o quarto creio eu, com uma descrição romantizada, altamente idealizada e mítica mesmo, da Roma do Oriente. Teria irritado Edward Said – se o autor de Orientalism lhe conhecesse a existência, talvez o citasse como exemplo da mitificação ocidental do Oriente. Mas o dito capítulo terá afinal tido alguma razão de ser por razões que adiante aduzirei. Orgulhei-me igualmente quando descobri que a Enciclopédia Luso-Brasileira (que eu consultava amiúde na velha biblioteca do seminário quando com um pequeno grupo de colegas lá trabalhava como voluntário sob a orientação do dr. José Enes) incluíra uma entrada com o nome do Monsenhor, ainda que lhe dedicasse apenas umas linhas. Ainda esse mesmo orgulho interior eu senti ao saber que as suas Regras de Gramática da Língua Inglesa, por onde nas suas aulas aprendemos inglês, eram também usadas no liceu. E, se não li o livro Os Lusíadas – Poema Católico, foi simplesmente porque o havia lido em artigos à medida que iam saindo na revista Atlântida, que ele dirigia. Mas voltemos ao tema de que prometi ocupar-me. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 22 Em determinadas matérias controversas comentava: Sobre esta questão, as opiniões dividem-se. Há os que dizem que sim e os que dizem que não. Os que dizem que sim afirmam, os que dizem que não, negam. Eu não digo nem uma coisa nem outra, antes pelo contrário. As estatísticas, como as demais modernices, mereciam-lhe gracejos. Não acreditem nas estatísticas! Um homem come dois pães e outro não come nenhum, e vai as estatísticas dizem que cada um comeu um pão. Emparceirava, pelo menos aqui e não só, com Benjamin Disraeli, segundo quem havia lies, damn lies and statistics. Ainda como exemplo de incongruências paradoxais, contava aquela história de um homem que quis habituar o seu cavalo a viver sem comer, mas teve pouca sorte. Foi aos poucos cortando mais e mais a ração do animal e, quando o cavalo já estava mesmo quase habituado a viver sem comer, morreu. [22] Nesta ordem de ideias, contava a do homem que foi votar e encontrou um amigo: – Para onde vais? – Vou votar. – Em quem? – Em Fulano. – Então vamos para casa. Não vale a pena perdermos tempo. Eu ia votar por Sicrano! – que era da oposição. Não era nenhum exemplo de pedagogo aggiornado, o Monsenhor Lourenço. Usava nas aulas os antigos métodos, que lhe pareciam mais eficientes do que as novidades pedagógicas, e advogava-os igualmente para a religião. Queixava-se dos métodos modernos de missionação que faziam apenas pesca à linha, obtendo uma conversão de cada vez, ao contrário dos antigos que pescavam cristãos à rede, em massa. Muitas vezes lia monotonamente do compêndio e eu confesso que foi nas suas aulas de História Eclesiástica que devorei todos os quatro volumes de Un Periodista en el Concilio, do padre jornalista espanhol José Luís Martín Descalzo, que admirava muito como repórter do Vaticano II. Fazia-o alegando juvenil e parvamente que a história contemporânea da igreja relatada por Martín Descalzo era mais importante que a do Manual de História Eclesiástica, de Bernardino Llorca S. J.. Para tal, tive sempre a cumplicidade de colegas que me encobriam e, com as suas costas, me ajudavam a esconder dos olhares do Monsenhor. Ou julgava esconder, porque afinal não era possível iludi-lo. Olho de rato, era muito sabido e conhecia a psicologia humana muitíssimo bem. Não raras vezes atirava a sua piada, mas nunca protestou. Não gostava de chamar os alunos a exporem a lição. Como que tinha rebuço em apanhar alguém em flagrante impreparação. Contava a história de um professor que tinha idêntico problema e acabava chamando à lição quem acontecia cruzar olhares com ele. Os alunos, tendo-se apercebido disso, um dia ficaram na aula todos de cabeça baixa deitada sobre os braços cruzados em cima das carteiras. Ele ficou quieto e em silêncio, como a aula inteira. Passados vinte minutos de desconforto da rapaziada, um aluno espreitou pelo canto do olho e o professor captou-lhe o olhar: Exponha você a lição. O Monsenhor resolvia o seu problema usando uma latinha, e chamava um aluno para ir tirar um número à sorte. Havia algo dele mesmo na história que contava do professor que estava a examinar um aluno que não sabia nada. Perguntava-lhe por exemplo qual a capital da França. O aluno, moita. O examinador dizia: Paris. E pedia: Repita lá! E o moço repetia. E por aí fora. A cada pergunta sem resposta, o examinador acabava dando-a ele próprio, mas exigia que o examinando a repetisse de seguida. No final, deu-lhe um dez, a nota tangente da altura. Como? – atalhou o examinador assistente. – O rapaz não sabia nada. – Não sabia, mas ficou a saber. – Mas ele não sabe mais nada! E da bonomia do homem veio a sentença salvadora: – Sobre o que não lhe perguntei não posso ajuizar. Era muito parco nas notas. Dizia que só dava notas de porco – 9/10. Explicava que 20 era para Deus, que sabe tudo. 19 para o professor. 18 seria para um aluno que soubesse tanto como 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 23 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU A propósito da atribuição de notas, há uma história que uso com frequência aplicando-a a situações diversas da vida. Às vezes o Monsenhor corrigia testes na aula. Estava um dia a fazê-lo e ia comentando em voz alta. Chegou ao fim de um a que deu um 9. Começámos a torcer para que desse um 10: Monsenhor, quem dá nove dá 10. E o Monsenhor: Pronto. Lá vai 10. Entusiasmados com o bom sucesso, começámos a pedir: Quem dá 10, dá 11! – e o Monsenhor cedeu e subiu a nota. E fomos prosseguindo a ponto de a classe entrar em delírio quando se atingiu o 17. Ainda assim, continuámos a incitá-lo a ir mais longe: Quem dá 17, dá 18. O Monsenhor achava que isso era ultrapassar a sua proverbial escala e parou. Bom, vamos lá a ver: que nota é que eu tinha dado no início? E todos em coro: 9! Ele, sempre muito sereno: Ah! De 9 para 18 a diferença é muito grande. Fica o 9. Achei sempre espantosa esta estória como exemplo de se esticar demasiado a corda das normas e princípios. É sempre possível argumentar em favor de um pequeno jeito ou ajustamento a uma situação, mas isso só pode fazer-se até um certo ponto. Há que draw the line, como se diz em inglês. Em questões de ética, tanto em aulas como na vida real, tenho recorrido inúmeras vezes a esta sapientíssima e pedagógica – diria mesmo salomónica – decisão do Monsenhor Lourenço. O meu grande amigo Eduíno de Jesus lembrou-me que na antiga Retórica a memoratio não significava “decorar”, mas sim reunir coisas de memória para ilustrar. Nesse capítulo, o Monsenhor Lourenço tem sido para mim uma verdadeira Fonte de Hipocrene. Logicamente incongruentes eram as histórias do ingénuo Caldas Aulette, autor de um famoso dicionário, de que contava muitas, mas que – confesso – confundo por vezes com as que contava do famoso Dr. Assis, celebrada ingénua figura coimbrã da viragem para o século XX5. Um dia ofereceram (creio que ao Dr. Assis) uma bonita bengala. Na rua alguém a elogia e ele reage: – Sim, muito bonita. Só é pena ser muito grande. – Por que não a corta? – Porque, se cortar, vou eliminar a parte mais bonita, que é este belo castão. – Pois corte-a por baixo. – Não, que ela fica grande é em cima! Eram muitas as estórias que contava do Dr. Assis. Recordo uma das suas charadas: Contrário do princípio em francês; muito apreciado na mulher, com cedilha. Dá a primeira cadeira na Universidade: Finanças. Isto é, a cadeira que ele, Dr. Assis, leccionava. Havia nele um sentido pragmático algo inglês. E muito humor nessa cultura cultivado. Na cultura popular da sua Terceira também abunda o humor6, mas deve tê-lo alimentado sob a influência da cultura inglesa que conhecia muito bem. Privilegiava o raciocínio pragmático e era avesso a elucubrações abstrusas. A gente lê uma frase e não entende, conclui: – Burro eu! Lê-se outra vez. Não entende? Burro eu ou burro tu! Lê-se uma terceira vez e, se ainda não se entende, Burro tu! Uso inúmeras vezes esta estória nas minhas tiradas contra o uso pedante do jargão académico. Servi-me dela como fundo num conto do meu livro (Sapa)teia Americana a que dei mesmo o título de “Burro Eu!” 5 Ver Alberto Costa, O Livro do Doutor Assis. Possuo a 10ª edição (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1951), que não indica a data da primeira edição. 6 Sobre essa faceta da personalidade do Monsenhor, o Heriberto envioume uma achega biográfica preciosa e que transcrevo na íntegra: “O humor do Monsenhor Lourenço não nasceu, propriamente, por geração espontânea. Ele pertence a uma família (em sentido genérico) conhecida, aqui nas Cinco Ribeiras, pelos “Bilhanas”. Trata-se duma família célebre pelo seu sentido de humor. Um dos seus irmãos, o Marcial “Bilhana”, que era casado com uma prima de minha mãe, era um exemplo disso. Naquilo que dizia, nas partidas que armava. Ainda hoje, quem dele se lembra, recorda a alegria que ele espalhava à sua volta, com ditos e brincadeiras. Uma prima do Monsenhor, já em 2º ou 3º grau, por acaso também casada com um primo de minha mãe, ainda hoje é um excelente exemplar do humor dos “Bilhanas”. Acontecimento ou situação que aquela boca comente dá para partir a rir. E até o filho dela, com nome de Mago, Belchior, é hoje em dia uma das principais figuras dos terceirenses bailinhos de Carnaval. E sobressai (para além de ser um actor nato) imagina em quê: exactamente no humor. De há uns anos a esta parte, quando as pessoas, pelo Carnaval, aglomeradas em salões de sociedades recreativas esperam que passe um bailinho, é frequente ouvir-se a pergunta “quando é que chega o bailinho do Belchior?”. (E-mail de 2 de Janeiro de 2009). [23] o professor mas não pode ter a mesma nota por ser aluno. 17 era para o melhor aluno da aula, que aliás rarissimamente dava a alguém. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 24 Outra: Um homem vai a uma corrida de cavalos e o cavalo X ganha a corrida. O apostador conclui: - Foi sorte. O cavalo ganha nova corrida e ele concluiu: – Coincidência. O cavalo ganha a terceira corrida e ele aposta no cavalo. europeus que se conservaram até hoje com sangue europeu puro” – e o aparte: … a não ser um ou outro que se tingiu, mas por… contrabando. Sobre uma passagem que referia camelos, comentou: No Oriente, camelos são aqueles que se casam. Eram muitas as suas máximas: Tinha o que se chama a resposta sempre na ponta da língua. As O bom soldado nunca deve perder a cabeça. Se não, onde é que há-de pôr o capacete? E as suas observações do género: A maior invenção da História diz-se que foi a roda. Não. Foi o botão. Imaginem o que lhes aconteceria nas calças se não fosse o botão! Como fechariam a braguilha? Ou esta outra: O bom soldado deve dar o sangue pela pátria até à penúltima gota; a última é para fugir. [24] Entre nós, vários dos seus ditos transformaram-se em expressão corrente, como aconteceu com uma saída sua. Explicava-nos: saídas surgiam-lhe com frequência em trocas com os alunos. Sirva de exemplo uma sobre bastardos, a que chamava “filhos de trás da porta” (bastardos): – D. Afonso IV é talvez o único rei de quem não se conhecem filhos bastardos. O Carlos Fagundes interrompe: – E D. Pedro V? – Esse não teve tempo, coitado. Na última aula do período pedíamos-lhe uma vez que nos desse um feriado: – Não pode ser – disse ele e apontou para as salas ao lado. O Sr. Reitor veio dizer-me que esta aula é secundária e acaba a 18 de Março. Devo dizer-vos que recebi a notícia não só com resignação mas até com entusiasmo. Uma dos seus conselhos irónicos era supostamente o de um lente de Coimbra que recomendava aos alunos a lavagem frequente dos pés. Não calculam o prazer, o alívio que se sente nos primeiros quinze dias depois de lavados. Havia ainda os seus apartes quando ia lendo o compêndio em voz alta. De uma vez, era o referido Manual de História Eclesiástica: “Porém, ao querer pôr-lhe a coroa, Napoleão tomou-a em suas mãos e pô-la em si mesmo, coroando logo a seguir a sua esposa.” Comentário do Monsenhor: Hoje as esposas é que coroam os maridos! Estamos rodeados de graúdos: o reitor, o prefeito de estudos… É perigoso. Eu intervim: – Ó Monsenhor, na aula anterior o dr. José Nunes, que foi reitor no ano passado, deu só um quarto de hora de aula. E o Monsenhor: – Por essas e por outras é que ele saiu. De outra vez estávamos à procura de uma dispensa de um exercício escrito (ou tema, como chamávamos os pontos). – Monsenhor, esta semana já temos quatro! – Tudo de História? – Não, senhor: um de Direito, outro de Moral e outro de Dogma, mais agora este. – Bom, se os outros decidirem não fazer o seu, eu sou capaz de fazer o mesmo. A ler um texto sobre a Índia portuguesa: “O grosso das tropas que até há pouco havia na Índia é descendente dos antigos Noutra aula, lê: 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 25 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU De uma vez, na aula número 10 entra um aluno vindo de outra sala. Pede autorização para procurar um ponteiro que faltava na sua sala. O Monsenhor autoriza-o. O aluno percorre os cantos da sala e, sem êxito, desiste: – Não encontro ponteiro nenhum – e saiu. E o Monsenhor: Eu cá tenho o meu comigo. Outros ditos famosos eram: Há dois tipos de profetas: os maiores e os menores. Os maiores são os que acertam sempre; os menores, são os que nem sempre acertam. De vez em quando, na sequência de qualquer referência à França, acrescentava: … a filha mais velhaca, perdão, mais velha da Igreja… Eram várias as suas estórias parlamentares: Um padre-deputado falava no Parlamento e entra uma pomba na sala. Um deputado, conhecido por aparecer frequentemente bêbado, comenta alto: – Lá vem a inspiração do Espírito Santo! O padre deputado riposta: – Não. É a pomba que vem à procura do borracho!7 Outro deputado afirma de punho cerrado e com veemência: – Eu cá só tenho um partido! Da bancada da Oposição respondem-lhe: – Esteja calado, se não parto-lhe o outro! Mais uma ainda da sua série sobre o Parlamento: Um deputado: V. Ex.cia dá uma no cravo, outra na ferradura! Outro deputado: Porque V. Ex.cia não pára quieto com o pé.8 Ainda outra figura política preparava uma intervenção para ler no Parlamento anotando na margem do seu discurso: Argumento fraco. Ler mais alto. Eram inúmeras as estórias locais. Contou, por exemplo, a propósito de uma famosa gralha num anúncio de venda de colchões em frente ao Paço Episcopal, a do visconde que telefonou ao director de A União, Dr. Cardoso do Couto, por causa de uma notícia que saíra, por sinal da mesma forma que tinha entrado na redacção: Fulano [ele, o visconde], vende uma égua e os arreios por lhe não servirem. O Dr. Brasil, conhecido agnóstico de Angra, dava consulta gratuita aos pobres. Era comum agradecerem-lhe com a popular expressão Nosso Senhor lhe pague! O médico respondia: Não quero contas com ele, que é muito caloteiro! O dr. Valadão (“Velho”) estava a aprender a conduzir. Nervoso, viu ao longe uma vaca e avisou o instrutor: Eu vou dar na vaquinha, eu vou dar na vaquinha! E deu mesmo. Vira-se para o instrutor: Eu não disse? A mesma figura, na aprendizagem de condução com o instrutor a avisá-lo: Páre! Páre! O Dr. Valadão bate com o carro contra a parede. E o instrutor: Assim também pára; sai é mais caro! Numa freguesia da ilha havia uma rapariga que não era das melhores coisas que tinham vindo a este mundo. Um dia o ma- 7 O meu amigo e colega, Professor António Cirurgião, aposentado da Universidade de Connecticut, natural do Continente, também frequentou um seminário e diz que um seu professor contava essa estória e dizia que o deputado com fama de alcoólico era Brito Camacho. (E-mail de 11 de Dezembro de 2008). 8 António Cirurgião informa-me que esta resposta foi também de Brito Camacho. (Idem) [25] – O rei podia depor um bispo-conde. Ou um arcebispo-bispo-conde. Interrompi: – Monsenhor, li num livro que o antigo arcebispo, bispo-conde de Coimbra chamava-se D. Ernesto e os estudantes chamavam-no o ABCDE. O Octávio atalhou: – Ele já morreu! E o Monsenhor: – Ah! Então tem mais uma letra: F – Falecido. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 26 rido parece que deu uma cabeçada e partiu os cornos. Diz-lhe ela: Calma! Daqui a dias nascem outros. Antes tê-los inteiros do que tê-los partidos. Conservador assumido9, não se poupava a emitir os seus comentários críticos ao que à sua volta ia vendo. Um dia, referindo-se a um nosso colega de curso que encontrou sem colarinho na rua, disse: – Há dias encontrei na rua o José Manuel Franco. Fiquei sem saber se ele tinha desistido, ou se aquilo era o Concílio. O Varão pediu dispensa no início da aula, prática comum quando um aluno por qualquer motivo não tinha podido preparar a lição do dia. O Monsenhor: – Então vai ser chamado o vizinho do lado, o sr. Moules, porque se o senhor não estudou não vai poder ajudar o seu colega. [26] Terminarei com uma história que costumo contar quando se me oferece a oportunidade de dar um exemplo da finura de espírito e do sentido de humor do Monsenhor Lourenço. Era um dia cinzento de Fevereiro. Estávamos na sala número 4 (dizíamos “aula nº…”) junto ao jardim. Aula de História Eclesiástica e o capítulo daquele dia era sobre “A expansão da Igreja primitiva”. Como sempre, o Monsenhor hesitava quanto a quem chamar à lição. Na carteira mesmo em frente da sua secretária, o Manuel Faria de Castro esfregava as mãos para se aquecer: Está frio, Monsenhor. E este: – Pois. Faz frio, faria frio, porque é que o Faria não expõe a lição? O Faria estava completamente in albis e, ainda não refeito da surpresa, começou a papejar sem conseguir arrancar frase que se ouvisse. O Monsenhor, com mal-disfarçada ironia, ajuda-o: – Com que então, a Igreja… estendeu-se muito, não foi? A classe estala às gargalhadas menos o Faria que, nervoso, não se apercebeu do trocadilho, ou não se riu porque o riso geral era à sua custa. O Monsenhor prossegue então num tom ainda irónico mas agora também malicioso: … e logo no princípio, não foi? Há muitas mais estórias do Monsenhor e os colegas de outros cursos foram de certeza testemunhas de inúmeras outras que poderão também contar. Deveriam fazê-lo para se completar tanto quanto possível este retrato de uma personalidade brilhante e de mente tão rica. Nestes dias li o livro Plato and a Platypus Walk Into a Bar. Understanding Philosophy Through Jokes, de Thomas Caathcart & Daniel Klein10, um autêntico compêndio de Filosofia urdido com anedotas e ditos de humor. Com as de Monsenhor Lourenço poderíamos do mesmo modo compor uma espécie Livro da Sabedoria Segundo Monsenhor Lourenço. Na verdade, lembro-me de o meu antigo e estimado professor se ter uma vez referido a um livro dizendo que o pobre autor nele tinha posto tudo quanto sabia. Com ele, isso não foi possível. Os seus muitos livros são apenas uma pequena amostra de tudo o que ele sabia e o seu espírito criou. Incito, por isso, os meus colegas a colaborarem enquanto a memória lhes permite. Nunca o seu humor foi por qualquer um de nós tomado como agressivo ou ofensivo. Havia na sua personalidade uma bonomia sábia da vida, compreensiva das fragilidades humanas que, no enquadramento do seu aspecto físico algo curvado, frágil e, para nós jovens, já avançado em anos, lhe davam um estatuto ou auréola de avozinho querido dos netos porque a autoridade já não residia nas suas mãos e não lhe cabia impor disciplina ideológica ou vigiar os nossos pequenos desvarios de jovens. Em troca, de todos só recebia carinho, respeito e admiração. 9 Não contarei aqui uma estória que reflecte bem o patriotismo português do Monsenhor, bem expresso na letra que, a pedido do Dr. Edmundo Oliveira, escreveu para o “Coro dos Soldados”, da ópera Fausto, de Gounod, que cantámos no orfeão. O excessivo passadismo nacionalista desses versos fez-me escrever uma paródia anti-salazarista. Mas essa narrativa ficará para um outro escrito, em outro contexto. 10 (Abrams Image, New York, 2007). 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 27 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU No início mencionei Edward Said e o orientalismo que ele abominava, mas acho que faria mais sentido evocar aqui a resposta indirecta de Ian Buruma e Avishai Margalit sobre o correspondente ocidentalismo que no Oriente encontraram11. Só que o caso de Monsenhor Lourenço é diferente tanto de Said como de Buruma & Margalit, pois tendo a visão que transmitia sido forjada no próprio Oriente, fora depois complexa e duplamente mitizada no seu regresso, ao deparar com um Ocidente que se afastava a passos largos dessa dourada visão do mundo. Nessa minha primeira viagem ao Oriente, em 1982, senti-me impulsionado a escrever umas linhas ao Monsenhor Lourenço, com quem nunca mais contactara desde que do Seminário saíra, em 1969. Lembro-me de ter adquirido vários postais das ruínas da Igreja de S. Paulo, em Macau, e de os ter enviado a alguns amigos com a seguinte nota referindo-me à presença portuguesa naquelas paragens: “De pé ainda, mas os restos.” Não foi isso que escrevi ao Monsenhor. Não retive o texto verbatim, mas seguiu algo assim: “Vim aqui verificar in loco tudo o que já sabia por lho ter ouvido nas suas aulas.” Cerca de seis meses depois, eu recebia a notícia da sua morte. Mas um amigo próximo dele garantiu-me que ele recebeu o meu postal e o leu com lágrimas nos olhos comentando: “Nunca sabemos aquilo que ensinamos onde vai cair”. Foi a última lição que do Monsenhor Lourenço recebi e é agora mais um dito que dele – com verdadeira saudade e carinho – conto, sempre que a ocasião se me oferece. Só tenho pena de não ter estado mais atento nas suas aulas para ter podido arquivar na memória muito do que de certeza irremediavelmente perdi. Mas dessas imbecilidades juvenis não vale a pena vir aqui lamentar-me. O Monsenhor Lourenço sabia dosear a nostalgia com sal irónico e não se comprazia em lamentações. ADDENDUM Não era preciso ser adivinho para prever o que iria acontecer com esta homenagem. Decidi enviar o texto a três dúzias de amigos e antigos colegas, hoje espalhados pelo mundo, e ele despoletou uma cadeia de reacções carregadas de afecto por esse nosso antigo professor, e trazendo-me estórias adicionais. Outras foram-me contadas na minha passagem por Angra, aquando da sessão de homenagem do IAC, bem como no dia seguinte, em Ponta Delgada, num encontro de colegas do meu curso que resolveram assinalar com um convívio os cinquenta anos da nossa entrada para o Seminário Menor naquela cidade, em 1958. Tendo sabido da sessão em Angra, pediram-me que relatasse o que ali se passara e recontasse algumas das estórias que contara na minha intervenção. Obviamente que choveram as lembranças de cada um e o carinho pela pessoa do Monse- 11 Occidentalism. The West in the Eyes of Its Enemies (New York: The Penguin Press, 2002). [27] Não deixa de ser deveras curiosa a diferença entre uma obra escrita conservadora e a personalidade no fundo aberta e compreensiva de alguém reconhecendo que, sendo embora de outro tempo, que considerava bem melhor do que o novo, admitia ter esse seu tempo já vivido a sua época. Fora educado no Oriente, por onde circulou numa rede de baluartes da civilização ocidental e cristã – Singapura, Malaca, Goa, Macau. Repetia-nos com frequência: Quem não foi ao Oriente não conhecerá nunca a obra que os portugueses lá fizeram. Só anos mais tarde, quando tive oportunidade de visitar o Oriente, pude aperceber-me do prestígio que ali gozava ainda o Portugal de outrora (até nos táxis ouvi elogios rasgados a Portugal) e de como a Igreja católica, apostólica, portuguesa/goesa, era de facto uma realidade voltada para um passado de ouro que, mesmo se largamente mítico, se pressentia como realidade prestigiada e prestigiante. Os últimos exemplos que conheci foram os de um descendente de goeses, Miguel Rodrigues-Kamat, meu aluno na Brown, que me falava da Goa Dourada com a mesma letra e música ouvida ao Monsenhor Lourenço, como se tivesse lido o tal capítulo quarto da biografia do seu Beato João Baptista Machado. Fez mesmo uma tese de licenciatura em História sobre “The Golden Goa”. Hoje médico, ainda não alterou a sua visão romântica. E mais recentemente, tenho outro aluno, este chinês, o Yi Liu, de Beijing, que me chegou à Brown com uma também altamente positiva ideia de Portugal, como se o nosso país de hoje mantivesse o fulgor imperial de há quinhentos anos. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 28 nhor Lourenço ficou refrão na corrente de sentimento dessa noite de nostálgica alegria.12 De Lisboa, onde trabalha na comunicação social, um e-mail do cónego António Rego como que deu o mote: “Fui transportado a um mundo fantástico”, revelando o quanto aqueles idos anos sessenta pertencem a um passado que não só é de outro século como de outro milénio. Optei por, além das estórias novas, reproduzir as passagens que ao Monsenhor se referem pois isso dará uma dimensão mais representativa e alargada da justeza desta homenagem do IAC.13 Da sua actuante livraria Culsete, em Setúbal, Manuel Pereira de Medeiros enviou-me um e-mail que, não sendo exactamente sobre o Monsenhor Lourenço, ajuda a criar um enquadramento importante, desenhando uma espécie de contexto temporalizado que permitirá ao leitor compreender melhor a auréola mítica que envolve estes anos 60 (no caso, também ainda fim da década de 50) nuns Açores remotamente isolados do mundo: [28] Marcou muito o meu curso. O tal curso que marcou muita coisa, como ainda agora foi possível perceber na reunião de 15 de Junho p.p.. Regressado à Terceira estávamos no 5.º ano, fôramos os primeiros alunos de Coelho de Sousa em Português no 3.º e 4.º. No 5.º Português, Inglês e História com Mons. Lourenço. Antes de no 6.º a Literatura com o Cónego José Augusto Pereira. E também no 6.º Filosofia com José Enes e Grego com Cunha de Oliveira. Vês a sequência e a sorte? Percebes o que de mim veio a mim desta sequência? Há mais. Especialmente Simão Bettencourt, de difícil intimidade mas comigo desde o primeiro ano até à sua morte uma grande e riquíssima amizade. Tenho que ter mão em mim para não encher a tua caixa de correio!! Vê lá se não há na tua memória atribuída a Mons. Lourenço alguma piada que já andava no ar das aulas n.º 4, 3 ou 10 antes de lá ele entrar...14 Do Carlos Sousa, antigo Chefe dos Serviços de Emprego nos Açores e director do muito conhecido grupo musical Belaurora: Mal recebi o teu e-mail, abri imediatamente o texto e li-o com sofreguidão. Acabei com lágrimas nos olhos. De alegria e de comoção. Bendita a hora em que se lembraram de Monsenhor Lourenço, para o homenagear. […] Também em mim, Monsenhor deixou gravados indelevelmente pedaços de sabedoria, (a pouquinha que tenho foi somatório do tanto que daquele tempo ficou). E, como “a memória é a faculdade de esquecer”, espero que em mim só se apaguem no ponto final da vida.15 O Januário Pacheco, que durante muitos anos leccionou no Luxemburgo, reagiu num e-mail, enviado creio que de Lisboa: […] Tenho muitas saudades do Mons. Lourenço e tenho muita pena de não ter fixado muitos dos seus ditos e anedotas cheias de humor e de sabedoria, como dizes. Nas férias ia muito a casa dele. Era muito simples, acolhedor para todos os vizinhos e familiares. Estou a vêlo sentado, a saborear o seu cachimbo, entre os seus livros desarrumados. Depois, os afazeres e a revolução fizeram esquecer o muito que o Monsenhor dizia e sabia. Foi pena. […] O seu modo de estar com todos, e os pequenos factos que contas no texto definem a sua personalidade melhor do que tudo. E era uma pena as novas gerações ficarem sem os conhecer. Depois de assim escritas e relembradas, vão perdurar. 12 Era minha intenção ler, na sessão do IAC, passagens dos e-mails entretanto recebidos, mas o facto de na sala um bom grupo de pessoas estar a assistir de pé levou-me a não querer prolongar a minha leitura. 13 Eliminei das citações as referências ao texto em si. 14 E-mail de 4 de Dezembro de 2008. 15 E-mail de 5 de Dezembro de 2008. Num e-mail após a leitura deste texto na sua versão completa, o Carlos Sousa enviou o seguinte contributo: “Vê se consegues incluir aquela máxima fantástica: ‘A filosofia é a ciência com a qual e sem a qual nós ficamos tal e qual’. E aquela outra: Estávamos nos 10 minutos de tolerância na aula à espera do Monsenhor. Vai não vai e, mesmo em cima da hora, cortámos por outro caminho, para ir para o Salão e, consequentemente, não termos aula. O Monsenhor deve ter desconfiado, pois o que escreveu no Livro do Ponto foi o seguinte: ‘Os alunos fugiram da aula’. (Talvez assim não tenha perdido os 10$00 que era o que recebia um professor por cada aula dada).” (E-mail de 2 de Janeiro de 2009). 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 29 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU De um e-mail do Nuno Álvares Vieira, que na sua aposentação lecciona no Stonehill College em Massachusetts, e de quem já citara no meu texto um e-mail anterior, retiro a seguinte passagem: Ainda a respeito do Monsenhor, uma coisa que aprendi dele foi “a arte de se poder falar positivamente de alguém, mesmo quando não haja muito de positivo para se dizer”. Sabes onde aprendi isso? Através das recensões que ele fazia de livros na Atlântida. Sem escrever nada de negativo, dava margem suficiente para o leitor se aperceber do calibre de obras de menos qualidade. Assim era a índole bondosa e carinhosa do velho Monsenhor.17 O José Luis da Costa Rodrigues, antigo professor de música e maestro de coro num Liceu de Genebra, Suiça, conta: No refeitório dos “superiores” não sei se o Padre Coelho, o Dr. Cunha, ou o Dr. Enes, um deles, tinha feito um poema que só falava em cruzes. O autor pergunta ao Monsenhor: O que pensa do meu poema? – Penso que estamos diante de um cemitério... […] temos todos muitas recordações do Mons. Lourenço cujo humor era contínuo mas sem ofender.19 Artur Goulart, antigo Director do Museu de Évora, bem como antigo Chefe de Redacção de A União, partilhou comigo um importante dado para se conhecer melhor o que se passou num período particularmente duro da vida cultural angrense: […] uma bela homenagem [a uma pessoa] de quem tenho óptimas recordações, embora o não tenha querido acom- 16 E-mail de 4 de Dezembro de 2008. 17 E-mail de 6 de Dezembro de 2008. 18 Em benefício dos que não sabem latim (ou dos que já o esqueceram): O Mons. Lourenço interrogava um aluno. Como este não soubesse nada, a chamada consistia em perguntas do Monsenhor. O aluno levantava a cabeça para ouvir a questão, olhava para o livro, levantava a cabeça e saía com o que tinha lido. Nova pergunta mesmo procedimento. A todas as interrogações era um mergulho no livro e uma cabeça que se levantava com uma resposta ao lado. Para acabar com o manejo o Mons. pergunta ao aluno: – Sabe o que tem de comum uma galinha e um aluno que não estuda as suas lições? – Mmm... – Os dois aplicam a palavra do Salmo: De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput. Consulta feita: último versículo do Salmo 109.18 Na sua gramática inglesa o Monsenhor Lourenço alternava regras em português e regras em inglês. As primeiras destinadas aos alunos do primeiro ano de inglês eram ditas as regras para os “menores de 18 anos” (alusão à proibição de certos filmes aos menores de 18 anos). No segundo ano era abolida essa proibição; daqui em diante tínhamos acesso às regras em inglês como quem pode ver todos os filmes graúdos... Beberá da torrente no recto caminho, / por isso conservará erguida a cabeça. (Segundo a versão traduzida do original e dirigida pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, edição das Edições Paulinas, São Paulo, 1967). Na novela Vitória uma estória parecida vem assim contada: “Era bondoso o Cónego Clímaco, mas não permitia o livro aberto, para o aluno se não transformar em galinha: De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput. (P. 171) Obviamente que muitas das estórias que o Monsenhor Lourenço contava inseriam-se numa tradição que ele próprio alimentava recriando-a com adaptações. 19 E-mail de 9 de Dezembro de 2008. Em e-mail posterior, o José Luís acrescentava esta estória: “O Mons. tinha um quarto no corredor dos professores que ele nunca fechava à chave. Para mais ele não dormia nesse quarto, preferindo a sua casa nas Cinco Ribeiras. O Piques, (mais tarde Dr.) na hora de estudo da manhã e após uma chamada, quis saber a nota que tinha tido e nada era mais fácil do que entrar no quarto e consultar a caderneta das notas. Sem mais cerimónias, abre a porta e... defronta-se com o Mons. Lourenço que, excepcionalmente, tinha dormido no Seminário. “Monsenhor, vinha aqui para me confessar!” disse todo atrapalhado. O Virgínio (meu primo), que seguia de longe a cena, quis pregar uma partida ao Piques. Abre por sua vez a porta e diz: “Oh Piques. despacha-te que o Monsenhor está a chegar...” Vira-se o Monsenhor: “Monsenhor só há um e para confissão é um de cada vez. Espere um momento”. Falámos desta brincadeira (eu, o Rego e o Piques e este riu-se muito) na última vez que na Ribeira Grande vi o Piques, já doente mas ainda lúcido. Guardo desse encontro uma lembrança luminosa.” (E-mail de 1 de Janeiro de 2009). [29] Até pensei ir à Terceira também para assistir as essas homenagens. Ainda não sei se vou. Vamos ver.16 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 30 panhar n’ A União quando ele foi nomeado director. Achei que me devia solidarizar com o dr. Cunha de Oliveira e, pese embora o pendor humanístico e honesto do Monsenhor, a abertura a outros ventos não se compadecia. Apesar disso, sempre tivemos excelentes relações, como professor, como colega (?), grande companheiro de bridge, de humor fino e inteligente, de inúmeras histórias dos orientes. […] Julgo que também é dele a dos “quatro reis de Israel, que eram três, Esaú e Jacob”. E aquela belíssima em latim, que procurei ontem nos meus papéis e não encontrei, referente aos cónegos, e que ele contava mesmo depois de ter sido nomeado tal, que deves conhecer e que acaba por afirmar, uma vez que basta um cónego para constituir um Cabido, que “quanto menor é o número, maior é a besta”. Tem piada é em latim.20 Do Urbano Bettencourt, poeta e professor na Universidade dos Açores, chegou-me o seguinte: [30] [… o teu] contributo para o perfil de JMLourenço, uma espécie de retrato em composição avulsa ou fragmentária, que dá conta de um homem cujo mundo, aparentemente, não era daquele reino sorumbático e pesadão do Seminário. O teu elenco é bastante vasto, afinal tiveste-o como professor em três disciplinas. Só o tive em Inglês, para mais naquela idade idiota dos 13-15 anos, mas lendo o teu texto lembrei-me de dois comentários dele. O primeiro possivelmente terá ocorrido também contigo, pois deves ter estudado Inglês pelo mesmo livro ...azul : quando estudávamos o humor de Three men in a boat, de Jerome K. Jerome, ele “dava-se ao trabalho” de traduzir para português... o nome do autor, Jerónimo Kapa Jerónimo, acrescentando logo: quem capa um capa dois. Numa aula em que andávamos a contas com o “My bonnie is over the ocean / My bonnie is over the sea”, um dos meus colegas, já não sei qual, foi encarregado de ler e talvez levado pela pronúncia de “ocean” foi no balanço e, em vez de “over the sea”, leu “over the she”. Comentário imediato de Monsenhor Lourenço: “Ora, ora, em cima dela não!” Tanto um como outro comentário eram coisas altamente improváveis de serem ditas numa aula “eclesiástica” naquela primeira metade dos anos 60. Mas acho que me têm servido também de modelo para algumas “quebras” inesperadas no ambiente das aulas.21 João Esaú Dinis, que foi Director da Escola Superior de Tecnologia de Saúde de Lisboa, acrescentou esta estória: Dele retive o caso de, no Concílio de Mâcon, se ter discutido, duvidado ou, pior, afirmado que as mulheres não teriam alma. Face ao desconforto da história, lá foi [o Monsenhor] explicando: “Pois, os padres da Igreja, num intervalo das sessões, enquanto passeavam para trás e para a frente, pelos corredores, terão comentado entre si do seguinte modo: “Pela maneira como tentam o homem, até parece que as mulheres não têm alma como nós”. E com tal amenidade, parecia incólume a infalibilidade conciliar.22 De Brampton, Canadá, o trota-mundos Eduardo San-Bento Couto, depois de um e-mail apressado, enviou-me no dia seguinte um outro, comovente, em que acrescenta mais algumas estórias pessoais, de diálogos tidos com o Monsenhor Lourenço: Ontem, a compreensão foi resultado de velocidade de leitura; hoje, foi de meditação. Chorei sem querer, tal a realidade presente dos ditos e situações. Embora tu e eu não compartilhássemos da maioria das aulas com Mons. Lourenço, revi-me em quase tudo o que testemunhaste. Mas, porque penso que este é o tempo oportuno, ou nunca o será, aqui vão alguns aspectos do Monsenhor, os quais me tocaram e sobre os quais, como tu, ainda reflicto frequentemente: O seu pasmo perante a pluralidade e relatividade das religiões. 20 E-mail de 6 de Dezembro de 2008. 21 E-mail de 5 de Dezembro de 2008. 22 E-mail de 4 de Dezembro de 2008. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 31 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU 2. O seu entendimento profundo dos símbolos religiosos. Repara nesta: «Senhor Couto, o que é mais fácil de aceitar? Comer e beber Deus ou lavar-me na urina de uma vaca? A última é muito mais simples e menos horripilante». 3. O cuidado com que lidava com excepções. (Método científico aplicado à pedagogia). Como eu nunca senti que tivesse liberdade de ter notas baixas, lá ia tentando também exceder-me no inglês. Nota frequente do Mons. no papel dos ‘exercícios’: «17 valores. Tudo certo. Deves ter copiado.» No princípio, eu ripostava; mas Mons. respondia-me: «Não ligues a isso; 17 significa tudo certo; e se copiaste, tanto melhor para ti». Outros teriam aberto um inquérito... Onésimo, desculpa-me o arrazoado. Mas és o culpado porque me fizeste reviver coisas bonitas em fim de ano.24 Vários outros e-mails me chegaram dos mais diversos pontos do globo. Recordo, com receio de esquecer nomes, os de Manuel Quaresma (professor na Catholic University of America, Washington, DC25), Olegário Paz (que durante décadas leccionou em Lisboa), António da Silva Cordeiro (antigo professor no Seminário, há décadas residente em New Jersey, EUA), Octávio Ribeiro de Medeiros (Vigário Episcopal e professor na Universidade dos Açores), Gualter Dâmaso (da Açortravel), José Gabriel Ávila26 (ex-RTP-Açores e bloguista), todos em Ponta Delgada, e Afonso Carlos Rocha (Reims, França)27. O jorgense José Manuel Melo (gerente bancário aposentado, também em Ponta Delgada), evocou o seu “antigo e sempre recordado professor”, acrescentando que numa festa de S. Tomás de Aquino foi declamador de um poema de Mons. Machado Lourenço – “’Ao Anjo das Escolas’ – escrito de pronto para o acontecimento”28. De Toronto, o José Carlos Rodrigues, advogado e antigo maestro do Orfeão Edmundo Oliveira, de Ponta Delgada, fez também uma emocionada evocação de J. Machado Lourenço num e-mail que por acidente perdi. De Oakland, Califórnia, uma carta do Fr. Joe Ferreira refere: 23 Num subsequente e-mail, o Eduardo San-Bento acrescentava: “[…] eu nunca entendi o significado real de «refeição nirvânica da última hora». Mais tarde investiguei e cheguei à conclusão de que a expressão se referia à refeição final durante a qual, no processo de reincarnação, uma equipa multidisciplinar decide sobre a salvação final ou entrada no nirvana. Fim do ciclo reincarnativo.” (E-mail de 28-12-2008). 24 E-mail de 27 de Dezembro de 2008. 25 Após a leitura da versão final deste texto, o Manuel Quaresma escreveu: “Senti-me de novo transportado a um mundo que recordo com saudade. Esse mundo seria muito mais pobre sem a figura única do Mons. Lourenço.” Refere depois a “personalidade inesquecível” dele, “que excedia os horizontes desse mundo. Ele era na verdade um homem universal. […] Então, como agora, são raros esses exemplos de abertura de espírito.” (E-mail de 2 de Janeiro de 2009). 26 Cabe aqui nesta maré de evocações memorialistas, e até de confissões, evocar a saudosa memória da mãe do José Gabriel, a Dª Olga Ávila. Nos nossos anos de aprendizagem de inglês, ela alimentava-nos a preguiça enviando pelo correio ao filho envelopes acuculados de traduções dos textos do compêndio que usávamos e que o Zé acamaradamente partilhava connosco. Nascida e educada em New Bedford, Massachusetts, ainda estou a ver-lhe a caligrafia americana e a limpeza daquelas páginas escritas sem hesitações. Foi um De torrente in via bibet de que o Monsenhor nunca suspeitou. Mas anos mais tarde, ainda mesmo em Angra, paguei a cabulice quando me apercebi da importância do inglês (éramos todos francófilos) e comecei a estudar pelo livrinho da Assimil cinco minutos de inglês todas as noites, antes de me deitar. 27 Também natural das Cinco Ribeiras, pretende incluir este texto num dos seus blogues. 28 E-mail de 30 de Dezembro de 2008. [31] Visitei o Oriente pela primeira vez em 1972; ainda estava bem viva em mim a experiência das vivências de Mons. por aquelas paragens. E então percebi o significado da sua luta romana monolítica perante o monolitismo hindu e budista, e respectivo pragmatismo. Assim me respondera Mons. com seu algo de sarcasmo perante a minha procura gélida da veracidade: «Senhor Couto, o baptismo não faz mal a ninguém do mesmo modo como não faz mal o banho da vaca santa ou a refeição nirvânica da última hora»23; respeitar as três visões é um investimento seguro sem consequências negativas». Aquilo escandalizou-me, embora no fundo tivesse gostado muito da resposta. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 32 a memória benquista do saudoso Mons. Lourenço, de quem guardo as melhores recordações, sobretudo pelo incentivo que me dispensou nas minhas inclinações jornalísticas. Um autêntico gentleman, bondoso e com um fino senso de humor. Tive sempre por ele a mais profunda admiração.29 Na sequência da longa conversa com o Heriberto Brasil, pedi-lhe que passasse à escrita as estórias que me contou. Fez o favor de aceder ao meu pedido e, de um e-mail seu, seu extraio as que se seguem: [32] Quando Monsenhor Lourenço chegava à sala de aula, após a oração inicial (Hail Mary, full of grace…), ia-se sentando vagarosamente. Era o momento esperado ansiosamente pela turma porque, geralmente, saía estória ou dito humorístico. As estórias ou ditos que se se seguem foram contados por ele no início de algumas aulas. Certa vez, estavam Monsenhor Lourenço e o Sr. Cónego Jeremias Simões a pescar no porto das Cinco Ribeiras. Nisto, o Sr. Cónego Jeremias sente uma “ferrada” no anzol e levanta o caniço com tanta violência que o peixinho, que vinha mal preso, desprendeu-se e caiu ao mar. O Sr. Cónego Jeremias, entre o entusiasmo e a frustração, volta-se para o Monsenhor Lourenço e exclama: – Viu! Viu! Ao que o Monsenhor respondeu: – Vi, vi, o seu caniço vir sem nada para cima! O Cónego Jeremias não achou piada nenhuma, enquanto o Monsenhor se fartava de rir. Depois que o Senhor Padre Roberto, pároco de Santa Bárbara, herdou (de forma considerada um tanto ou quanto manhosa) os bens do Senhor Padre Joaquim, pároco de São Bartolomeu – caso que estava sendo muito comentado – Monsenhor Lourenço despeja esta, com um sorrisinho de malícia: – Ora, ora. O Pe. Roberto herdou o Pe. Joaquim. Mas a mim na’m’herda [nada]! Certo dia, após o momento de humor inicial, levámos muito tempo para serenar e estávamos a pisar o risco. Logo o Monsenhor Lourenço admoestou: – Ora, ora. Eu gosto de contar estas coisas para criar um ambiente alegre. Mas depois quero toda a gente em silêncio e com atenção. Porque eu já tenho dito que dou um nove a rir, um oito a rir muito e um sete a chorar de rir. Numa certa aula, dissertando sobre o comportamento que devíamos ter quando fôssemos padres, afirmou: – Sim, porque havia um indivíduo que costumava dizer: “Há uma classe de pessoas que só merece pancadas. É a classe que usa saias – mulheres e padres”. E acrescentou: – E olhem que tinha certa razão! Uma das estórias que contou, do seu inesquecível Oriente, foi esta: Eu fui acompanhar o Dom José da Costa Nunes, como secretário dele, numa das suas visitas a uma diocese sufragânea de Goa. Como estava um calor insuportável, o Dom José não levava calças por debaixo da batina. Íamos numa carroça. De repente, o cavalo dá uma guinada e o Dom José cai de costas, no fundo da carroça, ficando a espernear, sem calças. E ria muito, recordando o ridículo da situação.30 O Padre Cipriano Franco lembrava-se de uma narrativa que o Monsenhor fizera do naufrágio de um barco em que viajava. A grande maioria dos passageiros saltou para a água, mas José Machado Lourenço não. E justificava-se: Se hei-de ir acabar na água, ela que venha ter comigo! O Carlos Joaquim Fagundes, há décadas a leccionar no Norte de Portugal (Parede), enviou-me um longo e-mail com estórias adicionais, que alguma delas indesculpavelmente eu omitira. Ele escreve: Recordo-me praticamente de tudo o que referes na tua alocução, excepto daquele do D. Pedro V, em que sou 29 Carta de 13 de Dezembro de 2008. 30 E-mail de 29 de Dezembro de 2008. 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 33 O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR JOSÉ MACHADO LOURENÇO: AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU oportunidade, com voz indecisa como quem não sabia ler: – “… mascando… mascaaaaannnnnndo… Ah! Mas quando….” (e continuou serenamente a leitura). Certo dia saiu-se com esta: – O sacristão da minha freguesia tem ideias muito avançadas sobre a Eucaristia.” Alguém lhe perguntou “porquê” e o Monsenhor respondeu: – Então não é que o outro dia eu ia celebrar missa e tinha-se acabado o vinho. Eu perguntei-lhe: – Então e agora? Como vai ser? Ao que ele respondeu: – Não há problema. Vou ali ao botequim do Mendes e trago-lhe um copo de bagaço.” Era de facto uma simpatia e confesso que tive sempre uma enorme admiração por ele, sobretudo pela sua cultura e pelos seus dotes literários.32 No final da sessão no IAC, o Padre João de Brito Carmo, que tem dedicado tanto do seu tempo ao estudo do folclore terceirense, lembrou-me uma história que se tornara, aliás, proverbial entre nós. Numa aula de inglês, o Monsenhor fazia exercícios de retroversão com os alunos do seu curso. Pediu então ao hoje Padre José Constância que traduzisse para inglês a frase: Eu amo-o. O Constância avançou: I love… mas, titubeante, estacou. O Monsenhor insistiu no complemento directo: Eu amo-O! E o Constância: I love… you. O Monsenhor: – A mim não que já estou muito velho! No referido encontro em Ponta Delgada, o José Adriano Borges Carvalho, advogado na Praia da Vitória, recordou uma que 31 Tenho uma versão diferente deste episódio e registo-o para exemplificar como muitos dos factos aqui relatados serão naturalmente recordados de forma diferente por outros colegas que os testemunharam. Mas basta lembrar que os próprios Evangelhos nos dão quatro versões dos factos: No final da Ave Maria, às vezes o Monsenhor usava a jaculatória Seat of Wisdom (Sede da Sabedoria), em vez de Mother of God. Um dia ele invocou Seat of Wisdom e respondemos normalmente Pray for Us. Quando ele disse a seguir Sit down, please!, o Gastão, que estava completamente distraído, disse bem alto: Pray for us! A gargalhada foi geral. Não tinha incluído esta estória por não ser propriamente uma do Monsenhor, mas da rapaziada. 32 E-mail de 2 de Janeiro de 2009. [33] protagonista. Lembro-me sim uma aula de História da Igreja, em que ele abordou o papado de Alexandre VI. Eu lera na Biblioteca (infelizmente ia lá poucas vezes, mas para tal também não era motivado), algo sobre esse período, e perguntei-lhe: – Monsenhor, não nos vai falar do “Baile das Castanhas”? Ele sorriu muito simpaticamente, como era seu hábito e respondeu: – Bem, isso fica para a aula de Ballet. – e continuou a lição. Entre os célebres silogismos dele, lembro-me de um outro que não referes: “A água mata a sede; o peixe salgado tem água, logo… o peixe salgado mata a sede.” Era também muito frequente nele, perante qualquer postulado não aceitável, a expressão “ou isto ou aquilo é assim ou então a lógica é uma batata”. Frequentemente, perante uma negativa que alguém tinha ou por outra qualquer contrariedade que lhe era referida, ele tentava acalmar o sofredor com este dito: – “A meu pai nunca morreu nenhuma vaca. Ele não as tinha.” Uma questão de “alta metafísica”, que ele levantava muitas vezes, era a do “ovo”: – “Uma galinha põe um ovo no Pico. O ovo vem para a Terceira onde nasce o pinto. Donde é natural o pinto? Do Pico ou da Terceira? Creio que se referia a isto porque ele próprio ou alguém da família dele fora concebido no Pico e nascera na Terceira. Deves recordar-te de um outro episódio muito interessante. Antes da aula começar, ficávamos todos em pé. Ele rezava, em Inglês, a Ave Maria e nós, em coro, retorquíamos com a Santa Maria, também em Inglês. No fim ele dizia: Mother of God. Nós respondíamos: – Pray for us. Só então o Monsenhor dizia: Sit down, please! e nós sentávamo-nos de imediato. Certo dia, o Monsenhor esqueceu-se da invocação à Mãe de Deus e, a seguir à Ave-Maria, disse Sit down, please! Todos nós permanecemos em silêncio, excepto o José Maria Bettencourt, que estava distraído e muito convicto, retorquiu: – Pray for us. – Amen. – respondeu Monsenhor com uma tranquilidade e uma simpatia desusadas.31 Também me lembro que contava muitas histórias do padre Himalaia, das suas experiências e invenções. Numa outra aula alguém estava a mascar chiclet. O Monsenhor muito sério e sempre a olhar para o livro assim que teve 1.OS.CunhaOliveira (cor/pb) 6/17/09 10:18 AM Page 34 também se tornou famosa. Era comum o Monsenhor pedir que enunciássemos os verbos, sobretudo os irregulares: – To be? – To be – was - been. – To do? – To do – did – done. – To go? – To go – went – gone. – To set? – To set – set – set. De uma vez, voltou-se para um aluno e pediu-lhe a enunciação do verbo to put. O aluno, reflectindo a nossa dificuldade em pronunciar o u suave, exagerou e pronunciou algo como To pât – pât –pât. O Monsenhor corrigiu: – Não tenha medo de dizer put, que em inglês não quer dizer nada! [34] O José Francisco Costa, professor no Bristol Community College, em Fall River, onde dirige o LusoCentro, recordou a hilariante cena do Monsenhor Lourenço numa aula em que lhe vimos sair fumo do peito. Tinha posto na algibeira do casaco o cachimbo, seu companheiro habitual, mas sem estar completamente apagado. O José Costa fez entretanto acompanhar a evocação desse divertido episódio de um poema que aproveitarei para fechar este memorial como mandam as regras – isto é, com chave de ouro –, se bem que naturalmente ainda muitas outras lembranças e estórias vão surgir à medida que esta homenagem for chegando ao conhecimento de outros antigos alunos33. Eis então o poema: Naquele meu tempo, “Monsenhor” só rimava com “Lourenço”. Sábio. Terno. Avô universal, a mim em tanto tão igual que até fumava de um cachimbo que,um dia, em plena aula, se reacendeu por dentro do casaco… E ficou-me, indelével imagem, um rosto de serenidade, perfil de natureza humilde, olhar inclinado entre a terra e o céu. Sem pressa para viver mais, ou acabar os dias mais cedo. Monsenhor Lourenço, mestre de quem aprendi a maior lição: saborear a memória dos que me ensinam a vida. (Em “Matinas”, depois de ler as “Laudes” do Onésimo).34 33 Peço, por isso, aos antigos alunos e colegas do Monsenhor Lourenço que queiram colaborar acrescentando depoimentos e estórias o favor de o fazerem contactando o autor ([email protected]), de modo a que elas possam ser incorporadas numa futura reedição deste texto. 34 E-mail de 6 de Dezembro de 2008. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 35 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM ESTUDOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA PEDRO MADEIRA PINTO Início II, 2008 técnica mista sobre papel medida 40x50 cm Page 36 6/17/09 12:18 AM Page 37 Fabiano Teixeira dos Santos A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO * AÇORIANA 1. INTRODUÇÃO A Festa do Divino Espírito Santo é, nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a celebração religiosa mais representativa da contribuição dos colonizadores açorianos à sua formação histórico-cultural, quer pelo significado que ainda possui na maioria das comunidades onde se realiza, quer pelas suas semelhanças com as festividades realizadas nas ilhas do arquipélago português, onde, assumindo um caráter fortemente popular, é um dos mais importantes eventos do calendário. * Tema apresentado como comunicação na 5ª Semana de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis, novembro/2004), no II Congresso Internacional sobre as Festas do Espírito Santo (Porto Alegre, outubro/2006), e no III Congresso Internacional sobre as Festas do Espírito Santo (Angra do Heroísmo, maio/2008). [37] 2.OS.FabianoSantos (cor) 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 38 Instituído pela rainha Isabel de Aragão ainda na Idade Média, o culto ao Espírito Santo desenvolveu-se consideravelmente nos Açores, chegando do Continente com os primeiros povoadores, ainda no século XV, e transformando-se na mais importante festa religiosa, que através de irmandades, acontece em praticamente todos os aglomerados populacionais, fortalecendo, muito além da religiosidade, os laços comunitários. A antropóloga Helena Ormonde, ao abordar a ocorrência da Festa do Espírito Santo na ilha Terceira, afirma que “Com algumas variações, este cerimonial ocorre ciclicamente em toda a ilha, reforçando deste modo, em associação ao sagrado, posições sociais, sentidos e sentimentos de comunidade”1. Desconsiderando características particulares que assume em cada lugar, a Festa do Divino consiste fundamentalmente num ciclo de atividades que se inicia após a Páscoa, seguindo o calendário litúrgico da Igreja Católica e culminando no Domingo de Pentecostes, data em que se celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. [38] Antecedem à festa novenas, tríduos e a passagem da Bandeira do Divino, quando um grupo de foliões portando as insígnias visita as casas da comunidade a fim de arrecadar donativos para sua realização. Os três dias da festa ocorrem de sexta-feira a domingo e incluem procissões, banquetes e a missa de coroação de um casal de “imperadores” eleitos pela irmandade, que acompanhados de sua corte, conduzem o evento2. Por estar sob o comando de um “imperador”, o conjunto de ritos acaba sendo definido como “Império”, denominação que por sua vez também é empregada para o edifício, em geral de pequenas dimensões e semelhante a uma ermida, quase sempre localizado nas proximidades da igreja paroquial, que nos dias da festa se torna o centro de todo o cerimonial em louvor do Divino Espírito Santo. Vista parcial da praça da antiga vila da Conceição do Arroio, atual cidade de Osório, por volta de 1900. A presença do edifício do império do Espírito Santo (à esquerda da foto), erguido na praça principal, junto à igreja matriz, evidencia, apesar da singeleza arquitetônica, a importância que essas construções possuíam no contexto urbano dos núcleos de origem açoriana do Sul do Brasil (Fonte: Enciclopédia Rio-Grandense/Ed. Sulina, 1968). para a veneração à coroa e ao cetro imperiais, objetos de grande significado espiritual para os devotos, que são aí depositados pelo imperador, após sua coroação. Anexa ou nas imediações localiza-se a despensa ou copeira, que serve como depósito e local de preparo para os materiais e alimentos empregados nos festejos3. No Sul do Brasil, em boa parte das vilas e cidades em que ocorria desde o século XVIII, a Festa do Divino acabou sofrendo ao longo do século XX uma gradual decadência e simplificação, inclusive com o abandono do uso dos impérios, dos quais restaram poucos exemplares. Com o objetivo de identificar e analisar histórica e arquitetonicamente tanto as construções remanescentes como aquelas cuja existência só se pôde averiguar através da escassa docu- 1 OS Impérios da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: BLU Edições, 2002, p. 3. Essa construção, que nos exemplares mais primitivos apresenta-se sob a forma de um simples alpendre, mais conhecido como “teatro” do Espírito Santo – por ser o local em que ocorre a “teatralização”, ou seja, a representação do imperador e sua corte – constitui-se de sala de planta retangular ou quadrada, dotada por vezes de um altar e utilizada principalmente 2 JACHEMET, Célia Silva. “As festas do Espírito Santo em Portugal – Açores e sua transmigração para o Brasil e Rio Grande do Sul”. In: BARROSO, Vera Lucia Maciel (org.). Presença açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edições EST, 1993. 3 MARTINS, Francisco Ernesto de Oliveira. Em louvor do Divino Espírito Santo – Fotomemória. Maia: Região Antónoma dos Açores/Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 39 A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA Propõem-se assim, a partir do resgate e da reunião de informações até então dispersas, proporcionar uma compreensão que, ainda que sucinta, possa revelar a importância e a singularidade dos impérios do Espírito Santo no quadro da arquitetura dos antigos núcleos urbanos coloniais da porção meridional do território brasileiro. 2. OS IMPÉRIOS NOS AÇORES E SUA INTRODUÇÃO NO SUL DO BRASIL Nos Açores, os impérios devem remontar aos anos que se seguiram à ocupação do arquipélago, a partir do século XV, quando o culto ao Espírito Santo evoluiu em relação ao Continente e adquiriu características singulares, inclusive variando de ilha para ilha e com os próprios impérios adotando particularidades4. Nas ilhas de Santa Maria e São Miguel, especialmente na primeira, são ainda conhecidos em sua forma mais primitiva, a dos “teatros”, ou “triatos” (esta segunda expressão costuma ser aceite como corruptela da primeira ou uma referência à Santíssima Trindade)5. Acredita-se que sua origem formal e tipológica seja proveniente dos alpendres frontais comuns em ermidas de algumas regiões portuguesas, como Minho e Trás-os-Montes, e que nas ilhas foram adaptados para a encenação do império do Espírito Santo6. De planta quadrada, apresentam na maioria dos casos telhado de quatro águas sustentado por pilares, lembrando claramente os alpendres dos quais teriam se originado. No restante do arquipélago predominam os “impérios-capela”, que como o nome sugere, são semelhantes a ermidas, de planta retangular, cobertos por telhado de duas águas e tendo a fachada frontal encimada por frontão. Bastante singelos e de dimensões reduzidas, são o modelo mais difundido no Faial e no Pico. Na Ilha Terceira, esta tipologia é bastante peculiar, apresentando sempre três vãos frontais, que consistem numa porta central ladeada por janelas, em geral elevada em relação ao nível da rua, à qual se tem acesso por escada fixa em alvenaria, ou desmontável, em madeira. Numa tentativa de interpretação, esta característica poderia ter influenciado os impérios construídos no Rio Grande do Sul, que em quase sua totalidade apresentavam três vãos na fachada frontal, diferindo-se pelo fato de todas as aberturas serem portas. Os impérios da Terceira teriam evoluído de construções provisórias muito rudimentares, em madeira, montadas apenas para os dias de festa, e que a partir do final do século XVIII começaram a ser construídos em alvenaria de pedra. Conservando ao longo do século seguinte um aspecto austero e simples, à semelhança dos teatros, no começo do século XX, após sucessivas reconstruções devido aos terremotos, passaram a apresentar em suas fachadas profusão de ornatos e pinturas, destacando-se em seus vistosos frontões a coroa ou a pomba alusivas ao Espírito Santo7. Pesquisas recentes, com destaque para o trabalho de Victor Alves, vêm revelando que não apenas os sismos foram responsáveis pela evolução do aspecto fachadístico dos impérios. Nos Açores, como também ocorreu no Sul do Brasil, a reação da autoridade eclesiástica diante da dificuldade de aceitar o lado julgado profano ou mesmo independente do culto ao Divino foi responsável, entre outras mudanças e proibições8, pela transformação dos antigos teatros em impérios-capela, seguindo o propósito de conferir-lhes o aspecto de templo católico. 4 ARQUITECTURA Popular dos Açores. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 1998. 5 ADAMS, Betina; ARAÚJO, Suzane Albers. “Notas para o estudo da contribuição portuguesa na ocupação do território”. In: FARIAS, Vilson Francisco de. De Portugal ao Sul do Brasil – 500 Anos – História, Cultura e Turismo. Florianópolis: ed. Do autor, 2001, p. 693. 6 ALVES, Victor. “The “Theatros” of the Holy Spirit”. In: FUNK, Gabriela (org.). Azorean popular culture today. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2003. 7 FERNANDES, José Manoel. Angra do Heroísmo. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 68. 8 MENDES, Hélder Manuel Fonseca. Do Espírito Santo à Trindade. Um programa social de cristianismo inculturado – Extrato de tese apresentada para a obtenção de grau de doutor. Salamanca: Universidade Pontifícia de Salamanca, 2004. [39] mentação escrita e iconográfica, encontrada, sobretudo, na bibliografia referente às localidades e em acervos de fotografia antiga e história eclesiástica, este trabalho lança um enfoque sobre a presença dos impérios do Espírito Santo nessa região e sua intrínseca relação com a colonização açoriana. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 40 Por fim, há os “impérios-casa”, presentes nas ilhas das Flores e do Corvo, e cuja denominação adotou-se pela forte semelhança que possuem com as habitações lineares comuns às vilas, das quais diferem apenas pelo baixo-relevo pintado ao meio da fachada, representando a coroa do Espírito Santo. No século XVIII, a festa do Divino foi levada aos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul pelos colonizadores açorianos, aí instalados, atendendo ao propósito da Coroa Portuguesa de formar núcleos de povoamento, a fim de, estrategicamente, garantir o domínio sobre o território disputado com os espanhóis9. [40] Por sua vez, os impérios passaram a integrar os festejos no momento em que os povoados se desenvolviam e as irmandades se organizavam, construindo-os sempre próximos das igrejas paroquiais, nas praças centrais, que consistiam no mais importante espaço cívico das comunidades. Isso se deu a partir da primeira metade do século XIX, embora confrarias como as de Florianópolis10 e Santo Antônio da Patrulha11 já existissem desde o século anterior (1773 e 1778, respectivamente). Porém, no início do século XX, a Festa do Divino entrou em decadência em boa parte dessas localidades, o que ocorreu principalmente, embora assunto pouco estudado, por influência de clérigos de origem alemã e italiana contrários à devoção popular ao Espírito Santo, na medida em que estes religiosos assumiam o comando da estrutura eclesiástica. Partindo de um posicionamento adverso às manifestações católicas populares, percebiam os ritos e elementos profanos dos festejos como prejudiciais e mesmo contrários aos dogmas da Igreja, o que resultou, entre outras ações, na destituição das irmandades existentes e na desativação ou demolição de quase todos os impérios. Perderam-se com isso alguns dos melhores exemplares da tipologia construtiva que pode seguramente ser considerada uma contribuição do açoriano à arquitetura das comunidades luso-brasileiras que ajudou a formar, já que as construções civis e demais edifícios religiosos destes núcleos – igrejas e capelas – estão muito mais vinculados à arquitetura portuguesa tradicional, aí adaptada como no restante do território brasileiro12. localidades, a presença da cultura açoriana deixou como marca significativa no contexto urbano os impérios: “Naquelas edificações, localizadas em geral próximas das igrejas matrizes, eram guardadas as coroas dos “imperadores” das festas do Divino Espírito Santo, que dali saíam rumo às igrejas para o culto solene”13. Sobre a ocorrência dos impérios no Sul do Brasil como uma arquitetura de origem açoriana e seu desaparecimento, comenta o arquiteto Günter Weimer: “Talvez a influência mais marcante tenha sido a da documentação – muito rara, por sinal – dos assim chamados impérios. Dizemos documentos históricos posto que os mesmos foram desaparecendo no mais completo desleixo e descaso”14. 2.1 EM SANTA CATARINA Em Santa Catarina, acredita-se que, como nos Açores, os atuais impérios tenham substituído construções primitivas, rudimentares, já que foram erguidos durante o século XIX, enquanto é sabido que as Festas do Espírito Santo acontecem desde a centúria anterior. O império de Florianópolis, demolido no início do século XX quando da reforma da Catedral de Nossa Senhora do Desterro, 9 SOUZA, Sara Regina Silveira de. “Açorianos em Santa Catarina: povoamento e herança cultural”. In: CADERNOS da Cultura Catarinense. Florianópolis: Edição da Fundação Catarinense de Cultura – FCC, Ano I, N.º 1, outubro a dezembro de 1984, p. 7/9. 10 CLETISON, Joi. “Festas do Espírito Santo”. In: www.nea.ufsc.br/artigos. 11 BEMFICA, Coralia Ramos e outros (org.). Santo Antônio da Patrulha: reconhecendo a sua história. Porto Alegre: Edições EST, 2000, p. 404. 12 VEIGA, Eliane Veras da. “Mitos e Realidades das Arquiteturas Açoriana e Colonial Catarinense”. In: REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, 2001. 13 RHODEN, Luiz Fernando. Urbanismo no Rio Grande do Sul: origens e evolução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. 14 WEIMER, Günter. “A arquitetura popular dos Açores e o Rio Grande do Ao analisar o desenvolvimento das cidades de base açoriana no Rio Grande do Sul, Luiz Fernando Rhoden afirma que nestas Sul”. In: BEMFICA, Coralia Ramos e outros (org.). Santo Antônio da Patrulha: re-conhecendo sua história. Porto Alegre: Edições EST, 2000, p. 60. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 41 A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA foi dos mais primitivos construídos em Santa Catarina. Indício de sua antiguidade é o fato da atual rua Padre Miguelinho, que passa pelo lado da catedral onde estava situado, ter sido denominada desde tempos remotos como rua do Espírito Santo. Pesquisando a história das ruas centrais de Florianópolis, o professor Oswaldo Rodrigues Cabral descreve: “Ficava, assim, a Matriz flanqueada por duas ruas, a que acabei de nomear (...) e a do Espírito Santo, (...) para a qual dava o Império do Espírito Santo”15. empregada em muitos impérios dos Açores, onde há uma escada móvel em madeira, utilizada apenas durante a realização da festa. Os impérios semelhantes a capelas foram os mais difundidos, sendo que as construções desta tipologia ainda existentes encontram-se, na Ilha de Santa Catarina, nas antigas freguesias da Trindade (atual bairro de Florianópolis), Ribeirão da Ilha, Rio Vermelho e na Praia do Campeche, e no Continente, em Garopaba. Sua singularidade residia principalmente no fato de ter sido construído como anexo da matriz, contíguo à parede lateral direita da nave do templo, sendo limitado na parte de trás pela capela de Nossa Senhora das Dores. Na fachada frontal, apresentava curiosamente não uma ou três, mas duas portas de acesso, com vergas em arco abatido, encimadas por frontão triangular que exibia ao centro ornamento representando a pomba do Divino. À sua frente, no adro da catedral, por ocasião dos festejos do Espírito Santo, erguia-se a barraca onde acontecia o concorrido leilão de “promessas”, pitorescamente descrito por Virgílio Várzea em sua obra Santa Catarina – A Ilha, publicada em 190016. Desativado em 1909, foi demolido durante a grande reforma por que passou a catedral em 1922, sendo a Irmandade do Divino transferida para junto do Asilo de Órfãs, na Praça Getúlio Vargas. Neste novo local a confraria ergueu ampla capela dedicada a seu orago, porém já configurada como uma igreja, sem vínculo com a tipologia arquitetônica dos impérios. Em São José, o império, demolido por volta de 1920, situava-se em meio ao casario de uma das laterais da praça central, posicionando-se perpendicularmente em relação à igreja matriz, que fica ao alto, num dos extremos da praça. Construção do século XIX, consistia num característico “teatro”, de planta quadrada, complementada por pequeno anexo aos fundos, cobertura de quatro águas e três portas de acesso na fachada frontal. Uma coroa do Espírito Santo arrematava-lhe a cumeeira do telhado. Como o terreno em que se situava possui declividade, foi construído elevado em relação à rua, porém sem escada permanente, o que leva a crer que nos dias festivos, ocasião em que abria suas portas, adotava-se a mesma solução O império de Florianópolis fora construído junto à parede lateral direita da igreja matriz de Nossa Senhora do Desterro, tendo aos fundos a capela de Nossa Senhora das Dores, conforme se observa neste cartão postal do início do século XX (Coleção do autor). O império da Trindade, hoje desativado, tendo sido adaptado para uso da Universidade Federal de Santa Catarina, era palco até o início do século XX de uma das mais importantes e populares festividades religiosas da capital catarinense, a Romaria da Santíssima Trindade, hoje equivocadamente transformada na “Festa da Laranja”. Tendo como cenário a pitoresca praça, a 15 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro – Notícia/1. Florianópolis: Lunardelli, 1979, p. 138. 16 VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina – A Ilha. Florianópolis: Lunardelli, 1985, 2ª Edição, p. 70. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 42 Sequência de imagens da Festa do Divino do Ribeirão da Ilha, em Florianópolis, registrando o momento em que o cortejo imperial, após a coroação, deixa a igreja matriz de Nossa Senhora da Lapa e se dirige ao império para a veneração das insígnias pelos devotos (Fotos do autor, 2007). capela e o império da antiga freguesia de Trás do Morro, esta romaria tinha como ponto culminante a coroação do Imperador e o cortejo à casa do Império, onde, conforme Virgílio Várzea, “irrompia” o leilão de massas e frutas17. Embora tenha sofrido algumas adaptações para sua nova utilidade, percebe-se, através da distribuição de suas aberturas e divisórias internas, que a frente destinava-se às celebrações, sendo outrora dotada de um altar, ficando a parte posterior reservada à despensa. Na fachada principal destaca-se a pomba símbolo do Espírito Santo, posicionada ao centro do frontão triangular que possui ainda uma cruz ao alto e pináculos nas laterais. No topo do frontão, abaixo da cruz, existe a data 1911, que deve indicar o ano em que a construção recebeu o aspecto que conserva até hoje. No Ribeirão da Ilha, o império, um dos maiores encontrados no litoral catarinense, está implantado ao lado da igreja local, com frente para a praça, e lamentavelmente já teve seu interior e entorno descaracterizado por reformas e ampliações realizadas nos últimos anos. Como o império da Trindade, encontra-se elevado em relação à rua, tendo uma escada em alvenaria para acesso da porta da fachada frontal. Esta é arrematada por frontão triangular, encimada por uma cruz e ornada por pináculos. Em Garopaba, o império construído no século XIX e hoje desativado está localizado em esquina junto à praça da igreja 17 VÁRZEA, op. cit. p. 68. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 43 A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA matriz. A fachada frontal enquadrada por cunhais e encimada por uma cruz apresenta sobre a porta interessante óculo de formato triangular, possível alusão à Santíssima Trindade. Na fachada lateral voltada para a rua, existem duas aberturas seguindo este mesmo desenho, que se repete no vão do lado oposto. Neste lado, abre-se um pequeno pátio murado que envolve um anexo com telhado de duas águas perpendicular à construção principal, destinado à despensa. Na Vila de São Miguel, atual município de Biguaçu, a presença do já desaparecido “teatro” do Espírito Santo, construção singela com telhado de duas águas que ficava ao lado da matriz, foi destacada por Maria Simas Siqueira, antiga moradora do lugar: “No adro da igreja ficava a sineira, tinha dois sinos, um pequeno e um grande. Entre a sineira e o sobrado situava-se a casa dos padres. À direita da igreja, um pouco à frente, o “teatro”, uma sala onde se realizavam as festas do Divino Espírito Santo. Na frente do teatro havia um morro gramado que era cortado por uma ruazinha conhecida como “Rua de Cima (...)”18. Registro da Festa do Divino da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, mostrando a entrada do cortejo imperial no edifício do império, após a missa de coroação. Esta edificação trata-se do último exemplar da tipologia dos “teatros” do Espírito Santo no Sul do Brasil (Foto do autor, 2007). [43] Dos primitivos “teatros”, há em Santa Catarina um último exemplar localizado na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e que embora não tenha sua data de origem conhecida, trata-se certamente de edifício bastante antigo. Voltado para a igreja local, tem a frente enquadrada por cunhais e apresentando um único vão que se estende por toda a fachada, com o acesso centralizado, configurando-se como uma porta ladeada por janelas. Possui notadamente semelhança com o teatro de Almagreira, na ilha de Santa Maria. O império de Santo Antônio de Lisboa foi construído no século XIX e situava-se onde hoje se encontra uma capela mortuária, próximo à igreja de Nossa Senhora das Necessidades. Em 1942, já em ruínas, acabou sendo demolido. Referência a seu respeito é fornecida pelo bispo de Curitiba, Dom José de Camargo Barros, que em visita à localidade em 1895 registrou no livro tombo da paróquia seu patrimônio eclesiástico, constituído pela igreja matriz, um terreno, a residência do pároco e um “Teatro do Espírito Santo”23. 18 SIQUEIRA, Maria Simas. “Revivendo o São Miguel de outrora”. In: Ainda são encontradas referências sobre os impérios nas freguesias de Canasvieiras e Santo Antônio de Lisboa, na Ilha de Santa Catarina, e em Laguna, Jaguaruna19, Tubarão20, na Enseada do Brito (município de Palhoça) – demolido para dar lugar ao atual salão paroquial21 – e em São Francisco do Sul. Em 1900, Virgílio Várzea, ao reportar-se a Canasvieiras, sua freguesia natal, destaca entre os prédios do lugar, construídos em pedra e cal e envidraçados, a “casa do Império destinada às festas do Espírito Santo” 22. Não foram encontradas maiores informações sobre sua origem e desaparecimento, nem localizada imagem que permitisse uma descrição mais precisa. COUTINHO, Ana Lúcia (org.). São Miguel da “Terra Firme”: 250 Anos 1747 – 1997. Biguaçu: EDEME, 1997, p. 152. 19 NUNES, Lélia Pereira da Silva. Caminhos do Divino – Um olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2007, p. 59. Fotografia da Festa do Espírito Santo em Jaguaruna no ano de 1900, acervo de Antônio Reinaldo e Gentil Reinaldo – Foto Regina. 20 FREITAS JÚNIOR, José. Conheça Tubarão – documentário histórico e outros fatos 1605-1972. Tubarão: Edição do autor, 1972, p. 241. 21 NUNES, op. cit. p. 81. 22 VÁRZEA, op. cit. p. 102. 23 SOARES, Iaponan (org.). Santo Antônio de Lisboa – vida e memória. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1993, p. 104. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 44 Sobre o império de São Francisco do Sul, desaparecido por volta de 1930, se localizava em meio às casas da atual praça Getúlio Vargas, alinhado com os telhados das construções que o delimitavam lateralmente. Analisando-o em antigas fotografias, nota-se uma analogia com os impérios da Ilha Terceira, uma vez que sua fachada era composta por três vãos de arcos ogivais, consistindo numa porta central ladeada por janelas e sendo arrematada por platibanda. Semelhante a uma pequena capela, o império de Garopaba aparece nesta fotografia da década de 1950, estando voltado para a igreja matriz de São Joaquim (Fonte: Prefeitura Municipal de Garopaba). Flagrante da Festa do Divino em Laguna no início do século XX, vendo-se à direita uma multidão de fiéis em frente ao imponente edifício do império (Fonte: Prefeitura Municipal de Laguna). [44] Em Laguna, os festejos do Espírito Santo ocorriam já no século XVIII, sendo que a irmandade do Divino local passou a atuar a partir de 1815, ano em que teve aprovado e confirmado seu compromisso, quando da visita a Santa Catarina do Bispo do Rio de Janeiro, Dom José Caetano da Silva Coutinho24. Quanto ao império, fotografia do início do século XX flagra uma multidão de fiéis junto à imponente construção que abria suas três grandes portas frontais para o largo da igreja matriz (hoje praça Vidal Ramos) e para a apropriadamente denominada “rua do Império” (atual rua 15 de Novembro)25. A partir desta imagem, e considerando os demais edifícios congêneres encontrados no Estado, pode-se afirmar com segurança que foi este o maior de sua tipologia que existiu em Santa Catarina. A fachada frontal, elegantemente emoldurada por cunhais e cimalha, era encimada por frontão triangular ornado por pináculos e apresentava, à semelhança do império de São José, platibanda, uma vez que o telhado possuía quatro águas. Saul Ulysséa dá informações a seu respeito: “Ao lado direito da Matriz, um cemitério, cercado de táboas sobre um alicerce de pouco menos de um metro de altura, que ía até o edifício da Irmandade do Divino Espírito Santo, denominado “Império”, de boa construção, onde é hoje a casa paroquial”26. 2.2 NO RIO GRANDE DO SUL Analisando as semelhanças e particularidades dos impérios que existiram no Rio Grande do Sul com as construções encontradas nos Açores, é provável que tenha ocorrido o que pode ser entendido não apenas como uma adaptação, mas evolução, dado o fato de suas dimensões serem em geral muito maiores que as dos exemplares existentes em Santa Catarina, onde a exceção, conforme visto, era o império de Laguna. O fato de apresentarem em sua maioria absoluta três vãos frontais pode indicar uma herança direta dos teatros da Ilha Terceira, cujos exemplares mais antigos, datados de fins do século XVIII e meados do século XIX, muito se assemelham aos do Rio Grande do Sul. No entanto, enquanto nos edifícios terceirenses as três aberturas consistem em uma porta central ladeada por janelas, nesses eram todas portas, sendo por vezes a porta central maior, de forma a ressaltar, em composição com o frontão triangular, o eixo de simetria da fachada. Este modelo existiu pelo menos em Porto Alegre, Viamão, Gravataí, Taquari, Cachoeira do Sul, São Jerônimo e Santa Maria, cidades em que somente o registro fotográfico e alguns poucos relatos salvaram do esquecimento a memória destas construções. Com a demolição do império de Taquari, ocorrida há alguns anos, um último exemplar localiza-se em Triunfo, na praça da igreja matriz. Tendo enfrentado anos de abandono 24 NUNES, op. cit. p. 49. 25 ULYSSÉA, Saul. A Laguna de 1880. 1943, p. 57. 26 ULYSSÉA, op. cit. p. 57. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 45 A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA Em Porto Alegre, o primeiro império de que se tem notícia foi inaugurado ao lado da matriz de Nossa Senhora da Madre de Deus em 1821, mesmo ano em que foi organizada a Irmandade do Espírito Santo. Provável precursor do modelo que acabou se espalhando pelas demais vilas da província, o singelo edifício aparece em fotografia de 1880, de frente, com suas três portas de dimensões iguais e um óculo ao centro do frontão triangular. Aí permaneceu até 1882, quando foi demolido para dar lugar a uma nova construção, mais ampla e em estilo neo-gótico, cujo principal elemento era a torre pontiaguda que se projetava ao centro do telhado. Concluído em maio de 1883, por ocasião da Festa do Divino, esse segundo império tornou-se peculiar por suas características arquitetônicas, resultado do trabalho conjunto do mestre-construtor Antônio do Canto e do cenógrafo Orestes Coliva. O porte e a grande semelhança com uma capela levaram o jornal “O Mercantil” a referir-se sobre ele da seguinte forma: “O templo está primorosamente acabado com gosto e solidez. Já tivemos ocasião de dizer que a pintura é devida ao inteligente cenógrafo Coliva que mais uma vez confirma sua reputação de notável artista. A construção do templo foi devida aos esforços do Dr. Domingos dos Santos que, a despeito das dificuldades que os inimigos lhe opuseram, levou a bom termo sua iniciativa” 27. Sua demolição ocorreu juntamente com a da matriz, em 1923, para dar lugar à atual catedral. Em 1932 foi inaugurada, na esquina das avenidas José Bonifácio com Osvaldo Aranha, a capela do Espírito Santo, que, como no edifício congênere construído em Florianópolis, já não possui relação com a tipologia dos impérios. Embora não se tenha podido descrever o edifício de Caçapava em função da ausência de maiores informações, o de Viamão, que estava situado ao lado da matriz de Nossa Senhora da Conceição, foi registrado em algumas fotografias do início do século XX. Elevado em relação à rua, tinha acesso através de uma escada que se estendia ao longo das três portas de arcos plenos da fachada principal, em composição que lembrava muito o império de Faial da Terra, na ilha de São Miguel. Foi demolido em 1928, após ruir devido a um vendaval29. Na cidade de Gravataí, o império, também situado ao lado da igreja, era muito semelhante ao edifício congênere pioneiro que existiu junto à catedral de Porto Alegre e tão antigo quanto este. Foi construído entre 1825 e 1830, quando mudou o nome da atual avenida José Loureiro da Silva, à sua frente, de rua da Ferraria para rua do Império, sendo derrubado por volta de 1930 para dar lugar ao colégio Dom Feliciano30. Em alguns exemplares dotados de três portas frontais, as dimensões eram tão avantajadas quanto de uma igreja. Foi o caso do império de Cachoeira do Sul, certamente o maior construído no Rio Grande do Sul, que recebeu destaque na narrativa de Luiz Alves Leite de Oliveira Bello. Este viajante, ao percorrer o interior do Rio Grande do Sul, assim o descreve em seu Diário de Uma Viagem no Interior da Província de São Pedro em 1855: “O império do Divino Espírito Santo, que está próximo da Igreja, é um belo edifício no seu gênero, que depois de concluído será o maior e melhor da Província”31. 27 DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul 1755 – 1900 (Contribuição para o estudo do processo cultural sul-rio-grandense). Porto Alegre: Globo, 1971, p. 43. 28 SPALDING, Walter. A Epopéia Farroupilha (Pequena História da Grande Revolução, acompanhada de farta documentação da época – 1835-1845). Rio de janeiro: Biblioteca do Exército, 1963. 29 SANTOS, Adonis dos. Viamão. Porto Alegre: Gráfica Rogilma, s/d, p. Primitivos também foram os impérios de Viamão, Caçapava do Sul e Gravataí, sendo que os dois primeiros já apareciam em plantas urbanas elaboradas durante da Revolução Farroupilha (1835-1845)28. 30/91. 30 ROSA, Jorge. História de Gravataí. Gravataí: Prefeitura Municipal, 1987. 31 DAMASCENO, op. cit. p.47. [45] e sofrendo inclusive o desabamento de seu telhado, só não corre mais o risco de também desaparecer porque oportunamente a comunidade local teve a iniciativa de viabilizar sua restauração, o que vem ocorrendo. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 46 A edificação, demolida em começos do século passado, possuía um primoroso acabamento de sua fachada frontal, sendo encimada por frontão triangular que exibia pináculos e uma coroa ao alto. Em cada uma das laterais, portas davam acesso às despensas, ficando a fachada composta por cinco vãos ao todo. Em Santa Maria, o império foi construído entre 1882 e 1883, na esquina da rua dos Andradas com a avenida Rio Branco, onde permaneceu até sua demolição, em 1937. Não fugindo à regra, estava situado nas imediações da igreja paroquial, tendo inclusive abrigado os fiéis como matriz provisória, até a conclusão das obras da catedral da cidade, em 190932. Suas três portas frontais com arcos ogivais provavelmente foram resultado do ecletismo experimentado pela arquitetura brasileira neste período, e que, especialmente nesta região, sofreu influência de uma estética de gosto neo-gótico introduzida pelo numeroso contingente de imigrantes alemães e italianos aí estabelecidos. [46] Os impérios de menores dimensões ocorreram na Freguesia do Menino Deus, atual bairro de mesmo nome, em Porto Alegre, e na antiga vila da Conceição do Arroio, hoje cidade de Osório. À semelhança dos impérios encontrados em Santa Catarina, consistiam em edificação de planta retangular e cobertura de duas águas, tendo na fachada principal uma única porta encimada por frontão triangular. No império do bairro Menino Deus, fotografias antigas mostram aos fundos um pequeno pátio murado que deveria dar acesso à despensa, situada na parte posterior do edifício. Em Santo Antônio da Patrulha, onde a festa do Espírito Santo ocorre desde 1778, o império estava localizado em meio ao casario da antiga rua Direita, atual Borges de Medeiros33. Na década de 1930, já em desuso, foi vendido pela paróquia, estando atualmente completamente descaracterizado e adaptado para comércio e moradia. Construído ao lado da igreja matriz, originalmente em 1821, o império de Porto Alegre foi substituído por uma segunda construção, de arquitetura neo-gótica, em 1883, como se vê neste cartão postal do início do século XX (Coleção do autor). Na foto do início do século XX, o império de Taquari, com suas três portas frontais, voltado para a praça central da cidade (Fonte: Monographia do Município de Taquary, Octavio Augusto de Faria, 1912). 32 MARCHIORI, José Newton Cardoso; NOAL FILHO, Valter Antonio (org.). Santa Maria – relatos e impressões de viagem. Santa Maria: Editora da UFSM, 1997. 33 BEMFICA, op. cit. p. 282. 34 “RIO Pardo: Festa do Divino retoma a tradição açoriana”. Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 08 de junho de 2003. 35 BUNSE, Heinrich A. W. Aspectos lingüístico-etnográficos do município de Os impérios do Divino também existiram nas cidades de Rio Pardo34, Mostardas, São José do Norte35, Santo Amaro (atual município de General Câmara)36 e São Gabriel, sendo que nesta última deu à pequena rua que fazia esquina com a praça da matriz, onde estava situado, o nome de “Beco do Império”37. São José do Norte. Porto Alegre: Globo, 1959, p. 30/33. 36 RODRIGUES, Francisco Pereira. Uma página da história rio-grandense: Santo Amaro – General Câmara. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1989, p. 53. 37 SILVA, Aristóteles Vaz de Carvalho e. São Gabriel na História. Porto Alegre: CITAL, 1963, p. 65. 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 47 A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: UMA CONTRIBUIÇÃO AÇORIANA No entanto, num primeiro momento, surpreende a constatação da ocorrência de um império do Espírito Santo em São Francisco do Sul, cidade fundada ainda no século XVII, por vicentistas, e que está situada no extremo setentrional do litoral de Santa Catarina, ou seja, fora da área conhecidamente abrangida pela colonização açoriana. [47] Mais interessante é constatar a existência de impérios na cidade de Lages, no Planalto Serrano catarinense, conforme fotografia pertencente ao acervo do Museu Thiago de Castro. Esta imagem registra momento da festa do Divino de 1890, vendo-se em frente da casa do imperador, à antiga rua do Lajeadinho (atual rua Coronel Córdova), um singelo império desmontável, à semelhança do que ocorria primitivamente nos Açores, em freguesias cujas irmandades não possuíam império fixo e sim construções dotadas de estrutura de madeira e fechamento de tecidos, de pequenas dimensões, que eram desmontadas assim que os festejos encerravam. O império de Viamão aparece nesta fotografia do início do século XX, ao lado da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição (Fonte: Prefeitura Municipal de Viamão). O império de Gravataí, erguido no início do século XIX – à direita da foto, por volta de 1900 – foi contemporâneo do edifício congênere da cidade de Porto Alegre, sendo ambos praticamente idênticos (Fonte: Paróquia Nossa Senhora dos Anjos, Gravataí). 3. CONCLUSÕES Não há dúvidas de que a tipologia construtiva dos impérios e sua presença em vilas e cidades dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul relaciona-se com a epopéia açoriana, sobretudo quando se considera a origem destas localidades. Reportando-se à historiografia que trata da questão açoriana no Sul do Brasil, é unânime a afirmação de que este contingente populacional radicou-se na faixa litorânea que se estende entre a Ilha de Santa Catarina e arredores e a Barra do Rio Grande, fixando-se também ao longo do rio Jacuí, no Rio Grande do Sul38 . Aliás, importa ressaltar que a devoção ao Espírito Santo no Planalto de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul foi bastante popular até o início do século XX. Em recente visita que se realizou à casa-sede da centenária fazenda do Caraúno, no município de Bom Jesus (Rio Grande do Sul), foi encontrado o “Diploma de aggregação à devoção do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora da Oliveira”, conferido pela paróquia de Vacaria (Rio Grande do Sul) a Luiz Ignácio Dutra, abastado fazendeiro e líder político da região, bisneto de açorianos da Ilha do Faial que se estabeleceram em Santo Antônio da Patrulha no século XVIII39. Já na capela da também muito antiga fazenda Cajuru, em Lages (Santa Catarina), originalmente propriedade da família Andrade, encontra-se uma bandeira do Divino de confecção bastante remota. Ainda em Lages, é possível apreciar na catedral da cidade um ostensório do Espírito Santo, peça em madeira policromada de excepcional qualidade artística, presumivelmente de fins do século XVIII ou início do século XIX. 38 FORTES, João Borges Fortes. Os casais açorianos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1978 e PIAZZA, Walter Fernando. A epopéia açórico-madeirense – 1747-1756. Florianópolis: Lunardelli, 1992. 39 OLIVEIRA, Sebastião Fonseca de. Aurorescer das sesmarias serranas – História e Genealogia. Porto Alegre: EST, 1996, p. 143/146 . 2.OS.FabianoSantos (cor) 6/17/09 12:18 AM Page 48 Na fotografia de 1890, flagrante da Festa do Divino em Lages (Santa Catarina), vendo-se, junto à casa do imperador, a concentração de fiéis em torno do singelo império montado em madeira e tecidos (Coleção do Museu Thiago de Castro, Lages). Detalhe da fachada do império da Trindade, em Florianópolis, em cujo frontão se destaca a figura da pomba do Espírito Santo (Foto do autor, 2007). [48] As festas que se realizavam em Lages e Vacaria eram muito concorridas, especialmente porque, acontecendo no início do período invernal (maio/junho), coincidiam com a época em que as fazendas de criação de gado – principal atividade econômica da região – paralisavam suas atividades, fazendo com que as famílias se dirigissem para suas casas nas vilas, onde permaneciam até a primavera. Era a Festa do Divino, desta forma, o evento mais aguardado pela população, conforme descreveu Otacílio Costa em 1938, relembrando o caso de Lages: “E que entusiasmo e que alegria se irradiavam das physionomias daquella gente boa, que fazia um grande empenho em dar à Festa do ‘Divino’ todo o realce, à altura da sinceridade e da pureza e ardor da sua fé. E no dia em que a ‘Bandeira do Divino’ saía à rua, a fazer coletas, ao som da banda do “Justino” ou do “Gaspar” (...). E a música alegre e os rojões alvissareiros espoucando nos ares e toda a gente em trajes domingueiros (...). E as novenas enchiam a velha matriz literalmente e à noite o leilão corria com o maior entusiasmo” 40. Os fatos citados demonstram que os açorianos que se fixaram no Brasil Meridional difundiram seus costumes e características culturais muito mais amplamente do que se costuma registrar. Essa influência é verificada ainda em regiões como a Fronteira e a Campanha, no Rio Grande do Sul, áreas que foram ocupadas, dentre outros contingentes lusos, por descendentes de açorianos entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, e que desta forma podem ser entendidas como áreas de expansão da população pioneira. Portanto, não se deve estranhar o fato de serem encontrados, ao menos através de registros, dada a inexistência de remanescentes, impérios do Divino em cidades como Caçapava do Sul, Santa Maria e São Gabriel, esta última já quase na fronteira com o Uruguai. Em todos esses lugares, a ocorrência da Festa do Espírito Santo e especialmente dos impérios, para além das corriqueiras telhas recortadas em formato de pombinha a arrematar o cunhal das antigas moradias urbanas e rurais, aparecem como indicadores dessa presença, atestando o relevante papel do contingente ilhéu na formação do Sul do Brasil. Torna-se necessário um aprofundamento da pesquisa, ampliando-se as reflexões e questionamentos a respeito dos impérios: a contextualização de suas origens e a inserção nas comunidades meridionais brasileiras, a compreensão de suas características arquitetônicas formais e tipológicas, sua provável ocorrência em outras localidades da região, os determinantes sociais e religiosos envolvidos na sua configuração e utilização, o destaque que possuíam nas praças urbanas, os porquês de sua evolução e decadência e, por fim, as formas que viabilizem a valorização das construções remanescentes em suas comunidades, de forma a serem reapropriadas e preservadas. 40 COSTA, Licurgo. O Continente das Lagens: sua história e influência no sertão da Terra Firme. V. 1. Florianópolis: FCC, 1982, p. 354. 6/17/09 12:22 AM Page 49 Jorge Lima Barreto "PIANO DENTELLE" concepção: Joana Vasconcelos/Jorge Lima Barreto Neste breve texto vamos, fundados numa teoria das ciências cognitivas da “energia irrealizada”, procurar explicar o que está por trás duma realização musical, o que antecede a sua concretização, o que potencia a consubstanciação do acto criativo do improvisador. Todos nós catarolámos mentalmentalmente uma melodia, até repetidas vezes, numa espécie de autoencantamento com a invenção, e depois, perdê-mo-la… podendo desaparecer da nossa vida, ou como que espontânea e miraculosamente reaparecer numa ocasião futura, por acaso ou deliberada por lúdico esforço para a recuperar. Essa melodia, que nos serve de paradigma, é uma forma de energia sonora, não explícita, voz interior, irrealizada exteriormente como substância sonora; podendo ser audível por nós mesmos… trata-se de um fenómeno de energia musical irrealizada; o nosso exemplo do sintagma cantabile, tem paralelo em ENERGIA MUSICAL IRREALIZADA ideias musicográficas, partituras jamais escritas, imaginário poético sem efectivação literária e artística e, podemos estender a congeminação a todos os gastos de energia criativa musical do irrealizado (composição e execução improvisatória; distinguindo-se esta do fenómeno da interpretação que realiza sonoramente uma matéria escrita ou fixada pelo compositor; tendo em conta que Arte não é Ciência e que no acto de compor está a invenção, o imprevisto, o imaginário, a inspiração, a emocionalidade, e outros factores indeterminados exteriores ao pensamento algorítmico (algoritmo: em matemática, sequência não ambígua de instruções, constitui o conjunto de processos e símbolos que os representam para efectuar um cálculo). Atitude conceptual radicalista, a teoria da “energia musical irrealizada” aborda um investimento puramente mental da memória e da vontade – entidade inaudível – aspecto musical secreto, não expresso, desejo do insubstancial, força parapsíquica que não gera matéria, conceito antecipatório abandonado, formulação virtual como num sonho; nesta perspectiva a improvisação musical é uma força viva que induz um potencial de acção e mantem, num estado momentâneo do corpo, os seus estados ulteriores, neste sentido na improvisação importa mais o seu lado conceptual. Para o platonismo a essência da Música estaria nela própria, a Música precederia a criação musical como nas forças imateriais ou mónadas de Leibnitz. [49] 3.ECA.JorgeLBarreto (pb) 3.ECA.JorgeLBarreto (pb) 6/17/09 12:22 AM Page 50 Procuremos, em traços vagos, definir o trinómio: energia, música e irrealização. Em Física, a energia é a capacidade de criar trabalho, pode ser potencial, cinética, eléctrica, entre outras formas… na Física quântica considera-se a energia do ponto zero – o estado original é o irrealizado e o devir, como na improvisação musical, é a nova articulação dos momentos irrealizados do Passado. A Música, na sua vontade estética espontânea, cumpre a teoria da “energia irrealizada” do taoísmo; o mestre indiano Sri Aurobindo considerava a força universal da Música como a energia mental do espírito irrealizado; a obra nihilista 0’00’’ (de John Cage, 1962, inspirada no pensamento zen), as longas pausas, o som inexpresso na performance musical do teatro nipónico kabuki, e.a., fundam-se no princípio da “energia irrealizada”. [50] O vórtice da energia são os desejos irrelizados do caminhante, sem rumo definido, que a cada passo se deixa levar para qualquer intinerário-destino de horizontes virtuais… No misterioso Livro de Urantia, nome dado ao nosso Planeta e ao primeiro humano que se adivinhou a si mesmo, a Música, entendida como vida, evoluiu da vasta diversificação da energia-matéria ao reino do irrealizado. O trabalho criativo musical consome uma espantosa energia irrealizada. A Música é energia sonora combinada em relações temporais e espaciais, sucessão de sons e silêncios; manifesta os afectos da alma através dos sons, é troca de signos, logo fenómeno semiótico que inspira a acção instrumental ou a voz ritualizada. De Pitágoras, filósofo que terá descoberto um princípio da energia da vibração dos sinos, a perturbação da quietude original é perpetrada pelo gesto do músico; a Kuthumi, que nas montanhas da Caxemira guardadava o Templo da Sabedoria, como professor universal, e considerava a Música a sua tarefa primeira para o estudo da potência mental. Na improvisação, que é uma forma de vida, despontamos do sono; como no mito védico... onde o amor finito escondido nesta vida se redescobre... é o mesmo desejo inconsciente referido por Italo Calvino, uma forma esquizo de alguém superar a sua própria tragédia... O mundo musical, na sua amplitude afectiva, é o que resta do amor acabado, da melodia encantatória que habita as grutas da invenção silenciosa, é o eco de angústia do irrealizado, a memória dessa paixão... Para a Escola de Praga, à qual pertenceu Roman Jakobson, na Música o importante não são os sons realizados mas antes como eles são intencionados. A Música seria irradiação de sons ideoplásticos, plasmada pelo espírito, a projecção de formas puramente mentais. O pensamento constrói, cria, mesmo que não concretize ou realize: engendra o gesto-tecla/corda/pele/metal, pleno-vazio, profundidade-superfície, inércia psíquica, acto desperdiçado no ensaio pela sua formulação em tentativas e erros, evasão de conjecturas como na futurologia do tarot, latência obscura da experimentação ou replicação biopolítica na filosofia de Michel Foucault. A Irrealização é o não conhecido e o insuspeito, a não-actualização do feito real, sem conexões e expressões sonoras discerníveis. O irrealizado não é o irrealizável; se o irrealizável é a impossibilidade do ser, o irrealizado é o ser em potência, talvez uma hipótese de vida, projecto inefável da metafísica. Pela observação dos sonhos e na sua extenção na vida, preconiza-se o sentido cabalístico em que a energia é um potencial irrealizado. Segundo Acácio Piedade, no seu estudo sobre a música yé-pâmasa na Amazónia, Alto Rio Negro, a tradição é uma permanente improvisação alicerçada no imaginário irrealizado dos sonhos por sonhar… 3.ECA.JorgeLBarreto (pb) 6/17/09 12:22 AM Page 51 A Música, como o sonho, é feita de frequências energéticas que são anseios irrealizados, processo infinito de sistemas que se esgotam, dissipam ou desaparecem na entropia; e se ordenam em sucessões na neguentropia; desgaste e regeneração – do inconsciente ao subconsciente. A subconsciência é um termo utilizado em Psicologia para designar aquilo que está situado abaixo do nível da consciência ou que é inacessível à mesma. Na Psicanálise, o subconsciente é uma “consciência passiva”, capaz de tornar-se plenamente consciente (ao contrário do “inconsciente”, cujo conteúdo só pode ser inferido indiretamente através de técnicas de interpretação). "ZUL ZELUB" Jorge Lima Barreto/ Jonas Runa [51] ENERGIA MUSICAL IRREALIZADA 3.ECA.JorgeLBarreto (pb) 6/17/09 12:22 AM Page 52 Vasos comunicantes na rede telepática de sons que são átomos de energia irrealizada. O lado conceptual da Música baseia-se na teoria ideoplástica da Parapsicologia onde o pensamento sobredetermina a matéria, a sugestão provoca um impulso, e a telergia é a sua força material; espécie de precognição, conhecer antes do acontecer ou, opostamente, rasgo de xenoglossia que é a aparente compreensão dum idioma prévio e desconhecido. O pensamento não é inconsciente, é criador, energia que processa estímulos organo-sensoriais; de mim mesmo para mim mesmo através do tempo; como assinala a Dromologia, uma ciência da velocidade, proposta por Paul Virilio, o comportamento automático do improvisador é então apenas veloz, não é inconsciente. [52] A improvisação musical é metaesquisofrenia (étimo da teoria da ficção científica de Brian Aldiss) porque se ausenta num enredo de fluxos patológicos; metanóia, quando a mudança de ideia propõe acções eminentemente revogáveis. Na função do orgasmo de Willem Reich, os desejos irrealizados são problemas económico-sexuais da energia biológica. Shakti é energia criadora, traço de desejo irrealizado pela invenção premonitória (do músico). Natum facere hoc – nascido para fazer isto, inscrição no código genético do músico, o improvisador está entregue a uma acção espontânea patológica; a espontaneidade parte da tabula rasa, não é sinónimo de originalidade ou resposta à situação circundante. No “síndrome de Estocolmo”, o raptado entrega-se ao sequestrador, assim o músico fica cúmplice-apologeta do instrumento ou da voz; todavia, sendo improvisador não me conformo, submeto ou obedeço – sempre procuro alguma coisa, uma energia que nunca acaba e é irrealizada. Vivendo no desconhecido, à mercê da energia criadora e da forma aberta; na sua postura estética, a improvisação é possibilidade e performance (actuação corporal), é um estado efémero e alusivo do irrealizado. Delírio à deriva do corpo sem órgãos no teatro da crueldade de Artaud. A improvisação é trabalho, rito produtivo de passagem, representação criativa do irrealizado; é energia que vive no corpo, que é o lugar dos sonhos musicais irrealizados. I have a musical dream… "LUZ-MÚSICA" António Palolo 6/17/09 12:25 AM Page 53 João Marques Carrilho A filosofia de Henri Bergson é apresentada por Bertrand Russell como altamente poética, e no entanto longínqua de qualquer verdade verificável (História da Filosofia Ocidental). Para Bergson, o universo é muito mais rico do que a forma como o concebemos usualmente. O possível é muito mais vasto que o real. A problemática de Bergson foi recentemente retomada por Ilya Prigogine. Em La Nasciata del Tempo e Le fin des certitudes, Prigogine argumenta que a questão do tempo foi absolutamente ignorada pela ciência desde Newton e mais ainda desde Einstein e que foram apenas a filosofia e as artes a tomar interesse sério pelo assunto. Uma das ideias fundamentais é a de que o tempo não é redutível a equações matemáticas e que está certamente presente na evolução das espécies e das civilizações, na organização dos sons em música... MÚSICA ELECTRÓNICA DOCUMENTA MÚSICA CONCRETA (Musique Concrète) É necessário encontrar uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento. (Antonin Artaud, Pour un théatre magique) Ao invés da Poesia Concreta, que foi desde o início um movimento internacional, a música concreta foi um fenómeno completamente sediado na rádio de Paris sob a direcção de Pierre Schaeffer (1948). As suas bases teóricas/estéticas fundamentais são expostas no Traité de Objects Musicaux (1966), Para Bergson, evolução não significa outra coisa senão erupção da Novo, da Criatividade. Estúdio Music Concrète [53] 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 54 da autoria de Schaeffer. Para o concretismo sonoro foi fundamental a invenção do microfone (por exemplo o de Thomas Edison em 1876), que foi explorado por inúmeros poetas sonoros, como por exemplo Henri Chopin, ou pelas recitações de John Cage. O microfone como instrumento musical foi utilizado pela primeira vez apenas em Mikrophonie I 1964-65, de Karlheinz Stockhausen. Foi no entanto com Pierre Schaeffer que o concretismo assumiu uma dimensão estética fundamental no desenvolvimento da música do século XX. Os métodos composicionais desta nova música foram revolucionários e podem ser melhor apreciados seguindo as fases internas de uma composição. [54] A música concreta parte do material (Schaeffer refere um regresso às fontes acústicas). Após um primeiro contacto com o material, que se encontra agora respeitante a qualquer som que possa ser capturado por um microfone, não contando apenas com instrumentos tradicionais, segue-se uma fase de intensa experimentação, que significa sobretudo a trasformação do material através de meios electrónicos. Finalmente a composição consiste na selecção, organização e montagem do material obtido. Este método é oposto ao tradicional que parte, segundo Schaeffer, de uma qualquer concepção (que é necessariamente abstracta), passando da notação à interpretação por parte de músicos. Para a música concreta, não há qualquer necessidade de músicos uma vez que só pode ser ouvida através de altifalantes. Toda e qualquer notação foi igualmente posta em questão, e apesar da maioria dos compositores a ter abandonado completamente, alguns, como Stockhausen, iniciaram um processo que se torna cada vez mais vital hoje em dia: a notação musical do timbre. Apesar da oposição entre os métodos tradicionais e concretos, Schaeffer aponta imediatamente para a relação entre as duas abordagens: a imaginação de um compositor que utiliza instrumentos tradicionais pode ser alargada enormemente pelo contacto com a música concreta e as suas metodologias, enquanto que o estudo do som de instrumentos orquestrais pode levar o compositor de musica concreta a uma nova compreensão do fenómeno sonoro e musical. Schaeffer clarifica que o Tratado dos Objectos Musicais lida exclusivamente com o material (objectos), e não com a sua organização em estruturas ou formas (trabalho que requeriria a elaboração de um outro tratado). Mas o seu pensamento não parte indefeso relativamente ao material. Revela, pelo contrário, grande influência de Husserl e da fenomenologia em geral. A própria noção de objecto (ponto de aplicação no mundo físico) é oposta à de objectos idealizados, como categorias abstractas, linguagens ou mesmo à música em si, quando considerada independente da sua realização concreta. A consciência que tenho do mundo objectivo implica a consciência de outro diferente de mim como sujeito. Um objecto apresenta-se como o polo de identidade de experiências particulares, e assim transcendente à identidade que ultrapassa as experiências particulares (Husserl, Formal and Transcendental Logic). Schaeffer dá grande ênfase à transcendência de um objecto devido à atitude comum de declará-lo completamente subjectivo. Note-se igualmente a sua vontade em unir mundo exterior e mundo composicional, enquanto justificava uma fusão entre som social e som musical. A argumentação de Schaeffer foca-se sobretudo no fenómeno auditivo, e partindo, entre outros, de binómios como objectivo/subjectivo, abstracto/concreto, permanente/variável, sonoro/musical, chega a quatro tipos fundamentais de escuta: Écouter (escutar) significa a actividade que não podemos evitar, uma imersão permanente no fenómeno acústico. Ouir (ouvir) refere-se a uma participação mais activa relativamente ao som por parte de que ouve. Entendre (entender, ou escuta direccional) significa que o auditor se foca em certas características sonoras, ou seja, que sabe a priori aquilo em que se quer concentrar enquanto ouve. Comprendre (compreender) é uma combinação da escuta direccional com um desejo de “compreensão” da mensagem acústica. Além dos quatro tipos de escuta, a música concreta serve-se de três postulados fundamentais. O primeiro é a primazia do ouvido. Qualquer limite ou evolução da nova música deve ligar-se à forma como captamos o 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 55 MÚSICA ELECTRÓNICA DOCUMENTA som (através dos ouvidos). Preconiza assim inúmeras investigações sobre a percepção auditiva e o funcionamento do ouvido como um “microfone” complexo, tal como as recentes perquisas sobre a cognição e interpretação do fenómeno musical que ocorre no cérebro. O segundo postulado é uma preferência pelas fontes acústicas, às quais os nosssos ouvidos estão expostos desde que a humanidade surgiu e que condicionaram seguramente as nossas formas de percepção. No solfège de l’object sonore procede-se a uma escuta sistemática e repetida de diferentes tipos de objectos. Em cada repetição a nossa percepção é confrontada com novos elementos que não teríamos notado até então. O objectivo não é a simples repetição, mas uma compreensão cada vez maior da estrutura interna do som em si. É esta experiência que nos permite compreender qual o caminho a seguir na elaboração das transformações com vista a uma composição musical. As bases de uma nova problemática são claras: se todo e qualquer som possui já uma uma estrutura interna, quais as diferenças e relações entre essa estrutura e uma estrutura musical que foi pensada composicionalmente? Diversos compositores tiveram acesso ao estúdio de Schaeffer, como Pierre Henry (seu colaborador mais próximo), Stockhausen, Boulez, Parmegiani ou Luc Ferrari. Ferrari tivera já contacto com Edgar Varèse, e tinha uma estética própria que pode considerar-se diferente da pretendida por Schaeffer; por exemplo, em Musique Promenade (1969) ou Presque Rien No.2 (1977) utiliza gravações não só de simples objectos musicais mas de ambientes ou paisagens sonoras completas, antecedendo o estudo da Ecologia Acústica introduzida no Canadá por Murray Schafer. Desenvolvida por compositores como Chion ou Bayle, a Música Acusmática (cuja fonte sonora é inidentificável) surge como uma estética interior ao contexto da música concreta. Stockhausen MÚSICA ELECTRÓNICA (Elektronische Musik) [55] O terceiro implica a pesquisa de uma linguagem. Este é um dos pontos mais incidentes da exposição de Schaeffer e significa a criação de um novo solfejo. Foram os estúdios radiofónicos que abriram as portas à música electrónica. Pierre Schaeffer, além de compositor e teórico, era técnico de rádio. A musique concrète desenvolveu-se em Paris a partir do final dos anos quarenta, e foi seguida imediatamente pela criação, em Colónia, do estúdio da WDR (pertencente à rádio alemã ocidental) e mais tarde pelo Studio di Fonologia Musicale (rádio italiana) em Milão (1954), da responsabilidade de Luciano Berio e Bruno Maderna. O estúdio alemão foi fundado pelo musicólogo Herbert Eimert em colaboração com Robert Beyer (o engenheiro de som que trabalhava na rádio) no Outono de 1951. A estética associada a este estúdio era tão diferente da francesa que para a compreender é necessário recuar até um dos maiores pilares da história da música do século XX, Arnold Schoenberg. As motivações de Eimert fundavam-se absolutamente na concepção dodecafónica de Schoenberg, que tinha colocado em questão toda a hierarquização do sistema tonal procedendo à democratização dos materiais musicais. Eimert, que tinha já escrito um livro sobre a composição dodecafónica, pensava que o meio electrónico seria o contexto indicado para o desenvolvimento das ideias provenientes de Schoenberg (mais indicado ainda que o meio instrumental). 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 56 Messiaen provinha de um pensamento modal, de grande complexidade que o liga a Debussy, por exemplo. Messiaen desenvolveu todo um sistema de modos a que chamou Modos de Transposição Limitada. Possivelmente estaria a utilizar uma abordagem modal para o ritmo (ele próprio fala aliás da relação entre ritmos não-retrogradáveis e os modos de transposição limitada no seu importante livro: Technique de mon Language Musical). A interpretação de Boulez e outros jovens compositores foi então diversa: Messiaen aplicava os princípios seriais de Schoenberg a todos os parâmetros musicais, e assim nascia o serialismo integral. No domínio electrónico, um pensamento por parâmetros é comum ainda nos dias de hoje, mas a sua ligação ao serialismo integral é geralmente ignorada. tinha já estudado,em Paris, com Meyer-Eppler. Stockhausen é um caso extraordinário, pois tinha igualmente estudado com Messiean e teria mesmo trabalhado no estúdio de Pierre Schaeffer. No entanto Stockhausen desejava compôr o som em si, e Schaeffer, que aparentemente não via qualquer interesse nisso (devido à sua dedicação total a fontes acústicas), dispensou Stockhausen. Foi então que este jovem compositor se mudou para Colónia, e por esta altura afirmava: para um trabalho X são necessários apenas sons com carácter X, pois esses sons são o resultado de um processo composicional. Após uma análise detalhada de inumeros instrumentos do Musée de L’Homme, Stockhausen procedeu à composição dos seus próprios timbres, as primeiras experiências consistindo sobretudo na adição de sons sinusoidais afinados a uma gama de frequências pré-determinada (Studie I, 1953). [56] A fundação do estúdio de Colónia visava desenvolver os procedimentos quer de Schoenberg, quer de Anton Webern (no caso da sua aplicação do dodecafonismo à composição de micro-estruturas). Um dos atractivos fundamentais era a possibilidade de compor o som em si mesmo, (ou seja a síntese do som), e levou à criação do termo que caracterizou a estética de estúdio de Colónia: Elektronische Musik, provavelmente proposto por Robert Beyer. A ideia de compôr espectros sonoros baseava-se nos príncipios de Fourier desenvolvidos em acústica por Helmholtz: qualquer som pode ser decomposto num conjunto de ondas sinusoidais. Através da utilização de equipamento extremamente simples, como o Melochord (inventado por Harold Bojé), produziam-se esses sons sinusoidais, que era seguidamente gravados em banda magnética. Existiam igualmente filtros, que permitiam selecionar apenas uma parte do espectro de qualquer som previamente gravado (removendo algumas ondas sinusoidais do som original). Outra propriedade do Espectralismo é a união da harmonia ao timbre, que implica uma expansão das noções tradicionais de consonância e dissonância. Werner Meyer-Eppler trabalhara já vários anos (durante a década de 1940) com o Melochord na universidade de Bona antes de se juntar a Eimert e Beyer na criação do estúdio da WDR. O seu conhecimento incluía acústica, fonética e teoria da informação. Um dos mais importantes compositores a trabalhar no estúdio de Colónia foi Karheinz Stockhausen, que No entanto, ainda antes do aparecimento da música electrónica a própria noção de altura (conceito dominante na música ocidental) tinha já sido aberta ao timbre, através da Música Microtonal. Em La Loi de la Pansonorité, Wyschnegradsky sonhava um continuum sonoro infinito, ou seja, um Espaço Pansónico ilimitado relativamente ao detalhe (microinterválico) e fronteiras Um dos problemas mais evidentes foi o de que os sons concretos possuem uma variação constante, enquanto que na Música Electrónica se procede à criação de sons de natureza essencialmente estática. A síntese do timbre era sobretudo um procedimento vertical (por oposição ao contraponto, por exemplo, que é horizontal). Essa abertura ao vertical (ou seja, à composição tímbrica) que provinha já de Edgar Varèse foi levada a novas fronteiras com a chamada Música Espectral (de Grisey ou Murail entre outros), em que a composição musical é estruturada com referência a espectros sonoros definidos (em geral acústicos, como o de uma nota de violoncelo). 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 57 MÚSICA ELECTRÓNICA DOCUMENTA É importante compreender que tal como um antigo gira-discos permitia alterar a velocidade de reprodução de uma gravação, as técnicas de estúdio permitiam realizar esta operação de forma contínua, e isto tornou-se internacionalmente uma das metodologias basilares de toda a música electrónica. Como argumenta Stockhausen, se acelerarmos uma gravação de uma sinfonia de Beethoven de tal forma que esta dure somente um único segundo, obtemos um som com um timbre característico, cuja estrutura interna foi composta por Beethoven. Da mesma forma poderíamos reproduzir um som captado por microfone (com duração original de alguns segundos) de tal forma que este teria agora a duração de uma hora, e obtemos assim uma “música“ cuja forma é gerada pela estrutura interna do som original. Stockhausen une assim todo o tempo musical, da forma (longas durações), ao ritmo (durações médias) e ao timbre (durações extremamente pequenas). Para a realização dos sons electrónicos de Kontakte, vários ritmos foram gravados em banda magnética, os quais consistiam apenas de impulsos eléctricos. Esses impulsos, quando acelerados, deixam de ser ouvidos como ritmo e passam a ser percepcionados como timbre, cuja evolução era controlada detalhadamente através dos ritmos que lhe deram origem. Este procedimento mostra que a música electrónica permite mudar entre as diversas àreas da percepção sonora. Na composição Gesang der Jünglinge (1955-56), Stockhausen faz coexistir abordagens da Musique Concrète e Elektronische Musik, mostrando afinal que a Música não se submete a qualquer metodologia particular. Muitos outros compositores seminais trabalharam no estúdio de Colónia, como Pousseur, Kagel ou Ligeti. MÚSICA CIBERNÉTICA (Computer Music) Na América do Norte surgiram experiências síncronas às dos estúdios europeus, particularmente com Otto Leuning e Ussachevsky que se deslocaram para investigar o que se passava em Paris e em Colónia. Tinham já realizado uma apresentação pública da sua música em banda magnética (designada Tape Music por Ussachevsky) no Museum of Modern Art em Nova Iorque (1952). Com essas experiências nascia o Columbia-Princeton Electronic Music Center. Outros americanos foram seminais para a música electrónica, como por exemplo Pauline Oliveros em Bye Bye Butterfly (anos 1960), ou Gordon Mumma, quer individualmente quer em colaboração com John Cage e David Tudor. Mumma participou igualmente no Sonic Arts Union, com outros compositores interessados no meio electrónico: a brain music de David Behrman e Alvin Lucier entre outros. Note-se igualmente que um movimento como o Minimalismo esteve no início intimamente ligado às técnicas da Tape Music, como no caso de It’s Gonna Rain (1965) ou Come Out (1966) de Steve Reich. Outros como Terry Riley desenvolveram sistemas electrónicos próprios que permitiam ao compositor a improvisação e transformação electrónica em tempo-real (no caso de Riley um sistema de acumulação de diversos delays). Uma das maiores contribuições americanas para o desenvolvimento da música electrónica foi um estudo aprofundado da utilização musical do computador. Qualquer dos instrumentos electrónicos de até então, por exemplo o Theremin (1920), Trautonium (1928), Ondes Martenot (1928), Órgão Hammond (1935). Todos os procedimentos da geração de sons electrónicos são denominados de síntese sonora. Até então utilizava-se o método de adição de ondas sinusoidais já mencionado (Síntese Aditiva) ou o método que utiliza filtros, e que parte geralmente de ruído (Síntese Subtractiva). O computador permitiu a generalização de todos esses métodos pois estamos perante um instrumento que é absolutamente [57] (agudas ou graves). A sensibilidade ao timbre é igualmente visível no microtonalista Julián Carrillo, que se apercebeu auditivamente de irregularidades nas fórmulas de Pitágoras para o som das cordas. 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 58 [58] programável. Isso significa que a complexidade do seu comportamento depende da nossa imaginação, das regras pré-determinadas para um funcionamento adequado e dos limites de velocidade de computação impostos pela máquina. O computador permite assim não só qualquer tipo de síntese sonora imaginável como veio substituir todo o equipamento de estúdio, realizando em segundos operações de montagem (por exemplo), que demoravam meses a realizar nos estúdios analógicos (cortar e colar milimetricamente fita magnética) dade. Desenvolveram-se igualmente sistemas capazes de lidar simultaneamente com um grande número de parâmetros, um avanço importante pois a ideia serial de que as variáveis musicais são absolutamente independentes é hoje em dia uma ideia do passado (utilização de técnicas provenientes da Inteligência Artificial, por exemplo). A verdade é que todas as variáveis interagem, como no caso das experiências em psicoacústica de S. Stevens: quando fazemos variar o volume de um som, a nossa percepção de altura é igualmente afectada. Outra funcionalidade fundamental do computador foi introduzida sobretudo por Iannis Xenakis e Koenig: computador como assistente à composição musical. Neste caso o computador lida simbolicamente com todos os parâmetros musicais desejados (alturas, intensidades, instrumentação, etc...) que serão submetidos a processos algorítmicos de complexidade variável e eventualmente imprimidos para a realização de uma partitura musical. As primeiras experiências musicais com computadores focavam-se sobretudo na síntese sonora e tiveram lugar nos Laboratórios Bell em 1957. Edgar Varèse visitou esses laboratórios entre 1959-60, e organizou audições públicas dessas primeiras experiências auditivas. Uma das composições mais famosas produzida nos laboriatórios Bell é a Suite Iliac (1957), que se inicia com as regras do cantus firmus como as estipuladas por Fux e foram previamente inseridas no programa de computador. Apesar do grande interesse por síntese, nesta obra o computador foi utilizado para gerar uma partitura musical para quarteto de cordas. Do serialismo integral tinha já sido desenvolvida a ideia de controlar todas as variáveis musicais individualmente. Na música electrónica, isso significou um interesse acrescido pelo controlo de parâmetros individuais. Alguns desses parâmetros fundamentais num som electrónico são o seu envelope temporal (a variação dinâmica de volume) e o seu envelope espectral (variação dinâmica do timbre). Máximos no envelope temporal significam sons de grande intensidade, enquanto que zonas máximas no envelope espectral correspondem a certas ressonâncias características. Essas resonâncias são denominadas formantes e são de grande importância no estudo da voz humana. Recentemente a sua aplicação estendeu-se de forma espectacular ao estudo de instrumentos musicais. Outra das possibilidades fulcrais do computador foi a controlo rigoroso da automação. No domínio electrónico, cada parâmetro (por exemplo a intensidade sonora), pode ser controlado quer manual quer algoritmicamente e reproduzido e/ou alterado em qualquer detalhe. Esse procedimento pode ser estendido a um grande número de parâmetros, e essa é uma das metodologias principais em música electrónica que mantém toda a actuali- Em 1968, Max Mathews e John Pierce, nos Laboratórios Bell, chegaram a um paradigma que viria a influenciar a maioria dos procediementos posteriores de síntese sonora (Music V). Com qualquer programa deste tipo, o compositor é confrontado com dois aspectos essenciais. A composição electrónica é separada nos aspectos ligados à síntese e outros ligados ao que pode ser designado de “partitura”, que em nada se assemelha a uma partitura convencional, e representa simplesmente os procedimentos necessários para controlar os sons sintetizados. Nos aspectos relacionados com a síntese, o sistema é aberto e permite uma arquitectura modular em que o compositor se transforma ao mesmo tempo num construtor de instrumentos electrónicos partindo de módulos muito simples. James Tenney é um dos compositores convidados a experimentar o sistema e algumas experiências de Ferreti (1965) antecipam outro aspecto fundamental da utilização futura do computador: a interacção em “tempo-real” entre músicos e computadores. (tempo-real significa que a computação ocorre ao mesmo tempo que o músico está a tocar). 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 59 MÚSICA ELECTRÓNICA DOCUMENTA Na peça Mutations I (1969), Risset explora a relação entre harmonia e timbre: quando soam simultaneamente, diversas notas fundem-se num único timbre (sino, por exemplo). Quando ouvidas em sequência, essas notas tomam um carácter essencialmente melódico. Uma das grande inovações em termos de síntese sonora foi a utilização da modelação de frequência: Síntese FM, por John Chowning em 1973. A grande vantagem é que esta técnica permitia uma rápida elaboração de timbre complexos, quer harmónicos (aproximadamente como um instrumento de corda) quer inharmónicos (por exemplo o som de um gongo), e mesmo uma passagem contínua entre os dois estados. Isto revelou-se bem mais eficiente que o laborioso processo de adição de ondas sinusoidais (Síntese Aditiva), e utilizado desde então em sintetizadores distribuidos à escala mundial como o Yamaha DX7; recorrendo a este método, entre outros, Chowning realizou Turenas, em 1972. utilização altamente intuitiva. Muito semelhante a uma mesa de um arquitecto, este sistema permite ao compositor desenhar linhas ou quaisquer figuras que são transformadas em som através de um sistema informático. Outra das concepções do prolífero Xenakis foi a noção de Síntese Granular. Gabor tinha já introduzido a noção de grão, que Xenakis tomou num sentido estatístico, tanto em música instrumental como electrónica. Por oposição ao sentido “vertical” da síntese que tinhamos encontrado nos princípios da música electrónica de Colónia, uma noção como a síntese granular é sobretudo “horizontal”, o que significa que o mais importante é o controlo dinâmico do som; no entanto é de mencionar que esta questão relaciona problemas fundamentais. Para o próprio Xenakis, a composição musical consiste em saber como chegar de A a B, numa negação completa da noção de timbre “com qualidade de estúdio” que caracterizou tantas estéticas posteriores mais preocupadas com a produção do som (pelo aspecto puramente exterior da música). Por outro lado desafia a noção do mais pequeno elemento sonoro, questão fundamental em música electrónica. Outra das ideias de Xenakis era a formalização da música, na qual o computador seria uma ferramenta de grande utilidade (ver por exemplo, Musique/Architecture ou Musiques Formelles). Um dos maiores expoentes da síntese por computador foi Iannis Xenakis. Xenakis introduziu métodos matemáticos avançados na mais diversas áreas da composição musical, no domínio da geração de novos sons criou a Síntese Estocástica, um procedimento em que o compositor lida com distribuições de probabilidade na criação dos timbres de uma composição electrónica. Xenakis realizou importante trabalho em arquitectura em colaboração com Le Corbusier, por exemplo no Pavilhão Phillips 1958. Inspirado por essa experiência criou o sistema UPIC, que é ainda hoje um dos mais avançados sistemas de composição electrónica, sobretudo pela sua forma de Iannis Xenakis [59] Um dos mais importantes compositores a trabalhar extensivamente nos laboratórios Bell foi Jean-Claude Risset, que desenvolveu a análise sonora, interessando-se também por psicoacústica. Iniciando um trabalho sobre os sons de trompete, estudados em computador (1966), compilou um catálogo de sons sintetizados por computador (1969), que apesar da sua evidente ligação ao sistema que lhes deu origem mantém-se ainda hoje como uma das únicas tentativas do género. 4.ECA.JoãoMCarrilho (pb) 6/17/09 12:25 AM Page 60 No domínio da voz e electrónica, Berio e Maderna haviam já realizado, em colaboração com Cathy Berberian, obras da maior importância para voz e electrónica, como Thema (Ommagio a Joyce) (1958), de Berio. Relativamente à síntese electrónica da voz humana, os maiores desenvolvimentos surgiram com a aplicação dos métodos LPC (uma espécie de filtro que tenta prever o futuro imediato de um som), por Charles Dodge e sobretudo a Síntese de Formantes, que permitiu a criação do sistema Chant no IRCAM em Paris, no final dos anos oitenta (a peça Vers le Blanc, 1982 de Kaija Saariaho, utiliza exclusivamente o programa chant). As bases deste sistema implicam também um conhecimento cientifico avançado, o conceito mais simples é a separação do som numa parte ressoante (o som do corpo de um violino, por exemplo) e um sinal de excitação (como a acção de um arco deslizando sobre as cordas de um violino). Outro exemplo: identificamos vogais pois cada uma possui uma área de resonância característica (independentemente da voz ser aguda ou grave). [60] Finalmente vale a pena mencionar os métodos de Análise/Ressíntese obtida por um vocoder de fase, que decompõe o som num grande número de ondas sinusoidais, e permite uma combinação e mutação do timbres completamente nova. Uma das ideias recentes mais importantes é a de Síntese Cruzada (Cross-Synthesis), a qual se baseia nas técnicas do vocoder. Através dele é possível, como exemplo elementar, “falar” através do timbre de um sintetizador, ou mesmo do som do oceano, o que significa que certas características vocais são combinadas com o timbre característico das ondas do oceano. A ideia do vocoder de fase foi ulteriormente levada a novos limites com o compositor Trevor Wishart e todo o projecto informático do Composers Desktop Project. Hoje em dia uma das mais importante aplicações do computador é precisamente o seu aspecto interactivo, utilizando o “tempo-real”. Esta utilização tem as suas raízes em obras que utilizam a transformação electrónica através de meios analógicos, como Mantra (1970), para 2 pianos, 2 ring-modulators, crótalos e blocos de madeira, de Stockhausen, ou Con Luigi Dallapiccola (1979), de Luigi Nono. A presença de Varèse e Schoenberg nos EUA deixou marcas importantes. John Cage, que tinha sido aluno de Schoenberg, declarara já o ruído como musical e adivinha a sua importância futura (tal como a da música electrónica em geral) em The Future of Music: Credo, 1937. A utilização do ruído em música remonta a Varèse, aos Futuristas Russos e Italianos... Com uma estética absolutamente própria, Cage abordou a electrónica tanto do ponto de vista de sons gravados em fita magnética, como da amplificação ao vivo de situações acústicas (por exemplo: amplificação interior de pessoas ou tráfego exterior ao concerto em si) e sons “pequenos” ou inaudíveis (por exemplo: amplificação da sua garganta enquanto bebia um sumo). Entre 1967-69 colaborou com Lejaren Hiller na composição de HPSCHD, para cravos e sons gerados por computador. A sua dedicação a Schoenberg era total, e conta que uma dos maiores pensamentos que obteve dele foi o seguinte: durante uma aula foi pedido para apresentar diversas soluções para o mesmo problema musical. No fim Schoenberg perguntou: Qual é o principio em que assentam todas as soluções? Cage apenas encontrou a resposta após a morte do seu professor: As questões que colocamos a nós próprios são os princípios na base de todas as soluções. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 61 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM ESTUDOS E CRIAÇÃO LITERÁRIA PEDRO MADEIRA PINTO Distância II, 2008 técnica tinta sobre papel medida 100x70 cm Page 62 6/17/09 12:27 AM Page 63 Maria Alice Borba O MITO DE VITORINO NEMÉSIO, O PONTO FULCRAL DA SUA OBRA É A ILHA, A “ILHA PERDIDA”: “Ave que fui na Ilha, Não voltarei ao ninho: Perdi a asa e anilha Pelo caminho.” (Vitorino Nemésio, “Nem toda a noite a vida”) Da Ilha emergiu e dela fez emergir os mais belos textos da literatura portuguesa contemporânea, sejam eles modelos de eruditismo literário ou recriação, no estilo e nos conteúdos, da tradição poética dos poetas populares da Ilha. A ILHA PERDIDA Com a Ilha mantém um vínculo indissolúvel. Ela não é apenas a nostalgia da distância espacial e da distância temporal do torrão que deixou no meio de Atlântico, mas o mito que o persegue e consome no vão desejo de alcançar “um lugar neste mundo”. Vivendo este perturbante e nublado estado de uma visão apetecida do “ser” na ilha real, sofredor face ao abismo infinito que o separa do mundo da “ilha perdida” que, pelo facto de o ser, se torna, em toda a sua obra, intemporal e omnipresente, perfeita e adversa. Ultrapassado o sonho liberta-se do real e atinge a categoria mítica que o sobrepõe às tentações e lhe permite numa “simbiose da vida com a morte” alcançar a meta desejada da sublime dimensão a que todo o ser parece predestinado. A marca deste mórbido e inquietante estado deixou traços evidentes na obra do escritor, bifurcando-o, particularmente, na poesia. Ora se deixa ir por uma via cujo ritual é marcado pela sensorialidade ou mais comummente, por uma outra via cujo trajecto poético de renúncia ao mundo é profundamente intimista, procurando, através do diálogo com Deus, resposta para as suas dúvidas, luz para fortalecer e iluminar a sua fé e esperança para o perdão. Perdão para as suas crises religiosas, para as suas motivações criadoras, para as suas próprias culpas. A obra de Nemésio poder-se-á sintetizar numa espécie de jogo dialéctico de carácter erudito ou “popularizante” aonde, para além das suas angústias, uma preocupação parece demarcar-se: “A edificação do Bem e a eliminação do Mal”. [63] 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 64 [64] 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 65 A ILHA PERDIDA Deixada esta nota preambular sobre a inquietação da alma nemesiana, encaminharemos o nosso estudo para a sua poesia. Poesia. Para a poesia que Pavão Júnior denomina de “popularizante” com vista a definir como nela se conjugam as vertentes estéticas e etnográficas. Pese embora o seu desejo de unificação com a alma do seu povo, Nemésio demarca-se pelo seu estilo, amplidão das formas empregues e a complexidade na abordagem dos temas, peculiaridade que sempre o identifica. seu EU, tantas vezes alargada à sua Viola, Nemésio emprega nas dedicatórias dos livros que lhe ofereceu, como nas quadras que lhe dedicou, termos que, mesmo por afinidade, ultrapassam o real e abrem caminho para o irreal. Em Vesperais, Angra, Outubro 66: “A Maria do Carmo, que cantou comigo e à minha viola, com muito afecto e estima o seu “padrinho”. Nesta sua poesia “o poeta expressa metapoeticamente as vibrações que a sua lira lhe impõe, numa comunhão exemplar entre o Ser e a poesia feita música vocal e instrumental”. [65] Não é de Festa Redonda ou de outras quadras afins que nos debruçaremos. Apresentaremos as que dedica a Carminha São dezanove quadras. É nosso objectivo apresentá-las e interpretá-las à luz desse seu carisma pleno de sentimentos amorosos, ideais, confissões de pendor pueril com projecções passionais nas quais encontramos igualmente a dimensão desse mundo em que permanentemente quer viver qual tentação materializada no amor, na beleza, na vitalidade ou noutros atributos. Mundo este que, uma vez sujeito a metamorfoses inerentes ao seu “ser”, deixa de ser real para se tornar irreal, miragem, ilusão, ironia, sofrimento, dor e uma profusão de sentimentos amorosos ou de culpa. É, consequentemente, no âmbito da sua poesia “popularizante” visando os princípios referidos que seguirá este estudo. Foi inspiradora dessas quadras Maria do Carmo Soares Vitorino. Curioso será, antecipadamente, referir algumas das dedicatórias que, em seus livros, escreveu ao oferecê-los a essa terceirense que, não esqueçamos, ficou para sempre lembrada como a “grande cantadeira” que foi e é pela sua magnífica voz e interpretação das nossas modas e, por outro lado, para sempre citada através dos versos que Vitorino Nemésio lhe dedicou. Como que numa necessidade simbiótica de uma maior aproximação, identificação, parentesco dessa jovem e da sua voz ao Igualmente em “Vesperais – 1916-1918”, em Angra e nesse Outubro de 1966: “A Maria do Carmo Vitorino, a minha afilhada e grande cantadeira à minha viola no Outono de 1966, na nossa Ilha, uma grata lembrança do seu amigo”, Vitorino Nemésio. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 66 [66] Em Festa Redonda, em Setembro do mesmo ano, apresenta a quadra que figurará como início das outras que lhe dedicou. Aqui a apresento, tal como foi escrita à mão por Nemésio, seguida da data e da sua assinatura: “Quis um milaigre de esmola E Nosso-Senhor quis dar-mo: Que ao som da minha viola Cantou Maria do Carmo” Angra, Set. 1966 (Assina) Vitorino Nemésio Não posso deixar de me orgulhar de ter sido uma das primeiras pessoas a ter em meu poder esse conjunto de “Cantigas de Nemésio”. Ao ler em Gávea-Brown, vols V-VIII, Jan. 1987, um artigo do ilustre terceirense João Afonso aonde as apresenta e refere de como as mesmas lhe vieram parar às mãos e a razão pelas quais as publica, sensibilizei-me. Quisera eu tê-las apresentado algum tempo antes quando cheguei de Toronto e Maria do Carmo – hoje conhecida pelo acréscimo de Barcelos por parte do marido – tudo me entregou. Fiz então algumas diligências junto de entidades conhecidas mas fui logo alertada para os direitos de autor aliados a outros factores que me fizeram tristemente guardar na gaveta para mim tão interessante e valioso espólio. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 67 A ILHA PERDIDA Tudo se passou em casa de meus pais, em Angra do Heroísmo, e a tudo assisti. Amante dos nossos cantares e estudioso profundo das nossas melodias, meu pai tinha um ouvido atento como que pré-escutando em todos os recantos uma aliciante voz para as cantar. Foi assim que em São João de Deus ouviu algures uma voz feminina projectando-se num canto – quem sabe da Lira ou da Tirana – que o encantou. Tinha que conhecer quem cantava tão bem e conseguiu descobrir a jovem-rouxinol. [67] Nemésio, colega do liceu e amigo de meu pai, correspondia-se de quando em quando com ele. Uma das principais razões dessa comunicação prendia-se com uma próxima visita à Ilha e a necessidade do poeta e da sua “viola” encontrarem as delícias de uns serões passados a tocar as nossas modas na companhia de outro tocador e de uma voz que as interpretasse. Não era difícil. Logo meu pai contactava para acompanhante o sempre lembrado tocador Laureano Correia dos Reis e, desta vez, como voz, convidou Maria do Carmo. Foi na sala da casa de meus pais que Nemésio e Laureano dedilharam as cordas que dias a fio acompanharam a jovem cantadeira da Canada do Farroco. Maria do Carmo com Vitorino Nemésio e Laureano Correia dos Reis cantando em casa de Henrique Borba. Bonita, desenvolta, “menina”, como é chamada numa outra dedicatória, Maria do Carmo logo fez os encantos do poeta. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 68 Achei elucidativo apresentar onde, como e quando Nemésio conheceu a que chamará de “Carminha”, aquela que lhe inspirou a força comunicativa dos versos que lhe dedicou. À boa maneira de “Festa Redonda” o nosso poeta logo encontra na quadra a forma de assumir pragmaticamente a voz de Carminha, “a voz do povo”, do seu “seu povo”, trabalhando habilmente a poética da oralidade, conferindo-lhe a sua própria estética “popularizante” e transpondo paulatinamente a melodia, o ambiente envolvente, o saudoso passado unificado com a vivência do presente. Já tornadas públicas as quadras de Nemésio a Maria do Carmo e, consequentemente, ultrapassadas as dificuldades da sua divulgação, retomo-as por possuir cópia do original que inclui a assinatura do escritor e por me sentir ligada a um compromisso feito à inspiradora dessas quadras que gostaria que sobre elas me debruçasse dado que, como referi, ter sido uma presença desses momentos vividos em casa de meus pais. [68] Nas quadras de Nemésio a Maria do Carmo deparamos com uma técnica de raíz insular/tradicional em consciente e voluntário prazer pelo genuíno. De lado deixa o tipo de poesia culta que tão superiormente tratou e situa-se no mundo envolvente da oralidade onde surge o jogo verbal, as possibilidades estéticas, o simbolismo espiritual bem como o misticismo e o erotismo do seu sentir e do sentir da sua gente. Segue o texto como o original: Quis um milaigre de esmola E Nosso Senhor quis dar-mo, Que ao som da minha viola Cantou Maria do Carmo. Oh, que voz seria esta Que eu agora oivi cantar? Tem o oiro da giesta E a cor do Carmo a chorar. Afinei as três toeiras, Que os três bordães eram pouco Para a grande cantadeira Da Canada do Farroco. Oivi Carminho cantar Aos meus toques de poeta: Era eu a acompanhar A minha primeira neta. Compondo a saia de folhos Cantaste tão triste e bem, Que vi láigrimas nos olhos De tê pai e tua mãe. David Mourão Ferreira, a este propósito, afirma que Nemésio “comungava autênticamente com a vida do povo da sua ilha e como era capaz de afinar a própria viola pelo diapasão dos verdadeiros cantadores populares”. Cantando, Carmo, choravas; Cantando, Carmo, sorrias: Encantando as pombas bravas Tornaste as pedras macias. Afirma ainda este estudioso que Nemésio conseguiu uma superior articulação do “popular” com o “erudito” e destaca a “frescura e a contínua invenção das suas quadras em Festa Redonda”. Nunca oivi cantar tão certo Nem ua voz tão de dentro, Como as ondas do deserto Que morrem todas ao centro. É nesta frescura e, não diria “invenção”, que são escritas estas quadras a Maria do Carmo dado que tudo se desenrola numa visão cíclica do tempo vivido, na apropriação lúdica do vocábulo, no carácter enunciativo que lhes é inerente. A tua voz chama o povo Como o sino da sineira: Nã carece de clara de ovo A melhor voz da Terceira. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 69 Sã João de Deus valia Por toiros de muita fama: Hoje é por Santa Maria Do Carmo que lá se chama. Fomos noivos ua hora Por milaigre de cantiga: Faltou-me o juízo agora Que sou velho, rapariga! No nosso bailo dei brado C’ua viola na mão; Ao teu cantar recatado Batia o meu coração. Chamas avô a um amigo: Vai pedir a tua mãe Que me aparente contigo Chamando-me pai também. Qualquer dia vou-me à vela Por esses mares sem fim, Mas tu ficas à janela, Que eu sei, à espera de mim. C’os nossos nomes, Maria, Deixa brincar o destino: Eu sou Vitorino da pia, Tu és Maria Vitorino. Pode ser (disse eu gemendo) Que ela não tenha derriço: Mas se, cantando-a, eu o ofendo Pouco me ralo com isso. Quando há quarenta anos via Toiros em Sã João de Deus Nem sequer em flor havia Um sinal dos lhos teus! Carminha, quando m’eu for Vou deixar o mar enxuto: Não cantes penas de amor, Guarda-me respeito e luto. Ter ciumes dos meus versos Não é prò noivo de Carmo: Namora-a lá pelos terços Que eu cá por mim não desarmo. Se Carminho tem namoro, Ele que me venha bater, Mas não tome por desdouro Cantiguinhas de entreter. “Aprendo com ela a aprender-me”, é assim que Vitorino Nemésio define a sua poesia. Efectivamente a interioridade do poeta nestas quadras como nas muitas outras que nos deixou elogiando a sua Ilha, o seu povo numa cronologia emocional e cognitiva de toda a sua vivência, demonstra a necessidade de reflectir, de exteriorizar o seu apego à terra, ao mar e ao fogo (não são os Açores um mundo telúrico?) que o envolvem bem como ao contínuo mundo de sentimentos amorosos, saudosos e sofredores que, impertinentemente, de forma cruel mas aliciante, permitiram que motivos clássicos interpenetrassem na sua poesia oral-tradicional. As quadras agora apresentadas, elas também, alicerçam-se na autêntica mitificação do vivido a que Almeida Pavão Júnior, chamou de “correlação poesia/vida”. Justamente nestas quadras temos Nemésio o poeta-tocador de viola: “afinei as três toeiras,/ Que os três bordães eram pouco”; o apreciador que não poupa elogios a Carminha e ao seu cantar: “nunca oivi cantar tã certo/ Nem uma voz tão de dentro”, uma voz que, continua: “tem o oiro da giesta/E a cor do Carmo ao chorar” ou que é: “Como as ondas do deserto/Que morrem todas no centro”. Essa voz que: “... chama o povo/Como o sino da sineira”, tão cristalina que: “Nã carece de clara de ovo”, e que tem o poder irreal de alterar o real, bem patente neste verso: “tornaste as pedras macias”. Deixado, em parte, este mundo sensorial do seu EU, da sua Viola, da melodia, deparamos com o mundo de recordações do passado, de um saudosismo da sua juventude. Assim, num cruzamento entre um real longínquo: “Sã João de Deus valia / Por toiros de muita fama” e um irreal presente: “Hoje é por Santa Maria/Do Carmo que lá se chama”, Nemésio evidência as motivações ontem e hoje vividas. [69] A ILHA PERDIDA 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 70 E, como se uma sequência cronológica de toda a sua vivência se operasse, Nemésio sente-se impelido por um sentimento amoroso, tal jovem, agora em idade madura, surgindo já não unicamente como admirador da “VOZ” mas enamorado por quem a emite, por aquela que o acompanha e à sua viola: “Ao teu cantar recatado/Batia o meu coração”; “Fomos noivos uma hora/Por milaigre de cantiga”. Ousa mesmo acarinhar a ideia de uma predestinação dos seus destinos bem patente na seguinte quadra: “C’os nossos nomes, Maria,/Deixa brincar o destino/Eu sou Vitorino da pia/Tu és Maria Vitorino”. [70] É porém pouco duradoura a veemência desta efusão enamorada. Logo, Nemésio acabrunhado pela efemeridade da vida, já então gasta pelos anos, nessa angústia da presença pouco distante da morte, lança um comovente pedido: “Carminha, quando m’eu for/... Guarda-me respeito e luto”. Num alento, logo afasta este abismal percurso inerente à vida proclamando num fôlego juvenil: “não desarmo”. Mas a realidade vence a emoção, compenetra-se, aceita, confessa-se. Paulatina e lucidamente, num jogo dialéctico de “atracção/retracção” de uma realidade evidente entre a jovialidade de Maria do Carmo e o interior de si mesmo, o autor acaba por se auto-criticar: “Faltou-me o juízo agora/Que sou velho, rapariga”. Se a noção do percurso temporal que, impiedosa e paulatinamente, o arrasta para o fim é aqui dolorosamente referida, não é menos sentida a noção da angústia da distância geográfica que o separa da Ilha perdida evidenciada pela dimensão do mar imenso que, de novo, o separará da sua terra e das suas gentes: “Qualquer dias vou-me à vela/Por esses mares sem fim”. De uma forma surpreendente mas pensada, dita com humor jocoso e dorido, termina este percurso deambulante por um pedido que, de novo, é a expressão já referida da mistificação de uma união, não do jovem admirador eterno que desejaria ainda ser nem tão pouco do “avô” a que se refere na quarta quadra. Sábia e ardilosamente minimiza o grande afastamento AVÔ-NETA por uma solicitação que o interpõe entre o jovem e o velho ao mesmo tempo que reforça o desejo de com Carminha adquirir vínculo familiar: “Vai pedir a tua mãe/Que me aparente contigo/Chamando-me pai também”. A açorianidade da poesia nemesiana não se restringe nas suas quadras apenas ao desejo de partilhar o mundo “popularizante” dos cantadores da Ilha Terceira. A sua Ilha tem o povo, o seu povo de Angra do Heroísmo à Praia da Vitória, da Serreta ao Porto Martins, do pescador ao pastor, do estudante ao vendedor. Tem o povo que nela vive e os da Diáspora que para a sua ilha em visita de saudade, por carta ou pelo telefone, utilizam novos termos aprendidos na terra de acolhimento e que na Ilha se implantam, a maioria da vezes, deturpados. Nemésio preocupa-se também em empregar não apenas nas suas quadras a Carminho mas em grande parte da sua obra regionalismos, arcaísmos, hoje ainda de uso corrente, registos de hábitos e costumes, estrangeirismos. Há versos onde predominam as comparações quer com a natureza envolvente: “Tem o oiro da giesta” quer com referências aos costumes, tradições ou religiosidade do povo da “ilha perdida”: “E a cor do Carmo ao chorar”. Os regionalismos não são descurados: “derriço” (namorado): “Pode ser (disse eu gemendo) Que ela não tenha derriço”. “Terços” (prática religiosa) bem característicos na devoção ao Senhor Espírito Santo nos dias que antecedem a coroação e a função: “Namora-a lá pelos terços”. As tradições surgem. Agora é a presença do sino ao amanhecer ou ao entardecer à hora das trindades: “A tua voz chama o povo Como o sino na sineira”. A “tentação foneticista” é também tentada. Empreguei a expressão “tentada” dado que as peculiaridades fonéticas, na grafia 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 71 A ILHA PERDIDA Como é sabido, caracteriza-se o falar terceirense pela influência das semi vogais i e u em posição intravocabular ou intervocabular, isto é, pela palatalização e velarização das consoantes quando precedidas respectivamente de um som palatal ou velar que modifica foneticamente a palavra. Nestas quadras, como nas demais que encontramos na sua poesia “popularizante”, deparamos várias vezes com a tendência de uma demarcação dos sons em / i / em desfavor dos sons em / u /. Exemplificando: Logo no 1º verso temos a palavra “milaigre”. A palatalização é aqui tentada mas não há sequência dessa pertinência fonética logo demonstrada na palavra que se segue. Está escrito “esmola”, quando, pela mesma razão, devia estar escrita “ismiola” por influência da semi vogal / i / que inicia foneticamente a palavra. Temos ainda a insistência dos sons em / oi / em vez de / ou /: oivi, pidir, laigrimas, bailo. A velarização, regra geral, é omitida. Apresenta sem qualquer preocupação de imitação dialectal as palavras “sino” e não “o suino”; mar e não “o muar”; choravas e não “choruavas”. Com frequência se aproxima de outras características fonéticas do falante afastando-se consequentemente da correcção gráfica ( nã, tê, ua...) procurando transmitir sons que permitam a um nativo saborear um longínquo eco do que lhe é comum dizer ou ouvir. Refere outras características: as formas meu, teu, seu perdendo, em posição proclítica o segundo elemento do ditongo, reduzindo-as a mê, tê, sê; apresenta fenómenos tais como a alteração de ãu em ã como observamos em: “nã carece”, “sã” João. A formação do plural dos substantivos terminados em “ão” é apresentada como o povo normalmente a ela procede: bordães por bordões. Se a obra literária permite interpretação é pelo facto desta possuir toda uma série de pressupostos existenciais, ideológicos e culturais perante os quais o leitor, a partir da sua experiência existencial e cultural, pode formular sentidos vários. Consequentemente, e pelo facto de toda a obra permitir uma problemática e não uma solução indiscutível, apoiando-me em poetas como Verlaine para quem a poesia era essencialmente música ou em Proust: “Le style n’est pas une question de technique, mais de vision”, creio que é consciente e cuidadosamente elaborada a construção fónica particularmente escolhida por Vitorino Nemésio. Esta construção terá permitido ao poeta recriar outros valores para além da pura imitação fonética e evocar, quiçá um significado, a musicalidade pretendida. Creio assim que Nemésio preferiu, propositadamente, salientar os fonemas em / i /. A estética verbal do seu povo ficava assim mais próxima das cadências orais/tradicionais faladas ou cantadas. E, nesta óptica, de certo a magnitude lírica emitida pela predominância do som “preferido” pelo poeta seria a que mais iria ao encontro desse mundo onde a voz de Carminho tinha o dom de tudo amenizar bem como de tudo cativar. Nemésio nestas e noutras quadras opta, parece evidente, pela musicalidade, pela melodia suave. Manobrando a sua própria estética, afasta-se aqui de sons evocativos do telúrico, do fogo – sem esquecer a importância que este elemento teve na maior parte da sua obra –. Procura, antes, sons evocativos do mar causticando as rochas, das ondas debilmente espraiando-se pela areia, do Atlântico que envolve a Ilha, da água que, em refrescantes nascentes, nela brota aqui e além. Aquela água que, citando Lúcia Cechin: “Água que espelha a mãe, o ego do Poeta, sua imagem, sua vida, seu ideal”. [71] usual, esbarram com um número ilimitado de dificuldades. Não sendo possível usar sinais diacríticos ou o alfabeto fonético, o único meio de que dispõe o escritor é o dos conjuntos gráficos que, de per si, não conseguem registar as mais diversas realizações fónicas. Obtêm-se assim algumas características que nem sempre correspondem inteiramente à fala ou não são persistentes no decorrer do discurso. Poder-se-á dever a uma sentida consciência da dificuldade na transcrição fonética ou a um cuidado em não apresentar consistentemente uma fuga à norma ortográfica do português padrão. 5.ECL.MaAliceBorba(pb) 6/17/09 12:27 AM Page 72 É esta a minha interpretação. A interpretação de quem igualmente se sente embalada pela saudade da Ilha, pela suavidade dos seus campos verdejantes por onde o gado desfila pacificamente entre o azulado róseo das hortenses, a policromia dos verdes e o negro da pedra queimada onde o “mofedo” teima em instalar-se como que banindo lembranças ou receios de um vulcanismo de ontem, de hoje e de sempre. É o parecer de quem jamais quer esquecer as doces lembranças das Avé-Marias quando na Ilha viveu, agora, longe dela, longe da sua Ilha nas Trindades da Vida. [72] 6/17/09 12:30 AM Page 73 António de Névada CANTOS VII-XI DA CANÇÃO “VOZES EM UNÍSSONO” (PERTENCENTES AO POEMA “CÂNONE SILÁBICO OU UMA CANÇÃO DE AMOR”) VII E nada nos é dado No instante da verdade. Visionários quânticos Perdemos os dias No momento em que o dia hesita Entre o brilho e as trevas Para que as estrelas cintilem Uma luz longínqua e já morta. A água das chuvas faz poças E lamas pela cidade E não há sereias Nem gemidos Que perduram pela tarde fria E deslizam à noitinha pelas ruas desertas, Náufragos há mil anos Procurando inutilmente O mar convulso Onde afogar a dor, Onde afagar o que geme Sem forças Quase um gemido. Perdura a neblina [73] 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM Page 74 Que mancha a vidraça e o olhar, E não partilhamos A Solitude Contrabajísimo Para Além da Noite Kind of Blues De Profundis Kanon Pokajanen, E a beleza de existir onde a terra termina A sua firmeza sólida de terra rija O mosto que sobrenada E a pancada que mutila o meu peito. [74] Pelo cais de abrigo não encontramos Vivalma que nos afagasse o cansaço, Nem o sabor do incenso Nem o unguento encontramos. Ensurdecidos ouvimos o comboio Que pela noite desliza sonâmbulo E velho cargueiro, Auscultamos o esquecimento O desejo e o vidro baço, Sob o peso da solidão A alma esmaga a madrugada e o medo. Perdura a neblina As águas turvas turvando o olhar, E não se vislumbra o firmamento Nem a ponta dos mastros nem as velas já rotas, E as Ninfas calaram o encanto E não há música nos seus lábios nem silêncios, Nos seus seios adormecidos Nem um rumor se ouve Que pudesse servir de canto Ou de âncora Para este navegante sem rumo (se ao menos houvesse a bússola?). Nem sombras nem pegadas de gente, Ninguém há que nos sirva água fresca. Sem o tumulto ou a ambivalência, Nem mesmo o jarro que contém flores murchas E raízes apodrecidas, Se percorrêssemos os palmos da distância, Da amnésia à in-finitude, Encontraríamos ainda assim o caminho Sem ninguém que nos sirva a água benta E a alma horrorizada, Depois de não ter sinais nem sonhos, Engolidos pela morte e pela vida, Ousaríamos ainda assim quebrar o silêncio Num estrondo, Depois de rasgar os jornais E partir as chávenas de café E repartir os cacos, Depois de dilacerar a amargura E ter atravessado a rua num atropelo De passos, Sem lágrimas e sem sorrisos Sem deus sem divindades, Ó labirinto ó vigília sem nada, Que tempestade Viço verde ou grão maduro, Que fúria nos levará aos mares da alma Ou à areia da praia? Ó mastro despido, Pálida existência pelos dias! O amor não nos levou a outras paragens: Deixou-nos aqui? Órfãos e plenos Na sua presença, Um fruto maduro Que se esmaga como um cacho Sob o peso das uvas. 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM Page 75 CANTOS VII-XI DA CANÇÃO “VOZES EM UNÍSSONO” Assim A noite e o dia Não pressentem o pulsar do meu peito, Nem a insónia que não durmo Nem a vida que sobrevivo. E quando o sol se põe Por detrás desta canção E a voz do vento Canta nos rostos incrédulos, No cálido timbre de um cutelo Afiado até aos dentes como um felino E caído de quatro feito uma cerejeira, Quando a lua discreta ilumina A face oculta das estrelas E um fedelho vê-se ao espelho Fugindo da imagem, E as notícias noticiam Mais um melodrama, Uma tragédia que não chega a ser grega Mas burguesa e mesquinha, Quando os sonhos morrem à nascença E o teu perfume os teus gestos E o tempo parafraseando o tempo Se revelam ontologicamente indivisíveis, O olvido e o passado O destino e o auguro da cigana Se diluem na imensidão do presente. Assim Sem páscoas sem renascimentos, Ciente do irreversível De morrer uma morte real, A tarde vai entardecendo Nas roupagens do poente. E deus Vestindo as nossas vestes Invoca os poderes de não conter A arrogância numa taça De hóstias mal servida. Ó árvore da vida Ó tinto murcho Ó videira podada Ano após ano Ofertando o fruto ao festim! Quando tudo pára Em frente à igreja em ruínas E o semáforo intermitente É um piscar de olhos nesta cidade muda, Quando ao balcão da esquina Uma mulher envolta numa teia de fumos Pede uma bebida quente, E nos seus olhos Cintilam a beleza invulgar Que só o belo consente, Quando numa brecha entre as nuvens Os reflexos da lua Teimam brilhando Assemelhando-se Ao brilho desse olhar, A dimensão humana Se dilui na imensidão do presente, E de novo o signo Dos campos sem trigo, A mesa onde me sento Em silêncio com os amigos, A tarde entardecendo Nas roupagens do poente. Viajamos pela metáfora da memória E pelos bairros da memória Como se a Cidade de Deus Coubesse na fronte dos homens, Sem sermos santos de coisa alguma, E nos presenteasse Horácio Pois a vasilha que se impregnou De perfume Largo tempo o conservará, Assim nos campos de trigo [75] VIII 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM As ceifeiras cantam! E apascentamos a existência Cultivando o vento e a voz do vento Como se bebêssemos a transcendência No primeiro cálice da noite, E cálidas foram as mulheres Que geraram os nossos filhos E as mulheres que amamos E as ruelas por onde morremos Há milhares de anos, Assim nos campos de trigo As ceifeiras dançam. [76] Nada cabe no meu peito Morto sem sepultura, Para me recordar que pertenço Ao deserto que me viu nascer Assim nos campos de trigo As ceifeiras cantam! Sejam Benedictus Os Cantus Milonga Loca Milonga Triste Entre a rapsódia e o mundo, Maldizemos o silêncio entre dentes Malditos sejam as horas No seio de cada instante. Não vos falarei Da tristeza. Decerto Além do sorriso Estampado no rosto E das contorções sob a pele Fica o sofrimento. Page 76 Inconcebível à guisa Da estética As ondas cospem o mar Terra adentro. Como calar O vendaval? Que se abate Em tempestade Sobre esta canção… IX A morte A in-condição humana, Pertencem-nos. Na sombra atroz Que se revela No corpo bailando, Na hipérbole do A-deus Que não escutamos, Na celebração da vida De sol a sol e aos olhos da lua. Os alísios e as lestadas Repovoam as nossas casas e os campos E partilhamos a viagem e a calmaria. Conquanto duvidamos das horas Impróprias ou propícias Os rumores do mar Afrontam-nos as têmporas E a fronte, Numa cadeia inaudível De sons Sobreposições E polifonias decafónicas. A verosimilhança Edifica a sua balança de razões E sustenta O fio o fiel e o prumo 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM Page 77 CANTOS VII-XI DA CANÇÃO “VOZES EM UNÍSSONO” Sim, Porque o que resta Bebemo-lo sob o quotidiano das coisas! E a memória É o som que perdura Na mente dos homens. A cidade O abandono noite dentro, Os jardins as flores murchas E as árvores redondas, A esmagadora mordaça da lembrança, Zoada ou reza Bocados de pão Abandonados na praça. [77] Como coisas nossas. Paramos demoradamente Em silêncio Observando um bêbado Pé ante pé equilibrista, A direito escrevendo por linhas tortas Caído de quatro feito uma cerejeira. Testemunhamos a luz sobre as colinas Impregnadas de magia, O véu do crepúsculo ao sabor da crença, Chegas de bois testosterona de bichos, A corda bamba e o pêndulo do tempo Sem pompa nem circunstância Designam a incerteza Como coisa permanente e nossa. Todo o silêncio Está contido neste instante. São sete horas em ponto Conto até quarenta e quatro Rasgo as folhas onde rabisquei Versos mil E olho em frente o horizonte: A sombra de bronze moribunda É um bisonte esmagado Sem versos e sem credo Numa sucessão de pontes Mar adentro. And the clown is dancing To invite the bright moon, Não sou Ulisses nem sou de Ítaca, Não vislumbro os mastros Nem quem me amarre, Como hei de escutar O canto das sereias? Ó minha alma Ó sombra dançando Ó horizonte sob a neblina, A rosa-dos-ventos Defronte ao norte Aponta-nos os dias que restam E a viagem sem regresso. Num simulacro As migalhas que ofertamos À vida (e aos pássaros) Zoada ou reza O mundo que habito O barro que amasso No chão que piso In-finitamente O pão que como Do pão da alma. X Que o espírito lapida a memória, Que o formão e o mogno Rememoram os signos, E que as mãos que empunham São utensílios que destilam os dias. Assim vamos dizendo O que ontem não olvidamos! 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM E se no limiar do cansaço Os vultos agasalham-se Na luz trémula E os corpos Adormecidos sob a terra Fertilizam os campos O homem é ungido homem Para lá do limite de ser homem. Que o olvido É uma flor madura Que semeia o seu sémen, Tal é o modo Como o vento ilude Inusitadamente O diapasão e o sentido Ou a sensatez das palavras. [78] E se a precariedade Tacteia timidamente O caminho Ou uma espécie de lida fictícia Frágil metáfora tão súbita e incrédula, Que não sirva o perdão Para lavar o descuido nauseabundo Que deambula pelas parábolas E este lagar do azeite. Diremos o que ontem não foi dito! E dizendo-o Temperamos o espírito: Pois não nos compete Contradizer a vida Mas apenas inventariar O que a alma consente E a usura não afasta; O que a alma interroga Amiúde nos indaga; O que a nudez e a solidão Descobrem de si mesmo. Page 78 Momentos sem pasmos As folhas perfumadas Sem vida ao relento. Se estão húmidas Aceita-as, São apenas gotas do orvalho, Se sabem a lágrimas É do salitre do meu rosto. E como um mastro Num mar de lavas Os ramos despidos E o tronco nu À mercê do vento Num último suspiro. Habitamos Onde nada existe Além do silêncio. E Na sua plenitude O homem questiona A existência. Mas quem é ele Para saber da verdade? Quem somos, Homens, Para questionarmos A verosimilhança? Tanto quanto sabemos A virtude e a modéstia A in-finidade O mérito e a coragem Ou a generosidade, Não transcendem a vida: Colhem aqui a faina dos dias! 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM Page 79 CANTOS VII-XI DA CANÇÃO “VOZES EM UNÍSSONO” Nos campos em pousio A morte é uma história Perene que se repete. Será a vida A via da devolução do encanto? E o que ascende para o fim O seu fruto na estação própria? Ó atalhos intermináveis A mão direita e a esquerda Meridianos inconsequentes Que se apossam das margens Que ladeiam este lugar! Se procuramos uma medida Para quantificar a dor, O sofrimento, Porque nos comovemos Com o júbilo e a alegria Sob o axioma da vida, Se procuramos O valor quântico E a memória É um abismo na noite estrelada, E nos comovemos Com o belo Sobre a terra crua, Eis A dádiva de nos erguermos À semelhança das árvores Longe dos ribeiros de águas Onde nada existe Além do mundo E da desconstrução do mundo. Pois que o tempo Não detém Mais do que o tempo necessário Para instaurar O turbilhão E a serenidade. A mais ínfima Vibração do mundo, O labirinto que a vida, Defronte, nos coloca, Não tem o propósito de nos apoquentar, Tampouco reclama o tributo à existência Mas apenas aguça a vocação E o sentido da humildade: Que a alma reaprenda O amor. XI Caminhei Até à língua de água Por entre docas sombrias E gruas enferrujadas, A velha cidade Como um enigma Ferindo a ensolarada manhã. Da margem sul Sentado na ponte suspensa Fiz a travessia imaginária Da Babel ainda adormecida. [79] Eis o tom sustenido Pelo timbre vibrante Estremecendo o som Que se lhe assemelha. A mente Segue o movimento Indelével da música, Auscultando além do mundo E da espiritualidade. 6.ECL.António Neves(pb) poesia 6/17/09 12:30 AM O tempo É escasso Para memorizar Os queixumes da alma. A vida destila a perenidade Ofertando o silêncio Desolador e comovente. Decassílabas originalmente Pronunciadas, umas atrás Das outras, arrebatadoras, Decantando as dissonâncias Do tempo. [80] Caminho pela dúvida Com a devida lentidão De quem sabe Os encargos da alma, E Setembro Segue o seu curso Por Outono dourado Esguio e esquivo Já sem folhas. A lua translúcida Contempla impotente A própria imagem irreflectida E servida cegamente Como arma de arremesso Ferindo o coração da noite. De nada nos serve Dissecar a parábola O sentido ou a poeira da vida. Íamos Em silêncio amor Quando a lua surpreendeu As nossas almas pasmas Plantadas na paisagem, Como se as coisas e a alusão das coisas Pudessem conter o brilho do sol E fosse verosímil Que em meu peito Tivéssemos semeado a dor. Page 80 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 81 Nuno A. Vieira GABRIELA SILVA O ar de Outono já se fazia sentir num céu tipicamente azul da Nova Inglaterra, quando eu acabava de almoçar e senti o abrir da caixa do correio na rua. Era o carteiro que me a acabava de abarrotar com livros que eu havia encomendado sobre a civilização romana, e vinha um outro que me chegava às mãos de oferta. As letras brancas, projectadas sobre a capa negra do livro, soletravam a palavra “Ilha”. Em fotografia, ainda se via a espuma branca da raiva do mar a esbater-se contra a rocha aprumada da ilha. Será o homem que revolta o mar? – A poetisa escreve: “No mar alto / os homens perdem a raiva / e ficam de novo à espera”. Voltei para a mesa, para comer a sobremesa, e foi então que, num fôlego, me deliciei com a leitura do livro de poemas – Ilha – de Gabriela Silva e Kristie Mclean, em tradução para o inglês de Katharine F. Baker. As mãos amaciaram-se-me ao folhear papel de textura tão fina e rica. O conteúdo emocional de cada poema absorveu-me ao ponto de esquecer a fotografia correspondente. Mais tarde, apercebi-me de que a poesia era uma fotografia da alma do ilhéu e as fotografias eram poesia da mesma realidade, mas sem palavras. Quando peguei no livro, notei imediatamente que o título era apenas “Ilha”, sem o artigo definido. Bastou-me ler alguns poemas para me aperceber que a autora não quis particularizar nenhuma ilha, neste caso a sua ilha, mas apenas preferiu falar da sua experiência vivencial de ilhoa em termos universais. Prefe- riu o universal ao particular. Gabriela Silva optou por ligar o concreto ao abstracto, o particular ao universal, e o finito ao infinito. Nem uma só vez menciona a ilha da sua residência e vivência – as Flores. A verdade é que, no mar de um mundo de ilhas, talvez não seja fora de contexto salientar a ilha das Flores como uma em que a insularidade se faz sentir em toda a extensão da palavra. Ilha incógnita para muitos, longe de terra firma, a boiar no meio do Oceano Atlântico, debaixo do olho vigilante do diminuto Corvo que constantemente lhe lembra a fragilidade da pequenez da terra ilhoa. Gabriela Silva, agora, junta-se a três outros grandes poetas florentinos – Roberto de Mesquita, Alfred Lewis e Pedro da Silveira – que, com semelhantes mas também diferentes perspectivas, caracterizam o viver e a alma do ilhéu. Um estudo comparativo destes quatro poetas, além de interessante, parece ser imprescindível para a compreensão e apreço do homem ilhéu e para uma definição mais inclusiva de insularidade. Antes de prosseguir, queria referir-me ao pormenor de que Roberto de Mesquita e Gabriela Silva saíram da ilha por um período de tempo relativamente curto, mas continuando a sua experiência ilhoa noutra ilha. Ao contrário, Alfred Lewis e Pedro da Silveira saíram da sua ilha para fixarem residência respectivamente nos EUA e Lisboa. Interessante será verificar-se, se [81] NA ESSÊNCIA DO ILHEUNISMO 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 82 aqueles que transpuseram a linha do horizonte, para viver noutra localidade, alteraram, de alguma maneira, a sua percepção e experiência de ilhéus e ainda se estas se alteraram segundo a cronologia do tempo no caso especifico dos quatro poetas. Uma coisa parece ser certa – que o isolamento, em tonalidades diferentes, coloca estes poetas no limite da solidão, conduzindo-os, no seu sofrimento, a zonas bem recônditas da alma ilhoa. [82] O Dr. Luís Ribeiro, em Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, escreve: “De longa data os historiadores, os geólogos e os filósofos têm procurado determinar as mútuas relações entre o homem e o meio em que ele habita, isto é, ver até que ponto o homem age sobre a natureza que o cerca e esta, por seu turno, reage sobre ele, condicionando a sua vida e moldando-lhe o tipo e o carácter.” Continua: “Nesta ordem de ideias procurei fixar aquilo que se me afigurou mais característico no meio açoriano – o vulcanismo, a presença constante do mar, a insularidade ou isolamento do resto do mundo, a humidade do ar, a nebulosidade do céu, a temperatura oscilante entre estreitos limites, a pressão atmosférica, os vendavais e tempestades, a diferença entre as ilhas e o continente pelo que respeita às condições geográficas e da paisagem, verificar ao mesmo tempo quais as qualidades morais comuns a todos os ilhéus, a sua religiosidade profunda, espírito de submissão, indolência, imaginação criadora, sentido da perfeição e do pormenor, espírito satírico, certo grau de saudosismo, talvez mais acentuado do que no continente, etc., e ver até que ponto estas qualidades morais e a sua feição própria eram consequência das condições mesológicas, ou, pelo menos, quais as possíveis relações entre umas e outras”. O livro Ilha, da autoria de Gabriela Silva, regista a maioria das variantes de insularidade, acima mencionadas por Luís Ribeiro. É o meio-ambiente ilhéu que plasma e sensibiliza a alma da poetisa já sensível desde o berço. Os seus poemas são uma expressão sincera, natural e espontânea do viver ilhéu nas suas mais diferentes cambiantes. A sua poesia é uma porta aberta aos estados psíquicos do ilhéu. Através da obra de Gabriela Silva, o leitor não terá dificuldade em encontrar uma terminologia toda referente “àquilo que se me afigurou mais característico no meio açoriano”, acima mencionado por Luís Ribeiro. A linguagem da poetisa desenha um mapa todo ilhéu: mar, mar alto, mar enfurecido, onda do mar, vento, rocha, baleeiros, arpão, a baleia enfurecida, barcos, rampas de varagem, pescadores, tempestades, trindades no sino da aldeia, preces à divindade, verde dos campos, fraga, cascata, limitação espacial, isolamento, solidão, medo, chegadas e partidas, saudade. Veja-se como a poetisa codifica certos elementos da natureza como parte integrante do viver ilhéu na sua estrutura corporal e psíquica: Já sei. Tens saudades da ilha. Não sabes viver sem mar e sem fragas não sabes sonhar sem verde em cascata não sabes estar sem cabelos ao vento não sabes andar sem ser sobre a rocha não sabes amar Sem a cabeça ao relento. Neste artigo, procurarei centrar-me no impacto da ilha nos diferentes estados psíquicos da autora. Ver-se-á que a sua obra está carregada de um conteúdo emocional de óbvia palpabilidade. Há poetas que dizem sofrer na produção dos seus versos. Gabriela Silva, ao contrário, produz o sofrido, num verso espontâneo e estruturado segundo os cânones da beleza linguística. Façamos uma análise: Em Ilha, num ritual absolutamente único e rico, a poetisa usa diferentes métodos para estabelecer as dimensões da sua ilha. Não importa o método usado, a conclusão é sempre a mesma – a ilha é pequena. Daqui, a poetisa entra num processo indagador de avaliação pessoal, procurando de alguma maneira determinar a sua identidade questionando o seu tamanho pessoal, o tamanho da sua ilha e o tamanho do seu pensamento. A dúvida fica estabelecida: será que o tamanho das minhas ideias se equaciona com o tamanho da ilha? Escutemos a poetiza: Deito a minha cabeça sonolenta em várias pedras desta ilha e estendo-me ao comprido... Fico sempre com os pés de fora chapinhando na água salgada deste mar encapelado. 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 83 GABRIELA SILVA NA ESSÊNCIA DO Já outro poeta ilhéu, Emanuel Félix, havia seguido um ritual, de alguma forma, semelhante: O rosto rente ao chão escuto o indefinido caminhar das estacões o bater distante do coração da terra. No poema “Contradição”, esculpido numa forma literariamente deleitosa, a autora é apanhada no emaranhado de uma cadeia de emoções que vão do amor ao ódio, da aceitação à negação, do ficar ou partir da ilha, do amá-la ou odiá-la: Amo-te e odeio-te. Quero-te e detesto-te. Minha ilha. Meu amor, minha ira minha deusa, meu demónio minha força com tanta fraqueza minha garra com tanto medo minha fúria com tanta ternura minha verdade com tanta mentira minha mentira com tanta certeza minha loucura tão lúcida minha lucidez tão louca. Como gostava de estar longe de aqui para te poder amar sem estas contradições... A poesia de Gabriela Silva é um reflexo da ilha na sua alma de poeta. A ilha aparece como uma vivência fatalista na sua limitação espacial, isolamento prisional, rotina paisagística, medo e saudade. Leia-se o poema “Fico na Ilha”: Estou na ilha ciosa de espaço para correr e de mar para navegar... Estou na ilha, acorrentada ao silêncio deste verde incómodo à espera do azul de um outro olhar. Fico na ilha, na demarcação absurda do medo e da saudade de Velhos do Restelo e de Adamastores. Fico na ilha porque resistir também é ficar. Fico na ilha. À espera do barco da carreira que me leve de volta a um outro lugar. Fico na ilha, para saber se é ficando que se aprende a cá estar. Fico na ilha. Hei-de apanhar um dia a baleeira em que saltaste para além do mar. (Sou como tu, avô, uma gaivota sempre a voar.) Fico na ilha, onde fechaste os olhos na paz do teu lar. Fico na ilha, para morrer como tu, na serenidade que tiveste ao partir para nunca mais voltar. Fico na ilha para devolver o meu corpo à terra ou a mar! O ilhéu percorre estados psíquicos de natureza tão diferente que passa a não se reconhecer, chegando a ponto de ter saudades de si próprio: Tenho saudades de mim. Há dias que não me encontro. Na ilha, a tempestade amedronta a segurança do homem e coloca-o em prece perante a divindade: Os barcos subiram as rampas de varagem E os pescadores voltaram do mar. Fecham-se as portas com trancas de madeira. Rezam-se preces que Deus nos proteja vem por aí tempestade a matar. Passa-se a noite a dormir e a acordar com medo que o mar galgue a terra ferida para a devorar. [83] Os meus cabelos agitados pelo vento rebelde também se molham. Ponho-me de pé. Procuro outra pedra. Deito-me de novo. Volta a acontecer o mesmo. Afinal que tamanho tenho eu? Que tamanho tem a minha ilha? Qual é o tamanho do meu pensamento E a dimensão das minha ideias? ILHEUNISMO 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 84 O temperamento do ilhéu é forjado na bigorna das forças do seu universo. A sua alma, feita de contradição, sobrevive a todas as intempéries por ser da consistência da larva vulcânica: Sou mentira e verdade Sou amor, sou saudade Sou loucura e sou dor Sou suave e sou louca Sou perversa e suave Sou contradição e amor Sou baleia arpoada Que não morre no arpão Sobrevivo à desgraça Porque eu sou um vulcão. Outras vezes, esta mesma alma de têmpera vulcânica sucumbe às forças do desânimo e da insuficiência pessoal: [84] ... Se eu tivesse a força do baleeiro que julguei ser arpoava a esperança e a alegria, para tas devolver. Se eu fosse o vento ciclónico da minha utopia varria a dor da tua vida vazia. Vezes há em que a poetiza, entregue aos vendavais da ilha pequena, julga-se diminuída e perde a independência do seu espírito, procurando reencontrar-se, à toa, no meio do mar: ... A tia é da ilha pequena a tia só sabe de mar e de vento a tia está triste no meio do mar. A tia já foi como tu, sonhadora mas agora anda aqui, sempre à toa à procura de si porque se quer encontrar. A partida da ilha é inevitável para quem quer sair da rotina imutável do dia-a-dia. Em poema dedicado ao poeta conterrâneo, Alfredo Luís, emigrante nos Estados Unidos, Gabriela Silva escreve: ... Sonhavas que outros mundos, outra vidas, outras gentes Podiam estar à espera na margem de lá dessa ânsia de infinito. E tinhas a certeza absoluta Que no Pico Redondo da Fajãzinha Tudo ficaria exacta, tristemente igual para sempre. E que se um dia voltasses ainda lá estaria, todos os dias O mesmo pôr de sol da tua infância A mesma rocha inerte e verde à tua frente. Vai, Alfredo, vai que a América é teu destino Vai Alfredo, vai vencer na distância. Apodrecendo a alma de saudades da infância. Mas vai. A linguiça e os inhames têm ainda o cheiro e o gosto desse tempo E os porcos matam-se ainda no Natal com os mesmos rituais Que marcam as rotinas e a morte lenta desta nossa terra intacta... Contudo, a partida não é feita sem dor: ... Foi muito triste dizer-te adeus No espaço de partidas e chegadas Num adeus que soube a lágrimas salgadas... Por muito que o horizonte da ilha desafie a alma do ilhéu, ele é também desafiado a ficar. A luta entre o partir e ficar surge de cores veementes no seguinte poema: Desejo beber o néctar da tua boca gulosa e apertar-me contra o rochedo agreste que é o teu peito. Há nos teus olhos húmidos e luminosos, passados de glória combates sem armas vidas sem razão. Deixa-te ficar. Olha-me de frente. Abraça-me forte. E não digas NÃO NUNCA! 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 85 GABRIELA SILVA NA ESSÊNCIA DO És o meu baleeiro Arpão da minha fuga Horizonte da minha esperança Meu medo de partir. Sem ti. Deixa-te abraçar amor. Desta vez é verdade Juro que vim ... talvez para ficar! A autora dá-se conta de que não é só partir. É que também há laços de afecto que se foram semeando durante a vida e que nos prendem à ilha: Deixa-te ficar Não digas nada. Não invadas os limites do horizonte nem lutes contra a força corajosa deste mar. Luta contra nós se assim quiseres porque a semente de afectos que um dia plantamos floresce intacta e resistente a todas as tempestades. Numa luta entre “o partir e o ficar”, a autora tenta convencer-se das razões que a podem levar a ficar. A ilha é parte integral do temperamento, carácter e personalidade do indivíduo: Despojada de ti sou fragmento, sou nada sou rasto invisível sou água parada. Estou perdida, encontrada Numa esquina da vida Onde a saudade e a angústia São a minha morada. Ninguém sai totalmente da ilha. Vive-se num “misto de guerra e paz”. Ouça-se a voz da poetiza no poema “Vazei a Alma de Ti”: ... Senti o teu cheiro na almofada e a casa está impregnada do teu silêncio. Há um misto de guerra e paz na minha vida a torneira pinga ainda a gota de água que deixaste a vazar no último dia. A tua toalha ficou no toalheiro manchada do sangue da tua perda.... Há que experimentar e viver todas as experiências da ilha, por muito amargas que elas possam ser. Nada será fácil. O ilhéu é quem terá que orientar o barco do seu destino. Nas palavras da poetisa: “Como se pode gostar de sal sem beber do mar?” É na ilha, rodeada de mar por todos os lados, que o homem pode mergulhar nas zonas mais profundas do seu ser para captar, ouvir e sentir, a voz da solidão numa infinita policromia de sons. Assim se expressa Gabriela Silva: Nada é melhor que perder tudo para recuperar uma parte para sentir a espuma desfeita das nossas ilusões na essencialidade da solidão. A poetisa antecipa a sua morte na ilha no meio de múltiplas emoções. O diagnóstico último será o cancro fatal do tédio das esperas com diversas metástases. Assim se lê no poema “Morrer Nos Teu Braços”: Sinto que um dia destes Morro nos teus braços. Quero que seja numa manhã de sol E quero que sorrias. Não, não morro de dor. Tão pouco de prazer... Morrerei do tédio das esperas De desencontros passados do fel das palavras [85] Ao grande desejo de partir contrapõe-se a dificuldade de dizer adeus à ilha. Duas forças opostas numa mesma alma. Escreve a poetiza: ILHEUNISMO 7.ECL.NunoVieira(pb) 6/17/09 12:32 AM Page 86 da dúvida e da ausência da dor e da alegria de te ter nos meus braços apenas às vezes... João Bosco Mota Amaral, em conferência proferida no Simpósio Internacional das Ilhas, em Hiroshima, a 2 de Outubro de 1989, escreveu: “Tudo o que é belo, é frágil. A ilha atrai e repele, ao mesmo tempo, apaixona e mete medo: tem mistério! A mentalidade do homem insular reflecte esta marca, traduzindo-a em manifestações de grande riqueza espiritual.” Gabriela Silva, no seu livro Ilha, ao mesmo tempo que no vazar da sua alma, expõe as relações existentes no binómio “ilha – homem”, de acordo com a inquietude de Luís Ribeiro, também expressa o mistério insular a que se refere Mota Amaral. [86] No livro de poesia Ilha, de Gabriela Silva, o leitor poderá ver como a ilha afecta e molda os seus habitantes. Gabriela não faz descrições da ilha nas suas belezas naturais, usos e costumes, mas somente expressa diferentes estados psíquicos da alma do ilhéu perante a sua ilha. A alma do ilhéu é desafiada pelo horizonte, intimidada pelo mar, enfastiada pelo tédio, aliciada por aventuras e riquezas de outras terras, hesitante entre o deixar a sua ilha e partir para o desconhecido. Finalmente, a alma do ilhéu é atormentada pela saudade dos que vão e dos que ficam. A ilha acompanha o ilhéu onde quer que ele vá ou esteja. É lugar comum dizer-se “one can leave his country, but his country can not leave him.” – Podemos deixar a nossa terra, mas a nossa terra nunca nos deixará. 6/17/09 12:35 AM Page 87 Manuel Machado I Quando bati à porta da Catherine, já eu sabia que atrás daquela porta não estava ninguém. Evidentemente. Não se bate a uma porta sabendo-se de antecedência que atrás dela está alguém – pois se se quer que a porta se abra é necessário que atrás dela não esteja ninguém. – C’est comme ça! Embora não seja fácil recordar o dia exacto, pode-se dizer que pelo andamento da carroça fácil é de adivinhar quem vai dentro e que portanto talvez fosse domingo, quase domingo. No dia seguinte, sábado gordo, alguns amigos vieram dizerme que se espantavam do meu comportamento. Todos eles tinham ar de cansados – cansados do ar de Paris. Pensando que talvez aliviasse o ar de desgraça que traziam, limitei-me a responder-lhes que eu próprio me espantava do seu espantamento. – Espantamento!, mas não é nada normal que um homem bata a uma porta quando sabe que atrás dela não há ninguém. DOR DE DENTES Apesar do ar de poucos amigos com que o disseram, ainda pensei que gracejavam, e pus-me então a rir como se ri quando se sente que o que se diz é risível. Mas não! Não gracejavam. Tinham mesmo ar de não estar para graças e até aragem de zangados. Estranho! E assim se entupiram as válvulas do sorriso humano – as minhas, por eu ficar de repente muito sério; as suas porque além de chegarem já fechados estavam eles mesmo à beira de querer berrar. Ao todo tudo e todos bem contados nós éramos exactamente 7. Recordo-me bem que éramos 7 porque esse é também o número dos dias da semana. E as semanas essas conheço-as perfeitamente! É talvez a única coisa que AINDA conheço perfeitamente! Cada uma tem l dia, por vezes 2. Quando várias pessoas estão sentadas à volta de uma mesa, há sempre uma delas que é mais nova que as outras. Mesmo que no grupo haja gémeos, pois é bem conhecido que os gémeos não nascem lado a lado. E mesmo que isso aconteça, coisa rara na vida, a força dos elementos femininos cerra-os tão intensamente que acabam por ficar colados para sempre, e nesse caso chamam-se então siameses. Se houvesse entre nós siameses, de preferência só um vezes dois para também não se criar mais dificuldades que as muitas que já tínhamos, continuaria a haver alguém mais novo que os outros. Mesmo que a qualidade de mais novo recaísse sobre o siamês ou meses, pois a nossa inteligência, grande e mutuamente reconhecida no interior do grupo, dava para resolver o assunto a rir e a brincar; – Levante-se o mais novo! [87] 8.ECL.MelMachado (pb) 8.ECL.MelMachado (pb) 6/17/09 12:35 AM Page 88 Há sempre alguém que é mais novo. E o nosso grupo de 7 não podia portanto afastar-se dessa regra, mesmo se escapava à normalidade quotidiana pela forma curiosa de cada cabeça e até por um certo nevoeiro mental. Apenas certo, mas CERTO! – se é que a verdade merece ser pelo menos sugerida. De repente ou enquanto o diabo ri, o mais novo de nós levantouse. Não por ser o mais novo, mas simplesmente porque se levantou. Chamava-se Jacques e creio que contínua a channarse Jacques porque ainda não morreu. Não ter morrido ainda não significa que continue vivo, mas simplesmente que ainda não foi enterrado. Avistei-o há dias rastejando pela praça do deserto à procura de pedaços de madeira para fazer malas. [88] Se digo que Jacques se levantou, não é porque o tivesse visto levantar-se mas apenas porque no momento em que olhei para ele vi-o de pé, pelo menos da mesa para cima. Certamente por distracção não tinha reparado no seu levantamento; no entanto, como ele estava de pé depois de ter estado sentado – será porventura asneira dizer que Jacques se levantou! Levantou-se sem nada dizer. Nem mesmo adeus. Naturalmente, pensei que ele não dizia adeus por estar ainda zangado e os outros não sei se também naturalmente pensaram que ele teria mais que fazer. Na realidade todos nós nos enganávamos pois Jacques tinha-se levantado apenas para voltar a sentar-se. Sempre sem nada dizer. – Ainda hoje me pergunto porque razão se levantou ele nesse dia! Talvez mesmo da cama! pouco que contar, pois ela andava mais à volta do seu próprio caroço do que em frente. Para aliviar pelo menos uma esquina do corpo, pus a minha mão esquerda sobre a mesa e o olhar fixo sobre a caixa de fósforos que estava mesmo próxima dos meus dedos. Um dos companheiros do grupo teve a mesma ideia e os cinco dedos da sua mão direita, que pareciam estar há dias sobre a mesa, tinham o ar angustiado de querer saltar sobre a caixa de fósforos. Exactamente a mesma que eu fixava! Acontece que ele estava mesmo à minha esquerda e recordo-me que por essa altura da nossa existência não tinha nome. Ele dizia sempre EU. EU, quer dizer ele. Ele porque é ele quem dizia EU. A sua mão teve um pequeno movimento. A minha também. E nós olhámo-nos quase instintivamente como se um simples SE planasse entre ambos. Compreendemos logo que tínhamos qualquer coisa a dizer, mas não ousávamos dizê-lo um ao outro: – Porque mexes a tua? Trocámos então um pequeno sorriso, cada um de nós dois vendo distintamente que o sorriso do outro era feito de borracha rugosa em vez de reflectir a alegria natural de viver. A cada soluço dos ponteiros do relógio qne se desenrolam à nossa frente, mesmo que se esteja de costas, pode sempre acontecer qualquer coisa que não estava prevista: – Tenho Dor de Dentes! A dificuldade de comunicação nos seres humanos parece-se terrivelmente com o acto sexual na raça canina: depois de tudo feito, já não sabe como sair do beco. Não propriamente sem saída, mas donde só se sai recuando. E nós estávamos salvo seja! nessa situação: 7 pessoas à volta de uma mesa olhando-se entrelaçadas pelos arames trémulos da incomunicabilidade. Mesmo assim o silêncio não era total, sempre havia caixas de fósforos sobre a mesa e de longe em longe o ruído de alguém que se assoava. Não eu!, que me assoara semanas antes num corredor do metro. Embora o silêncio não fosse totalmente total, sentia-se saltar dos poros da pele e era sobejamente ruidoso para tornar urgente a necessidade de o quebrar. Com a nossa imaginação havia Aqui está um exemplo de imprevisto que um de nós atirou para cima da mesa arrebentando desastrosamente os arames trémulos da nossa incomunicabilidade que aliás começava a saber bem porque já havia caixas de fósforos para todos! Deviam ser umas dez horas, quase dez ou já nove. Há vários anos que todos nós tínhamos “un velo dans Ia tête”1 e dele fazíamos maravilhas. Apenas a Dor de Dentes não tinha bicicleta. Chatice! Tivemos de a acompanhar até ao metro e só 1 “Uma paulada na cabeça”; “meio desarranjado”. 8.ECL.MelMachado (pb) 6/17/09 12:35 AM Page 89 DOR DE DENTES Quando chegámos à beira da casa e arrumámos as bicicletas, subimos até à porta do segundo andar e vimos imediatamente que a Dor de Dentes já lá estava – sentada contra a porta e muito contente de ter sido a primeira a chegar. Pareceu-me impossível compreender como é que uma Dor de Dentes podia estar contente. Talvez por nunca ter sido psicanalizada! Se o inconsciente é explicação decente para o contentamento da Dor de Dentes, só pode tratar-se do de Freud, pois a ideia sartriana de inconsciente nunca permite a uma Dor de Dentes mostrar-se contente. Nem mesmo aos dentistas, que nestas coisas têm a faca e o queijo na mão e são frequentemente privilegiados com um chalèzito no campo ou na praia construído em dente, não de baleia mas de gente. Seja lá como for ou tenha sido, a Dor de Dentes estava muito contente e certamente nas tintas para as psicanálises. II Em casa de nosso amigo, na verdade amigogas pois que se tratava de casal e ambos membros honorários do grupo, havia cadeiras que embora não sobejassem para dar e vender davam para nos sentarmos todos e ainda restava uma mal tratada mas aproveitável apesar do que sofrera num antigo serão nosso do qual evitávamos sempre falar! Abandonado o conforto do cadeirame, preferimos sentarmo-nos no chão de tapete sobre soalho para ficarmos mais perto dos vizinhos do andar inferior. Maneira simpática de querermos comunicar com eles. E se eles tinham tido a mesma ideia de desejar verdadeiramente comunicar connosco, sabíamos já que não podiam estar sentados sobre cadeiras, muito menos no chão de tapete ou soalho visto que isso afastá-los-ia ainda mais de nós. Estariam portanto sentados no tecto. Estávamos todos sentados no tapete. Sim. A Dor de Dentes, não! Tinha preferido sentar-se no sofá-cama existente no canto inferior esquerdo quando se entra ou superior direito quando se sai. Esta ideia de desnível do apartamento que parece saltar da oposição inferior/superior não é permanente, trata-se apenas da inclinação progressiva que as formas circundantes costumam adquirir à medida frequentemente desmedida das sedes insaciáveis. E quando isso acontece é evidente que a inclinação se dá para dentro, ficando o lado da porta a um nível superior... que nem sempre é possível atingir! O nosso serão começou por um pequeno copo de tinto a transbordar e em seguida entrou num estreito corredor político escavado por dois de nós – pequenina discussão de carácter interminável felizmente interrompida pela Dor de Dentes que saltou do seu sofã-cama e deu a sua opinião: [89] depois partimos em fila indiana portuguesa sobre as nossas 7 bicicletas para casa de um dos nossos amigos que não estava em casa. Já sabíamos que ele não estava em casa, mas logo que chegássemos à sua porta ele também lá estaria. E tínhamos a certeza que ele não podia estar Iá uma vez que éramos 7 e que sem ele não seríamos mais que seis. – Porque é que estão para ai a berrar?! espécie de tipos de bestas de gajos e cachorros de esquerdismo barato imbecil de esquina de café e perna cruzada noite e dia sem fazer nenhum nem nada de proveito próprio ou alheio! Boa intervenção política. Os dois bravos colaram o bico e assim pudemos começar a falar. Era aliás para isso que estávamos ali reunidos. Falou-se muito. De copito em copito foi-se despejando garrafas e DE LONGE EM LONGE um de nós dizia qualquer coisa ou um simples monossílabo enquanto brincava com o copo – maravilhoso substituto da caixa de fósforos usada nas mesas de café. Era já tarde quando nos lembrámos que a Dor de Dentes estava enrolada no sofá-cama em vez de sentada no tapete como toda a gente: – Onde está ela?! A Dor de Dentes tinha desaparecido. E saltámos à janela traseira que dava para baixo sobre o jardim relvado comum a todo o prédio. Lá estava ela! estendida sobre a relva e olhando-nos de um sorriso estranho. Michele perguntou-lhe se não gostava 8.ECL.MelMachado (pb) 6/17/09 12:35 AM Page 90 da noite, mas a Dor de Dentes não respondeu. Nem mesmo NÃO! Pensamos que ela não dizia NÃO por preferir dizer SIM e que apenas aguardava oportunidade, tanto mais que estava estendida na noite por decisão própria. Sendo assim, e estando a oportunidade presente, perguntámo-nos então porque razão a Dor de Dentes não respondeu SIM à pergunta de Michele. – A Dor de Dentes não pode responder porque é noite cerrada! Para evitar discussões, decidimos compreender que ela não respondia NÃO por preferir dizer SIM, e que se não dizia SIM era apenas por ser noite cerrada e quando é noite não se vê nada – nem mesmo a noite. O seu silêncio era portanto lógico. De resto a lógica era o nosso forte. O único fraco era não sabermos porque ponta lhe pegar. [90] Cada um se servindo JÁ de mão oposta à mão guardadora de rebanhos de copos, descemos a dúzia de degraus entrando pela noite dentro até sentir os pés verdes. E os 7 à volta da Dor de Dentes tentámos reanima-la com algumas graças dentárias que pareciam de nada servir porque ela continuava calada e nem um dente mexia. – Vamos mas é dar-lhe um safanão. Richard nem esperou pelo acordo de todos, agarrou-a pelas gengivas e safanou-a à sua rica vontade. A Dor de Dentes torceu-se rolando e todos os dentes ficaram espalhados sobre a relva. – Não há dúvida, o imprevisto pode surgir a cada soluço do tempo. Assim terá acontecido também com a criação do Mundo – quem é que esperava por tal coisa! Não foi difícil encontrar todos os dentes, difícil foi subir a dúzia de degraus que pareciam mais altos e até mais estreitos que no momento da descida. Mesmo assim não houve acidentes. Regressámos todos à sala e colocámos os dentes sobre o tapete. Os dentes que trazíamos! Quer dizer, os dentes da Dor de Dentes. Bem contados, havia trinta e dois, estavam portanto todos visto não haver dor de dentes humana que aguente mais. – Que vamos fazer agora de todos estes dentes?! – Reparti-Ios entre nós. Resposta imediata de um dos dois companheiros que no início do serão nos tinham enfiado no estreito corredor político. Naturalmente ninguém se espantou – política e partilha, seja de bens terras ou gentes, são palavras que SEMPRE passearam de braço dado. E ninguém protestou até porque cinco de nós tinham falta de dentes e aqueles que desejassem ir ao dentista poderiam lá chegar já armados. Motivados pelo nosso grau de honestidade, incluindo os dois políticos!, já que éramos um grupo de 7 amigos e os amigos são para as ocasiões, tratámos de encontrar um critério de partilha que não lesasse ninguém. Com os nossos catorze olhos mergulhados em livros de metodologia – daqueles que saudáveis! gentes de ciências sociais utilizam dia e noite – concluímos que estávamos a perder tempo. E quando a ciência se torna OU É impotente para resolver problemas que no fundo e até a olhos vistos são tão simples, as pessoas voltam-lhe as costas e enchem mais um copito. Quer se trate de congressos de petróleo quer dos nossos trinta e dois dentes. Nossos! Da Dor de Dentes. A hipótese de partilhar cientificamente o marfim estava portanto arrumada sem deixar saudades e para avançar na vida decidimos utilizar um trabalho manual: cada um servir-se de uma das suas mãos para recolher honestamente o seu quinhão. 7 vezes 4 sendo o que são, sabíamos já de antecedência que ficariam 4 dentes sobre o tapete. De antecedência!, e portanto cientificamente. Como foi possível com tão pouco trabalho! – A dificuldade de partilha ficaria portanto reduzida a 4 que quantitativamente é coisa de se resolver com uma perna às costas. De alguém! Iniciámos a operação, cada um retirou o seu quinhão honestamente, o tapete ficou completamente limpo. Nem um dente restava! O espantamento foi ENORME, Teríamos resolvido o que a ciência não conseguira em milhares de anos, repartir trinta e dois por sete e ficar a zero sem partir um dente! Sem dúvida. Embora o espantamento, ainda sem dúvida ENORME, não tivesse ferido todo o grupo. A serenidade da dona da casa e dos 8.ECL.MelMachado (pb) 6/17/09 12:35 AM Page 91 DOR DE DENTES – Não há razão para espantamento, nós somos 7 e eu cacei distintamente 9 braços mergulhados no marfim. E Jacqueline acrescentou que os dois braços invisíveis só podiam ser dos políticos visto provado e confirmado que quando um político não se espanta de coisa que no Mundo provoca grande espantamento é porque conhece de antecedência!, e portanto cientificamente o que se passa dentro e fora do happening. Naturalmente (naturalmente!), os dois simpáticos políticos lançaram-se a berrar a torto e a direito para apanhar votos dos dois lados: no princípio do serão, defendiam os seus caiaços políticos, agora tratava-se de provar por pó + li x tico tico que sete vezes quatro são trinta e dois. Para fugir ao berreiro ou talvez para ver se AINDA restava alguma garrafinha cheia, a dona da casa foi-se arredando em surdina até se enfiar na cozinha. Quando voltou, trazia as mãos atrás das costas e deixou-se ficar de pé atrás dos dois políticos cujos berros já chegavam ao quartel geral da política através dos cinquenta telefones do prédio. Jacqueline não esteve com meias medidas até porque já vinha bem intencionada: levantou o martelo bem afiado que trazia atrás das costas e TRÁS-TRÁS – Silêncio total. O nosso grupo de 7 que MUITAS horas antes brincara com caixas de fósforos à mesa do café estava agora reduzido a 5. Cinco e dois cadáveres. Como os cadáveres só servem para fazer funerais e entre nós não havia nenhum coveiro porque nessa noite o Eduardo não fazia parte do grupo, decidimos arrumar a história através do autoclismo. Richard habituado a agir enquanto é tempo, não fosse a política aparecer apesar do silêncio recuperado, ocupou-se do negócio enquanto nós ficámos entretidos a ler Edgard Põe. Edgard Põe começava a chatear quando Richard voltou ao centro do mundo a esfregar as mãos de contente. E ficámos os cinco sentados colados à volta da “Casa Usher” fechada e caída no centro do tapete. De repente, o mais novo dos vivos pôs-se de pé. Não por ser o mais novo nem por estar vivo, mas simplesmente porque se levantou: – Impossível! esquecemos de retirar os 12 dentes que os cadáveres tinham nos bolsos. – Impossível nunca vi cadáveres com bolsos. Mireille tinha sempre resposta escrita na ponta da língua, e mais não foi necessário para iniciarmos uma discussão interessante sobre problemas de linguística artesanal. Tornava-se IMPORTANTE saber se se podia dizer bolsos de um cadáver sem cair em ambiguidades semânticas que levassem a falsos entendimentos sobre o género e as dimensões dos bolsos. Jacques saltou logo: Podia-se dizer afoitamente bolsos de um cadáver, mas era indispensável não esquecer que os únicos bolsos existentes num cadáver são os orifícios do corpo que receberam da sociedade humana outros nomes bem diferentes, E acrescentou que quando se fala de bolsos de um cadáver é igualmente indispensável considerar o género do cadáver COM quem se fala, visto que o número e dimensão dos bolsos são necessariamente diferentes segundo o sexo. Com essa informação de base, podia-se então avançar até ao fundo da questão e dos bolsos. Felizmente não se foi mais longe. A presença de duas mulheres – e já sem contar que a Dor de Dentes também é feminina – aconselhava a tratar o assunto apenas pela rama. Na vida tudo tem fim e só ela própria é infindável. Quer dizer que na vida afinal nem tudo tem fim! A verdade crua, ou assada por incêndio, é que as pessoas e as coisas vão ficando por terra nem sempre lavrada apenas como semente dessa saborosa infindabilidade. Deve haver uma razão para que assim seja, mas não quer dizer que seja uma razão razoável – a não ser no caso do nosso serão que até teria sido mais razoável se tivesse acabado mais cedo! Seja como for e foi: o nosso serão não podia afastar-se da regra da vida, mesmo se escapava à normalidade pelo peso descomunal das cabeças que restavam à hora madrugadora da partida. [91] dois políticos deixava os quatro feridos a pensar. A dona da casa, Jacqueline de seu nome e membro honorário do seu grande merecimento que aliás lhe dá a honra de ser o único nome real do grupo, era mulher de olhar pensamental certeiro: um dedo que se curva, um braço trémulo por dentro da manga opaca ou um olhai alheio que se torce em silêncio são elementos do comportamento humano que nunca lhe escapavam; 8.ECL.MelMachado (pb) 6/17/09 12:35 AM Page 92 Das cinco que ainda éramos, sem saber por quantos anos mais!, o casal de amigogas já começava a ressonar de pé quando decidiu abrir a porta. Que trancou apressadamente – não fossem os três últimos perder o norte e voltar a entrar! Catherine – Voilá! qualquer coisa que não é entrar em casa nem ficar fora – ainda uma verdade que anula o principio catanho do “terceiro excluído”. Quando bati à porte da Catherine, era ainda muito cedo. Ou DISPERSÁMO-NOS. Cambaleando cada um ao seu destino das mansardas de Paris. E fiquei só, só comigo mesmo. Os outros também. Porque estávamos TODOS sós, sós há já muito tempo. Víamo-nos frequentemente, é verdade, mas apenas para nos vermos, para cada um de nós poder dizer-se intimamente: NÃO ESTOU SÓ! – mesmo sabendo que estava sempre só. Fiquei portanto só. E quando se está só, não se tem vontade de entrar em casa nem de ficar fora. Assim fui bater à porta da [92] NOTA: Paris, 1970, escrito em francês. Oslo,1990, traduzido para norueguês, por Halfdan W. Freihow (publicado em antologia. Editora “Aventura”). 1990, traduzido do francês para português pelo autor. muito tarde. Para mim era muito cedo: eu via as pessoas que tinham acabado de se levantar e corriam na rua como se estivessem com pressa de se deitar. Para eles era muito tarde: viam um homem que AINDA não se tinha deitado enquanto elas já estavam de pé e a caminho de fábricas andaimes e caves. Recordo-me que era princípio de semana. Porque as semanas, essas conheço-as perfeitamente! É talvez a única coisa que ainda conheço perfeitamente: cada um tem 1 dia, por vezes 2. – Excepcionalmente 3! 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 93 António de Névada UMA LEITURA POSSÍVEL: Os efeitos sociais da arte são à primeira vista, coisa tão extrínseca, tão afastada da essência estética, que não se vê como a partir deles se pode penetrar na intimidade dos estilos. J. Ortega y Gasset PROPOSIÇÃO Em tenra idade, descobri a música, a poesia, a literatura… Terá sido um privilégio! E a dada altura questionava-me de que servia, qual o interesse em entregar e consumir o meu tempo à volta dos livros, com as questões literárias, ou com a arte. Não tive respostas imediatas. Com o passar dos anos, acabei por assumir que essa paixão nunca me seria útil como a enxada para o agricultor. Ou talvez se assemelhasse à faina do homem do mar, quando este enfrenta as tormentas na tentativa (vã tentativa?) de resgatar a alma. Aprendi, humildemente, a estruturar o pensamento à medida que absorvia o ímpeto arrebatador de cada verso, à medida que descobria o mundo imenso, para além do extraquotidiano que nos rodeia, nos apura os sentidos. Continuo sem obter respostas absolutas, é certo. Continuo vislumbrando, em cada instante, um instante de quietude. Nessa medida, não é como o critico à procura da decomposição de enigmas, nem como o filósofo no seu papel de media- [93] OS TRABALHOS E OS DIAS 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 94 dor, aferindo segundo uma escala de valores, que aqui venho. Tampouco serei o leitor interessado apenas na compreensão da obra. Venho aqui como poeta. Não afugento as dúvidas nem as incertezas, antes reflicto entre elas. E de certa forma, aquilo que assumi ingenuamente não é de todo descabido. Sulcando os mares, transfigurando-se no rumor das águas, mais do que uma ferramenta que doma a rebeldia, desbravando para encontrar terra arável, a poética (e a literatura) é irreparavelmente o chão que o poeta amassa (o pão que como?): seja aqui, então, o cultivo, a faina, o lugar onde o corpo impregnado pela vida fermenta a alma inquieta! (Pois o que desgasta e esmaga, será eventualmente o que nos fica para cá do cultivo, e que a alma interroga, amiúde nos indaga…) [94] Vivi a infância no n.º 54 da rua Senador Vera-Cruz (ou Kuame Nkrumah). A menos de cem metros, no sentido norte, ficava, e lá continua, o Canalim de Mateus Tchaina, e um pouco mais à frente, já no cruzamento que corta para a Praça Nova (Praça Amílcar Cabral) viria a nascer a Galeria Nhô Djunga, na mesma casa que pertencia aos Cleofas Martins e onde viveu Nhô Djunga. A escassos metros de casa, dobrando a esquina da padaria de Nhô Antero, estamos na rua paralela, então rua 1.º de Maio (mais conhecida por rua de Papa Fria). O quintal do n.º 31/33 fazia paredes-meias com o meu quintal, e era onde vivia Nhô Roque, o Dr. António Aurélio Gonçalves, figura de vulto, que hoje dá nome à própria rua. E é nesta rua, mais acima, a caminho da editora Nazarena, no 107, a dois passos da residência dos Lopes (onde viveu o poeta José Lopes, tio avô do Nhô Baltas), que vivi depois os anos mais importantes da minha adolescência, na casa onde ainda vivem os meus pais, a minha casa… Do lado nascente, paralela à rua de Papa Fria, fica a rua Machado (rua “do Palácio”). Em direcção ao Alto Mira Mar, como quem ia para o cinema Tuta, duas paralelas seguintes, e virando à direita, vamos desembocar num largo ou praceta sem saída, eis onde morava o Dr. Baltazar Lopes. de todos”1… rematando que “isso hoje não existe no mesmo grau”2. Mas é a mesma cidade, nos seus defeitos e nas suas virtudes, que me proporcionou, também, o privilégio de conhecer alguns dos homens que aqui homenageamos, nomeadamente o Nhô Roque e o Nhô Baltas que no quinquagésimo aniversário da revista Claridade assumia que “… do nosso posto menor de observação, que era a cidade de Mindelo, nós do Grupo tomávamos perfeitamente nota da situação geral”3 desastrosa. Permitam-me pois que homenageie hoje, também, como um bom m’nine d’Soncente (nascid e criód), a cidade de Mindelo. Falo eu, Fala também tu… Mas não separes o Não do Sim/ Dá à tua sentença igualmente o sentido:/ dá-lhe a sombra4, é o que nos diz Paul Celan, poeta de origem judaica, que não cito aqui acidentalmente, e que pertence, como alguém terá considerado, a uma condição existencial sem saída, no beco da história do século XX. Assim, abordarei os trabalhos e os dias de um dos fundadores da Claridade, e ideólogo do movimento enquanto projecto, que, a dada altura, se assumiu (ou com-fluiu) como programa tematizável de uma identidade. Tratar-se-á de uma proposta de análise à poética e ao complexo discursivo do Dr. Baltazar Lopes da Silva (e Osvaldo Alcântara), como se fosse possível recolher o imperceptível, ler e partilhar convosco, o resultado da transformação profunda, ao encontro da concepção da modernidade. Se entre parêntesis me arroja lembrar que as obras existem e permanecem, tudo aquilo que a alma criativa derrama na sua arte, deve ser indagado tendo por base que o eco, o uso e o significado de certas palavras, de certos símbolos, as reminiscências literárias e (o que percute) as afinidades do autor, no seu justo valor (averiguável) e no seu exacto alcance, quando se conhece, permitem a compreensão da obra e da pessoa, sua formação e envolvimento, no seu tempo e na sua 1 in Retratos Falados de Fernando Assis Pacheco – O Mago Baltasar (entrevista cedida a 06.05.1988), pág. 293; edições ASA, Maio 2001. É uma breve fotografia de uma pequena zona no centro de Mindelo, nos anos setenta e oitenta do passado século. Comparado com os anos trinta, Baltazar Lopes confessa: “Já não há o cocktail social. E também já não se vê o grande sentido de solidariedade que havia nesse tempo, quando os problemas de um eram os problemas 2 Idem. 3 in Edição ALAC fac-similada da Revista Claridade – Depoimento de Baltasar Lopes. 4 in Sprich Auch Du (Fala também Tu), da obra Von Schwelle Zu Schwelle (De Limiar em Limiar) de Paul Celan. 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 95 UMA LEITURA POSSÍVEL: OS TRABALHOS E OS DIAS Tenho uma saudade funda da tua eternidade futura quando a tua decantação deixar na alma o colóquio inevitável dos que vão morrer5. Nesta saudade pura da poesia, não nos podemos esquecer que B.L., à semelhança dos outros fundadores da Claridade, acolheu os ecos da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, e foi confrontado pela Poética de Manuel Bandeira: (…) Abaixo os puristas/…/ Quero antes o lirismo dos loucos/…/ O lirismo dos clowns de Shakespeare/ - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. ENQUADRAMENTO Tendo por base a ética epistemológica, é importante abordar aquilo que terá sido o propósito da Claridade, ou o que se terá transformado no propósito como tal, segundo a leitura que hoje dela fazemos. Muito daquilo que se aceita como vinculativo nesta matéria, e que é transmitido de forma quase prescritiva, não esclarece convenientemente o evento da modernidade literária e cultural destas ilhas. E Manuel Lopes, outro dos fundadores, terá dito que «não se pode chamar programa ao simples acto de fincar os pés na terra». Isto sugere que deveremos repensar os propósitos, reelaborar a leitura dos dados averiguáveis, de modo a reter o essencial (e rejeitar, se necessário, o condicionalismo epocal) no legado que a Claridade nos oferece (a nós e às gerações vindouras). “…como ler um passado que não conseguimos delimitar? O século XX durou apenas 75 anos como propõe Eric Hobsbawm (entre a 1ª Grande Guerra e a queda do Muro de Berlim)”6, caracterização que é válida dentro do contexto da história política. Mas que, como considera Osvaldo Silvestre, para o historiador de literatura “no caso português tenderá a escolher 1915, ano da edição do n.º 1 de Orpheu, para abrir o século; mas que escolherá o ano de 1922, ano da Semana de Arte Moderna, se for brasileiro; e talvez o de 1936, ano do início da publicação de Claridade, se for caboverdiano”7. Em 1936 a revista Claridade, é inquestionavelmente, uma publicação modernista que inscrevia Cabo Verde na vanguarda literária, no contexto da língua portuguesa e dos movimentos da arte moderna. O séc. XX para a literatura caboverdiana inicia-se, efectivamente, com a Claridade. Não haverá grandes equívocos nesta afirmação, que por sua vez, nos deixa outra questão pertinente: e o século XXI? Já se iniciou, para a Literatura Caboverdiana? PRIMEIRO ARGUMENTO O espaço e o tempo dessa exposição é limitado, e para não alongar, continuando o que vos proponho, os meus argumentos farão referência à Grécia Antiga. Sabemos que é grandioso o contributo dos gregos para várias conquistas da humanidade. Também sabemos, e é importante salientá-lo, até para des-mistificar o peso ou aparato Greco-Latino, que os laços intelectuais (e mesmo afectivos) entre os gregos e outras civilizações antigas, a leste e a sul (Médio Oriente, Ásia e África), se revelaram fundamentais para a construção (formação) das civilizações modernas. E se analisarmos as conquistas, conscientes de que constituem um património que não pertence, em particular, a esta ou àquela civilização, constatamos que a interdependência entre elas é extraordinária (desde os antigos, sejam eles gregos, egípcios, persas, fenícios, indianos ou chineses) nos mais diversos domínios da ciência, da tecnologia, das ideias políticas, da matemática ou da literatura. E o objecto fundamental da meditação das civilizações antigas foi a alma humana: o rigor geométrico, as ideias de limite, de medida, de equilíbrio que deveriam determinar a condução da vida. Assim, só seremos geómetras perante a matéria e perante a ciência, e fundamentalmente peran- 5 in Pura Saudade da Poesia, poema de Osvaldo Alcântara, inserido no n.º 5 da revista Claridade (Set. 1947), e posteriormente in Cântico da Manhã Futura (1986), volume de poesia do autor, edição Banco de Cabo Verde / Instituto Caboverdiano do Livro. 6 in Século de Ouro: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX – Introdução, pág. 17; Organização O. M. Silvestre e P. Serra, edições Angelus Novus & Cotovia 2002. 7 Idem. [95] génese. Goethe considerava a poética de um homem das letras como elemento de uma grande confissão. É neste tom, de uma profunda sinceridade, os versos de Osvaldo Alcântara: 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 96 PEDRO MADEIRA PINTO Nascer a cada dia, 2007 técnica mista sobre papel medida 100x70 cm 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 97 UMA LEITURA POSSÍVEL: OS TRABALHOS E OS DIAS A par das épicas homéricas (Ilíada, Odisseia) que narram aventuras heróicas (onde o poeta é, de algum modo, o eco das palavras de deus), (e embora) usando a mesma língua e a mesma métrica, e sendo contemporâneo de Homéro, a poesia de Hesíodo, a quem se atribui a autoria de duas obras que chegaram até nós (Teogonia e Os Trabalhos e os Dias), codifica tradições que ao mesmo tempo se pretendia ancestrais e mitológicas. Acabou-se o poeta anónimo! Em Os Trabalhos e os Dias, o poeta grego fala-nos de si, é talvez o primeiro poeta que o faz, e evoca a sua querela com o irmão (Perses), e a figura do pai que se esforça a cultivar uma terra ingrata ao mesmo tempo que apascenta os seus rebanhos. Os heróis ganham uma nova dimensão humana, do homem enquanto indivíduo, exaltando a justiça como uma doutrina sistemática dos deuses e da vida: Ó Perses, escuta a Justiça, não deixes crescer a insolência. A insolência é uma desgraça para o mísero mortal8 Aos homens deu ele a Justiça, em muito o maior dos bens9. No conto Os Trabalhos e os Dias que dá nome à edição de 1987 da ALAC (África, Literatura, Arte e Cultura, Lda.) que reúne os seus contos dispersos, Baltazar Lopes (re)cria figuras e personagens que, no apelo à justiça, se assemelham (com o devido distanciamento, de milénios) aos do poeta grego Hesíodo. Eis o que nos diz Nhô Manuel Antoninho um dos personagens de B.L.: Só Deus é dono do seu juízo (…)10. Há pouco, na proposição, dizia que a condição que me arrastou a estar aqui convosco é o vislumbrar da quietude. Pois bem, estas breves transcrições permitem-me dar visibilidade ao facto de não aceitar o vinculativo, de que a veia criativa deste autor foi dominado, ou amarfanhado, por motivos sócio-culturais. Em toda a obra de B.L. a inquietação da vida, muito mais profunda e abrangente, transcende o social. E o sustento estético e ideológico com que transcreve tal inquietude tem bases extremamente sólidas no princípio e na vocação do geómetra. Que a vida, ela própria, passa, inevitavelmente, por questões de ordem estética: a angústia, o sofrimento, a dor, o amor, o silêncio, o caos e o belo, revelam-se na alma e no que ela intenta como miragem, e nos transcende, para legitimar os sonhos e a amálgama indecifrável da aprendizagem da virtude. Eis o que me interessa na arte, e que podemos ler nos versos de Osvaldo Alcântara do poema Só: E eu te agradeço, ó pequena voz humilde, que me ensinaste a virtude de saber renunciar às aristocracias que vêm nos livros de linhagens e nunca consentiste que quem quer que seja afaste a minha sombra do meu corpo13. Do Trabalho e dos Dias, o Prefácio14 (Nov. de 1986) de Arménio Vieira, como o próprio admite, deixa muitos aspectos na sombra, não por incúria mas por defeito. O defeito de Arménio, que é intrínseco à alma de um poeta, reside na particularidade de não 8 Hesíodo (meados do séc.VII a.C.) in Os Trabalhos e os Dias (Justiça e insolência, 213-214) – tradução de Maria H. da Rocha Pereira (hélade: Antologia da Cultura Grega), edições ASA. 9 Idem, Hesíodo in Os Trabalhos e os Dias (Justiça é a lei dos homens, 279-280). Mas quem sabe se amanhã, quando deus se cansasse de experimentar as suas criaturas, não viria finalmente um tempo assim…, que não seja desmesuradamente coberto pelo preço do litro de milho branco (…)11. 10 Baltasar Lopes in Os Trabalhos e os Dias (um vapor encalhou nesse sul), pag. 78; conto que dá nome à colectânea editada pela ALAC (África, Literatura, Arte e Cultura), 1987. 11 Idem, Baltazar Lopes in Os Trabalhos e os Dias (caminho), pág. 80. 12 Idem, Baltazar Lopes in Os Trabalhos e os Dias (em nome da lei), Estou a defender o que eu e estes companheiros recebemos da misericórdia divina. pág. 83. 13 in Só, poema inserido no volume Cântico da Manhã Futura, edição do BCV / ICL. E …Vossemecê nada pode fazer contra a justiça de Nosso Senhor12… 14 Idem, in Prefácio de Arménio Vieira, pág. 7, da colectânea de contos Os Trabalhos e os Dias. [97] te a vida, se antes formos geómetras na aprendizagem da virtude. Eis a condição humana imprescindível. E aproveito para colocar aqui todo o acento tónico desta breve exposição. 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 98 [98] reconhecer a literatura realista. Também eu não a reconheço, e talvez sofra do mesmo defeito, embora aceite que não existem temas poéticos. Todos os temas podem sê-lo. E a literatura não reclama nenhum acesso privilegiado à realidade, ela apenas nos permite mais um registo plausível. Para Jorge Luís Borges, a realidade só se torna coerente numa perspectiva literária. Não terá sido o que Baltazar Lopes fez ao longo da vida? Encontrar coerência da vida, e da dimensão desmesurada do mundo, no sustentáculo e na criação literária? A unidade de uma época poderá ser uma grande ilusão, e pensamos que Arménio, também, admite que as mesmas pressões sociais, económicas ou culturais possam produzir, simultaneamente, obras datadas e obras plenas de perenidade. Mas a breve leitura que nos apresenta no prefácio, aflora duma forma muito plana os contos, e embora distinguindo na essência, não consegue libertar-se do historicismo por demais datado, e acaba por não ultrapassar os estudos de Manuel Ferreira, que cristalizaram muitas análises feitas à volta da Claridade e da literatura caboverdiana. É certo que também convém esclarecer, as duvidas que uma leitura mais aprofundada levanta, no sentido de apurar, até que ponto as teorias de M.F. estão em conformidade com a concepção da Claridade e da Literatura Caboverdiana que o próprio B.L. vincula. Pois tudo indica que há uma dissemelhança que não deve ser ignorada. Vejamos o que nos diz B.L. a dada altura: E como Ferreira é bom conhecedor da terra e das gentes, os pontos de vista que tem apresentado ao longo de um debruçar, que não vem de ontem, sobre estes temas, apresentam sempre valorações pertinentes; mesmo quando não concordemos totalmente, a nossa discórdia nunca deixa de ser acompanhada de respeito por este escritor, digo por este homem profundamente sincero15. Há dados, perfeitamente averiguáveis, que indiciam que Baltazar Lopes, sendo um homem de convicções, soube, entanto, admitir e fomentar a discussão de ideias e de ideais, como um pressuposto ao mesmo tempo ético e cultural (e penso que essa atitude não é uma excepção isolada no seio dos mentores da Claridade). A inclusão do prefácio de Arménio Vieira, um poeta suficientemente distinto do movimento Claridoso, na abertura da colectânea de contos referido acima, é disso um exemplo. A inclusão e a menção, com dignidade, de elementos jovens saídos do liceu, geração do Suplemento Cultural, donos também duma voz colectiva, (Capitão… esta voz somos nós16), como sendo Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Ovídio Martins, nos últimos números da Claridade poderá ser outro exemplo. Gabriel Mariano, que em 1959, ao escrever sobre a inquietação e a serenidade na poesia caboverdiana, refere o seguinte: Este poeta (Eugénio Tavares), como tantos outros em Cabo Verde, escreveu nas duas línguas de que o caboverdiano normalmente se serve: a língua portuguesa e a língua caboverdiana, mas só a sua obra de expressão crioula tem utilidade para a cultura viva de Cabo Verde17. Repare-se que há aqui uma abordagem que exclui categoricamente, por suposta inutilidade, não deixando sequer lugar para a dúvida, ou contra-argumentação. É mais ou menos nessa toada, ou binómio exclusão versus inclusão, que assenta (década e meia depois!) as leituras de Manuel Ferreira, e as teorias e os estudos apresentados no Reino de Caliban. Mas se apontarmos que, no contexto da diferença como tragédia18, Próspero não pode dispensar Caliban, nem Caliban, Próspero. Porque será que no reino de Caliban organizado por M.F. não houvera lugar para incluir abertamente os Antecessores (Guilherme Dantas, Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Monteiro, Januário Leite, António Corsino Lopes, e demais parceiros)? E não bastaria segregar os ageográficos, Poetas das Sete Partidas, como seria necessário afirmar, peremptoriamente, que, um partidário da poesia pura, João Varela, inseria-se numa linha de completo desenraizamento crioulo19, ou perfilha uma atitude poética de desenraizamento cabo-verdiano20? 15 Baltasar Lopes In Prefácio (1967) da Aventura Crioula de Manuel Ferreira, obra que já conhece 3 edições. 16 Gabriel Mariano, Capitão Ambrósio. 17 in Cultura Caboverdeana – Ensaios, Gabriel Mariano; edições Vega, pag. 99, Inquietação e Serenidade, Aspectos da Insularidade na Poesia de C.V.. 18 Referência os texto de Eduardo Lourenco, Otelo ou a diferença como tragédia in Destroços – O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, gradiva edições, Março 2000. 19 Manuel Ferreira in No Reino de Caliban, 1975 edição Será Nova. 20 Idem. 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 99 UMA LEITURA POSSÍVEL: Voltaremos (mais adiante) a esta questão da exclusão vs inclusão (ou se preferirem do Próspero vs Caliban). Mas para não perder o fio à meada, dizia, que deveremos confrontar tais estudos, e o projecto teórico resultante, que designamos atrás de cristalizador, mas que não perde o mérito do seu pioneirismo e entrega, com aquelas que não estão em sua sintonia. E lembro-me, de Aurélio Gonçalves, que munido de outro entendimento, e de uma desenvoltura assinalável, propôs outra leitura, aquela que se esconde atrás dos actos aparentes… (e que nos elucida) que a vida é sempre mistério, mesmo quando se revela por factos de banalidade quotidiana21. Mais uma vez o B.L. apresenta-nos com discrição o seu gosto pelo diálogo (com toda a abrangência filosófica que o termo possa carregar) ao dar a voz a Aurélio Gonçalves, este seu condiscípulo de sempre, que nos apresenta na abertura da Antologia da Ficção Cabo-verdiana Contemporânea, e estamos no ano de 1960, uma das leituras mais agudas (pela clarividência) e quiçá a mais assaz consciência, dentro do seio da própria Claridade, que a literatura, em especial a literatura dum país emergente, se faz da inevitável capacidade talentosa dos seus autores: Venham todas as vozes, todos os ruídos e todos os gritos; venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos; venham todas as coisas que não consigo ver na superfície da sociedade dos homens; venham todas as areias, lodos, fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras; (…) volve tudo ao ponto de partida, e venham as odes dos poetas, (…) que as criaturas se façam criadores; venha tudo o que sinto que é verdade além do círculo embaciado da minha vidraça… Eu estarei de mãos postas, à espera do tesouro que me vem Que destino espera esta actividade literária…? Conseguirá ela vingar…? (…) O seu futuro está nas mãos da natureza e do escritor caboverdiano. Os talentos, só a fecundidade da madre-natura no-los poderá oferecer. Sintoma tranquilizador é o de que novos vão aparecendo. Se o escritor caboverdiano se resolver a ser um verdadeiro intelectual, trabalhador insatisfeito, místico, se se impregnar da dignidade que lhe confere a sua missão de criador… teremos literatura22. Os meus joelhos doridos, mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha É interessante como essa perspectiva, ainda antes da nossa soberania política, assumia este facto como se consumado, e num olhar soberbo e absolutamente vanguardista, lançava o desafio literário na sua plenitude. Na verdade se projecto houve do movimento claridoso, ou se o tempo vocacionou a sua elaboração, ao longo dos seus largos anos de publicação intermitente (9 números em 3 décadas), tal projecto daria por concluída a sua tarefa, os seus objectivos. É um pouco isso que nos diz A. Gonçalves, na medida que pressupõe a importância da responsabilização das novas gerações, cabendo a estas a continuidade e a dignificação das rotas. Na onda do mar… A minha principal certeza é o chão em que se amachucam lanterna de todas as cores na linha de todas as batalhas. (Ressaca)23. Posto isto, seria escusado dizer que aprecio, por defeito, a criação literária seja qual for a sua manifestação, e aceito a inspiração quando e donde quer que ela venha: da imaginação ou da reflexão, da natureza ou do estudo. É estoutro defeito que equilibra 21 Aurélio Gonçalves in Problemas da literatura Romanesca em Cabo Verde, comentário que antecede a Antologia da Ficção Cabo-verdiana Contemporânea, organizada por Baltazar Lopes, 1960, edições Henriquinas; e incluída também in Ensaios e Outros Escritos (de A. Gonçalves), organização e apresentação de Arnaldo França, edições do Instituto Camões, Centro Cultural Português Praia-Mindelo 1998. 22 Idem. 23 Osvaldo Alcântara in Ressaca, inserido no volume Cântico da Manhã Futura, ed. BCV / ICL. [99] OS TRABALHOS E OS DIAS 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 100 [100] PEDRO MADEIRA PINTO Sonho simples, 2007 tinta sobre papel medida 50x40 cm 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 101 UMA LEITURA POSSÍVEL: OS TRABALHOS E OS DIAS Se B.L., como tenho argumentado, foi, enquanto criador literário, um ser dialéctico, que fomentou o diálogo, e se em 1960, com a Antologia de Ficção Caboverdiana Contemporânea, implicitamente, aceitou que o programa Claridoso tinha chegado a bom porto, o que lhe terá movido, em 1986, volvidos 26 anos (ou seja, uma geração), o seguinte dito: Essa caboverdianização da temática fizemo-la. E continuou. Mesmo os que vêm posteriormente preocupam-se com ela e realizam uma temática caboverdiana. Eles são claridosos digamos malgré eux25. música, a pintura, a escultura, a dança, o teatro, enfim… também ela, a poesia, a literatura), familiarizado que esteja com a poeticidade da linguagem, o autor, reconhece num autêntico cataclismo, que o momento aonde não permanecemos, que não nos atinge, ou nada nos diz, resume-se a um pensamento sem fundamento, a um momento sem pasmo, que não alcança a essência de ser. A identidade é uma das verdades inultrapassáveis para o nosso pensamento contemporâneo. Homem de suprema inteligência teórica, e prática (como o constata Osvaldo Silvestre no seu estudo, A aventura Crioula Revisitada27) Baltazar Lopes sabia-o, quando nos deixou o dito referido acima: (…) Eles são claridososos… malgré eux». Seremos, então, todos claridosos por sermos caboverdianos? É certo que o desdito é um apelo interior ao dito que ao dizer se abdica. Partimos de um dito que será (de)pois necessário (des)dizer? Raios partam a Claridade (!): é o que apetece dizer se não apetece desdizer coisa alguma. Buscando a nossa identidade, ou participando dela, sereis então, inevitavelmente, apanhados pelas teias da Claridade? É óbvio que não. E garantidamente não terá sido este o alcance contido nas palavras de Nhô Baltas. Palavras que ditas em 1986, nos possam saber a conservadoras, mas que acima de tudo espelham a grande honestidade intelectual do homem que as diz. SEGUNDO ARGUMENTO Para Baltazar Lopes as preocupações da Claridade «tinham a sua fonte principal na situação desastrosa…» que «ignorava ou violava os mais elementares princípios que regem a vida do homem e do cidadão e salvaguardam a liberdade individual»26. Passemos ao segundo argumento da minha leitura, com a questão seguinte: Estas preocupações, intrínsecas à humanidade, em qualquer latitude, assumem, necessariamente, a caboverdianização da temática? O pensamento razoável é temático (os Claridosos sabiam-no!), e pensar é posicionar. Aquando da realização de um movimento, a pausa, o pousio, fundamental, assume a posição suspensa no espaço, como referência necessária ao movimento. Posicionar é a experiência ontológica da firmeza do ser que se repete na tematização e na síntese. Qualquer autor que lida com a criatividade artística (incluindo todas as artes com vigor nos nossos dias: a Há duas atitudes, extremas e antagónicas, que por vezes se levantam à volta da Claridade, idolatria e repulsa, ambas gratuitas e contraproducentes. Pois a primeira acaba por matar à nascença a missão de criar. E a segunda transmite uma imagem de que a Claridade se assemelha a uma teia, ou areia movediça, com o condão de não deixar a literatura caboverdiana sair da cepa torta, 24 Lao Zi in Tao Te Ching (o Livro de Tao). 25 Afirmações do Baltazar Lopes (06.05.1988) in Retratos Falados, entrevistas conduzidas por F. Assis Pacheco; edições ASA 2001. 26 Depoimento de Baltazar Lopes, in edição fac-similada da revista Claridade (edição da ALAC, 1986). 27 Osvaldo Silvestre in A Aventura Crioula Revisitada – Versões do Atlântico Negro em Gilberto Freyre, Baltasar Lopes e Manuel Ferreira, publicado no ACT 6 – Literatura e Viagens Pós Coloniais, Org. Helena C. Buescu e Manuela R. Sanches; edições Colibri, Centro de Estudos Comparatistas da FLUL. [101] a amplitude da minha visão sobre a obra de Baltazar Lopes. E me alerta da necessidade de avaliarmos com a mesma isenção tanto a sua criação artística como a sua concepção ideológica ou teórica. Tudo isso será possível se deixarmos de lado o imediato e óbvio, e concentrarmo-nos no substancial e por vezes recôndito. Para colher a expressão de uma obra, na sua plenitude, seria quase necessário que a mente conhecedora pudesse abster-se de todo o saber cumulativo, para o início da viagem surpreendente onde o Não-Ser se torna realmente decisivo24. 9.ECL.António Neves(pb) ensaio 6/17/09 12:36 AM Page 102 ou encontrar novos rumos. Penso que as duas atitudes mais não espelham que limitações ou incapacidades criativas. Como ideólogo o B.L. assume, a dada altura, que a Claridade tem um programa, da qual fazem parte o levantamento, a elaboração e por último a definição duma identidade, uma caboverdianização. Uma incursão nessa vertente, deve ser feita a par da caracterização (que está feita!) da época, e de um certo modo como, neste caso, o ideólogo se mostra perante o seu tempo. A época e o ser num parentesco indissociável, mas tendo presente que a identidade é uma entidade viva que merece ser vigiada e reelaborada. Por outro lado não faz sentido avaliarmos a literatura (valorizando ou desvalorizando-a) pelo carácter programático e operativo em duelo com o filosófico e especulativo. Pois uma valoração baseada nessa distinção pode transvestir-se, em algo absolutamente estéril. [102] Ninguém, hoje, poderá negar a validade do programa da arte abstracta. Mas será possível desvalorizarmos a arte figurativa do passado (ou do futuro), considerando o intento representativo como irrelevante, colocando a não-figurativa como condição indispensável da arte? Neste ponto, do programático e da caboverdianização, como parâmetros de inclusão ou exclusão, e se William Shakespeare é dono dum universalismo inegável, interessa-me voltar à questão de Caliban, que tragicamente se expulsa a si próprio ao banir Próspero. Não pretendo esquecer que em relação à separação ou segregação feita no Reino, Manuel Ferreira, avisa que tal arrumação não se fundamenta em qualquer juízo de valor. E o eventual descuido, que se espreita no Reino de Caliban, não terá sido a organização de uma Antologia, de acordo com um programa, que legitima uma pretensão doutrinal. Na arte tudo aquilo que é legítimo como sustentabilidade de um programa, torna-se ilegítimo quando se tem a pretensão de considerar inválido outras vivências ou espiritualidades, que não se encaixam no nosso ideal. Mesmo quando observamos o mesmo objecto, a contemplação resultante sobre a tela, no ofício ou impressa na folha em branco, poderá ser distinta na forma e no conteúdo. É inválido julgar o passado ou estabelecer o futuro não admitindo outra proposta ou resolução, que aquela que sustentamos e nos sustenta. Tem havido um silêncio à volta desse descuido. E mesmo Baltazar Lopes, que se demarca das teorias de M. F., não se pronunciou em relação a tal descuido, que persiste, inclusive, na actualidade, e perante outros paradigmas. A geração mais nova, geração à qual eu pertenço, ademais assombrada pela dramaturgia do ego, por vezes ao pretender reelaborar concepções estéticas, limita-se ao que está prescrito, não cuidando da responsabilidade que lhe cabe em reler, hoje e devidamente, o passado. A arte literária e arte a caboverdiana, nas mais diversas manifestações, conheceram ou sofreram as transmutações suficientes, e atingiram uma densidade tal, que não é descabido questionarmos da sua entrada no novo milénio. Há desafios que se colocam à alma caboverdiana, que pela sua natureza múltipla, intentará soluções estéticas distintas daquela proposta pela Claridade. E na tarefa de cada geração de refazer de novo, temos a lição da Claridade que não aceitou acriticamente o que quer que fosse. E se a tragédia da diferença, foi uma fatalidade, a definição da nossa identidade, hoje, permite-nos reconhecer no nosso rosto um outro igual e livre com pleno desejo de reconhecimento. E para terminar, não posso deixar de partilhar convosco a leitura de dois ou três versos que para um poeta não têm passado nem futuro: O rei espera por nós no caminho da ilha dos Mais Belos Poemas. Vamos! Bendize a tua dor na Rua da Amargura! Além é o horizonte. E está nos teus passos ir até lá e ver a Ilha Prometida, para que o teu coração não tenha um limite e uma distância diferente!28 28 O. Alcantâra in Balada dos Companheiros para Pasárgada, inserido no volume Cântico da Manhã, ed. BCV/ICL. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:13 AM Page 103 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 CIÊNCIAS HUMANAS PEDRO MADEIRA PINTO Ramos dos sonhos, 2008 técnica mista sobre papel medida 100x70 cm 11:13 AM Page 104 6/17/09 11:14 AM Page 105 Sérgio Avelar Duarte CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES N a sequência de frequentes visitas aos Açores, surgiu a oportunidade de, no âmbito de um estudo mais vasto que tenho em preparação, fazer o levantamento das pedras de armas, armas tumulares, cartas de brasão de armas, talha, faiança, porcelana e azulejos brasonados e outros espécimes heráldicos existentes no arquipélago. osteriormente, decorria o ano de 2005, dei início a este trabalho de inventariação das Cartas de Brasão de Armas de pessoas nascidas ou de alguma forma relacionadas com os Açores, a fim de facilitar a identificação dos espécimes heráldicos que ia inventariando. P publicação deste artigo visa reunir, num só documento, um conjunto muito vasto de informação dispersa por um sem número de livros e revistas da especialidade, publicado ao longo de várias décadas, permitindo assim que o investigador da heráldica tenha a sua pesquisa condensada e muito mais simplificada. Em complemento da recolha efectuada, tentei relacionar as CBA com as pedras de armas e outros suportes heráldicos que fui encontrando, adicionando em notas de rodapé comentários e outras justificações de interesse. A [105] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 106 N a elaboração deste estudo tive a grata surpresa de encontrar em Ponta Delgada três CBA de extremo interesse. Como é sabido, durante a estadia da corte portuguesa no Rio de Janeiro, de 1808 a 1821, D. João VI mandou ai criar o Cartório da Nobreza, conferindo-lhe os mesmos poderes que o de Lisboa possuía, isto é, os de emitir cartas de brasão de armas. Após o regresso da corte a Portugal os livros dos registos permaneceram no Rio de Janeiro e continuaram a ser usados. Anos mais tarde, em 1848 e já demente, morre o Escrivão da Nobreza e Fidalguia do Império do Brasil, frei Possidónio da Fonseca Costa, e os cinco copiadores que existiam desapareceram, o que faz com que as CBA emitidas no Rio de Janeiro sejam desconhecidas, pois não se sabe nem quantas nem para quem foram emitidas. [106] Como vinha dizendo, encontrei três dessas CBA, que não posso deixar de salientar por serem inéditas e cuja transcrição e reprodução fotográfica apresento na íntegra. São elas: António da Cunha da Silveira Bettencourt – 1818, Bartolomeu Álvaro de Bettencourt – 1811 e João Soares de Albergaria de Souza – 1819. ão queria concluir este estudo da heráldica açoriana sem arrolar também alguns Alvarás do Conselho de Nobreza que me foram sendo dados a conhecer, ciente de que faltarão muitos, pois estes documentos não fazem menção ao local de nascimento do armigerado, o que dificulta o seu reconhecimento. N Foram também elaborados índices ordenados por armas, pelo nome próprio e por título nobiliárquico, para uma melhor consulta. Todas as fotografias são minhas e fazem parte do meu arquivo particular, com excepção da fotografia 32 que foi gentilmente oferecida pelo Prof. José Pereira da Cunha, a quem agradeço. Q uero ainda deixar uma palavra de agradecimento a Álvaro Manuel de Lacerda e Melo, amigo de há mais de três décadas, a Francisco da Silveira e Pedro Pacheco de Medeiros, respectivamente Bibliotecário e Arquivista da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, a Jácome de Bruges Bettencourt, delegado da Academia Portuguesa de Ex-Líbris nos Açores e grande amigo, a Maria João Mota Melo, directora do Serviço de Documentação da Universidade dos Açores, ao heraldista e grande amigo Segismundo Pinto, ao meu primeiro cicerone e bom amigo na ilha Terceira, Tristão Manuel Freire de Andrade e, para finalizar, a José Maria Bonifácio, conhecedor profundo da sua terra e das suas gentes. Junto de cada carta de brasão de armas reproduzida agradecerei de forma pessoal aos detentores das mesmas. ermino com uma palavra muito especial de reconhecimento e agradecimento ao incansável amigo e sempre disponível para ajudar, nomeadamente no estabelecimento dos contactos necessários para se fotografarem as cartas de brasão de armas (de S. Miguel) que aqui se apresentam e que, roubando horas ao seu descanso, comigo percorreu as estradas e canadas de S. Miguel, para fotografar sempre mais uma pedra d’armas que se descobria ou chegava por interposta pessoa ao seu conhecimento – refiro-me a António Manuel de Oliveira, muito distinto ex-Director do Museu Carlos Machado em Ponta Delgada, a quem fico também devedor duma franca e sincera amizade. T 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 107 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES I EXTRAÍDAS DO ARCHIVO HERÁLDICO-GENEALÓGICO (AHG) (ORDENADAS PELA PRIMEIRA ARMA) ALMEIDA – 56, 2146 BARBOSA – 1844 ALMEIDA / ANDRADE – 1535 ALPOÍM – 57, 2246 BETTENCOURT / MEDEIROS – 1969 BORGES – 118, 9751 ÁVILA / PEIXOTO / SILVEIRA / BETTENCOURT – 335 BOTELHO / CABRAL – 11032 CABRAL / MELO / SOUSA / MACHADO – 1105 [107] CABRAL / TAVARES / SOUSA (do Prado) / FARIA – 1753 1 No Palácio dos Capitães Generais em Angra do Heroísmo, há um escudo em talha dourada com vestígios de policromia com armas de Borges (mal representadas), proveniente do arco da capela absidal do lado da Epístola da Igreja de Santo António dos Capuchos, arruinada pelo sismo de 1980 (Foto 1), e em Ponta Delgada, no Museu Carlos Machado, existe uma pedra de armas proveniente do portal da casa de Nª. Senhora do Egipto na Fajã de Baixo, onde estão esculpidas estas mesmas armas (Foto 2). 1 2 2 AHG nº. 1767. Na rua Dr. Guilherme Poças Falcão 14, em Ponta Delgada, o escudo aí colocado tem por diferença: uma brica de …... com um trifólio de …… (Foto 3). 3 Diferença: brica de azul com um farpão de ouro; Nobiliário da Ilha Terceira, II vol., pág. 45. Estas armas estão pintadas no portão de ferro forjado da Quinta dos Fournier no Caminho do Meio a S. Carlos, 50 em Angra do Heroísmo (Foto 4). 3 4 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 108 CACENA – 17424 CORREIA / MELO/ MENDONÇA/ CUNHA – 1226 CÂMARA / ORNELAS – 2148 CORREIA / MELO/ SOUSA / SILVA – 1250 CAMELO – 1267 CORREIA / RAPOSO / BRUM / BETTENCOURT – 814 CANTO - 2152 CORREIA / RODRIGUES / VALE / NOGUEIRA - 1865 CARREIRO – 583 CORREIA / SILVEIRA / BOTELHO / SAMPAIO – 17675 COELHO – 2252 COSTA – 507, 1985, 2143 CORONEL – 1448 COSTA / HOMEM – 381, 1874 CUNHA – 15476 CORREIA / CARVALHAL / ALMEIDA / MENDONÇA – 1776 CUNHA / BOTELHO / MELO / COSTA – 6797 CORREIA / MELO / MELO / CORREIA – 5 ESPÍNOLA – 189 [108] 4 Para além destas, António Villas-Boas e Sampayo na sua obra “Nobiliarchia Portugueza” descreve as armas de Cacena do seguinte modo: “em campo de prata, um leão rompente de azul, armado de vermelho” sendo estas armas, as que Lucas Cacena registou em Julho de 1530 por mercê de El Rei D. João III. Estas mesmas armas encontram-se no fecho de abóbada da antiga capela do S. S. da Igreja Matriz de S. Sebastião – S. Sebastião – Angra do Heroísmo (Foto 5). 5 AHG nº.1103. Pedra d’armas policromada no Solar do Morgado da Estrela (Mafona) – Rua Hermínio Silva Horta, 137 – Ribeira Seca da Ribeira Grande (Foto 6); na Quinta Pico do Refugio em Rabo de Peixe (Foto 7) e Convento de Belém na Fajã de Baixo em Ponta Delgada (Foto 8). As pedras de armas das fotografias 6 e 8 apresentam uma diferença: brica de …….… com um farpão de ........... 5 6 7 6 CBA de 2.9.1820 a favor de José João da Cunha e Vasconcelos. Esta carta faz parte do espólio do Museu de Angra do Heroísmo (Doc. 0). 7 A CBA de Filipe António Brum Botelho que se reproduz parcialmente é propriedade da EXMA. SENHORA DONA JORGINA LEITE VELHO DE MELO CABRAL TAVARES NETTO DE VASCONCELOS FRANCO a quem agradecemos reconhecidos a autorização para a sua publicação (Doc. 1). No Solar das Necessidades, à calçada das Necessidades, no Livramento, a pedra de armas aí existente tem por diferença uma brica de (vermelho) com uma estrela de oito pontas de (ouro). É a mais bela pedra d’ armas dos Açores (Foto 9). 8 9 6/17/09 11:14 AM Page 109 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [109] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 0 Doc. 1 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 110 FEIJÓ / GOUVEIA / MEDEIROS / FEIJÓ – 1929 FERREIRA / TEIVE – 959, 1150 GOES / MEDEIROS / BETTENCOURT / BORGES – 1198 HOMEM – 917, 1168, 21749 11 IMPERIAL – 17 JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO – 117810 LEMOS / SOUSA / FREIRE / CALDEIRA – 1186 12 [110] 8 Archivo dos Açores, 10º. vol., pág. 446. Diferença: brica de prata com um trifólio de verde. 9 No Museu de Angra do Heroísmo (nº. inv. R96.601), existe uma pedra d’armas – em traquito – quinhentista, com estas armas mas sem a diferença. Deu entrada no museu vinda da Igreja de Nª. Sª. de Guadalupe em Agualva (Foto 10). 10 14 13 10 Diferença: brica de prata com um “J” de negro, (A.N.T.T. Cartório da Nobreza, Livro III, fl.24v). No palácio de Sant’Anna na Rua de Sant’Anna, 19 em Ponta Delgada, existem várias peças policromadas onde se pode ver esta diferença (Fotos 11, 12 e 13), assim bem como uma pedra d’ armas no Museu Carlos Machado, (Foto 14). O 1º. Marquês de Jácome Correia, Aires de Jácome Correia fez figurar erradamente, esta diferença no seu ex-líbris (Foto 15) e também erradamente o proprietário da casa sita à Canada Nova de S. Carlos, 36 em Angra do Heroísmo, fez figurar a mesma diferença na pedra d’armas que aí colocou, recentemente (Foto 16). 15 16 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 111 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES MACHADO – 53811, 928, 1846, 2158 MACIEL – 9 MEDEIROS / COSTA / ALMEIDA / PONTE – 1196 MELO / VELHO / CABRAL / TRAVASSOS – XXXII Suplemento MENDONÇA / FURTADO / ROCHA / ALBORNOZ – 343 MENDONÇA / PEREIRA – 1026 MENESES / PAMPLONA – 130012 MIRANDA / ÁLVARES – 1659 MONIZ / AMARAL – 131 MONIZ / CAMELO / PEREIRA / BETTENCOURT – 1230 Doc. 2 11 Está sepultado na Igreja da Misericórdia da Praia da Vitória; laje tumular em pedra da região, com moldura e tendo no eixo o escudo de armas. A inscrição (com letras inclusas), em quatro regras reza: S / DE Dº DE BRASE / LOS AVANGELHO/ E SEUS ERDEROS (Foto 17). 17 18 12 Diferença: brica de azul com um besante de prata, vê-se na pedra d’ armas policromada da Rua da Sé, 103 em Angra do Heroísmo (Foto 18). A CBA que é propriedade da EXMA. SENHORA DONA MARIA LETÍCIA MOURATO a quem agradecemos reconhecidos na pessoa de sua nora a Drª. Dona Margarida Leiria Gomes Vasconcelos da Ponte a autorização para a sua publicação (Doc. 2). Doc. 2 [111] OLIVEIRA / PEREIRA – 633 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 112 PACHECO – Documento 1313, 952, 953, 1989, 219214, 2295 PACHECO / MELO / BETTENCOURT / CABRAL – 115715 PAMPLONA – 115, 308, 106016, 1911, 2211 PEIXOTO / PEREIRA / BETTENCOURT / SILVEIRA – 84217 PEREIRA – 843 PEREIRA / FURTADO / FERREIRA / MELO – 2238 PEREIRA / MACHADO – 124918 21 [112] 13 Ver nota 14. 14 Nesta obra, na página XXIX, documento 13 a carta de brasão de armas passada a Pedro Pacheco em 1535 é transcrita na íntegra. Na mesma obra, pág. 550 sob o nº 2192, menciona-se em extracto uma CBA concedida a Pedro Pacheco. Na primeira, Pedro Pacheco é dado como morador na ilha de S. Miguel, filho legítimo de António Pacheco e neto de Pedro Pacheco “que mataram os mouros em Ceuta”. Na segunda, Pedro Pacheco é dado como morador na ilha da Madeira, filho de Antão Pacheco e neto de Pero Pacheco “que mataram os mouros em Ceuta”. Ambos os documentos foram emitidos em Évora a 22 de Maio de 1535, acrescentando-se na segunda referência estar registada na Chancelaria de D. João III, Livro X folha 79. Indubitavelmente que se está perante o mesmo documento, embora a grafia dos nomes não seja a mesma, nem o local de residência o mesmo. Como tantas vezes aconteceu a Sanches de Baêna, as referências em extracto pecam por enganos, dos quais os mais significativos são o do local de residência do armigerado. 15 Diferença: brica de …. com um farpão de …… No portal do carro da Quinta Velha das Amoreiras, na Rua das Amoreiras, 22 – Ribeira das Tainhas em Vila Franca do Campo, está colocada uma pedra d’armas onde figura esta diferença. (Foto 19) Também em Vila Franca do Campo, na Rua Engº Artur do Canto Resende, 23 está colocada outra pedra d’armas com a mesma diferença (Foto 20). 16 Esta CBA é pertença da Bibliotéca Pública e Arquivo de Angra do Heroísmo. AHG nº. 1060. 17 AHG nº. 1245. Pedra de armas na Rua dos Mercadores, 88 / 90, em Ponta Delgada (Foto 21). 18 AHG nº. 2088. 19 20 6/17/09 11:14 AM Page 113 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [113] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 13 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 114 PEREIRA / MACHADO / BORGES / FARIA – 208819 PEREIRA / MELO / RAPOSO / AMARAL – 212220 PIMENTEL / MESQUITA / FURTADO/ PIMENTEL – 812, 1219 PIMENTEL / ORTIZ / BRITO / RIO – 219621 PIMENTEL / SILVEIRA / PEIXOTO / BETTENCOURT – 124522 REBELO – 2298 REGO – 93823 REGO / BALDAIA / CABRAL / MELO – 1263 24a [114] 19 AHG nº. 1249. Vêem-se na Rua do Rosário 32, às Capelas, Ponta Delgada (Foto 22). 21 No portal do solar Brito do Rio à Canada da Luz – S. Mateus em Angra do Heroísmo, está uma pedra de armas policromada com este ordenamento heráldico (Foto 24a). 20 A CBA de Nicolau Maria Raposo do Amaral (Doc.3) é pertença dos SERVIÇOS DE DOCUMENTAÇÃO DA UNIVERSIDADE DOS AÇORES – cota RESERVADOS ES-2. No Museu Carlos Machado (inv.nº 1313) em Ponta Delgada existe uma pedra d’armas, (Foto 23) e uma laje tumular (inv. nº. 1312) com estas armas (Foto 24). Vide nota 33. 22 23 22 AHG nº. 842. 23 No Museu Carlos Machado em Ponta Delgada sob o nº. de inventário 1306 existe a testeira (ou pés) de uma arca tumular (?) em pedra de lioz com estas armas e tendo por diferença uma merleta de …….. (Foto 25). 24 25 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 115 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES REGO / BOTELHO / BETTENCOURT / CORTE-REAL – 121324 SERRÃO – 616 SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES – 1078 SILVEIRA / MIRANDA – 103625 SODRÉ / PEREIRA / CORDEIRO / CAMELO – 848 SOUSA (do Prado) / BETTENCOURT / CABRAL / REGO – 1765 SOUSA / COSTA / MELO/ CORREIA – 1868 SOUSA / MACHADO / UTRA / LACERDA – 1520 SOUSA (do Prado) / TEIXEIRA / PEREIRA / SOARES (de Albergaria) – 167426 [115] 28 24 Diferença: brica de vermelho com um farpão de.……. na pedra d’armas colocada numa casa da Rua do Palácio 27, (Foto 26) e no Cemitério de Nª. Senhora do Livramento, ambas em Angra do Heroísmo (Foto 27). 25 Armas do 1º. Barão de Fonte Bela pintadas na moldura central do tecto do salão nobre do Palácio Fonte Bela, no Largo dos Mártires da Pátria, em Ponta Delgada (Foto 28) e nos botões das fardas de libré dos criados (Foto 29). 26 27 26 Por amável deferência do Exmo. Senhor Prof. JOSÉ PEREIRA DA CUNHA, agradecemos o envio para publicação da cópia tabelionica desta Carta de Brasão de Armas, que reza: José Pereira da Costa, Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo certifico que a folhas trezentos e cinquenta e oito a trezentos e cinquenta e nove verso do Livro número sete do Registos de Brasões de Armas do Cartório da Nobreza incorporado neste Arquivo Nacional existe uma carta de brasão de armas do teor seguinte: TEXTO: Dom João por Graça de Deos Rey do Reyno unido de Portugal, do Brazil, e Algarves daquem, e dallem mar, em África senhor de Guiné e da Conquista navegação, e Commercio da Ethiopia, Arábia, Percia e da Índia etc. Faço saber aos que esta minha Carta de Brazão de Armas de Nobreza e Fidalguia virem que José Soares de Sousa, natural da Villa das Vellas na ilha de S. Jorge, e na mesma Sargento Mor das Ordenanças, me fés petição dizendo que pella sentença de justificação de sua nobreza, a ella junta profferida e assignada pello meu Dezembargador, Corregedor do Civel da Corte, e Caza da Suplicação o doutor Victorino da Silva Freire subscripta por Matheus Gonçalves da Costa Escrivão do mesmo juízo, se mostrava que elle he filho ligitimo de Miguel Teixeira de Bitencourt, e de sua mulher Donna Catharina da Silveira e Mello. E que por huma dilatada série de avós de huma conhecida nobreza he o suplicante descendente das illustres famillias dos Souzas, Teixeiras, Pereiras e Soares, e como taes se tratarão sempre á Ley da Nobreza com criados, e cavallos, sem que em tempo algum cometecem crime de Leza Magestade Divina ou Humana: pello que me pedia elle suplicante por mercê que para a memoria de seus progenitores se não perder, e clareza de sua antiga nobreza lhe mandace dar minha Carta de Brazão de Armas das dittas famillias para dellas tão bem usar na forma que as trouxerão, e forão concedidas aos dittos seus progenitores. E vista por mim a ditta sua petição, sentença, e constar de tudo o refferido e que a elle como descendente das mensionadas famillias lhe pretene usar, e gosar de suas armas; segundo o meu Regimento, e Ordenação da Armaria, lhe mandei passar esta minha Carta de 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 116 TAVARES – 970, 999, 224827 TAVARES / GAMA – 1681 TEIVE – 1287 TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES – 80328, 875, 100029 WITON – 1664, 1665 29 [116] Brazão dellas; na forma que aqui vão brazonadas, divizadas, e illuminadas com cores, e metaes, segundo se achão registadas no Livro do Registadas no Livro do Registo, digo, (sic) segundo se achão registadas no Livro do Registo das Armas da Nobreza e Fidalguia destas meus Reynos; que tem o meu Rey de Armas Portugal; a saber: Hum escudo esquartelado, no primeiro quartel as armas dos Souzas, que são esquarteladas, no primeiro em campo de prata cinco quinas de Portugal, no segundo taobem em campo de prata hum leão sanguinho, e assim os contrários; no segundo quartel as dos Teixeiras, que são em campo azul huma cruz de ouro potentea e vazia; no terceiro as dos Pereiras, que são em campo vermelho, huma cruz de prata florida, e vazia; e no quarto as dos Soares, que são em campo de prata huma crus sanguinha, florida e vazia; orla do mesmo metal cozida, e carregada de oito escudetes das quinas do Reyno. Elmo de prata aberto, guarnecido de ouro. Paquife dos metis, e cores das aemas. Timbre dos Souzas, qu he hum dos leoens das armas, e por differença huma brica verde com hum farpão de ouro. O qual escudo, e armas poderá trazer, e uzar tão somente o dito José Soares de Souza assim como as trouxerão, e uzarão os ditos nobres, e antigos fidalgos seus antepassados em tempo dos Senhores Reys meus antecessores, e com ellas poderá entrar em batalhas, campos reptos, escaramuças e exercitar todos os mais actos lícitos da guerra, e da paz. E assim mesmo as poderá trazer em seus firmais, anéis, sinetes, e divizas, pollas em suas cazas, capellas, e mais edeficios, e deixa llas sobre sua propria sepultura; e finalmente se poderá servir, honrar, gozar e aproveitar dellas em tudo e por tudo como á sua nobreza convem. Com o que quero e me praz que haja elle todas as honras, previlegios, liberdades, graças, mercês, izençoens e franquezas que hão e devem haver os fidalgos e nobres de antiga linhagem, e como sempre de tudo uzarão e gozarão os dittos seus antepassados. Pello que mando aos meus Dezembargadores, Corregedores, Provedores, Ouvidores, Juízes e mais Justiças de meus Reynos, e em especial aos meus Reys de Armas, Arautos, e Passavantes, e a quaesquer outros offeciaes e pessoas a quem esta minha Carta for mostrada, e o conhecimento della pretencer, que em tudo lha cumprão e guardem, e fação inteiramente cumprir, e guardar como nella se contam, sem duvida, nem embargo algum que a ella seja posto porque assim he minha mercê. El Rey Nosso Senhor o mandou por José Theodoro de Seixas; Cavalleiro de sua Caza Real, e seu Rey de Armas Portugal, Francisco de Paula Campos Escrivão da Nobreza destes Reynos e seus Diminios a fes em Lisboa aos dois dias do mez de Outubro do anno do Nassimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e dezaseis. E eu Francisco de Paula Campos a fis e subscrevy. O Rey de Armas Portugal, José Theodoro de Seixas. E eu Francisco de Paula Campos a registei e assigney Francisco de Paula Campos. Por ser verdade e me ser pedido, mandei passar a presente que foi conferida com o original. 27 Ao Exmo. Senhor DUARTE MIGUEL DO CANTO TAVARES agradeço sensibilizado a sua amabilidade e pronta disponibilidade em estabelecer contactos a fim de se reunir um maior número possível de Cartas de Brasão de Armas e a imediata autorização para a publicação da CBA de seus avoengos. TEXTO: DOM: IOHAM: PER : GRACA de deos, Rey de purtugal, e dos algarues daquem, e dallem mar em, afryca, Senhor de Guyne e da comquista naue /gaçam, comercyo de hetyopya, arabia persya, e da Jmdya, a quantos, esta mynha carta virem faço saber que Ruy /tauares morador na Jlha de Sam myguel, me fez prtyçam como elle descemdya, por lynha dereyta, mascolyna, da /Jeraçam, e lynhagem, dos tauares, que nestes Reynos sam fydalgos, de cotta darmas // e que as suas armas lhe pertece de dereyto, pedimdome por merce que por a memorya / de seus antecesores senam perder, e elle gouuyr e usar da homra, das armas que poll //os. merecymentos de seus seruyços, ganharã, e lhes foram dadas, e asy dos preuyllegy / os, homras, graças e merçes q. por dereyto por bem dellas, lhe pertemce, lhe mamdasse // dar mynha, carta das dytas, armas, que estauã, Regystadas, em os lyuros, dos Regy /stos, das armas dos nobres, e fydalgos, de meus Reynos, que tem purtugal, meu princypal Rey darm //as, a qual, petyçam vista por my mandey sobre ella tirar Jmquiryçam de testemunhas, a qual foy tyrada / pollo doutor, xpouam. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 117 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [117] Doc. 4 esteues. da espargossa, do meu comselho, e dessembargador das mynhas petyções do, // paço, e por belchyor louremço, escriuam em mynha, corte, polla qual elle, supricante, descemder, por /lynha, dereyta, mascolyna, da dyta lynhagem dos tauares, como fylho legitymo que he de fernam de anes, // tauares, e netto de fernam tauares, de portalegre que foy do tromco desta Jeraçã, dos tauares e fydalgo honr /ado, e que de dereyto as suas armas lhe pertemce, as quaes, lhe mandey dar em esta minha carta, com seu b //rasam, elmo e tymbre, como aquy sam deuysadas, e assy como fyell, e verdadeyramente, se acharam deuiss /adas, e Regystadas em os lyuros, dos Regystos, do dyto, purtugal, meu Rey darmas, as quaes armas sam //as seguintes, ss. o campo douro, com cinquo estrelas de vermelho, em aspa, e por deferença hua frol de lyz az /ul, elmo de prata, aberto guarnydo douro, paquyfe douro, e de vermelho, e por tymbre, huu pescoco de cauallo, //vermelho, com abrida, e guarnydo douro, com falssas redees, o qual escudo armas e synaes possa trazer e traga, /o dyto Ruy tauares, assy como as trouxerã e dellas usaram seus antecesores em todos os lugares de homra, //em que os ditos seus antecessores e os nobres e antygos, fydalgos sempre custumã as trazer em tempo d /os, muy esclareçydos Reys meus antecesores, e com ellas possa emtrar em batalhas, campos, duelos, reptos escarmuças e desafyos /e exercytar com ellas todos outros autos lycytos de guerra, e de paz, e assy as possa trazer, em seus fyrmaes, aneis, sinetes e deuysas, e as /per em suas cassas e edefycyos, e leyxalas, sobre sua propya sepultura, e fynalmente, se seruir e homrar, gouuir e aproueytar dellas /em todo e per todo como a sua nobreza comuem. Porem mando a todos meus corregedores, dessembargadores, Juyzes, Justyças e al /caydes, e em especyal aos meus, Reys darmas, arautos, e passauantes, e a quaesqr outros, offycyaes, e pessoas, a que esta mynha car /ta, for mostrada e o conhecymeto della pertecer que em todo lha cumpram e guardem e façam comprir e guardar como em ella- /he comteudo, sem duuyda nem embargo alguu, que em ello lhe seya posto, por que assy he mynha mercee. Dada, em a mynha muy /nobre, e sempre, leal, cydade, deuora, aos dous dyas, do mês, de desembro. El Rey o mandou pollo bacharel antonyo Royz purtug /al, seu Rey darmas pryncypal, Pero deuora, Rey darmas algarue, e escryuam da nobreza, a fez anno de nosso senhor Jhu xpo de /myll, e quynhemtos, e trynta e quatro annos. A folha de pergaminho mede 535 x 322 mm (Doc. 4). 28 Diferença: brica de ouro com um “F” de negro. Vidé “Os Teixeira de Sampaio da Ilha Terceira”, pág. 65. 29 AHG nº. 875. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 118 II EXTRAÍDAS DAS CARTAS DE BRASÃO MODERNAS ALBERGARIA / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT //ALBUQUERQUE – 4230 ÁVILA (outros) / BETTENCOURT / PEREIRA / CUNHA – 10731 Doc. 5 [118] 30 A Duarte de Andrade Albuquerque Bettencourt 1º. Conde de Albuquerque foi emitida a última CBA do Reino de Portugal – 7.7.1910 – tendo a particularidade de ter sido assinada pelo Rei D. Manuel II, três meses antes da queda da monarquia. Por este motivo a reproduzimos na íntegra. (Doc.5). Estas armas foram também usadas pelo 2º. Conde, Duarte Dinis de Andrade Albuquerque Bettencourt conforme se pode ver pelo ex-líbris que usou na sua biblioteca (Foto 30). 30 31 31 Nos Cemitérios de Nº. Sª. do Livramento em Angra (Foto 31) e Velas de S. Jorge (Foto 32). 32 6/17/09 11:14 AM Page 119 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [119] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 5 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) [120] Doc. 5 6/17/09 11:14 AM Page 120 6/17/09 11:14 AM Page 121 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [121] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 5 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 122 GAGO – 8, 8 A32 MEDEIROS / ALBUQUERQUE – 13933 36 35 [122] 32 As duas CBA de Amâncio Silveira Gago da Câmara (Doc. 6 e 7) são actualmente pertença da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada com a cota RE nº. 784. Estas armas podem ser vistas na Rua de Lisboa, 32 (Foto 33) e Rua do Calço da Má Cara, 2 (Foto 34) em Ponta Delgada. No solar do Conde na Rua do Rosário, 36 às Capelas, (Foto 35). Na capela de Nª. Sª. da Penha de França, na Rua Direita do Botelho – Livramento. (Foto 36); Casa dos Castanheiros, EN 1 nº. 3, Lombinho da Maia – Ribeira Grande (Foto 37); no Monte Simplício – Lomba do Loução, Povoação (Foto 37a), todos na ilha de S. Miguel, entre outros. 33 34 37 33 Em Ponta Delgada, entre duas portas da varanda alpendrada do Solar das Laranjeiras, à Estrada das Laranjeiras, (Foto 38) e na Igreja do Convento de Nª. Sª. da Conceição (Carmo), aí tendo por diferença uma flor-de-lis de ouro (Foto 39). 37a 38 39 6/17/09 11:14 AM Page 123 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [123] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 6 Doc. 7 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 124 MERCÊ NOVA – 12334, 12535, 14136 PEREIRA / MELO/ RAPOSO/ AMARAL – 10337 Doc. 8 [124] 34 MANUEL JACINTO LOPES, Visconde de Palmeira – CBA de 10.11.1893. Descrevem-se: Escudo partido: I – de ouro uma palmeira de verde; II – de vermelho um caduceu de ouro e prata. Coronel de visconde. Timbre: um açor. Suportes: dois grifos de ouro. 35 MANUEL JOSÉ CONDE, Visconde do Rosário - CBA 20.4.1876 – Escudo esquartelado: I. de vermelho uma cruz doble e bordadura de ouro e dentro nos vãos seis bezantes de prata II. de azul, uma estrella de cinco raios de prata entre nuvens do mesmo metal e em contra-chefe o mar, também de prata, um navio de sua cor navegando a vela, tendo na popa em letras de ouro a palavra – Conde III. de azul carregado de estrellas de prata, tendo em abismo a cruz da redempção e encostado a ella, um pelicano com quatro filhos bebendo o sangue do mesmo, que se está ferindo no peito, tudo de ouro IV. de prata um leão de púrpura, rompente, armado de azul, orla verde carregada de quatro vieiras de prata e quatro cruzes pateas de ouro, collocadas alternadamente. O escudo cercado de sete bandeiras em haste de ouro com lanças de prata, sendo três vermelhas, duas brancas e duas azues, repartidas quatro à direita e três à esquerda. Coroa de visconde. Timbre uma águia negra estendida abezanteada de prata, tendo no bico uma fita também de prata com a divisa em letras vermelhas: “Omnibus Caritas”. 36 SEBASTIÃO DEIRÓ, Barão de Sousa Deiró – CBA de 9.4.1905. Descrevemse do seguinte modo: Escudo esquartelado: I – de prata, cinco quinas azuis postas em aspa; II – de vermelho uma serpente de prata manchada de verde com duas setas de oiro na boca; III – de ouro três pombas com o peito de branco e asas castanhas; IV – de prata leão sanguíneo. Timbre: três plumas, sendo duas de vermelho e a do meio branca. Suportes: dois açores de sua cor. Divisa: DEO ET PATRIA. 37 Em anexo reproduz-se a CBA de Sucessão de José Maria Raposo do Amaral (Doc.8) que é actualmente pertença dos SERVIÇOS DE DOCUMENTAÇÃO DA UNIVERSIDADE DOS AÇORES com a cota RES-1.Vidé nota 17. 6/17/09 11:14 AM Page 125 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [125] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 8 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 126 III EXTRAÍDAS DOS BRASÕES INÉDITOS ÁVILA – 26338 CORDEIRO – 80,351 CORDEIRO / ESPINOSA – 97 BETTENCOURT / NOGUEIRA / PACHECO/ FONSECA – 25 CORONEL – 267,420 BOTELHO / CABRAL – 12 CORREIA / MELO – 4 BOTELHO / MENDONÇA – 369 CORREIA / RODOVALHO – 222 CABRAL / CORDEIRO / ESPINOSA / MELO – 34739 COSTA / BORGES / BORGES / COSTA – 105 COSTA / COLUMBREIRO – 3041 CARVÃO / FONSECA / FONSECA / CARVÃO – 36 COELHO – 118, 179, 271, 367, 41440, 483 ESPINOSA – 274 [126] 38 Uma representação iconográfica destas armas sem a diferença (no texto: uma muleta de azul; na iluminura da carta de armas: brica de …… com uma muleta de ……) podem ser vistas pintadas no tecto da Ermida de Nª. Senhora do Parto na Rua S. João de Deus em Angra do Heroísmo (Foto 40). Esta CBA do capitão João de Ávila é pertença da Biblioteca Pública e Arquivo de Angra do Heroísmo. Após pedido ao Exmo. Senhor Director da instituição foi-nos facultado o acesso aos reservados para fazer as fotografias das três CBA aí depositadas. Após várias horas de busca, só foi possível localizar a de José Leal (nota 39). No dia seguinte, compareceu um antigo funcionário (já reformado) que deveria saber do seu paradeiro, mas mesmo assim não se encontrou nada! A outra CBA em falta é a de António Borges da Silva do Canto (nota 108). As suas reproduções enriqueceriam este trabalho, mas tal não foi possível apesar dos esforços feitos nesse sentido. Lamentamos o sucedido, mas a bem da cultura e da heráldica em particular esperamos que entretanto já tenham sido lo- 40 41 42 calizadas e repostas em seu devido lugar. Apesar destas contrariedades, damos a reprodução da página da iluminura da carta d’armas de António Borges da Silva do Canto, gentilmente cedida pelo Arq. Segismundo Pinto (Foto 56A). 39 A revista Tabardo nº.1/143 transcreve e analisa esta CBA de MANUEL CABRAL DE MELO (Doc. 8A). 40 CBA de 23.8.1620. Vide Elucidário Nobiliárquico 1º. Vol. pág. 236 onde está reproduzida. 41 Sobre a porta da Capela de Nª. Senhora da Salvação, na rua do mesmo nome na Ribeira Grande. (Foto 41). No Museu Carlos Machado está outra pedra de armas, em basalto, séc. XVII (nº. inv. 1318, Foto 42). Doc. 8A 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 127 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES FURTADO (de Mendonça) – 486 complemento LEAL – 30942 MELO / VELHO / CABRAL – 428 MENDONÇA – 401,412 PACHECO / MELO – 374 PEREIRA / ÁVILA / SARMENTO / ORTIZ – 378 PRIVADO / BRANDÃO – 381 SILVEIRA / LACERDA / PEREIRA / SARMENTO – 6943 TEIXEIRA – 29344 Doc. 9 VELHO/ AZEVEDO / REBELO – 408 VELHO/ CABRAL / TRAVASSOS / MELO – 410 42 JOSÉ LEAL. Esta Carta de Brasão de Armas encontra-se nos reservados da Biblioteca Pública e Arquivo de Angra do Heroísmo. A folha de pergaminho mede 507x 494 mm (Doc. 9). 43 Estas armas podem ser vistas na lage tumular de António da Silveira de Lacerda na Igreja de S. Francisco da Horta. A diferença é: um cardo verde, florido de vermelho. “Memória Genealógica das Famílias Faialenses, pág. 110” (Foto 43), e ainda na Rua da Conceição, 24 também na Horta. Esta pedra foi mandada fazer para ser colocada nesta casa, mas tal não aconteceu até aos dias de hoje. Encontra-se guardada na arrecadação (Foto 43A). 44 AHG nº. 940. 43 43a [127] UTRA – 254 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 128 IV EXTRAÍDAS DO ARCHIVO DOS AÇORES ARAÚJO – 10º.vol., pág. 45745 BORGES – 3º. vol., pág. 454 e 10º. vol., pág. 44646 BOTELHO – 10º. vol., pág. 47247 BOTELHO – 10º. vol., pág., 43948 BOTELHO / CABRAL – 10º. vol., pág. 46149 [128] 45 FRANCISCO DE ARAÚJO, Padre - CBA 3.11.1632 – Timbre de Araújo – Diferença: trifólio verde. No Museu Carlos Machado em Ponta Delgada está guardada uma pedra de armas que lhe é atribuída (nº. inv. 1319, Foto 44). 46 ANTÓNIO BORGES SOUSA – CBA 23.10.1550 – Timbre de Borges – Diferença: crescente de prata. O armigerado é o mesmo que se regista no AHG nº.118, sendo aqui a CBA de 13.4.1535. 47 JORGE NUNES BOTELHO – CBA 20.2.1533 – Timbre de Botelho – Diferença: flor-de-lis de prata. 48 ANTÓNIO BOTELHO DE SAMPAIO E ARRUDA – CBA 20.6.1747 – Timbre de Botelho – Diferença: brica de azul com um farpão de prata. 44 CORREIA / RAPOSO/ RAPOSO / CORREIA – 11º.vol., pág. 45950 CORREIA / SPÍNOLA / CUNHA / SILVEIRA – 10º. vol., pág., 44351 COSTA / CORREIA / REBELO / SILVEIRA – 10º. vol., pág. 47452 FAGUNDES / SOUSA (de Arronches) / MACHADO / AZEVEDO (dos Senhores de S. João de Rei) – 10º. vol., pág. 47653 FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO – 10º. vol., pág. 45854 49 FRANCISCO PEREIRA DE BETTENCOURT – CBA 12.12.1738 – Timbre de Botelho – Diferença: brica de azul com um trifólio de ouro. 50 AIRES JÁCOME CORRÊA – CBA 9.7.1586 – Timbre de Correia – Diferença: muleta de negro. 51 ANTÓNIO DA CUNHA E SILVEIRA – CBA 25.1.1719 – Timbre de Correia – Diferença: estrela de prata. 52 JOSÉ CAETANO DA COSTA CORREIA – CBA 5.12.1740 – Timbre de Costa – Diferença: brica de ouro com um trifólio de azul. 53 LOPO GIL FAGUNDES DE SOUSA – CBA 6.8.1624 – Timbre de Fagundes – Diferença: um trifólio de verde. 54 Ao Exmo. Senhor Engº. FRANCISCO MACHADO DE FARIA E MAIA agradeço muito sensibilizado a forma cordial como acedeu ao nosso pedido para a publicação da CBA de Francisco Machado de Faria e Maia, seu antepassado. TEXTO: Portugal / Rey Darmas principal, nestes Rey / nos & Senhorios de Portugal, do m / uyto alto & poderozo Rey D. Jo / aõ o V nosso Senhor por graça de / Deos Rey de Portugal, & dos Al / garves, daquém & dalém mar em África, Senhor / de Guiné, & da Conquista, Navegação do co / comercio da Ethiopia, Arabia, Percia, & India &tc / Faço saber aquantos esta minha carta & certidão de / Brazaõ Darmas fidalguia & nobreza digna de fé / & crença virem que por parte de Francisco Macha / do de Faria & Maya Cappitaõ mor da Villa da La / Goa, natural da Ilha de São Miguel, me foi feita / petiçaõ dizendo que pella sentença junta que / oferecia pasada em nome de sua Magestade & / pella Chancelaria da Corte, pello Doutor Mano / el Alvres Pereyra do seu dezembargo, & seu De / zembargador em esta sua Corte & caza da suppli / caçaõ, corregedor com alçada dos feitos & cau / zás siveis em ella, constava ser o supplicante dês / cendente das nobres & illustres famillias dos: / Farias, Machados, Cabraes, & Mellos, que neste / Reyno saõ fifalgos antigos de cota darmas por / ser filho legitimo de, / F Rancisco Machado de Faria, & de / Marianna Cabral de Mello das 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 129 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES pri / cipaes pessoas da dita Ilha, neto / de Antonio Faria Maya, & de sua / mulher Margarida Monis filha / de Francisco Lopes Monis, & de / sua Mulher Catherina Luis. Bisneto pella par / te paterna de Antonio Lopes de Faria, & de / sua mulher Anna Pimentel & de Izabel Ca / bral, terceiro neto de Joaõ Machado Carmena / natural da Villa de Barcellos, & de sua mulher / Catherina de Faria, quarto neto de Gaspar Ma / chado, & de sua mulher Ignes de Barros digo / & de sua mulher Catherina de Faria, quinto / neto de Gaspar Machado & de sua mulher Ig / Ignes de Barros. Sexto neto de Joaõ Carmena, & de / sua mulher Leonor Machado filha de Lopo Macha / do de Goes, & de sua mulher Brites Vasques Gonçal / ves da Maya, & neta de Fernão Alves da Maya, / senhor de Trofa, & de sua mulher D. Guiomar de / Sá, & que o dito Lopo Machado de Goes he filho / de Diogo Pires Machado que viveo em Barcellos, e / tempo dos senhores Reys D. Joaõ o I. D. Duarte & / D. Affonço o V & neto de Percial Machado; bisneto / de Gonçallo Machado que teve o Castello de Lanho / zo, o qual Gonçallo Machado he também progeni / tor dos senhores da Louza entre homem & cava / do, que hoje saõ Marquezes de Montebello, & ter / ceiro neto de Alvaro Pires Machado. Quarto neto / de Lourenço Pires Machado Alcayde mor de Vi / zeu, & de huma neta do Conde D. Mendo Souzaõ / & quinto neto de Diogo Pires Machado em bai / xador a Casella pello senhor Rey D. Denis, & sex / to neto de Álvaro Pires Machado que teve o / Castello de Rodrigo & Prellino de Almandra; se / timo neto de Pedro Martins Machado que viveu / em tempo do senhor Rey D. Sancho Capello, & / e de sua mulher D. Filipa Leytaõ irman do mestre / de Avis D. Joaõ Affonço Mendes de Penadarga, & / de sua mulher Joanna Gonçalves Leytaõ, filhos / de Gonçallo Leytaõ, & de sua mulher D. Maria / Esteves Facacheira, os ques todos erao fidalgos / muyto honrados, & das milhores famillias que / havia neste Reyno, dos quaes todos descende elle / suplicante, & que sempre se trataraõ a ley da No / breza com cavallos & criados, sem que nelles ou / veçe raça de Judeo, Mouro, Mullato, ou de outra / infecta naçaõ, & por tal lhe estava julgado na dita sen / tença, & por senaõ perder a memória de seus proge / nitores, & de sua antiga fidalguia & nobreza, que / ria elle para concervaçaõ della hum Brazaõ Dar / mas pertencente as ditas famillias dos [129] Doc. 10 Farias, Ma / chados, Cabraes, & Mellos. / PEllo que me pedia lhe mandaçe pas / sar sua carta de Brazaõ Darmas em / forma assim como elle as havia de / trazer & dellas uzar. E vista a dita / sua petiçaõ, & sentença que fica no / Cartorio da Nobreza, & por ella com / sta estar o supplicante julgado por legitimo descen / te das ditas famillias, pello aver assim provado, & / justificado largamente na dita sentença, da qual / achei deduzido todo o contheudo na dita petiçaõ / em virtude da qual provi o livro da fidalguia & / nobreza do Reyno que em meu poder tenho, & nelle acheiregistadas as armas que as ditas linha / gens pertencem, que saõ as que nesta lhe dou, de / vizadas & illuminadas, a saber. Hum escudo esquartellado, no primei / ro quartel, as armas dos Farias, que / saõ: em campo vermelho huma tor / re de prata, laurada de preto, entre / duas flores de Lis de prata, & três / em chefe. No segundo quartel as / armas dos Machados que saõ em campo vermelho / sinco Machados de prata em aspa, coureabos douro / No terceiro quartel as armas dos Cabraes que saõ / em campo de prata duas Cabras de púrpura pas / savantes em faxa. No quarto quartel, as armas dos / Mellos que saõ em campo vermelho seis bazante de / prata entre huma crus dobre de ouro & huma bor / dadura do mesmo. Elmo de prata aberto guarneci / do de ouro. Paquife dos metaes & cores das ar / mas. Timbre o dos Farias, que a mesma torre as / armas com huma flor de Lis sobre as ameyas, & por / diferença huma brica de ouro, & nella hum trifolio / preto. E porque estas saõ as armas que as ditas linha / gens pertencem eu Manoel Leal Rey Darmas Por / tugal & principal com o poder do meu muyto no / bre & Real officio lhas dou, & asino, assim como / vaõ no dito escudo as quaes armas poderá usar co / mo acto & perrogativa de sua nobreza & fidalguia / & com ellas gozar de todas as graças, merçes, honras / & previlegios que pellos senhores Reys deste Reyno / foraõ concedidos aos fidalgos & nobres delle, & com ellas poderá em batalhas, justas, & torneios, & em to / dos, & quaes quer actos assim da pax como da guer / ra, & em tudo que licito & honesto for, & as poderá / trazer em suas baixellas, resposteiros, anéis, & senetes / & nos portaes de suas cazas & quintas & deixallas / sobre sua própria sepultura, & finalmente servindoçe / & honrandoçe dellas como a sua nobreza & fidal / guia convem, & como fazem os 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:14 AM Page 130 FRANCO / CARDOSO / COSTA / PINTO – 10º. vol., pág. 48355 MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO – 10º. vol., pág. 45056 MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO – 10º. vol., pág. 45557 MENDONÇA – 10º.vol., pág. 48158 PEREIRA – 10º. vol., pág. 47959 SODRÉ – 10º. vol., pág. 44960 SOUSA (do Prado) / MACHADO / FAGUNDES / FONSECA – 10º.vol., pág. 46361 SOUSA (do Prado) / SOARES (de Albergaria) / VELHO / CABRAL – 10º.vol., pág. 44862 45 46 VELHO / SOUSA (de Arronches) / SOUSA (de Arronches) / VELHO – 10º.vol., pág. 47163 [130] mais fidalgos & / nobres deste Reyno./ PEllo q requeiro a todos os Dazebargado / res, Corregedores, Ouvidores, Juizes & / mais Justiças de sua Mag. Da parte do dito / senhor & da minha por bem do officio / q tenho, & em especial mado aos offi / ciaes da nobreza como Juis q sou della / Reys Darmas, Arautos & Passavantes, a cupraõ, & façaõ in / teiramente cumprir & guardar, assim como por mim / he determinado & julgado, & por firmeza de tudo vai / por mim asinada com o sinal publico do nome do / meu officio. Dada nesta Corte & Cidade de Lisboa / Occidental, aos vinte dias do mês de Dezembro do / anno do nascimento de nosso senhor Jezu Christo / de mil & setecentos & vinte quatro. / Frey Jozeph da Crus da ordem de saõ Paulo Refor / mador do Cartorio da nobreza a fés, por especial / prouvizaõ de sua Mag. Que Deos guarde, & vai sob / escrita por Simaõ da Silva Lamberto, escrivaõ / da nobreza nestes Reynos & senhorios de Portu / gal & suas Conquistas. Fica registado este Brazaõ no livro … de Registo dos Brazões da Nobreza de Por / tugal a fl.347 Lisboa Occidental aos / 22 dias do mês de Dezembro de 1724. / Joseph da Cruz Principal / Rey. Registe-se. Governo Civil do / Districto de Ponta Delgada 9 de / Março de 1874 / O Governador Civil / Conde da Praia da Victoria / Reg.da no Livro res/ pectivo de f.s 1 a 4. - / Secretaria do Governo / Civil do Districto de / Ponta Delgada 9 de Mar- / ço de 1874 / O Amanuense / Antonio do Canto e Vas.os da Camara Falcão /. (Doc.10) 55 TOMÁS FRANCO DA COSTA – CBA 7.11.1719 – Timbre de Franco – Diferença: estrela de azul. Escudo d’armas que se pode ver a decorar a almofada frontal de uma cadeirinha existente no Museu de Angra do Heroísmo (Foto 45). 56 BELCHIOR DE RESENDES E MOURA – CBA 13.11.1721 – Timbre de Melo – Diferença: brica de azul com um trifólio de prata. 57 FERNANDO DE LOURA BETTENCOURT – CBA 13.4.1707 – Timbre de Melo – Diferença: uma flor-de-lis de ouro. 58 MUNDOS FURTADO DE MENDONÇA – CBA 1519 – Timbre de Mendonça – Diferença: merleta de negro. Veja-se com proveito o trabalho de Manuel Lamas de Mendonça “Os Furtado de Mendonça Portugueses”. 59 LUÍS PEREIRA DE ORTA – CBA 27.4.1630 – Timbre de Pereira – Diferença: estrela de ouro. 60 BARTOLOMEU CORDEIRO – CBA 23.9.1619 – Timbre: não indica – Diferença: flor-de-lis de ouro. 61 FRANCISCO DE SOUSA MACHADO – CBA 10.10.1687 – Timbre de Sousa (do Prado) – Diferença: trifólio verde. 62 ANTÓNIO SOARES DE SOUSA FERREIRA BORGES E MEDEIROS – CBA 8.4.1739 – Timbre de Soares – Diferença: brica de vermelho com um farpão de ouro (Doc.11). e pode ser também vista uma representação heráldica destas armas na Rua Dr. Augusto Arruda, 16 na Fajã de Baixo em Ponta Delgada (Foto 46). 63 JOÃO SOARES DE SOUSA – CBA 18.6.1527 – Timbre de Velho – Diferença: flor-de-lis de ouro. 6/17/09 11:21 AM Page 131 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [131] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 11 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) [132] Doc. 11 6/17/09 11:21 AM Page 132 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 133 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES V EXTRAÍDAS DE NOBREZA DE PORTUGAL E BRASIL ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE – II / 67664 – III / 21965 ÁVILA – II / 348 66-67 BETTENCOURT – II / 41968 BORGES / MEDEIROS / CÂMARA / DIAS – III / 17769 (Praia) BOTELHO – II / 43170 [133] CÂMARA – III / 15571, III / 21972 64 MANUEL MEDEIROS DA COSTA CANTO E ALBUQUERQUE, Barão e Visconde de Laranjeiras. 65 FRANCISCO DE MEDEIROS COSTA E ALBUQUERQUE, Visconde da Ribeira do Paço. 66 ANTÓNIO JOSÉ DE ÁVILA, Conde de Ávila – CBA 9.10.1860. 67 ANTÓNIO JOSÉ DE ÁVILA, Marquês e Duque de Ávila e Bolama. No Ce- 69 ANTÓNIO BORGES DE MEDEIROS DIAS DA CÂMARA E SOUSA, Conde e Marquês de Praia e Monforte. No jazigo nº. 2901 da Rua 14 do Cemitério dos Prazeres em Lisboa, dos dois escudos aí representados o da direita reproduz o aqui mencionado. O da esquerda é da Casa Monforte (Foto 48). 70 NUNO GONÇALVES BOTELHO ARRUDA SOARES DE ALBERGARIA COUTINHO DE GUSMÃO, Visconde e Conde do Botelho – CBA 20.2.1533. 71 Dª. LEONOR DA CÂMARA, Marquesa de Ponta Delgada. mitério dos Prazeres em Lisboa – Rua 11 jazigo nº. 1860 estão representadas estas armas (Foto 47). 72 D. MANUEL BALTAZAR LUIS DA CÂMARA, Conde e Marquês da Ribei- 68 JOÃO DE BETTENCOURT DE VASCONCELOS E ÁVILA, Visconde de ra Grande. No Cemitério do Alto de Sº. João em Lisboa, Rua 4, jazigo nº. 596 estão representadas estas armas (Foto 49). Bettencourt. 47 48 49 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 134 CARREIRO / CASTRO (de seis arruelas) / CÂMARA / COUTINHO – III / 5673 CARVÃO / CÂMARA / FONSECA / PAIM – III / 18674 CASTRO (de seis arruelas) / MEIRELES / TÁVORA / CANTO (de Pero Anes) // CASTRO (de seis arruelas) – II / 72975 GAGO – II / 58777 GUERRA (das Astúrias) / RIBEIRO / PEREIRA / RIBEIRO – III / 29978 HOMEM – III / 5479 JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO – II / 65980 FREIRE / ALBERGARIA / GALHARDO / PEGADO // COUTINHO – III / 17776 (Monforte) [134] 73 JOSÉ MARIA DA CÂMARA COUTINHO CARREIRO DE CASTRO, Barão de Nossa Sª. da Saúde. A representação heráldica destas armas existe no Cemitério dos Prazeres em Lisboa – rua 13, jazigo nº. 1964 (Foto 50). 74 ANTÓNIO DA FONSECA CARVÃO PAIM DA CÂMARA, Barão de Ramalho. Timbre de Carvão. Estas armas podem ver-se na Quinta de São Tomás de Vila Nova – Caminho de Baixo, São Mateus em Angra do Heroísmo (Foto 51). 75 FRANCISCO DE MENESES MEIRELES DO CANTO E CASTRO, Visconde de Meireles. Timbre de Meireles. Divisa: “Auspicium meliores aevi”. No Cemitério dos Prazeres em Lisboa na Rua 1A, jazigo nº. 5761 vê-se a representação destas armas. (Foto 52). O sobre-o-todo é por vezes carregado com armas de Melo, e com esta particularidade também existe no mesmo cemitério na rua 33, jazigo nº. 3231 uma representação heráldica (Foto 53). 50 51 76 ANTÓNIO BORGES DE MEDEIROS DIAS DA CÂMARA E SOUSA, Conde e Marquês de Praia e Monforte. 77 AMÂNCIO DA SILVEIRA GAGO DA CÂMARA, Conde de Fenais – CBA 27.12.1902. 78 MANUEL ALVES GUERRA, Barão e Visconde de Santana. 79 PEDRO HOMEM DA COSTA NORONHA PONCE DE LEÃO, Barão e Visconde de Noronha. 80 PEDRO JÁCOME CORREIA, Conde e Marquês de Jácome Correia. 52 53 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 135 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS MASCARENHAS – III / 29281 MERCÊ NOVA – III / 31882 AÇORES PERRY – II / 68687 MIRANDA / SILVEIRA – II / 61183, III / 5584 PORTUGAL / MANUEL (antigo) / MELO / CÂMARA // FIGUEIREDO – III / 38588 PEREIRA / SÁ / SÁ / PEREIRA – II / 29485 REGO / BOTELHO / BETTENCOURT / CORTE-REAL – III / 20289 [135] PEREIRA / SOARES (de Albergaria) / CASTRO (de seis arruelas) / LACERDA – III / 5686 81 D. FRANCISCO DE MASCARENHAS, Conde e Marquês de Santa Cruz. No Museu das Flores encontra-se uma pedra com armas de Mascarenhas encimada por um coronel de conde. É proveniente da desaparecida Igreja dos Cedros e está cronografada na base: 1698. Estas armas serão muito provavelmente as usadas pelo capitão do Donatário das Flores e Conde de Santa Cruz (Foto 53A). 82 TEOTÓNIO BORGES DINIS, Barão de São Dinis – CBA 15.5.1874. Descreve-se: escudo esquartelado: I e IV. de azul, leão de ouro rompante; II. de ouro, banda de azul; III. de prata, cruz azul firmada no escudo; orla vermelha com dez flores-de-lis de ouro. Timbre: o leão. Existiu no Cemitério dos Prazeres em Lisboa até ser demolido em 1959 um jazigo – rua 2 nº. 1739 – com um escudo destas armas sotoposto a um manto de Par do Reino rematado por coronel de barão e respectivo timbre. 85 ANTÓNIO GARCIA DA ROSA, Barão de Areia Larga – CBA 12.3.1857 – Timbre de Pereira. No Cemitério do Alto de Sº. João em Lisboa – rua 17, jazigo 3096 – estão figuradas estas armas (Foto 54). 86 CÂNDIDO PACHECO DE MELO MENESES FORJAZ DE LACERDA, Barão e Visconde de Nossa Senhora das Mercês. 87 JOSÉ BRESSANE LEITE PERRY, Visconde de Leite Perry. 88 D. JOÃO DE MELO MANOEL DA CÂMARA, 1º. Conde da Silvã. 89 ANTÓNIO MARIA HOLTREMAN DO REGO BOTELHO DE FARIA, Conde de Rego Botelho. 83 JACINTO INÁCIO RODRIGUES DA SILVEIRA, Barão e Conde de Fonte Bela. 84 MANUEL INÁCIO DA SILVEIRA, Barão de Nossa Senhora da Oliveira. 53a 54 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 136 VI EXTRAÍDAS DE PUBLICAÇÕES VÁRIAS AMARAL /CASTELO-BRANCO/CASTELO-BRANCO/AMARAL Instituto Histórico da Ilha Terceira, nº.37 (1979), pág. 8790 ESPINOLA – Nobreza da Ilha Terceira, II vol., pág. 1394 ÁVILA (outros) / BETTENCOURT/ PEIXOTO/ CARVALHO – Os Morgados das Lajes, pág. 1991 FERNANDES / BALIEIRO / VIEGAS / ATAÍDE – Nobiliário da Ilha Terceira, II vol., pág. 1495 CARVALHO/ REZENDE/ CORREIA/ PEREIRA – Armas & Troféus, 1977 - nº. 2, pág. 15892 CORREIA / MELO – Nobiliário da Ilha Terceira, I vol., pág. 33293 [136] 90 BERNARDO DO AMARAL DE CASTELO-BRANCO – CBA 9.4.1590 – Timbre de Amaral – Diferença: cardo florido de prata. Esta CBA encontra-se na Biblioteca de Angra do Heroísmo. 91 FRANCISCO BRUM DA SILVEIRA – CBA 4.4.1718 – Timbre de Ávila – Diferença: trifólio de púrpura. 92 HILÁRIO DE CARVALHO RESENDE – CBA 6.10.1795. Não indica o timbre nem a diferença. 93 ANTÓNIO CORREIA – CBA 1544. Não indica o timbre nem a diferença. 94 JOÃO ESPINOLA DA VEIGA – CBA 1617 – Diferença: brica quadrada de verde. 95 Muito reconhecido agradeço à Exma. Senhora Dona LUÍSA MARGARIDA GAGO DA CÂMARA a forma aberta e cordial com que nos franqueou as portas de sua casa, e a imediata autorização para a publicação de três CBA de seus antepassados: MANOEL FERNANDES BALLIEIRO, BARTOLOMEU ÁLVARO DE BETTENCOURT e ANTÓNIO DA CUNHA DA SILVEIRA BETTENCOURT. MANUEL FERNANDES BALIEIRO – TEXTO: PORTUGAL REY / DE Armas Principal, nestes / Reynos de Portugal, do / muynto alto & poderozo / Rey D. João o V. nosso senhor, por / graça de Deos Rey de Portugal & dos Al/ garves, da quem & dalem mar em Africa / Senhor de Guiné & da Comquista nave- / gação Comercio da Ethyopia, Arabia, Per- / cia & India; &C. / Faço saber aquantos esta minha / carta & certidão de Brazão de / Armas fidalguia, & nobreza, / digna de fé & crença virem / que por parte de Manoel Fernandes / Ballieiro fidalgo da caza de sua Mag. / natural da Villa de Santa Crus da Ilha / Gracioza huma dos Assores me foy / feita petiçaõ dizendo que pella sentença / junta que offerecia passada em nome / de sua Magestade & pella Chancella- / ria da corte pello doutor Pedro de Al- / meida do Amaral, so seu dezembargo / & seu dezembargador em esta sua cor / te & caza da suplicação corregedor / com alçada dos feitos & cauzas siveis / em ella, constava ser o suplicante desce/ dente das nobres & illustres familias / dos Fernandes, Ballieiros, Viegas, & Ata/ ides, Correias, Espinolas, Cunhas, & / Silveiras, que neste Reyno são fidalgos / antigos de Cota de Armas, por ser filho / legitimo do Capitão Manoel Fernan- / des Balieiro fidalgo da Caza de sua Mag. / Ouvidor Geral das Justiças seculares em / toda a dita Ilha Gracioza, & de sua mu- / lher D. Maria de Souza & Ataide, / dos quais tambem nacerão Felix Cor- / reia Picanço fidalgo da Caza de sua / Mag. Que foi cazado com D. Maria / Ribeira Seca, filha de Manoel de Vas- / concellos de Mendonça Sargento- / mor que foi em toda a dita Ilha, oP. Fra / cisco Gil da Silveira beneficiado com- / firmado na Matris da dita Villa, & o- / doutor Antonio da Cunha & Silvei / ra, do dezembargo de sua Mag. & Ju / is de fora que foi da Ilha de S. Miguel / & Corregedor da de S. Maria, todos cõ / o foro de fidalgos da Caza de sua Mag. / Neto pella parte paterna de Francisco / Fernandes Ballieiro & de sua mulher / D. Pal, digo D. Paula Espinola Bisne- / to de Pedro Fernandes Ballieiro, & de sua mulher, D. Maria Picança Cor / reia dos quais nacerão o P. Manoel / Fernandes Ballieiro & o P. Pedro- / Correia Picanço Ouvidor do Eclesiastico, / em toda a dita Ilha & nella vezitador Ge- / ral & comissario do Santo Officio; Terceiro / neto de Sebastião Vas das Figueiras, que / ocupou o lugar Tenente do donatário, / & Alcaide mor da dita Ilha, & de sua / mulher Maria Correia Picanço. Quarto / neto de Antonio Zuzarte & de sua um/ lher Concordia Correia Picanço; Quin / to neto de Bertholameu Dias Picanço / & de sua mulher Margarida Affonço / de Lira; Sexto neto de Diogo Affon- / ço Picanço & de sua mulher Maria Af / fonço de Mideiros; Setimo neto de / Martim Affonço Picanço, & de sua mu / lher Margarida Correia, naturais que / forão do Reyno do Algarve, & que o / dito seu sétimo avo Martim Affonco, / he descendente de D. Paio Pires Corre / ia, que ajudou a conquistar o dito Rey- / no do Algarve, do poder dos mouros, / em tempo da Mag. do senhor D. Affon / ço terceiro, & que por parte de sua avó / paterna D. Paula Espinola he bisneto / de Antonio Lobaõ da Foncequa & de / sua mulher Beatris da Costa Espinola / Terceiro neto do Capitão Pedro Espino- / lla da Veiga, & de sua mulher Leonor / Vas de Mendonça. Quarto neto de / Manoel Pires Figueiroa, natural & Cidadão 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 137 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES da Cidade do Porto; & capi- / taõ mor da ditta Ilha Gracioza, & de / sua mulher Paula Espinola da Veiga / a qual foi irmã de Reynaldo Espino / la & Leão Espinola que tambem foi / Capitão mor na mesma Ilha & de Fa- / bricio Espinola de quem nasceu João / Espinola o qual teve Brazão de Ar / mas passado no anno de 1617. os qua / is todos tiverão o foro de fidalgos da / caza de sua M. Quinto neto de Pedro / Espinola Doria fidalgo da caza de sua / M. & de sua molher D. Catherina / da Veiga. Sexto neto de Antonio / Espinola Doria fidalgo genoves, na- / tural & morador que foi na dita Ilha da / Madeira; Setimo neto de Marcelino / Espinola, tambem genoves sendo / todos fidalgos de grande calidade & / caza na Republica; & pella parte / digo, na Republica de Genova & / pella parte materna, neto de Pedro / Machado Paralta, & de D. Catherina / da Cunha Silveyra; Bisneto de Fran- / cisco Vellozo Paralta; Terceiro neto / de Gaspar Vellozo Paralta, irmão in- / teiro de Anna Vellozo mulher que / foi de Manoel de Quadros Macha- / do Capitão mor na Villa de S. Crus / da dita Ilha Gracioza, & por parte / da avó materna D. Catherina da Cu- / nha & Silveyra he bisneto de Sebas / tião Viegas de Athaide, & de sua mu- / lher D. Maria Alves da Cunha. Ter / ceiro neto de Diogo Viegas de Atai- / de Capitão mor que foi na dita Ilha / Gracioza & Provedor dos Rezidos, / na Comarqua das Ilhas de baixo- / Quarto neto de Gallas Viegas de / Ataide; Quinto neto de Pedro Vas / Viegas de Ataide, o qual teve o Bra- / zão das ditas Armas passado no anno / de 1542 & foi fidalgo da Caza de sua / Mag. Cavaleiro profeço da Ordem de / Christo, & de sua mulher Leonor Gil / da Silveira; & que Ruy Viegas de Ata / ide irmão de seu quarto avo teve o / Brazão das ditas Armas passado no / Anno de 1585. Sexto neto de Ruy Vie / gas de Ataide & do doutor Gil Rodri / gues da Silveira, que foi do dezembargo de S.M./ Dos quais todos descendia elle / suplicante & q sempre se tra / tarão a ley da nobreza com / cavallos, & armas & criados / sem que nelles ouvecçe raça de judeo, / mouro, ou mullato, ou de outra infec- / ta naçaõ, & por tal lhe estava julgado / na dita sentença & por se não perder / a memoria de seus progenitores, & de / sua antiga fidalguia & nobreza que / ria elle para concervação della hum / Brazão de Armas pertencente as ditas / familias, dos Fernandes Ballieiro, / Viegas, Ataides, Correias, Espinollas, / [137] Doc. 12 Cunhas & Silveiras: pello que me pe- / dia lhe mandace passar carta de Brazão / de Armas em forma assim como elle, / as havia de trazer & dellas usar. / E vista a dita sua petição & sentença / & mais documentos nella incertos, / q. ficao no Cartorio da nobreza & / por ella consta estar o suplicante jul- / gado por legitimo descendente das ditas / familias pello haver asim provado & justi / ficado largamente na dita sentença da / qual achei deduzido todo o contheudo / na dita petição em verdade da qual pro- / vi o livro da fidalguia & nobreza do / Reyno q. em meu poder tenho, & nelle / achei rezistadas as Armas que as ditas / linhagens pertencem das quais tinhaõ / tirado brazões dellas os ditos seus ascen/ dentes, que são as que nesta lhe dou de / vizadas & illuminadas; a saber / Hum escudo posto ao balon es- / quartelado, no primeiro quar- / tel as Armas dos Fernandes, / que são, em campo azul hu- / ma torre de ouro lavrada de preto com / coatro pessas de artelharia; no segudo / quartel as Armas dos Ballieiros q. são / em campo azul huma banda de ouro / & nella tres rozas vermelhas, entre / dois Castellos de prata & no fim do / escudo humas hondas de agoas de pra / ta & azul, no terceiro quartel as Ar- / mas dos Viegas q. são escudo esquar/ tellado, no primeiro & quarto quar- / tel, em campo vermelho huma Aguia / de ouro, no segundo & terceiro quar- / tel em campo de prata tres flores de / lis azuis postas em roquete, no quarto / quartel as Armas dos Ataides, que são / em campo azul quatro barras de prata. / Elmo de prata aberto guarnecido de ouro. / Paquife dos metais & cores das Armas. / Timbre o dos Fernandes, que he a mês / ma torre das Armas & por diferença, / hum trifólio de prata. / E porque estas são as Armas que /as ditas linhagens pertencem / eu Manoel Leal Rey de Ar- / mas Portugal, & principal, / com o poder do meu muito nobre & / Real Officio, lhas dou & asino, para elle / & todos seus descendentes, assim como / vão no dito escudo; as quais armas po- / dera usar como acto & perrogativa de / sua nobreza, & fidalguia, & com ellas / gozar de todas as graças, merces, hon- / ras previllegios que pellos senhores / Reys deste Reyno forão concedidos a / os fidalgos & nobres dlle, & em es- / pecial, aos das ditas geraçoens, & / com ellas podera entrar em batalhas, jus- / tas, & torneios, & em todos & quais / quer actos assim da paz, como da guer- / ra, & em tudo que licito 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 138 LOBO – Genealogia & Heráldica, 5/6 Tomo I, pág. 24596 PAÍM – Atlântida, Órgão do Instituto Açoriano de Cultura nº. 23, pág. 147101 MACHADO – Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, nº. 34 (1976), pág. 7897 e nº.37 ( 1979 ), pág. 8598 PEIXOTO/ PEREIRA/ BETTENCOURT/SILVEIRA – Nobiliário da Ilha Terceira, I vol., pág. 191102 MACHADO – Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, nº. 34 (1976), pág. 8099 PESTANA / BETTENCOURT/ CORREIA / VASCONCELOS – MACHADO / TELES – Cerâmica Brazonada, 2º. vol., pág. 96100 Boletim do Museu de Etnografia da Ilha Graciosa, nº. 2 pág. 18 e 19 – Dezembro 1987103 PICANÇO – Atlântida – Órgão do Instituto Açoriano de Cultura nº.21, (1977), pág. 189104 [138] & honesto for / & as podera trazer em suas baixellas, / resposteiros, Aneis, & senetes, & nos / portais de suas cazas & quintas, & deixalas sobre sua propia sepultura. / & finalmente servindoce & honran- / doce dellas, como a sua nobreza & fi / dalguia convem & como fazem os / mais fidalgos & nobres deste Reyno / Pello que requeiro a todos os Deze- / bargadores, Corregedores, Ouvidores, / Juizes & mais justiças de S. M. da par- / te do dito senhor, & da minha por be / do Officio que tenho, & em especial / mando aos officiais da nobreza, como / juis que sou della Reys de Armas, / Arautos, & Passavantes, a cumprão / & fação inteiramente comprir & / guardar assim como por mim he / determinado & julgado. / E por firmeza de tudo vai por mim / asinada, com o sinal publico do no- / me do meu Officio. Dada nesta Corte / & Cidade de Lisboa Occidental em / dezasete de Janeiro de 1720. Fr. Jozeph / da Crus Paulino, a fes por Joseph Du- / arte Salvado ,Cavaleiro da Caza Real, / escrivão da nobreza nestes Reynos, / & Senhorios de Portugal. Eu Joseph Du / arte Salvado a fis escrever e sobescrevi. / Fica Registado este Brazão no Livro / Quinto do Registo dos Brazoenz da No- / breza de Portugal, a fol. 1. Lisboa Occi- / dental em 17 de Janeiro de 1720. / Joseph Duarte Salvado (Doc. 12). 101 DIOGO PAÍM – CBA 20.3.1533 – Timbre de Paim. Está sepultado na capela de Nª. Senhora da Conceição da Igreja Matriz da Praia da Vitória onde no fecho do arco da referida capela se vêem as suas armas (Foto 55). 102 VICENTE ANTÓNIO DA SILVEIRA PEIXOTO PEREIRA – CBA 10.11.1749 – Timbre de Peixoto – Diferença: brica de vermelho com uma estrela de negro. 103 PEDRO CORREIA DE VASCONCELOS – CBA 4.6.1613 – Timbre de Pestana. 104 SEBASTIÃO DIAS (PICANÇO) – CBA 22.2.1506 – Não indica o timbre nem a diferença. 96 ANDRÉ LOPES LOBO – CBA 12.8.1505 – Não indica o timbre nem a diferença. 97 PEDRO DE ANDRADE MACHADO – CBA 3.8.1631 – Timbre de Machado – Diferença: meia brica de ouro carregada de um cardo de verde. 98 ANTÓNIO FERREIRA MACHADO – CBA 9.11.1612 – Timbre de Machado – Diferença: brica de prata, com um “I” de negro. 99 SIMÃO DE ANDRADE MACHADO – CBA 1549. Não indica o timbre nem a diferença. 100 ANTÓNIO TELES MACHADO – CBA 4.7.1763 – Timbre de Machado – Diferença: brica de ouro com um “M” de negro. 55 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 139 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS SÁ / SILVEIRA / BORGES / CORTE-REAL - Nobiliário da Ilha Terceira, II vol., pág. 344105 SAMPAIO – Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, nº.36, (1978), pág. 393.106 AÇORES TEIVE / VASCONCELOS – Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, nº.35, (1977), pág. 5112 VASCONCELOS - Nobiliário da Ilha Terceira, II vol., pág. 438113 SILVEIRA / BETTENCOURT / HOMEM / COSTA – Cartas de Brasão de Armas, II vol, pág. 260107 SILVEIRA / MEDEIROS / MEDEIROS/ SILVEIRA - Armas & Troféus, 1998, pág. 71108 SOUSA (de Arronches) /COELHO/COSTA/FERREIRA – Cartas de Brasão de Armas, II vol, pág. 46109 SOUSA (de Arronches) /CORTE-REAL/ SILVA/ MELO – Nobiliário da Ilha Terceira, II vol., pág. 78110 SOUSA (de Arronches) /PICANÇO/MELO/ CORREIA – Cartas de Brasão de Armas, II vol, pág. 310111 [139] 56 105 FRANCISCO INÁCIO DE SÁ E SILVEIRA BORGES CORTE-REAL – CBA 12.4.1725 – Timbre de Sá – Diferença: trifólio de negro. 106 RUI DIAS DE SAMPAIO – CBA 18.2.1560 – Diferença: cardo verde florido de azul. 107 LUIS HOMEM DA COSTA E SILVEIRA – CBA sem data. 108 JOSÉ RODRIGUES DA SILVA – CBA 11.8.1764. Não indica o timbre nem a diferença. 109 ANTÓNIO COELHO DA COSTA – CBA sem data. Na pedra de armas existente nos “reservados” do Museu de Angra, a diferença é: brica de ….. com uma flor-de-lis de …….. (Foto 56). 110 ANTÓNIO BORGES DA SILVA DO CANTO – CBA 20.11.1724 – Timbre de Sousa (de Arronches) – Diferença: brica de ouro carregada de uma merleta de negro. O original desta CBA encontra-se na BPAAH – Arquivo do Conde da Vila da Praia da Vitória (vide nota 35 e Foto 56A). 111 Ver Estudos Heráldicos III. 112 JOÃO JOSÉ DE TEIVE E VASCONCELOS DA GAMA – CBA 15.9.1749 – Timbre de Teive – Diferença: brica de azul com um farpão de ouro. 113 GONÇALO MENDES DE VASCONCELOS – CBA 1511. Não indica o timbre nem a diferença. 56a 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 140 VII INÉDITAS BETTENCOURT 114 BETTENCOURT / CUNHA / SILVEIRA – António da Cunha da Silveira Bettencourt115 SOARES (de Albergaria) / SOUSA (do Prado) / PEREIRA / SILVEIRA – João Soares de Albergaria116 [140] 114 BARTOLOMEU ÁLVARO DE BETTENCOURT – TEXTO: D JOAÕ / Por Graça de Deos Pricipe Re / gente de Portugal, e dos Algarves / da quem, e dalém Mar em Afri / ca Senhor de Guinè da Conquis / ta Navegaçaõ do Commercio da / Ethiopia Arábia Pérsia, e da Índia () Faço saber aos / q’ esta Minha Carta de Brazão de Armas de Nobre / za , e Fidalguia virem q’ o Capitão Mor, e Comman / dante da Villa da Praya da Ilha Gracioza Bartholo / meu Álvaro de Bitancort natural da dita Ilha, Me / fez Petição dizendo q’ pela Sentença de Justifi / cação de sua Nobreza a ella junta proferida pelo / Meu Dezembargador Corregedor do Cível da Cor / te e Caza da Suplicação Antonio Xavier da Costa / Sameiro, Cavalleiro Proffeço na Ordem de Christo, / sobscripta por Matheus Gonçalves da Costa, Escrivão / do mesmo Juízo, e pelos Documentos a ella também jun / os, se mostrava q elle he descendente das principaes / famílias da dita Ilha, e q tanto seu Pai como seus Avós / Paternos e Maternos se tratarão à Lei da Nobreza / com Armas Cavalos, e Creados e toda a mais ostenta / cão pertencente á mesma Nobreza, servindo no Po / lítico, e no Militar os Postos mais destintos do Go / verno, sem q em tempo algum cometessem Crime / de Leza Magestade Devina ou Humana, tendo al / guns delles seus Brazoens de Armas, assim como seu / quarto Avo Pedro Espinola Dória o Foro de Fidalgo / Escudeiro da Caza Real, e por taes havidos, e reputados: Pelo / q me pedia elle suplicante por Mercê q para a memoria de / seus Progenitores se não perder, e clareza de sua antiga / Nobreza lhe mandasse dar Minha Carta de Brazão de Ar / mas da dita família de Betancourt, para dellas também / uzar na forma q as trouxerão, e forão concedidas aos ditos se / us Progenitores. E vista por Mim a dita sua Petiçaõ Senten / ça, e Documentos, e constar de tudo o referido, o referido, e que / a elle como descendente da mencionada família lhe pertence / uzar, e gozar de suas Armas segundo o meu Regimento, e Orde / naçaõ da Armaria lhe Mandei passar esta Minha Carta de Bra / zaõ dellas na forma que aqui vão Brazonadas, e illuminadas com / Cores e Metaes segundo se achaõ Registadas no Livro do Registo das / Armas da Nobreza e Fidalguia dos Meus Reinos q tem Portu / gal Meu Principal Rei de Armas. A saber hum Escudo com as / Armas dos Betancoures que saõ em Campo de prata hum Leaõ / de preto rompente, armado de Vermilho. Elmo de prata aberto / guarnecido de ouro Paquife dos Metaes, e Cores das Armas. Tim / bre o mesmo Leaõ das Armas, e por diferença huma brica ver / melha com hum farpaõ de ouro. O qual Escudo, e Armas pode / rá trazer, e usar o dito Bartholomeu Álvaro de Betancourt, as / sim como as troxeraõ, e uzaraõ, e uzaraõ os ditos Nobres, e antigos Fidal / gos seus Antepassados em tempo dos Senhores reys Meus / Antecessores, e com ellas poderá entrar em Batalhas, Campos, / Reptos, Escaramuças, e exercitar todos os mais actos licios / da guerra, e da Paz. E assim mesmo as poderá trazer em seus Fir / mães Anéis Sinetes, e Devizas, pollas em suas Cazas Capellas, / e mais Edifícios, e deixalas sobre sua própria Sepultura, e final / mente se poderá servir, honrar, gozar aproveitar dellas em to / do, e por todo como a sua Nobreza convem. Com o que Quero / e me Prás que haja elle todas as Honras, Privilégios, Liberdades / Graças Mercês Izençoes, e Franquezas que hão, e devem ha / ver os Fidalgos, e nobres de Antiga Linhagem, e como sempre / de todo uzarão, e gozarão os ditos seus Antepassados pelo que / Mando aos Meus Dezembargadores, Corregedores, Provedores, / Ouvidores, Juízes, e mais Justiças de Meus Reinos, e Senhorios, e / em especial aos Meus Reys de Armas Arautos, e Passavantes, e a / quaisquer outros Officiais, e pessoas a quem esta Minha Carta / for mostrada, e o conhecimento della pertencer lha cumprão, e guar / dem como nella se contem sem duvida nem embargo algum q / em ella lhe seja posto porque assim he Minha Mercê. O Príncipe / Regente Nosso Senhor o Mandou por Izidoro da Costa e Olivei / ra Proffeço na Ordem de Christo Escudeiro Cavalleiro de sua Caza / Real, e seu Rey de Armas Portugal Antonio Bernardo Cardozo / Peçanha de Castel branco Cavalleiro Proffeço na Ordem de Sant / iago da Espada, e Escrivão da Nobreza a fez em a Corte do Rio / de Janeiro aos Vinte dias do mez de Abril do Anno do Nasci / mento de Nosso Senhor JEZUS CHRISTO de mil outo / centos e onze. Registada 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 141 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS Doc. 13 no livro 1º. do Registo dos Brazões / de Armas da Nobreza e Fidalguia /do Reino e suas Conquistas a fl. 1 /Rio de Janeiro 26 de Abril de / 1811./ Antº. Berdº. Cardº. Peçª. d Castel Branco (Doc. 13). No momento da revisão tivemos conhecimento de que esta CBA já tinha sido publicada por Nuno Borrego no 2º. volume da sua obra Cartas de Brasão de Armas, sob o nº. 78. Aproveito esta oportunidade para publicamente agradecer a Nuno Borrego o seu inestimável contributo para a divulgação e sistemática inventariação das Cartas de Brasão d’ Armas. 115 Ver Estudos Heráldicos I. 116 Ver Estudos Heráldicos II. AÇORES [141] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 142 VIII ALVARÁS DO CONSELHO DE NOBREZA ALBUQUERQUE117-118-119-120 BORGES / FARIA / MACHADO / BETTENCOURT130 ALBUQUERQUE / PEREIRA / ATAÍDE / ANDRADE121 ATAÍDE / CORTE-REAL / CORTE-REAL / ATAÍDE122-123-124 CÂMARA / ORNELAS131-132-133 CÂMARA / ORNELAS / ORNELAS / CÂMARA134 BETTENCOURT / CORREIA / VASCONCELOS / ÁVILA125 BETTENCOURT / HOMEM / ORNELAS / PAÍM126 COSTA / BORGES / CANTO / SILVEIRA (de Willelm van der Haegen)135-136 BETTENCOURT / NORONHA / PERESTRELO / CÂMARA127 [142] BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto)128-129 FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO137 117 DUARTE DINIS DE ANDRADE DE ALBUQUERQUE BETTENCOURT, 2º Conde de Albuquerque – Alvará de 28.6.1971 – Timbre de Albuquerque – Diferença: mosqueta de arminho. 127 ALDINA BETTENCOURT DE ABREU ARRIMAR – Alvará de 8.7.1997 118 MARIA BEATRIZ BARBOSA DE ANDRADE ALBUQUERQE, Condessa de Subserra – Alvará de 4.5.1979 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 119 MARIA MARGARIDA BARBOSA DE ANDRADE ALBUQUERQUE – Alvará de 4.5.1979. Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 128 JOÃO MARIA DE SOUSA MENDES – Alvará de 15.12.1986 - Timbre de Borges – Diferença: manilha de prata. Nobiliário da Ilha Terceira, I vol., pág. 153. 129 ANTÓNIO FIRMINO DE SOUSA MENDES – Alvará de 25.2.1988 – Timbre de Borges – Diferença: uma estrela de prata. 130 DUARTE MANUEL BARBOSA DE FARIA E MAIA – Alvará de 8.4.1983 – Timbre de Borges – Diferença: merleta de prata. 120 MARIA VIOLANTE BARBOSA DE ANDRADE ALBUQUERQUE – Alvará de 17.10.1973. Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 131 D. FRANCISCA IN S DE ORNELAS PIRES MOTA DE AZEVEDO – Alvará de 8.5.1987 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 121 DUARTE MATEUS DE ANDRADE ALBUQUERQUE BETTENCOURT DE ATAÍDE – Alvará de 16.5.1988 – Timbre de Pereira – Diferença: cardo florido de azul. 132 D. SOFIA DE ORNELAS PIRES DA MOTA DE AZEVEDO – Alvará de 122 LUÍS BERNARDO LEITE DE ATAÍDE – Alvará de 12.4.1947 – Timbre de Ataíde – Diferença: estrela de ouro de seis pontas. 123 LUÍSA CONSTANTINA ATAÍDE DA COSTA GOMES – Alvará de 4.5.1979 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 124 ANTÓNIO DE ATAÍDE COSTA GOMES – Alvará de 21.10.1992 – Timbre de Ataíde – Diferença: brica de prata carregada com uma flor florida de vermelho e vazia do campo. 125 JOÃO DE BETTENCOURT DE VASCONCELOS E ÁVILA – Alvará de 30.4.1994 – Timbre de Bettencourt – Diferença: espiga de verde. 126 GUILHERME JÁCOME SOARES PAÍM DE BRUGES BETTENCOURT – Alvará de 15.4.1993 – Timbre de Bettencourt – Diferença: uma âncora de vermelho posta em pala. 11.3.2002 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 133 MIGUEL DE ORNELAS PIRES DA MOTA DE AZEVEDO – Alvará de 11.3.2002 – Timbre de Câmara – Diferença: brica de ouro carregada de uma flor-de-lis de negro. 134 VALDEMAR MOTA DE ORNELAS DA SILVA GONÇALVES – Alvará de 15.12.1986 – Timbre de Câmara – Diferença: brica de prata carregada de um girão de púrpura. 135 JOAQUIM MANUEL ESPARTEIRO LOPES DA COSTA – Alvará de 11.3.1998 – Timbre de Costa – Diferença: meia brica de ouro carregada de uma pala de vermelho. 136 MÁRIO NUNO CANTO LOPES DA COSTA – Alvará de 11.3.1998 – Timbre de Costa – Diferença: brica de ouro carregada com uma caldeira de negro. 137 MARIA TERESA DE FARIA E MAIA DE AGUIAR – Alvará de 8.4.1983 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 143 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES GAGO / CÂMARA138 SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES150 GAGO / CÂMARA / TRAVASSOS / CABRAL139 SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) / CUNHA / GAMA / BETTENCOURT151 HOMEM / PAÍM / ORNELAS / CÂMARA140 SOARES (de Albergaria) / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT / ALBUQUERQUE152 MACHADO / FARIA / CANTO (de Pêro Anes) / MEDEIROS141 MACHADO / MAIA / FARIA / VASCONCELOS142 MENESES / MACHADO / LEMOS / BORGES143 MONIZ / BARRETO / COUTO / BETTENCOURT144 MONIZ / BARRETO / MENESES / BORGES145 SOUSA (do Prado) / MENESES / MACHADO / BORGES153 SOUSA (do Prado) / VASCONCELOS / CÂMARA / MACHADO154 TRAVASSOS / CABRAL / MELO / CÂMARA155 TRAVASSOS / VELHO / CABRAL / BOTELHO156 ORNELAS / PAÍM / CÂMARA / CARVÃO146 PEREIRA / ATAÍDE / ATAÍDE / PEREIRA147 VASCONCELOS / CÂMARA / MELO / CABRAL157 VELHO158 [143] PEREIRA / BOTELHO / BOTELHO / PEREIRA148-149 138 ANTÓNIO JACINTO GAGO DA CÂMARA – Alvará de 11.3.2002 – Timbre de Gago – Diferença: flôr-de-lis de ouro. 139 MARIA JOSÉ GAGO DA CÂMARA CALAÍNHO TEIXEIRA DUARTE – Alvará de 11.3.2002 – Sem timbre nem diferença por a requerente ser senhora. 140 JÁCOME AUGUSTO PAÍM DE BRUGES BETTENCOURT – Alvará de 5.6.1987 – Timbre de Homem – Diferença: brica de prata carregada de uma merleta de negro. 141 BEATRIZ DO CANTO FARIA E MAIA – Alvará de 24.2.1973 – Sem timbre nem diferença por a titular ser senhora. 142 FRANCISCO MACHADO DE FARIA E MAIA – Alvará de 17.6.1987 – Timbre de Machado – Diferença: flor de cardo de prata. 143 DUARTE MANUEL SIEUVE DE MENESES DA ROCHA ALVES – Alvará de 21.2.1994 – Timbre de Meneses – Diferença: brica de verde com uma estrela de seis pontas de prata. 144 DUARTE RAFAEL COTA BETTENCOURT MONIZ – Alvará de 15.5.1990 – Timbre de Moniz – Diferença: memória de prata. 145 MARIA DE LURDES DOS SANTOS MONIZ VIEIRA DE AREIA – Alvará de 15.4.1998 – Sem timbre nem diferença por a requerente ser senhora. 146 JOÃO SAAVEDRA ORNELAS DE BRUGES DA CRUZ – Alvará de 26.10.1996 – Timbre de Ornelas – Diferença: brica de ouro carregada de uma estrela de sete pontas de vermelho. 147 AUGUSTO DE ATAÍDE SOARES DE ALBERGARIA – Alvará de 26.1.1974 – Timbre de Pereira – Diferença: cardo de ouro florido de azul. 148 JOSÉ HONORATO GAGO DA CÂMARA BOTELHO DE MEDEIROS – Alvará de 14.5.1970 – Timbre de Pereira – Diferença: vieira de ouro. 149 NUNO GONÇALO DA CÂMARA BOTELHO DE MEDEIROS, Conde do Botelho – Alvará de 28.6.1971 – Timbre de Pereira – Diferença: besante de ouro com três gotas de negro unidas em cima. 150 MANUEL LINHARES DE ANDRADE – Alvará de 26.4.1990 – Timbre de Silveira – Diferença: brica de arminhos com uma memória de vermelho. 151 JOSÉ LEITE PEREIRA DA CUNHA – Alvará de 15.1.1992 – Timbre de Silveira (de Willelm van der Haegen) – Diferença: memória de prata. 152 AUGUSTO DUARTE DE ANDRADE ALBUQUERQUE BETTENCOURT DE ATAÍDE – 4º. Conde de Albuquerque – Alvará de 15.4.1993 – Timbre de Albuquerque – Sem diferença por ser chefe do nome e armas dos Condes de Albuquerque. 153 ANA RAIMUNDO DA CUNHA SIEUVE DE MENESES LEMOS E CARVALHO DA CÂMARA SÁ COUTINHO DA ROCHA ALVES – Alvará de 25.5.1994 – Sem timbre nem diferença por a requerente ser senhora. 154 ANTÓNIO JOSÉ DE VASCONCELOS RIEFF – Alvará de 15.7.1982 – Timbre de Vasconcelos – Diferença: brica de vermelho, carregada de um farpão de ouro. 155 EUGÉNIO ATAÍDE DA CÂMARA VELHO DE MELO CABRAL – Alvará de 24.2 1973 – Timbre de Travassos – Diferença: vieira de ouro. 156 CARLOS ALBERTO VELHO FALCÃO CANÁRIO MELO – Alvará de 22.3.1998 – Timbre de Travassos - Diferença: brica de prata carregada com um cochim de azul. 157 ANA MARIA DA CÂMARA E VASCONCELOS DE FARIA E MAIA – Alvará de 6.9.1994 – Sem timbre nem diferença por a requerente ser senhora. 158 JOSÉ ANTÓNIO BAPTISTA VELHO ARRUDA – Alvará de 12.5.1979 – Timbre de Velho – Diferença: meia brica de ouro carregada de uma banda de azul. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 144 IX COMPOSIÇÕES HERÁLDICAS MENCIONADAS NO NOBILIÁRIO DA ILHA TERCEIRA (Águia bicéfala) / LEITE (moderno, invertido) / BRUM / SILVEIRA – I / 190159 BETTENCOURT / FONSECA / ORNELAS / VASCONCELOS – I / 128160 BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pero Anes) – I / 153161 CANTO – I / 259163 CARVALHO / LEMOS – II / 140164 CASTRO (de seis arruelas) / CASTELO BRANCO (Vasconcelos) / AGUIAR / PACHECO – I / 286 CHAVES / SÁ – I / 292165 BORGES / SOUSA / SILVEIRA / CANTO – I / 153 FIGUEIREDO / FREITAS – III / 108 CAMPOS (de Arras - de prata, três faixas de vermelho, e três palas do mesmo brocantes sobre tudo) – I / 227162 LEITE / VASCONCELOS / BOTELHO / AZEVEDO (por MAIA) – II / 87166 [144] 159 Estas armas estão representadas num escudo em talha policromada no fecho do altar de Santa Filomena do lado do Evangelho na Igreja do Carmo da cidade da Horta (Foto 57). Tavares mulher de Henrique Bettencourt, e que os Tavares da Terceira são descendentes de Ruy Tavares da ilha de São Miguel, que teve CBA a 2 de Dezembro de 1534 é admissível que as armas figuradas sejam de Tavares e não de Fonseca, até porque as estrelas representadas tem um número muito variável de raios indo de 5 a 8; na representação heráldica deste mesmo ordenamento existente no cemitério de Nª. Sª. do Livramento em Angra do Heroísmo, no jazigo nº.421 as estrelas estão representadas uniformemente com 6 raios a que corresponde de facto o apelido Tavares (Foto 59). 160 Esta pedra de armas está colocada sobre a porta principal do Solar da Madre de Deus, na rua do mesmo nome em Angra do Heroísmo (Foto 58); na obra em análise, a leitura do 1º. quartel e do timbre – Bettencourt – estão incompletas, pois deve-se acrescentar que o leão empunha na garra direita uma flor-de-lis que não consta de nenhum dos armoriais portugueses conhecidos desde o século XVI. Não é certamente uma diferença pois repete-se no timbre. Será uma alusão a um vínculo de Borges? Deixamos a questão. O 2º quartel diz ser Fonseca, mas, atendendo a que Francisco de Bettencourt o primeiro que do apelido passou à ilha Terceira, era neto de Isabel Fernandes 57 161 Timbre: meio leopardo de ouro carregado de uma flor de lis de vermelho na testa. 162 Armas de Guilherme Rouze. AHG 983 e Revista Raízes & Memórias nº 14, pág. 47. 59 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 145 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES [145] COM OS 58 166 Pedra de armas no portal da casa à Rua de Sant’ Ana, 19 em Ponta Delgada. 163 Belchior do Canto Velho teve CBA em 30 de Janeiro de 1589 – vide Brasões Terá sido Diogo Leite de Vasconcelos, falecido a 3 de Agosto de 1658 o primeiro a fazer uso deste ordenamento heráldico? (Foto 61). Inéditos nº. 84. 164 Este ordenamento heráldico tem sido usado pelos descendentes de José de Sousa de Meneses de Lemos e Carvalho. 165 Rua de São Pedro, 200 em Angra do Heroísmo. Na fachada desta casa e entre duas janelas de sacada podem ser vistas estas armas. Provavelmente terá sido António Francisco de Sá da Rocha e Câmara a primeira pessoa a usar estas armas (Foto 60). 60 61 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 146 LEITE PEREIRA / BOTELHO / AZEVEDO / VASCONCELOS – II PAIM / ORNELAS / SOUSA / CÂMARA – II / 235170 / 87 PEREIRA / PACHECO / LACERDA / MELO – II / 276 LEMOS / CARVALHO / SÁ / CHAVES – II / 140 RIBEIRO / ROCHA / FONSECA / CARVALHO – II /321 MERCÊ NOVA – II / 304167 MONIZ / GUEDES / BETTENCOURT (?) / CORTE-REAL – II / 170168 SIEUVE / SÉGUIERS – II / 367 MUNHOZ / CASTELO BRANCO / CASTRO (de treze arruelas) SOUSA (de Arronches) / COELHO / COSTA / FERREIRA – I / MARTINS – I / 286 /310 e Cartas de Brasão de Armas, II /46. ORNELAS / BANDEIRA – II / 235169 SOUSA (do Prado) / SIEUVE / MACHADO / BORGES – II / 367172 [146] 167 JOSÉ TOMAZ DA SILVA QUINTANILHA – 1º. Barão de Paquetá – CBA 29.1.1872. As armas atribuídas foram: escudo esquartelado: I e IV. de ouro, leão de púrpura rompente, armado de azul, tendo na garra dextra um compasso de vermelho, e na espádua uma folha de independência de negro, nervada e orlada de ouro, e sobre a cabeça uma estrela de vermelho; II e III. De negro, seis seixas de prata postas em aspa. 168 Sebastião Moniz Barreto, O Velho deverá ter sido o primeiro a fazer uso deste ordenamento heráldico. Estas armas podem ser vistas na Igreja e Convento de S. Francisco, actualmente Museu de Angra do Heroísmo (Foto 62) e também no cemitério de Nª. Senhora do Livramento em Angra do Heroísmo, diferindo apenas no timbre, que no primeiro é de Guedes e no segundo de Moniz (Foto 63). 62 63 SILVA (?) / CARVALHO (?) / COSTA / MACHADO – I / 348171 169 António Infante da Câmara e Ornelas – CBA de 30 de Janeiro de 1792. 170 Manuel Paim de Sousa (?) nascido em 1649 poderá ter sido a primeira pessoa a usar este ordenamento heráldico. 171 Em Angra do Heroísmo, há uma representação destas armas na Igreja do Convento de S. Francisco, na capela de Stº. Antão e Nª. Sª. da Consolação, instituída por Gonçalo Vaz de Sousa e sua mulher Iria Cotta da Malha (Foto 64). 172 No jazigo dos Condes de Sieuve de Meneses no cemitério de Nª. Senhora do Livramento em Angra do Heroísmo (Foto 65). 64 65 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 147 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS CARTAS D’A ARMAS INÉDITAS AÇORES e a elle como des- / cendente das mencionadas familias lhe per- / tence usar, e gozar de suas Armas, segundo / o Meu Regimento, e ESTUDOS HERÁLDICOS I Ordenação da Armaria / lhe Mandei passar esta Minha Carta de Bra- / zão dellas, na forma que aqui vão Brazona- / das, Divizadas, e Illuminadas com Cores, e- / Metaes, segundo se achão Registadas no Li- / vro do Registo das Armas da Nobreza, e- / Fidalguia de Carta de Brasão de Armas de António da Cunha da Silveira Bettencourt – 1818 Meus Reinos, que tem Portugal / Meu Principal Rey de Armas. A saber, Hum / Escudo partido em palla. Na primeira as / Armas dos Bitancourts, que são em Cam- / po de Prata hum Leão de preto D. faxa na primeira as Armas dos / Cunhas que são em campo de de Portugal, e do Bra / zil, e Algarves, d’a- / quem, ouronove / cunhas de azul de ferro firmadas e postas / em três e d’alem, Mar / em Africa, Senhor de Guiné, e da / pallas. Na segunda as dos Silveiras / em campo de prata tres faxas Conquista Navegação, Commer- / cio da Ethiopia, vermelhas, e / por orla huma Silva verde. Elmo de prata / aberto Arabia, Persia, / e da India &c. Faço saber aos que / esta Minha Carta guarnecido de ouro. Paquife dos Me- / taes, e Cores das Armas. de Brazão de- / Armas de Nobreza, e Fidalguia / virem que o Timbre dos Bi- / tancourts, que he o Leão das Armas, e por / Sargento Mór An- / tonio da Cunha Silveira, e Bitan- / court, diferença huma Brica de ouro, com huma / banda azul. O qual natural da Villa da Praya da / Ilha Gracioza Me fez petição dizen / Escudo, e Armas pode- / rá trazer, e usar tão somente o dito do, que pela Sentença de Justefi- / cação de sua Nobreza, E fidalg- Antonio / da Cunha Silveira, e Bitancourt, assim como as- / /uia, aella junta, proferida, e asig- / nada pelo Meu Dezembargador trouxerão, e uzarão os ditos Nobres, e antigos / Fidalgos seus / da Caza da Suplicação, que serve / de Corregedor do Civel da Antecessores; e com ellas / poderá entrar em Batalhas, Campos, Corte o / Doutor Joze Freire Gameiro, sobs- / cripta por Diziderio Reptos, / Escaramuças, e exercitar todos os mais actos / licitos da Joze do Ama / ral, Escrivão do mesmo Juizo, e- / pellos documentos Guerra, e da Pax. E assim mesmo as po- / dera trazer em seus a ella tão bem / juntos se mostrava que elle he filho legitimo / do Firmaes, Aneis, Sinetes, / e Divizas, pollas em suas Cazas, Capellas, Capitão Mòr Bartholomeu Alvaro Bitan- / court, e de sua mulher e / mais Edificios, e deixallas sobre sua propria / Sepultura, e Dona Joaquina Pampo / lana da Corte Celeste. Os quaes seus Pays finalmente se podera servir, hon- / rar, gozar, aproveitar dellas em forão / pessoas muito Nobres das Famillias de seus Ap- / pellidos, todo, e por / todo como a sua Nobreza convem. Com o que / que no Reyno de Portugal são Fidalgos / de Linhagem, Cotta de Quero, e me Praz, que haja elle, e todos seus / Descendentes todas Armas, e de Solar conhe- / cido, e ao Pay do Suplicante se passou as Honras, Privilegios, Li- / berdades, Graças, Mercês, Izençõns, e Brazão / de Armas em 20 de Abril de 1811, e como taes / se tratarão Fran- / quezas, que hão, e devem haver os Fidalgos, / e Nobres de sempre á Ley da Nobreza, com Ar- / mas,Creados, Cavallos, e toda Antiga Linhagem, e como sem- / pre de todo uzarão, e gozarão os a mais ostentação / pertencente á sua qualidade servindo no Po / ditos seus / Antepassados, e seus Sucessores não poderão / uzar litico, e no Militar os Lugares, e Postos mais / distintos do Governo, deste Brazão, e Privilegios, sem que no- / vamente lhe seja a cada sem que em tempo al- / gum commetessem Crime de Leza hum delles confirma- / do.Pelo que, Mando aos Meus Dezembar- Magesta- / de Divina ou Humana. Pelo que Me pedia / elle / gadores, Corregedores, Provedores, Ouvi- / dores, Juizes, e mais Suplicante por Merce que para a memo- / ria de seus Progenitores Justiças de Meus Rei- / nos, e Senhorios, e em especial aos Meus / se não perder, e clare- / za de sua antiga Nobreza, e Fidalguia lhe ma Reys de Armas, Arautos, e Passavantes, e / aquaes quer outros / ndace dar Minha Carta de Brazão de Armas / das ditas Familias Officiais, e Pessoas a- / quem esta Minha Carta for mostrada, e o- / para dellas tão bem usar / na forma que as trouxerão, e forao conhecimento della pertencer, que em tu- / do lha cumprão, e concedidas / aos ditos seus Progenitores. E vista por Mim / a dita guardem, e fação intei- / ramente cumprir, e guardar como nella / sua petiçao, Sentença, e documentos, e / constar de tudo o referido, se contem, sem embargo, ou duvida, algu- / ma, que em ella lhe [147] rompente, / armado de vermelho. Na segunda palla / partida em JOAO / Por Graça de Deos / Rey do Reino Unido / 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 148 seja posto por que assim / he Minha Mercê, Pagou de Novos Os oficiais de armas que intervêm na elaboração desta carta de Direitos / cinco mil reis, que se carregarão ao Tezourei- / ro delles a armas – Izidoro da Costa e Oliveira, Principal Rei de Armas f. 25, do Lº. 6º, de sua Receita, co- / mo consta do Conhecimento Portugal e António Bernardo Cardoso Peçanha de Castel Branco, em forma Regis- / tado a f. 164, v. do Lº. 13, do Registo Geral dos Escrivão da Nobreza Fidalguia do Reino Unido e suas Conquistas, / mesmos. EL REY Nosso Senhor o mandou / por Izidoro da Costa, são conhecidos e estavam em funções à data. e Oliveira, Cavalleiro / Proffeço na Ordem de Christo, e da Torre, e / Espada, Cavalleiro Fidalgo de Sua Caza Re- / al , Seu Creado Os elementos genealógicos contidos na carta de armas são Particular, e Seu Rey de Armas / Portugal. Antonio Bernardo praticamente inexistentes, mencionando apenas os pais do armígero174: Cardozo Peça- / nha de Castel Branco, Cavalleiro Proffeço na / Ordem Militar de Sant Iago da Espada, Fi- / dalgo de Linhagem, e Cotta de Armas, Escri- / vão da Nobreza, e Fidalguia do Reino 1. António da Cunha da Silveira Bettencourt, Unido, / e suas Conquistas a fez em a Corte, e Cidade de / São 2. Bartolomeu Álvaro Bettencourt, Sebastião do Rio de Janeiro aos vinte, e / quatro dias do mez de 3. Joaquina Pampolana da Corte Celeste Dezembro do Anno do Na- / scimento de Nosso Senhor JESUS Christo de mil / oito centos, e dezoito. Eu António Bernardo / e não fazendo qualquer entronque em família conhecida. O pai Cardozo Peçanha de Castel Branco, a fiz, e / subscrevy / Nr 323 era Capitão-Mór e teve carta de Brasão de Armas em 20 de Abril de 1811175 , vivendo com sua mulher à lei da nobreza. Portugal Rey de Armas Principal / Izidoro da Costa e Oliveira. Registada no livro 1º. do Regto. dos / Brazões de Armas da No [148] / breza e Fidalguia do Reino / Unido e suas conquistas a fl. 88 / A descrição das armas concedidas é: Rio 30 de Dezembro de 1818. / António Bernardo Cardozo Peçanha de Castel Branco (Doc. 14) Escudo partido: I. Bettencourt – “em campo de prata um leão de Esta carta de brasão de armas emitida em 1818 no Rio de Janeiro, prata, com um leão de negro, armado e lampassado de vermelho”; II. preto rompente, armado de vermelho” correctamente ler-se-ia “de faz parte do arquivo particular da Exma. Senhora Dona Luísa Cortado: 1º. Cunha – “em campo de ouro, nove cunhas de azul Margarida Gago da Câmara a quem reiteramos o nosso em ferro firmadas, e postas em três palas” correctamente ler-se-ia “de agradecimento. ouro, com nove cunhas de azul, abatidas e alinhadas 3, 3 e 3”.; 2º. Silveira – “em campo de prata três faxas vermelhas e por orla uma Além de ser inédita, esta carta de armas é particularmente silva verde” correctamente ler-se-ia “de prata, com três faixas de interessante por ter sido emitida no Brasil durante a estadia de D. vermelho e em orla um ramo de silvas de verde”. João VI e cujos copiadores desapareceram todos em 1848 após a morte de Frei Possidónio da Fonseca e Costa, Escrivão da Nobreza O elmo, o paquife e o timbre são descritos com sobriedade e de e Fidalguia do Império do Brasil, o que faz com que se desconheça acordo com a linguagem da armaria. Na iluminura das armas o número e para quem foram emitidas Cartas de Brasão de Armas figuram ainda o virol – de vermelho e ouro, azul e prata - e as correias durante 40 anos. – de vermelho - que não são descritas no texto. Na leitura paleográfica o critério de transcrição usado foi o da fidelidade ao original. 173 Marquês de São Payo, Cartas de Brasão de Armas (um ensaio de diplomática). Separata da revista Armas & Troféus 2ª. série, nº. 3 Braga, 1960. Trata-se de uma carta de brasão de armas de nobreza e fidalguia de acordo com a classificação proposta pelo Marquês de São Payo 173 e cujo texto segue o das suas congéneres da época. 174 Usa-se o método de numeração Sosa-Stradonitiz. 175 Ver nota 111. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:21 AM Page 149 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES Quanto à diferença nada se pode concluir pois não são conhecidos brasão tem apenas uma cercadura de dois riscos finos; a primeira outros familiares para além dos pais. Contudo, de acordo com o página tem uma letra capitular a ocupar a altura correspondente a Regimento de Armaria a brica atribuída não seria correcta visto que nove linhas de texto, com cercadura dupla de folhas de acanto, as armas mais chegadas à varonia – Bettencourt – lhe vinham por sendo mais larga que as outras. seu Pai. A análise da iluminura revela metais oxidados particularmente a O material de suporte desta carta de armas é o pergaminho, prata, acontecendo o mesmo ao verde da “silva”. No geral está em uniforme nas suas dimensões, e ao longo de todo o caderno que é bom estado de conservação e não foi ainda sujeita a qualquer formado por quatro bifólios não numerados. Quatro das páginas restauro, mas apresenta já algumas marcas de uso. [149] tem cercadura dupla com elementos vegetalistas; a de rosto e a do Doc. 14 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) [150] Doc. 14 6/25/09 5:06 PM Page 150 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/25/09 5:06 PM Page 151 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS ESTUDOS HERÁLDICOS II Carta de Brasão de Armas de João Soares de Albergaria de Souza – 1819 AÇORES Cotta de Armas e de Solar conhecido, e / como taes se tratarão sempre a Ley da Nobreza com / Armas, Creados, Cavallos, e toda a mais ostentação / pertencente a sua qualidade servindo no Politico, e / no Militar os Lugares, e Postos mais distinctos do / Governo, sem que em tempo algum commetessem Cri- / me de Leza Magestade Divina, ou Humana. Pelo que / Me pedia elle Supplicante por Mercê que para a / memória de seus Progenitores JOAO~ / Por Graça de Deos Rey / do Reino Unido Minha Carta de Brazão de Armas das ditas Fami- / lias, para dellas de Por / tugal, e do Brazil, e Al- / Garves, daquem, tãobem usar, na forma que as trou- / xerão, e forão concedidas aos e da- / lem mar em Affrica, se- / nhor de Guiné, e ditos seus Progenito- / res. E vista por Mim a dita sua petição, da Conquista Nave- / gação, Commercio da Sentença / e mais documentos, e constar de tudo o referido, e que Ethiopia, Ara- / bia,Persia, e da India &º. Faço saber / aos que esta a / elle como descendente das mencionadas Famílias lhe / pertence Minha Carta de Brazão / de Armas da Nobreza, e Fidalgia vi- / rem usar, e gozar de suas Armas, segundo o Meu / Regimento, e que o Alferes João Soares de Al- / bergaria de Souza, natural da Ordenação da Armaria, lhe mandei passar / esta Minha Carta de Villa / das Vellas Ilha de São Jorge Me fez / petição dizendo que pela Brazão dellas, na forma que aqui / vão Brazonadas, Divizadas, e Sentença de / Justeficação de sua Nobreza a ella tão / bem junta, Illuminadas com Cores, / e Metaes, segundo se achão Registadas no proferida, e assignada pe- / lo Meu Dezembargador da Casa da Sup- Livro do Re- / gisto das Armas da Nobreza, e Fidalguia de Meus / licação, que serve de Corregedor do Ci- / vel da Corte o Doutor Reinos, / que tem Portugal Meu Principal Rey de Armas, A saber, / Jozé Freire Ga- / meiro, sobscripta por Deziderio Jozé do / Amaral Hum Escudo, esquartelado. No primeiro quartel as Ar- / mas dos Escrivão do mesmo, e pelos do- / cumentos a ella tão bem juntos Soares de Albergaria, que são em campo de pra- / ta huma Cruz D. se mos- / trava que elle he filho legitimo do Sar- / gento Mór vermelha, florida, e vazia, com hum perfil pre- / to, e huma Ignacio Soares de Alberga- / ria e Souza, e de sua mulher D. Izabel bordadura com sete Escudinhos das Quinas Rea- / es. No segundo / Delfina da Silveira, naturaes da dita Vil- / la. Neto paterno do as dos Souzas, em campo de prata no pri- / meiro, e quarto quartel Capitão Jozé Ignacio de Sou- / za Soares, Cavalleiro Fidalgo de as Quinas de Portugal, e no segun- / do, e terceiro hum Leão Minha Caza na- / turaes da Ilha do Fayal, e de sua mulher D. Joa- / rompante de vermelho. No ter- / ceiro as dos Pereiras que são em quina Genoveva de Bitancourt, natural da Ilha / do Pico, e pela campo vermelho huma / Cruz de prata florida, e vazia do campo. materna do Capitão António André / da Silveira, e de D. Izabel No quarto quar- / tel as Armas dos Silveiras em campo de prata tres Maria da Silveira, natu- / ral da Ilha de São Jorge. Bisneto paterno fa- / xas vermelhas, e por orla huma Silva. Elmo de prata a- / berto do Ca- / pitão Ignacio Soares de Souza, Cavalleiro Fidalgo / de goarnecido de ouro. Paquife dos Metaes, e Cores / das Armas. Minha Caza, e de D. Ignez Antonia da Silveira na- / turaes da Ilha Timbre dos Soares de Albergaria, que he / huma serpente vermelha, do Fayal, e pela materna do Capitão / Jozé Francisco de Bitancourt, e por diferença huma brica ver- / melha, com huma Estrella de e de D. Maria There- / za da Ilha do Pico, e do Capitão Amaro ouro. O qual Escudo, e / Armas poderá trazer, e usar tão somente o Teixeira de / Souza Pereira, e de D. Maria de Lemos de Souza, e / do dito João / Soares de Albergaria de Souza, assim como as trou- / Capitão Antonio Pereira Cabral, e de D. Maria de / Stº. António, xerão, e uzarão os ditos Nobres, e antigos Fidalgos se / us naturaes da Ilha de São Jorge. Terceiro neto / paterno do Capitão Antepassados em tempo dos Senhores Reys Meus / Antecessores e Bernardo Soares, Cavalleiro / Fidalgo de Minha Caza Real, e com ellas poderá entrar em Ba- / talhas, Campos Reptos, materno do Capitão / Antonio Pereira de Lemos, e de Dª. Anna da Escaramuças, e exer- / citar todos os mais actos licitos da Guerra, e Silveira e / Souza, naturaes da Ilha de São Jorge. Os quaes seus / / da Paz, E assim mesmo as poderá trazer em / seus Firmaes, Aneis, Pays, e Avós fora pessoas muito distinctas, e das prin- / cipaes Sinetes, e Divizas, pol- / las em suas cazas, Capellas, e mais Familias da dita Ilha, e de todas as mais dos Asso- / res, e da Edificios, e / deixallas sobre sua propria Sepultura, e finalmen- te / Madeira, que no Reino de Portugal são Fidalgos / de Linhagem se poderá servir honrar, gozar aproveitar dellas em / todo, e por [151] se não perder, e / clareza de sua antiga Nobreza lhe mandace dar / 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/25/09 5:06 PM Page 152 todo como a sua Nobreza convem. Com / o que Quero, e Me Praz, Além de ser inédita, esta carta de armas é particularmente que haja elle, e todos os / seus Descendentes todas as Honras, interessante por ter sido emitida no Brasil durante a estadia de D. Privilégios, / Liberdades, Graças, Mercês, Isenções, e Franque- / zas, João VI e cujos copiadores desapareceram em 1848 após a morte que hão, e devem os Fidalgos, e Nobres / de antiga Linhagem; e de Frei Possidónio da Fonseca e Costa, Escrivão da Nobreza e como sempre de todo uza- / rão, e gozarão os ditos seus Fidalguia do Império do Brasil, o que faz com que se desconheça Antepassados, e seus / Sucessores não poderão usar deste Brazão, e o número e para quem foram emitidas Cartas de Brasão de Armas Pri- / vilegios, sem que novamente lhe seja a cada hum / delles durante 40 anos. confirmado. Pelo que, Mando aos Meus / Dezembargadores, Corregedores, Provedores, / Ouvidores, Juízes, e mais Justiças de Na leitura paleográfica o critério de transcrição usado foi o da Meus Rei- / nos, e Senhorios, e em expecial aos Meus Reys de / fidelidade ao original. Armas, Arautos, e Passavantes, e a quaes quer / outros Officiaes, e Pessoas a quem esta Minha Car- / ta for mostrada, e o conhecimento dellas perten- / cer, que em tudo lha cumprão, e guardem, e fa- / ção inteiramente cumprir, e goardar como nella / se contem, sem duvida ou embargo algum, que / em ella lhe seja posto por que assim he Minha Mer- / cê. Pagou de Novos Direitos cinco mil reis, que / se carregarão ao Thezoureiro delles a fol. 36vº do / Livro VI. De sua Receita, como consta do Conhe- / cimento em forma Registado a fol. 1 ves. Do Livro / XIV do Registo Geral dos [152] mesmo. EL REY Nos- / so Senhor o mandou por Izidoro da Costa, e / Oliveira, Cavalleiro Proffeço na Ordem de Chris- / to, e da Torre, Trata-se de uma carta de brasão de armas de nobreza e fidalguia de acordo com a classificação proposta pelo Marquês de São Payo176 e cujo texto segue o das suas congéneres da época. Os oficiais de armas que intervêm na elaboração desta carta de armas – Izidoro da Costa e Oliveira, Principal Rei de Armas Portugal e António Bernardo Cardoso Peçanha de Castel Branco, Escrivão da Nobreza e Fidalguia do Reino Unido e suas Conquistas, são conhecidos e estavam em funções à data. e Espada, Cavalleiro Fidalgo de / Sua Caza Real, Seu Creado Particular, e Seu / Rey de Armas Portugal António Bernardo Car- / dozo Peçanha de Castel Branco, Cavalleiro Prof- / feço na Ordem Os elementos genealógicos contidos na carta de armas permitem elaborar a seguinte árvore de costados177: Militar de SantIago da Espada, / Fidalgo de Linhagem, e Cotta de Armas, Escri- / vão da Nobreza, e Fidalguia do Reino Unido, e / suas 1. João Soares de Albergaria Sousa, alferes Conquistas a fez em a Corte, e Cidade de São Sebastião do Rio de 2. Inácio Soares de Albergaria e Sousa, Sargento-Mor da Janeiro aos cinco dias / do Mez de Janeiro do Anno do Nascimento vila das Velas – S. Jorge de / Nosso Senhor JESUS Christo de mil oito cen- / tos e dezanove. 3. Isabel Delfina da Silveira Eu Antonio Bernardo Cardo- / zo Peçanha de Castel Branco, a fiz, a sob- 4. José Inácio de Sousa Soares / escrevi. / Portugal Rey de Armas Principal / Izidoro da Costa e Oliveira 5. Joaquina Genoveva de Bettencourt Registada no livro1º. Do Regto. dos / Brazões de Armas da No / 6. António André da Silveira, capitão breza e Fidalguia do Reino / Unido e suas conquistas a fl. 52 / Rio 7. Isabel Maria da Silveira 30 de Janeiro de 1819. / António Bernardo Cardozo Peçanha de 8. Inácio Soares de Sousa, capitão Castel Branco (DOC. 15). 9. Inês Antónia da Silveira 10. José Francisco de Bettencourt, capitão Esta carta de brasão de armas emitida em 1819 no Rio de Janeiro, faz parte do arquivo particular da casa da Exma. Senhora Dona Eduarda Soares de Albergaria Machado, descendente do armigerado, a quem o autor agradece muito reconhecido a forma franca e hospitaleira como foi recebido em sua casa e a imediata anuência à publicação desta CBA. 176 Marquês de São Payo, Cartas de Brasão de Armas (um ensaio de diplomática). Separata da revista Armas & Troféus 2ª série, nº. 3 Braga, 1960. 177 Usa-se o método de numeração Sosa-Stradonitiz. 6/25/09 5:06 PM Page 153 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES [153] 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) Doc. 15 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) [154] Doc. 15 6/25/09 5:07 PM Page 154 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 155 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES 11. Maria Teresa O elmo, o paquife e o timbre são descritos com sobriedade e de 12. Amaro Teixeira de Sousa Pereira, capitão acordo com a linguagem da armaria. Na iluminura das armas 13. Maria de Lemos de Sousa figuram ainda o virol – a oxidação já não permite ver as suas cores – 14. António Pereira Cabral, capitão e as correias – de carmim – que não são descritas no texto. 15. Maria de Santo António 16. Bernardo Soares, capitão Da escolha da diferença nada se pode concluir, sabendo nós que 18. António Pereira de Lemos utilização indiscriminada da brica ainda era vulgar na época. 19. Ana da Silveira e Sousa Todavia, segundo o Regimento de Armaria e tendo em conta a deveria ser uma peça solta. Escudo esquartelado: I. Soares de Albergaria178 “campo de prata O material de suporte desta carta de armas é o pergaminho, uma cruz vermelha, florida e vazia, com um perfil preto, e uma uniforme nas suas dimensões, e ao longo de todo o caderno que é bordadura com sete escudinhos das quinas reais” – correctamente formado por quatro bifólios não numerados. Quatro páginas tem ler-se-ia “de prata, com uma cruz florida de vermelho, vazia do campo; cercadura dupla com elementos vegetalistas; a de rosto e a do brasão bordadura de vermelho carregada de sete escudetes das quinas” II. Sousa armas tem apenas uma cercadura fina de dois riscos; a primeira “em campo de prata no primeiro e quarto quarteis as Quinas de página tem uma letra capitular a ocupar a altura correspondente a Portugal e no segundo e terceiro um leão rompente de vermelho” oito linhas de texto, com cercadura dupla e mais larga que as outras; – correctamente ler-se-ia “esquartelado: I e IV. Portugal (antigo) II e III. De prata, com um leão de púrpura, armado e lampassado de azul”179 a última não tem qualquer cercadura; o segundo e o quarto fólio apresentam vestígios de reclamo. III. Pereira “em campo vermelho uma cruz de prata florida e vazia do campo” IV. Silveira “em campo de prata três faxas vermelhas e A análise da iluminura revela metais oxidados particularmente a por orla uma silva” – correctamente ler-se-ia “de prata, com três faixas prata, acontecendo o mesmo ao verde da “silva”. No geral está em de vermelho e em orla um ramo de silvas de verde”. bom estado de conservação. 178 Soares (de António Soares de Albergaria). 179 De azul e não de vermelho como indica o texto e mostra o desenho. [155] dedução genealógica feita na carta, está completamente errada pois A descrição das armas concedidas é: 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 156 ESTUDOS HERÁLDICOS III pesoas nobres, / e se trataraõ sempre a ley da nobreza, sem raça de in- / fecta naçaõ, e que de direito as suas armas lhe perten- / cem. As quaes lhe mandei dar em esta minha carta, / assim como se acharaõ registas em os livros do registo / do dito Portugal meu Rey Carta de Brasão de Armas de Pedro Correa Picanço – 1735 darmas. A saber: Hum es- / cudo esquartellado, no primeiro quartel, as armas dos / Souzas que saõ esquartelladas, no primeiro e quarto / as armas do Reyno com seu filete preto, no segundo / e D. om ioam / Prograça de Deos, Rey de Portugal, e terceiro em campo vermelho quatro quardenas de / lua de prata, dos / Algarves, da quem, e dalém, Mar em Africa, no segundo as dos Picanços, em campo / de prata huma azinheira / Senhor de Guiné, e da Conquista, navega- / çao, verde com raízes do mesmo, / no terceiro a dos Mellos, em campo do comercio da Ethiopia, Arabia, / Percia, e India. vermelho seis baza- /ntes de prata entre huma Crus dobre de ouro [156] &tc. Aquantos esta mi / nha carta virem, faço saber que Pedro com / huma bordadura do mesmo, no quarto as dos / Correas, Correa Picanço na- / tural da Ilha Gracioza, e morador na Villa de cmpo de ouro humas correas verme- / lhas repasadas humas por Santa Crus / da dita ilha, me fés petição em como descendia e outras. Elmo de prata / aberto guarnecido de ouro. Paquife de vinha da / geração dos Correas, Picanços, Souzas, e Mellos, e suas ouro, e / prata, e vermelho e verde. Timbre o dos Pican / ços, que / armas lhe pertencião, e pedindome por merçe, que para / __ zar, he huma Azinheira verde, com rai- / zés do mesmo, e sobre ella e gozar, da honra das armas que seus antecessores / ganharaõ, e lhe hum picanço preto, / e por diferença que lhe pertence segundo foraõ dadas, lhe mandace dar minha / carta das ditas armas, que arma / ria, huma brica de prata com hum trifolio preto. / O Qual estavaõ registadas em os li- / vros dos registos das armas dos e sendo, armas, e sinais posa / trazer e traga o dito Pedro Cor- / rea nobres, e fidalgos de me- / us Reynos, que tem Portugal meu Rey Picanço, a sim como as tro / uceraõ e dellas uzaraõ seus antece / darmas. A qual petiçaõ vista por mim mandei tirar inqueriçaõ ssores, em todos os lugares de honra / em que os ditos seus detes / temunho pello Doutor Joaõ da Silva Rodarte, do meu antecessores, e os nobres, e antigos fidalgos sempre as custuma- / dezembargo, e meu Dezembargador, Corregedor do Ci- / vel em raõ trazer, em tempo dos muy esclarecidos Reys / meus esta minha Corte, e por Manol Ignacio de Mou- / ra, e antecessores, e com ellas posa entrar em bata- / lhas, campos, Albuquerque, escrivaõ do dito juízo, e fui serto q / elle procede das escaramuças, e exercitar com ellas to-/ dos, os outros actos lícitos ditas gerações; Como filho legítimo / de Antonio Vas Picanço, e de da guerra, e da pax, e a- / sim as posa trzer em seus firmaes, anéis, sua legitima mulher Maria / de Souza de Mello, pesoas nobres e da sinetes, e divizas, e as por em suas cazas, e edifícios, e deixa- / llas governança da / dita Ilha Gracioza, que em toda ella servira os sobre sua própria sepultura, e finalmente secer / vir e honrar, gozar nobres - / cargos da Republica, assim na Villa da Praia, como na de e aproveitar dellas em todo, e / por todo, como a sua nobreza / Santa Crus, e principal della de Illeytor, Vereador, e Almo- / taçel, convem. Com o / que quero e me praz, que Haia elle e todos seus o que sérvio com sastifaçaõ. Neto pella parte pater- / na de Joaõ / descendentes, todas as honras, previllegios, liber- / dades, graças, Rodrigues de Mendonça, e de sua mulher An- / na Picanço Correa, mercês, inzençois, e franquezas, que / haõ e devem haver os pesoa nobre da governança da Republi / ca da Villa da Praia em a fidalgos nobres, e de anti- / ga linhagem, e como sempre de todo dita Ilha, Neto pella materna / de Manoel de Souza de Mello, e de uziraõ, e / gozaraõ seus antecessores. Porem mando a to /dos os sua mulher Agueda - / Rodrigues pesoa nobre que sérvio os cargos meus Dezembargadores, Corregedores, / Juizes, Justiças, Alcaides, honrozos da / governança da dita Ilha de Santa Crus, e que pella e em especial, a os / meus, Reys darmas, Arautos, e Passavantes, / e parte / paterna he legitimo descendente dos Correas, e Pican / ços, a quaesquer outros officiais, e pesoas, a que / esta minha carta for e pella materna dos Souzas e Mellos, deste meu / Reyno de mostrada, e o conheci- / mento della pertencer que em todo lho Portugal, e foraõ fidalgos muyto honrados / e Antonio Correa da cum- / praõ, e guardem, e façaõ comprir, e guardar, co- / mo nella Fonçeca teve brazaõ de armas e / o mesmo teve Affonço Correa, he contheudo, sem duvida, nem em / bargo algum, que em ella fidalgo da minha caza, / seus ascendentes, os quaes todos foraõ lhe Seia posto, por / que assim he minha merçe; El Rey nosso se- 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 157 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES endereçou para a realização do estudo e inventariação de todo o conjunto de peças heráldicas existentes no museu. Na leitura paleográfica o critério de transcrição usado foi o da total fidelidade ao original. Trata-se de uma carta de armas de nobreza e fidalguia, de acordo com a classificação proposta pelo Marquês de São Payo180, cujo texto segue o das suas congéneres da época. Os oficiais de armas que intervêm na feitura desta carta de armas – Manoel Leal, Principal Rei de Armas Portugal e António Francisco, Escrivão da Nobreza nestes Reynos e Senhorios de Portugal e suas Conquistas, são conhecidos e estavam em funções à data. Doc. 16 Pedro Correa Picanço, natural da Gracioza, vila de Santa Crus; António Vas Picanço, vereador e almoçatel; Maria de Souza de Mello; João Rodrigues de Mendonça; Anna Picanço Correa; Manoel de Souza de Mello; Agueda Rodrigues / nhor o mandou por Manoel Leal seu Rey Darmas / Portugal. Frey fés, anno / do nascimento de nosso senhor Jezu christo de- / mil e Sem fazer menção ao grau de parentesco existente, menciona Affonço Correa182 e António Correa da Fonseca183, seus ascendentes como pessoas nobres e portadoras de cartas de brasão de armas. setecentos e trinta e sinco; aos vinte de Se- / tembro. E vai sobscrita A descrição das armas concedidas é: Jozeph da Crus da ordem de saõ pau- / lo, Reformador do Cartorio da Nobreza do Reyno / por especial Prouvizaõ do dito senhor, a por Antonio Francisco / escrivaõ da Nobreza nestes Reynos e senhorios / de Portugal, e suas Conquistas. Eu Antonio / Francisco Escudo esquartelado: I. Souzas – “esquartelado, no primeiro e sobscrevy Rey darmas Pal. quarto quartel as armas do Reyno com seu filete negro, no Fica registado este Brazão no Lº. 8./ do Registo dos Brazões da Nobreza / de Portugal a fl. 506. Lisboa Occi- / dental aos 22 dias do mes de Setembro / do anno de 1735. / Antº. Francisco. (Doc. 16) 180 Marquês de São Payo, Cartas de Brasão de Armas (um ensaio de diplomática). Separata da revista Armas & Troféus 2ª série, nº. 3 Braga, 1960. 181 Usa-se o método de numeração Sosa-Stradonitiz. Esta carta de brasão de armas faz parte do acervo do Museu de Angra do Heroísmo, ao qual reiteramos o nosso agradecimento, na pessoa do seu distinto director, Dr. Jorge Paulus Bruno, pelas facilidades concedidas e pelo muito honroso convite que nos 182 CBA de 23 de Abril de 1544. Archivo Heráldico-Genealógico, pág. 2 nº. 5. 183 Será o mesmo que António Correa da Fonseca Ávila? Se for teve CBA em 28 de Julho de 1632. Brasões Inéditos, pág. 8 nº. 25. [157] Os elementos genealógicos contidos na carta de armas permitem deduzir a seguinte árvore de costados181: 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 158 [158] Doc. 16 segundo e terceiro em campo vermelho quatro quadernas de lua armas figuram ainda o virol – “de prata e vermelho” e as correias – de prata” são as armas de Sousa (de Arronches) que correctamente “de vermelho com pontas de ouro” que não são descritas no texto. ler-se-iam: I e IV. as do Reino, com quebra II e III. de vermelho uma O formato do escudo é “francês” e sobre isso também nada se diz. caderna de prata. As anomalias verificadas estão na bordadura que deveria ser de oito castelos e não de sete, e deveria indicar a Quanto à diferença, tendo em conta a dedução genealógica feita posição do filete negro (banda ou barra). II. Picanço – “ em na carta d’armas e segundo o Regimento de Armaria, esta deveria campo de prata huma azinheir(a) verde, com raízes do mesmo” ser “meia brica” e não uma brica, pois a varonia Picanço vem ao que correctamente se diria, “arrancadas do mesmo” III. Mello – “ em armigerado por pai e avó paterna. campo vermelho seis bezantes de prata entre huma Crus dobre de ouro com huma bordadura do mesmo” correctamente seria “ de Embora lhe venham por mãe e avô materno, as armas de Sousa vermelho, com uma dobre-cruz de ouro, entre seis besantes de prata; (de Arronches) ocupam e bem o primeiro quartel, por privilégio. bordadura de ouro. IV. Correa – “c(a)mpo de ouro humas correas vermelhas repasadas humas por outras”. Correctamente ler-se-ia “ de O material de suporte desta Carta de Brasão de Armas é o pergami- ouro, fretado de vermelho”. nho, uniforme nas suas dimensões e ao longo de todo o caderno, que é formado por quatro bifólios não numerados. Com excepção O elmo, o paquife e o timbre são descritos com sobriedade, da última página, todas tem dupla cercadura, com motivos diversos contudo com algumas lacunas, a saber: no caso do elmo não e diferentes em cada folha. A análise do conjunto da decoração re- indica que o forro é verde (geralmente é vermelho); no timbre vela metais oxidados, particularmente da prata. Pode considerar-se deveria dizer “raízes arrancadas do mesmo”. Na iluminura das em bom estado de conservação, mas a precisar de alguns cuidados. 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 159 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS CASTRO (de seis arruelas) / CASTELO BRANCO (ou Vasconcelos) / AGUIAR / PACHECO ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol, pág. 286 - Titulo XXV - Castelo Branco BORGES / SOUSA / SILVEIRA / CANTO ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 153 - Título XII - Borges BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 153 - Título XII - Borges MUNHOZ / CASTELO BRANCO / CASTRO (de treze arruelas) / MARTINS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 283 - Título XXV - Castelo Branco BETTENCOURT (diferençadas) / FONSECA / ORNELAS / VASCONCELOS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol., pág. 128 - Titulo IX - Bettencourt "(Águia bicéfala) / LEITE (moderno, invertido) / BRUM / SILVEIRA" ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol., pág. 163 - Titulo XV - Brun CARVALHO / LEMOS ? vidé, Nobiliário da Ilha Terceira, II vol, pág. 140 - Titulo LVIII - Menezes RIBEIRO (de Damião Dias) / ROCHA / FONSECA / CARVALHO ? vidé, Nobiliário da Ilha Terceira, II vol, pág. 317 - Titulo LXXXII - Ribeiro LEMOS / CARVALHO / SÁ / CHAVES ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 140 - Título LVIII - Meneses SIEUVE / SÉGUIERS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. Pág. 351 - Titulo LXXXIX - Sieuve SOUSA (do Prado) / SIEUVE / MACHADO / BORGES ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 367 - Titulo LXXXIX - Sieuve LEITE PEREIRA / BOTELHO / AZEVEDO / VASCONCELOS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 79 - Título LI - Leite CORREIA / MELO / MELO / CORREIA Afonso Correia CORREIA / MELO Afonso de Melo MACIEL Afonso de Ponte Maciel IMPERIAL Agostinho Imperial CORREIA / RAPOSO/ RAPOSO / CORREIA Aires Jácome Correia BETTENCOURT / NORONHA / PERESTRELO / CÂMARA Aldina Bettencourt de Abreu Arrimar ALMEIDA Amador de Almeida ALPOÍM Amador de Alpoím GAGO Amancio da Silveira Gago da Câmara VASCONCELOS / CÂMARA / MELO / CABRAL Ana Maria da Câmara e Vasconcelos de Faria e Maia SOUSA (do Prado) / MENESES / MACHADO / BORGES Ana Raimundo da Cunha Sieuve de Meneses Lemos e Carvalho da Câmara Sá Coutinho da Rocha Alves BOTELHO / CABRAL André Gonçalves de Sampaio LOBO André Lopes Lobo PAMPLONA António Bernardo Pamplona BORGES António Borges SOUSA (de Arronches) / CORTE-REAL / SILVA / MELO António Borges da Silva do Canto GOES / MEDEIROS / BETTENCOURT / BORGES António Borges de Bettencourt BORGES / MEDEIROS / CÂMARA / DIAS António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa FREIRE / ALBERGARIA / GALHARDO / PEGADO // COUTINHO António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa BORGES António Borges Sousa BOTELHO António Botelho de Sampaio e Arruda MONIZ / AMARAL António Casimiro da Silveira Moniz SOUSA (de Arronches) / COELHO / COSTA / FERREIRA António Coelho da Costa CORREIA / MELO António Correia BETTENCOURT / NOGUEIRA / PACHECO / FONSECA António Correia da Fonseca Ávila BETTENCOURT / CUNHA / SILVEIRA António da Cunha da Silveira Bettencourt CORREIA / SPÍNOLA / CUNHA / SILVEIRA António da Cunha e Silveira [159] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 160 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS CARVÃO / FONSECA / FONSECA / CARVÃO António da Fonseca Carvão CARVÃO / CÂMARA / FONSECA / PAIM António da Fonseca Carvão Paim da Câmara SILVEIRA / LACERDA / PEREIRA / SARMENTO António da Silveira de Lacerda ÁVILA / PEIXOTO / SILVEIRA / BETTENCOURT António da Silveira Peixoto FIGUEIREDO / FREITAS António de Figueiredo d'Utra MENDONÇA / FURTADO / ROCHA / ALBORNOZ António de Sousa e Silva COSTA / COLUMBREIRO António Fernandes Columbreiro MACHADO António Ferreira Machado BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) António Firmino de Sousa Mendes CABRAL / TAVARES / SOUSA (do Prado) / FARIA António Fournier Tavares Lemos Borges Cabral CHAVES / SÁ António Francisco de Sá da Rocha e Câmara (possível atribuição) PEREIRA / SÁ / SÁ / PEREIRA António Garcia da Rosa - 1º. Barão da Areia Larga ESPÍNOLA António Homem Espinola da Silva Sodré ORNELAS / BANDEIRA António Infante da Câmara e Ornelas GAGO / CÂMARA António Jacinto Gago da Câmara ÁVILA António José de Ávila SOUSA (do Prado) / VASCONCELOS / CÂMARA / MACHADO António José de Vasconcelos Rieff PAMPLONA António Pamplona SOUSA (do Prado) / SOARES (de Albergaria) / VELHO / CABRAL António Soares de Sousa Ferreira Borges e Medeiros [160] MACHADO / TELES António Teles Machado PEREIRA / ATAÍDE / ATAÍDE / PEREIRA Augusto de Ataíde Soares de Albergaria SOARES (de Albergaria) / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Augusto Duarte de Andrade Albuquerque Bettencourt de Ataíde COSTA / HOMEM Baltasar da Costa BETTENCOURT Bartolomeu Álvaro de Bettencourt SODRÉ Bartolomeu Cordeiro CORDEIRO Bartolomeu Dias Cordeiro MACHADO / FARIA / CANTO (de Pêro Anes do Canto) / MEDEIROS Beatriz do Canto Faria e Maia MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO Belchior de Resendes e Moura CANTO Belchior do Canto Velho CORDEIRO / ESPINOSA Bernardo Cordeiro de Espinosa AMARAL / CASTELO-BRANCO / CASTELO-BRANCO / AMARAL Bernardo do Amaral de Castelo Branco PEREIRA / SOARES (de Albergaria) / CASTRO (de treze arruelas) / LACERDA Cândido Pacheco de Melo Forjaz de Lacerda – 1º. Barão de Nª. Srª. Das Mercês TRAVASSOS / VELHO / CABRAL / BOTELHO Carlos Alberto Velho Falcão Canário Melo COSTA Cogumbreiro da Costa SOUSA (de Arronches) / COSTA / MACHADO Constantino Machado de Barcelos (?) COSTA / BORGES / BORGES / COSTA Cristóvão Borges da Costa COELHO Diogo Coelho Sodré MACHADO Diogo de Barcelos Machado LEITE / VASCONCELOS / BOTELHO / AZEVEDO Diogo Leite de Vasconcelos PAÍM Diogo Paím CARREIRO Diogo Vaz Carreiro 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 161 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS ALBERGARIA / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt SOARES (de Albergaria) / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt ALBUQUERQUE Duarte Dinis de Andrade de Albuquerque Bettencourt SERRÃO Duarte Gomes Serrão BORGES / FARIA / MACHADO / BETTENCOURT Duarte Manuel Barbosa de Faria e Maia MENESES / MACHADO / LEMOS / BORGES Duarte Manuel Sieuve de Meneses da Rocha Alves ALBUQUERQUE / PEREIRA / ATAÍDE / ANDRADE Duarte Mateus de Andrade Albuquerque Bettencourt de Ataíde MONIZ / BARRETO / COUTO / BETTENCOURT Duarte Rafael Cota Bettencourt Moniz OLIVEIRA / PEREIRA Estolano Inácio de Oliveira Pereira TRAVASSOS / CABRAL / MELO / CÂMARA Eugénio Ataíde da Câmara Velho de Melo Cabral MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO Fernando de Loura Bettencourt FURTADO ( de Mendonça) Fernão Furtado de Mendonça CUNHA / BOTELHO / MELO / COSTA Filipe António Brum Botelho CÂMARA / ORNELAS Francisca Inês de Ornelas Pires Mota de Azevedo ÁVILA (outros) / BETTENCOURT/ PEIXOTO / CARVALHO Francisco Brum da Silveira COELHO Francisco Coelho de Melo ARAÚJO Francisco de Araújo ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE Francisco de Medeiros Costa e Albuquerque CASTRO (de seis arruelas) / MEIRELES / TÁVORA / CANTO ( de Pero Anes) // CASTRO Francisco de Meneses Meireles do Canto e Castro SOUSA (do Prado) / MACHADO / FAGUNDES / FONSECA Francisco de Sousa Machado SÁ / SILVEIRA / BORGES / CORTE-REAL Francisco Inácio de Sá e Silveira Borges Corte-Real TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Francisco José Teixeira de Sampaio FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO Francisco Machado de Faria e Maia MACHADO / MAIA / FARIA / VASCONCELOS Francisco Machado de Faria e Maia CORREIA / RAPOSO / BRUM / BETTENCOURT Francisco Manuel de Mesquita Pimentel Furtado de Mendonça PIMENTEL / MESQUITA / FURTADO / PIMENTEL Francisco Manuel de Mesquita Pimentel Furtado de Mendonça MASCARENHAS Francisco Mascarenhas, D. PEIXOTO / PEREIRA / BETTENCOURT / SILVEIRA Francisco Peixoto Bettencourt da Silveira BOTELHO / CABRAL Francisco Pereira de Bettencourt PEREIRA Francisco Pereira de Bettencourt Lopes SODRÉ / PEREIRA / CORDEIRO / CAMELO Francisco Pereira Sodré TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Francisco Teixeira de Sampaio CORREIA / RODOVALHO Gaspar Correia Rodovalho HOMEM Gaspar da Costa Homem MELO / VELHO / CABRAL / TRAVASSOS Gaspar de Andrade Columbreiro REGO Gaspar do Rego MACHADO Gaspar Machado PACHECO Gomes Pacheco FERREIRA / TEIVE Gonçalo Ferreira de Teive VASCONCELOS Gonçalo Mendes de Vasconcelos TAVARES Gonçalo Tavares [161] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 162 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS BORGES Gregório Borges BETTENCOURT / HOMEM / ORNELAS / PAÍM Guilherme Jácome Soares Paím de Bruges Bettencourt CAMPOS (de Arras) Guilherme Rouze TAVARES Henrique Tavares TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Henrique Teixeira de Sampaio CARVALHO / REZENDE / CORREIA / PEREIRA Hilário de Carvalho Resende MENDONÇA / PEREIRA Inácio Xavierde Mendonça Furtado MIRANDA / SILVEIRA Jacinto Inácio Rodrigues da Silveira - 1º. Barão de Fonte Bela SILVEIRA / MIRANDA Jacinto Inácio Rodrigues Silveira HOMEM / PAÍM / ORNELAS / CÂMARA Jácome Augusto Paím de Bruges Bettencourt UTRA Jerónimo Dutra Corte-Real PAMPLONA Jerónimo Pamplona SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES João António da Silveira Linhares Carvalhal Costa Falcão e Noronha BOTELHO / CABRAL João Botelho de Carvalho CABRAL / MELO / SOUSA / MACHADO João Cabral de Melo COELHO João Coelho de Melo CORONEL João Cordeiro Teles [162] ÁVILA João de Ávila BETTENCOURT João de Bettencourt de Vasconcelos e Ávila BETTENCOURT / CORREIA / VASCONCELOS / ÁVILA João de Bettencourt de Vasconcelos e Ávila ESPÍNOLA João de Espinola Genovez LEMOS / SOUSA / FREIRE / CALDEIRA João de Lemos Caldeira PORTUGAL / MANUEL (antigo) / MELO / CÂMARA // FIGUEIREDO João de Melo Manuel da Câmara - 1º. Conde da Silvã CORREIA / MELO / MENDONÇA / CUNHA João de Mendonça Pacheco e Melo Ribeira TEIVE João de Teive REGO / BALDAIA / CABRAL / MELO João do Rego Baldaia ESPÍNOLA João Espinola da Veiga FERREIRA / TEIVE João Ferreira de Teive PACHECO / MELO / BETTENCOURT / CABRAL João Francisco Pacheco de Bettencourt HOMEM João Homem TEIVE / VASCONCELOS João José de Teive e Vasconcelos da Gama JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO João José Jácome Correia de Atouguia MEDEIROS / COSTA / ALMEIDA / PONTE João Luís de Medeiros da Costa Almeida Ponte REGO / BOTELHO / BETTENCOURT / CORTE-REAL João Manuel do Rego Botelho de Faria Corte-Real da Silveira PIMENTEL / MESQUITA / FURTADO / PIMENTEL João Marcelino de Mesquita Pimentel BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) João Maria de Sousa Mendes MONIZ / CAMELO / PEREIRA / BETTENCOURT João Moniz Pereira Camelo Bettencourt PIMENTEL / SILVEIRA / PEIXOTO / BETTENCOURT João Peixoto da Silveira Bettencourt e Lacerda CORREIA / MELO/ SOUSA / SILVA João Pereira de Melo Pacheco e Sousa PEREIRA / PACHECO / LACERDA / MELO João Pereira Forjaz Pacheco de Melo (?) PEREIRA / MACHADO João Pereira Machado da Luz 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 163 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS CAMELO João Rodrigues Camelo TEIXEIRA João Rodrigues Teixeira ORNELAS / PAÍM / CÂMARA / CARVÃO João Saavedra Ornelas Bruges da Cruz SOARES (de Albergaria) / SOUSA (do Prado) / PEREIRA / SILVEIRA João Soares de Albergaria de Sousa VELHO / SOUSA (de Arronches) / SOUSA (de Arronches) / VELHO João Soares de Sousa MENESES / PAMPLONA Joaquim António de Mendonça e Menezes COSTA / BORGES / CANTO / SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) Joaquim Manuel Esparteiro Lopes da Costa BOTELHO Jorge Nunes Botelho VELHO José António Baptista Velho Arruda CORONEL José António Teles Pamplona Coronel PERRY José Bressane Leite Perry - 1º. Visconde de Leite Perry COSTA / CORREIA / REBELO / SILVEIRA José Caetano da Costa Correia SOUSA / MACHADO / UTRA / LACERDA José Frederico Elerpek de Lacerda PEREIRA / BOTELHO / BOTELHO / PEREIRA José Honorato Gago da Câmara Botelho de Medeiros ALMEIDA / ANDRADE José Ignácio de Almeida Monjardino CUNHA José João da Cunha e Vasconcelos LEAL José Leal SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) / CUNHA / GAMA / BETTENCOURT José Leite Pereira da Cunha CARREIRO / CASTRO (de seis arruelas) / CÂMARA / COUTINHO José Maria da Câmara Coutinho Carreira de Castro PEREIRA / MELO / RAPOSO / AMARAL José Maria Raposo do Amaral ÁVILA (outros) / BETTENCOURT / PEREIRA / CUNHA José Pereira da Cunha da Silveira e Sousa MIRANDA / ÁLVARES José Roberto Pires Alvares de Miranda SILVEIRA / MEDEIROS / MEDEIROS / SILVEIRA José Rodrigues da Silva WITON José Rodrigues Golarte Whitton SOUSA (do Prado) / TEIXEIRA / PEREIRA / SOARES (de Albergaria) José Soares de Sousa TAVARES / GAMA José Tavares da Gama MERCÊ NOVA José Tomás da Silva Quintanilha - 1º. Barão de Paquetá CÂMARA Leonor da Câmara FAGUNDES / SOUSA (de Arronches) / MACHADO / AZEVEDO (de São João de Rei) Lopo Gil Fagundes de Sousa CACENA Lucas de Cacena SOUSA (do Prado) / BETTENCOURT / CABRAL / REGO Luís Bento de Bettencourt e Sousa CORREIA / SILVEIRA / BOTELHO / SAMPAIO Luís Bernardo de Sousa Estrela ATAÍDE / CORTE-REAL / CORTE-REAL / ATAÍDE Luís Bernardo Leite de Ataíde CORREIA / CARVALHAL / ALMEIDA / MENDONÇA Luís Correia de Almeida Carvalhaes SILVEIRA / BETTENCOURT / HOMEM / COSTA Luis Homem da Costa e Silveira PEREIRA Luís Pereira de Orta ATAÍDE / CORTE-REAL / CORTE-REAL / ATAÍDE Luísa Constantina Ataíde da Costa Gomes GUERRA (das Astúrias) / RIBEIRO / PEREIRA / RIBEIRO Manuel Alves da Guerra – 1º. Barão de Santana CÂMARA Manuel Baltazar Luís da Câmara, D. BARBOSA Manuel Barbosa [163] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 164 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS CABRAL / CORDEIRO / ESPINOSA / MELO Manuel Cabral de Melo CORDEIRO Manuel Cordeiro Moutoso CORREIA / RODRIGUES / VALE / NOGUEIRA Manuel Correia Branco SOUSA / COSTA / MELO / CORREIA Manuel Correia de Melo Pacheco COSTA / HOMEM Manuel da Costa Homem MACHADO Manuel de Barcelos Machado BETTENCOURT / MEDEIROS Manuel de Medeiros Galvão COELHO Manuel de Melo Coelho BOTELHO / MENDONÇA Manuel de Mendonça Pereira COSTA Manuel do Nascimento Costa FERNANDES / BALIEIRO / VIEGAS / ATAÍDE Manuel Fernandes Balieiro MIRANDA / SILVEIRA Manuel Inácio da Silveira - 1º. Barão de Nª. Sª. da Oliveira PAMPLONA Manuel Inácio Pamplona MERCÊ NOVA Manuel Jacinto Lopes - 1º. Visconde da Palmeira MERCÊ NOVA Manuel José Conde - 1º. Visconde do Rosário [164] FEIJÓ / GOUVEIA / MEDEIROS / FEIJÓ Manuel José de Gouveia SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES Manuel Linhares de Andrade ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE Manuel Medeiros da Costa Canto e Albuquerque PACHECO Manuel Pacheco de Lima PACHECO / MELO Manuel Pacheco de Melo PAIM / ORNELAS / SOUSA / CÂMARA Manuel Paim de Sousa (?) PEREIRA / ÁVILA / SARMENTO / ORTIZ Manuel Pereira de Avila PRIVADO / BRANDÃO Manuel Privado Brandão MENDONÇA Marcus Furtado de Mendonça ALBUQUERQUE Maria Beatriz Barbosa de Andrade Albuquerque MONIZ / BARRETO / MENESES / BORGES Maria de Lurdes dos Santos Moniz Vieira de Areia GAGO / CÂMARA / TRAVASSOS / CABRAL Maria José Gago da Câmara Calaínho Teixeira Duarte ALBUQUERQUE Maria Margarida Barbosa de Andrade Albuquerque FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO Maria Teresa de Faria e Maia de Aguiar ALBUQUERQUE Maria Violante Barbosa de Andrade Albuquerque COSTA / BORGES / CANTO / SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) Mário Nuno Canto Lopes da Costa PEREIRA / MACHADO / BORGES / FARIA Mateus Machado Hasse e Faria VELHO / AZEVEDO / REBELO Mateus Velho de Azevedo VELHO / CABRAL / TRAVASSOS / MELO Matias Nunes Velho Cabral MENDONÇA Mendo Furtado de Mendonça COELHO Miguel Coelho de Melo CÂMARA / ORNELAS Miguel de Ornelas Pires da Mota de Azevedo CORONEL Miguel Pereira da Costa Coronel MENDONÇA Mundos Furtado de Mendonça PEREIRA / MELO / RAPOSO / AMARAL Nicolau Maria Raposo 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 165 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS ARMIGERADOS MELO / VELHO / CABRAL Nuno de Melo Cabral PEREIRA / BOTELHO / BOTELHO / PEREIRA Nuno Gonçalo da Câmara Botelho de Medeiros BOTELHO Nuno Gonçalves Botelho Arruda Soares de Albergaria Coutinho de Gusmão COSTA Pedro Afonso Cogumbreiro da Costa CÂMARA / ORNELAS Pedro Alvares da Fonseca CANTO Pedro Annes do Canto PESTANA / BETTENCOURT / CORREIA / VASCONCELOS Pedro Correia de Vasconcelos SOUSA (de Arronches) / PICANÇO / MELO / CORREIA Pedro Correia Picanço ALMEIDA Pedro de Almeida MACHADO Pedro de Andrade Machado MACHADO Pedro de Barcelos Machado HOMEM Pedro Homem HOMEM Pedro Homem da Costa Noronha Ponce de Leão JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO Pedro Jácome Correia PIMENTEL / ORTIZ / BRITO / RIO Pedro Pimentel Ortiz de Melo de Brito do Rio, D. PAMPLONA Plácido José Pamplona PEREIRA / FURTADO / FERREIRA / MELO Roque Francisco Furtado de Melo ALPOÍM Rui de Alpoím SAMPAIO Rui Dias de Sampaio TAVARES Rui Tavares MEDEIROS / ALBUQUERQUE Rui Vaz de Medeiros e Albuquerque COELHO Salvador Coelho MERCÊ NOVA Sebastião Deiró – 1º. Barão de Sousa Deiró PICANÇO Sebastião Dias (Picanço) MONIZ / BARRETO / BETTENCOURT / CORTE-REAL Sebastião Moniz Barreto, o velho (?) PACHECO Simão Pacheco REBELO Simão Rodrigues Rebelo CÂMARA / ORNELAS Sofia de Ornelas Pires da Mota Azevedo MERCÊ NOVA Teotónio Borges Dinis – 1º. Barão de São Dinis FRANCO / CARDOSO / COSTA / PINTO Tomás Franco da Costa CÂMARA / ORNELAS / ORNELAS / CÂMARA Valdemar Mota de Ornelas da Silva Gonçalves COELHO Vasco Figueira Raposo Coelho PEIXOTO / PEREIRA / BETTENCOURT / SILVEIRA Vicente António da Silveira Peixoto Pereira [165] ORDENAMENTO HERÁLDICO AÇORES 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 166 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS (Águia bicéfala) / LEITE (moderno, invertido) / BRUM / SILVEIRA ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol., pág. 163 - Titulo XV - Brun ALBERGARIA / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt ALBUQUERQUE Duarte Dinis de Andrade de Albuquerque Bettencourt ALBUQUERQUE Maria Beatriz Barbosa de Andrade Albuquerque ALBUQUERQUE Maria Margarida Barbosa de Andrade Albuquerque ALBUQUERQUE Maria Violante Barbosa de Andrade Albuquerque ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE Francisco de Medeiros Costa e Albuquerque ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE Manuel Medeiros da Costa Canto e Albuquerque ALBUQUERQUE / PEREIRA / ATAÍDE / ANDRADE Duarte Mateus de Andrade Albuquerque Bettencourt de Ataíde ALMEIDA Amador de Almeida ALMEIDA Pedro de Almeida ALMEIDA / ANDRADE José Ignácio de Almeida Monjardino ALPOÍM Amador de Alpoím ALPOÍM Rui de Alpoím AMARAL / CASTELO-BRANCO / CASTELO-BRANCO / AMARAL Bernardo do Amaral de Castelo Branco ARAÚJO Francisco de Araújo [166] ATAÍDE / CORTE-REAL / CORTE-REAL / ATAÍDE Luís Bernardo Leite de Ataíde ATAÍDE / CORTE-REAL / CORTE-REAL / ATAÍDE Luísa Constantina Ataíde da Costa Gomes ÁVILA António José de Ávila ÁVILA João de Ávila ÁVILA (outros) / BETTENCOURT / PEREIRA / CUNHA José Pereira da Cunha da Silveira e Sousa ÁVILA (outros) / BETTENCOURT/ PEIXOTO / CARVALHO Francisco Brum da Silveira ÁVILA / PEIXOTO / SILVEIRA / BETTENCOURT António da Silveira Peixoto BARBOSA Manuel Barbosa BETTENCOURT Bartolomeu Álvaro de Bettencourt BETTENCOURT João de Bettencourt de Vasconcelos e Ávila BETTENCOURT (diferençadas) / FONSECA / ORNELAS / VASCONCELOS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol., pág. 128 - Titulo IX - Bettencourt BETTENCOURT / CORREIA / VASCONCELOS / ÁVILA João de Bettencourt de Vasconcelos e Ávila BETTENCOURT / CUNHA / SILVEIRA António da Cunha da Silveira Bettencourt BETTENCOURT / HOMEM / ORNELAS / PAÍM Guilherme Jácome Soares Paím de Bruges Bettencourt BETTENCOURT / MEDEIROS Manuel de Medeiros Galvão BETTENCOURT / NOGUEIRA / PACHECO / FONSECA António Correia da Fonseca Ávila BETTENCOURT / NORONHA / PERESTRELO / CÂMARA Aldina Bettencourt de Abreu Arrimar BORGES António Borges BORGES António Borges Sousa BORGES Gregório Borges BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 153 - Título XII - Borges BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) António Firmino de Sousa Mendes BORGES / COSTA / MELO / CANTO (de Pedro Anes do Canto) João Maria de Sousa Mendes BORGES / FARIA / MACHADO / BETTENCOURT Duarte Manuel Barbosa de Faria e Maia BORGES / MEDEIROS / CÂMARA / DIAS António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 167 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS BORGES / SOUSA / SILVEIRA / CANTO ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 153 - Título XII - Borges BOTELHO António Botelho de Sampaio e Arruda BOTELHO Jorge Nunes Botelho BOTELHO Nuno Gonçalves Botelho Arruda Soares de Albergaria Coutinho de Gusmão BOTELHO / CABRAL André Gonçalves de Sampaio BOTELHO / CABRAL Francisco Pereira de Bettencourt BOTELHO / CABRAL João Botelho de Carvalho BOTELHO / MENDONÇA Manuel de Mendonça Pereira CABRAL / CORDEIRO / ESPINOSA / MELO Manuel Cabral de Melo CABRAL / MELO / SOUSA / MACHADO João Cabral de Melo CABRAL / TAVARES / SOUSA (do Prado) / FARIA António Fournier Tavares Lemos Borges Cabral CACENA Lucas de Cacena CÂMARA Leonor da Câmara CÂMARA "Manuel Baltazar Luís da Câmara,D." CÂMARA / ORNELAS Francisca Inês de Ornelas Pires Mota de Azevedo CÂMARA / ORNELAS Miguel de Ornelas Pires da Mota de Azevedo CÂMARA / ORNELAS Pedro Alvares da Fonseca CÂMARA / ORNELAS Sofia de Ornelas Pires da Mota Azevedo CÂMARA / ORNELAS / ORNELAS / CÂMARA Valdemar Mota de Ornelas da Silva Gonçalves CAMELO João Rodrigues Camelo CAMPOS (de Arras) Guilherme Rouze CANTO Belchior do Canto Velho CANTO Pedro Annes do Canto CARREIRO Diogo Vaz Carreiro CARREIRO / CASTRO (de seis arruelas) / CÂMARA / COUTINHO José Maria da Câmara Coutinho Carreira de Castro CARVALHO / LEMOS ? vidé, Nobiliário da Ilha Terceira, II vol, pág. 140 - Titulo LVIII - Menezes CARVALHO / REZENDE / CORREIA / PEREIRA Hilário de Carvalho Resende CARVÃO / CÂMARA / FONSECA / PAIM António da Fonseca Carvão Paim da Câmara CARVÃO / FONSECA / FONSECA / CARVÃO António da Fonseca Carvão CASTRO (de seis arruelas) / CASTELO BRANCO (ou Vasconcelos) / AGUIAR / PACHECO ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol, pág. 286 - Titulo XXV - Castelo Branco CASTRO (de seis arruelas) / MEIRELES / TÁVORA / CANTO ( de Pero Anes) // CASTRO Francisco de Meneses Meireles do Canto e Castro CHAVES / SÁ António Francisco de Sá da Rocha e Câmara (possível atribuição) COELHO Diogo Coelho Sodré COELHO Francisco Coelho de Melo COELHO João Coelho de Melo COELHO Manuel de Melo Coelho COELHO Miguel Coelho de Melo COELHO Salvador Coelho COELHO Vasco Figueira Raposo Coelho CORDEIRO Bartolomeu Dias Cordeiro CORDEIRO Manuel Cordeiro Moutoso [167] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 168 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS CORDEIRO / ESPINOSA Bernardo Cordeiro de Espinosa CORONEL João Cordeiro Teles CORONEL José António Teles Pamplona Coronel CORONEL Miguel Pereira da Costa Coronel CORREIA / CARVALHAL / ALMEIDA / MENDONÇA Luís Correia de Almeida Carvalhaes CORREIA / MELO Afonso de Melo CORREIA / MELO António Correia CORREIA / MELO / MELO / CORREIA Afonso Correia CORREIA / MELO / MENDONÇA / CUNHA João de Mendonça Pacheco e Melo Ribeira CORREIA / MELO/ SOUSA / SILVA João Pereira de Melo Pacheco e Sousa CORREIA / RAPOSO / BRUM / BETTENCOURT Francisco Manuel de Mesquita Pimentel Furtado de Mendonça CORREIA / RAPOSO/ RAPOSO / CORREIA Aires Jácome Correia CORREIA / RODOVALHO Gaspar Correia Rodovalho CORREIA / RODRIGUES / VALE / NOGUEIRA Manuel Correia Branco CORREIA / SILVEIRA / BOTELHO / SAMPAIO Luís Bernardo de Sousa Estrela CORREIA / SPÍNOLA / CUNHA / SILVEIRA António da Cunha e Silveira COSTA Cogumbreiro da Costa COSTA Manuel do Nascimento Costa [168] COSTA Pedro Afonso Cogumbreiro da Costa COSTA / BORGES / BORGES / COSTA Cristóvão Borges da Costa COSTA / BORGES / CANTO / SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) Joaquim Manuel Esparteiro Lopes da Costa COSTA / BORGES / CANTO / SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) Mário Nuno Canto Lopes da Costa COSTA / COLUMBREIRO António Fernandes Columbreiro COSTA / CORREIA / REBELO / SILVEIRA José Caetano da Costa Correia COSTA / HOMEM Baltasar da Costa COSTA / HOMEM Manuel da Costa Homem CUNHA José João da Cunha e Vasconcelos CUNHA / BOTELHO / MELO / COSTA Filipe António Brum Botelho ESPÍNOLA António Homem Espinola da Silva Sodré ESPÍNOLA João de Espinola Genovez ESPÍNOLA João Espinola da Veiga FAGUNDES / SOUSA (de Arronches) / MACHADO / AZEVEDO (de São João de Rei) Lopo Gil Fagundes de Sousa FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO Francisco Machado de Faria e Maia FARIA / MACHADO / CABRAL / MELO Maria Teresa de Faria e Maia de Aguiar FEIJÓ / GOUVEIA / MEDEIROS / FEIJÓ Manuel José de Gouveia FERNANDES / BALIEIRO / VIEGAS / ATAÍDE Manuel Fernandes Balieiro FERREIRA / TEIVE Gonçalo Ferreira de Teive FERREIRA / TEIVE João Ferreira de Teive FIGUEIREDO / FREITAS António de Figueiredo d'Utra FRANCO / CARDOSO / COSTA / PINTO Tomás Franco da Costa FREIRE / ALBERGARIA / GALHARDO / PEGADO // COUTINHO António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 169 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS AÇORES ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS FURTADO ( de Mendonça) Fernão Furtado de Mendonça GAGO Amancio da Silveira Gago da Câmara GAGO / CÂMARA António Jacinto Gago da Câmara GAGO / CÂMARA / TRAVASSOS / CABRAL Maria José Gago da Câmara Calaínho Teixeira Duarte GOES / MEDEIROS / BETTENCOURT / BORGES António Borges de Bettencourt GUERRA (das Astúrias) / RIBEIRO / PEREIRA / RIBEIRO Manuel Alves da Guerra - 1º. Barão de Santana HOMEM Gaspar da Costa Homem HOMEM João Homem HOMEM Pedro Homem HOMEM Pedro Homem da Costa Noronha Ponce de Leão HOMEM / PAÍM / ORNELAS / CÂMARA Jácome Augusto Paím de Bruges Bettencourt IMPERIAL Agostinho Imperial JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO João José Jácome Correia de Atouguia JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO Pedro Jácome Correia LEAL José Leal LEITE / VASCONCELOS / BOTELHO / AZEVEDO Diogo Leite de Vasconcelos LEITE PEREIRA / BOTELHO / AZEVEDO / VASCONCELOS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 79 - Título LI - Leite LEMOS / CARVALHO / SÁ / CHAVES ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 140 - Título LVIII - Meneses LEMOS / SOUSA / FREIRE / CALDEIRA João de Lemos Caldeira LOBO André Lopes Lobo MACHADO António Ferreira Machado MACHADO Diogo de Barcelos Machado MACHADO Gaspar Machado MACHADO Manuel de Barcelos Machado MACHADO Pedro de Andrade Machado MACHADO Pedro de Barcelos Machado MACHADO / FARIA / CANTO (de Pêro Anes do Canto) / MEDEIROS Beatriz do Canto Faria e Maia MACHADO / MAIA / FARIA / VASCONCELOS Francisco Machado de Faria e Maia MACHADO / TELES António Teles Machado MACIEL Afonso de Ponte Maciel MASCARENHAS Francisco Mascarenhas, D. MEDEIROS / ALBUQUERQUE Rui Vaz de Medeiros e Albuquerque MEDEIROS / COSTA / ALMEIDA / PONTE João Luís de Medeiros da Costa Almeida Ponte MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO Belchior de Resendes e Moura MELO / CABRAL / RESENDE / VELHO Fernando de Loura Bettencourt MELO / VELHO / CABRAL Nuno de Melo Cabral MELO / VELHO / CABRAL / TRAVASSOS Gaspar de Andrade Columbreiro MENDONÇA Marcus Furtado de Mendonça MENDONÇA Mendo Furtado de Mendonça MENDONÇA Mundos Furtado de Mendonça MENDONÇA / FURTADO / ROCHA / ALBORNOZ António de Sousa e Silva [169] COM OS 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 170 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS MENDONÇA / PEREIRA Inácio Xavierde Mendonça Furtado MENESES / MACHADO / LEMOS / BORGES Duarte Manuel Sieuve de Meneses da Rocha Alves MENESES / PAMPLONA Joaquim António de Mendonça e Menezes MERCÊ NOVA José Tomás da Silva Quintanilha - 1º. Barão de Paquetá MERCÊ NOVA Manuel Jacinto Lopes - 1º. Visconde da Palmeira MERCÊ NOVA Manuel José Conde - 1º. Visconde do Rosário MERCÊ NOVA Sebastião Deiró - 1º. Barão de Sousa Deiró MERCÊ NOVA Teotónio Borges Dinis - 1º. Barão de São Dinis MIRANDA / ÁLVARES José Roberto Pires Alvares de Miranda MIRANDA / SILVEIRA Jacinto Inácio Rodrigues da Silveira - 1º. Barão de Fonte Bela MIRANDA / SILVEIRA Manuel Inácio da Silveira - 1º. Barão de Nª. Sª. da Oliveira MONIZ / AMARAL António Casimiro da Silveira Moniz MONIZ / BARRETO / BETTENCOURT / CORTE-REAL "Sebastião Moniz Barreto, o velho (?)" MONIZ / BARRETO / COUTO / BETTENCOURT Duarte Rafael Cota Bettencourt Moniz MONIZ / BARRETO / MENESES / BORGES Maria de Lurdes dos Santos Moniz Vieira de Areia MONIZ / CAMELO / PEREIRA / BETTENCOURT João Moniz Pereira Camelo Bettencourt MUNHOZ / CASTELO BRANCO / CASTRO (de treze arruelas) / MARTINS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, I vol. pág. 283 - Título XXV - Castelo Branco [170] OLIVEIRA / PEREIRA Estolano Inácio de Oliveira Pereira ORNELAS / BANDEIRA António Infante da Câmara e Ornelas ORNELAS / PAÍM / CÂMARA / CARVÃO João Saavedra Ornelas Bruges da Cruz PACHECO Gomes Pacheco PACHECO Manuel Pacheco de Lima PACHECO Simão Pacheco PACHECO / MELO Manuel Pacheco de Melo PACHECO / MELO / BETTENCOURT / CABRAL João Francisco Pacheco de Bettencourt PAÍM Diogo Paím PAIM / ORNELAS / SOUSA / CÂMARA Manuel Paim de Sousa (?) PAMPLONA António Bernardo Pamplona PAMPLONA António Pamplona PAMPLONA Jerónimo Pamplona PAMPLONA Manuel Inácio Pamplona PAMPLONA Plácido José Pamplona PEIXOTO / PEREIRA / BETTENCOURT / SILVEIRA Francisco Peixoto Bettencourt da Silveira PEIXOTO / PEREIRA / BETTENCOURT / SILVEIRA Vicente António da Silveira Peixoto Pereira PEREIRA Luís Pereira de Orta PEREIRA Francisco Pereira de Bettencourt Lopes PEREIRA / ATAÍDE / ATAÍDE / PEREIRA Augusto de Ataíde Soares de Albergaria PEREIRA / ÁVILA / SARMENTO / ORTIZ Manuel Pereira de Avila PEREIRA / BOTELHO / BOTELHO / PEREIRA José Honorato Gago da Câmara Botelho de Medeiros PEREIRA / BOTELHO / BOTELHO / PEREIRA Nuno Gonçalo da Câmara Botelho de Medeiros PEREIRA / FURTADO / FERREIRA / MELO Roque Francisco Furtado de Melo 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 171 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS ARMIGERADOS PEREIRA / MACHADO João Pereira Machado da Luz PEREIRA / MACHADO / BORGES / FARIA Mateus Machado Hasse e Faria PEREIRA / MELO / RAPOSO / AMARAL José Maria Raposo do Amaral PEREIRA / MELO / RAPOSO / AMARAL Nicolau Maria Raposo PEREIRA / PACHECO / LACERDA / MELO João Pereira Forjaz Pacheco de Melo (?) PEREIRA / SÁ / SÁ / PEREIRA António Garcia da Rosa - 1º. Barão da Areia Larga PEREIRA / SOARES (de Albergaria) / CASTRO (de treze arruelas) / LACERDA Cândido Pacheco de Melo Forjaz de Lacerda - 1º.Barão de Nª. Srª. Das Mercês PERRY José Bressane Leite Perry - 1º. Visconde de Leite Perry PESTANA / BETTENCOURT / CORREIA / VASCONCELOS Pedro Correia de Vasconcelos PICANÇO Sebastião Dias (Picanço) PIMENTEL / MESQUITA / FURTADO / PIMENTEL Francisco Manuel de Mesquita Pimentel Furtado de Mendonça PIMENTEL / MESQUITA / FURTADO / PIMENTEL João Marcelino de Mesquita Pimentel PIMENTEL / ORTIZ / BRITO / RIO D. Pedro Pimentel Ortiz de Melo de Brito do Rio PIMENTEL / SILVEIRA / PEIXOTO / BETTENCOURT João Peixoto da Silveira Bettencourt e Lacerda PORTUGAL / MANUEL (antigo) / MELO / CÂMARA // FIGUEIREDO João de Melo Manuel da Câmara - 1º. Conde da Silvã PRIVADO / BRANDÃO Manuel Privado Brandão REBELO Simão Rodrigues Rebelo REGO Gaspar do Rego REGO / BALDAIA / CABRAL / MELO João do Rego Baldaia REGO / BOTELHO / BETTENCOURT / CORTE-REAL João Manuel do Rego Botelho de Faria Corte-Real da Silveira RIBEIRO (de Damião Dias) / ROCHA / FONSECA / CARVALHO ? vidé, Nobiliário da Ilha Terceira, II vol, pág. 317 - Titulo LXXXII - Ribeiro SÁ / SILVEIRA / BORGES / CORTE-REAL Francisco Inácio de Sá e Silveira Borges Corte-Real SAMPAIO Rui Dias de Sampaio SERRÃO Duarte Gomes Serrão SIEUVE / SÉGUIERS ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. Pág. 351 - Titulo LXXXIX - Sieuve SILVEIRA (de Willelm van der Haegen) / CUNHA / GAMA / BETTENCOURT José Leite Pereira da Cunha SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES João António da Silveira Linhares Carvalhal Costa Falcão e Noronha SILVEIRA / BETTENCOURT / CARVALHAL / SOARES Manuel Linhares de Andrade SILVEIRA / BETTENCOURT / HOMEM / COSTA Luis Homem da Costa e Silveira SILVEIRA / LACERDA / PEREIRA / SARMENTO António da Silveira de Lacerda SILVEIRA / MEDEIROS / MEDEIROS / SILVEIRA José Rodrigues da Silva SILVEIRA / MIRANDA Jacinto Inácio Rodrigues Silveira SOARES (de Albergaria) / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Augusto Duarte de Andrade Albuquerque Bettencourt de Ataíde SOARES (de Albergaria) / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT // ALBUQUERQUE Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt SOARES (de Albergaria) / SOUSA (do Prado) / PEREIRA / SILVEIRA João Soares de Albergaria de Sousa SODRÉ Bartolomeu Cordeiro SODRÉ / PEREIRA / CORDEIRO / CAMELO Francisco Pereira Sodré SOUSA (de Arronches) / COELHO / COSTA / FERREIRA António Coelho da Costa SOUSA (de Arronches) / CORTE-REAL / SILVA / MELO António Borges da Silva do Canto SOUSA (de Arronches) / COSTA / MACHADO Constantino Machado de Barcelos (?) SOUSA (de Arronches) / PICANÇO / MELO / CORREIA Pedro Correia Picanço [171] ORDENAMENTO HERÁLDICO AÇORES 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 172 ORDENAMENTO HERÁLDICO ARMIGERADOS SOUSA (do Prado) / BETTENCOURT / CABRAL / REGO Luís Bento de Bettencourt e Sousa SOUSA (do Prado) / MACHADO / FAGUNDES / FONSECA Francisco de Sousa Machado SOUSA (do Prado) / MENESES / MACHADO / BORGES Coutinho da Rocha Alves Ana Raimundo da Cunha Sieuve de Meneses Lemos e Carvalho da Câmara Sá SOUSA (do Prado) / SIEUVE / MACHADO / BORGES ? vidé, Nobiliario da Ilha Terceira, II vol. pág. 367 - Titulo LXXXIX - Sieuve SOUSA (do Prado) / SOARES (de Albergaria) / VELHO / CABRAL António Soares de Sousa Ferreira Borges e Medeiros SOUSA (do Prado) / TEIXEIRA / PEREIRA / SOARES (de Albergaria) José Soares de Sousa SOUSA (do Prado) / VASCONCELOS / CÂMARA / MACHADO António José de Vasconcelos Rieff SOUSA / COSTA / MELO / CORREIA Manuel Correia de Melo Pacheco SOUSA / MACHADO / UTRA / LACERDA José Frederico Elerpek de Lacerda TAVARES Gonçalo Tavares TAVARES Henrique Tavares TAVARES Rui Tavares TAVARES / GAMA José Tavares da Gama TEIVE João de Teive TEIVE / VASCONCELOS João José de Teive e Vasconcelos da Gama TEIXEIRA João Rodrigues Teixeira TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Francisco José Teixeira de Sampaio TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Francisco Teixeira de Sampaio [172] TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES Henrique Teixeira de Sampaio TRAVASSOS / CABRAL / MELO / CÂMARA Eugénio Ataíde da Câmara Velho de Melo Cabral TRAVASSOS / VELHO / CABRAL / BOTELHO Carlos Alberto Velho Falcão Canário Melo UTRA Jerónimo Dutra Corte-Real VASCONCELOS Gonçalo Mendes de Vasconcelos VASCONCELOS / CÂMARA / MELO / CABRAL Ana Maria da Câmara e Vasconcelos de Faria e Maia VELHO José António Baptista Velho Arruda VELHO / AZEVEDO / REBELO Mateus Velho de Azevedo VELHO / CABRAL / TRAVASSOS / MELO Matias Nunes Velho Cabral VELHO / SOUSA (de Arronches) / SOUSA (de Arronches) / VELHO João Soares de Sousa WITON José Rodrigues Golarte Whitton 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 173 CARTAS DE BRASÃO D’ARMAS DE NATURAIS E/OU RELACIONADOS COM OS AÇORES TITULARES AÇOREANOS TÍTULO TITULAR DECRETO* ARMAS AGUALVA Visconde de Jacinto Carlos da Silva 29.8.1901 ALAGOA Barão de José Francisco da Terra Brum 22.12.1841 ALBUQUERQUE Conde de Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt 3.5.1909 ANGRA Marquês de Charles Stuart 1.5.1826 AREIA LARGA Barão de António Garcia da Rosa 22.2.1854 CBA PEREIRA / SÁ / SÁ / PEREIRA 12.3.1857 9.10.1860 ÁVILA Conde de António José de Ávila 15.2.1864 ÁVILA (dos Açores) ÁVILA E BOLAMA Marquês e Duque de António José de Ávila 31.5.1870 ÁVILA (dos Açores) BETTENCOURT Visconde de João de Bettencourt de Vasconcelos e Ávila 13.11.1873 BETTENCOURT BORGES DA SILVA Visconde de Alfredo Borges da Silva 1897 BOTELHO Visconde e Conde de Nuno Gonçalves Botelho Arruda Soares de Albergaria Coutinho de Gusmão 20.3.1873 BRUGES Visconde de Teotónio de Ornelas Bruges de Ávila Paim……Saavedra 8.12.1832 CARTAXO Visconde de Luís Teixeira de Sampaio 12.6.1860 COSTA NORONHA Barão de Heitor Homem da Costa Noronha 14.4.1898 FARIA E MAIA Visconde de Francisco Machado de Faria e Maia 16.4.1891 FENAIS Conde de Amâncio da Silveira Gago da Câmara FONTE BELA Barão e Conde de FONTE DO MATO Barão e Visconde de FREITAS HENRIQUES Barão de Frederico Augusto Cristiano de Freitas Henriques D.Carlos GUADALUPE Barão de João Inácio de Simas e Cunha 15.5.1874 JÁCOME CORREIA Conde e Marquês de Pedro Jácome Correia 3.5.1890 JÁCOME / CORREIA / ATOUGUIA / RAPOSO LARANJEIRAS Barão e Visconde de Manuel Medeiros da Costa Canto e Albuquerque 27.5.1836 ALBUQUERQUE / MEDEIROS/ ARAÚJO/ ALBUQUERQUE BOTELHO 20.2.1533 TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL / GUEDES 2.9.1789 10.4.1902 GAGO 27.12.1902 Jacinto Inácio Rodrigues da Silveira 12.3.1836 MIRANDA / SILVEIRA António da Cunha Silveira de Bettencourt 2.7.1860 LEITE PERRY Visconde de José Bressane Leite Perry 24.10.1895 PERRY MEIRELES Visconde de Francisco de Meneses Meireles do Canto e Castro 9.5.1902 CASTRO (de seis arruelas)/ MEIRELES / TÁVORA / CANTO // CASTRO (de seis arruelas) NORONHA Barão e Visconde de Pedro Homem da Costa Noronha Ponce de Leão 8.12.1832 HOMEM NOSSA SENHORA DA OLIVEIRA Barão de Manuel Inácio da Silveira 22.8.1870 MIRANDA / SILVEIRA NOSSA SENHORA DA SAÚDE Barão de José Mª.Câmara Coutinho Carreiro de Castro 12.9.1866 CARREIRO/CASTRO (de seis arruelas) /CÂMARA /COUTINHO NOSSA SENHORA DAS MERCÊS Barão e Visconde de Cândido Pacheco de Melo Meneses Forjaz de Lacerda 22.6.1874 PEREIRA / SOARES (de Albergaria) / CASTRO (de treze arruelas) / LACERDA PALMEIRA Visconde de Manuel Jacinto Lopes 15.6.1893 ARMAS DE MERCÊ NOVA 10.11.1893 [173] ALBERGARIA / ANDRADE / CÂMARA / BETTENCOURT// ALBUQUERQUE 10.CH.SergioAvelar (cor+pb) 6/17/09 11:23 AM Page 174 TÍTULO TITULAR DECRETO* ARMAS CBA PONTA DELGADA Marquesa de D. Leonor da Câmara 25.1.1835 CÂMARA PÓVOA Conde da Henrique Teixeira de Sampaio 3.7.1823 TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL /GUEDES PRAIA E MONFORTE Conde e Marquês de António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa 9.1.1881 Casa da Praia: BORGES / MEDEIROS /CÂMARA / DIAS Casa de Monforte: FREIRE / ALBERGARIA / GALHARDO / PEGADO // COUTINHO RAMALHO Barão de António da Fonseca Carvão Paim da Câmara 13.5.1836 CARVÃO / CÂMARA / FONSECA / PAIM REGO BOTELHO Conde de António Maria Holtreman do Rego Botelho de Faria 4.1.1894 REGO / BOTELHO / BETTENCOURT / CORTE-REAL RIBEIRA DO PAÇO Visconde da Francisco de Medeiros Costa e Albuquerque 16.2.1882 ALBUQUERQUE / MEDEIROS / ARAÚJO / ALBUQUERQUE RIBEIRA GRANDE Conde e Marquês de D. Manuel Baltazar Luís da Câmara 15.9.1662 CÂMARA ( do 1º. Conde de Vila Franca ) RIBEIRINHA Barão de Vitoriano da Rosa Martins 27.9.1901 [174] RIBEIRO Barão de Francisco José de Bettencourt e Ávila 3.6.1888 ROCHES Barão de Simão de Roches da Cunha Brum 4.2.1871 CUNHA ROSÁRIO Visconde do Manuel José Conde 16.12.1875 ARMAS DE MERCÊ NOVA SANTA CATARINA Visconde e Conde de Baltasar Rebelo Borges de Castro 15.7.1887 SANTA CRUZ Barão de António Vicente Peixoto de Mendonça e Costa 28.7.1864 SANTA CRUZ Conde e Marquêsa D. Francisco de Mascarenhas 3.10.1593 MASCARENHAS SANTANA Barão e Visconde de Manuel Alves Guerra 20.7.1863 GUERRA ( das Astúrias ) / RIBEIRO / PEREIRA / RIBEIRO SÃO DINIS Barão de Teotónio Borges Dinis 23.12.1869 ARMAS DE MERCÊ NOVA SIEUVE DE MENESES Visconde e Conde de José Maria Sieuve de Meneses 4.3.1873 SILVà Conde da D. João de Melo Manuel da Câmara 3.11.1852 PORTUGAL / MANUEL (antigo) / MELO/ CÂMARA // FIGUEIREDO ARMAS DE MERCÊ NOVA SOUSA DEIRÓ Barão de Sebastião Clemente de Sousa Deiró 10.3.1904 SUBSERRA Conde de Manuel Inácio Martins Pamplona Corte-Real 2.7.1823 TEIXEIRA Barão de Henrique Teixeira de Sampaio 16.3.1818 VALE DA COSTA Visconde de Manuel Pedro Furtado de Almeida 16.7.1891 VILA DA PRAIA Visconde de Duarte Borges da Câmara e Medeiros 7.5.1845 VILA DA PRAIA DA VITÓRIA Conde de Teotónio de Ornelas Bruges de Ávila Paim……Saavedra 28.7.1863 VILA FRANCA Conde de D. Rui Gonçalves da Câmara 7.6.1583 VINHA BRAVA Visconde da Joaquim Pacheco de Utra 29.4.1893 * datas de criação do 1º. Título 2.9.1789 20.4.1876 15.5.1874 17.12.1902 TEIXEIRA / SAMPAIO / AMARAL /GUEDES 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 175 Paulo Silveira e Sousa PRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO O trigo, o milho e o centeio constituíam a base da alimentação da população portuguesa, numa geografia irregular que apresentava áreas próprias, dotadas de características ecológicas específicas. O pão e os cereais eram o símbolo e o instrumento da própria existência camponesa, ultrapassando a sua mera função nutritiva. Para além da produção de alimento forneciam forragem para o gado, entravam na composição dos adubos naturais e constituíam matéria-prima na cobertura das construções rurais, quer estas fossem as casas dos mais humildes, palheiros e estábulos, granéis, moinhos e atafonas, ou outros apoios. Embora seja hoje difícil tentar medir o peso e a importância destas utilizações secundárias, os cereais ocupavam um lugar central em todos os sistemas agrícolas do país, de norte a sul e do litoral ao interior, entrelaçando-se directamente com as explorações agrícolas e com a prosperidade e nível de vida das populações rurais (PEREIRA 1900). A sua distribuição geográfica constituía um dos mapas mais preciosos para definir o território nacional, os seus sistemas produtivos e de propriedade (RIBEIRO 1947). Tal como no continente, também nos Açores grande parte da existência material do camponês girava à volta do conjunto de actividades construído em torno da cerealicultura. Contudo, não possuímos ainda estudos específicos e detalhados sobre a evolução histórica dos sistemas agrícolas do arquipélago ou dos seus diferentes sectores. Desde o povoamento, as tradições alimentares das populações e a necessidade de auxiliar o abastecimento do Reino construíram um modelo de ocupação do solo arável onde predominavam os cereais. Porém, a evolução das distintas formas de combinação entre cultura agrícola intensiva em áreas restritas com a pecuária e o aproveitamento da fauna e da flora naturais (dos matos e incultos) permanece por estabelecer, bem como as várias modulações que se verificaram nas diferentes ilhas. Estas temáticas têm sido, infelizmente, estudadas de acordo com um calendário de eventuais ciclos produtivos que somente toma em atenção as principais produções para exportação, esquecendo quer a importância dos mercados internos quer o abastecimento das populações (SOUSA 2004). Apesar de interessantes capítulos nos trabalhos de Machado (1994), Meneses (1994) e Costa (1997 e 1998) muito ainda há por fazer quanto à história da agricultura nos Açores. Este artigo pretende ajudar a reduzir esta lacuna, procurando estabelecer uma leitura da evolução da produção e consumo dos dois principais cereais cultivados no arquipélago, o trigo e o milho, durante a segunda metade do século XIX, tomando como estudo de caso a pequena ilha de São Jorge. Ao acrescentar dados para um período mais contemporâneo estaremos também a reforçar a articulação e o debate com as investigações já realizadas para períodos da História Moderna. O enfoque detalhado em São Jorge será tanto mais interessante [175] E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 176 quanto constitui um território onde o cultivo de cereais enfrentou sempre condicionantes ecológicas; simultaneamente, é a ilha onde mais cedo as pastagens e a pecuária se transformaram na ocupação maioritária do solo e na principal área da economia agrícola, um traço que só mais tarde, e mais lentamente, se tornou dominante no restante arquipélago. Finalmente, articulando os constrangimentos ecológicos, a economia agrícola e a sua evolução, com a sociedade local, os seus grupos sociais e agentes colocamo-nos mais próximos do que pensamos ser uma História Social global. 2. A CONSTRUÇÃO DO AGROS E A CULTURA DO TRIGO [176] Em todas as ilhas a preocupação em garantir a segurança alimentar levava a que as terras mais férteis fossem reservadas para a produção de cereais que eram um dos produtos mais valorizados nos circuitos mercantis. Em São Jorge esta faixa de terras aráveis era relativamente estreita, tendo antes, grande parte do seu território, melhor aptidão para pastagem. Porém, foi o trigo que constituiu, sozinho nos primeiros séculos, depois em conjunto com o milho, a base da alimentação da população da ilha. Os outros cereais como a aveia, a cevada e o centeio manteriam sempre uma importância bem mais reduzida. A aveia era minoritária e usada sobretudo como grão ou como forragem. O centeio tinha um cultivo bastante limitado e era utilizado principalmente para alimento do gado, dada a fraca aptidão dos terrenos para esta sementeira. Quanto à cevada o panorama era semelhante. Muito diferente do que se podia encontrar na Graciosa, onde este cereal era cultivado em grande escala, constituindo um dos principais produtos de auto-subsistência e mesmo de exportação. Apesar de ter sido, entre o século XV e o inicio do século XVIII, o cereal mais importante, é de reconhecer que o trigo não encontrava no clima húmido e na precipitação contínua mas, por vezes, irregular dos Açores as melhores condições de cultivo. Até ao mês de Junho as searas corriam o risco de se verem gravemente afectadas. Invernos secos e frios, Primave- ras demasiado húmidas e Verões muito chuvosos faziam perigar as colheitas e podiam reduzir os homens à escassez e à fome (SANTOS 1989: 62-63). Em ilhas como São Miguel, Terceira, Faial e Graciosa a produção de grão teve mesmo assim um bom arranque e ganhou raízes. Contudo, em São Jorge, desde o século XVI os cereais começaram a escassear, sem que a produção de trigo tivesse subido em altitude e ocupado parte dos terrenos utilizados nas actividades de pecuária e pastoreio. O relevo e os solos jorgenses impediam pois, um desenvolvimento continuado das culturas de cereal, que começaram a ser importados logo nos finais do século XVI, numa escassez que se revelará endémica nesta ilha. Este traço registou-se igualmente nas Flores e noutra ilha do grupo central, o Pico. Aqui as condições naturais também eram pouco favoráveis ao cultivo do trigo. O binómio gado (nem sempre vacum, neste caso, com importante contingente de cabras e ovelhas) e vinho iria assegurar a maior parte das suas exportações. Boa parte da terra era controlada pelas elites locais e por um número razoável de senhorios de fora (morgados e proprietários residentes no Faial ou em outras ilhas), que dirigiam os seus interesses para as culturas de exportação, já que eram as únicas que permitiam a este grupo social elevados rendimentos e a inserção nos circuitos de economia monetarizados. Para assegurar níveis aceitáveis de subsistência os camponeses do Pico iriam desenvolver, articuladamente, a cultura do inhame e mais tarde, a partir de finais do século XVIII, a da batata. Tal como em São Jorge, a chegada do milho viria a provocar uma grande viragem no aproveitamento agrícola e, muito provavelmente, no crescimento demográfico (COSTA 1998). Em São Jorge a escassez podia acentuar-se dado que às constantes necessidades do consumo interno acresciam os foros dos arrendamentos dos grandes senhorios que eram pagos a trigo. Até ao final do século XIX uma boa parte da superfície agrícola da ponta oeste (zona de Santo Amaro-Rosais) permaneceria maioritariamente ocupada com esta cultura. Para melhor compreender o paradoxo escassez/abundância de cereais ao longo da história desta ilha não chegam, pois, os factores de ordem ecológica. Este terá que ser equacionado “tendo em 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 177 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 3. O TRIGO NO SÉCULO XIX A fome de terra e a real escassez de trigo, tendo em conta a relação de força dos grupos sociais e a orientação produtiva da ilha levou, logo nos séculos XVI e XVII, à introdução de “técnicas para aumentar a produtividade (...) e evitar os danos causados por gados e pragas. O sistema de cercado impôs-se,” e marcou definitivamente as paisagens da ponta oeste de São Jorge. Foram levantadas paredes, aproveitando as pedras retiradas do solo lavrado e plantadas sebes vivas em torno dalgumas propriedades. Procurou-se orientar as águas excedentárias para as ribeiras e grotas e alternaram-se cereais e leguminosas de modo a fornecer ao solo um complemento de azoto; secundariamente os cereais produziam alimento para o gado que foi desde o povoamento uma das principais riquezas da ilha (PEREIRA 1987: 165). No século XIX, os cereais continuavam a ser cultivados nas terras mais secas, principalmente nas freguesias das extremidades da ilha. Da ponta de Rosais estendia-se uma área relativamente plana, pelas Figueiras, Levadas, São Pedro e Relvas, que era considerada o principal celeiro. No concelho da Calheta as terras de pão, menos abundantes e produtivas, além de afectadas pela maior humidade desta zona de São Jorge, espalhavam-se pela Ribeira Seca, Santo Antão e Topo, embora não atingissem o grau de especialização da ponta oeste. A produção destes locais tinha, pois, que complementar a de outras freguesias, como as da parte leste do concelho das Velas (Urzelina e Manadas), as quais não produziam cereal suficiente para o seu próprio consumo, algumas nem mesmo em anos de boas colheitas (MACIEL 2001: 97-102). O grosso da produção de trigo da ilha destinava-se nestes anos do século XIX ao abastecimento das necessidades locais e ao pagamento de rendas e foros aos senhorios locais e de fora, havendo, em anos de boa colheita, razoável exportação para o mercado continental, através da Terceira. Apesar da permanente oscilação das suas colheitas, o trigo era uma cultura essencial para a auto-subsistência das populações e muito importante nos circuitos de mercado e de exportação onde tinha uma elevada valorização, estando a par do vinho e do gado. O carácter oscilante das suas colheitas (que lutavam sempre com um relevo e um clima hostil) ajudava a tornar o grão um produto escasso, mas fazia com que a sua posse possibilitasse algumas mais valias nos mercados. Uma boa colheita de cereal dava origem a rendimentos importantes para os grandes proprietários e morgados locais. Para que tudo corresse bem era necessário que a exportação fosse livre, ficando a auto-suficiência alimentar das populações em segundo plano e que, entre as pastagens e as terras cultivadas com cereal, se estabelecesse um equilíbrio muito estreito. Localmente, esta importância do trigo nas subsistências e o preço alto que atingia nos mercados faziam com que houvesse um cultivo razoável e com que as rendas de muitas terras lavradias fossem elevadas e pagas frequentemente em géneros, tornado a apropriação do grão ainda mais desigual. Mesmo no século XIX, quando o milho era já o principal cereal de subsistência, muitos dos foros das terras lavradias e de pão, continuavam a ser pagos a trigo, por Santa Maria de Agosto, quase nunca a milho. Os cereais acumulados acabavam por servir como moeda de troca no pagamento de trabalhos agrícolas ou como uma reserva gerida cuidadosamente nas ocasiões de escassez e de fome. A irregularidade da produção de trigo trazia enormes dificuldades ao trabalho agrícola e obrigava a gastos suplementares em mão-de-obra, que a maior produtividade do milho, também muito exigente em cuidados e mão-de-obra, acabava por compensar. Normalmente os anos de piores colheitas davam origem a pequenos motins ou à recusa em pagar as rendas, recorrendo-se nestas alturas à importação do exterior ou à proibição, nem sempre apoiada pelo governador civil e pelas elites locais, da exportação destes dois cereais. [177] conta a quem pertencia a terra e quem fazia a sua exploração, considerando os encargos acrescidos que pesavam sobre esta. Deve considerar-se ainda a distribuição das várias culturas pelas superfícies aráveis da ilha e o equilíbrio entre estas e a criação de gado” (PEREIRA 1987: 166-167). 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 178 QUADRO 1 - PRODUÇÃO DE CEREAIS NAS ILHAS DOS AÇORES EM 1873 (HECTOLITROS) Distritos Ilhas ANGRA Terceira HORTA P. DELGADA TOTAIS Trigo Milho Centeio Cevada 86.764 97.188 243 704 Graciosa 3.500 5.000 12 7.600 São Jorge 3.833 16.705 105 107 Faial 12.005 48.851 124 303 Pico 2.210 28.739 42 3 Flores 1.835 5.903 34 31 Corvo 330 1.340 75 – São Miguel 57.764 363.431 262 190 Santa Maria 9.000 7.200 250 345 177.241 574.357 1.147 9.283 [178] Fonte: Gerardo Pery (1875), Geografia Estatística de Portugal e Colónias..., Lisboa: Imprensa Nacional, p. 157. O quadro 1, que deve corresponder a um ano de boas colheitas, mostra bem a enorme disparidade de produções entre as ilhas, com São Miguel à frente no milho e a Terceira no trigo. Em 1873, o milho é claramente dominante no arquipélago, à excepção de ilhas mais secas como Santa Maria, e, em menor escala, a Terceira, onde a vantagem do milho sobre o trigo é reduzida. No Pico a produção de trigo é apenas cerca de um quatorze avos da de milho, em São Miguel cerca de um sexto, em São Jorge cerca de um quinto, no Corvo e no Faial ela é cerca de um quarto, para se equilibrar em pouco mais de um terço nas Flores. A produção de milho atribuída a São Jorge é relativamente pequena, ficando em quinto lugar entre as ilhas do arquipélago; no caso do trigo a sua posição está marcada em quarto. Tal como o Pico e as Flores era uma ilha sujeita desde há séculos a regulares crises de abastecimento de cereais. Comparando o volume da produção de trigo das ilhas do distrito de Angra em 1873 com o dos anos que medeiam entre 1880 e 1887, o que nos chama, desde logo, a atenção é a quebra da produção terceirense, o que terá forçosamente que ver com a crescente concorrência externa e com a sua depreciação nos mercados continentais. Aqui, o trigo americano tinha começado a invadir o mercado a partir da década de 1870, levantando logo um imenso coro de protestos por parte dos produtores do sul do país. No entanto, as políticas acentuadamente proteccionistas só viriam em 1889 e depois em 1899 (REIS 1981). Nos Açores os reflexos destes acontecimentos foram importantes. A 28 de Fevereiro de 1885 o jornal A Terceira publicava uma representação dos povos da ilha dirigida à Câmara dos Deputados, pedindo o aumento dos direitos sobre os cereais estrangeiros. O mercado importador dos cereais locais tinha sido sempre o de Lisboa. E desde que se extinguira a exportação de laranja a economia da ilha ficara refém desta produção. Se o mercado de Lisboa não a conseguia absorver, a economia da ilha via-se a braços com uma crise. A saída seria encontrada nas décadas seguintes quando o jogo dos interesses se passou a organizar em torno da produção de álcool industrial, dos lacticínios e da exploração da fileira pecuária. Na ilha de São Jorge apesar de alguns bons anos agrícolas no início da década de 1880, a produção de trigo começaria, igualmente, a declinar a partir de 1887. 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 179 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX QUADRO 2 - PRODUÇÃO DE TRIGO DO DISTRITO DE ANGRA DO HEROÍSMO EM 1866, 1868-1870, 1873-1876, 1880-1887 (HECTOLITROS) Angra Praia Ilha Terceira Velas Calheta Ilha de S. Jorge Sta Cruz (Graciosa) Total distrital 1866 14.507 37.673 52.180 2.984 1.964 4.948 5.861 62.989 1868 26.397 34.359 60.757 3.123 1.961 5.084 4.923 70.764 1869 14.098 60.921 75.019 3.227 700 3.927 5.673 84.619 1870 25.770 35.322 61.092 2.870 1.400 4.270 5.000 70.363 1873 38.383 48.381 86.764 2.574 1.260 3.824 3.500 94.098 1874 37.296 52.943 90.239 2.886 1.260 4.146 3.800 98.184 1876 25.390 32.580 57.970 2.345 1.134 3.479 2.800 64.249 1880 13.726 27.693 41.419 2.710 1.888 4.598 3.260 49.227 1881 12.916 32.580 45.496 2.695 1.500 4.195 3.000 52.692 1882 19.380 37.467 56.847 6.805 1.229 8.034 2.000 66.881 1883 27.820 32.417 60.237 6.310 810 7.120 3.600 70.957 1884 26.667 33.314 59.981 6.800 1.300 8.100 4.000 72.161 1885 26.565 30.951 57.516 6.200 900 7.100 4.000 68.616 1886 26.536 32.580 59.116 4.100 1.000 5.100 3.500 67.716 1887 22.810 24.445 47.255 2.640 900 3.540 3.000 53.785 Fonte: Dados 1864, Almanaque do Arquipélago dos Açores para 1868, p. 26. Dados 1866, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1867, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil, Joaquim Taibner de Morais, Angra: Tip. do Governo Civil, 1867 (os alqueires foram convertidos em litros pelas medidas dos concelhos). Dados 1868 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1870, pelo Governador Civil Félix Borges de Medeiros, Angra: Tip. do Governo Civil, 1870; Dados 1869, AHMOP, DGCI, RA-1S, 20. Dados 1873 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1874, pelo Governador Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro, Angra: Tip. do Governo Civil, 1874, mapa nº 3. Dados 1874, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1875, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil Gualdino Alfredo Lobo de Gouveia Valadares, Angra: Tip. do Governo Civil, 1875, p. 133. Dados 1880-1887, João Nogueira de Freitas (1890), p. 95. Os sinais de crise já se manifestavam, portanto. No início da década de 1880, escrevia-se no Velense: “a quantidade de trigo produzida é consumida aqui mesmo e nem chega para o consumo. Ainda não há muitos anos que algum trigo daqui se exportava. A cultura não diminuiu ao menos de modo perceptível. Hoje recebe-se trigo da Terceira e por vezes alguma farinha nos vem dos EUA. Decididamente tem aumentado o consumo, em consequência dos muitos empregados públicos que agora aqui residem, e da melhor alimentação que exigem os nossos patrícios repatriados da sua peregrinação à América” (“Crónica Agrícola” in O Velense, nº 19 de 8.9.1880). É muito provável que o consumo de trigo tenha aumentado paulatinamente, acompanhando a melhoria das condições de vida e de alimentação dos jorgenses. Contudo, este comentador não assinalava a baixa do preço devido à concorrência das farinhas estrangeiras, os impactos da crescente ocupação do solo por pastagens e, mais importante ainda, o crescimento da cultura do milho. Este último cereal via a sua área de cultivo reforçada perante a diminuição do interesse económico do trigo, incapaz de concorrer nos mercados exteriores. O milho reforçava no meio camponês a sua centralidade como principal cereal de subsistência. Por [179] Anos 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 180 exemplo, em 1885 a área cultivada com trigo no concelho da Calheta era avaliada em 145 hectares. A área cultivada com milho no mesmo concelho era avaliada em 1225 hectares1. [180] Durante séculos a ponta oeste de São Jorge tinha sido a principal zona de produção de grão. Porém, em finais do século XIX, a cultura do trigo tornava-se pouco rentável, mesmo nestas áreas. À constante depreciação dos cereais e à maior produtividade do milho, juntava-se o fim do monopólio relativo da terra por parte dos arrendamentos dos senhorios de fora e dos grandes proprietários locais, com a remissão de muitos dos foros e censos que eram pagos neste género agrícola (SOUSA 2007). Para a vizinha ilha da Graciosa, António de Brum Ferreira (1968), seguindo a monografia de António Borges do Canto Moniz (1887), diz-nos que foi também o lento desaparecimento dos foros (através das sucessivas leis de remissão), que marcou a decadência definitiva da cultura do trigo, estando, pois, na origem da grande difusão do milho registada no último quartel do século XIX. Porém, tal como foi referido para São Jorge, este não foi o único factor. A mudança registada prendeu-se, sobretudo, com a queda dos preços dos cereais açorianos e com a crescente concorrência dos produtos oriundos das economias agrícolas emergentes no mercado mundial. Contudo, parece-nos lógico que esta viragem para o milho tenha sido mais tardia na Graciosa, dada a sua enorme especialização na produção de cereais de sequeiro (trigo, e principalmente cevada) e dadas as aptidões naturais propícias que o seu território oferecia. A depreciação, a concorrência local do milho e dos cereais americanos nos mercados exteriores, assim como a emigração e a diminuição dos elevados contingentes de mão-de-obra disponível e barata fizeram, portanto, declinar esta produção. E não só em São Jorge. Se a economia das três ilhas que compunham o distrito de Angra se ancorava na exportação de cereais, a partir da década de 80 a derrocada seria relativamente geral. Mesmo a economia da ilha Terceira começaria a orientar-se, de forma crescente, para a criação e exportação de gado e de lacticínios e, mais tarde, para a indústria do álcool. Escrevendo em 1897, João Duarte de Sousa referia que “hoje a cultura do trigo, porque é ruinosa, apenas se pratica na gene- ralidade em alguns terrenos que já se mostram incompetentes para a cultura do milho, para descanso das terras, como dizem, pelo esgotamento dos milheirais” (SOUSA 1897: 106). Sendo já a supremacia do milho e findo o interesse especulativo na exportação de cereais, instalava-se, numa boa parte dos terrenos destas zonas, uma espécie de sistema de rotação entre trigo e milho que vai durar até depois da primeira metade do século XX (MENDONÇA 1966: 57-60). Na correspondência da 2ª quinzena de Agosto de 1870 com o MOPCI, o intendente de pecuária do distrito de Angra referia que os sistemas de afolhamento eram muito pouco usados na Terceira: “o lavrador semeia ordinariamente o género que mais precisa e deixa de pousio a terra quando vê que os produtos lhe escasseiam”. No caso dos cereais, a uma sementeira de trigo sucedia-se outra de milho, sendo este último plantado sobre o restolho do primeiro. Nas terras lavradias do interior, vulgarmente denominadas pastos, os lavradores logo depois da ceifa costumavam dar uma primeira lavra, juntar o restolho e outras ervas e queimá-los, espalhando as cinzas e misturando-as com a terra, através de uma outra lavra, podendo estas operações ser repetidas várias vezes. A partir de Outubro começavam então as sementeiras de trigo nas terras assim preparadas (AHMOP, DGCI, RA-1S, 3, Maço de ANGRA, 1870). Os processos de cultivo rotineiros e tradicionais poderão também ter tido alguma influência em toda esta lenta decadência do trigo, mas, neste caso, pensamos que a maior parte dos comen- 1 Dados retirados de BPAAH, “Produção Cerealífera 1885”, fundo do concelho da Calheta (por catalogar). Agradeço ao Paulo Lopes de Matos ter-me, generosamente, disponibilizado estes dados. Actualmente é difícil estudar a História do concelho da Calheta. Na década de 1990, durante a presidência do senhor José Leovegildo de Azevedo, sendo vereador da cultura, o senhor Aires Reis, actual deputado à Assembleia Legislativa Regional, deu-se o ainda inexplicado desaparecimento de todo o Arquivo Municipal da Câmara da Calheta, do qual nem os livros de Actas das Vereações se salvaram. Existe, contudo, um inventário deste acervo (cujo paradeiro continua incerto, mesmo para os funcionários da autarquia), efectuado por uma equipa da Universidade dos Açores, coordenada pelo Professor Doutor Artur Teodoro de Matos, na década de 1980. Se este é um caso de incúria ou de polícia deveria ser responsabilidade dos munícipes proceder à respectiva denúncia, cabendo às autoridades competentes (Direcção Regional da Cultura) averiguar os factos. 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 181 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 4. O MILHO E A TRANSFORMAÇÃO DA AGRICULTURA DE SÃO JORGE Supõe-se que o milho tenha sido introduzido nos Açores mais tarde que em Portugal continental (BRITO 1955: 95-96). As primeiras notícias datam dos finais do século XVI, embora não saibamos se elas se reportavam ao milho maís ou ao milho painço (MATOS 1987: 12). No diário de bordo de Francisco Faria Severim, datado de 1598, refere-se que a ilha Terceira “é muito abundante de trigo e muita cevada e algum milho e centeio...” (MATOS 1987: 25). Quanto a outras ilhas, F. de Faria Severim apenas iria mencionar o trigo e outros cereais de sequeiro. Sabendo do papel central da cidade de Angra nas rotas marítimas, pode-se levantar a hipótese do milho ter sido introduzido nos Açores por esta ilha, espalhando-se mais tarde pelos outros territórios. O padre Maldonado, na Fénix Angrense, refere o pouco uso que em 1647 se fazia dos “milhos grossos”, nome porque era normalmente mais conhecido o milho painço. Escrevendo em 1710 o padre António Cordeiro iria adiantar que o milho fora introduzido para substituir o pastel, sendo ainda no final do século XVII mal aceite pelas populações (CORDEIRO 1717: 276). A sua expansão e generalização teria lugar já no século XVIII, tornando-se progressivamente o principal cereal de consumo (MACHADO 1995: 180). E, por exemplo, José Cândido da Silveira Avelar, apoiado pelas actas das vereações da Câmara das Velas, avança a hipótese muito plausível dele ter sido introduzido em São Jorge entre o terceiro e o quarto quartel do século XVII (AVELAR 1902: 140). Porém, podemos também supor que, embora a introdução tenha sido anterior, só nestes anos a sua produção começou a ter um peso importante, passando a fazer parte dos registos oficiais. De qualquer forma, no século XVIII, e um pouco por todo o arquipélago a concorrência que fazia aos cereais de sequeiro era já um facto, como o prova um recente estudo sobre a ilha de São Miguel (MACHADO 1994). Talvez devido à sua adequação ao clima temperado e húmido das ilhas, este cereal foi gradualmente substituindo o trigo, o centeio e a cevada, provocando uma alteração bastante ampla nas estruturas do quotidiano rural. Nas actas da Câmara Municipal da Calheta vai acompanhando o trigo como os dois principais cereais de subsistência, pelo menos a partir da segunda metade do século XVIII. Nas Velas, de acordo com o Manifesto da produção de cereais, em 1806 o milho era já o cereal dominante ao nível da quantidade produzida2. As colheitas nas freguesias de Rosais e das Velas cifraram-se nesse ano em 486,8 moios de milho (ou seja 416.214 litros) e, somente, 163,73 moios de trigo (140.006 litros)3. No entanto, é difícil extrapolar a partir destes dados qual dos dois ocupava uma maior área de cultivo, dado que a produtividade do milho é, como já referimos, bastante superior. Em termos da globalidade da ilha, parece-nos que a completa e esmagadora supremacia do milho só se terá alcançado durante a segunda metade do século XIX, sendo então dominante, até na principal zona produtora de trigo. No entanto, esta afirmação deveria ser testada em várias freguesias. 2 Manifesto da Produção de Cereais neste Concelho (1806), Arquivo Para o continente estudos recentes apontam o reinado de D. João III como data provável das primeiras experiências de cultivo, tendo-se somente começado a vulgarizar a partir do século XVII (BORGES 1991). Mesmo que levantemos a hipótese do milho não ter sido durante os primeiros séculos muito utilizado na alimentação humana nas ilhas dos Açores, a maior parte das fontes aponta para uma introdução mais tardia. Municipal das Velas (reservados), maço 19. Este documento, elaborado a fim de prevenir as crises de subsistências, apresenta um mapa de todos os produtores e respectiva produção de milho, trigo e batata, divididas pelas diferentes povoações. Por limitações de tempo, só pude fazer as contas para as freguesias da ponta oeste. 3 Um moio é igual a 60 alqueires (um alqueire = 14,25 litros), ou seja um moio são 855 litros. Medidas de acordo com as conversões feitas no Almanaque do Arquipélago dos Açores, 1864, 118. [181] tadores da época reflectem sobretudo uma imagem muito típica do século XIX: a do camponês rotineiro, ignorante e avesso à mudança. Este tipo de imagens oblitera quase sempre as lógicas internas à produção económica e as eventuais formas de economia de escala em que assentavam as estruturas camponesas tradicionais e a racionalidade das suas práticas (SOUSA 2005). 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 182 A ponta oeste pode ter ficado, por razões que se prendem com os preços, mais especializada neste cereal, enquanto que nas outras áreas de São Jorge o milho já seria dominante há bastante mais tempo. Mas trata-se por agora de levantar hipóteses. [182] Estes factos permitem-nos pensar que se pode estabelecer uma ligação próxima entre, por um lado, a efectiva expansão do milho durante o século XVIII e a introdução e o cultivo em grande escala da batata a partir das últimas décadas deste mesmo século, e, por outro, o aumento constante da população açoriana, até aos primeiros anos da década de 1880. As melhores condições de subsistência e alimentação, garantidas pela combinação destes dois produtos a partir do final do século XVIII, poderão, tal como sucedeu com o milho no noroeste português, estar na origem da grande expansão da população do arquipélago (MEDEIROS 1987 e FEIJÓ 1993: 158-160). Se pelas evidências demográficas a hipótese parece confirmar-se, falta um estudo aturado da história agrária do arquipélago para podermos ter mais garantias. Parece ficar claro que, pelo menos, no princípio do século XIX o milho constituía já a base da alimentação camponesa, sendo ainda utilizadas as suas folhas e bandeiras na alimentação do gado vacum. Contudo, mesmo depois de introduzido e assimilado como cereal de subsistência, ele continuou a sofrer a concorrência do trigo que tinha uma maior cotação económica nos mercados exteriores. Com isto, não queremos afirmar que não se exportasse milho, bem pelo contrário, São Jorge exporta estes dois cereais pelo menos ao longo do século XIX. E, pelas notícias que temos, a exportação de milho era significativamente mais volumosa que a de trigo, ao contrário das outras duas ilhas do distrito. Por um lado, estamos perante culturas com produtividades e preços diferentes, por outro, a necessidade e os interesses de quem monopolizava uma parte importante da terra impunham que se aproveitasse o território da ilha de modo a produzir estas duas culturas e a conseguir excedentes para os mercados exteriores. A revolução do milho que transformou as paisagens do norte atlântico do continente, admiravelmente descrita por Orlando Ribeiro, teve como grandes consequências o arranque de vastas arroteias, a supressão dos pousios; o aumento da área regada pela construção de socalcos; uma agricultura intensiva, variada, minuciosa; o declínio do pastoreio por falta de espaços abertos à deambulação dos rebanhos; a separação definitiva do campo e do bosque; uma maior iniciativa no trabalho familiar; uma decadência irremissível do espírito de comunidade, individualismo que se traduziu no parcelamento da terra, na multiplicação de sebes, muros e divisórias, e na disseminação das habitações. Tudo isto o milho favoreceu, permitiu ou provocou (RIBEIRO 1945: 122). Sem querer fazer aqui um inventário tão exaustivo, refiro somente que o cultivo e a expansão do milho provocaram uma ampla mudança no quotidiano rural de São Jorge. Não só competia com o trigo pelo mesmo andar de cultivo, numa ilha onde as terras aráveis são escassas, como também se adaptava a terrenos e a pequenos prédios cujas colheitas o trigo nunca poderia tornar compensatórias. A possibilidade de plantar o milho em pequenos socalcos húmidos deve ter levado à ocupação de muitas encostas e os seus diferentes tempos alteraram o ritmo de vida do camponês. O elevado rendimento, a resistência às condições climáticas desfavoráveis para os cereais de sequeiro e o facto de fornecer ainda forragem para os gados (as bandeiras, as espigas, os milheiros, tudo era aproveitado e guardado para alimentar o gado durante o Inverno), tornaram o milho incontornável no quotidiano camponês. A estrutura da propriedade, com um peso elevado do arrendamento e do aforamento, dividida em pequenas parcelas, ajudava também à dominação crescente deste cereal, típico de sistemas agrários intensivos. O milho, apesar de se adaptar ao clima húmido e temperado das ilhas, é bastante exigente em termos de cuidados e de trabalho humano. Muito mais do que alguma vez o foi o trigo, ao longo da História de São Jorge. Já no final do século XIX, a emigração e o recuo continuado da população iriam encarecer o jornal, tornando difícil encontrar trabalhadores para realizar as sachas. Nestas alturas do ano, os proprietários protestavam e surgiam recorrentemente os debates em torno dos malefícios da emigração (SOUSA 1897: 77). Nestes últimos anos do século XIX, a cultura do milho fazia-se em larga escala, sendo de longe a principal da ilha: “só são apli- 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 183 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX cados a outra espécie cultural os terrenos que de todo em todo se não prestam à produção d’aquele cereal” (SOUSA 1897: 77). E, em anos regulares, chegava-se mesmo a exportar para o mercado continental. ção entre as duas culturas. No quotidiano, o pão de milho foi-se tornando o pão de consumo corrente, enquanto que o pão e a farinha de trigo se tornavam produtos dirigidos, principalmente, para as ocasiões festivas. A sua farinha entrava na composição das refeições especiais: na forma de pão alvo; ou como bolo: na forma de biscoito ou massa sovada. O crescente acesso à propriedade por parte dos camponeses e a ligação do milho à produção de forragem, numa época de notável incremento pecuário, foram outros factores que ajudaram à ocupação definitiva por este cereal da grande parte das terras aráveis da ilha, instalando-se aqui o já referido sistema de rota- Estas posições relativas da importância do trigo e do milho eram então semelhantes às que encontraríamos, um pouco mais tarde, em algumas áreas do norte atlântico de Portugal conti- Anos Angra Praia Ilha Terceira Velas Calheta Ilha de S. Jorge Sta Cruz (Graciosa) Total distrital 1866 50.318 46.904 97.222 1868 30.782 31.271 62.053 15.216 34.623 17.883 10.971 49.839 16.300 163.362 28.863 5.742 96.659 1869 35.685 87.120 1870 58.458 71.122 122.805 16.635 129.579 15.570 8.443 25.078 8.448 156.331 5.000 20.570 7.200 157.150 1873 44.246 1874 77.354 52.942 97.188 10.704 6.000 16.704 5.000 118.892 89.595 166.949 11.129 6.000 17.129 6.000 190.078 1876 54.820 44.798 99.618 12.175 5.400 17.575 4.800 121.992 1880 53.852 86.337 140.189 15.585 9.925 25.510 16.200 181.899 1881 34.190 48.870 83.060 16.895 6.610 23.505 3.000 109.565 1882 37.540 58.644 96.184 16.157 6.620 22.777 5.000 123.961 1883 71.000 86.400 157.400 17.600 12.000 29.600 9.800 196.800 1884 65.330 67.500 132.830 18.100 16.000 34.100 9.600 176.530 1885 66.700 58.800 125.500 19.520 19.000 38.520 8.000 172.020 1886 67.030 90.000 157.030 19.300 22.500 41.800 14.000 212.830 1887 72.550 108.000 180.550 18.460 15.000 33.460 19.000 233.010 1888 74.000 90.000 164.000 14.900 15.000 29.900 14.000 207.900 Fonte: Dados 1864, Almanaque do Arquipélago dos Açores para 1868, p. 26. Dados 1866, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1867, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil, Joaquim Taibner de Morais, Angra: Tip. do Governo Civil, 1867 (os alqueires foram convertidos em litros pelas medidas dos concelhos). Dados 1868 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1870, pelo Governador Civil Félix Borges de Medeiros, Angra: Tip. do Governo Civil, 1870. Dados 1869, AHMOP, DGCI, RA-1S, 20. Dados 1873 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1874, pelo Governador Civil Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro, Angra: Tip. do Governo Civil, 1874, mapa nº 3. Graciosa, 1872, Almanaque Insulano para 1874, pp. 85-86. Dados 1874, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1875, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil Gualdino Alfredo Lobo de Gouveia Valadares, Angra: Tip. do Governo Civil, 1875, p. 133. Dados 1880-1887, João Nogueira de Freitas (1890), p. 95. [183] QUADRO 3 - PRODUÇÃO DE MILHO DO DISTRITO DE ANGRA DO HEROÍSMO EM1866, 1868-1870, 1873-1876 E 1880-1888 (HECTOLITROS) 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 184 nental. Em 1900 a alimentação com pão de trigo rondava os 12% em Viana, Viseu e Guarda; subia para 18% em Aveiro, Braga, Bragança e Vila Real; alcançava 36% no Porto, Leiria e Santarém; em Faro atingia os 80% e em Lisboa, Portalegre, Évora e Beja chegava aos 95%. No Norte litoral o pão era ainda o milho e no interior o centeio. Contudo, num movimento que não foi uniforme, durante as primeiras décadas do século XX, o consumo de pão de trigo iria aumentar, associado agora à expansão da panificação industrial e da cada vez mais poderosa indústria das moagens (MATOS 1935: 12). Apesar das flutuações a produção de milho registaria um acréscimo consolidado desde 1883, em todo o distrito. A Terceira e São Jorge foram as ilhas que mais contribuiram para esse aumento. Porém, dados estatísticos que estamos actualmente a trabalhar permitem confirmar que o seu crescimento foi igualmente importante na Graciosa nos finais do século XIX. [184] Na década de 1890 registar-se-iam algumas colheitas excepcionais. No caso de São Miguel seria mesmo realizada uma grande exportação para Lisboa e para a Madeira (“Relatório dos Serviços Agrícolas da 11ª Região Agronómica”, in BDGA, nº 11 de 1892, pp. 1133-1134). Nesta ilha os cereais tinham já um papel secundário nas exportações, centradas agora na indústria do álcool. Mas o milho continuava decisivo para a subsistência camponesa, ocupando ainda cerca de metade dos terrenos cultivados. Apesar de igualmente afectada pela concorrência do milho americano, a produção micaelense conseguia ainda assim lutar com vantagem, podendo, segundo o agrónomo da região açoriana oriental, vir a beneficiar das medidas proteccionistas que já se previam no horizonte legislativo (“Relatório do agrónomo chefe da 11ª Região Agronómica, sobre serviços agrícolas e filoxéricos no ano de 1891”, BDGA, nº 12, 1892, p. 1220). No entanto, a nova legislação proteccionista estaria sobretudo dirigida para a intensificação da produção cerealífera do sul do país com a qual, provavelmente, a produção açoriana passou a ter que concorrer, em condições de franca desvantagem nos preços. Até 1766 os fornos de pão eram monopólio dos capitães-donatários das ilhas. Porém, a lenta dissolução deste sistema de admi- nistração política e civil fez com que os fornos se começassem a vulgarizar mais cedo nos territórios em que o seu fim foi mais precoce. Quando chegamos à segunda metade do século XIX, em todo o arquipélago, as casas camponesas mais abastadas estavam já providas com estes equipamentos num movimento que se acentuou com a predominância da cultura do milho. Em São Jorge, tal como noutras parte do arquipélago, a excessiva humidade do clima exigia que o milho fosse seco no forno antes de debulhado, sendo depois guardado em arcas (barricas ou caixões). Para moer os cereais, apenas as casas camponesas mais ricas, com maiores produções, teriam igualmente eiras, atafonas ou moinhos de água ou de vento próprios. A quantidade produzida deveria ser assim capaz de tornar viáveis estes equipamentos. Contudo, até à primeira metade do século XIX este era um cenário raro dado que uma parte significativa da população permanecia relativamente dependente do trigo. Para os mais pobres restavam os velhos moinhos de mão, as lajes de pedra e os tijolos de barro, onde se coziam os denominados bolos, pães de pouca altura e de forma circular. Quer uns quer outros, sendo uma constante em todas as ilhas do arquipélago, encontram modelos comuns na cultura material mediterrânica e mesmo na Europa Atlântica durante a Época Moderna (MARTINS 1997: 119-170). Durante boa parte do Antigo Regime os moinhos hidráulicos, de vento e atafonas eram monopólio dos capitães-donatários que controlavam, assim, a montante e a jusante, o processo de transformação dos cereais (MARTINS 1997: 121). Desde a criação das capitanias-gerais e da legislação reformista que surge associada ao Pombalismo que estes equipamentos se vão progressivamente vulgarizando. A redistribuição da propriedade e a definitiva implantação do milho como o principal cereal ajudariam a aumentar o aproveitamento dos sistemas de moagem movidos a água e a vento. Sobretudo estes últimos teriam a vantagem, tal como as atafonas, de não depender dos caudais oscilantes das ribeiras, em ilhas onde, pelo menos no período de Verão, grande parte da costa sul se via confrontada com a carência de água. No entanto, em relação aos moinhos de vento as fontes são pouco esclarecedoras. A maior quantidade de referências dada às atafonas e aos moinhos de água fazem-nos 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 185 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA pensar que a sua construção, em larga escala, poderá ser mais recente do que à primeira vista se pode supor. Ela estará relacionada com esta expansão do milho e com a transformação em produtores autónomos de uma fracção considerável dos habitantes das ilhas, num processo muito auxiliado pela emigração e pelos novos recursos que esta permitiu. Mas trata-se, aqui, novamente de uma hipótese que deveria ser desenvolvida ou refutada no quadro de outras investigações, com um cunho etnográfico mais intenso. De acordo com dados oficiais, existentes para 1911, o concelho das Velas possuía nesse ano 29 moinhos de vento, não havendo referência a nenhum engenho hidráulico, de explosão ou a vapor. No vizinho concelho da Calheta os moinhos de vento eram 12, estando igualmente recenseado um moinho de água (Boletim do Trabalho Industrial, nº 76). Porém, no caso dos engenhos hidráulicos estes dados parecem-nos claramente subavaliados, dado existirem vários cursos de água, na Fajã da Caldeira, de São João, na Ribeira Seca, ou na Ribeira das Lixívias, próximo do Cruzal, com caudal suficiente para alimentar pequenas moagens. A este propósito podem bem servir de exemplo muitos dos engenhos hidráulicos ainda hoje existentes nas margens destas ribeiras. Porém, a modernidade e a máquina também chegaram. Em 1862, uma sociedade liderada por José Pereira da Cunha da Silveira e composta pelo seu irmão João Pereira da Cunha Pacheco, padre António de Lacerda Pereira, João Silveira de Bettencourt e Carvalho, entre outros notáveis locais, montou uma máquina de moagem a vapor na vila das Velas. A máquina, construída na Fundição Portuguesa de Colares, tinha a força de 6 cavalos (O Jorgense nº 13 de 15.8.1871). Esta iniciativa iria apenas durar três escassos anos. Por um lado, a capacidade do equipamento ultrapassava as necessidades locais de moagem, por outro, os custos com o combustível revelavam-se demasiado dispendiosos para se conseguir obter algum lucro. Com a produção de trigo e de milho destinada à exportação ou integrada na autosubsistência familiar, com fracas colocações nos circuitos de mercado, era impossível pôr em funcionamento uma moagem industrial, por maior que fosse a boa vontade dos investidores. Em 1871 o grupo de sócios a quem pertencia a máquina tentaria, sem grande êxito, vendê-la. Nesse mesmo ano, a imprensa local afirmava já que a cultura dos cereais estava sendo, em grande parte, anti-económica, defendendo uma grande alteração na economia agrícola da ilha, através da restrição da produção de milho e trigo em favor da criação de gado (O Jorgense, 15.3.1871 e 1.8.1872). Em Março de 1885 várias câmaras do distrito de Angra, entre as quais a das Velas, enviavam representações ao governo pedindo medidas legislativas de protecção para os cereais açorianos (AMV, Registo das Representações ao Governo de Sua Majestade (1870-1902), fls. 35). Em 1897, tornariam a levantar-se vozes em São Jorge a defender limitações à cultura dos cereais, que se tornava anti-remuneradora, perguntando-se para quê tanta insistência se a escassez de braços devido à emigração e o próprio clima a contrariavam: “Para quê lavrar outeiros, proceder a ceifas e debulhas, afrontar os frios de Janeiro e os calores de Julho, olhando em final o trigo no granel, mercê da concorrência americana?” (SOUSA 1897: 65-81). Em Junho de 1891, numa representação feita ao governo central, declarava-se que “a cultura cerealífera que tem sido a principal riqueza da ilha depois do completo aniquilamento da viticultura pela invasão do Oidium em 1854, vai numa decadência (...) progressiva e assombrosa”, referindo-se que “num futuro pouco remoto”, com a escassez de braços devido à emigração ela “deixará por certo de se fazer” (AMV, Registo das Representações ao Governo de Sua Majestade (1870-1902), fls. 52-54). Aqui parece-nos que era a cultura cerealífera como grande exportação que estava definitivamente a desaparecer. As arcas, o granel, mesmo os tirantes das casas de muitos camponeses, não deixavam, por isso, de estar razoavelmente preenchidos, só que desta vez de maçarocas de milho. Porém, fica uma pergunta no ar a aguardar futuras investigações: se o milho é introduzido tão cedo, no final do século XVI, porque é que só viria a afirmar o seu peso definitivo depois dos anos de 1800, em que começa, igualmente, a ocupar a zona tradicional de produção do trigo? Podemos tentar responder, referindo que, durante o Antigo Regime, o poder e o controle dos grandes proprietários e morgados seriam tão grandes nas terras lavradias e de pão, e o [185] METADE DO SÉCULO XIX 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 186 preço do trigo nos mercados tão apelativo, que a sua produção se manteve, apesar de declinante, dentro da esfera principal dos interesses das elites locais nas poucas zonas favoráveis a esta cultura. Apenas a abertura do mercado de cereais açorianos ao exterior e a descida de preço do trigo regional a partir de inícios da década de 1880 viriam a alterar definitivamente o que ainda restava. 5. AS CRISES DE SUBSISTÊNCIA: RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO SOCIAL DOS RECURSOS NATURAIS [186] As crises de subsistências constituíam acontecimentos recorrentes na História açoriana. Parte substancial do grão produzido não entrava nos circuitos de mercado. Era um bem de subsistência escasso e fundamental na alimentação camponesa, vivendo a sua produção num equilíbrio precário que, em situações de ruptura, ocasionava crises generalizadas, sendo aí necessário o recurso à sua importação. No caso de São Jorge, desde o final do século XVI que a ilha era ciclicamente afectada por períodos de carestia e escassez. Estes problemas de abastecimento tornavam-se difíceis de resolver numa estrutura produtiva orientada para a exportação de cereais, a criação de gado e a produção de vinho (pelo menos até à primeira metade do século XIX). As vilas, com uma razoável população de trabalhadores rurais e indiferenciados, pescadores e artesãos, acabavam por ser os lugares mais afectados por estas carências. Fazendo parte do quotidiano da população, ao longo do século XIX, as crises de subsistência afectariam diversas vezes a ilha: em 1812, 1846-1847, 1857-1858-1859, 1877 e 1893-1894. Para explicar estas crises alimentícias recorrentes temos que recordar que São Jorge, Pico e Flores são as ilhas do arquipélago onde a produção de trigo é mais problemática, por motivos orográficos e de solos. Como vimos atrás, a terra lavradia era um bem escasso em São Jorge, desigualmente distribuído quer em termos sociais, quer em termos espaciais entre as várias freguesias. Por outro lado, a população atingia neste século (segundo os dados do Censo de 1878) um pico demográfico: pouco mais de 18.000 habitantes. Daí, podermos também supor que se verificava um desequilíbrio entre recursos e população, uma relação precária entre produção e demografia, entre homens e recursos, entre terra e população. Na segunda metade do século XIX, parte dos terrenos marginais susceptíveis de serem cultivados com cereais e de aumentarem, mesmo com custos muito elevados, a produção eram utilizados como pastagem, dado que a criação de gado era uma actividade bastante rentável. Esta tentativa de equilíbrio entre as duas actividades provocava uma competição entre cereal e pastagem, sendo que, de um lado, estavam os proprietários e morgados e, do outro, os camponeses. Estas terras marginais, onde a produtividade do trigo e do milho seriam menores e os custos em trabalho e factores mais intensivos, terras que dariam origem a rendimentos decrescentes, mas permitiriam melhorar a autosubsistência dos agregados humanos, estavam ocupadas por produções que beneficiavam a elite terratenente local. E esta é que detinha fatias importantes da propriedade ou influenciava a sua gestão através do controle das instituições locais de poder, como as câmaras, as misericórdias ou mesmo as confrarias. No fundo, eram aqueles que tinham uma palavra decisiva no onde e no que produzir em grande escala. Após as colheitas e no fim do Inverno os oficiais da câmara procuravam saber as disponibilidades de cereais que o concelho apresentava. Caso as quantidades fossem diminutas recorria-se à proibição de exportar estes produtos, pedindo-se, se a situação o justificasse, autorização ao Governador Civil para importar cereais de outras ilhas, da Terceira, Graciosa ou São Miguel. A regulamentação do funcionamento dos mercados era, pois, uma tarefa ingrata e de certo risco. Em alturas de carestia e de escassez os povos revoltavam-se e surgiam vários pequenos motins contra a exportação de cereais, permanentemente condicionada ou proibida durante estes períodos. Mas estas revoltas não eram somente devidas a uma reacção contra a perspectiva da fome e da carestia dos alimentos, ameaçando todo o grupo doméstico camponês nas suas hipóteses de reprodução social. Elas estavam, igualmente, ligadas a uma “ética de subsistência”, e a noções de justiça e de 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 187 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX O comércio livre de cereais só podia ser uma questão complicada. Os grandes proprietários, morgados e negociantes de grosso trato, ou seja, a elite que dominava o poder nas ilhas, defendiam a livre exportação deste produto, embora os últimos não estivessem sempre de acordo com a livre importação, dado que fazia depreciar no mercado local os cereais açorianos. Porém, para os meios populares, a livre exportação de cereais não só aumentava o preço deste produto indispensável à autosubsistência das famílias, como podia, em certos anos, provocar carências graves, açambarcamento e inflação. Conhecendo-se o controle que exerciam sobre as instituições locais e a gestão social dos recursos naturais, não é de estranhar que as elites tentassem ter sempre aberta a exportação. Estas tentativas de racionalizar e de atenuar os efeitos das crises de subsistência regulares tinham lugar nas câmaras municipais, onde a elite terratenente e os grandes negociantes formavam normalmente um bloco relativamente homogéneo em defesa dos seus interesses. Como contrapartida, estes períodos eram também a altura ideal para os principais notáveis intervirem activamente, demonstrando uma ampla generosidade e largueza de mãos, movendo influências junto do governador civil, importando cereais para a ilha com dinheiro do seu próprio bolso, abrindo as portas das suas cozinhas à caridade e à esmola. Estas eram, claramente, formas de controle social, de exercerem politicamente a sua influência, de arrecadar em clientes e fornecer em favores a rendeiros, ao mesmo tempo que se enquadravam e geriam eficazmente situações potencialmente explosivas, deixando o campesinato dependente das autoridades locais e regionais e da caridade dos elementos mais abastados. Todavia, muitas vezes, mesmo com a importação de cereais, o seu elevado preço de venda não garantia aos camponeses, assalariados agrícolas e artesãos mais pobres uma dieta alimentar normal, e o espectro da fome pairava, então, sobre as ilhas. O consumo do cereal guardado para semente era uma das últimas, mas mais tenebrosas, soluções que se punham ao camponês nesta situação: se utilizasse o grão estava em causa a colheita do ano seguinte, se não o fizesse assistiria à chegada da fome a sua casa. No meio de toda esta situação achavam-se governadores civis e autoridades locais, como os administradores dos concelhos, que tentavam agir sem quebrar os equilíbrios de interesses dos vários actores, autorizando ou proibindo as exportações de acordo com as circunstâncias e sem quaisquer medidas regulamentadoras que pudessem dar mais peso a um grupo em detrimento de outro (JOÃO 1991: 46-47). Já nos primeiros meses de 1812, alguns membros da vereação das Velas fazem uma proposta para importar trigo da cidade de Angra, a fim de satisfazer a extrema penúria de cereais em que vivia a população do concelho dada a fraquíssima colheita do ano anterior. Na Calheta o problema também foi discutido em sessão da câmara, não se tendo, no entanto, recorrido à importação, mas tão somente à proibição de exportar trigo (CUNHA 1981: II vol, 772; AVELAR 1902: 441-442; SOUSA 1897: 182-186). Em Abril de 1829 chegava ao município das Velas um ofício da Câmara do Topo pedindo ajuda no combater à fome e à falta de [187] relacionamento ideais entre os vários grupos sociais. Tal como refere James C. Scott (1976), uma “ética de subsistência” orientava o trabalho e a gestão da produção das comunidades camponesas, procurando arredar os seus membros de situações de fome e de carência. Um igualitarismo conservador defendia ao nível da comunidade que todos os seus membros tinham direito a sobreviver através dos recursos existentes localmente, mas não que todos devessem ser iguais. Mais do que um simples comportamento conservador, o tradicionalismo e uma certa resistência à mudança constituíam uma posição defensiva, onde se pretendia a todo o custo garantir a sobrevivência da casa camponesa, ou seja do conjunto família e exploração. Nesta atitude era mais importante manter a certeza de uma produção constante do que aumentar o rendimento das suas colheitas sem garantia de continuidade. A reciprocidade, o direito à subsistência e a maior segurança possível na gestão da reprodução do grupo doméstico marcavam uma boa parte das relações mantidas com o exterior, com a comunidade de vizinhos e com os poderes externos controlados pelos notáveis locais. As revoltas, os conflitos e as formas de resistência só podem ser compreendidas à luz de um tal sistema de valores, que está irremediavelmente ligado às condições de subsistência da casa (SCOTT 1976). 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 188 [188] cereais que afectavam o seu concelho. Em 1846-1847 dá-se uma nova e gravíssima crise de subsistências nos três concelhos, então existentes. A penúria não era só de cereais mas também de batatas, o principal pão dos pobres, que na colheita de 1846 sofreu o ataque de uma impiedosa doença. Na sessão da Câmara das Velas de 16 de Setembro de 1846 seria proibida a exportação de milho e batata por serem de absoluta necessidade para o consumo local. A penúria atingia tais extremos que algumas famílias eram mesmo obrigadas a sustentar-se de farinhas feitas à base de raiz de jarros e de fetos, sendo também notório expor-se à venda pública pão com mistura de soca de jarro. Nestas alturas toda uma gama de plantas (a junça, o milho miúdo, a cevada, o centeio, o tremoço, as raízes de fetos e de jarros, mesmo o sabugo do milho) eram reduzidas a farinha e misturadas para compor um pão adulterado e impróprio, mas o mais próximo possível do pão comum. O fabrico deste pão negro era aliás uma prática corrente em todo o arquipélago nos períodos de carência, como podemos ver, por exemplo, nas descrições feitas por Raul Brandão, aquando da sua visita ao Corvo (BRANDÃO 1926: 56-57). Nesse mesmo ano de 1846, as câmaras pedem autorização ao Governo Civil de Angra para se importar milho e dada ainda a sua escassez faz-se o mesmo pedido ao Governo Civil de Ponta Delgada. Nestas duas ilhas a exportação de cereais era normalmente livre, sendo portanto o recurso mais utilizado pelas ilhas de menor dimensão em anos de penúria. As obras públicas eram outro dos expedientes activados como forma de atenuar estas crises. Assim, o município da Calheta pediria ao Governo Civil, em 15 de Maio de 1847, para oficiar algumas juntas de paróquia para serem feitas obras na matriz e noutras igrejas que delas estavam muito carenciadas a fim de absorver alguma mão-de-obra local. A câmara adianta que fazia “estas requisições para que o povo possa ganhar com que compre pão para matar a fome que o devora, visto que todas as obras particulares pararam” (CUNHA 1981: 873, 875-880, AVELAR 1902: 442-443). Nas Velas, os ex-capitães de milícias e vereadores José Pereira da Cunha4 e Jerónimo José de Lacerda Cabral5 davam dinheiro à câmara a fim de se comprar milho fora da ilha para o abastecimento público. O primeiro deles praticaria actos “para matar a fome a alguns pobres e infelizes que muito honram e perpetuam a sua memória” (AVELAR 1902: 443). 1857, 1858 e 1859 seriam novamente anos de grande privação nas ilhas de São Jorge, Pico e Faial. O fantasma da fome reapareceria e durante três longos anos assombraria o quotidiano dos mais pobres. Esta crise pode ser considerada uma das mais graves que ocorreu no século XIX. Um fortíssimo vendaval despedaçou, no final de Agosto de 1857, os milheirais e destruiu completamente tudo quanto estava para acolheitar. Em Agosto de 1857, nas Velas, era logo proibida a exportação de milho, trigo e batata, “por estar o povo do concelho reduzido à extrema miséria”. Em Fevereiro de 1858 a fome instalava-se na ilha e nas vizinhas Pico e Faial. Uma das suas consequências mais importantes seria a emigração em grande escala para o Brasil e para os Estados Unidos de uma massa desesperada de trabalhadores rurais e camponeses destas três ilhas, empobrecidos devido ao desastre das colheitas e ao mau estado geral da agricultura, recentemente afectada por doenças que haviam atacado os laranjais e os vinhedos, fazendo a sua produção quase desaparecer. Mau grado a tentativa por parte dos governos civis de reactivar as obras públicas como forma de absorver a mão-de-obra local e amortizar as consequências da escassez de alimentos (MACEDO 1871: vol. II, 241-242, 260, 264-265, 571-573), a emigração manteve-se elevada. Em Julho de 1857, em sessão da Câmara das Velas, a vereação queixava-se da “falta de braços de que muito se ressente a agricultura, e muito concorre para que o concelho não prospere, devida à espantosa emigração para os EUA e o Brasil, a que o povo se submete por causa da crise alimentícia porque tem passado” (AMV, Actas das Vereações das Velas, Maço 8, 1857). 4 Grande proprietário da ilha, pai dos três irmãos e bacharéis José Pereira da Cunha da Silveira e Sousa, João Pereira da Cunha Pacheco e António Pereira da Cunha e Silveira. 5 Proprietário relativamente abastado, mas de segunda linha em termos de riqueza. Figura frequente nas pautas da vereação, tendo sido administrador do concelho em 1839. Era casado com uma irmã do comendador José Acácio da Silveira e do capitão António Silveira d’Avila, aliados políticos e primos co-irmãos dos drs. António e Joaquim José Pereira da Silveira e Sousa, chefes regeneradores até 1870. O seu filho José Mariano de Lacerda Cabral, em 1871, contador e distribuidor no julgado das Velas, continuará ligado à política local, assim como um seu neto será presidente da câmara durante a I República. 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 189 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA Em Fevereiro de 1858, a Câmara das Velas comprava novamente cereais em São Miguel com capitais seus. E em Abril oficiava às três capitais de distrito pedindo a importação de 200 moios de milho para acudir à fome. Em 30 de Março de 1859 deliberava a importação de mais 400 moios de milho e 100 de trigo. Mas a fome era tanta que “o povo apinhado no pátio em frente ao edifício e praça municipal implorava com lágrimas pão para a família. E para chegar a todos, cada chefe de família recebia pela grade do granel uma pequena porção de milho”. “O provedor da misericórdia, João Soares de Albergaria, repartiria com os pobres o trigo do granel da Santa Casa, dona de muitos foros, e esmolava outros com dinheiro para lhes mitigar a fome” (CUNHA 1981: 891-897 e AVELAR 1902: 444-447). A descrição do Açoriano Oriental de 16 de Abril de 1859 deixa-nos um claro retrato da situação porque passava a maioria da população de São Jorge: “o povo, cujo sustento não passa de raiz de feto, jarroca, alhos bravos, couves e outras ervas agrestes e impróprias para o sustento humano, anda como pasmado, cadavérico e já como moribundo, sem força para o trabalho, confessando mesmo que morre à força de penúria e miséria. Além disso desenvolveu-se uma ladroeira tal, que não pára nada nos campos, e até mesmo nas casas são tantos os ratoneiros que apenas se vira a cara a qualquer objecto, máxima que se possa comer, logo desaparece! Até se introduzem nas casas, furtando das cozinhas a comida das panelas que estão ao lume, pão dos fornos, dos tabuleiros, de cima das mesas, de toda a parte de onde lhes podem chegar. Nem ao menos se pode mandar o jantar para o campo aos trabalhadores, pois têm chegado a roubar de salto e com violência a quem o leva”. Em São Miguel, ilha menos afectada, abrir-se-ia uma subscrição pública para recolher donativos de toda a espécie destinados às populações do Pico e São Jorge. Na Horta a família de negociantes norte-americanos Dabney abriria outra subscrição e faria vir milho importado dos EUA. Nesse mesmo ano negro, o morgado Miguel Teixeira Soares de Sousa, um dos maiores proprietários locais, mais tarde chefe do partido regenerador na ilha, carregaria na Terceira um navio com 70 moios de milho e 42 de trigo. Os cereais seriam vendidos ao povo, tendo resultado daqui um saldo líquido de 129$920 réis que foi depois oferecido pelo morgado para ser usado em obras públicas da câmara, lavrando esta em acta a seguinte menção de louvor: “tomando na mais subida consideração os importantes serviços prestados por este cavalheiro a favor destes povos a quem salvou dos horrores da fome deliberou que se lhe votasse eterna gratidão” (AVELAR 1902: 446). Nestas virtuosas demonstrações de desinteresse e amor pela comunidade pode perceber-se, claramente, um modo particular de gestão do estatuto simbólico, uma actuação paternalista que enquadrava as populações rurais que votavam depois massivamente em quem lhes desse contrapartidas pela sua fidelidade política. Mas, com isto não queremos dizer que existisse uma intencionalidade e um cinismo estreito por parte dos principais influentes locais. Pelo contrário, estas acções só resultavam e eram eficazes porque faziam parte de um comportamento esperado que tinha que se manifestar desinteressado e desprendido. A rede de leitura da realidade social, moldada por várias formas de dominação e pela ética cristã, dizia aos povos que o papel dos ricos, nestas ocasiões, era o de ajudarem os pobres. Papel que estes desempenhavam com mestria, até porque daqui também dependia a sua identificação enquanto membros de um dado grupo social privilegiado, detentor não só do poder de mediar com o exterior, de concentrar e de se apropriar de bens – sobre a forma de rendas, terras ou serviços –, mas igualmente dono e senhor das possibilidades de distribuir e de proteger. Estes tipos de enquadramento dos conflitos eram complexos e nunca tinham um só sentido. Os dominados também possuíam as suas formas de manifestar o descontentamento. E estão não se ficavam apenas por motins, levantamentos ou assuadas às autoridades civis e eclesiásticas. Os conflitos podiam parecer estar adormecidos, mas se olharmos bem, por debaixo da capa de uma grande placidez, estavam, por vezes, formas de resistência passiva bastante comuns. Estas explodiam em número nas ocasiões de crise. Basta, por exemplo, pensar na recusa em pagar rendas e foros, na destruição de muros e vedações, na matança de animais, na destruição de culturas, sementeiras, alfaias agrícolas, nos pequenos furtos, ou mesmo em actos de intimidação entre indivíduos e famílias. Este vandalismo e pequena criminalidade podiam até ser admitidos pelas comunidades locais em circunstâncias especiais, desde que nunca [189] METADE DO SÉCULO XIX 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 190 ultrapassassem um limite de exposição pública demasiado evidente e desde não pusessem em causa a reprodução económica e as hierarquias estabelecidas. [190] Em Março de 1877 manifestava-se uma grande escassez de milho. Novamente, seriam oficiados os Governadores Civis dos três distritos, pedindo-se a livre importação de trigo para São Jorge. A crise afectaria de tal modo a propriedade que, em representação feita ao governo em 22 de Agosto de 1877, a Câmara das Velas pediria a diminuição em 50% das contribuições directas no concelho, “porque a escassez de cereais obrigou à importação de 275:192 litros de cereal e os rigores do Inverno anterior fizeram perecer igualmente 332 cabeças de gado”, que era quase todo composto de vacas leiteiras. Em Setembro do mesmo ano a crise continuava e agora a mesma câmara pedia a isenção de direitos para a importação de milho, tanto nacional como estrangeiro, “porque sendo escassíssimas as colheitas deste cereal no ano anterior e no corrente e achando-se estes povos quase exaustos de numerário para acudirem às suas necessidades, por certo perigarão as subsistências públicas” (AMV, Registo das Representações ao Governo de Sua Majestade, 1870-1902). Os membros da elite local tradicional, como José Pereira da Cunha da Silveira, residente a essa data em Lisboa, e alguns grandes comerciantes como José Acácio de Bettencourt, da Calheta, importariam milho por sua conta e risco, perdendo com essa manobra algum dinheiro. No primeiro caso, o milho ia mesmo com ordem para ser vendido por um preço menor do que qualquer outro no mercado, prestando-se o conselheiro Cunha da Silveira a fornecê-lo com capital seu (AVELAR 1902: 448). Estas crises não terminariam já. Em Agosto de 1893 um ciclone destruía os milheirais de São Jorge e das ilhas em redor. O governador civil de Angra, José Pimentel Homem de Noronha6, importaria todo o cereal necessário para garantir as subsistências, em tal quantidade e preço razoável que os povos não tiveram que passar pelos horrores da fome. Apesar disso temos notícia de um pequeno motim nas Velas aquando do desembarque de cereais (AVELAR 1902: 449). Neste município, mais uma vez, a câmara, em representações ao governo, pediria a redução da contribuição predial e a isenção de direitos para o milho estrangeiro importado. Contudo, estes eram pedidos quase impossíveis de alcançar, dado colidirem com as leis gerais que se aplicavam a todo o país (AMV, Registo das Representações ao Governo de Sua Majestade 1870-1902, fls. 62-63). Eis-nos, portanto, chegados ao fim do século XIX sem que tivesse sido encontrada uma forma de debelar este problema cíclico. Muito provavelmente, seria impossível resolvê-lo sem o recurso à importação, dadas as características físicas e climáticas da ilha, acentuadas pela desigual repartição da propriedade. Contudo, estas são conclusões a carecer de estudos mais completos. Só na viragem do século as quantidades de cereais se começaram a equilibrar e a conseguir alimentar, mesmo em anos de crise, toda a população da ilha, pondo-a a salvo das recorrentes más colheitas. Para isso terá contribuído a livre importação de cereais, a maior mobilidade do mercado da terra, a melhoria das condições gerais de vida provocadas pela emigração para os EUA, assim como a diminuição do efectivo total da população. Num outro nível, o mercado nacional e regional estava também mais integrado, a indústria açoriana das moagens nascia nas ilhas principais, e as redes de transporte aperfeiçoavam-se e tornavam-se mais densas. 6 Bacharel formado em Direito e Teologia por Coimbra esteve ligado ao partido Regenerador, do qual se veio a separar. Governador Civil do distrito de Angra de 1893 a 1895, deputado pelo partido Progressista às cortes em 1897-1900 e na legislatura de 1901. Casado com uma filha de Francisco de Paula Barcelos Machado Bettencourt, grande proprietário terceirense, e um dos principais chefes dos realistas no distrito e, mais tarde, cacique progressista nas últimas décadas do século XIX. José Pimentel Homem de Noronha foi ainda presidente da câmara da cidade de Angra. Era natural do Topo, e filho de João Inácio de Bettencourt Noronha, proprietário, administrador de um pequeno vínculo extinto pela legislação de 1832. Apesar do seu pai ser um dos homens mais abastados do Topo e fazer parte do grupo dos 40 maiores contribuintes prediais do concelho da Calheta em 1879, a sua relativamente fraca contribuição predial (19$600 reis) integrá-lo-ia, ao nível da ilha, no grupo dos proprietários ricos das freguesias. Longe, de qualquer modo, do nível de fortuna de Tiago Homem de Noronha, seu parente e principal morgado local que pagava, na mesma data, 46$540 reis de contribuição. Este facto deixava-o em termos de riqueza quase no fim da tabela do grupo dos grandes morgados e proprietários da ilha. 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 191 PRODUÇÃO E CONSUMO DE CEREAIS NA ILHA DE SÃO JORGE DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 6. CONCLUSÃO Contudo, o fim do proteccionismo cerealífero que teve em Portugal, durante toda a segunda metade do século XIX, momentos de avanço e de recuo, condenou definitivamente os cereais açorianos7. Quer o milho, quer o trigo, produzidos para serem colocados no exterior, não conseguiam compradores e lutavam ainda com dificuldades acrescidas nos preços e na obtenção de mão-de-obra. Os cereais começariam, a partir de finais da década de 1880, a constituir uma cultura dirigida principalmente para assegurar as necessidades da população local. E aqui vencia definitivamente o cereal que oferecia melhor produtividade e melhor adequação às condições biofísicas do território, ou seja o milho. [191] As searas e os milheirais foram sempre um elemento essencial da paisagem agrícola. Juntamente com as vinhas, os matos e quintas de laranja na costa sul, os pastos em altitude logo após a arriba na costa norte, marcariam o território de São Jorge. Durante os anos em que a população se manteve elevada, como nos finais da década de 1870, quando a ilha atingiu um pico demográfico de cerca de 18.000 habitantes, o espaço cultivado atingiria um ponto culminante, assistindo-se a uma presença constante destas culturas e a uma regressão das zonas de matos, que é bem visível no denunciado começo de alguma escassez de lenhas (SOUSA 1897: 80). 7 Seria interessante aprofundar esta questão. Mas não existem trabalhos que nos permitam avaliar como é que se reflectiram as diferentes alterações legislativas por que passou a questão do proteccionismo cerealífero num distrito como o de Angra, tão dependente desta exportação para os mercados continentais. Para alguns dados sobre a questão veja-se JOÃO 1991: 119-123 e ENES 1994. 11.CH.PauloSSousa(pb) 6/17/09 10:20 AM Page 192 BIBLIOGRAFIA: FONTES MANUSCRITAS Actas das Vereações das Velas, 1857, Arquivo Municipal das Velas, Maço 8. Correspondência Relativa a Subsistências Públicas, 1843-1878, Arquivo Municipal das Velas. Manifesto da Produção de Cereais neste Concelho (1806), Arquivo Municipal das Velas (reservados), Maço 19. Registo das Representações ao Governo de Sua Majestade (1870-1902), Arquivo Municipal das Velas. Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP), Direcção Geral do Comércio e Indústria (DGCI), Repartição de Agricultura, RA-1S, 3 (caixas), Maço do Distrito de Angra do Heroísmo. PUBLICAÇÕES AVELAR, José Cândido da Silveira 1902, A Ilha de S. Jorge (Açores), Apontamentos para a sua História, Horta, Tip. Minerva Insulana. BRANDÃO, Raul 1926, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa, Livraria Bertrand. [192] BRITO, Raquel Soeiro de 1955, A Ilha de São Miguel. Estudo Geográfico, Lisboa: Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Geográficos. CORDEIRO, Padre António 1717, História Insulana das Ilhas Portugal Sujeitas no Oceano Ocidental, Lisboa, Oficina de António Pedrosa Galrron. 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A Terceira, Angra, 1885. O Velense, Velas, 1880. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 193 Maria Guiomar Lima A DIFÍCIL NOMEAÇÃO DO CARDEAL COSTA NUNES As relações diplomáticas entre Portugal e o Vaticano estiveram à beira de uma crise em Janeiro de 1953. A Santa Sé escolheu para cardeal o arcebispo de Bombaim, monsenhor Valerian Gracias, preterindo D. José da Costa Nunes, arcebispo de Goa e Patriarca das Índias Orientais, que há vários anos esperava receber a púrpura cardinalícia. O embaixador José Nosolini foi chamado a Lisboa para consultas, mais tarde Oliveira Salazar enviou uma nota de protesto ao Papado com condições para se normalizarem as relações. Documentação que consultámos nos arquivos portugueses mostra que Costa Nunes trocou detalhada correspondência com o Presidente do Conselho e os ministros das Colónias e Negócios Estrangeiros, a fim de preparar a sua nomeação para a Cúria Romana. Por outro lado, as consultas que efectuámos a jornais goeses demonstram que o arcebispo organizou impressionantes manifestações religiosas em Goa na altura mais crítica das negociações entre o governo de Lisboa, o Vaticano e o governo da União Indiana sobre o Padroado Português do Oriente, e quando esperava que lhe fosse atribuído o barrete cardinalício. Contudo, a sua elevação ao cardinalato demorou vários anos. A Santa Sé tinha outra estratégia para a Ásia e o sub-continente indiano, preferia nomear prelados naturais destes territórios. D. José da Costa Nunes na galeria de retratos da diocese de Macau. [193] INTRODUÇÃO 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 194 PÚRPURA PARA COSTA NUNES Nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial o Governo português desenvolveu grandes esforços para Costa Nunes ser nomeado cardeal1. Um assunto a que foi dada a máxima prioridade. Em Setembro de 1945, numa carta enviada ao Papa, a dar conta de ajuda prestada em Lisboa a refugiados de guerra, Oliveira Salazar fez o pedido de forma inequívoca: “Eu atrevo-me a chamar a atenção de V. Santidade para o esforço de recristianização feito pela Nação Portuguesa e a esperar que ele mereça de V. Santidade aplauso e estímulo. O maior estímulo seria a escolha de um segundo cardeal nacional, com o que esta terra foi secularmente honrada pela Igreja, tendo em conta o trabalho de apostolização em África e no Oriente – de preferência neste – pela repercurssão que teria no mundo asiático uma tão alta dignidade concedida a um prelado português”2. Recebendo a carta de elevação a cardeal em Março de 1962 (in Textos do Cardeal Costa Nunes, volume VII, Fundação de Macau,1999, pág. 171). O cardeal Costa Nunes em 1962 (ibidem, volume XVI, pág. 5). Umas semanas mais tarde o embaixador no Vaticano informou o governo que Costa Nunes ia visitar Roma e havia “a hipótese” de em breve ser nomeado cardeal. Contudo, o arcebispo foi mais cauteloso. Num telegrama enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros esclareceu que para a sua viagem não ser interpretada como uma candidatura diria que ia tratar dos direitos de jurisdição eclesiástica do Padroado Português do Oriente sobre uma ilha existente no porto de Cochim e, no caso de haver indícios de ser escolhido outro prelado, acrescentaria que tinha passado por Roma numa viagem “em direcção a Lisboa”. Era mais airoso, ficava mais à vontade se não mostrasse uma grande inclinação para o cargo. Chegou a Roma em Outubro, foi recebido pelo Papa Pio XII, por monsenhor Giovanni Montini, pró-secretário de Estado do Vaticano (e mais tarde Papa Paulo VI), e também por monsenhor Domenico Tardini, que dirigia a Sacra Congregação para os Assuntos Eclesiásticos Extraordinários (Negócios Estrangeiros). As 1 Para mais dados biográficos do cardeal Costa Nunes consulte-se Enciclopedia Açoriana em (http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/index.aspx). 2 Arquivo Histórico-Diplomático, 2º Piso, armário 48, maço 194. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 195 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES DO Porém, o governo português viu satisfeito o seu desejo de um segundo cardeal nacional, o arcebispo de Lourenço Marques, D. Teodósio Clemente Gouveia foi elevado a esse cargo. Costa Nunes felicitou-o numa extensa carta, enquanto Oliveira Salazar não terá gostado da nomeação. Quando a embaixada de Portugal no Vaticano pediu autorização para oferecer as vestes cardinalícias a D. Teodósio, Salazar respondeu que o governo não podia tomar sobre si os encargos financeiros provenientes da aquisição de vestes episcopais nem da instalação de cardeais na Cúria.Também levantou obstáculos ao pagamento da despesa de um banquete feito na embaixada, destinado aos bispos que participaram no Consistório, só a autorizando “a título excepcionalíssimo”, dado que se tratava da despedida do embaixador português. No entanto, o cardeal de Lourenço Marques foi muito bem recebido em Lisboa, multidões encheram a gare de comboios, e foi celebrado um solene Te Deum de acção de graças no Mosteiro dos Jerónimos a que assistiu o Presidente do Conselho3. Nos anos seguintes a diplomacia portuguesa continuou a fazer esforços para Costa Nunes receber a púrpura cardinalícia, o embaixador Pedro Tovar de Lemos conversou amiudadas vezes com monsenhor Domenico Tardini sobre o futuro do Patriarca das Índias Orientais. A arquidiocese de Goa ia perder influência, ficava com uma dimensão modesta, era necessário contrabalançar uma situação tão desagradável com medidas que reforçassem o prestígio do Patriarca. O Vaticano reservou a sua decisão durante muito tempo sem se comprometer. A certa altura, monsenhor Giovanni Montini, com algum veneno, disse ao embaixador que, de facto, há muitos anos não havia um prelado português na Cúria Romana. O último, de que se recordava muito bem, fora o bispo de Beja, D. Sebastião Leite de Vasconcelos, que o Papa acolheu e nomeou arcebispo depois de ele ser expulso da sua diocese durante a I República. NEGOCIAÇÕES SOBRE O PADROADO Decorriam negociações entre Portugal e a Santa Sé sobre o Padroado do Oriente. Pouco depois de a Índia se tornar independente, em Agosto de 1947, Nehru enviou uma nota ao Vaticano para que fosse revisto o acordo com o governo português segundo o qual este era consultado antes da nomeação dos bispos de Cochim e S. Tomé de Meliapor, e para que fossem alteradas as fronteiras da diocese de Goa, que tinha jurisdição sobre um extenso território da União Indiana. Nehru achava “verdadeiramente extraordinário” que a República Portuguesa tivesse autoridade sobre partes da Índia, incomodava-o a mistura de domínio espiritual da Igreja Católica com a autoridade política de um país estrangeiro, como acontecia no Padroado do Oriente. Salazar não desejava que a soberania portuguesa em Goa, Damão e Diu fosse beliscada por garantias dadas pelo Estado sobre outras formas de presença portuguesa, nomeadamente no campo religioso, no entanto as negociações foram lentas, minuciosas, a posição portuguesa terá sido sempre no sentido de demorar o mais possível. A certa altura Salazar enviou a Costa Nunes uma carta na qual, curiosamente, concordou com o Pandita Nehru: era inevitável que a autoridade eclesiástica nos territórios da Índia passasse a ser exercida por indivíduos de nacionalidade indiana, era compreensível que assim acontecesse, o premier indiano estava a pôr em prática o mesmo princípio que Portugal defendera durante as negociações para a Concordata de 1940. Não restam dúvidas que Oliveira Salazar esperava que Costa Nunes se opusesse, mas pediu-lhe opinião e lisonjeou-o, escre- 3 Ibidem, maço 19. [195] audiências deram poucos frutos, em Fevereiro de 1946 foram nomeados 32 cardeais, entre os quais se contou o primeiro príncipe da Igreja nascido na China, monsenhor Thomas Tien-Ken-Sin S.V.D. e o arcebispo de Sidney, monsenhor Norman Gilroy, que mais tarde haveria de representar o Papa em muitas cerimónias realizadas no Oriente, mas o arcebispo Costa Nunes não recebeu igual dignidade. Monsenhor Montini costumava dizer que se acaso o Patriarca das Índias fosse nomeado cardeal seria necessário nomear também um cardeal indiano. O nacionalismo anticolonialista já tinha, nesta altura, um enorme peso na Índia. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 196 vendo que o considerava um informador precioso, que conhecia como ninguém a situação no Oriente. [196] O arcebispo respondeu que se acaso fossem alteradas as fronteiras da sua diocese pedia a resignação do seu cargo. “A minha idade e os meus 46 anos de vida colonial aconselham a ceder a outrem este posto. Só permanecerei no caso de o meu acto ser interpretado como uma fuga”4. Costa Nunes informou o núncio apostólico em Lisboa e o ministro das Colónias que tencionava demitir-se. Estava cansado, não tinha forças para continuar a governar a sua diocese nem desejava manter-se no cargo se não pudesse cumprir as suas obrigações. Tinha viajado muito pelas missões mais distantes (Canará, Belgão, Ratnagiri, Savantvadi), durante essas visitas sofrera sempre de acessos de malária que o tinham debilitado. Podiam dizer-lhe que a solução seria nomear um bispo-auxiliar mais novo, que visitasse as missões e o coadjuvasse. Contudo, era preciso decidir se esse prelado seria goês ou europeu. Os restantes bispos estrangeiros residentes na Índia estavam a nomear auxiliares nativos, naturalmente por indicação de Roma. Assim acontecia na diocese de Bombaim. Costa Nunes sentia-se na obrigação de também dar “uma satisfação” ao clero de Goa, que era numeroso, culto, tinha uma sólida formação e vivia “esquecido quanto a mitras”. Porém, não desejava um bispo-auxiliar goês. Dada a sua avançada idade, ficaria pouco tempo à frente da diocese de Goa e era quase certo que, quando desaparecesse, haveria uma tentativa, “uma representação”, para o bispo-auxiliar ser nomeado Patriarca das Índias. Não queria que isso acontecesse. Preferia que fosse escolhido um bispo europeu ainda novo e que este fosse nomeado na data em que ele próprio resignasse do seu cargo, a fim de evitar “agitações” no período de vacatura. Costa Nunes informou o ministro que ia enviar à Santa Sé uma lista tríplice de candidatos à sua sucessão com os nomes de Manuel Trindade Salgueiro, vigário-geral do Patriarcado de Lisboa, Sebastião de Resende, bispo de Beira, José Vieira Alvernaz, bispo de Cochim. Porém, alertou o ministro que não convinha deslocar Alvernaz do bispado de Cochim, seria muito difícil nomear outro prelado português para esta diocese5. Na sequência desta carta o ministro das Colónias quis ser informado “com exactidão e actualidade acerca do valor político e religioso do Padroado Português do Oriente” pelo que, meses mais tarde, Costa Nunes enviou a Lisboa relatórios sobre as três dioceses do Padroado: Goa e Damão, S. Tomé de Meliapor, Cochim. Este último relatório, escrito pelo bispo D. José Vieira Alvernaz, é muito curioso. O número de portugueses na missão de Cochim estava reduzido ao prelado e ao seu secretário mais um sacerdote da Companhia de Jesus, idoso e inutilizado, que já não celebrava missa. Havia um sacerdote goês que estava doente, outro que tinha pedido a aposentação depois de 40 anos de trabalho, os restantes eram indianos. Acentuavam-se as dificuldades “provenientes do espírito nacionalista”, anteriormente os europeus eram bem atendidos, mas essa situação tinha desaparecido. Quando era preciso tratar de qualquer assunto com agentes do governo, o bispo enviava um padre natural da diocese, este era tratado com mais deferência que um estrangeiro. A língua inglesa passara para segundo plano, toda a correspondência estava a ser feita em língua nativa. Não havia ensino de língua portuguesa. Era tempo de partir e de ser substituído. Alvernaz não se preocupava com o seu futuro. Escreveu: “Por mim, era professor do seminário antes de para cá vir e com muito prazer continuarei a exercer o magistério num dos seminários das missões ou em qualquer outro, sem mais encargos para o governo”6. A VIRGEM PEREGRINA Em Julho de 1949, Nehru anunciou que devido à demora nas negociações entre Portugal e a Santa Sé deixava de reconhecer as disposições do Padroado. Salazar respondeu que Portugal não negociava sob coacção e abandonava as conversações. Seguiram-se uns meses de impasse7. No final do ano as nego- 4 Arquivo de Oliveira Salazar (Torre do Tombo), Colónias/Ultramar, pasta 10C. 5 Arquivo Histórico-Diplomático, 2º Piso, armário 50, maço 38. 6 Ibidem. 7 Para uma visão global destas negociações consulte-se Bruno Cardoso Reis, Salazar e o Vaticano, Lisboa, ed. ICS, 2006, capítulo IV. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 197 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES DO ciações recomeçaram, por iniciativa do Vaticano, e foi essa a altura escolhida pelo arcebispo Costa Nunes para mostrar que a Sé de Goa era o maior centro de fé católica em todo o Oriente. A Virgem Peregrina foi recebida em Novembro com cerimónias grandiosas, largamente noticiadas. Viveram-se “as mais apoteóticas horas de toda a história de Goa”, segundo uma publicação da igreja8. Debaixo do Arco dos Vice-Reis foi pedido à Virgem que abençoasse Goa e protegesse “esta Índia que é portuguesa no coração dos seus filhos, esta terra regada com o sangue de heróis e mártires.” O governador-geral ofereceu à Senhora um valioso terço de pérolas finas depositado num artístico cofre de sândalo. Costa Nunes escreveu: “Jamais a Velha Cidade, habituada a receber, no período áureo das conquistas, os seus heróis, com um desusado esplendor, jamais presenciara pompas tão solenes e impressionantes, como na hora em que Nossa Senhora de Fátima desembarcou junto ao Arco dos Vice-Reis (...) Aquela atmosfera rubra de entusiasmo, aquele cenário maravilhoso, aquelas saudações sem fim, aquelas lágrimas tão sentidas, aquele ambiente saturado de sobernatural, tudo isso deixou nos corações um perfume que ainda hoje perdura”9. A imagem esteve em Goa mais de uma semana, percorreu as igrejas das Velhas Conquistas, onde os católicos eram muito numerosos entre manifestações de devoção e júbilo. No final da peregrinação o bispo de Cochim, D. José Vieira Alvernaz, declarou que nada, nos tempos modernos, se podia comparar com o entusiasmo a que tinha assistido, comoveu-se, desejou que o exemplo da fé de Goa chegasse “a todos os católicos da Índia”. O bispo de Meliapor D. Manuel de Medeiros Guerreiro elogiou o sacrifício das autoridades e dos mais humildes filhos do povo. O arcebispo Costa Nunes em finais da década de 1940, com os bispos de Cochim, Díli e Meliapor, respectivamente D. José Vieira Alvernaz, D. Jaime Garcia Goulart e D. Manuel de Medeiros Guerreiro. Na segunda fila monsenhor Machado Lourenço à esquerda e o padre José Maria das Neves à direita. O bispo de Poona, monsenhor André Alexandre d’ Souza louvou a homenagem tributada à Virgem, certamente seria uma fonte de bençãos para o futuro. O arcebispo Costa Nunes escolheu uma metáfora para manifestar o seu entusiasmo: “O sol afugentou as sombras e vai iluminando vastas regiões do Oriente”10. 8 Avante, órgão da Acção Católica de Goa, Volume VI, 1950, nºs 1 e 2, Janeiro/Fevereiro de 1950, pág. 25. 9 Diário de Notícias, 12 de Outubro de 1951. 10 Avante, ibidem, págs. 38 e 39. [197] A imagem chegou à barra do rio Mandovi ao nascer do sol, em cima de um cisne branco – um barco que fora enfeitado com penas de forma a parecer um grande cisne – subiu o rio num imenso cortejo fluvial até à Velha Cidade, acompanhada de salvas de artilharia, repicar de sinos, foguetes. Peregrinos das Ilhas de Goa e de Bardez acumulavam-se aos milhares no cais e nas margens do rio, seguindo em cortejo para a Sé, “a primeira catedral do Oriente”, como acentuou Costa Nunes. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 198 O FIM DO PADROADO NA ÍNDIA [198] Esta demonstração de fé católica em Goa não teve, no entanto, as consequências que Costa Nunes desejaria. O Vaticano aplaudiu comedidamente, atribuiu à igreja do Bom Jesus, onde se encontra o túmulo de S. Francisco Xavier, o título de “Basílica Menor da Cristandade” e continuou a negociar o acordo que iria pôr fim aos privilégios do Estado português em dioceses indianas. Foi assinado em Julho de 1950 e publicado no jornal oficial do Vaticano a 1 de Agosto. Assinaram monsenhor Domenico Tardini, secretário da Sacra Congregação para os Negócios Eclesiásticos Extraordinários e o embaixador Pedro Tovar de Lemos, conde de Tovar. O governo português considerou a Santa Sé desligada do compromisso de consultar o Presidente da República e nomear bispos portugueses para Cochim e S. Tomé de Meliapor. O governo português ficou desobrigado de prover à dotação destas duas dioceses e comprometeu-se a considerar “na devida oportunidade” uma nova delimitação das fronteiras da arquidiocese de Goa e Damão11. Esta estendia-se numa área da União Indiana com mais de 38 mil quilómetros onde viviam dezenas de milhar de católicos e três milhões de não-católicos. Nesse território havia 29 paróquias católicas, 64 postos missionários, 41 escolas paroquiais. Costa Nunes não desejava que a sua diocese fosse dividida, como já referimos, mas não deu uma única indicação pública do seu desagrado. Em Janeiro de 1950 participou no primeiro concílio plenário dos bispos da Índia, em Bengalore, que foi presidido pelo cardeal australiano Norman Gilroy, enviado especial do Papa. Anos mais tarde Alvernaz escreveu que Costa Nunes podia ter deixado de assistir, dado que foi “esquecida” uma cláusula da Concordata que lhe dava o direito de presidir a essa assembleia mas, como filho obediente da Igreja, não se tinha escusado12. Na verdade, Costa Nunes conseguiu que fosse aprovado um documento no qual os bispos indianos manifestaram “profunda gratidão à Nação Portuguesa” por terem sido enviados missionários durante séculos para a Índia, ajudando a formar o clero local, um documento que reconheceu, sem dúvidas, a importância histórica do Padroado. modificou o ambiente, não direi hostil mas frio, que sem dúvida existia”. Acrescentou que tinha convidado o cardeal Gilroy a conhecer Goa, a visitar o túmulo de S. Francisco Xavier, para o que tinha prometido abrir, “privadamente”, o caixão que encerra o corpo do Apóstolo do Oriente13. A resposta de Salazar foi bastante ambígua: apreciava a visita do cardeal Gilroy, honrosa e útil para a boa compreensão do papel de Portugal missionário e também o longo artigo publicado no jornal oficial do Vaticano sobre o Patriarcado das Índias Orientais, mas sem dúvida cabia ao Patriarca avaliar se a sua presença entre os bispos indianos prestigiava a Sé de Goa. E mandou a Costa Nunes as cópias dos documentos relativos às negociações com a Santa Sé para a redilimitação de fronteiras da diocese de Goa. O arcebispo de Goa estava decidido a afastar-se do seu cargo, numa carta ao cardeal Cerejeira escreveu: “Se eu fosse mais novo pediria a transferência. Velho, só me resta esconder-me em qualquer recanto do Mundo e preparar-me para a Grande Viagem (...) Vivi o Padroado durante toda a minha vida sacerdotal e episcopal. Apaixonei-me por ele. Estudei-o. Defendi-o com a pena e com a palavra. Vi com os meus olhos, por estas vastíssimas regiões orientais, os traços inapagáveis da sua operosidade missionária. Senti a sua grandeza. Orgulhei-me de estar ao seu serviço. É por isso que não desejo continuar em Goa.” O texto original desta carta está no Arquivo de Oliveira Salazar, o que demonstra que Cerejeira a deu a conhecer ao Presidente do Conselho. Este esperava que a Santa Sé desse “uma prova excepcional de estima” para com Costa Nunes, nomeando-o para um cargo de prestígio. Num documento com 13 páginas manuscritas, Oliveira Salazar escreveu: “O Patriarca, pelo seu passado, a sua inteligência, serviços e amor ao Padroado – Igreja e Pátria – tem o direito de não o abandonarmos (...) 11 Arquivo Histórico-Diplomático, 2º Piso, armário 50, maços 53 e 54. 12 In memoriam de D. José da Costa Nunes no centenário do seu nascimento, org. de J. Machado Lourenço, A.O., Braga, 1980, págs. 86 e 87. No final do concílio Costa Nunes escreveu a Salazar a relatar a reunião e a justificar a sua presença: “Creio que a minha vinda 13 Arquivo de Oliveira Salazar (Torre do Tombo), Colónias/ Negócios Estrangeiros, pasta 2G. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 199 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES DO Fazer a amputação de Goa, sendo arcebispo o actual Patriarca, é um acto em que não podemos colaborar e não colaboraremos (...) O Governo não quer criar condições inúteis à Santa Sé e dará o seu acordo à redilimitação da diocese. Fá-lo violentado pelas circunstâncias, mas não antes das comemorações (dos 400 anos da morte) de S. Francisco Xavier. O governo deseja que o Patriarca das Índias esteja à frente dessas comemorações. Depois disso examinará a questão (da redilimitação de fronteiras da arquidiocese de Goa) no estado em que a Santa Sé a tiver. Sabemos muito bem que, se Roma quiser, ordena ao Arcebispo que resigne, vendo-se assim liberta das dificuldades postas por nós. Vemos com clareza esse fraco da nossa posição; mas será então a Igreja a sacrificar o Prelado e não o governo português”14. [199] Sem dúvida o embaixador de Portugal no Vaticano foi informado das linhas gerais deste documento e transmitiu-as à secretaria de Estado do Vaticano. O documento contém “recados” que não tinham outro destinatário. UM BISPO-COADJUTOR PARA GOA No Verão de 1950, Costa Nunes indicou o nome de D. José Vieira Alvernaz ao Vaticano e ao governo português para seu coadjutor, com direito de sucessão, na arquidiocese de Goa e Damão. Na carta enviada ao ministro das Colónias, justificou a partida de Alvernaz do bispado de Cochim dizendo que, por um lado, este não podia manter-se na Índia devido à falta de recursos financeiros, além disso a diocese ia ser mutilada, absorvida pelas dioceses vizinhas, tornando-se minúscula, insignificante, sem haver razões que justificassem a presença de um bispo português.Também elogiou Alvernaz – “um prelado de excepcionais qualidades, aquele que reúne, entre todos os meus sufragâneos, as melhores capacidades para me suceder neste cargo” – e deu a entender que não indicava o bispo de Meliapor porque este desejava permanecer na sua diocese, ao serviço da Congregação da Propaganda Fide, a “bete noir” do Padroado Português no Oriente. Uma acusação sem consistência pois de facto não foi isso o que sucedeu, o bispo Medeiros Guerreiro foi transferido para a diocese de Nampula, no norte de Moçambique, mantendo-se na igreja portuguesa. D. José da Costa Nunes com clero de Goa no Paço Patriarcal de Goa, cerca de 1953. O cardeal Costa Nunes com o governador de Macau, general Lopes dos Santos, em 1964, durante as comemorações do IV Centenário da Companhia de Jesus em Macau. Nesse Verão Alvernaz esteve em Portugal numa visita de saudade que foi noticiada pelos jornais A União, de Angra do Heroísmo, a 20 de Julho, e também pelo jornal O Dever, das Lajes do Pico. Viajou na companhia do irmão mais novo, padre Manuel 14 Ibidem, pasta 21. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 200 Alvernaz e do padre José Maria das Neves, de Santo Amaro. Esteve vários dias na ilha do Pico em casa de amigos, celebrou missa na ermida de S. Pedro, na Baixa, Ribeirinha, e na igreja de Nossa Senhora da Piedade, onde fora baptizado, participou na festa do Senhor Bom Jesus onde celebrou missa na companhia do padre José Idalmiro, seu antigo aluno no Seminário de Angra, e na benção da capela de Nossa Senhora de Fátima mandada construir nas Pedras Negras por uma senhora luso-americana. Foi convidado a presidir às festas inaugurais desta capela que se realizavam mais tarde mas segundo noticiou o jornal O Dever não podia demorar-se na ilha do Pico – de onde partiu, com destino a Lisboa, na madrugada de 7 de Agosto15. [200] Tudo indica que estava entristecido por deixar a diocese de Cochim e não tinha a certeza de ser nomeado coadjutor do arcebispo de Goa, pelo que preferia evitar perguntas acerca do seu futuro. É provável que se tenha encontrado com o núncio apostólico em Lisboa para saber notícias da sua designação como coadjutor de Costa Nunes, mas não encontrámos documentos a confirmar esse encontro. A 2 de Agosto houve uma remodelação governamental que atingiu os ministérios dos Negócios Estrangeiros e das Colónias, por onde passavam os complicados processos de nomeação dos bispos coloniais. Paulo Cunha tomou o lugar de Caeiro de Mata nos Negócios Estrangeiros e o comandante Manuel Maria Sarmento Rodrigues subsitiuiu Teófilo Duarte nas Colónias16. Nos arquivos que consultámos não existem documentos que indiquem ter Alvernaz pedido audiências aos novos ministros. No entanto, a 13 de Novembro o núncio apostólico em Portugal informou o ministro Paulo Cunha que a Santa Sé tinha escolhido D. José Vieira Alvernaz para coadjutor com jure sucessionis de D. José da Costa Nunes. A nomeação foi publicada no jornal oficial em finais de Março. Entretanto, o secretário de Alvernaz, padre José Maria das Neves tentou obter a sua aposentação mas em vez disso foi transferido para a arquidiocese de Lourenço Marques17. Alvernaz deixou a diocese de Cochim a 3 de Fevereiro de 195118. Tomou posse canónica em Goa a 8 de Abril de 1951, no Domingo do Bom Pastor. Costa Nunes viajou para a Metrópole a fim de participar no encerramento do Ano Santo. OS CENTENARIOS DE S. FRANCISCO Regressou a Goa em Janeiro de 1952 para preparar as comemorações dos 400 anos da morte de S. Francisco Xavier e demonstrar, uma vez mais, que a arquidiocese de Goa e Damão era o maior centro católico do Oriente. Na carta pastoral em que anunciou a exposição do corpo do Apóstolo das Índias, Costa Nunes escreveu: “Goa considera o túmulo de Xavier como o seu maior tesouro, acredita que a sua posse é a maior garantia de paz e bem-estar dos seus habitantes. Quando se disse, sem o menor fundamento, que as venerandas relíquias sairiam de Goa, até os descrentes se impressionaram e reagiram. É nossa convicção que enquanto o Tesouro repousar na Basílica do Bom Jesus, esta terra de tradições cristãs nada tem a recear.” O arcebispo apelou à participação dos fieis, anunciando que seria a última vez em que haveria autorização para beijarem as reliquias do Santo antes de estas serem encerradas num caixão especial destinado a preservá-las, e não deixou de fazer prognósticos de ordem política: os peregrinos iriam reunir-se aos milhares em volta do túmulo do Apóstolo das Índias sem conhecerem divisões de raças, de nacionalidades, de fins políticos ou de interesses materiais19. Costa Nunes escreveu também ao ministro das Colónias a pedir mais verbas para a diocese, tinha de fazer despesas extradordinárias avaliadas em cerca de cem mil rupias com a exposição do corpo de S. Francisco, seria forçado a dar alojamento a milhares de peregrinos, quando apenas podia acomodar um número muito limitado nos conventos de Velha Goa se acaso estes ficassem restaurados a tempo. Assegurou ao ministro que ia receber 15 O Dever, 12 de Agosto de 1950, pág. 1. 16 Nogueira Pinto, Jaime, Salazar visto pelos seus próximos, Lisboa, Bertrand, 1993, págs. 279 e 280. 17 Arquivo Histórico-Ultramarino, Missões, Ministério das Colónias/Direcção Geral do Ensino. 18 Kureethara, Joseph, The diocese of Cochin – 1985, Vol.1, ed. Santa Cruz Press, Fort Cochin, Kerala, 1985, pág. 16. 19 Heraldo, 17 de Fevereiro de 1950, pág. 1. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 201 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES “todo o episcopado” da Índia, Paquistão, Ceilão, e vários prelados da África Oriental, que viajavam sempre na companhia de muitos secretários. Tinha de os instalar e de lhes dar alimentação. Além disso estavam a ser organizadas peregrinações de goeses da Metrópole e de África, comerciantes, industriais, homens das letras e das artes, era preciso recebê-los com brilho. A verba atribuída ao Padroado do Oriente no orçamento de Estado de 1952 foi de 3 100 000$00, dos quais 2 100 000$00 se destinaram a despesas da arquidiocese de Goa, 150 000$00 ao Montepio dos Padres Indianos e 840$00 a outras despesas, não discriminadas. Mas o arcebispo recebeu a ajuda pedida, tal como tinha recebido em Novembro de 1951 uma verba suplementar no valor de 1 410 416$00 destinada a aumentar os vencimentos dos missionários e sacerdotes goeses. Em Abril Goa engalanou-se para homenagear o ministro Manuel Maria Sarmento Rodrigues que visitou o Oriente numa grande comitiva que incluiu jornalistas da Metrópole, Angola, Moçambique, e correspondentes de jornais estrangeiros. O arcebispo Costa Nunes foi ao porto de Mormugão esperar o navio India onde o ministro viajou, mais tarde esteve ao seu lado quando lhe foram entregues as chaves da cidade de Pangim dentro de um estojo de sândalo e acompanhou-o num cortejo até ao Palácio do Hidalcão, a sede do governo. Ao cair da noite celebrou na Sé de Goa um Te Deum de acção de graças, em declarações a um jornal disse que era “um hino de alegria, uma expansão de alma, a agradecer ao Altíssimo a vinda à Índia do mais alto representante do Governo Central”20. Numa entrevista que concedeu nesta altura, Costa Nunes não deu indícios de que tencionava deixar a sua diocese, pelo contrário, falou dos seus planos para o futuro: estava a construir um novo seminário em Saligão, tencionava entregar a catequização das paróquias mais afastadas de Pangim aos missionários salesianos, preparava um projecto de missionação “no terreno” destinado aos Varlis de Damão e Nagar-Aveli, para o que havia criado cadeiras especiais no seminário de Rachol21. festas em honra do Apóstolo das Índias. No congresso participaram os arcebispos de Karachi, Madrasta, Bombaim e muitos sacerdotes da União Indiana. A exposição de arte sacra esteve patente ao público no Convento de S. Francisco, uma rica mostra que juntou a melhor arte religiosa de Goa, desde custódias trabalhadas a paramentos ricamente bordados, mármores cinzelados, imagens, crucifixos, quadros. As festas foram grandiosas, mais de 800 mil peregrinos de Goa e União Indiana passaram pelo túmulo do Apóstolo das Índias durante os 35 dias em que as suas relíquias estiveram expostas à devoção dos fieis. O cardeal Cerejeira, legado pontifício para as comemorações, foi recebido com muita emoção por milhares de pessoas, mais tarde discursou na Sala dos Vice-Reis, inaugurou o seminário de Nossa Senhora do Pilar, abençou o seminário de Saligão, presidiu à cerimónia de abertura do caixão de S. Francisco Xavier e assistiu ao congresso missionário na Basílica do Bom Jesus. Ministros de Portugal e de Espanha participaram nas festas em honra do Apóstolo das Índias. O Papa enviou uma mensagem que foi difundida pelas emissoras locais directamente da Rádio Vaticano a saudar “essa imperial Goa a quem Xavier, com tanto entusiasmo, consagrou as primícias do seu zelo apostólico na Índia, Goa que se ufana de possuir nas suas relíquias o maior tesouro do Oriente, e que lhe deve a ele, mais do que a ninguém, o ter sido durante longos séculos o mais potente foco de irradiação do Evangelho em toda a Ásia e Indonésia, e continua a ser, ainda hoje, a arquidiocese onde desabrocham mais vocações religiosas e sacerdotais”22. Numa carta enviada ao ministro Sarmento Rodrigues, depois de terminarem as comemorações de S. Francisco Xavier, o arcebispo Costa Nunes não escondeu o seu contentamento: “Sinto grande prazer em comunicar que tudo decorreu num ambiente de grande esplendor e elevação, notando-se sempre a mais estreita colaboração entre as autoridades civis e religiosas. Nenhuma nota discordante. Ordem, disciplina, abundância de 20 Ibidem, 25 e 26 de Abril de 1952, págs. 1 e 3. 21 Barradas de Oliveira, Roteiro do Oriente, Agência Geral do Ultramar, Enquanto estas coisas sucediam Alvernaz organizou o congresso missionário e a exposição de arte sacra que acompanharam as Lisboa, 1954, pág. 85. 22 Heraldo, 5 de Dezembro de 1952, pág. 1. [201] DO 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 202 géneros alimentares, facilidade de transporte, extrema correcção da polícia, tudo contribuiu para impressionar bem os peregrinos que se transformaram em defensores e admiradores de Goa. Creio que há motivos para todos nos regozijarmos, a propaganda feita contra nós na União Indiana não teve efeitos. Pela parte que me toca considero-me recompensado das energias gastas e dos sacrifícios feitos”23. UM CARDEAL PARA BOMBAIM [202] Outras cerimónias tinham disputado o brilho das celebrações realizadas em Goa. Em finais de Dezembro foram comemorados em Ernakulam, perto de Cochim, os centenários da chegada do apóstolo S. Tomé ao sul da Índia e os centenários da morte de S. Francisco. Um curioso despique. Participaram nas cerimónias cerca de 500 mil católicos e dezenas de prelados indianos, entre eles Valerian Gracias, arcebispo de Bombaim. O cardeal Norman Gilroy presidiu, na qualidade de legado a laterae do Papa, inaugurando mais tarde um colégio universitário feminino e um hospital. O jornal oficial do Vaticano noticiou que havia no Malabar dois milhões de católicos, dois mil sacerdotes, cinquenta mil frades e freiras, além de centenas de fluorescentes associações católicas que prosperavam sob o regime de liberdade religiosa do Pandita Nehru24. No início de Janeiro, quando ainda decorriam em Goa as cerimónias em honra de S. Francisco Xavier, foi anunciado que o arcebispo de Bombaim seria nomeado cardeal. Nas declarações que fez na altura este acentuou que tinha recebido a notícia da sua elevação ao cardinalato “na ocasião mais apropriada”, quando assistia às comemorações centenárias do Apóstolo S. Tomé no Malabar, pelo que havia partilhado a sua alegria com os católicos de toda a Índia25. Tudo indica que Costa Nunes desconhecia a decisão da Santa Sé e o mesmo sucedia ao embaixador português no Vaticano. José Nosolini só foi informado a 29 de Dezembro, nas vésperas da nomeação de Gracias se tornar pública. Recebeu a notícia de monsenhor Giovanni Montini e este terá dito ao embaixador que se tratava de uma “agradável” novidade, a nomeação do cardeal indiano era um “fruto” da acção evangelizadora de Portugual. O embaixador escreveu: “Respondi que em consequência da realidade de Goa como centro católico Oriental, do relevo recente das comemorações de S. Franciso Xavier e da acção do Patriarca Costa Nunes, só estaria na lógica das coisas e só honraria Portugal a elevação deste prelado ao cardinalato (...) Monsenhor Montini pediu-me que dispusesse de um dia, a reacção de momento levava-me a ver as coisas com má disposição, mas com tempo e serenidade esclareceria o assunto. Perguntei-lhe se a decisão do Santo Padre era definitiva e quando se tornaria pública. Respondeu que era definitiva e se tornaria pública dentro de quatro ou cinco dias. Mostrei-lhe que só era possível a nomeação simultânea do Patriarca das Índias se fosse retardada a nomeação do arcebispo de Bombaim. Monsenhor Montini respondeu que sossegasse, com tempo e calma a Santa Sé encontraria maneira de mostrar a sua consideração e amizade por Portugal”26.O embaixador Nosolini teve a intenção de pedir uma audiência ao Papa, na esperança de ainda ser possível retardar a nomeação do cardeal indiano, mas desistiu, dado o “melindre” que tal situação representava, era como se quisesse julgar uma decisão papal. Monsenhor Valerian Gracias recebeu o barrete cardinalício a 12 de Janeiro. A Santa Sé vivia a euforia da Índia, visionava um novo mundo cristão nesse país, não dava grande importância à situação do arcebispo de Goa que lhe aparecia como um caso político sem especial relevância. Oliveira Salazar, pelo contrário, atribuiu a maior gravidade a este assunto, orientou as conversações com o Vaticano, dando instruções a Nosolini por telefone, e quando se tornou evidente que Costa Nunes não seria nomeado cardeal, ordenou o regresso do embaixador a Lisboa para consultas. Em linguagem 23 Arquivo Histórico-Ultramarino, Missões, Ministério das Colónias/Direcção Geral do Ensino. 24 Arquivo Histórico-Diplomático, 2º piso, armário 1, processo 332,5. 25 Heraldo, 8 de Janeiro de 1953, pág. 1. 26 Arquivo Histórico-Diplomático, 2º piso, armário 1, maço 504-A. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 203 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES DO No entanto, esta crise foi gerida a um nível cuidadosamente calibrado, com exigências relativamente modestas de parte a parte, destinadas a salvar a face de um lado e de outro. Sinal disso foi o facto de o Ministério dos Negócios Estrangeiros português não ter gostado do destaque que foi dado a esta questão na imprensa internacional, enviando desmentidos aos jornais e uma circular às representações diplomáticas. A nomeação do cardeal Gracias foi bem recebida na imprensa de Goa e, aparentemente, não terá sido censurada. O jornal Heraldo publicou: “Figura alta e desempenada, monsenhor Gracias sabe estar com os velhos e com os novos, com as senhoras e com as crianças. É um prelado moderno, escritor primoroso, orador fluente, doutorado em Teologia, de um dinamismo que espanta. Mistura-se com o povo, procura auscultar-lhe a alma e dar a cada um remédio ou alívio. A sua elevação à mais alta dignidade eclesiástica coloca a sua terra no pináculo da glória.” Inicialmente a imprensa goesa supunha que Gracias voltaria a Itália, onde tinha vivido e leccionado, chegando a noticiar que o novo cardeal faria parte da Cúria Romana ou iria substituir o arcebispo de Veneza, Carlo Agostini, falecido em Dezembro – sem fazer sombra a Costa Nunes no Oriente. Foi aberta uma colecta destinada a oferecer a cruz peitoral ao cardeal Gracias, “uma homenagem de Goa a um filho seu que atingiu o zénite da dignidade eclesiástica”, foram pedidas contribuições aos goeses, sem distinção de credos ou castas28. COSTA NUNES DEIXA GOA Em finais de Janeiro correram rumores que o cardeal Gracias tencionava visitar a casa da família em Navelim, na Índia Portuguesa. O arcebispo Costa Nunes, que mantivera um cuidadoso silêncio a seguir à nomeação do cardeal indiano, sem fazer declarações públicas nem participar em cerimónias oficiais, partiu para Macau e Timor, em visita a estas dioceses dependentes da arquidiocese de Goa e Damão. Foi, sem dúvida, uma maneira de reforçar o protesto que o governo português tinha apresentado no Vaticano pela nomeação do cardeal Gracias, mas não houve explicações públicas, apenas uma breve nota assinada por Alvernaz a pedir ao clero para rezar a oração Pro Navigantibus “enquanto durar a viagem de S. Exa. Reverendíssima”29. Costa Nunes demorou-se em Macau, onde tinha sido bispo, e em Timor, de que gostava particularmente e tinha conhecido bem quando era jovem, enquanto em Goa se multiplicavam as iniciativas em sua honra. Foi criada uma comissão para as comemorações do seu jubileu sacerdotal presidida pelo governador-geral do Estado da Índia, general Bènard Guedes. Amigos e admiradores do arcebispo homenagearam-lhe o trabalho missionário, a 14 de Fevereiro, na câmara municipal de Pangim. Uma comissão de senhoras sob a orientação de Maria José Bènard Guedes fez um peditório, em Abril, para angariar fundos destinados aos festejos do jubileu sacerdotal do arcebispo e a obras sociais. Foi aberta uma subscrição pública, à semelhança do que acontecia com a colecta destinada à cruz peitoral do cardeal Gracias. Entretanto monsenhor Tardini tinha convidado Costa Nunes para tesoureiro-geral da Câmara Apostólica e cónego de S. Pedro, mas este não aceitou, alegando que conhecia mal a importância dos lugares oferecidos e lhe escapava o motivo da 27 Reis, Bruno Cardoso, ibidem, pág. 232. 28 Heraldo, 15 de Janeiro de 1953, pág. 2. 29 Ibidem, 27 de Janeiro de 1953, pág. 1. [203] diplomática, este é o gesto mais grave antes do corte de relações. Apenas se verificou novamente nas relações luso-vaticanas em 1970, quando o Papa Paulo VI recebeu dirigentes de movimentos de libertação africanos que combatiam Portugal27. Seguiram-se umas semanas de grande constrangimento entre a Santa Sé e Lisboa. A 17 de Janeiro o jornal New York Times noticiou: “Relações entre Portugal e o Vaticano tornaram-se tensas. Com a nomeação de Gracias, Portugal considera-se insultado”. Por seu lado o periódico italiano Il Messagero titulou “Incidentes entre Portugal e a Santa Sé”. Em finais de Janeiro o embaixador Nosolini apresentou na secretaria de Estado do Vaticano uma “nota verbal” de protesto na qual Salazar expressou as suas condições para a normalização de relações diplomáticas e pediu a atribuição a Costa Nunes de “cargos curiais” que honrassem o seu trabalho missionário. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 204 A ROSA DE OURO A 27 de Junho, Pio XII escreveu um carta autografada a Costa Nunes a felicitá-lo pelo seu jubileu sacerdotal e a anunciar que atribuia a Rosa de Ouro à Sé Catedral de Goa, “para perpetuar a lembrança dos méritos que a arquidiocese de Goa e Damão conquistou ao serviço da causa missionária e para que melhor perdure a memória das solenidades centenárias de S. Francisco Xavier, aí recentemente celebradas, sob a tua orientação”31. Vemos assim que os “cargos curiais” pedidos para Costa Nunes de facto foram-lhe concedidos, como tinha prometido monsenhor Montini, na altura da nomeação do cardeal Valerian Gracias para Bombaim. Costa Nunes com o arcebispo Alvernaz durante o Concílio Vaticano II (ibidem, pág. 184). [204] nomeação, pelo que achava preferível ir à Cidade Santa, “tratar do caso”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros recolheu informações, concluindo que os cargos oferecidos ao Patriarca das Índias não tinham “a categoria que se desejaria para S. Excelência”30. Costa Nunes passou por Pangim em Maio, foi homenageado numa festa no Salão Nobre do 1º Senado de Goa, em seguida anunciou que tinha sido chamado ao Vaticano a fim de tratar de assuntos relacionados com a arquidiocese, numa mensagem que foi publicada nos jornais com o título “Despedida”, e partiu para Roma. No mês seguinte foi nomeado presidente da Comissão Permanente do Congresso Eucarístico Internacional e vice-camerlengo da Santa Sé, mantendo o titulo de Patriarca das Índias ad personam. Em Junho o governo português enviou uma nota ao governo indiano a anunciar a intenção de assinar o acordo relativo ao novo traçado de fronteiras da arquidiocese de Goa, acordo que Salazar tinha deixado em stand-by enquanto não se resolvia o futuro do Patriarca das Índias, como referimos anteriormente. Foi assinado em Setembro, a arquidiocese de Goa ficou limitada aos territórios sob administração portuguesa, enquanto as paróquias que anteriormente possuía na União Indiana foram anexadas a dioceses indianas. A atribuição da Rosa de Ouro a Goa foi recebida com imenso entusiasmo, foi um deslumbre, um fascínio, o Secretariado Nacional da Informação encheu os jornais de propaganda. Na verdade a Rosa de Ouro é uma pequena distinção simbólica formada por cinco flores que a Igreja Católica concede a instituições e personalidades em sinal de reconhecimento. Esta foi benzida pelo Papa em Castelgandolfo e mais tarde foi levada para a Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, onde ficou exposta durante uns dias. Na altura o Papa salientou que distinguia “Goa e todo o nosso fidelíssimo Portugal, em reconhecimento pelo seu passado, pelas suas múltiplas benemerências em favor da Fé e da Igreja, e também porque (Portugal) continuará a desenvolver a sua vocação missionária”32. O governo enviou a Itália um navio da Armada para transportar a Rosa de Ouro até Goa. Quando esta chegou foi recebida com manifestações exuberantes, colocada sobre um jeep percorreu o caminho entre o porto e a igreja matriz à frente de um barulhento cortejo de camionetas, automóveis, populares, que encheu por completo a ponte de Linhares, desde Ribandar a Pangim, um enorme e ininterrupto desfile, semelhante a uma gigantesca serpente ondeante. 30 Arquivo de Oliveira Salazar (Torre do Tombo), Colónias/Ultramar, pasta 20. 31 Boletim Eclesiástico da Arquidiocese de Goa, Julho de 1953, pág. 30. 32 Heraldo, 2 de Setembro de 1953, pág. 1. 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 205 A DIFÍCIL NOMEAÇÃO CARDEAL COSTA NUNES DO O arcebispo Costa Nunes comemorou o seu jubileu sacerdotal na sé catedral de Goa recebendo na mesma cerimónia a Rosa de Ouro das mãos dos enviados do Papa e a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, entregue pelo governador-geral de Goa em nome do Estado português. Por seu lado o arcebispo distinguiu o governador com a comenda de S. Gregório Magno. Alvernaz fez um pequeno discurso desarticulado e sem brilho a elogiar o trabalho de Costa Nunes em Macau e em Goa, mas no dia seguinte explicou o simbolismo da Rosa de Ouro num longo e sólido sermão, acentuando que a Sé de Goa, “mãe veneranda das igrejas do Oriente”, recebia a distinção em nome das dioceses criadas pelos missionários ao longo de séculos desde o Cabo da Boa Esperança até ao longínquo Japão e às grandes ilhas do Pacífico. A 25 de Setembro Alvernaz tomou posse como arcebispo de Goa e Damão, Patriarca das Índias, Primaz do Oriente33. Costa Nunes deixou a Índia em 17 de Setembro, passando a residir em Roma, onde em breve se tornou muito conhecido e, curiosamente, na Cidade Santa retomou ligações à Maçonaria que vinham do seu tempo de juventude, deixando de ser um maçon adormecido. De facto Costa Nunes integrou o Triângulo nº 90, de Macau, que foi fundado em 1906. Três anos mais tarde esse triângulo passou a loja, denominada de Luís de Camões, dela fazendo parte Costa Nunes com o nome Costa Nunes cumprimentando o Papa Paulo VI (ibidem, pág. 185) simbólico de Herculano. A loja dissolveu-se por questões políticas em 1915, dando origem a uma outra de que foi venerável o poeta Camilo Pessanha. O nome de Costa Nunes já não consta dessa nova loja, nem se sabe em que data se afastou34. Contudo há a certeza de que, dezenas de anos mais tarde, o arcebispo trabalhou com a Maçonaria italiana, havendo uma referência com data de 1960/61 que não indica graus ou cargos exercidos. Não é possível avaliar se a sua carreira eclesiástica foi afectada por esta pertença. No Consistório de Março de 1962 Costa Nunes recebeu finalmente a púrpura cardinalícia, sendo-lhe atribuído o título de cardeal-presbítero de Santa Prisca. Tinha passado um ano sobre a anexação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, Portugal continuava a desenvolver todos os esforços diplomáticos para que não fosse reconhecida a soberania indiana sobre estes territórios, e acolheu com muito agrado a distinção do antigo 33 Ibidem, 15, 16 e 25 de Setembro de 1953, págs. 1, 3 e 1. 34 Segundo as informações que recolhemos, o processo individual de Costa Nunes não consta dos arquivos do Grande Oriente Lusitano (GOL), mas o seu nome consta em listagens da “loja” Luís de Camões e em documentos avulsos. [205] O cardeal Costa Nunes com o Papa Paulo VI em Junho de 1973 (ibidem, pág. 174) 12.CH.MaiaGuiomar(pb) 6/17/09 10:22 AM Page 206 [206] Patriarca das Índias. O embaixador António de Faria manifestou ao cardeal secretário de Estado o “júbilo”, o “reconhecimento”, a “gratidão” do governo e da Nação Portuguesa, por ter sido escolhido o prelado que no decurso da sua longa carreira prestou valiosos serviços ao Padroado35. Numa carta enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, o embaixador escreveu: “A Santa Sé premiou os serviços eminentes de um missionário do Oriente, compensando assim a agressão de que fomos vítimas”. O ministro do Ultramar ofereceu a Costa Nunes as vestes cardinalícias, como era costume quando a igreja distinguia o prelado de uma diocese colonial, enviando-lhe um cheque no valor de 1 131 040 000 liras. Houve recepção na embaixada em honra do Sacro Colégio. Oliveira Salazar não colocou entraves a estas despesas, ao contrário do que tinha acontecido quando o arcebispo de Lourenço Marques foi elevado a cardeal36. 35 Telo, António José, António de Faria, Lisboa, Edições Cosmos, 2001, pág. 304. 36 Arquivo Histórico-Diplomático, Política Ásia-África, processo 905, maço 108. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 207 Sérgio Alberto Fontes Rezendes A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE* Falar sobre a Bateria da Castanheira no âmbito de uma pós graduação de Património, Museologia e Desenvolvimento, é realçar a missão de uma velha mas cintilante parte da História Açoriana. Perceber a sua utilização e progressivo desinteresse, forneceu as explicações para o seu abandono, que – diga-se em abono da História – a poderá ter salvo do repatriamento para o continente português ou, pior ainda, do seu desaparecimento total. Falar sobre as fontes do presente trabalho, será falar de uma pesquisa de raiz em conjuntos de atados do Arquivo de Engenharia do Museu Militar dos Açores, bem como do próprio arquivo da Zona Militar dos Açores. Falar da bibliografia, será referir uma pesquisa que passou por algumas obras pertinentes para a época, algumas completamente desconhecidas, mas escritas por quem viveu o momento e foi levado a tomar decisões que inevitavelmente conduziriam as ilhas (e neste caso mais específico, S. Miguel) a duas situações: ou à defesa em caso de ataque, ou então à ocupação verificando-se então todas as demais situações sobejamente conhecidas em teatros de guerra. Falar em Património e Museologia, será atribuir a este pequeno Peça nº. 3 da Bateria da Castanheira: Krupp 15 cm. núcleo da nossa História nos grandes momentos do Século XX um correcto tributo a uma dívida que temos a todos os que pela nossa independência perderam a vida e se preocuparam com a defesa e integridade das gentes açorianas. *As fotografias mais recentes publicadas no presente artigo reportam-se ao ano de 2002. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 208 1. A CONCEPÇÃO DE DEFESA DE COSTA A defesa de costa tem por missão geral a defesa e protecção de áreas e/ou pontos sensíveis, situados no litoral, bem como a interdição de locais acessíveis do referido litoral nos quais possam ser tentados desembarques de fortes contigentes de tropas inimigas com vista a operações de grande envergadura no país. Os factores a ter em consideração para a sua organização passam pela extensão e características da costa, a sua importância quer por motivos políticos e económicos como militares e marítimos. Outras variáveis são a potência ou potências a considerar como futuras ameaças, a sua situação geográfica e a força que o próprio país poderá vir a representar no auxílio aos seus aliados. Peça nº. 1. Vista de frente. [208] Área aproximada de tiro da Bateria da Castanheira (sem escala). São, pois, oito os principais factores pelos quais se rege a Missão da Defesa Costeira: 1º) garantir as informações e observações do inimigo nas águas territoriais; 2º) evitar bombardeamentos das bases navais, portos importantes, grandes centros demográficos ou pontos estratégicos; 3º) evitar ou repelir forçamentos, ataques e desembarques; 4º) evitar a progressão do desembarque, caso este já se tenha efectuado; 5º) proteger a navegação junto do litoral e no interior dos portos; 6º) garantir a posse e defesa das bases navais necessárias às forças navais e aéreas das forças nacionais e aliadas; 7º) garantir às forças navais uma zona de manobra; 8º) estabelecer e defender barragens de minas ou obstáculos passivos. Para uma correcta execução desta tarefa, deve contribuir para tal a artilharia, as defesas móveis de navios de combate ligeiro (torpedeiros, por exemplo), as defesas fixas passivas (como minas e redes, por exemplo) e as defesas fixas e móveis aéreas (como a aviação, os balões e as anti-aéreas). De todos estes meios, e até ao desenvolvimento dos modernos sistemas assentes em mísseis, era a artilharia tipo canhão que mais se destacava neste tipo de conceito, pela sua grande rapidez de resposta, continuidade, precisão e intensidade de fogos, que nem o avião ou o submarino conseguiam obter. Tratava-se da forma de defesa mais segura, rápida, precisa e eficaz para a época, apenas substituível com vantagens pela actual artilharia de mísseis de costa. De modo geral o conjunto das defesas de um sector marítimo dispunha-se durante a II Guerra Mundial em duas linhas: uma primeira linha avançada à menor distância possível dos pontos e zonas a proteger e uma segunda linha mais próxima do porto e base naval, em condições de reforçar a anterior e para servir de núcleo de defesa no caso de inutilização da primeira. Esta concepção de defesa levava a que se empregasse na primeira linha bocas de fogo de grande rapidez de tiro, de curto alcance, para bater lanchas de desembarque e pessoal de infantaria, e na segunda bocas de fogo de maior calibre e maior alcance, para bater os navios que com o seu fogo estariam a apoiar o desembarque. Este material especificamente de costa poderia ser complementado com o tiro de peças de campanha (móveis) e por peças anti-aéreas. Será, pois, dentro desta concepção de defesa de costa, nas suas grandes linhas imutável, que terá que se analisar a construção da Bateria da Castanheira e sua utilização ao longo de quase meio século. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 209 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE 1.1. A ORIGEM E O ENQUADRAMENTO DA BATERIA DA CASTANHEIRA NA DEFESA DA COSTA DE PONTA DELGADA Situada no Pico da Castanheira, na freguesia de Arrifes, município de Ponta Delgada, a Bateria Independente de Defesa de Costa N.º 1 é constituída, em termos de instalações físicas, por duas zonas bem distintas: a da bateria propriamente dita, que é caracterizada por ser um complexo fortificado subterrâneo e uma zona de aquartelamento aonde ficariam, a cerca de 500 m, instalados os apoios administrativos e logísticos da mesma. 1 (P.C.T.) Posto de Controlo de Tiro 6 Central telefónica 10 Laboratório 14 Paiólins 2 Sala de Operações 7 Peças Krupp 15 cm m/897 11 Paióis 15 Dormitório da guarnição 3 Quarto do CMDT e adjunto 8 Depósito de água 12 Caserna da guarda 16 Cozinha 4 Dormitório dos resantes oficiais 9 Central eléctrica 13 WC da guarda 17 Arrecadação 5 Acesso ao espaldão [209] Servidão Militar da Bateria da Castanheira. 16 13 17 12 15 15 5 14 14 Saída de emergência 7 8 11 Saída de emergência 11 11 10 9 15 15 5 15 15 5 4 14 14 3 14 14 7 7 6 2 1 Planta do complexo subterrâneo da Bateria da Castanheira. Entrada para o subterrâneo 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 Instalações do aquartelamento da Castanheira, vulgarmente conhecido como Quartel da Grotinha. 10:55 AM Page 210 Interior do aquartelamento. Saída de emergência da galeria dos paióis. [210] sidade urgente do ambiente internacional de guerra, cujos reflexos se fizeram sentir também nos Açores, como posteriormente se analisará. A sua missão principal era a da defesa da cidade de Ponta Delgada, especificamente do seu porto de acesso junto ao Forte de São Brás. Deveria actuar contra navios de forças atacantes procurando atingir em primeira urgência os de transporte de tropas e em segunda os de escolta. Estava também prevista a sua utilização em acções de apoio de fogos às forças terrestres e na defesa da costa norte da ilha. Fotografia do General Ernesto de França Mendes Machado, patente na galeria dos comandantes da actual Zona Militar dos Açores. Não sendo o propósito deste trabalho a análise da zona de aquartelamento, mas apenas a da bateria em si, resta alertar para o facto da segunda existir para apoio da primeira. De acordo com a concepção de defesa de costa já analisada, a Bateria da Castanheira surge como resultado de uma neces- Ernesto Machado, recém promovido a brigadeiro, foi instruído pelo subsecretário de estado da Guerra para realizar a mudança do Comando Militar dos Açores da ilha Terceira para São Miguel e simultaneamente resolver o problema da escolha das posições das baterias pesadas de costa nos Açores. Na sua mente já ganhava forma a excepcional importância que o arquipélago atingia na estratégia marítima, não só advinda da sua privilegiada situação geográfica ou sobre a conveniência de nestas se instalar uma base naval, com vários proveitos para os portugueses (em defesa da nossa linha de comunicações para as províncias do sul) e para os velhos aliados ingleses, como também de dois factores novos que marcaram a II Guerra Mundial: o progresso da aviação e a sensibilidade mediterrânica1. 1 Esta questão é particularmente analisada por Telo, A. J., “Os Açores e as Hesitações na Peninsula”, in Os Açores e o Controlo do Atlântico, Lisboa, ASA, 1993. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 211 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA O arquipélago tornara-se o mais notável elo de ligação entre o velho e o novo continente, originando inúmeras possibilidades para o seu uso, o que atraía a atenção não só dos E.U.A. e Inglaterra, como da própria Alemanha. No que concerne ao Mediterrâneo, a razão reside no incremento que o canal de 720 milhas entre os Açores e a costa luso-africana teria caso o Mediterrâneo ficasse sobre domínio do Eixo, ao que bases navais e aéreas nos Açores garantiriam, conforme os casos, o comércio marítimo do Mundo pelo Atlântico (embora não fosse a única variável da nova estratégia a montar). Em 1940, circulavam boatos de uma possível invasão de Portugal continental e ao nível militar (oriundos dos ministros da Guerra) foram recebidos telegramas como «...Arquipélago pode ser atacado a todo o momento…» ou «…Soberania nacional Açores pode ser afectada a qualquer momento…»2. Nesta altura, já os alemães atingiam os Pirinéus e as intrigas políticas efervesciam em Espanha, com possíveis consequências para Portugal3. No sentido de dissuadir as pretensões da Alemanha, da Inglaterra e dos Estados Unidos quanto à utilização dos Açores, António de Oliveira Salazar foi enviando tropas para os Açores, reforçando não só a defesa das ilhas como a possível eventualidade de ter que mudar o Governo para Ponta Delgada, em virtude do receio da concretização da Operação Félix4. A Bateria da Castanheira foi um reflexo de uma guerra mundial que inevitavelmente levou a que se desse em questões militares um passo à frente, construindo-se e mobilizando-se inúmeras unidades e instalações militares nas ilhas açorianas, em particular nas ilhas do Faial, S. Miguel e Terceira. Com a suspensão da Operação Félix a 10 de Janeiro de 1941 e com os acordos assinados em 1943 com a Inglaterra e em 1944 com os Estados Unidos da América, finalmente António de O. Salazar poderia de certa forma tranquilizar-se em virtude do resultado contido na sua sagacidade na defesa dos interesses de Portugal ante o interesse dos blocos adversários. Neste contexto, o porto de Ponta Delgada assumia-se como sendo um importante ponto de apoio logístico para o abastecimento/reparação de navios que atravessavam o Atlântico, o que o tornava num ponto estratégico a assegurar no cordão umbilical que unia um velho e novo continente em guerra. Contudo, ambas facções beligerantes tinham projectos muito próprios para o domínio do Atlântico Norte, pelo que as ilhas açorianas constituíam sempre um indispensável ponto para a sua concretização. Uma vez analisada sumariamente a importância dos Açores, da ilha de S. Miguel e do seu porto, a Bateria da Castanheira surge como de defesa intermédia, numa primeira fase. Alguns anos depois (décadas de 1950 e 60), haveria de pertencer a um outro projecto defensivo cuja missão seria a instalação uma bateria de longo alcance, que não chegou a ser construída no Pico da Cruz, com material de origem canadiano de 23,4 cm (modelo de 1941) e cujo alcance rondaria os 40 km (material que, embora recebido, acabou por nunca ser montado). Seria então um dispositivo constituído pela Bateria da Castanheira em conjunto 2 Machado, General Ernesto, “III- Perigo de Guerra eminente. O arquipélago pode ser atacado a todo o momento”, Recordando nas duas Grandes Guerras, Museu Militar dos Açores, 1959, p. 129. 3 O embaixador português em Espanha em 1940, Dr. Pedro Teotónio Pereira, foi informado por um trio germanófilo, do qual se destaca o embaixador alemão em Madrid barão Von Stohrer, que Portugal só teria a temer um ataque alemão se continuasse aliado da Grã-Bretanha. A legação Alemã em Lisboa também recebeu instruções sobre a vantagem em desunir os antigos aliados. António de Oliveira Salazar a passar revista a tropas a enviar para os Açores. 4 Machado, E., Recordando…, Ibidem, p. 128, 174 e 175. [211] À ACTUALIDADE 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Uma das duas peças Vickers 10,16 cm instaladas em 1947 no Forte de S. Brás em Ponta Delgada. Page 212 É bastante provável que as duas Vickers da Marinha instaladas no referido forte sejam as da Bateria Eventual existente em Santa Clara durante a II Guerra Mundial. [212] com uma divisão (meia-bateria) instalada em 1947 no Forte de São Brás, (para defesa imediata do porto de Ponta Delgada), constituída por duas peças Vicker’s Armstrong de 10,16 cm com um alcance de cerca de 9 km e pela bateria 23,4 cm m/41. Contudo, o sistema defensivo na II Guerra Mundial previa um cone de fogo que se iniciaria com a Bateria da Castanheira a partir de cerca dos 12 km, para depois ser reforçado por uma designada Bateria Eventual de Defesa de Costa (constituída em 1943). Esta última teria a missão de complementar a Bateria da Castanheira, realizando a defesa próximo da costa. A sua localização, alvo de intenso secretismo na época, situou-se no campo de Santa Clara e o facto de ser eventual reflecte o seu carácter não permanente (ao contrário da Castanheira), pelo que tanto quanto se consegue avaliar apenas foi alvo de maior preocupação por parte da instalação das duas peças Vicker’s 101/40 (provavelmente seriam as Vickers 10,16 cm mais tarde instaladas no Forte de São Brás). Junto à costa de Ponta Delgada, a bateria localizava-se em local de difícil acesso e encontrava-se pronta a funcionar a 25 de Novembro de 1943 (mantendo-se pelo menos até ao final de 1945). Em caso de emergência, a defesa do porto seria reforçada também pelas duas baterias anti-aéreas de 9,4 cm m/40 (de 4 peças cada), instaladas em Belém e na Relva, que tinham como missão a defesa anti-aérea de Ponta Delgada, e, em alternativa, bater alvos navais. A sua capacidade de tiro anti-aéreo era no máximo Com a mesma missão de defesa do porto de Ponta Delgada, as Vickers 10,16 cm encontram-se perfeitamente alinhadas com a Bateria da Castanheira (ao fundo). de 21.000 m e de alcance útil a 11.500 m. A complementar todas as quatro baterias referidas, existiria ainda material de menor calibre, como as peças de 7,5 cm m/931 estacionadas em Ponta Delgada (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves N.º 1), com um alcance máximo de 13.900 m; os obuses R 10,5/28 m/941 (do Regimento de Artilharia Ligeira N.º 3), com um alcance máximo de 10.800 m; ou das peças de tiro rápido 7,5 cm m/917 (do Regimento de Artilharia Pesada N.º 1), estas duas últimas com a missão de complementarem a Bateria da Castanheira quer a norte ou a sul da ilha. O receio do Comando Militar dos Açores era, em 1942, o de um ataque em força contra o porto de Ponta Delgada, conjugado com a acção aérea e terrestre contra o aeródromo de Santana e tentativas de desembarque em outros pontos das ilha, como nos Mosteiros ou Vila Franca do Campo, actuando por surpresa. Inserida no designado Sector Central, a Castanheira pertencia a um conjunto militar preparado para dar cumprimento à principal missão da defesa da ilha, ou seja, obstar a qualquer desembarque inimigo, mantendo a todo o custo a posse de Ponta Delgada. Complementada a defesa com recurso a outras Armas como a Infantaria para o caso de desembarque de tropas inimigas, o uso das Krupp de 15 cm para a defesa da zona norte do seu sector seria feito recorrendo-se para tal de postos de observação nesta área que serviriam de olhos à Bateria. O seu sector de tiro (prioritário) era definido pela área compreendida entre 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 213 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE O sector de tiro na costa norte compreendia em situação normal a À semelhança do que sucedeu com as Krupp 15 cm m/897, primeiro zona entre a ponta de S. fixaram-se as peças para depois se António e o morro de construir o espaldão. Rabo de Peixe, sendo a eventual a zona ocidental, que a leste diria respeito ao terreno entre a lagoa do Cedro e o porto da Fajã e a oeste de S. António até às Feteiras5. 2. DA CONSTRUÇÃO À DESACTIVAÇÃO A bateria de costa 15 cm (calibre)/CTR (Costa-Tiro-Rápido) m/897 (modelo) é constituída pelo complexo subterrâneo que apoia três peças Krupp de 1897 (ano em que entraram ao serviço do Exército Português, pelo que ainda são mais antigas, embora em poucos anos), actualmente com mais de 112 anos de serviço, e instaladas na colina da Castanheira em 1940. Todo o material bélico foi desembarcado do Vapor Carvalho Araújo em Ponta Delgada a 4 de Julho de 1940, sob a coordenação do já referido General Ernesto Machado, presidente das três comissões técnicas criadas para o estudo e construção das baterias nas ilhas dos Açores(2) e Madeira(1). Todos os estudos haviam sido efectuados aquando das viagens do General e respectivas comissões às ilhas, entre 8 de Novembro de 1939 e 5 de Janeiro de 1940, sendo o tempo que as intercalou para trabalho de gabinete. Uma vez os projectos aprovados pelo ministro de Guerra e subsecretário de Estado e o material desembarcado nos seus destinos, as maiores problemáticas passavam por delongas burocráticas e ausência de responsáveis definitivos, no que concerne à execução por parte da Engenharia Militar. Igualmente não se decidia o regime de adminis- tração e direcção, pelo que as obras se realizavam com a rapidez possível sob os olhares dos oficiais de Engenharia Militar da comissão, estando nelas empregues um grande número de operários, não só militares como civis. Será de referir que nestas obras de fortificação realizadas nos Açores, cuja total dimensão ainda não será bem conhecida, se investiu grandes quantias na época, que se reflectiram nas sociedades em redor das mesmas6. No caso da Bateria da Castanheira, as obras fundamentais em questões de fortificação prolongaram-se até finais de 1943, iniciando-se depois uma série de pequenas obras que se poderá designar como acabamentos, e as obras de maior envergadura no que concerne à zona de aquartelamento7. A rapidez e a exigência da construção desta fortificação subterrânea levaram a que se empregasse uma quantidade bastante razoável de carpinteiros, serralheiros, pedreiros e outros tipos de trabalhadores civis, que complementariam o trabalho efectuado pelos militares. O eco destas obras manifestava-se igualmente nas casas comerciais das zonas em redor, como no caso de Ponta Delgada. Muitos dos materiais eram comprados localmente em lojas ainda conhecidas como o Luís Gomes, a Drogaria Açoriana, a Casa regional Ilha Verde, o Domingo Dias Machado, os Azevedos ou em estabelecimentos já esquecidos na memória colectiva, como The Azores Coaling, a Loja dos Compadres, a Empreza de Trabalhos Metalúrgicos e a Socouz-Vacuum, entre outras. Os restantes materiais eram enviados do continente, muitas vezes do Depósito de Material de Engenharia N.º 1, mas que por razões logísticas e por vezes burocráticas revelavam-se mais morosos do que os do mercado local. Para se 5 Visava-se com maior atenção a norte da ilha os portos de Capelas e o desembarcadouro de Poços; a sul, o porto de Ponta Delgada e outras zonas limítrofes de possível desembarque; a leste o porto e Rosto do Cão e em São Roque, Glória e Lagoa e a oeste, entre o porto e Isolamento. 6 Apesar de não haver números seguros, alguns estudiosos militares estimam que 6.300 contos haviam sido despendidos no Faial e que na Terceira e São Miguel se havia investido 54.000 contos (num cálculo por baixo), o que financeiramente correspondia em 1985 a 2 milhões de contos. 7 Apesar de ainda não se terem iniciado as obras, o aquartelamento já se encontava planeado em 1940 e orçado em 2.090.220$00. [213] Terião até à linha de S. Brás e eventual (contra alvos terrestres) na zona oriental (a leste) desde Terião até Santana, e de Ponta Delgada a Fenais da Luz (a oeste). 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 214 Planta do complexo da Castanheira, em Ponta Delgada. Localizado junto à encosta norte da colina da Castanheira, o aquartelamento situa-se a cerca de 600 metros da posição fortificada. Hoje, mais do que nunca, a vegetação complementa a camuflagem. ter a noção do investimento realizado na defesa dos Açores durante a II Guerra Mundial, bastará referir a determinação do General Aníbal de Passos e Sousa (comandante militar dos Açores em 1942) em intimar sob pena de desobediência à autoridade militar as câmaras municipais de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Lagoa e Vila Franca do Campo, no sentido de suspenderem todas as obras em curso, para que todos os operários se apresentassem em obras militares sob a pena de detenção8. Finalmente, a 26 de Julho de 1940 foi dada ao C.M.A. total e indispensável liberdade na execução das obras, ao preço de todas as responsabilidades. Abolidas as burocracias, foram publicados decretos a isentar as obras de praxes legais e os fundos acediam conforme solicitação do comando. Não viria nenhum empreiteiro do continente, podendo as obras ser por adjudicação directa a empreiteiros locais quando conveniente e o mercado local poderia então ser explorado enquanto zona de recursos materiais. Para além da responsabilidade total por parte do comando, este também ficaria responsável pela fiscalização das mesmas e pelo envio de um relatório quinzenal sobre o trabalho feito. Pela parte do General Ernesto Machado, tudo se enquadrava no pretendido e pela parte do subsecretário de Estado todas as verbas foram facilitadas de tal forma que as peças ficaram instaladas em Setembro de 1940 e testadas a 15 de Outubro do mesmo ano. Os resultados mostravam que estavam em condições de actuar com eficácia. Promovido ao posto de General (o C.M.A. era de Brigadeiro), Ernesto Macha- 8 Esta determinação, apenas abria uma excepção no caso de obras inadiáveis como coberturas de edifícios ou reparações de canalizações. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 215 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE do retirou-se dos Açores em finais do Verão de 1940, com a certeza que a sua obra havia deixado os Açores e, neste caso, Ponta Delgada em condições de responder eficazmente às ameaças externas, sensação esta que também a própria população partilhava e manifestava9. Pela sua dimensão e pelo facto de ter dois complexos de infra-estruturas separados, torna-se difícil datar com exactidão o fim das obras. Contudo, à semelhança do que já foi dito, a parte da bateria terá ficado completa provavelmente até 1943, na medida em que o plano de camuflagem da bateria é datado deste ano. O plano consistia no disfarce de toda a zona da bateria num terreno aparentemente de pastagem, ao qual estariam associadas duas pequenas casas, uma tenda e um pequeno palheiro (este último, bem como as duas casas, sem que tivessem aparentemente nada a ver com a fortificação). A tenda serviria para tapar uma das peças, ao passo que as restantes foram provavelmente dissimuladas com grandes superfícies de lona camuflada, à semelhança do que se fazia em 1953. Poderá também ter sido elaborada por intermédio de redes de camuflagem e materiais orgânicos do local, suportados por um “gafanhoto”, ou seja por uma armação tubular que revestiria todo o espaldão. Este encontrar-se-ia provavelmente pintado11. A existência das duas casas, se por um lado dificultaria uma identificação aérea, por outro serviria como referência para um contacto visual por Pormenor da 3ª peça e da camuflagem do espaldão (pintura). 4 3 1 2 Pormenor da parte anterior da 2ª peça (1); porta de acesso ao subterrâneo do espaldão (2); “janela” de passagem de munições (3); silhuetas para identificação de navios inimigos (4). parte da artilharia dos navios inimigos. Contudo, é uma da directrizes da época para a defesa das ilhas a dissimulação de posições militares e a obrigatoriedade de construir falsas construções de forma a iludir o adversário sobre a verdadeira ocupação e localização das armas. O disfarce de toda a bateria prolongou-se 9 À despedida, foi por pouco que não se defrontou com uma população, associações e entidades oficiais, em festa. Sempre declinou este tipo de acções, referindo que a protecção era por ordem do Governo e não sua. A 17 de Julho de 1941 foi então entregue definitivamente, por ordens superiores, a direcção das obras aos oficiais de Engenharia por se ter constatado que a autonomia dada em 1940 para a condução das obras foi a principal razão pela sua rapidez. 10 Espaldão: entrincheiramentos para a artilharia. 11 Quando a presente investigação foi elaborada, em 2002, a pintura camuflada e as silhuetas das embarcações encontravam-se em boas condições. Pinturas posteriores destruíram-nas. [215] Como já foi referido, as obras prolongaram-se por mais alguns anos, embora a zona fundamental, a do espaldão10 e das peças já estivessem operacionais. Sabe-se que à área inicial de 1939/1940 foram acrescentados cada vez mais terrenos em 1941 (27.049 m2) e em 1948 (28.317 m2), adquiridos através da compra ou permuta, embora tenham existido alguns arrendamentos. Assim, em documento não datado, mas provavelmente da década de 90 do século XX, constata-se que a posição de artilharia assume a dimensão de 22.244 m2; a de serventia 216,5 m2 (caminho de acesso) e a do aquartelamento 28.267,42 m2, sendo então o total da Bateria de Defesa de Costa N.º 1 [nesta época designado por PM (prédio militar) 3 de Ponta Delgada] de 50.867,92 m2. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 216 Planta esboço da camuflagem da Bateria da Castanheira, executada pela 1ª Companhia de Sapadores Mineiros do Comando de Engenharia do Comando Militar de São Miguel em 29 de Abril de 1943. Posto de Comando Peças de artilharia Krupp de 15 cm m/897 [216] de 1942 a 1944, embora o processo se tenha iniciado provavelmente logo após a instalação das peças em 1940, na medida em que em 1942 refere-se a substituição das camuflagens existentes12. Foram ainda executadas inúmeras obras na zona de aquartelamento durante 1945 e 1946, ano em que se dotou em 4.000$00 os acabamentos dos vários trabalhos na Bateria da Castanheira, nomeadamente a sala de transmissões. A partir desta data, as obras seriam executadas a partir de moldes desconhecidos pelo autor do presente estudo. Contudo, é possível verificar uma descida no investimento realizado a partir de 1943. Pelo valor investido em 1946, torna-se evidente que as obras, pelo menos as da Bateria, estariam praticamente concluídas e que terminada a guerra os fundos estariam a ser canalizados para outras prioridades, em virtude da redução de unidades e de um novo dispositivo de tropas. Em 1945 constata-se que a Bateria da Castanheira, cuja realização visava um carácter permanente, havia custado cerca de mil contos, isto numa época em que a construção de metade do quartel em alvenaria custava cerca de 82 contos e que um servente de pedreiro ganhava 12$00. Em virtude do arquivo do extinto Grupo de Artilharia de Guarnição N.º 1 (GAG1), antiga unidade responsável pela Bateria (actualmente será o Regimento de Guarnição N.º 2, nos Arrifes) ainda não ter sido entregue ao Museu Militar dos Açores, não foi possível analisar a operacionalidade da bateria desde finais dos anos quarenta até 1969, ano em que pela última vez se executaram fogos reais. Sabe-se que, para além de vários disparos de exercício ao longo dos vinte e nove anos de vida útil da bateria, a 31 de Janeiro de 1944, perto da mesma, se constatou a existência de uma aeronave desconhecida e que se registaram quatro detonações de artilharia. Embora não se consiga perceber ao certo as ilações a retirar deste incidente, tal não deixa de ser demonstrativo sobre a importância que esta teria para a defesa da cidade de Ponta Delgada, tornando-se, se não o primeiro alvo a destruir por intermédio de um bombardeamento, seguramente um dos primeiros. Na década de 1970, o Esquadrão de Lanceiros de Ponta Delgada sediou-se na zona de aquartelamento (até 18 de Abril de 1994), verificando-se então algumas obras ao nível de messes, cozinhas e refeitórios. Se a bateria já se encontrava num lento processo de degradação, com a saída física dos militares, este acelerou-se. Anti- 12 No que concerne às peças, em 1942 modificava-se a camuflagem de uma das peças e refere-se que as restantes duas aguardavam vez. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 217 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE Em 1989, ainda se investia financeiramente nas suas instalações mas a sua eficácia e operacionalidade já era altamente duvidosa em virtude do obsoletismo das peças, desgaste, avarias derivadas da instrução e abandonos temporários durante os períodos das campanhas Ultramarinas (1961/1974), assim como a falta de sobresselentes. Relatórios datados da época mencionam que diversas equipas da Direcção de Serviço de Material já se haviam deslocado ao local para identificar a necessidade de reparações diversas, profundas, difíceis e de grande demora, cujo concerto variava entre as dezenas de milhar de contos e somas de pouco valor. Após uma série de anos de descuido (e por desprovimento de munições), ninguém se atrevia a utiliza-la por falta de confiança no seu comportamento uma vez que eram conhecidas as suas profundas deficiências ao nível de ligações elásticas, aparelhos de pontaria, etc. Embora o Grupo de Artilharia de Guarnição N.º 1 (GAG1) ainda continuasse a formar e a receber pessoal da especialidade, e mantivesse uma pequena guarnição no local, toda a instrução era realizada no continente (em virtude dos problemas já referidos) e do facto do investimento a realizar na sua modernização estar colocado fora de parte. Numa época em que já se debatia a necessidade ou não de artilharia de costa do tipo canhão, a sua antiguidade e os problemas daí inerentes (como a falta de sistemas de aquisição de objectivos e o seu fraco poder de fogo) levantavam a questão da sua precariedade face ao material moderno. Outro problema que se havia desenvolvido desde que as peças haviam feito fogo pela última vez era o da servidão militar. A servidão militar é o termo aplicado às leis que regulamentam as limitações à construção de infra-estruturas dentro de uma determinada área envolvente a uma posição militar. O raio de alcance da Bateria da Castanheira desde cedo condicionou eventuais tentativas de construção na zona, embora só constituísse legislação emanada do Ministério do Exército a partir de 1968. O decreto de lei 48.433 dedicado a esta bateria, bem como à de Belém e à da Relva, apenas foi revogado em 1978, pelo polémico decreto 112, de 27 de Outubro, que outorgava que num raio de 100 m a partir das peças não poderia existir qualquer tipo de construção. Entre este círculo e a orla costeira, dentro de uma determinada linha de azimutes (97º 00’ a 273º 00’), toda a construção estaria condicionada a autorização militar, embora existissem excepções13. A única forma de contornar a lei nestes locais, seria através de autorização do Comando Militar dos Açores, uma vez ouvida a chefia do Serviço de Obras do Exército (ou delegados), e parecer da Arma de Artilharia. Contudo, por parte do Exército sempre existiu a noção de que a Bateria, pelos factores já referidos, não deveria constituir um entrave ao desenvolvimento da cidade, pelo que, de modo geral, todas as construções acabavam por ser permitidas. Alguns casos mais específicos, como a construção da torre do edifício Sol-Mar exigiam cláusulas próprias, como a destruição do mesmo em contexto de guerra. Outros exemplos, como o da construção do Hospital Divino Espírito Santo, levavaram a que em conjunto se procurasse a melhor solução, o que neste caso passaria por evitar a existência de grandes superfícies de vidro. A partir de 1970, e por força do decreto de lei n.º 166/70, de 15 de Abril, cabia às câmaras municipais conceder as licenças necessárias, bastando apenas ao Comando Militar ter que dar parecer sobre os casos que a Câmara Municipal de Ponta Delgada apresentasse (embora a servidão continuasse sempre a ser o factor primordial sobre qualquer autorização dada pela mesma, podendo desde logo ser embargada pelo Comando). Embora o primeiro pedido deste género date de 1969, apenas a partir de 1979 é que se tornaram cíclicas as contestações pelas limitações impostas pelo referido decreto de lei, mercê do constante devir do progresso que a cidade de Ponta Delgada conheceu após o final da II Guerra Mundial. Num relatório datado de 1989, é referido que para além da contestação civil à 13 Determinados sectores, delimitados por azimutes e cuja construção em alturas variava entre os 10 m e os 15 m, não exigiam aprovação militar (a bem dizer, toda a zona urbanizada de Ponta Delgada). [217] quada, rapidamente viu-se cercada por outros factores, tais como o crescimento da cidade de Ponta Delgada ou a inovação tecnológica, condenando-a a um longo esquecimento. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 218 servidão esta era muitas vezes pura e simplesmente ignorada, nomeadamente por obras estatais e particulares de grande envergadura como a construção do prolongamento da avenida marginal, hotéis e blocos de apartamentos, esvaziando-se a lei do seu conteúdo. Em virtude da desactualização da Bateria, respectivo encargo económico e urgente necessidade de readaptar a servidão militar na década de 90 do século XX, em Maio de 1992 a Bateria deixou de ser considerada como encargo operacional, prevendo-se a sua desactivação, e em 1995 tomada a decisão por parte do Ministério da Defesa Nacional em revogar a servidão militar, assente na motivação de se terem alterado os pressupostos que deram origem à necessidade da criação da mesma. Contudo, quer a Arma de Artilharia (órgão técnico) como a 3ª Repartição do Estado-Maior do Exército (operações) nunca se prenunciaram sobre a extinção da Bateria, situação que até 2002 se mantinha. [218] 3. O INTERIOR DA FORTIFICAÇÃO Instalações exteriores ao subterrâneo na zona da Bateria. A área que concerne à Bateria de Costa de 15 cm da Castanheira é constituída numa fase inicial por uma série de estruturas exteriores, que por sua vez dão acesso à zona subterrânea. Actualmente, ao entrar na zona referida, encontra-se uma guarita relativamente recente, cuja missão seria proteger uma sentinela que condicionaria o acesso ao terreno. A cerca de uns cinco metros inicia-se um pequeno caminho terreiro, que, descendo suavemente a encosta, permite o acesso a uma série de pequenas instalações como uma cozinha, casa de banho, arrecadação e camarata da guarda, camufladas pelo próprio solo. A entrada para o subterrâneo é a última porta existente neste aglomerado de pequenas infra-estruturas, prolongando-se então o caminho até às peças Krupp de 15 cm. Ao entrar-se no subterrâneo, inicia-se então a bateria propriamente dita, cujas instalações obedecem às normas de organização de terreno em 1941: deveria ser constituída por plataformas (espaldões) para as bocas de fogo, a descoberto (como é o caso) ou a coberto; posto de comando e abrigo para pessoal e paióis; abrigos de repouso e uma trincheira de comunicação a ligar todos os elementos. Neste caso, existiam ainda uma central de comunicações, uma central eléctrica e um laboratório. Fora dos subterrâneos, a uma certa distância, existiriam ainda os demais complementos: um posto de observação e um depósito de água ligado à rede geral mas com capacidade para albergar grandes quantidades do precioso liquido. Já no seu interior, estas instalações encontram-se organizadas em duas áreas distintas: uma mais avançada e que corresponde ao Posto de Controle de Tiro e às peças, e uma mais recuada que envolve os paióis, central eléctrica e laboratório. Partindo desta noções, ao seguir o corredor após contornar algumas esquinas e descer alguns degraus, encontra-se a primeira área envolvente à peça n.º 3. Trata-se então de duas pequenas camaratas para a guarnição da mesma, duas casas de banho e dois paiolins com ligação directa às peças, assim como um pequeno espaço para conter as munições necessárias para utilização imediata. Formava-se deste modo um pequeno rectângulo subterrâneo que dava apoio à peça no exterior, entrincheirada. A fazer a ligação entre ambos exterior/interior, existia, para além de um pequeno corredor de acesso, duas pequenas janelas laterais às peças, para entrega à guarnição da peça, por um lado, a granada, e por outro, as cargas propulsoras. Este esquema sucede-se para as restantes duas peças. Ao passar-se este primeiro conjunto de infra-estruturas, a galeria divide-se em duas, sendo que à direita se segue para a já referida zona avançada e a que continua, para a área mais recuada. Seguindo-se à direita, sucede-se mais uma infra-estrutura de 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 219 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE Quanto à galeria mais recuada, junto à intersecção com o corredor oriundo das duas primeiras peças, encontrava-se o primeiro dos cinco paióis anexados em linha. Uma vez transposto este plano, encontra-se o laboratório (aonde se pesavam as granadas e se faziam as análises de estabilidade química das cargas) e a central eléctrica (que, em 1945, passou a receber energia do exterior, complementando-se em conjunto com um sistema de renovação de ar e fumos). Ambas as galerias, terminam em poços verticais, que, dotados de escada de ferro embutido nas paredes, dão acesso às saídas de emergência no exterior. projectada apenas permitiu que determinadas cargas explosivas rebentassem14. Ainda serviram como paiol geral até 1995, ano em que se retirou totalmente o seu conteúdo, abandonando-se o local que a partir de então passou a ser sistematicamente vandalizado. No último plano de defesa da BTR C.15 cm (inícios da década de 1980), em caso de ameaça de ataque, deveria de imediato sair do aquartelamento em direcção à Bateria um pelotão de reforço à secção de segurança permanente nas instalações e em caso de ataque de surpresa deveria esta mesma secção de segurança reagir com o seu armamento abrigando-se nas zonas do espaldão, devendo apenas retirar para os subterrâneos em último recurso, resistindo até à chegada de reforços pedidos pela central de comunicações e salvaguardando a protecção dos pontos sensíveis, como as chaminés dos paióis e as três peças. Estas, quando utilizadas em tiro real, eram detentoras de uma enorme potência de tiro, sendo conhecidas as suas implicações em efeitos de vibração do solo (provocavam pequenos sismos) que se prolongavam para além dos 200 metros, bem como ao nível de deslocação de ar (relembre-se a problemática do actual Hospital de Ponta Delgada), assim como ao nível sonoro (os silvos provocados pelas detonações e trajectória das munições, eram ouvidos em toda a cidade, obrigando a medidas especiais para a protecção de vidros e telhados). 4. O PRESENTE E O FUTURO Instalações exteriores ao subterrâneo na área da 1ª peça. À direita ficavam as camaratas e à esquerda os paiolins das peças. Em frente, à esquerda, situa-se o PCT. Em 1994, a sua iluminação encontrava-se dependente do aquartelamento do Esquadrão de Lanceiros (Polícia do Exército), instalados na área de aquartelamento e apenas os paióis eram ainda utilizados. Nos inícios da década de 1980 uma violenta explosão de algumas cargas propulsoras, sem vítimas a lamentar, colocou em teste toda a estrutura, que por estar bem Em 1987, foi autorizada a compra de terrenos anexos a toda a área do complexo da Castanheira, de modo a implementar-se o actual Comando Operacional dos Açores (COA), na Grotinha, Arrifes. O futuro do complexo passou a estar relacionado e mesmo condicionado pela novas infra-estruturas criadas, na 14 Até 1995, os quatro paióis estavam organizados conforme a natureza dos explosivos, repartido-se o primeiro para as granadas, o segundo para as cargas propulsoras, o terceiro para as espoletas e escorvas e o quarto para os explosivos civis. [219] apoio à segunda peça, intercalando-se, entre esta e a primeira, um corredor que liga novamente ambas galerias (para um rápido acesso quer aos paióis, como às outras estruturas). Uma vez atravessada a zona de apoio à primeira peça, surge a zona do comando, caracterizada pelas acomodações dos oficiais da Bateria, a central de comunicações e a vigia de controle de operações, cuja frente em forma semi-circular continha três pequenas vigias para observação no exterior. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 220 medida em que estas têm servidão militar e os terrenos em questão permitiriam uma expansão do COA com um número indeterminado de objectivos. Em virtude do pouco interesse nesta questão, o destino de todo o complexo continuou a não ser determinado, pelo que surgiram então pedidos de empréstimo ou cedência da área de aquartelamento por parte de várias instituições como a Academia das Artes, a Polícia de Segurança Pública, a Câmara Municipal de Ponta Delgada, a Kairós, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e alguns particulares para exploração privada. Em finais da década de 1990, por razões de natureza diversa, mas acima de tudo assente no facto de ser reserva da Zona Militar dos Açores ou possível expansão do COA, todo o complexo continuava nas mãos dos militares prevendo-se que seria construído na zona da Bateria um núcleo do Museu Militar dos Açores e um miradouro para a cidade de Ponta Delgada. Em conjunto, espera-se que a Zona Militar dos Açores e o Governo Regional dos Açores restaurem novamente a importância correspondente a uma instalação única nos Açores (uma possível excepção seria a B.I.D.C. 3 no Faial, infelizmente desartilhada) criando-se uma zona de laser esplêndida não só aos locais (que na sua esmagadora maioria a desconhecem), como a todos os que nos visitam, gerando-se assim uma nova missão para um espaço como ainda não existe em outro local de Ponta Delgada. 5. CONCLUSÃO Linha do horizonte a sul da Bateria da Castanheira. Horizonte a sudeste da Bateria da Castanheira. Vista a sudoeste da Bateria da Castanheira. A Bateria da Castanheira foi construída num contexto extremamente complexo mas que inevitavelmente poderia ter tido um outro desfecho para as ilhas, caso na sua fortificação e defesa não se tivesse investido. O exército alemão teve conhecimento que um brigadeiro português se encontrava investido de tal tarefa, e os Estados Unidos da América, bem como a Inglaterra, tinham bem a noção que as ilhas não seriam 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 221 A BATERIA DA CASTANHEIRA: DA II GUERRA À ACTUALIDADE Apesar das grandes decisões que rectificaram a História portuguesa ao tempo terem sido políticas e diplomáticas, mantendo o palco bélico afastado das ilhas, a Bateria da Castanheira existiu para dar segurança e tranquilidade à população da maior cidade dos Açores, mantendo a neutralidade em todas as direcções. Tal se tornava necessário, numa fase da guerra em que a importância geo-estratégica dos Açores se projectava, não só pela posse da terra mas, acima de tudo, como excelente zona de escala no Atlântico, factor que ainda actualmente se mantém (embora com outra importância) e que se encontra indossiciavel da sua História. Seria então o porto de Ponta Delgada e as suas reservas de combustíveis um factor a defender a todo o custo, bem como o campo de aviação em Santana, alvo de interesse pelo seu potencial enquanto zona de apoio logístico. Uma vez terminada a guerra, o seu carácter permanente subsistiu e a sua nova missão teoricamente complementada numa nova posição de artilharia a construir, com material que acabaria por apodrecer. Vítima da antiguidade do seu material, bem como da falta de poder económico para a manter operacional, (bem como em assegurar o fornecimento de munições e sobresselentes), a Bateria acabou por ser condenada a um progressivo esquecimento, até que chegou a uma fase actual de abandono e alvo de vandalismo. Resta, então, agora, procurar dar-lhe uma nova missão, embora agora seja em prol da aproximação dos povos e no desenvolvimento da cidade que outrora protegeu. 15 Franklin Roosevelt foi advertido pelo seu Estado-Maior que «o ataque não poderia fazer-se sem perigo de importantes perdas para a Marinha Americana» (1941), numa fase em que já se treinavam tropas para ocupar os Açores (Machado, E., Recordando…, Ibidem, p. 178). Por sua vez, o Estado-Maior inglês mantinha de prevenção milhares de homens para uma ocupação fulminante (Antunes, J. F., Roosevelt, Churchill e Salazar – A luta pelos Açores 1941-1945, Ediclube, 1995, p. 66). [221] tomadas sem resistência ou perdas para o invasor15. No caso de Ponta Delgada, a defesa planeada para a ilha previa que a cidade não fosse tomada, a todo o custo, independentemente da forma como o ataque fosse efectuado. A construção da bateria em questão seria como que a primeira linha da difícil prova de fogo, que existiria em caso de invasão. Seria em questões de defesa terrestre o início de toda uma resistência programada para ser feita quer ao nível da defesa de costa quer aos esperados ataques aéreos. 13.CH.SérgRezendes(pb) 6/17/09 10:55 AM Page 222 BIBLIOGRAFIA: I. FONTES BIBLIOGRÁFICAS Antunes, José Freire, 1995. Roosevelt, Churchill e Salazar – A luta pelos Açores 1941-1945, Ediclube. Machado, General Ernesto, 1959. “No decorrer da Grande Guerra de 1939-1945 – No Comando Militar dos Açores”. Recordando as duas Grandes Guerras. M.M.A., pp. 94-186. Marques, Tenente Rubi, 1937. “Defesa Costeira”. Grupo de Defesa Submarina de Costa. Paço de Arcos. Tip. Liga dos Combatentes da Grande Guerra, pp. 219-224. 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Regimento de Artilharia de Costa, 1998. “Notícias da nossa Artilharia”. Revista de Artilharia. N.º 878-880, Outubro/Dezembro. Liga dos Combatentes, p. 489. Comando de Engenharia, 1943. “Camuflagem da Bataria da Castanheira”. Arquipélago dos Açores – 2ª Guerra Mundial – Camuflagem. Museu Militar dos Açores. Telo, António José, 1993. Os Açores e o Controlo do Atlântico. Edições Asa. Porto, pp. 241-455. II. FONTES MANUSCRITAS: Comando Militar dos Açores, 1941. “Diversos 1”. Arq. Pasta II Guerra Mundial. Museu Militar dos Açores. Comando Militar dos Açores, 1941. “Diversos 1 – Relação de obras do Arquipélago executadas nos anos 1941 a 1946”. Arq. Pasta II Guerra Mundial. Museu Militar dos Açores. Comando Militar dos Açores, 1941. “Ideias gerais sobre a organização do terreno”. Instruções para a organização do terreno. 2ª. Parte. Comando de Engenharia. Arquivo do Museu Militar dos Açores. Fia – 305. Comando Militar dos Açores, 1942. Pasta II Guerra Mundial. Comando de Engenharia. Museu Militar dos Açores. Comando Militar dos Açores, 1942. “Diversos II.1.1”. Arq. Pasta II Guerra Mundial. Museu Militar dos Açores. Comando Militar dos Açores, 1944. Ordens particulares. Comando de Engenharia. Arquivo do Museu Militar dos Açores. Fia – 301. Comando Militar dos Açores, 1944. “8 – Actividade suspeita”. Relatórios de informação dos sectores, reserva, comando e Legião Portuguesa antes da situação de combate. Arquivo do Museu Militar dos Açores. Fia – 254. Comando Militar dos Açores, 1944. Construção de um armazém para bombas de profundidade nas Capelas. Comando de Engenharia. Arquivo do Museu Militar dos Açores. Fia – 220. Comando de Engenharia, 1944. “Obra de construção da Bataria Eventual – Relatório”. Arq. Pasta II Guerra Mundial. Museu Militar dos Açores. Comando Militar dos Açores, 1945. “Vários”. Conservação das obras e instalações. Comando de Engenharia. Arquivo do Museu Militar dos Açores. Fia – 287. 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Quartel General da Zona Militar dos Açores. 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 223 Filipe Pinheiro de Campos FERREIRA DEUSDADO: Escrever sobre Ferreira Deusdado é para nós uma dupla tarefa tão ingrata quanto aliciante. Se por um lado os laços familiares que a ele nos prendem possam ser apanágio de alguma emotividade na escrita – facto que tentaremos obviar –, por outro, o seu brilhantismo enquanto pedagogo, escritor e homem, extravasaria de longe as linhas que agora apresentamos. Nesta primeira abordagem acerca de Ferreira Deusdado procuraremos traçar a sua vida e o seu percurso até terras açorianas, a par de alguns episódios que o memorizaram junto de muitos dos seus alunos e colegas. Posteriormente, contamos fazer a apresentação e análise de algumas obras que dedicou aos Açores e à sua passagem pelas ilhas. O seu percurso, do recôndito Trás-os-Montes à cidade de Angra do Heroísmo que tomou como sua terra adoptiva, e a sua actividade enquanto educador e publicista foram argumentos de peso que nos aliciaram a estas breves notas. Ferreira Deusdado com as Comendas de Isabel, a Católica, de Espanha e de Santo Estanislau da Rússia, (1901). [223] UM TRANSMONTANO NOS AÇORES 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 224 AS ORIGENS TRANSMONTANAS DAS PRIMEIRAS LETRAS AO MAGISTÉRIO Manuel António Ferreira Deusdado, mais conhecido como Ferreira Deusdado, nasceu na localidade de Rio Frio, distante pouco mais de uma dúzia de quilómetros da cidade de Bragança, em 7 de Abril de 1858, completando-se na data em que esboçamos as presentes linhas o 150º aniversário do seu nascimento. Oriundo de uma família de lavradores abastados, foi o décimo primeiro filho de um total de treze que teve o casal José António Ferreira e Florência Cavaleiro de Ferreira. José António Ferreira, para além de lavrador principal da localidade, foi também facultativo municipal, com o título de cirurgião, actividade que já seu pai, António Ferreira, exercera desde 1834, e membro por diversas vezes da Junta da Paróquia de Rio Frio. Pouco se conhece sobre os seus primeiros anos que foram passados em Rio Frio junto de seus pais e irmãos e onde recebeu o ensino das primeiras letras na escola da aldeia por José Augusto Afonso de Castro, passando pouco depois a viver em Bragança, onde frequentou durante algum tempo os primeiros estudos secundários no liceu da mesma cidade. De Bragança foi para Lisboa, como ajudante de farmácia e em cuja cidade se viria a matricular no então Curso Superior de Letras, inaugurado no ano de 1859 e destinado aos estudos em História, Literatura e Filosofia, que veio a concluir em 1881. Paralelamente frequentou algumas cadeiras do Instituto de Agronomia que lhe deram um avultado conhecimento das ciências exactas e naturais que viriam a revelar-se importantes na sua vasta obra. [224] Para além de Ferreira Deusdado, que viria a adoptar este sobrenome de uma avó paterna por nome Maria Eulália Deusdado Fernandes, o casal José António Ferreira e Florência Cavaleiro de Ferreira teve também, para além do biografado, Joaquim José Ferreira (1837) casado com Dona Amélia Augusta de Jesus Lopes, Domingos Manuel Ferreira (1839) casado com Dona Ângela Joaquina de Miranda, Dona Maria Teresa de Jesus Ferreira (1842) casada com Manuel Inácio Vara, Dona Antónia Leocádia dos Inocentes Ferreira (1844), Dona Francisca Rosa Ferreira (1846) casada com José António Afonso de Miranda, Dona Antónia de Jesus Ferreira (1848) que casou com José Valentim Carneiro, Professor do Ensino Primário, Dona Luísa de Jesus Ferreira (1850), Dona Carolina Amália Ferreira (1852), António Manuel Ferreira (1854) casado com Dona Genoveva Joaquina Martins, José António Ferreira (1859) casado com Dona Maria Filomena da Paula e Francisco Avelino Ferreira (1862) casado com Dona Adelaide Teixeira dos Prazeres Martins. Destes irmãos de Ferreira Deusdado descendem as famílias Gonçalves Rapazote, Cavaleiro de Ferreira, Sousa Dias Ferreira Deusdado, Falcão Ferreira, Santos Ferreira, Ferreira Biscaia Godinho, Vara Arina, Gonçalves Ferreira, Melo e Simas Prieto Ferreira, entre tantas outras. A Filosofia, mas também a Geografia e a História foram as suas áreas de eleição e a sua formação marcadamente humanista vocacionar-lhe-ia uma carreira brilhante no magistério superior e liceal. Em 1887, por Despacho de 28 de Abril, substituiu interinamente Pinheiro Chagas, quando este foi indigitado para a pasta da Marinha, na regência da sua cadeira no mesmo Curso Superior de Letras onde veio a ser Lente Auxiliar. Mais tarde, prestou provas para professor no Colégio Militar nas quais ficou colocado em primeiro lugar na oposição à cadeira de Filosofia (1889). No ano de 1890 ingressou definitivamente na carreira liceal. Refira-se que curiosamente, a primeira vez que se ensinou Psicologia em Portugal, a nível superior, foi num Curso Livre regido por Ferreira Deusdado em 1890 o qual funcionou no Curso Superior de Letras. Enquanto professor liceal, iniciou a sua carreira no Liceu de Braga para o qual foi nomeado por Decreto de 6 de Fevereiro de 1890, sendo pouco tempo depois transferido para Lisboa onde se manteve por quase uma década. Razões políticas num momento tão conturbado como foram os últimos anos de Oitocentos e inícios do século XX, traçaram o seu destino para a cidade de Angra do Heroísmo em cujo Liceu veio a ser provido por Decreto de 4 de Maio de 1901 e no qual leccionou História, 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 225 FERREIRA DEUSDADO: UM TRANSMONTANO NOS AÇORES Geografia e Filosofia, sendo esta claramente a sua disciplina de eleição e acerca da qual foi considerado como o fundador do seu ensino moderno segundo o critério psicológico-histórico. A sua competência provada fê-lo Reitor do mesmo Liceu açoriano no qual se manteve até final da sua vida. tado no Cemitério dos Prazeres e mais tarde (1980) trasladado para a Capela de Rio Frio como era seu desejo e a instâncias de sua sobrinha-neta Dona Maria Luísa Gonçalves Cavaleiro de Ferreira e demais familiares. Paralelamente à carreira docente, plena de brilhantismo e particularmente reconhecida, o seu conhecimento em áreas emergentes à época como a Psicologia, a Pedagogia e a Estatística Aplicada granjearam-lhe inúmeras comissões e representações na Europa. Em 1890 representa o país no Congresso da Associação Francesa para o Adiantamento das Ciências, realizado em Limoges. No ano seguinte, substituindo Emídio Navarro, representou Portugal no Congresso Penitenciário de São Petersburgo do qual teve a Presidência de Honra, cadeira que também veio a ocupar no Congresso Antropológico de Bruxelas em 1894. FERREIRA DEUSDADO ESCRITOR E PUBLICISTA Em 3 de Março de 1897, a Universidade de Lovaina, uma das mais conceituadas da época, outorgou-lhe o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia e Letras com a sua obra A Philosofia Tomista em Portugal. Foi louvado pelo Czar Alexandre III da Rússia durante a sua estada neste país com a Comenda e o Grande Oficialato de Santo Estanislau e com o foro de Gentil-Homem da Câmara Imperial. Em 1895 foi eleito sócio-correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa por proposta de seu velho amigo Pinheiro Chagas e em 1899 da Real Academia de História de Madrid por proposta do eminente orador Emidio Castelar. Em 1900 foi agraciado com o grau de Comendador da Real Ordem de Isabel, a Católica, de Espanha. Veio a falecer em Lisboa, em 21 de Dezembro de 1918, para onde se tinha deslocado por motivos de saúde, sendo sepul- A maioria dos seus trabalhos versou as temáticas de sua eleição – a Filosofia e a Pedagogia – não descurando, também, os títulos de índole marcadamente histórica, regional e etnográfica. Colaborou particularmente nos periódicos Norte Transmontano e Nordeste, de Bragança, e nos seus congéneres açorianos, Correio dos Açores, San Miguel e ainda no Correio Nacional. Em 1885, fundou a Revista de Educação e Ensino, a primeira do género em Portugal, da qual foi Director e principal colaborador durante os dezasseis anos em que a mesma foi publicada e na qual participaram inúmeros vultos de reconhecido mérito como Bettencourt Ferreira, Leite de Vasconcellos e Esteves Pereira. De sua autoria contam-se as seguintes obras: Ensaios de Philosophia Actual (Lisboa, 1888); Estudos sobre Criminalidade e Educação: Philosophia e Anthropologia (Lisboa, 1889); A Litteratura Grega e Latina: Lição exposta no Curso Superior de Letras no anno lectivo de 1886-1887 (Lisboa, 1889); Ideias sobre a Educação Nacional (Lisboa, 1890); Notas d’um viajante no Império Russo, separata do diário A Verdade (Lisboa, 1890); Essays de Psychologie Criminalle: Raport présenté au Congrés Pénitenciaire International de Saint-Petersbourg (Lisboa, 1890); Ideias sobre Educação Correccional (Lisboa, 1890); [225] Os seus trabalhos na área da educação correccional, da qual foi pioneiro em Portugal e da organização do sistema penitenciário, levaram a que o Governo em 1894 lhe cometesse a reforma da Casa de Correcção de Lisboa na qual teve um papel determinante com o estabelecimento do Ensino Carcerário em Portugal. As suas memórias enviadas ao Congresso Penitenciário de Paris foram amplamente discutidas e aplaudidas. A grande produção literária de Ferreira Deusdado ficou dispersa por publicações periódicas com inúmera colaboração em jornais e revistas mas também num elevado número de títulos de sua autoria. 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 226 Plano de uma Escola Colonial Portugueza (Lisboa, 1890); O Ensino Carcereiro e o Congresso Penitenciário Internacional de São Petersburgo (Lisboa, 1891); Lyceu Nacional de Angra do Heroísmo: Discurso Inaugural proferido na sessão pública de 17 de Outubro de 1910 pelo Reitor Dr. Ferreira Deusdado (Angra, 1910); Elementos de Geographia Geral (Lisboa, 1891); Escorços Transmontanos (Angra, 1912); O Recolhimento da Mofreita e o Espírito das Ordens Religiosas (Lisboa, 1892); O Senhor Dom Manuel, V Bispo de Angra, separata do Almanaque Açores para o ano de 1916 (Angra, 1916); Psychologia Aplicada à Educação: Lição de Abertura exposta no Curso Superior de Letras de Lisboa em 1891-92 (Lisboa, 1892); A Crise do Ideal na Arte (Lisboa, 1917). Chorographia de Portugal: illustrada com 50 gravuras e 20 mappas a cores (Lisboa, 1893); A Anthropologia Criminal e o Congresso de Bruxelas (Lisboa, 1894); Raport sur les moyens preventifs et questions relatives à l’enfance et aux mineurs: Cinquiéme Congrés Pénitenciaire International (Melun, 1895); [226] Princípios Geraes de Philosophia por J. M. da Cunha Seixas: Obra Posthuma precedida de um esboço histórico da Philosophia em Portugal no século XIX e de uma notícia biographica do auctor (Lisboa, 1897); A Sugestão Hypnotica em Educação (Lisboa, 1898, em colaboração com J. Bettencourt Ferreira); La Philosophie Thomiste en Portugal1 (Lovain, 1898); Elogio Histórico do Dr. José Augusto Nogueira Sampaio, Reitor e Professor do Lyceu Nacional de Angra do Heroísmo, proferido na sessão solemne de 16 de Junho de 1902 (Angra, 1902); Pensamentos (Angra, 1903); Quadros Açoricos. Lendas Chronographicas (Angra, 1907); Discurso da Abertura Solemne Recitado pelo Reitor Interino Dr. Ferreira Deusdado na Sessão Pública de 16 de Outubro de 1907 e Relatório referente ao anno escolar de 1906-07 no Lyceu Nacional de Angra de Heroísmo (Angra, 1907); Bosquejo Histórico de Puericultura: Educadores Portugueses (Angra, 1909); 1 Obra que lhe valeria o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lovaina e reeditada com prefácio de Pinharanda Gomes em 1978. Sob o pseudónimo de Visconde de Alvaredos publicou a Carta Aberta do Senhor Dom Miguel de Bragança (Angra, 1904) e, sobre o criptónimo de Cavaleiro de Miranda, Perfil do Conselheiro Teixeira de Sousa, separata de O Regenerador (Angra, 1910). 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 227 FERREIRA DEUSDADO: UM TRANSMONTANO NOS AÇORES Durante a sua vida de magistério em Angra do Heroísmo, foi Ferreira Deusdado um claro naturalista que procurando aliar as suas prelecções a uma vivência da realidade para o seu melhor entendimento por parte dos seus discípulos, o conduziu a frequentemente fazer a continuidade das suas aulas magistrais pelos verdes pastos e pelas encostas escarpadas da Terceira. De uma dessas saídas ficou notório o episódio em que salvou um pobre pescador de sucumbir por afogamento. Talvez por ser um opúsculo pouco conhecido será a partir desse episódio, sobejamente relatado pela imprensa da época que procuraremos dar à luz alguns aspectos da sua vida porventura menos conhecidos. Sob o título Um Rasgo de Benemerência: reunião de notícias e documentos em louvor do Dr. Ferreira Deusdado, edição coligida, como testemunho de amistosa camaradagem, José Pinto Soares, diplomado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, seu antigo companheiro, professor de Latim e Português no Liceu de Angra, publicou em 1914 os episódios que celebrizaram a bravura e o fervor destemido do nosso biografado. Na publicação, constam os diversos relatos e louvores que a imprensa regional e nacional devotaram à sua intrépida coragem, assim como a ocorrência dos factos relatadas pelos alunos que assistiram. Esses relatos foram feitos a partir de um exercício de composição sob o epítome Narrar a excursão pedagógica da aula de Geografia da 4ªClasse, feita conjuntamente com os alunos da 5ª no dia 28 de Maio último [1914]. Entre os diferentes exercícios são contemplados pela sua alta classificação e redacção os dos alunos Manuel Silveira de Ávila, Gastão de Melo Furtado e António Coelho de Ornelas Simões, datados de 3 de Junho de 1914. As referidas composições relatam na primeira pessoa as ocorrências do dia que não passaram incólumes à imprensa da época. Segundo os testemunhos, Ferreira Deusdado preparou uma aula de campo de Geografia, de modo a dar a conhecer aos seus discípulos as realidades sobre as quais dissertava nas suas aulas; a amplitude das marés, o nível médio do mar, as formações geológicas da costa, a par de conhecimentos de Geologia e Botânica. Para tal, nada melhor que uma visita pedestre nas costas das redondezas. Durante esse princípio de tarde, no lugar denominado Aberta da freguesia de São Mateus da Calheta, deparou com um homem em luta desigual com a voracidade das águas do mar, por nome Francisco Videira, o qual estando a pescar teve uma vertigem que o fez cair no mar, que nesse momento estaria particularmente revoltoso. Ferreira Deusdado, percebendo essa aflição, lançou-se intrepidamente ao mar tendo salvo o infeliz pescador da violência das águas. A força que teve que exercer, aliada ao facto do mesmo Francisco Videira não saber nadar, valeu-lhe uma deformação no dedo anelar da mão esquerda tal seria a violência do socorro que prestou. Tal facto fez de si, para além de um já reconhecido professor, um intrépido cidadão e valeu-lhe gratidão de toda a comunidade. Foi sobre este facto que a imprensa da época se debruçou e que aqui transcrevemos. A Verdade, o Açoreano Oriental, O Telegrapho e também a Revista Catholica de Viseu, os diários lisboetas O Dia e Diário da Manhã, o Legionário Transmontano e a Illustração Catholica de Braga, a par de inúmeras notícias publicadas em jornais de São Miguel, Lisboa e Porto, relatam circunstanciadamente o feito e proclamam o seu autor. Este episódio valeu-lhe a Medalha de Prata de Mérito, Filantropia e Generosidade que lhe foi conferida por Decreto de 14 de Abril de 1916. Pelo seu conteúdo muito similar transcrevemos apenas os artigos que foram inseridos em periódicos açorianos, limitando-nos a citar brevemente os restantes. A União, diário de Angra, de 28 de Maio de 1914, relata os acontecimentos sob o título Acto Heróico da seguinte forma: Hoje quando a 4ª e 5ª classe do nosso liceu se encontrava com o seu professor sr. Dr. Manuel Ferreira Deusdado junto aos recifes da costa, perto do lugar denominado Aberta, afim de lhes ser explicado pelo mesmo senhor a influência das costas sobre as marés e ainda outros fenómenos, foi visto no mar, por acaso, um homem que aflitivamente se prendia a um baixio. [227] UM EPISÓDIO MARCANTE NA TERCEIRA 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 228 Como só uma pequena parte do corpo estivesse a descoberto, o sr. Dr. Ferreira Deusdado estranhando o caso, dirigiu algumas palavras ao pobre homem que não respondeu satisfactoriamente. Então o sr. Dr. Deusdado despe rapidamente o casaco e colete e com intrepidez lança-se ao mar que junto dos penedos redemoinhava. Pouco depois alcançava o desgraçado, que passados instantes estava salvo. [228] Só depois disto se conheceu a verdadeira causa do sucedido pois que Francisco Videira, assim se chamava o infeliz, declarou ainda meio congestionado que estando a pescar lhe dera uma vertigem caindo nesse momento à água. Declarou mais que devido a não saber nadar e à fundura e redemoinho das águas, se agarrara áquele penedo sem possibilidade de chegar a terra, pois tinha ainda contra si o facto da maré estar enchendo. O sr. Dr. Ferreira Deusdado que teve oportuna ocasião de exemplificar praticamente as virtudes que o seu bem formado e humanitario coração encerra, ficou com o dedo anelar da mão esquerda bastante magoado, desconfiando até que tinha as falanges fóra do seu lugar. Actos destes, próprios dum caracter diamantino, como o que Sua Ex.ª possue, são bem dignos do respeito e veneração de nós todos. Aceite pois Sua Ex.ª profundas e sinceras felicitações por mais este acto aureolado de heroicidade. Em 30 de Maio, outro diário da cidade de Angra, A Verdade publica sob o título Acção Humanitária: O muito ilustre professor do Liceu Nacional desta cidade, o sr. Dr. Ferreira Deusdado, sempre solícito em enriquecer o espírito de seus alunos com conhecimentos scientíficos e literários, convidou os estudantes do 4º. e 5º. Ano do mesmo Liceu para se reunirem numa aula-passeio. Sua Ex.ª, acompanhado dos rapazes, dirigiu-se pela estrada do Caminho de Baixo para beira mar e ao mesmo tempo ia explicando, no meio da mais curiosa atenção que o cercava, a variedade da amplitude das marés, conforme os acidentes da costa. Neste momento enxergamos um homem debatendo-se no mar e pedindo socorro. S. Exª. despe imediatamente o fraque e o colete, arremessa o chapéu, lança-se ao mar para salvar o aflito homem. Alguns alunos pretenderam deter S. Exª., mas em vão, pois êle lançando-se ao mar com uma energia que causou admiração a todos, afiançou que era bom nadador. A costa ali é semeada de parceis e recifes de arestas agudas e cortantes, e a maré estava encher com fortes ondas; apesar de tudo S. Exª. conseguiu trazer o homem para terra, o qual estava assustadíssimo e contuso no peito. Era um casual e curioso pescador de caniço e apanhador de lapas, que declarou chamar-se Francisco Videira, de trinta e seis anos de idade, trabalhador do campo, casado, com cinco filhos. Caíra de cima de uma pedra ao mar, com uma vertigem. A costa era deserta, e o desgraçado disse que não sabia nadar, e que permanecia desesperadamente agarrado a um escolho, pois aterrado vira perto um marraxo. O Sr. Dr. Ferreira Deusdado estava a transpirar quando entrou no mar. Ao sair conheceu que tinha um dedo da mão esquerda partido pela falanginha; dedo a que o homem no mar nervosamente se agarrara. Videira seguiu, e ainda meio estonteado, para sua casa, muito grato ao seu salvador. Os alunos retiraram comovidos, comentando o facto que poz fim á excursão pedagógica, admirando e elogiando muito o procedimento do seu muito caro professor. Tributemos pois os nossos louvores a S. Exª. pela intrepidez com que salvou o pobre aflito, e ao mesmo tempo pelo exemplo de caridade que deu aos seus alunos, mostrando praticamente o que deve ser um homem energico e bondoso até ao sacrificio. 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 229 FERREIRA DEUSDADO: UM TRANSMONTANO NOS AÇORES (...) Apresentando tambem os nossos parabens, temos a acrescentar que o homem de quem se trata, salvo pela abnegação do distincto escriptor, era um trabalhador honrado e pobre com mulher e cinco filhos todos menores de 9 anos. Foi uma dupla lição que o sr. Dr. Ferreira Deusdado deu aos seus discipulos: saindo para lhes ensinar um ponto de geographia physica, exemplificou-lhes também uma das mais bellas virtudes da moral christã, de que o notável professor é fervoroso apostolo. Também O Telegrapho, periódico da cidade da Horta, na sua edição de 18 de Junho, transcreve a notícia inserta no diário A Verdade complementando-a: (...) Nesta nobilissima acção do ilustre professor, ha, ve-se bem, toda a espontaneidade do desprendimento e da abnegação próprias ao serviço duma modalidade psiquica afectuosa e boa, – susceptivel de produzir destes rasgos e despertar destes impulsos que cristalizam a dedicação máxima do homem pelo homem, jogando a vida pela vida, como irmão por irmão. E não é de mais apontar essa circunstancia. Sente-se, pelo menos, o goso espiritual da visão duma clareira de luz, projectada pelo sol divino da Caridade, atravez as sombras escuras da noite má e triste em que se debate o principio da solidariedade humana... Certos de que o sr. Dr. Ferreira Deusdado encontra a melhor recompensa do seu gesto no galardão da propria consciencia, em vez dos louvores que a sua modestia rejeitaria, limitamos a apontar o facto que o seu exemplo edifica. de Lisboa O Dia, com o título Acção Nobre d’um Catholico e Homem de Lettras, da mesma data, e de Mendonça Negreiros3 no Legionário Transmontano, de 18 de Junho, debaixo do título Lição de Heroismo. A sociedade civil não foi alheia ao facto e a Junta da Paróquia da freguesia de São Mateus da Calheta reuniu extraordinariamente em 29 de Maio de 1914 de modo a lançar um voto de reconhecimento a Ferreira Deusdado e cuja acta transcrevemos na íntegra. Aos vinte e nove dias do mez de Maio de mil novecentos e quatorze, pelas onze horas da manhã, reuniu a Junta de Paróquia civil da freguesia de São Matheus da Calheta no lugar costumado de suas sessões, sob a presidência do cidadão João Evangelista de Susa, estando presentes os Vogais cidadãos João Jacinto Fisher, José Ferreira Belerique, João Maria de Lemos, João de Brito Pacheco, Reverendo António Barcelos de Lima, e o Regedor José Vieira da Fonseca, em sessão extraordinária, para lançar na acta um voto de sincero e entusiástico louvor ao Excelentíssimo Senhor Doutor Manuel Ferreira Deusdado, pela sua acção de destemido valor, praticada ontem, depois do meio dia na nossa costa. O sucesso alarmante alvoroçou esta freguesia suburbana e até à cidade. Era um afogado, trabalhador bom, casado, com cinco filhos todos menores de nove anos, que estava já desesperado à beira do abismo da morte. Com razão ele diz: “Depois do Pai do céu é ao Senhor Doutor que eu devo a vida”. A classe 2 Natural de Meirinhos (Mogadouro), professor do Seminário de Bragança, fundador e director do Legionário Transmontano, de periodicidade semanal, iniciado em 18 de Junho de 1914, publicado até 14 de Maio de 1915 in ALVES, Francisco Manuel (2000). Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. Tomo VII. Bragança. Edição da Câmara Municipal. p. 693. 3 José Maria de Mendonça Negreiros, bacharel formado em Teologia pela Diversos jornais e revistas do Continente propugnaram também este feito sendo de destacar os artigos do Padre Francisco Netto2, insertos na Revista Catholica de Viseu de 13 de Junho sob o título Uma Grande Lição, de António Manuel dos Santos, da Faculdade de Estudos Sociais e de Direito, no diário Universidade de Coimbra (1910), presbítero, professor do Seminário de Bragança, nasceu em Barcel (Mirandela) em 25 de Novembro de 1881 e faleceu em Abreiro no mesmo concelho a 24 de Setembro de 1960. Foi também director do semanário Legionário Transmontano in ALVES, Francisco Manuel (2000). Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. Tomo VII. Bragança. Edição da Câmara Municipal. p. 693. [229] O Açoreano Oriental em 6 de Junho transcreve a notícia de A União acrescentando o mérito do seu personagem: 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 230 [230] piscatória e baleeira da freguesia se São Matheus, que é a mais activa, numerosa e audaz de toda a ilha Terceira, não tem palavras com que louve bastante um arrôjo de valentia e de grande caridade, praticado ontem no meio do revoltear das grossas ondas e escarceus da cavernosa penedia da nossa costa, acrescendo a circunstância de ser num dia de vento sul rijo, de marés vivas, pois é lua nova e é a mais temível época da pavorosa vinda do marraxo, essa espécie de tubarão de extrema voracidade contra o homem. O infeliz pai de família sem saber nadar, abraçado a um pequeno cachopo onde jazia e que a maré enchente ia rapidamente cobrindo, teria em breve, morte certa, sendo por isso hoje considerado por todos como um ressuscitado. Bem do coração damos em nome desta freguesia, de gente marítima, os emboras ao seu decidido salvador, que arriscando denodadamente a vida, honrou a sua raça visivelmente, salvando a vida a quem pelo trabalho procurava mantê-la, e restituindo a alegria a um lar que se não fosse a abnegação e caridade de Sua Excelência, a estas horas estaria coberto de luto, povoado de dores e orvalhado de lágrimas. Por unanimidade foi deliberado enviar cópia desta acta ao Excelentíssimo Senhor Doutor Manuel Ferreira Deusdado. E não havendo mais nada a tratar foi enerrada a sessão de que eu secretário João José Sabino lavrei esta acta que comigo foi assinada por todos membros da Junta. Seguem-se as assinaturas. Secretaria da Junta de Paróquia da freguesia de São Matheus, 12 de Agosto de 1914. Este pequeno, mas notável, episódio na sociedade terceirense dos alvores do século XX deu eco a inúmeras vozes e manifestações de apoio à personalidade e altruísmo de Ferreira Deusdado que, reconhecido pelos seus conhecimentos e trabalhos, veria assim também a sua exaltação enquanto cidadão de elevado mérito. A VIDA FAMILIAR DE FERREIRA DEUSDADO Como se viu, Ferreira Deusdado veio para os Açores em virtude de questões de natureza política sobre as quais pouco se referiu nas inúmeras missivas e notas que deixou. De qualquer modo, o destino traçar-lhe-ia um brilhantismo notável enquanto professor e, mais tarde, Reitor no Liceu de Angra do Heroísmo. Foi nesta cidade que veio também a contrair matrimónio. Seu colega e amigo Dr. Victor Machado de Serpa, oriundo da Ilha do Pico, convidou-o para desfrutar de umas férias nesta ilha o que lhe valeu travar conhecimento com uma das irmãs do seu correlegionário, Catarina de Serpa, com a qual viria a casar na freguesia de Santa Luzia, em Angra, a 26 de Janeiro de 1905. Dona Catarina de Serpa nasceu na Prainha do Norte, concelho de São Roque do Pico, em 1 de Março de 1870, e faleceu na Horta, em 18 de Outubro de 1931, sendo filha de José António de Serpa, proprietário, e de sua mulher, Dona Isabel Olinda Leal, neta paterna de Manuel José de Serpa e de Dona Catarina Tomásia de Jesus de Bettencourt e materna de António Dias de Lima e de Dona Isabel Francisca da Conceição, da mesma Ilha do Pico4. 4 MENDES, A. O.; FORJAZ, J. (2007). Genealogias da Ilha Terceira, Lisboa, Dislivro Histórica, tít. SERPA, § 4º, nº 5. 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 231 FERREIRA DEUSDADO: UM TRANSMONTANO NOS AÇORES A felicidade que o casal sempre denotou é bem patente pelas extensas missivas de Dona Catarina Deusdado para seus cunhados em Trás-os-Montes e em Lisboa com os quais viria a manter estreita ligação até ao final da sua vida, muito embora nunca tenha conseguido concretizar a trasladação dos restos mortais de seu marido para a sua terra natal. O seu desejo de repousar na sua terra natal fica bem claro numa das cartas (Horta, 31 de Janeiro de 1923) que sua viúva endereçou aos cunhados em Bragança e da qual transcrevemos os seguintes excertos: [231] (...) Bem penoso me tem sido não ter podido ainda realisar os seus desejos de ir repousar definitivamente para a sua pequena aldeia, mas, como sabes, em tudo houve uma completa transformação, transformação bem sensível na minha vida (...) acrescentando ainda (...) parece que o Dr. António vai brevemente a Rio Frio escolher o sítio para o novo cemitério, onde terá de ser edificado o mausoléu para o Tio, que tanto desejava ser enterrado ali. O Domingos espera que seja junto da ermida de Ao Pé da Cruz que, como diz nos seus Escorços Transmontanos era onde desejava ficar depositado (...) Tal facto apenas nos inícios da década de 80 se viria a consumar tal como referimos. Não tendo tido filhos, foram os seus sobrinhos alvos de uma grande e particular afeição, como o provam as inúmeras fotografias e cartas que chegaram até nós. Entre os seus sobrinhos, mereceram especial afeição por parte de Ferreira Deusdado os filhos de seu irmão José António Ferreira que foram viver para junto do casal nos Açores, tendo-se estabelecido na cidade da Horta onde constituiram família; Amadeu de Jesus Ferreira, funcionário bancário, nascido em Rio Frio em 29 de Outubro de 1891, falecido em Angra a 28 de Outubro de 1943 e casado com Dona Capitolina Goulart de Mello e Simas Prieto; sua irmã, Dona Carolina Augusta Ferreira Deusdado, nascida em 10 de Dezembro de 1899, falecida na Horta a 4 de Julho de 1973, casou com Alfredo Rodrigues do Espírito Santo. A casa de Dona Carolina Deusdado na Rua de São João (Horta). Capela do Pé da Cruz em Rio Frio onde que foi sepultado Manuel Ferreira Deusdado. A casa de Dona Carolina Deusdado ainda hoje subsiste na cidade da Horta5, na Rua de São João, com a particularidade de nela se encontrar um painel alusivo ao facto de nela ter residido a viúva de Manuel Ferreira Deusdado. Amadeu de Jesus Ferreira residiu na casa da família Mello e Simas na Rua do Conselheiro Medeiros na mesma cidade6. Também seu sobrinho neto, Domingos Augusto de Miranda 5 Actualmente sede da Estação Antena 9 do Faial. 6 Actualmente habitada por sua filha Dona Gabriela Soares de Mello e Simas Prieto Ferreira, Madre da Congregação da Escravas do Divino Coração de Jesus juntamente com outras irmãs da mesma. 14.CH.FilipeCampos(pb) 6/17/09 11:03 AM Page 232 [232] Ferreira Deusdado, foi alvo de uma especial dedicação e esmerada educação por parte de seu tio. Nasceu em Rio Frio em 6 de Setembro de 1890 e faleceu em Lisboa a 20 de Junho de 1968 onde foi advogado de reconhecido mérito, publicista, um dos responsáveis pela realização do 1º Congresso Transmontano e presidente da Casa de Trás-os-Montes em Lisboa, casado com Dona Maria Henriqueta Gomes de Souza Dias. A sua grande afeição pela terra natal e pelos seus ficou sempre patente em diferentes momentos da sua vida, fosse através dos seus escritos, muitos deles dedicados a Trás-os-Montes – de que é cabal exemplo os textos que inseriu sob o epítome de Escorços Transmontanos –, ou das inúmeras cartas para familiares e amigos. Procuraremos num próximo artigo debruçar-nos, em particular, sobre a actividade publicista de Ferreira Deusdado, particularmente nos seus escritos e trabalhos em temáticas açorianas, certos de que tal abordagem possa vir a despertar a curiosidade das gerações actuais para com a sua obra marcadamente actual. Manuel Ferreira Deusdado e sobrinho Domingos Ferreira Deusdado. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 233 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 OUTROS SABERES PEDRO MADEIRA PINTO Vida vivida, 2008 técnica tinta sobre papel medida 100x70 cm 11:05 AM Page 234 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 235 Luís M. Arruda 2009, “ANO DARWIN” SOBRE CHARLES DARWIN E O EVOLUCIONISMO Em 2009 cumprem-se 200 anos sobre o nascimento de Charles Darwin e 150 anos sobre a data em que foi tornada pública a primeira edição da sua obra On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life, tida, geralmente, como fundamento da denominada Teoria da Evolução ou Evolucionismo que transformou completamente o pensamento científico desde então. Aquelas duas datas proporcionam o aparecimento de iniciativas várias tendo em vista divulgar e discutir o pensamento científico à luz do Evolucionismo. Neste contexto, neste artigo, monográfico e de divulgação, são abordadas as matérias seguintes: biografia sucinta de Darwin; fundamentos da sua teoria sobre a origem das espécies biológicas – Teoria da Evolução; impacto que esta teoria teve na sociedade e nas ciências; e de como ela foi recebida nos Açores. Charles Darwin aos 51 anos de idade (plate XXXVII in Pearson, 1914). [235] INTRODUÇÃO 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 236 BIOGRAFIA SUCINTA [236] Segundo FINCHAM (1984), JENSEN & SALISBURY (1972) e MAYR (1995), Charles Robert Darwin nasceu em Mount (Shrewsbury), Inglaterra, em 1809, filho de Robert Waring Darwin, um médico inglês, abastado. O pai queria que estudasse medicina mas, um ano após ter entrado na Escola Médica da Universidade de Edimburgo, preferiu transferir-se para a Universidade de Cambridge a fim de estudar teologia. Nesta matéria não foi melhor sucedido do que havia sido em medicina, mas teve oportunidade de contactar com cientistas bem conhecidos, que trabalhavam em história natural, de entre eles, John Steven Henslow (1795-1861), professor de botânica. Os conhecimentos adquiridos por Darwin em história natural foram de tal monta que foi convidado a participar, como naturalista, na expedição do H. M. S. Beagle1 que tinha por objectivo fazer levantamentos cartográficos à volta do mundo mas também proceder a estudos sobre meteorologia, hidrologia e história natural, entre outros. Durante os cinco anos que demorou a viagem, Darwin teve oportunidade de contactar com as florestas tropicais no Brasil, os fósseis do Plistocénico e do Terciário nas Pampas argentinas, os nativos da Terra do Fogo, a geologia dos Andes e muitos dos animais das ilhas Galápagos. Essa exposição à grande diversidade dos mundos biológico e físico, a sua perspicácia de observação e a capacidade para investigar deixaram uma imagem indelével no seu pensamento e habilitaram-no a acumular uma grande quantidade de material que o ajudaram a formular muitas das suas ideias sobre a evolução dos seres vivos. Ainda segundo JENSEN & SALISBURY (1972), Darwin não tinha qualquer desacordo com a Teoria da Criação Especial2 quando embarcou no Beagle. Esta era a doutrina aceite pelas pessoas da sociedade do seu tempo e por isso não ficou surpreendido com a advertência de Henslow: «read Lyell3... but on no account accept his views» quando, antes de embarcar, obteve o primeiro volume da obra daquele naturalista, publicado no ano anterior. Porém, Darwin observou evidências, convincentes, dos argumentos a favor do uniformitarismo, por toda a parte onde o Beagle aportou, que o converteram à visão daquele quanto às 1 Brigue inglês, deslocando cerca de 240 toneladas, partiu de Devonport, nos arredores de Portsmouth (Inglaterra), em 27 de Dezembro de 1831, sob o comando do jovem Robert FitzRoy (1805-1865), que já havia assegurado o comando de um cruzeiro à Patagónia e Terra do Fogo, entre 1828 e 1830. Em 1839, FitzRoy editou três volumes sobre aquelas viagens com o título Voyages of his Majesty’s Ships Adventure and Beagle, mas é melhor conhecido pelas suas pesquisas em hidrologia, em meteorologia e no serviço de salva-vidas (cf. BARRETT & FREEMAN, 1987a). Foram a influência de seu tio Josiah Wedgood e a iniciativa do comandante FitzRoy que levaram o também ainda jovem Darwin a juntar-se a esta viagem de exploração à volta do mundo. Na viagem de regresso a Inglaterra, o Beagle escalou a ilha Terceira, onde ancorou ao largo de Angra, em 19 de Agosto de 1836. A propósito desta estada nos Açores, Darwin registou no seu Diary descrições breves da ilha, da cidade e de duas excursões em terra, uma à Praia, incluindo alguns apontamentos históricos, económicos, sociais, etnográficos, faunísticos, florísticos e geológicos (cf. BARRETT & FREEMAN, 1987b). A 25 do mesmo mês escalou Ponta Delgada, para receber correspondência, tendo depois largado directo a Falmouth (Inglaterra), onde chegou a 2 de Outubro 1836 (cf. ARRUDA, s. d.). 2 Teoria baseada em escritos bíblicos e nas teorias de Aristóteles (384-322 a.C.), considera que todos os seres vivos foram criados por Deus, num acto único, sem qualquer relação de parentesco entre si e que permaneceram imutáveis. Esta teoria contrariava a ideia, então comum entre os gregos, de que o mundo é dinâmico. Foram as explicações dadas por Anaximandro (610 547 a. C.) e Empédocles (séc. V a. C.) de que as coisas vivas evoluíam que deram lugar à filosofia de Platão (428/27-347 a. C.) que dominou o pensamento ocidental subsequente. Naquele tempo, a mudança era entendida como uma manifestação das imperfeições do mundo material. Mais tarde, com as alterações introduzidas pela cultura cristã no pensamento platónico, foi entendido que nenhum ser podia ter aparecido depois de Deus ter criado o Universo e nada do que Ele tivesse gerado se podia ter extinguido porque isso seria sinal de imperfeição do Seu Universo. Esta visão do mundo começou a ser desvalorizada, em parte, devido a contradições filosóficas inerentes e, em parte, consequência do desenvolvimento da ciência empírica. Foram postos em dúvida conceitos consagrados como, por exemplo, o da posição central da Terra no Universo; aquele da explicação dos fenómenos físicos pelas leis da matéria em movimento; e aquele outro da evolução estelar. Começou a desenvolver-se uma visão histórica das relações humanas com a ideia de mudança na sociedade humana, rumo à civilização. A geologia forneceu evidências de que a crosta terrestre tinha mudado e de que algumas espécies biológicas se tinham tornado extintas. 3 Henslow refere-se à obra de Charles Lyell (1797-1857), Principles of Geology, 3 volumes publicados, sucessivamente, em 1830, 1831 e 1833, responsável pela aceitação do conceito de uniformitarismo para explicar as características da crusta da Terra por meio de processos naturais ao longo do tempo geológico e que lançou os fundamentos para a biologia evolutiva e para uma compreensão do desenvolvimento da Terra. Segundo esta corrente do pensamento, as formações geológicas foram produzidas ao longo do tempo geológico pelos mesmos processos lentos e graduais que as originam nos nossos dias. Havia aparecido, em 1788, num artigo de James Hutton (1726-1797), com o título Theory of the earth; or an investigation of the laws observable in the composition, dissolution, and restoration of land upon the globe, incluído em Transactions of the Royal Society of Edinburgh, 1, 2: 209-304. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 237 2009, “ANO DARWIN” CHARLES DARWIN EVOLUCIONISMO SOBRE EO De acordo com JENSEN & SALISBURY (1972), em 1836, quando regressou a Londres, Darwin estava ansioso por estudar a grande quantidade de dados que havia recolhido [com o seu amanuense Sims Covington] bem como todos os factos relevantes que envolviam a sua ideia. Fixado naquela cidade, entrevistou pessoas e leu obras. Em breve percebeu que a selecção era a chave do sucesso do homem ao fazer raças úteis de animais e de plantas. Mas, como podia a selecção ser aplicada aos organismos vivos no estado selvagem foi questão que manteve sem resposta por algum tempo. Em Outubro de 1838, cerca de 15 meses depois de ter começado aquele período de estudo em Londres, leu a obra de Thomas Maltus (1766-1834), Essay on the principle of population (1798). Esta obra sugere que (a) a produção de alimento cresce de modo aritmético enquanto as populações crescem de modo geométrico; e (b) o crescimento contínuo de uma população termina em catástrofe, porque as taxas de natalidade são superiores às taxas de mortalidade. Darwin viu imediatamente que esta sugestão podia conduzir à existência de variações nos organismos vivos com possibilidade de serem preservadas e que, por esta via, podia explicar uma teoria de selecção natural! fizeram uma vida relativamente isolada, até à morte daquele. Foi nesta localidade que redigiu o primeiro ensaio da sua Teoria da Evolução. Apesar de limitado pela doença4, a sua produtividade científica foi prodigiosa. Quando morreu, em 1882, com 73 anos de idade, tinha publicado dezenas de artigos e oito livros sobre diversos assuntos incluindo a evolução do homem, a origem dos recifes de coral, as ilhas vulcânicas, a América do Sul e um tratado detalhado sobre cracas. FUNDAMENTOS DO EVOLUCIONISMO Conforme FINCHAM (1984) e RUIZ & AYALA (1999), Darwin reconheceu: (a) haver semelhança entre a distribuição geográfica das espécies biológicas em latitude e em altitude; (b) existir espécies semelhantes em ambientes diferentes mas não serem parecidas em ambientes equivalentes; (c) existir dois tipos de ilhas, as continentais, separadas dos continentes por pequenas extensões de água e com povoamentos animais e vegetais dependentes daqueles, e as oceânicas, originadas pela actividade vulcânica, sem contacto directo com as grandes massas de terra mas com povoamentos, mesmo nas mais remotas, mostrando alguma semelhança com aqueles dos continentes mais próximos; (d) existir maior diversidade biológica nos continentes do que nas ilhas; e (e) haver grupos biológicos definitivamente afastados das ilhas, como os anfíbios, por os seus ovos não resistirem à água salgada, e os mamíferos, excepto os morcegos mesmo nas ilhas mais afastadas dos continentes. Como explica FURTADO (1881), «ao contrário do que se dá nas ilhas continentais, as ilhas oceânicas têm um todo de espécies peculiares que se não encontram nem em outros pontos do globo, nem nos continentes próximos. Assim os Açores e a 4 Depois de regressar a Inglaterra a saúde de Darwin declinou e, desde Em 1839, Darwin casou com a sua prima Emma Wedgwood. Posteriormente, em 1842, o casal transferiu-se para uma casa próxima de Down (Kent), uma pequena localidade de 300 habitantes, a 30 milhas de Londres, por comboio, onde ambos 1838 até à sua morte, foi incomodado por ataques de vómitos e outras queixas que o tornaram algo inválido. Os seus sintomas fazem deduzir que sofria da doença-de-Chagas, semelhante à doença-do-sono, provocada por um parasita, protozoário que o deve ter afectado na Argentina, durante a viajem do Beagle. [237] mudanças graduais ocorrendo à superfície da Terra ao longo do tempo. Também segundo FINCHAM (1984), Darwin verificou, por exemplo, que as aves no arquipélago de Cabo Verde, ao largo da costa de África, eram semelhantes àquelas do território continental, e que as aves das ilhas Galápagos, ao largo da costa da América do Sul, eram semelhantes àquelas deste continente, não obstante os cerca de 800 a 900 Km de oceano que separam estas ilhas daqueles continentes. Na circunstância, questionou porque não teria o Criador produzido espécies de aves próprias das ilhas? Posteriormente, observando que as diferentes espécies de tentilhões nas ilhas Galápagos eram diferentes mas ainda relacionadas, intimamente, imaginou que essas diferenças se teriam desenvolvido de modo gradual, durante um longo intervalo de tempo, em resposta ao seu isolamento, relativo, em cada uma das ilhas. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 238 Madeira possuem uma fauna especial de moluscos terrestres, e as Galápagos têm pássaros peculiares, ainda que submetidos ao tipo americano como as nossas conchas terrestres se vazam nos moldes europeus. «Ora, como não se pode acreditar que mão oculta esteja à espera que uma ilha surja das ondas para fazer de lodo alguns caracóis mais ou menos transparentes e pintados, os transformistas não podem ver nas espécies particulares às ilhas oceânicas senão espécies emigradas ou trazidas acidentalmente dos continentes pelas aves de arribada e nos troncos que as ondas arrojam às praias, e que se transformaram mais ou menos rapidamente em virtude do clima insular, e vêem na particularidade actual dessas formas insulanas, do mesmo modo que nas criações dependentes, uma base fortíssima da teoria que abraçaram». [238] De acordo com JENSEN & SALISBURY (1972), Darwin apresentou: (a) uma quantidade esmagadora de evidências de que a evolução tinha tido lugar e de que ela foi o processo que deu origem a novas espécies; e (b) uma teoria para explicar o mecanismo da evolução – a teoria da selecção natural – baseada em dois factos: 1º – todas as espécies dão origem a populações demasiado densas; e 2º – existem variações entre os indivíduos de uma dada espécie. Darwin notou que havia variação tanto entre a descendência dos mesmos progenitores como entre a descendência da população como um todo. Também notou que: (a) estas diferenças podiam ser maiores ou menores mas eram observáveis em todos os seres vivos; (b) dessas diferenças, algumas eram resultado de acções ambientais e outras eram herdadas pela descendência sendo que estas eram as importantes para a teoria da selecção natural; (c) algumas destas variações tornavam alguns indivíduos melhor adaptados a um determinado ambiente do que outros; (d) aqueles melhor adaptados a um dado ambiente podiam reproduzir-se e ao reproduzirem-se continuavam as espécies; e (g) assim havia selecção entre os organismos. Há, escreveu Darwin, uma luta pela existência, e nesta luta é o melhor adaptado que sobrevive e reproduz. Para Darwin, tinha havido evolução quando um conjunto de alterações cumulativas nas características de uma população de organismos era transmitida à descendência no decurso de sucessivas gerações. O principal agente ou processo dessa evolução orgânica ou biológica é a selecção natural, isto é, do conjunto de indivíduos que constituem uma população de uma dada espécie, aqueles que são dotados de determinadas características dão maior número de descendentes viáveis do que os indivíduos que possuem outras características. Se tais características tiverem uma base hereditária, a composição da população ir-se-á alterando. Considerando o número de ovos ou zigotos produzidos numa população de uma dada espécie, só alguns atingirão o estado adulto e destes só alguns contribuirão para a geração seguinte. Nessa população há sempre variação entre os indivíduos e a teoria da selecção natural afirma que a contribuição dos descendentes para a composição das gerações seguintes está relacionada com essa variação. IMPACTO DO EVOLUCIONISMO NA SOCIEDADE E NAS CIÊNCIAS No começo do século XIX a paleontologia forneceu evidências não apenas de extinções mas também de mudanças evolutivas; a anatomia comparada sugeriu afinidades genealógicas fortes entre os organismos; e a ideia de que a evolução tinha ocorrido foi ganhando adeptos. Faltava conhecer os mecanismos pelos quais ela tinha ocorrido, e isto foi enunciado pelo primeiro dos verdadeiramente grandes teóricos do Evolucionismo, JeanBaptiste-Pierre-Antoine de Monet, cavaleiro de Lamarck (1744-1829)5. Por meados do século XIX a evolução era uma matéria comum de debate (LOVEJOY, 1959). A teoria de Lamarck tinha sido desacreditada mas a obra de Robert Chambers, Vestiges of the 5 A teoria de Lamarck de que todas as transformações estruturais e funcionais dos órgãos e membros dos seres vivos estavam condicionadas, principalmente, pelo seu uso e desuso, e de que tais adaptações seriam hereditárias, apresentada na obra Philosophie Zoologique (1809), estava errada, mas foi a primeira teoria científica da evolução, admissível, tendo em vista a crença de que as características adquiridas eram hereditárias. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 239 2009, “ANO DARWIN” CHARLES DARWIN EVOLUCIONISMO SOBRE EO De acordo com JENSEN & SALISBURY (1972), Darwin sabia da solidez da sua teoria e do seu interesse e importância para a ciência e para o mundo em geral mas receava o choque que ela provocaria no mundo vitoriano, pacífico. Mais, deve ter receado, simultaneamente, publicá-la e morrer antes que o podesse fazer. Não obstante a sua reputação estar claramente estabelecida, Darwin esperou 20 anos desde que teve aquela ideia vaga de fundamento, em Outubro de 1838, até que recebeu o artigo de Wallace, no verão de 1858 e foi forçado a publicar The origin of species. Receava prejudicá-la com uma formulação prematura que podesse dificultar um reajustamento posterior e deixou-a fermentar na sua mente. Todavia, poderão ter existido outras razões determinantes, talvez subconscientes, como a oposição da teoria aos conceitos Criacionistas, partilhados por familiares e amigos, e o reaparecimento da sua doença no final de 1838. A posição influente ocupada por Darwin, o número e o poder dos seus amigos e o facto de Wallace viver fora de Inglaterra, por períodos de tempo longos, resultou centrar mais naquele do que neste a controvérsia que girou à volta da publicação daquela obra. Todavia, devido à debilidade da sua saúde, raramente esteve envolvido, pessoalmente, na luta pelas suas ideias. Elas foram apresentadas, com sucesso, por Thomas Huxley (1825-1895), na Inglaterra, Ernest Haeckel (1834-1919), na Alemanha, e Asa Gray (1810-1888), nos Estados Unidos. O debate sobre a evolução dos seres vivos como teoria científica foi relativamente breve. Os naturalistas aceitaram-na, rapidamente, e começaram a usá-la para explicar muitos fenómenos naturais. Segundo FUTUYMA (1979) e MAYR (1995), o sucesso imediato da obra de Darwin9 indica que o mundo estava pronto para receber a Teoria da Evolução. Curiosamente, em 1858, o conceito atraía particularmente os leigos. Aqueles que estavam melhor informados acerca da biologia, especialmente acerca da classificação e da morfologia, nomeadamente anatomistas, zoólogos e botânicos, incluindo alguns dos amigos mais próximos de Darwin que, posteriormente, ele converteu à sua teoria, defendiam muito fortemente o dogma da criação e a constância das espécies10. 6 Obra, anónima, primeiramente editada em 1844, teve dez edições antes de 1859. MAYR (1995), considera esta obra superficial, mas as de Lamarck e Saint-Hilaire como realizações mais importantes. 7 Darwin desconhecia as publicações de pelo menos alguns destes autores quando da 1ª edição de The origin of species. 8 Alfred Russel Wallace, como Darwin, não foi inicialmente naturalista. Começou como agrimensor e como arquitecto. Depois, interessou-se pela botânica. Quando professor numa escola preparatória inglesa, encontrou o naturalista Henry Walter Bates (1825-1892), que o persuadiu a tornar-se um colector de besouros. Tal como Henslow fez com Darwin, Bates incitou Wallace a visitar e a colher nos trópicos e, em 1848, ambos empreenderam uma expedição à Amazónia. Entre 1854 e 1862, Wallace viajou e colheu no arquipélago malaio. Este arquipélago foi para Wallace o que as ilhas Galápagos foram para Darwin. Em 1855, Wallace começou a pensar no mecanismo da evolução, mas só em 1858 reflectiu sobre a teoria de Malthus e «there suddenly flashed upon me the idea of survival of the fittest». Sem a hesitação de Darwin em apresentar a teoria, Wallace escreveu o seu artigo em três dias e mandou-o àquele. Isto abalou Darwin de tal modo que o levou a escrever: «If Wallace had my manuscript sketch written in 1842, he could not have made a better short abstract! Even his terms now stand as heads of my chapters». Todavia, informado do trabalho de Darwin, Wallace não publicou aquele artigo e só viria a divulgar uma obra sobre a Teoria da Evolução, com o título Darwinism, em 1889. Antes, em 1876, havia publicado a sua obra monumental intitulada Geographical distribution of animals. 9 The origin of species, 1ª edição, foi vendida no dia da publicação (24 de Novembro de 1859) e um mês depois foi distribuída a 2ª edição. No primeiro ano foram vendidas 3 800 cópias. Até à morte de Darwin, em 1882, foram vendidas mais de 27 000 cópias impressas em Inglaterra. 10 Segundo MAYR (1995), então, eram conhecidos poucos dos factos em que os biólogos modernos se baseiam para aceitar a Teoria da Evolução. O número de fósseis conhecidos era pequeno e ainda não tinham sido descobertas relações entre os maiores grupos de animais. O pouco que era conhecido acerca da hereditariedade era mal interpretado. O sistema de classificação zoológica de Cuvier, então aceite, reconhecia apenas quatro tipos de animais “totalmente distintos”. Muitos ramos da biologia que têm contribuído com evidências a favor da evolução, tais como a citologia e a endocrinologia, ainda não existiam, e outros como a embriologia, eram ainda rudimentares. Darwin não apenas se convenceu a si próprio de que a diversidade dos animais e das plantas é devida à descendência de ancestrais comuns, como argumentou o seu caso tão bem que, eventualmente, convenceu a grande maioria dos seus colegas naturalistas. [239] natural history of creation6, bem como as publicações de Erasmus Darwin, William Charles Wells (1818), Patrick Matthew (1831), James Cowles Prichard (1843) e de outros7, indicam como estavam divulgadas as ideias de evolução e de selecção natural, mas só alguns perceberam que elas podiam explicar a modificação e a extinção das espécies. Foi neste contexto que, em 1858, foram feitas afirmações coerentes, apresentadas separadamente por Darwin e por Alfred Wallace8 (1822-1913), sobre o conceito de selecção natural e o modo como ela podia causar a evolução. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 240 [240] Para FUTUYMA (1979), a Teoria da Evolução, conjugada com outras ciências, teve consequências importantes na filosofia, principalmente uma severa redução dos seus fundamentos teológicos. A Grande Cadeia do Ser11 foi ou demolida ou pelo como a adaptação não genética a condições ecológicas, económicas e sociais locais, muito como as características de diferentes espécies se ajustam a diferentes ambientes. menos tornada temporal, persistindo o conceito de progresso evolutivo das formas de vida mais “baixas” para as mais “altas”. Diversos autores, partindo talvez de Herbert Spencer (1820-1903), desenvolveram filosofias evolutivas em que o progresso humano foi visto como uma evolução progressiva, cósmica. Alguns, como John Dewey (1859-1952), viram no elemento casual da evolução biológica um escape ao determinismo rígido das ciências físicas de então. Mas nenhum sistema filosófico coerente baseado na evolução tinha aparecido e persistido; como refere COLLINS (1959), os dados científicos e as teorias da evolução não obrigam a qualquer conclusão filosófica simples nem estabelecem qualquer questão filosófica maior. Continuando a referir FUTUYMA (1979), a evolução tem tido influências directas e indirectas sobre a psicologia. Muito directamente, talvez, ela tem dado atenção a semelhanças entre os comportamentos humano e animal (começando com as obras de Darwin: The descent of man, and selection in relation to sex, 1871; e The expression of the emotion in man and animals, 1872), conduzindo à matéria da psicologia comparada, para o uso de animais como modelos experimentais para o comportamento humano, e a especulações sobre quais são as heranças “inatas” dos ancestrais pré-humanos. A evolução influenciou, indirectamente, o desenvolvimento da teoria de Freud, segundo a qual as neuroses têm origem na batalha do ego e do superego contra os desejos “naturais” (os impulsos instintivos dos indivíduos) herdados dos nossos ancestrais selvagens. Freud, que acreditava na herança dos caracteres adquiridos e no princípio de que «a ontogenia recapitula a filogenia», sugeriu que cada um de nós repete os estados filogenéticos do desenvolvimento sexual e mesmo os acontecimentos do drama de Édipo como eles alguma vez podiam ter acon- Segundo HOFSTADTER (1955), durante algum tempo as ciências sociais foram influenciadas fortemente pelo Evolucionismo, especialmente o conceito de selecção natural. Spencer sustentou que os princípios éticos da sociedade imitavam a natureza, que o progresso social devia proceder em harmonia com a sobrevivência dos mais adaptados. As suas ideias, que vieram a ser conhecidas como social-Darwinismo, foram muito populares nos Estados Unidos, no princípio do século XX, e foram invocadas para suportar o capitalismo, o imperialismo, a esterilização “eugénica” dos elementos inferiores da sociedade, e as leis da imigração restringindo a entrada de raças e de grupos étnicos “inferiores”. Políticos e economistas americanos não tiveram dúvidas em seguir estas ideias, mas uma justificação teórica, vinda da boca de filósofos e de cientistas, foi sempre desejada. Ainda de acordo com FUTUYMA (1979), antes de Darwin, a antropologia tinha uma visão evolutiva que foi reforçada pela emergência da teoria biológica. Ela foi inicialmente interpretada de modo ingénuo, pelo que uma visão evolutiva da cultura foi descreditada quando foi tornado conhecido que a cultura não tinha avançado, necessariamente, segundo uma linha única desde o tempo em que o homem era caçador e colector até àquele da indústria moderna. Recentemente, a antropologia cultural tornou-se mais evolutiva, vendo muitas instituições culturais 11 Ou Scala Naturae é obra importante do pensamento platónico. Então, o papel da ciência natural era descobrir a sequência e catalogar as ligações dessa Grande Cadeia para que a sabedoria de Deus pudesse ser revelada e apreciada. A confirmação de que se tinham desenvolvido lacunas na Grande Cadeia foi perturbadora. A evidência de que os fósseis representavam animais outrora vivos ou espécies que se haviam extinguido foi tão incontroversa que tiveram de ser encontradas explicações para essas lacunas como aquelas contidas nas teorias denominadas das Criações Sucessivas e das Catástrofes Naturais, esta já na emergência do século XIX. A Teoria das Catástrofes Naturais, de Georges Cuvier, considera os cataclismos (glaciações, dilúvios, terramotos, etc.) como sendo responsáveis pelo desaparecimento da vida nos locais onde ocorriam que, posteriormente, seriam repovoados por indivíduos de outras espécies vindos de outros locais. Alguns seguidores de Cuvier levaram esta teoria ao extremo, alegando a ocorrência de catástrofes globais responsáveis pela destruição de todas as espécies existentes na Terra, repovoada, posteriormente, graças a novos actos de criação divina (Teoria das Criações Sucessivas). Se a Teoria das Catástrofes Naturais tenta explicar as descontinuidades entre os estratos geológicos, a Teoria das Criações Sucessivas tenta encontrar uma solução entre o Criacionismo e as evidências fósseis. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 241 2009, “ANO DARWIN” CHARLES DARWIN EVOLUCIONISMO SOBRE EO tecido. A psicologia de Carl Jung é acentuadamente evolutiva, fundada na noção do inconsciente colectivo, uma colecção de imagens arquetípicas herdadas do nosso passado evolutivo. [241] Com excepção da física e de uma parte vasta da química, as ciências naturais têm absorvido o pensamento da Teoria da Evolução. Que o Universo se tem desenvolvido durante Eras é geralmente aceite; a geologia tem uma relação simbólica com a biologia evolutiva; e cada uma das disciplinas complementares da biologia, desde a bioquímica à ecologia, assume a evolução e interpreta os dados à sua luz. Muitas das aplicações práticas da biologia em medicina e na agricultura dependem da biologia evolutiva (v. g. cães e macacos são usados na investigação médica apenas porque os seus sistemas fisiológicos são homólogos daqueles dos humanos). Com efeito, a evolução é o sistema coerente de princípios que unifica toda a biologia. RECEPÇÃO DO EVOLUCIONISMO NOS AÇORES A teoria evolucionista de Darwin terá chegado aos Açores com os naturalistas que visitavam o arquipélago à procura de formas de transição entre os novo e velho continentes e ainda com açorianos de regresso ao arquipélago nomeadamente Carlos Machado (1828-1901), Ernesto do Canto (1831-1900), Antero de Quental (1842-1891), Bruno Tavares Carreiro (1857-1911) e Eugénio Vaz Pacheco do Canto-e-Castro (1863-1911). Todos passaram por Coimbra e conheceram Júlio Augusto Henriques (1838-1928) que, em 1865, foi pioneiro na defesa do Evolucionismo na Universidade de Coimbra. De Ponta Delgada, em 26 de Dezembro de 1873, Antero, procurando perceber o divórcio entre a ciência e a metafísica, escreve a Oliveira Martins: «[...] a falar verdade, acho-me só: a metafísica é hoje repelida universalmente da Filosofia da Natureza. Não importa. Irei de encontro à onda dos positivistas, materialistas, empíricos e tutti quanti, convencido de que não se passará muito tempo sem que, constituída a metafísica positiva, a Filosofia da Natureza entre no caminho verdadeiro». Mas, só na década de oitenta, Antero, conciliando metafísica com ciência, escreve, em 24 de Dezembro de 1885, a Jaime Batalha-Reis, pioneiro, super- Frontespício da obra “On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life”. 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 242 [242] ficial, na interpretação do Evolucionismo em Lisboa, no Instituto Geral de Agricultura: «Extrair do pessimismo o optimismo, por um processo racional, tem sido afinal o trabalho da minha vida. Creio que cheguei ao termo e dou a minha Filosofia por completa e acabada. Agora trata-se de a expor lucidamente, e é a isso que me quero consagrar [...]» (cf. PEREIRA, 2001). Seguindo a interpretação feita por Haeckel da teoria de Darwin, Canto-e-Castro afirma: «De nada, por certo, valerão amanhã as fúteis preocupações dos moralistas ou as invectivas dos filósofos para infirmar este corolário, tão rigorosamente deduzido das omnímodas afirmativas da Embriologia, da Paleontologia e da Anatomia» (CANTO-E-CASTRO, 1886) (cf. PEREIRA, 2001). O original de A philosophia da natureza dos naturalistas foi publicado no ano seguinte, pelo diário A Província, da cidade do Porto. Trata-se de um conjunto de artigos a propósito da obra de Artur Viana de Lima, Exposé sommaire des théories transformistes de Lamarck, Darwin et Haekel, publicada em Paris, em 1886. Nesta obra Lima põe em relevo o confronto das provas de várias disciplinas científicas envolvidas (paleontologia, embriologia, anatomia comparada, osteologia, etc.) com os argumentos criacionistas-finalistas que procuravam perpetuar o fixismo de Georges Cuvier apesar da oposição transformista de Lamarck, Geoffroy de Saint-Hilaire e Goethe. Naqueles artigos Antero postula que «sem metafísica não há filosofia» e «sem ciência não há filosofia». Por isso, não faria sentido erguer uma filosofia à margem das aquisições científicas do tempo, mormente dos princípios transformistas estabelecidos por Lamarck, Darwin e Haekel (cf. PEREIRA, 2001). Mais tarde, em Ponta Delgada, na “Explicação prévia” de A philosophia da natureza dos naturalistas, (Ponta Delgada, Typographia Editora do Campeão Popular, 1894) Canto-e-Castro afirma a legitimidade do transformismo e sublinha que o seu valor cognitivo era reconhecido mesmo pela especulação metafísica, como a de Antero (cf. PEREIRA, 2001). Depois, em Dos impossíveis em Philosophia natural, defende que o conhecimento nas ciências da natureza é evolutivo ao invés do que acontece nas ciências formais (CANTO-E-CASTRO, 1899). Eugénio Canto-e-Castro publicou, em Coimbra, um estudo onde pode ser lido: «Só da combinação da estrutura dum animal com a sua embriologia e com a sua história nos tempos geológicos se podem inferir elementos seguros para a determinação do seu lugar na natureza» (CANTO-E-CASTRO, 1886). Seguindo de perto os trabalhos de Darwin e de Haeckel, Canto-e-Castro sublinha a natureza zoológica do homem, lembrando observações e experiências significativas nesta matéria das quais se induziu que as faculdades intelectuais, a religiosidade e a moralidade não eram exclusivas do ser humano nem, por outro lado, eram observáveis em todos os homens, não sendo, por isso, sequer, atributos universais da espécie humana. Assim, Canto-e-Castro nega a existência de um reino humano apartado do mundo animal. Afirma o parentesco verificado entre o homem e o animal, em todos os planos, incluindo o intelectual, o moral e o religioso tal como outros naturalistas coevos europeus e americanos no seguimento daquelas obras de Darwin: The descent of man ... e The expression of the emotions .... Todavia, o defensor e divulgador da teoria evolucionista no arquipélago foi Francisco de Arruda Furtado (1854-1887), autodidacta, que só haveria de sair da ilha de S. Miguel em 1885, quando se transferiu para o Museu de Lisboa. Furtado formou o seu pensamento evolucionista, nomeadamente, na teoria de Lyell, nas evidências de extinções e de mudanças evolutivas fornecidas pela paleontologia, nas afinidades genealógicas existentes entre os organismos sugeridas pela anatomia comparada, e na sobrevivência do mais apto, usada especialmente para responder pela extinção. Em defesa da explicação darwinista do Evolucionismo, FURTADO (1881) argumenta que os seguidores desta teoria se apoiam na descendência serial com modificação pouco importando «que as espécies diferentes se prejudiquem ou não, na fusão das suas funções reprodutoras, se independentemente disto compreendemos a possibilidade do transformismo e ele se nos impõe, pelas explicações que traz, como orientação única das nossas pesquisas e como disciplina das nossas conclusões». Furtado conhecia, dos seus trabalhos, as modificações provocadas pela insularidade sobre os moluscos terrestres e tinha notícia das modificações sobre as plantas e a entomofauna dos Açores. Mais, entendia que os efeitos sociais e da insularidade 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 243 2009, “ANO DARWIN” CHARLES DARWIN EVOLUCIONISMO SOBRE EO Porém, usou perspectiva diversa, a de Lamarck, influenciado pela obra de Darwin, para interpretar a variação da circunferência craniana do que chamou «indivíduos ilustrados, camponeses e mulheres» (cf. FURTADO, 1883). Segundo MAYR (1995), Darwin, pelo menos nas primeiras edições de The origin of species, admite o uso de um carácter, e a falta dele como um mecanismo evolutivo importante. Na colecção do jornal República Federal de 1881 e 1882, encontra-se a réplica de Furtado à crítica que Sanches de Gusman faz, no jornal Civilização, a alguns dos seus artigos, expondo e defendendo o Evolucionismo, e ao seu opúsculo O homem e o macaco, escrito a pretexto de certas passagens alusivas àquela teoria proferidas pelo padre Francisco Rogério da Costa (18221886), num sermão quaresmal, em Ponta Delgada (cf. SILVA, 1896; COSTA, 1954). Esta polémica chegou também à Horta onde, pelo menos, o jornal Regeneração publicou dois artigos não assinados, com o título O homem procedente do macaco, trabalhos que segundo Furtado foram escritos a propósito dos seus estudos (cf. FURTADO, 1881)12. Furtado contestava a exasperação dos religiosos do seu tempo perante as revelações de parentesco entre o homem e o macaco. No artigo Embryologia (FURTADO, 1882) publicado em homenagem a Darwin, este é apresentado por Furtado «como criador de uma filosofia redentora da humanidade, fundada na suposta verdadeira esperança, a esperança científica» (cf. PEREIRA, 2001); religião, metafísica e teologia são combatidas; e Evolucionismo e Cristianismo são contrapostos como nunca havia sido feito por Darwin. O pensamento de Furtado está exposto, por ele próprio, na carta Ciência e Natureza, dirigida a seu irmão António Furtado e inserta na revista do movimento contemporâneo Era Nova (1880: 83 a 88). Alguns anos mais tarde, em Angra do Heroísmo, também aconteceu controvérsia entre José Augusto Nogueira Sampaio (1827-1900), médico, naturalista e professor do Liceu, e António Maria Ferreira (1851-1912), cónego da Sé, a propósito do discurso sobre a origem da vida e a teoria evolucionista de Darwin, proferido pelo primeiro, no Liceu, em 1890, que depois foi impresso em livro com o título A vida (1893). Sampaio explicava a vida como «a resultante remota das forças inerentes à matéria» não dependendo de poderes como a alma ou o espírito. Mais, considerava sem fundamento afastar o homem do reino animal. A alocução de Sampaio foi criticada por Ferreira a que respondeu o primeiro, em livro, publicado, em 1894, com o título Exame Crítico da Refutação que o Exmo. Sr. Cónego António Maria Ferreira, Professor do Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo, fez ao Discurso intitulado A VIDA pronunciado no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo pelo seu Reitor e Professor. Contradisse Ferreira numa extensa série de artigos que foram mais tarde coleccionados em volume com o nome Polémica Científica sobre a origem da vida, publicado em 1895. Assim, aconteceram nos Açores, fundamentalmente, duas polémicas de características diferentes. Naquela, Furtado defendia o Materialismo, nesta, Sampaio era pelo Evolucionismo mecanista, contra o Espiritualismo clássico, como referem FERREIRA-DEUSDADO (1902) e FERREIRA (1940). Depois, com a entrada do século XX, a Teoria da Evolução tornou-se geralmente aceite. 12 A Teoria da Evolução teve pouco impacto na Horta. Manuel Joaquim Dias, que havia assinado, apenas D., em O Gremio Litterario, a notícia da morte de Darwin (Dias, 1882), publicou em O Açoriano uma “Secção científica” em que divulga alguns excertos daquela teoria (cf. Açoriano (O), 1883). [243] deviam influenciar também o homem açoriano, completamente por estudar do ponto de vista antropológico. Interpretação provavelmente influenciada pela leitura de Darwin para quem «a observação de muitos pequenos pontos de diferença entre espécies, que, tanto quanto a nossa ignorância nos permite julgar, parecem ser bastante insignificantes, não devemos esquecer que o clima, a alimentação, etc., provavelmente produzem algum efeito, ligeiro e directo» (The origin of species, 1ª edição: 85). 15.CH.Luís Arruda(pb) 6/17/09 11:05 AM Page 244 BIBLIOGRAFIA: AÇORIANO (O) (1883), Horta, nº 13, 2 de Dezembro; nº 14, 9 de Dezembro; nº 15, 16 de Dezembro; nº 16, 23 de Dezembro; e nº 17, 30 de Dezembro, Secção scientifica. ARRUDA, L. M. (s. d.), Beagle, Enciclopédia Açoriana, http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/in dex.aspx). BARRETT, P. H. & R. B. FREEMAN (ed.) (1987a), The works of Charles Darwin. In Diary of the voyage of H. M. S. Beagle. New York City, New York University Press, vol. 1. BARRETT, P. H. & R. B. FREEMAN (ed.) (1987b), The works of Charles Darwin. In Journal of researches. 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Inventou-se a imprensa e difundiu-se a informação. Os meios tecnológicos galgaram fronteiras, espaço e tempo, cada vez mais reduzido. Hoje é (quase) instantânea a informação que circula de uma parte para qualquer outra parte do mundo2. O jornalismo e os jornalistas, até agora quase os únicos intermediários entre os que tinham informação e os que necessitavam * Texto revisto que tem por base um trabalho apresentado para a disciplina de “Organização Política e Governação na União Europeia” do curso de Estudos Europeus e Política Internacional da Universidade dos Açores. 1 Há dez anos, no dia 17 de Janeiro de 1998, um site informativo norte-americano, o Drudge Report, dava conta que a revista “Newsweek” estaria a investigar a história de um alegado envolvimento entre o Presidente Bill Clinton e uma estagiária da Casa Branca. Esta notícia marcou, definitivamente, uma viragem na importância que a Internet passou a ter no mundo da comunicação/informação. 2 David Crystal, editor da Enciclopédia de Língua Inglesa Cambridge, afirma que a Internet representa a maior mudança na comunicação em toda a história da humanidade. “Até agora temos comunicado através da fala, da escrita e da linguagem gestual. Mas a Internet não se trata de escrever ou falar. Tem aspectos de ambas e representa em si uma nova forma”, defende este especialista. Ainda segundo Crystal, o e-mail não é só uma mera forma de enviar mensagens mais rápidas. “É um diálogo entre duas ou mais pessoas a acontecer no momento”. Ele acredita mesmo que a Internet vai afectar a maneira como as pessoas comunicam entre si e, eventualmente, levará a novas formas de comunicação. Fonte: Tek, 2007. [245] Quem hoje possui informação actualizada tem poder. É este o paradigma do mundo actual na área da comunicação/informação. É claro, também, que é necessário saber que tipo de informação é disponibilizada e chega ao nosso conhecimento das mais variadas formas e como filtrar aquela que nos interessa. A contra-informação é uma arma poderosa que é usada sempre que convém confundir ou desviar atenções de determinado problema ou medida política, económica, social ou de qualquer outra área. Neste contexto de informação/notícia e contrainformação/notícia apercebemo-nos de que o poder dos médias é elevado uma vez que publicada a notícia/informação ela jamais será apagada. Ela assume, depois, o seu próprio ritmo como verdadeira ou falsa, factual ou manipulada. Pode ser desmentida, corrigida ou alterada. Mas, jamais, pode ser apagada. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 246 dela, foram praticamente ultrapassados pela velocidade da tecnologia. É assim que o jornalismo entra em “crise”, diagnosticada por Deni Elliot como um “confronto de paradigmas”3 em que as obrigações éticas e deontológicas começaram a ceder lugar à necessidade de velocidade no fornecimento de informação/comunicação. A informação jornalística começa a ser mais rápida, amputada de grande parte da ética que a norteou. Avança-se com informação, praticamente unilateral, cujos novos paradigmas passam a ser o “imediato e a interactividade”. Contrapondo-se aos jornalistas são as próprias instituições governamentais, as não governamentais e todas, ou quase, as restantes, incluindo cada cidadão individualmente, que passam a usar a Internet para difundir informações4. Em síntese, para comunicar. [246] A União Europeia não é excepção. A exemplo de todos os restantes também possui uma vasta rede – centenas de canais on-line – para difundir a sua informação. E, também, porque não – lato senso –, usando-a como instrumento para uma gestão das opiniões públicas, à imagem dos poderes governamentais nacionais e outros. Com esse poder de transmissão de informação é estranho, ou talvez não, que a maioria da população da UE se encontre alheada das mais elementares informações de como está constituída, como funciona e que oportunidades tem para o desenvolvimento. Apesar de todo esse potencial a sociedade civil5 ainda não conseguiu, no nosso entender, absorver um dos objectivos mais importantes da União: a criação de um espírito de cidadania europeia. Ora, a sociedade civil rege-se por normativos emanados pelos responsáveis governamentais independentemente do regime político e responsável partidário. Actualmente, cerca de oitenta por cento dos ordenamentos jurídicos no espaço da União Europeia provêm de instituições comunitárias. É fundamental saber quem, de que forma e com que motivações se tomam decisões que têm implicações quotidianas na vida de quase 500 milhões de europeus. Esta “avalanche” de informação, em especial a normativa – prin- cipalmente aquela que pode conceder subsídios, logo a mais conhecida –, é regra geral densa, mal explicada e cansativa. Pouco lida, portanto. “A quantidade de informação europeia é enorme mas dispersa e impenetrável para o comum dos cidadãos”6. E, quer os jornais, a rádio ou a TV, salvo raras e honrosas excepções, não tornam a informação europeia emocional e sensorial que poderia, essa sim, ser apelativa. Mas é (ou quase) inexistente. QUEM CONHECE, DE FACTO, A EUROPA? Para que qualquer cidadão europeu possa contactar com as instituições europeias basta, desde logo, estabelecer uma ligação ao portal EUROPA7 na internet ou aos gabinetes de informação existentes em todos os países que compõem a UE. De acordo com os diferentes relatórios do Eurobarómetro qualquer cidadão europeu comum já ouviu falar da UE e sabe que dali provêm muitos auxílios económicos que ajudam ao desenvolvimento, mas pouco mais. É generalizado, em Portugal, o axioma de que os portugueses quase não ligam aos meios de comunicação social e estes dão uma atenção residual à Europa. Quem é que, afinal, quer saber de assuntos europeus? A UE não deixa de ser uma realidade distante que, através dos organismos nacionais, concede verbas – conhecidas mais vul- 3 Deni Elliot, “The Clash of Paradigms”, comunicação apresentada em 1998, ao Congresso da Organisation of the News Ombudsman, documento internet (http://www.infi.net/ono/elliott.html). 4 “O uso pessoal e profissional da Internet pode levar a um esgotamento da capacidade da actual infra-estrutura e causar uma redução da velocidade, caso não sejam investidos 137 mil milhões de dólares (93,5 mil milhões de euros) em novos suportes, alerta um estudo da Nemertes Research, uma empresa americana independente de análise. Este valor monetário totaliza mais do dobro do investimento na tecnologia que está previsto para os próximos anos”, Diário de Notícias, 21 de Novembro de 2007. 5 Sociedade Civil é um conceito com várias definições que têm origem (?) no Renascimento e evoluem por filósofos como John Locke, Hegel, Adam Smith e Françoise Hartout, entre outros. Nós definimo-la simplesmente como “o espaço público”. 6 Duarte Freitas, eurodeputado açoriano (PSD), entrevista 2008. 7 Ver Infografia no final do texto. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 247 A ESCASSA DIFUSÃO, NOS AÇORES, DAS NOTÍCIAS EUROPEIAS Colocam-se, pois, dois vectores de análise ao problema: que política de comunicação tem a UE e que relação tem com os meios de comunicação social na generalidade – analisaremos o caso dos Açores em particular. FALHAS NA COMUNICAÇÃO Onde reside então o problema se é visível o divórcio entre os assuntos europeus e os cidadãos? “Creio que na relação europa/açorianos de certeza que a culpa não é da nossa imprensa”11. Se alguns consideram que “os mecanismos europeus estão correctos a percepção das pessoas é que tem de mudar para passar a entender a Europa como sua”12 quais são, então, as soluções possíveis? “Desde logo o emissor (UE) simplificar a informação, os jornais especializarem alguns dos seus jornalistas e o receptor (cidadãos) ser sensibilizado para uma atenção mais cuidada e atenta ao caudal noticioso europeu. É que as pessoas apanham apenas os títulos das notícias (headlines) porque a vida nas sociedades modernas deixa pouco tempo para leituras atentas”13. Não será despiciendo também considerar que a arquitectura e a complexidade das inúmeras instituições europeias sejam outra das barreiras a uma comunicação mais eficaz. É assim que, pressentindo que existem falhas na comunicação com os cidadãos europeus, a Comissão Europeia tomou, em Abril passado, uma decisão com o objectivo de aumentar a participação dos cidadãos no processo de decisão da UE14. Intitulada “Debater a Europa - colher os ensinamentos do Plano D para a Democracia, o Diálogo e o Debate”, Bruxelas apresenta um conjunto de acções futuras destinadas a promover um debate geral e permanente sobre o futuro da UE. A comissária europeia para as Relações Institucionais e Estratégia de Comunicação, Margot Wallstrom, considerou que as políticas da UE “têm de estar solidamente ancoradas nos partidos políticos, nas tradições democráticas nacionais e no diálogo político diário”. Como tal, adiantou, “têm de ser discutidas e debatidas, seja nas câmaras municipais, nas assembleias regionais, nos parlamentos nacionais, na televisão ou na Internet”. Em 2008 e 2009, a Comissão Europeia co-financiará alguns projectos da sociedade civil realizados a nível comunitário e nacional no âmbito da iniciativa “Debater a Europa”. 8 Alfredo Borba, responsável pelo “Europ Direct” dos Açores, entrevista 2008. 9 Ana Cabo, Gabinete da Comissão Europeia em Portugal, Diário Insular, pág. 4, 28 de Maio de 2008. 10 Alfredo Borba, idem. 11 Paulo Casaca, eurodeputado açoriano (PS), entrevista 2008. 12 Alfredo Borba, idem. 13 Duarte Freitas, idem. 14 LUSA, Agência de Notícias de Portugal, notícia nº. 8174704, 02 de Abril. [247] garmente como subsídios – destinadas ao desenvolvimento dos países associados. O resto não é importante, ou, pelo menos, assim parece. “Há muita informação e pouco interesse das pessoas nas acções de divulgação que se desenvolvem que extensivo aos jornais. Todos os dias é distribuída informação pelo “Rapid” e quer uns quer outros têm pouco interesse nessa informação”8, o que contraria as estatísticas de que “64 por cento dos europeus estão interessados nas notícias da UE o que desmente o argumento de que a Europa não é importante em termos noticiosos”9. O certo é que num colóquio sobre cidadania, promovido por instituições europeias nos Açores e que decorreu na universidade açoriana “teve apenas a presença de quatro eurodeputados (oradores) e três dezenas de pessoas, a maioria alunos adultos. Nem os partidos regionais se fizeram representar. Para o colóquio foram feitos mais de quinhentos convites. Noutras acções de conferência e até de distribuição de informação também não temos ninguém”10. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 248 A iniciativa permitirá co-financiar projectos pan-europeus de consulta aos cidadãos geridos por organizações da sociedade civil; criar redes em linha que reúnam informação, conhecimentos e ideias e facilitem a sua partilha entre parlamentares europeus, nacionais e regionais, jornalistas e outros líderes de opinião europeus; desenvolver Espaços Públicos Europeus nas capitais dos Estados-Membros, onde a Comissão e o Parlamento Europeu, em conjunto, possam organizar exposições, debates, seminários e acções de formação sobre temas europeus. A União Europeia e a miríade de instituições e organizações que gravitam em seu torno são às dezenas com outros tantos locais de acesso a informação. Existem três de forma directa: o sítio da UE na Internet (europa.eu), o sitio do Europe Direct (europedirect.europa.eu) que disponibiliza também uma linha telefónica de apoio aos cidadãos (número gratuito 0080067891011) e os centros de informação locais Europe Direct em cada país e, no caso de Portugal, um deles nos Açores. [248] Pensamos, pois, que o projecto da Comissária Europeia vem de encontro à nossa percepção de que a Europa tem muita informação, gasta milhares, para não dizer milhões, de euros para a sua difusão mas fá-lo de forma deficiente e com resultados ineficazes. Sobretudo junto dos média. E, porque quem os dirige (administração) tem apenas o objectivo da sua viabilidade (lucro) contaminaram também os seus corpos redactoriais incutindo-lhes que de tal desígnio dependem os seus postos de trabalho. A isto deve juntar-se a leitura quase exclusivamente económica (não começou por ser Comunidade Económica Europeia?) da União Europeia, ou seja, dos ditos subsídios. “As pessoas pensam na Europa como um “organismo” distante que dá apoios”15. E, já agora, quando as decisões judiciais demoram ou se julgam prejudicados pelos Estados nacionais, os cidadãos sempre vão dizendo que podem recorrer ao Tribunal Europeu. Porém, inquiridos, a grande maioria desconhece como funciona. Tal começa, na nossa perspectiva, por se dever ao facto de a integração europeia de Portugal ter sido uma decisão exclusivamente política. Terminada a colonização em 1975, o país quase improdutivo, sem matérias-primas de relevo voltou-se politicamente (e economicamente) para a Europa. De território periférico desde sempre com as costas voltadas ao continente e olhos postos na geoestratégia do domínio dos mares, primeiro, e da manutenção de territórios colonizados, depois, a Nação sentiu-se órfã e desamparada. Nada melhor que conceder a nossa posição estratégica – mais por via dos Açores que de outra coisa qualquer – a troco de financiamentos que nos fizessem progredir e, consequentemente, aproximar dos níveis europeus. O que, infelizmente, pelas estatísticas que se divulgam, não foi plenamente conseguido. Explicadas as vantagens, monetárias claro, da adesão à então CEE o poder político viu-se liberto das amarras de ter de perguntar ao povo se aceitava ou não essa integração. Adquiriu, assim, uma carta de alforria que lhe tem permitido negociar e decidir sem ter de referendar as suas decisões. Como o dinheiro tem jorrado, ininterruptamente, desde a década de oitenta do século passado, a população pouco interesse tem tido em saber, com profundidade, como funciona a União Europeia. Tampouco lho têm explicado das formas mais adequadas, na nossa opinião. “Falta à União cidadania europeia. Os europeus, de todos os países membros, têm poucos meios para influenciar as decisões dos dirigentes e mesmo para as compreender. Estão a leste do que se congemina em Bruxelas. Ora é isso que leva ao desconhecimento do que está em jogo – de cada vez que são consultados – e à indiferença”16. OS JORNALISTAS COMO INTERCESSORES DO CONHECIMENTO SOBRE A UE Apesar de algumas deslocações de jornalistas ao coração da UE, Bruxelas, e de umas quantas acções, escassas diga-se, de informação/formação/divulgação junto de diversos agentes em diferentes regiões europeias, o certo é que grande parte não sabe quem são os eurodeputados do país, por vezes nem sabe que são originários da sua região e, muito menos, como funciona a máquina europeia. Note-se, antes de mais, que as eleições para o Parlamento Europeu têm elevados índices de abstenção ao arrepio do aumento de competências do próprio par- 15 Alfredo Borba, idem. 16 Mário Soares, “O Regresso da Política”, Diário de Notícias, 24 de Junho de 2008. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 249 A ESCASSA DIFUSÃO, NOS AÇORES, DAS NOTÍCIAS EUROPEIAS É assim que, no meio destas ambiguidades, se vai processando a construção europeia algo alheada dos cidadãos – cuja falta de relacionamento “é a forma como a Europa lhes é apresentada”18 – a quem vão incutindo ideias de que na internet encontram respostas para todas as dúvidas e ignorâncias sobre a UE. “A moda da Internet pegou levando a que as pessoas julguem que tem tudo e à qual só não acede quem não quer ou é cega. No entanto a difusão é assustadoramente grande e labiríntica. Não existe qualquer possibilidade de fazer um acompanhamento qualitativo da evolução europeia. Há muita preocupação de ter sítios on-line mas pouca em publicitá-los e mantê-los com informação legível ao comum dos leitores”19, afirma o director de um jornal regional. Falta-lhe “um enquadramento de conceito regional que divulgue notícias com a necessária proximidade que identifique o cidadão com a Europa”20, diz outro jornalista. Para outro “a informação tem que ter carácter e interesse regional”21 porque “a informação produzida pela Europa tem uma dimensão generalista e muito abrangente”22. Neste quadro todos os responsáveis por jornais regionais defendem uma certa especialização das notícias a difundir quando não mesmo um “filtro” pelo qual passem e se tornem apelativas. ele trabalha, mas na opinião de Herbert Gans o processo deve focar-se no percurso entre dois pólos importantes da transmissão da mensagem: o jornalista e o seu público”24. Os jornais confirmam esta tese já que adquiriram uma (quase) certeza que é a de que “noticiar sobre a Europa é garantia de que não há leitores”25. Tal dever-se-á, eventualmente, “à falta de assuntos mais importantes e que nos digam directamente respeito”26. O caminho é a “criação de canais que sintetizem, sistematizem e simplifiquem a informação que nos interessa porque haverá elementos que nunca foram divulgados”27, perdidos pelos corredores de Bruxelas e Estrasburgo e por isso “sobre os Açores nem todos os dias, ou semanas, há informações”28. Há pois a necessidade “de traduzir as decisões comunitárias – muitas vezes complexas e tomadas a muitos quilómetros de distância para o dia-a-dia das pessoas. Ao fazê-lo, os jornalistas poderão também traduzi-las para o público que, desta forma, se aperceberá da influência que estas têm na vida quotidiana”29. 17 Paulo Casaca, idem. 18 idem, ibidem. 19 José Lourenço, Director do Diário Insular de Angra do Heroísmo, entrevista, 2008. 20 Santos Narciso, Director Adjunto do Correio dos Açores, Ponta Delgada, entrevista, 2008. 21 Manuel Carlos, Director de A União, Angra do Heroísmo, entrevista, 2008. 22 Paulo Simões, Director do Açoriano Oriental, Ponta Delgada, entrevista, 2008. 23 Sofia Santos, Imprensa Regional – Temas, Problemas e Estratégias da Informação Local, pág. 45, Livros Horizonte, 2007. 24 H. J. Gans, Deciding What’s News, News: A Reader, pp. 235-248 Certo é também que “a cobertura da actualidade regional (…) é – antes de mais – assegurar que os limites geográficos da sua região de eleição se confundam com os da sua zona de difusão porque o que interessa verdadeiramente a estes órgãos é oferecer aos leitores notícias da zona onde vivem e/ou trabalham”23. Nesta perspectiva “as teorias ligadas à selecção das notícias centram-se, normalmente, no jornalista ou na organização onde Howard Tumber (org.), Nova Iorque, Oxford University Press, 1999. 25 Santos Narciso, idem. 26 Paulo Simões, idem. 27 José Lourenço, idem. 28 Paulo Simões, idem. 29 Teresa Coutinho, Gabinete de Informação do Parlamento Europeu em Lisboa, Diário Insular, pág. 16, 30 de Maio de 2008. [249] lamento, o que se nos afigura um paradoxo ou mesmo um contra senso. A isto não serão alheios os próprios candidatos que ao invés de debaterem as problemáticas europeias se lançam, na maioria das vezes, em inócuos debates internos. “O problema da Europa é o deficit dos seus partidos políticos que podem parecer presentes mas não estão. Os partidos políticos europeus “não existem” e esse é o drama. Quando se vota é nos partidos nacionais. Veja-se o caso do Partido Socialista Europeu, que existe nominalmente, mas ainda não foi capaz de divulgar o nome do seu candidato à presidência da Comissão Europeia”17. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 250 O problema coloca-se, então, na falta de especialização da grande maioria dos jornalistas – para não dizer a sua totalidade – nas intricadas auto-estradas da informação e funcionamento da UE. Paulo Casaca, deputado açoriano (PS) ao Parlamento Europeu defende “a formação específica dos profissionais”30, e Duarte Freitas, também eurodeputado açoriano (PSD) ao Parlamento Europeu acrescenta que “os órgãos de comunicação social regional, as autoridades regionais deviam promover mais a especialização dos jornalistas, grande parte deles já licenciados, que muitas vezes se sentem frustrados também pelo facto de ganharem, na maioria dos casos, pouco mais que o ordenado mínimo nacional”31. [250] Para os responsáveis dos jornais açorianos há falhas nos canais de comunicação. É fundamental criar pontes específicas de informação entre a Europa e as regiões. “Os jornais, rádios e televisões locais são um veículo privilegiado para fazer chegar a informação sobre a União Europeia aos cidadãos. No entanto temos consciência de que isso não é fácil. O primeiro passo é fazer ver aos jornalistas que a Europa não é assim uma coisa tão distante”32. A Europa fica mais próxima dos Açores através dos dois eurodeputados açorianos uma vez que ambos têm espaços abertos em todas as publicações regionais para divulgação das suas crónicas de opinião ou iniciativas parlamentares. Para além deste canal permanente de comunicação pouco mais existirá uma vez que “ninguém de Bruxelas nos contacta o que denota uma falta de estratégia de comunicação de lá para cá”33. Isto pode muito bem pôr em causa o tão falado conceito de cidadania que há quem afirme “não chegar aos cidadãos; é um mundo à parte protagonizado pelos grandes países”34. interessa é como tentar encontrar uma agulha no palheiro. Não somos adivinhos”39. São precisos gabinetes especializados que “abranjam todas as regiões da Europa, não só para tirarmos o que nos interessa com particularidade como para fazermos comparações com outros nas mesmas circunstâncias”40. A Europa não chega às pessoas, pelo menos a grande maioria. “É preciso revigorar o conceito de Cidadania Europeia que tem e nascer dentro da própria Europa. Não pode ser apenas pela política de comunicação das instituições, que na sua maioria são nomeadas, com excepção do Parlamento Europeu, única ligação directa às pessoas. A(s) outra(s) europa(s) têm de chegar às pessoas porque actualmente a única que chega é a do dinheiro”41. Para alterar a situação reputa-se como indispensável “a criação de gabinetes, de cada instituição, especializados em notícias”42 que permitam a todos na generalidade, aos jornais e jornalistas em particular, “colmatar a necessidade que temos diariamente de saber bem o que se passa na Europa”43. Nota-se e sente-se “a falta da presença da Europa nos pequenos jornais”44. A falta de mais notícias “deve-se essencialmente a dois motivos: falta de espaço nos órgãos de comunicação social e falta de meios 30 Paulo Casaca, idem. 31 Duarte Freitas, idem. 32 Ana Cabo, idem. 33 Paulo Simões, idem. 34 Santos Narciso, idem. 35 José Lourenço, idem. Uma das soluções apontadas é “a criação de um gabinete de comunicação que, diariamente, filtre o que nos interessa para chegarmos aos sectores mais diferenciados da sociedade”35, apesar de, por exemplo, “a existência de um gabinete nos Açores da Câmara do Comércio se limitar a publicar um pequeno boletim de limitado alcance”36. Isto faz que com “muitas vezes se esgotem prazos dos programas e não aproveitemos os dinheiros disponibilizados. Os prejuízos são elevados e atrasam o desenvolvimento”37. Os responsáveis pelos jornais argumentam “que não têm recursos humanos suficientes para perder horas no labirinto da UE/on-line”38 já que os sítios têm muita informação e “procurar o que nos 36 Santos Narciso, idem. 37 José Lourenço, idem. 38 idem, ibidem. 39 Manuel Carlos, idem. 40 Paulo Simões, idem. 41 Santos Narciso, idem. 42 José Lourenço, idem. 43 Paulo Simões, idem. 44 idem, ibidem. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 251 A ESCASSA DIFUSÃO, NOS AÇORES, DAS NOTÍCIAS humanos para cobrir as questões europeias. Penso que há uma clara vontade dos profissionais açorianos em publicarem histórias europeias – em especial as que interessam à região – mas o facto de serem poucos e de, muitas vezes, a prioridade editorial ser de carácter mais local, dificulta muito o seu trabalho”45. É claro que, convém frisar, algumas dessas notícias dão conta do relacionamento internacional da UE com outras regiões ou agrupamentos do mundo e “caem” nas páginas internacionais, que não são aquelas, admitamos, as mais procuradas pelos cidadãos açorianos. O caminho “é a criação de mecanismos de contacto directos e não seminários esporádicos e inconsequentes. Se eles fazem a revista de imprensa dos nossos jornais já devem ter dado conta que se publica muito pouco”46. Esta questão da quantificação das notícias publicadas não é pacífica. Enquanto nos Açores as estatísticas, ainda que sem rigor científico e muito por amostragem simplificada, revelam que se publica pouco, há quem não concorde pelo facto de, no conjunto do país, “a revista de imprensa europeia detectar, em média, vinte notícias sobre a UE. A estas acrescem as da rádio e TV. E isto só dos órgãos nacionais. Outras sairão na imprensa local e regional”47. Revemos muito pouco a Europa nas inúmeras páginas de apenas quatro jornais de duas das nove ilhas. De facto os jornais açorianos, os principais, nas duas principais cidades – Angra do Heroísmo e Ponta Delgada –, publicam poucas notícias sobre a Europa. E nessas poucas incluem-se as crónicas e apontamentos dos eurodeputados açorianos. Numa pequena leitura das edições, entre 5 e 17 de Maio 2008, dos matutinos Açoriano Oriental e Correio dos Açores, ambos de Ponta Delgada (São Miguel) e o Diário Insular e A União, ambos de Angra do Heroísmo (Ilha Terceira) as noticias europeias são, no contexto global, quase inexistentes. Numa amostragem simplificada concluiu-se que em cerca de 1.600 páginas de jornal que publicaram cerca de 1.900 notícias apenas 71 diziam respeito à Europa. Do total daquelas páginas impressas, 170 foram colunas de opinião, 591 de publicidade/anúncios, 110 de desporto e 128 com informações de agenda. De registar, com largo realce e significado, que no Dia da Europa, 9 de Maio, foram publicadas apenas, e só, 9 notícias. Um dos jornais publicou 6, mas dois outros não publicaram nenhuma. Este deficit “não nos atinge apenas a nós é global”48 e a imprensa açoriana “trata melhor a Europa que outros países, e até positivamente”49, muito, talvez, pelo facto de “sermos um espaço territorial pequeno onde os contactos são mais próximos”50. Admite-se que o problema possa também ter raiz no facto de a Europa ter mais de meio milhar de regiões “o que pode estar a inviabilizar uma especificação da informação”51. No caso dos Açores e de outras Regiões Ultraperiféricas, que possuem especificidades particularmente grandes, pode estar a acontecer que “não esteja a ser dada grande atenção a esse facto”52. A CONFIRMAÇÃO DAS FALHAS DE COMUNICAÇÃO Tomando como referência o Tratado Reformador de Lisboa, a opinião praticamente unânime é a da falha de comunicação. “Não se trata de uma crise relativamente ao Tratado de Lisboa ou à Europa em geral. Trata-se de uma crise a nível de comunicação com os cidadãos. Explicar as vantagens da mudança aos eleitores, (…) é um grande desafio”53. Esta ideia acentua-se pelo facto de 45 Teresa Coutinho, idem. 46 Paulo Simões, idem. 47 Teresa Coutinho, idem. 48 Duarte Freitas, idem. 49 Paulo Casaca, idem. De salientar que, nesse mesmo período, a LUSA, Agência de Notícias de Portugal, que possui jornalistas permanentes junto das instituições europeias, disponibilizou cerca de 400 notícias da UE ou com ela relacionadas. Os jornais, e os meios de comunicação social são, na generalidade, clientes da agência e têm, por isso, disponível esse noticiário. 50 Duarte Freitas, idem. 51 Paulo Casaca, idem. 52 idem, ibidem. 53 Janez Jansa, primeiro-ministro esloveno, Agência Lusa, 24 de Junho de 2008. [251] EUROPEIAS 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 252 se “os cidadãos não entendem a política, é porque não lhes é explicada e, daí, a responsabilidade dos políticos (…) convidando-se países-membros a uma reflexão sobre a necessidade de uma maior aproximação à sociedade e de uma maior pedagogia face aos cidadãos para perceberem que são europeus (…)”54, e para lhes “provar os benefícios da UE”55. O próprio presidente da Comissão Europeia admite que “[o Tratado] não é um documento fácil de ler”56, sustentando a sua complexidade no facto de “um Estado quer uma excepção aqui, um outro uma cláusula acolá”57 sendo “um dos grandes desafios da política moderna passar por conseguir entusiasmar as pessoas e de lhes explicar as coisas difíceis, contra a agitação dos simplificadores, dos demagógicos e dos extremistas”58. Para corroborar esta tese da dificuldade de leitura dos documentos europeus há quem diga que o Tratado Reformador de Lisboa “aumenta o deficit democrático europeu e cria um quadro legal ainda mais complexo e confuso”59. [252] Parece-nos, pois, que existe uma sintomática e permanente falta de sintonia entre dirigentes europeus e cidadãos. Há também uma “classe” política que pretende ser “elite”60 e cai no erro de, na nossa opinião, parecer querer trocar valores civilizacionais por uma carreira choruda em viagens e ordenados iludindo os mais incautos quando por vezes falam com o que nos parece uma “falsa indignação” em nome dos cidadãos com o objectivo de “fazer entrar os povos na mundialização”61. O que também sustenta a nossa ideia é o facto de um político, com elevadas responsabilidades, considerar que “a aposta europeia só será ganha quando políticos e cidadãos falarem a mesma linguagem”62. Guias do Expresso, programas em rádios regionais, na televisão o “Mais Europa” (RTP) ou o “Eurorespostas” (SIC-Notícias). Porém, não têm sido suficientemente apelativos para podermos ver uma consciência de cidadania europeia, não diríamos já instalada, mas mais alargada. É que, torna-se fundamental dar a perceber a dimensão que a Europa já possui em termos territoriais, populacionais, económicos e, não menos importante, geoestrategicamente. “Fale-se às pessoas nas questões que têm implicações no seu dia a dia e no seu futuro e elas vão interessar-se. Agora se falarem no Tratado Reformador ele por si é intragável. Ninguém lhe liga”64. É preciso aumentar a vontade política da Europa em unidade de forma a mobilizar para os valores que o projecto europeu encerra. Caso contrário acontece, num referendo, a recusa, na França e na Holanda, em 2005, por mais de cinquenta por cento das suas populações, do projecto de Constituição da Europa e mais recentemente a Irlanda no referendo ao Tratado Reformador de Lisboa. Tem de haver uma explicação objectiva e transparente sobre o rumo da Europa, encargo esse que, politicamente, parece não ser claro porque “para avançar, teria 54 José Rojo, presidente do Senado Espanhol, idem. 55 Gerdi Verbeet, presidente da Câmara Alta do Parlamento holandês, idem. 56 Durão Barroso, Standard, jornal diário austríaco, 26 de Junho de 2008. 57 idem, ibidem. CONCLUINDO Não podemos dizer que nada se faz para melhorar a comunicação entre a UE, os cidadãos e, em particular, os jornalistas. Há tentativas, parecem-nos é casuísticas. As acções do Europe Direct, muitas das quais na Região, em particular junto das escolas, afigura-se-nos uma boa aposta ainda que, em especial nas ilhas pequenas, o sucesso da presença de jovens se meça pelo facto de “muitos dos alunos presentes sejam obrigados a frequentar as acções de divulgação”63. Há, ou houve, em Portugal parcerias do Parlamento Europeu com os jornais, nomeadamente as fichas do Diário de Notícias, os 58 idem, ibidem. 59 Vaclav Klaus, presidente da República Checa, El País, jornal diário espanhol, 25 de Junho de 2008. 60 cf. Noam Chomsky, Duas Horas de Lucidez, entrevistas de Denis Robert e Weronika Zarachowicz, pág. 49, Editorial Inquérito, 2002. 61 Philippe Moureau Defarges, Para onde vai a Europa, pág. 11, Instituto Piaget, 2007. 62 Marios Garoyian, presidente do parlamento do Chipre, Agência Lusa, 20 de Junho de 2008. 63 Alfredo Borba, idem. 64 Paulo Casaca, idem. 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 253 A ESCASSA DIFUSÃO, NOS AÇORES, DAS NOTÍCIAS de contornar os povos; mas o que seria uma Europa unificada sem adesão democrática?”65. A resposta é uma construção nas costas dos povos europeus. do a agenda de tempos livres de líderes políticos, do que os debates cívicos e políticos sobre a relação da Europa com a circunstância que a envolve de maus augúrios e de más notícias”71. Sentimos que o Tratado Reformador de Lisboa foi mal explicado aos europeus. Daí que os diferentes governos tenham optado pela sua aprovação nos respectivos parlamentos. Houve, sem dúvida, uma enorme falha de comunicação. O que une então os europeus? A moeda euro? É muito pouco. Faria bem a toda a Europa um regresso ao “ethos” no sentido do habitar [espaço geográfico], dos hábitos e costumes harmonizando o possível e tornando compreensível os individuais de cada um, uma vez que a identidade, na nossa opinião, é um processo em permanente construção. Finalmente a exaltação dos valores [individuais, comuns e universais]. “A Europa já não é excepcional”72 e “O mundo já não pertence à Europa. (…) Neste início de século XXI, estes outros continentes, estas outras culturas acedem plenamente à cena mundial”73, são reflexões a ter em elevada consideração que poderão determinar a reorientação das políticas europeias e o seu posicionamento no xadrez mundial. Por outro lado, paralelamente ao facto de não se investir mais nos meios de comunicação social para uma ponte em direcção à cidadania europeia, cremos não haver uma aposta séria e convicta nos jovens através dos curricula escolares. A realização de conferências, seminários e congressos sobre temáticas europeias tem pouco eco junto das populações. Restringe-se a uma elite66. Os livros são caros e pouco acessíveis67. Não é despiciendo sublinhar que muitas das notícias que são veiculadas pelos órgãos de comunicação social regional revelando iniciativas governamentais omitem o facto de muitas delas terem o suporte financeiro europeu, o que é, sublinhe-se, grave. Também por isso, se calhar, “as pessoas não se interessam ou não relacionam muitas vezes as notícias com a UE”68. Por outro lado o facto dos políticos locais e nacionais aproveitarem para “quando sucede algo de mau a causadora ser a UE e quando existe uma boa medida ou grande obra, ela passa logo a ser nacional, regional ou local”69. O que falta é colocar a Europa no centro das preocupações, positivas, dos cidadãos dos diversos países, com uma política de comunicação mais simples, aberta e compreensível o que, por certo, a tornaria mais eficaz. 65 Philippe Moureau Defarges, idem. 66 cf._, Cidadania e Construção Europeia, Museu da Presidência da República e Ideias e Rumos, 2005. 67 cf., António Covas, A Governança Europeia – A política europeia no limiar de uma nova revisão dos tratados, Edições Colibri, 2007. Talvez com maior verdade, transparência e objectividade nas notícias o número delas sobre a Europa pudesse ser muito maior. Sendo a televisão o mais difundido dos meios de comunicação social, não cumpre cabalmente o seu papel de informação. “A televisão inverte a evolução do sensível em inteligível e converte-o em «ictu oculi», no regresso ao puro e simples acto de ver. A televisão produz imagens e anula os conceitos, e deste modo atrofia a nossa capacidade de abstracção e com ela toda a nossa capacidade de entender”70. Talvez por isso mesmo “Os noticiários parecem mais empenhados em abordar os debates sobre as mudanças dos modelos de comportamento social, ou sobre os vários circos de entretenimento dos tempos livres, incluin- 68 Teresa Coutinho, idem. 69 Ana Cabo, idem. 70 Joel Frederico da Silveira, “A Comunicação Política e a Televisão: A democracia do Público”, comunicação compilada em As Ciências da Comunicação na Viragem do Século, pág. 737, Editorial Vega, 2002. 71 Adriano Moreira, “A Fragilidade Europeia”, Diário de Notícias, 24 de Junho de 2008. 72 Philippe Moureau Defarges, Para Onde vai a Europa, pág. 12, Instituto Piaget, 2007. 73 idem, pág. 13, ibidem. [253] EUROPEIAS 16.OS.JoãoASilva(pb) 6/17/09 11:07 AM Page 254 BIBLIOGRAFIA: _As Ciências da Comunicação na Viragem do Século, Editorial Vega, 2002. LAIR, Ribeiro, Comunicação Global – a magia da influência, Pergaminho, 1998. _Cidadania e Construção Europeia, Museu da Presidência da República e Ideias e Rumos, 2005. 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Correio dos Açores (Ponta Delgada) – edições entre 5 e 17 de Maio de 2008. Diário de Notícias, 21 de Novembro de 2007. ENTREVISTAS Alfredo Borba – Director do Departamento de Ciências Agrárias da Universidade dos Açores e responsável pelo “Europ Direct” nos Açores. Duarte Freitas – Eurodeputado açoriano, PSD/Açores, 2008. José Lourenço – Director do Diário Insular, 2008. Diário Insular (Angra do Heroísmo) – edições entre 5 e 17 de Maio de 2008. El País – Jornal diário da Espanha, 2008. LUSA, Agência de Notícias de Portugal, 2008. Standard – Jornal diário da Áustria, 2008. Manuel Carlos – Director de A União, 2008. [254] OBRAS CONSULTADAS Paulo Casaca – Eurodeputado açoriano, PS/Açores, 2008. INFOGRAFIA – ACESSOS À UNIÃO EUROPEIA _Em contacto com a União Europeia – Faça as suas perguntas dê a sua opinião, UE, 2007. Paulo Simões – Director do Açoriano Oriental, 2008. http://europa.eu/geninfo/info/guide/index_pt.htm FONTAINE, Pascal, A Europa em 12 Lições, UE, 2003. 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