Família e trabalho escravo. Sociedade e poder em São José dos Pinhais no século XIX. Luiz Adriano Gonçalves Borges* São José dos Pinhais ficava nas proximidades do famoso caminho do Viamão, aberto em 1731, que ligava o extremo Sul ao Norte do Brasil, com o intuito de comerciar gado. Como este era um percurso muito demorado e os tropeiros enfrentavam muitas dificuldades surgiram a necessidade de lugares para se recuperarem e inúmeras vilas foram sendo fundadas e desenvolvidas ao longo do caminho. São José foi criada neste contexto e ainda no final do século XIX manterá campos de invernadas, destinado ao pasto dos animais de passagem. Com a decadência do tropeirismo, a economia de todo o Paraná passa a se basear na extração da erva-mate, arbusto nativo da região. A vila de São José dos Pinhais, em meados do século XIX, além da erva-mate, possuía uma agricultura voltada à subsistência, pouco ligada ao comércio exportador, característica marcante da sociedade paranaense. Porém, nem a coleta da erva nem a agricultura fez de São José uma vila economicamente forte. A pobreza era a marca maior da sociedade, e mesmo a pretensa elite só podia ser considerada como tal, se levadas em consideração parâmetros locais. 1 Uma região bastante empobrecida, voltada à agricultura e com um tímido número de escravos, eis São José dos Pinhais no crepúsculo do século XIX. Mas quem eram as pessoas que formavam esta sociedade? Como realizavam suas estratégias de sobrevivência? Qual a relação entre livres e escravos em uma sociedade fracamente escravista? * Mestrando - UFPR A questão do localismo na fundamentação hierárquica de um certa região é debatida em Mattos, Hebe. Ao sul da história. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1987. 1 1 É bem conhecida pela historiografia a situação de uma economia não-exportadora, fronteiriça e, portanto, com números reduzidos de escravos. Entretanto, muito ainda deve ser estudado, principalmente no sentido da relação entre família livre e escravidão. Neste presente estudo, pretendemos avançar na compreenção do papel do trabalho escravo nas estratégias de reprodução dos grupos familiares na região. Para tanto, devemos primeiramente nos inteirar das condições da presença escrava em São José dos Pinhais do século XIX. Fato que salta à vista para quem procura se informar acerca da escravidão no Paraná no século XIX é o reduzido número de cativos. A região por nós estudada, por possuir um caráter secundário na economia paranaense, apresenta números ainda mais inferiores. Por exemplo, para o ano de 1824, a então freguesia teve o maior índice dos proprietários com cinco ou menos cativos de todo o Paraná (85,5%)2. No século XIX muitos grandes e médios proprietários tiveram seus plantéis diminuídos (por venda ou impossibilidade de repor as perdas). Cacilda Machado, em sua tese sobre a hierarquia em São José dos Pinhais em fins do século XVIII e início do século XIX, propõe uma hipótese: “se a posse de escravos pode ser interpretada como indicador de riqueza e poder, diria que o ápice da pirâmida social de São José de fato tornou-se menos rico, porém também mais estreito, ou mais seleto. Disso a meu ver resultou um locus social mais hierarquizado do que provavelmente jamais fora.”3 Hebe Mattos percebeu que, como a condição de donos de terras era comum à categoria dos grandes proprietários, esse elemento por si só não era capaz de diferenciá-los socialmente, o que apenas a dimensão da exploração agrícola e dos plantéis de escravos podiam fazer.4 E, quanto menor o número de cativos em uma região, mais marcada ficava a hierarquia dos homens livres e, sobretudo, tornavam-se mais claras as diferenças no interior do grupo escravista. É deste modo que Machado diz que se a “escravidão torna a posse de cativos elemento crucial de diferenciação social, a hierarquização dos livres seria ainda mais marcante em áreas ou períodos em que os escravos formassem um grupo com pouca representatividade percentual.”5 Neste sentido, em trabalho de conclusão de curso, já haviamos notado uma diferenciação social. Olhando para os valores de montes-mores presente nos inventários no intervalo de 1852 a 1886, percebemos um diminuição na sua média, constatando o 2 Pena, Eduardo Espiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999 (dissertação de mestrado). UFPR. Apud: Machado, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). Tese de Doutorado. RJ: 2006, UFPR/ IFCS, (mimeo). 3 Cacilda, Machado, op. Cit., p. 74. 4 Mattos, Hebe. Ao sul da história. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1987, p. 73. 5 Machado, Cacilda. Op. Cit., p. 77. 2 empobrecimento dos que possuíam bens e uma grande polarização na sociedade saojoseense. Os mais ricos conseguiam se manter nos altos estratos, ao passo de que as pessoas que se encontravam nas faixas intermediárias de fortunas foram empobrecendo e descendo para a faixa menor.6 Como sabemos, os agricultores pobres no Paraná utilizavam-se do trabalho escravo muito raramente, produzindo para sua própria subsistência. O cativo era um fator de riqueza na sociedade escravista brasileira, e para pequenos produtores essa mão-de-obra significava um acréscimo na força de trabalho, com uma conseqüente elevação do seu padrão de vida, mas a base continuava a ser familiar. Já para famílias mais abastadas, o cativo sinalizava que os membros do seu grupo não necessitavam utilizavar a força dos seus braços em suas propriedades. Essa era uma particularidade que configuravam as elites do período escravista. Tabela 1. Valor médio de escravos por período Período 1852-1863 1864-1874 1875-1885 Valor 2:780$000 66:990$000 87:105$000 Quantidade 7 99 142 Valor médio p/ 397$143 676$667 613$415 escravo Fonte: Inventários post-mortem São José dos Pinhais. 1852-1885 Na tabela acima podemos perceber a variação de preços dos escravos ao longo do período estudado em São José dos Pinhais.7 Deve-se levar em consideração para todo o período que quando se apresenta o valor auferido à um escravo nos inventários, muitas vezes os cativos estavam já velhos ou inutilizados, colaborando assim, para a queda no preço médio. Isso ocorre, por exemplo, de maneira mais visível, no primeiro período da tabela, 1852 1863. É mais visível pois, por ser pouco o número de escravos (somente sete), podemos facilmente notar a diferença de valor. No inventário de Antonio da Cunha Machado, Miguel e Justa, escravos com idade de 55 e 58 respectivamente, não passam de 100$000 cada um8, enquanto que Joaquim, esccravo de Ana Joaquina dos Santos, com 44 anos, é avaliado por 700$000 no inventário. A diferença entre a avaliação do dois primeiros e o último é de três 6 Borges, Luiz A. G. Estratégias de vida e de morte: ritos fúnebres e a reprodução social em São José dos Pinhais, século XIX. Curitiba, 2006, Monografia de conclusão de curso - UFPR (mimeo). Divisão em faixas de fortunas: Menor que 2:000$000; de 2:000$000 a 4:999$999; de 5:000$000 a 9:999$999; Igual ou maior que 10:000$000. 7 Originalmente em Borges, Luiz. Op. Cit., P. 38 8 Inventário de Antonio da Cunha Machado. Maça 1 procuração 1, caixa 6000. II Cartório da Vara Cível de São José dos Pinhais. 3 anos, assim não pode se falar em aumento de preço significativo. Quer dizer, os escravos valiam de acordo com a amplitude de sua vida: além de estar perto da morte, os escravos acima de 50 anos já não tinham a mesma força para trabalhar do que os mais jovens. Para o período, também se deve estar ciente do impacto que o trabalho cativo sofreu com o fim do tráfico negreiro em 1850, com a Lei Eusébio de Quierós. Sem a importação de africanos, as regiões mais distantes dos grandes centros produtores como São Paulo, Rio de Janeiro e regiões do Nordeste, viram o valor dos escravos aumentarem vertiginosamente. Entretanto, no período seguinte, de 1864 a 1874, há um aumento muito expressivo no número de cativos no interior da vila de São José, acompanhando a expansão da produção agrícola na região. A maioria dos 83 inventários que se utilizavam do trabalho escravo possuía terrenos voltados para o cultivo da erva-mate, produto que estava em expansão no Paraná e que levou a um incremento no número de daquele tipo de trabalho nas unidades rurais. Segue-se um aumento no valor desses trabalhadores, impactado diretamente pelo fim do tráfico e a expansão cafeeira em São Paulo. No decênio seguinte, 1875 a 1885, há um aumento no número de escravos seguido pelo aumento no número de inventariados. São 191 proprietários com um total de 142 escravos, representando 1,3 cativos para cada inventariado. Entre os que se encontram na maior faixa de fortuna (maior que 10:000$ (dez contos), é constante a presença de escravo. Entre os 23 inventariados que se encontram nessa faixa, somente em dois casos não há referência direta a cativos. Para todas as faixas, há um total de 104 escravos o que resulta em uma média de 4,5 por proprietário. O número inferior de escravos, se relacionado com outras regiões, demonstra a impossibilidade desses lavradores de competirem diretamente com as localidades mais fortemente relacionadas com o mercado externo. Ainda, a ligeira queda do seu valor no decênio de 1875 a 1885, demonstra o impacto sofrido pela região com o fim do tráfico de cativos para outras regiões. Sem a possibilidade de venda de cativos para as regiões cafeeiras em São Paulo, eles começam a perder valor, pois as unidades agrícolas no Paraná não necessitavam de um grande plantel de trabalhadores para funcionar. A análise da estrutura da posse de escravos em São José dos Pinhais é conduzida aqui através dos registros presentes nos inventários dos anos 1852 a 1886. Decidimos dividir esse período em dois, um que vai de 1852 a 1871 e outro que vai de 1872 a 1886. Operamos dessa maneira devido à Lei do Ventre Livre de maio de 1871, para podermos perceber como foi afetado a estrutura escravista na região após esta lei. 4 No primeiro período, de 1852 a 1871, temos um total de 59 escravos, 66% eram homens e 34 eram mulheres. Aqui já podemos notar uma diferenciação dos números encontrados para as primeiras décadas do século XIX para a região paranaense, onde é clara um equilíbrio dos sexos entre os escravos.9 Outra diferenciação é com relação ao sexo dos proprietários. Nove deles eram mulheres e 11 eram homens, quase que uma igualdade. A média de posse de escravos fica em torno de 3 escravos por proprietário. A idade dos escravos (1852-1871) A idade dos escravos (1872-1886) 0 – 15 = 16 0 – 15 = 48 16 – 50 = 31 16 – 50 = 114 51 e + = 2 51 e + = 6 No segundo período, de 1872 a 1886, há um total de 206 escravos, sendo 94 mulheres e 112 homens, com um pouco mais de igualdade entre os sexos. Dentre os 68 proprietários, 29 eram mulheres e 38 eram homens. Aqui a média de posse de escravos por proprietário também fica em torno de 3. Da mesma forma que Horácio Gutierréz, notou para a região parananese nas primeiras três décadas do século XIX, podemos perceber uma clara vantagem no número de escravos em idade produtiva em São José dos Pinhais. Segundo Gutierréz, o Paraná como um todo estava sofrendo um movimento de queda no patamar de cativos crianças e idosos. Isso se deveu, para o autor, à diminuição relativa dos grandes proprietários, que possuíam um maior número de crianças escravas, devido a facilidade da reprodução de cativos no interior de grandes plantéis. O autor demonstra o perfil jovem da população escrava no Paraná no início do século XIX (que, através dos nossos números, podemos estender para a segunda metade do oitocentos) argumentando que isso se deveu em grande parte à existência de uma natalidade elevada entre os cativos. O equilíbrio entre os sexos teria favorecido a sua reprodução natural no Paraná.10 Esta seria então a estrutura de escravos que se pode encontrar através dos inventários post-mortem em São José dos Pinhais, na segunda metade do século XIX. Uma questão pertinente pode ser levantada através destes documentos, mais especificamente nos 9 Gutierrez, Horácio. Senhores e escravos no Paraná (1800-1830). São Paulo, 1986, Dissertação de mestrado – USP (mimeo), P. 105. 10 Gutiérrez, Horácio. Op. cit. Cap. 3 5 testamentos, que vinham anexos: Qual o papel do trabalho escravo nas estratégias de reprodução social de grupos familiares em São José dos Pinhais? Na sociedade escravista brasileira, o elemento escravo sinalizava um importante componente, que vinha a somar a outros, na busca por uma estratégia de reprodução social familiar. Isto é, um conjunto de ações propagadas pelo grupo familiar, na tentativa de se manter ou ascender na hierarquia social local. Em trabalho anterior já demonstrei que os ritos fúnebres sinalizavam este tipo de estratégia, num sentido não-mercantil, e que diversos grupos se utilizivam deles.11 Aqui pretendemos analisar a questão de concessão de alforrias em testamentos, já como uma prerrogativa de uma ação paternalista, que também pode ser compreendida como uma atitude visando a reprodução social. Essa seria uma parte do que constituirá a minha dissertação em andamento, que tem por objetivo justamente analisar as estratégias de reprodução familiar em São José dos Pinhais no século XIX. Nela, analisando o caso de uma família, os Mendes de Sá, pretendemos perceber melhor as relações e a estratificação sociais numa vila paranaense do oitocentos. A prática de alforria é um prato cheio para perceber as relações entre os diferentes grupos sociais de uma certa região. Muitos autores tem analisado o conceito de paternalismo nas sociedades escravistas, e mostrando que ele pode diferir muito de uma região para outra. Aqui podemos visualizar brevemente algumas importantes colaborações para o assunto. Em uma análise muito perspicaz, Sidney Chalhoub esclarece qual o sentido de paternalismo em Helena, de Machado de Assis, que viria a caracterizar “uma definição convencional” do termo, segundo o próprio Chalhoub: “trata-se de uma política de domínio na qual a vontade senhorial é inviolável, e na qual os trabalhadores e os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em relação a essa vontade soberana.” Neste sentido, o paternalismo seria apenas uma autodescrição da ideologia senhorial, um mundo idealizado pelos senhores onde não havia “antagonismos sociais significativos, já que os dependentes avaliam sua condição apenas na verticalidade, isto é, somente a partir dos valores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores, sendo inviável o surgimento das solidariedades horizontais características de uma sociedade de classes.” 12 Entretanto, Eugene Genovese percebe a política de concessões de senhores de escravos no sul dos Estado Unidos como uma necessidade para um controle mais eficaz da escravaria em um mundo pautado pelos antagonismos sociais. Uma ação “vinda de cima” mas que podia ser interpretada diferentemente por senhores e escravos. Os primeiros a viam como 11 12 Borges, Luiz. Op. Cit. Chalhoub, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 47 6 um estratégia de controle social, os cativos a viam como o resultado da negociação cotidiana.13 Como aponta Rebecca Scott, subordinação não significa necessariamente passividade. Sem desconsiderar a opressão, os escravos tomavam iniciativas no sentido de buscar sistemas alternativos de crenças e de valores.14 A compra da sua liberdade por um escravo pode ser apontada como um exemplo. Entretanto, mesmo neste sentido, devemos levar em consideração a especificadade da ação paternalista no Brasil escravista. George Reid Andrews argumenta que as leis brasileiras no que concerne à escravidão eram menos progressivas do que as leis coloniais espanholas. Ele cita o exemplo de que enquanto as leis espanholas garantiam o direito ao escravo de comprar sua liberdade, as leis portuguesas e brasileiras não reconheciam tal direito. Não devemos esquecer que a prática dos escravos de comprar sua própria liberdade existiu no Brasil, e que a maioria das manumissões eram compradas, ao invés de ganhas. Mas, Andrews chama a atenção de que diferentemente das colonias espanholas, no Brasil essas concessões somente ocorriam com o consentimento do proprietário. Deste modo, a lei brasileira e a prática de concessão de alforrias, resultou muito mais de negociações entre senhores e escravos, com pouquissíma intervenção de oficiais, do que de atos de generosidade por parte dos proprietários. Essas concessões foram raramente feitas espontaneamente e pela vontade própria do senhor. Antes, elas representavam o fim de longos esforços por parte dos escravos, muitas vezes durante anos, para pressionar e persuardir seus proprietários a lhes dar a liberdade.15 Claro que em cada região, seja sul dos Estados Unidos, Rio de Janeiro ou São Paulo, as negociações tomava formas diversas. Deste modo, a compreenção dessas ações a nível local, nos ajuda a afastar a poeira que persiste em esconder as relações sociais do século XIX. Stuart Schwartz diz que a historiografia ainda tem que prestar mais atenção à questão da idade dos libertos no Brasil. Uma crítica comum ao sistema de alforrias é que muitos dos escravos que obtém sua liberdade são velhos ou incapazes. Deste modo, os senhores estariam libertando seus escravos não produtivos com o intuito de evitar a responsabilidade de alimentá-los e vestí-los Muitos escravos tem suas liberdades com condicionais, com a 13 Genovese, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e terra; Brasiliense, 1987, p. 78, apud: Lima, Adriano. Trajetórias de crioulos. Um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no termo da vial de Curitiba (c. 1760 – c.1830). São Paulo, 2001, Dissertação de mestrado – UFPR (mimeo). 14 Scott, Rebecca J. Exploring the meaning of freedom: Postemancipation societies in comparative perspective. The Hispanic American Historical Review. Vol. 68, no. 3 (Aug. 1988), p. 407-428. 15 Andrews, George Reid. Afro-Latin America (1800-2000). New York: Oxford University Press, 2004. Ps. 36-37; 42 7 obrigação de se manterem no serviço até a morte do senhor ou continuar a trabalhar para os filhos do senhor.16 Adriano Lima aponta três formas diversas das alforrias: onerosas, gratuítas e condicionais. A forma onerosa se caracteriza pelo pagamento, em dinheiro ou em espécie, por parte do escravo ao seu senhor; aforrias gratuítas seriam aquelas em que o senhor libertava seus escravo sem qualquer ônus para este e; as condicionais, que como cita Schwartz, ocorreriam no caso do escravo ser liberto mediante uma cláusula previamente acordada entre as partes.17 Para diversas regiões no Paraná a maneira mais utilizada de manumissão foi a condicional. Porém, com relação a esta característica, Katia Mattoso diz que “as cartas que possuem cláusulas a tempo e condição suspensivas poderiam ser incluídas no rol das alforrias pagas. Com efeito, podemos considerar a condição imposta à liberdade do escravo com uma espécie de pagamento.” E a autora vai de acordo com a afirmação de Schwartz acerca da idade dos libertos: “A condição de ‘ser livre após o falecimento do senhor’ cria logo a imagem de escravos que são libertados no fim de sua vida, quando as faculdades físicas e mentais eram bastante diminuídas.”18 Quando se pensa em estudar as alforrias uma primeira fonte que vem à mente para o estudioso da escravidão no Brasil são as cartas de alforria. Entretanto, aqui utilizamos os testamentos pois pensamos ser uma fonte mais propícia para perceber ações de cunho paternalista. Schwartz chama a atenção para este forma de manumissão que, para a região que estudou, teve um peso considerável e deve ser melhor aprofundada. E também, diz que as análises quantitativas por si só não podem revelar os motivos de senhores e escravos neste processo. Para São José dos Pinhais, encontrei 8 testadores que deixavam escravos alforriados entre os anos 1852 a 1886. Apesar de não se tratar de uma gama muito grande de documentos, podemos analisar as informações quanlitativamente juntamente com os resultados da historiografia. Neste conjunto de documentos, cinco testadores deixam seus escravos libertos com condições, três sem condição alguma, e ainda um testador deixa uma escrava liberta sem e outra com condição. Schwartz acredita que a modalidade das manumissões esteve diretamente determinada pela associação entre patriarcalismo e os interesses econômicos do 16 Schwartz, Stuart. The manumission of slaves in colonial Brazil: Bahia, 1684 – 1745. The Hispanic American Historical Review. Vol. 54, no. 4. (Nov. 1974). P. 619 17 Lima, Adriano. Op. Cit.. P. 86 18 Mattoso, Katia M. De Queirós. A propósito das cartas de alforria – Bahia, 1779-1850. Anais de História, Assis, IV: 23-52, 1972. Apud Lima, Adriano. Op. Cit. 8 senhor que alforriava. Quando se trata de liberdades condicionais, o próprio escravo estaria repondo seu valor no patrimônio familiar de seu senhor na medida em que o serviria até sua morte.19 Com relação as gratuítas o senhor é que arcava com os gastos, pois este retirava de sua terça o valor do escravo libertado, sem influir na herança. Este último caso é explicitado no testamento de Maria da Rocha, que têm consciência disso e chega dizê-lo em testamento. Os que deixam libertos com condição beneficiaram parentes próximos: três deixaram cativos para seu cônjuge; um para uma sobrinha; e outro à uma irmã. Dois dos testadores que deixaram escravos alforriados sem condição alguma citaram uma provável razão da concessão: “pelos bons serviços” prestados ao senhor. O Tenente Candido Mendes de Sá chega a citar “o amor filial” que tem pelo escravo. Schwartz diz que os elos de afeição, amor, ou parentesco consangüíneo ou fictício tiveram um papel fundamental nos processos de alforrias. Uma questão bastante discutida, mas ainda longe de ser concluída, se refere às características inerente ao proprietário que alforriava escravos. A busca pela resposta nos ajuda a compreender melhor o mundo econômico e social aqui estudado. Lyman Johnson percebeu para Buenos Aires que os escravos libertos por homens eram normalmente originados por compra, enquanto que as mulheres libertavam cativos recebidos de herança ou nascidos na sua propriedade. Essa característica é difícil de perceber através das fontes que dispomos, mas elucida o papel social de cada gênero no sistema escravista. Como bem aponta Johnson, mulheres brancas de famílias escravistas eram inibidas de participar de maneira complexa da economia por tabus presentes em uma sociedade patriarcal. Entretanto, para mulheres solterias ou viúvas que cuidavam de suas próprias propriedades, os ganhos de seus escravos eram normalmente a maior fonte de renda e, deste modo, elas podiam evitar a necessidade de sacrificar os status social da sua família através da direta participação na economia.20 Dentre os testadores que deixavam escravos alforriados sem condição em São José dos Pinhais na segunda metade do século XIX, três são homens e um é mulher. A mulher é viúva, encaixando na afirmação acima. Entre os homens, um é o padre Francisco de Paula Prestes, um era o tenente da Guarda Nacional Candido Mendes de Sá, e outro era o Major Luis Antonio de Sá Ribas. Cada um deles, ocupava posições importantes na sociedade daquele período e, fato interessante, eram todos solteiros. O padre possuía um filho, que na época do 19 Lima, Adriano. Op. Cit., p. 102 Johnson, Lyman L. Manumission in Colonial Buenos Aires, 1776-1810. The Hispanic American Historical Review. Vol. 68, no. 3 (Aug. 1988), P. 11 20 9 seu testamento já era bem estabelecido na sociedade local como Capitão e, portanto, sua disposição testamentária não afetaria o cabedal do filho.21 O major e o tenente, eram solteiros e membros da mesma importante família da região, os Mendes de Sá. Mesmo assim, eles ocupavam uma posição economicamente, digamos, secundária dentro do grupo familiar e por isso não afetavam a fortuna familiar. Mas não quer dizer que eles não desempenhassem um papel no cálculo senhorial. Antonio Carlos Jucá de Sampaio, estudando as hierarquias sociais no Rio de Janeiro colonial, percebeu a importância de uma proporção considerável de solteiros a cada geração dentro do grupo familiar. Para o autor, as motivações para isso fica evidente para o caso de famílias da elite agrária, pois o baixo potencial econômico da atividade agrícola, o endividamento de seus membros e a divisão dos bens herdados desestimulavam o casamento de todos os filhos. Entre as famílias que buscavam ascenção social, uma das práticas mais comums era a busca por casamentos mais vantajosos para seus filhos, mas não para todos, pois eles poderiam levar ao enfraquecimento da riqueza familiar pela divisão dos bens.22 A família que estudamos, os Mendes de Sá , buscava a ascensão social na sociedade de São José dos Pinhais e vizinhanças, como fica evidenciada pelas suas ações. O fundador do grupo, Manoel Mendes Leitão, possuía o título honorífico de Comendador, e se casa com Ana Maria de Sá Ribas, que fazia parte de uma família importante em Curitiba.23 Entre os membros da família Mendes de Sá, encontramos também o padre Matias Carneiro Mendes de Sá. É sabido que cargos eclesiásticos possibilitavam uma maior representatividade da família no Brasil do século XIX, pois o padre podia dispor de uma rede de influências economica e politicamente favoráveis. O padre ainda possuía duas irmãs solteiras ou viúvas. Assim, no seio desta família encontramos membros diversificados socialmente, e além disso percebendo os seus montes-mores presente nos economicamente. A diferenciação hierárquica dentro do inventários, também diferentes grupo familiar era comum em sociedades capazes de produzir fortíssimas hierarquizações, como a brasileira. 21 Inventário de Francisco de Paula Prestes. Cx 6001, proc. Nº 14, Maço 2. II Cartório da Vara Cível de São José dos Pinhais; Inventário de Francisco de Paula Prestes Branco. Cx. 6005, proc. 15 maço 6. II Cartório da Vara Cível de São José dos Pinhais. 22 Sampaio, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 – c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 297 23 Testamento de Candido Mendes de Sá. Maço 2, procuração 11, caixa 6001. II Cartório da Vara Cível de São José dos Pinhais; Testamento de Luis Antonio de Sá Ribas. Maço 2, procuração 33, caixa 6002. II Cartório da Vara cível de São José dos Pinhais. A importância de família Sá Ribas pode ser atestado pelo testamento de um irmão de Ana Maria, o major Luis Antonio de Sá Ribas, que ocupa um posto superior ao de seu pai, que foi capitão. Fato este que já denota a ascensão deste grupo. 10 Deste modo, podemos perceber a configuração de estratégias familiares, onde o número de filhos solteiros fazia parte do cálculo do patriarca, que queria concentrar os bens existentes nas mãos do menor número possível de filhos. Em uma sociedade escravista, o chefe do grupo familiar se utilizava de estratégias para a manutenção do seu plantel de escravos. A esperança da liberdade pelo cativo era “moedas sabiamente administradas pelos senhores, no reforço de sua ascendência moral sobre os cativos.”24 Porém, membros das classes mais altas em regiões pouco ligadas à economia exportadora, como São José dos Pinhais, não possuíam tantos escravos e a alforria poderia comprometer a reprodução social. Assim, esses patriarcas contavam com esse tipo de concessão vindas de um membro não tão importante economicamente no grupo familiar, para não comprometer o acúmulo de capital. Dessa maneira, o grupo como um todo participava dessa ação estratégica paternalista, mas sem a participação direta dos elos mais fortes na estrutura hierárquica familiar. Assim, fica claro que a concessão de alforrias era uma ação paternalista, muitas vezes fruto de ações estratégicas. É claro que não podemos auferir um grau de clareza nessas ações, mas como demonstramos acima, aquele tipo de ação era fruto de negociações na arena social e serviam como um lenitivo para o sistema escravista local; dava esperença àqueles que estavam sob o jugo da escravidão. Não era uma ação, por assim dizer, lucrativa por parte do proprietário, mas fazia parte do cálculo senhorial. A manutenção do plantél de escravos, como um dos indicadores e geradores de riqueza, tendo em vista a reprodução do grupo familiar na sociedade, perpassava àreas que se mostram algumas vezes obscuras para nós. E é somente através da combinação de estudos quantitatitivos e qualitativos a nível local, que estas sombras podem ser paulatinamente afastadas. Mattos, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da Liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 190. 11