IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO
ISBN 987-85-86107-17-7
PELOS
TRILHOS
Paisagens Ferroviárias de Curitiba
DAYANA Z. CORDOVA
ALINE IUBEL
FABIANO STOIEV
LECO DE SOUZA
ISBN 987-85-86107-17-7
PELOS TRILHOS
Paisagens Ferroviárias de Curitiba
ISBN 987-85-86107-17-7
ISBN 987-85-86107-17-7
ALINE IUBEL
DAYANA ZDEBSKY DE CORDOVA
FABIANO STOIEV
LECO DE SOUZA
PELOS TRILHOS
Paisagens Ferroviárias de Curitiba
FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA
CURITIBA
2010
ISBN 987-85-86107-17-7
FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
C796 Cordova, Dayana Zdebsky de , coord.
Pelos trilhos: paisagens ferroviárias de Curitiba /
coordenação por Dayana Zdebsky de Cordova.
___ Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba,
2010.
172 p. : il. (Identificação & registro)
Projeto aprovado pelo Fundo Municipal de Cultura
para o Edital Paisagem Ferroviária da Fundação
Cultural de Curitiba.
1. Ferrovias – Ramais - Paisagem cultural Curitiba.
2. Urbanização – Ferrovias – História – Curitiba.
3. Patrimônio Cultural – Ferrovias – Curitiba. I. Título.
CDD (22ª ed.): 363.690981
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Elizabeth Wielewski Palhares – CRB 9
São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro
e um site (www.pelostrilhos.net). Embora o site enfatize, num primeiro plano, as
produções imagéticas do projeto (fotografias e vídeos), site e livro foram construídos
em processo de relação quanto às suas estruturas. Ambos caminham pelos mesmos
trajetos, circuitos, conjuntos, lugares e não lugares. Embora com ênfases diferentes,
são complementares. Sugerimos a visita a ambos os materiais. No site é possível
acessar informações detalhadas sobre os elementos mencionados no livro e aquelas
que escapam à mídia impressa.
ISBN 987-85-86107-17-7
A P R E S E N TA Ç Ã O
Em Curitiba, a Lei do Incentivo à Cultura foi desde sua implantação, em 1993,
uma importante ferramenta para a produção cultural na cidade. Nestas duas últimas
décadas, centenas de projetos foram viabilizados, contemplando desde espetáculos
teatrais e musicais, filmes, livros, pesquisas, exposições, dentre outras manifestações que mostram a diversidade e a riqueza da cultura local.
Na área do Patrimônio Cultural, o Fundo Municipal tem propiciado a realização
de pesquisas e inventários de bens materiais e da cultura imaterial, possibilitando a
difusão e a apropriação do conhecimento. Nesse aspecto, ressalta-se a importância
do primeiro edital de Identificação & Registro, lançado em 2009, destinado a inventariar a Paisagem Ferroviária de Curitiba, temática das mais importantes, pois ao
longo dos trilhos do trem a cidade cresceu desde o final dos Oitocentos, direcionando
técnica e socialmente sua urbanização.
O lançamento deste edital posiciona a Fundação Cultural nas mais recentes
discussões sobre o patrimônio, e reafirma seu papel na proteção, no estudo e na difusão do conhecimento da memória e da história curitibana, pois o tema das paisagens
culturais tem sido discutido em congressos, estudos e cartas patrimoniais. Está na
pauta de diversos órgãos de pesquisa e preservação.
O resultado deste edital se encontra nesta publicação, no texto Pelos trilhos:
paisagens ferroviárias de Curitiba, escrito pela equipe que desenvolveu o projeto
selecionado no edital. Durante oito meses, dois ramais ferroviários foram totalmente
esquadrinhados e palmilhados diariamente, resultando em fotografias, entrevistas,
levantamentos arquitetônicos, anotações de leituras e impressões em blog, num site
e no texto aqui publicado. Completam essa publicação dois textos escritos a convite
e em colaboração pelos professores doutores Manoela Rufinoni (Unifesp) e Rafael
Winter Ribeiro (UFRJ). O trabalho da professora Manoela, “Preservação do patrimônio arquitetônico industrial na cidade de São Paulo: iniciativas de levantamento,
valorização e tutela”, ao tratar da paisagem fabril de São Paulo adentra num campo
importante e vital para a própria paisagem ferroviária de Curitiba, uma vez que ela
foi a mola propulsora da primeira região fabril da cidade, o Rebouças, bairro que ain-
ISBN 987-85-86107-17-7
da hoje resguarda em sua paisagem exemplares remanescentes daqueles tempos. O
texto do professor Rafael, “Paisagem Cultural e Políticas de Patrimônio: tradições e
conflito”, nos levar a pensar mais teoricamente a paisagem como elemento cultural e
na forma como ela foi tratada no Brasil ao longo do século 20.
Este volume é o primeiro de uma nova coleção, a Registro & Identificação, que
a Fundação Cultural de Curitiba lança, por meio do Fundo Municipal de Cultura, propiciando, dessa forma, o acesso e a difusão às informações referentes ao patrimônio
cultural da cidade.
Paulino Viapiana
Presidente da Fundação Cultural de Curitiba
ISBN 987-85-86107-17-7
S U M Á R I O G era l
Pelos trilhos: paisagens ferroviárias de Curitiba
Dayana Zdebsky de Cordova, Aline Iubel, Fabiano Stoiev, Leco de Souza . . .
15
Preservação do patrimônio arquitetônico industrial paulistano: iniciativas de
levantamento, valorização e tutela
Manoela Rossinetti Rufinoni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
149
Paisagem cultural e políticas de patrimônio: tradições conflitos
Rafael Winter Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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ISBN 987-85-86107-17-7
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PELOS TRILHOS
Paisagens Ferroviárias de Curitiba
ALINE IUBEL
DAYANA ZDEBSKY DE CORDOVA
FABIANO STOIEV
LECO DE SOUZA
ISBN 987-85-86107-17-7
FICHA TÉCNICA (PUBLICAÇÃO)
Produções Textuais: Aline Iubel, Dayana Zdebsky de Cordova, Fabiano Stoiev
Fotografias: Leco de Souza
Edição de Imagens: Dayana Zdebsky de Cordova, Fabiano Stoiev (imagens históricas) e Leco de Souza
Concepção de projeto e pesquisa: Dayana Zdebsky de Cordova (antropologia), Fabiano Stoiev (história), Gabriel Gallarza e Maria Baptista (arquitetura e urbanismo),
Leco de Souza (fotografia)
Coordenação do projeto e produção cultural: Dayana Zdebsky de Cordova
Ass. de Pesquisa: Melina Ruosso (história)
Mapas: João Gabriel da Rosa Cordeiro
Revisão de texto: Joana Corona
Capa:
Menino caminhando sobre trilhos: detalhe da pintura de Poty Lazarotto, presente no
que outrora foi o Vagão do Armistício.
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AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Fundação Cultural de Curitiba por ter incentivado e viabilizado
o projeto que originou o presente trabalho através do Edital Paisagem Ferroviária, em
especial ao Marcelo Sutil pela disponibilidade e generosidade. A todos nossos familiares e amigos pela compreensão frente à nossa imersão nas paisagens ferroviárias
em plenas férias, feriados, fins de semana e madrugadas. Aos funcionários da Casa
da Memória, Museu Ferroviário e demais instituições em que pesquisamos e que
colaboraram com este trabalho. À Agência IMAM, e a Joana Corona, Melina Ruosso,
Guilherme Vianna e João Gabriel da Rosa, pelo empenho. A Gabriel Gallarza e Maria
Baptista: este trabalho lhes pertence. E agradecemos principalmente a todos aqueles
que nos receberam em suas casas. Aos ferroviários, cuja memória e amor pelo ofício
sustentam estruturas, imaginários e histórias das paisagens ferroviárias estudadas.
ISBN 987-85-86107-17-7
ISBN 987-85-86107-17-7
SUMÁRIO
EMBARQUE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Impressões passageiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Paisagem ferroviária, paisagem urbana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Viajantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
O caminhar e a construção do olhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
I – RAMAL DONA ISABEL/ESTRADA DE FERRO DO PARANÁ/
RAMAL CURITIBA–PARANAGUÁ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1ª PAISAGEM – Conjunto Vila Novas Oficinas/Vila Oficinas. . . . . . . . . . . . . . . 26
1.1 Complexo das Oficinas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
1.1.1 Escritório das Oficinas/Universidade Corporativa ALL. . . . . . . . . . . . . . . 31
1.1.2 Centro Sul de Treinamento/Instituto Federal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
1.1.3 Escola Ferroviária Coronel Durival de Britto e Silva/Escola Municipal
Coronel Durival de Britto e Silva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
1.2 Vila das Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
1.2.1 Casas do Complexo das Oficinas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
1.2.2 Outras Casas da Vila Oficinas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
1.3 Desvio para as Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
2ª PAISAGEM – Trajeto Parada Stresser/km 104 – Parada Cajuru. . . . . . . . . . 38
2.1 Parada Stresser/km 104. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
2.2 Parada Cajuru. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
Capanema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
II – CENTRO, CAPANEMA, REBOUÇAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
4ª PAISAGEM – Conjunto Pátio km 108. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
4.1 O Viaduto do Capanema enquanto cruzamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
4.2 Pátio de Manobras km 108. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
PELOS TRILHOS
3ª PAISAGEM – Trajeto Viaduto BR 116/Linha Verde – Viaduto do
13
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4.3 Depósito das Locomotivas/Garagens das Litorinas. . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
4.4 Rodoferroviária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
5ª PAISAGEM – Circuito Desvios Particulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
6ª PAISAGEM – Circuito Sociedade Ferroviária: serviços, residências e
espaços de lazer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
6.1 Espaços de assistência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
6.1.1 Escola de Artes e Ofícios do Cajuru. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
6.1.2 Hospital Central Ferroviário/Hospital Universitário Cajuru . . . . . . . . . . . 77
6.2 Vila Capanema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
6.3 Espaços de lazer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
6.3.1 Estádio Durival de Britto e Silva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
6.3.2 Vagão do Armistício . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
7ª PAISAGEM – Conjunto Central da Rede. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
7.1 Ponte Seca/Ponte Preta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
7.2 Edifício Teixeira Soares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
7.3 Antiga Estação/Shopping Estação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
8ª PAISAGEM: Circuito Prédios e Lugares Públicos e de Serviço . . . . . . . . . . . 102
8.1 Linhas de Bondes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
8.2 Prédios e Lugares Públicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
8.3 Casas Comerciais e Hotéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
8.4 Largo da Estação/Praça Eufrásio Correia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
III – ESTRADA DE FERRO NORTE DO PARANÁ/RAMAL CURITIBA–
RIO BRANCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
9ª PAISAGEM – Trajeto Cristo Rei – Alto da XV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
10ª PAISAGEM – Trajeto Argelina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
11ª PAISAGEM – Trajeto Avenida Anita Garibaldi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
PELOS TRILHOS
DESEMBARQUE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Artigos, Livros, Teses e Dissertações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Mapas e Imagens Aéreas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Periódico Correios dos Ferroviários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Relatórios da Rede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Sites. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
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EMBARQUE
A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é
uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.
(Baudelaire, The Painter of Modern Life1)
Impressões passageiras
Nestor Vítor registrou o progresso da cidade de Curitiba em 1912, quando
fazia uma viagem a convite do governo paranaense. Suas impressões foram publicadas em um livro com título sugestivo: A Terra do Futuro. O cronista ainda guardava
na memória a Curitiba que conhecera pela primeira vez em 1876: uma cidade com
feições de aldeia e atmosfera campesina. Agora, quanta diferença: a cidade ganhara um ar mais solene, suas casas e prédios apresentavam linhas mais modernas e
sua indústria progredia. A vila provinciana dava lugar a urbes cosmopolita, graças à
velocidade das locomotivas que percorriam a estrada de ferro Curitiba-Paranaguá,
inaugurada em 1885.
Torna-se de cada vez mais famosa a linha férrea de Paranaguá a Curitiba, e seu renome crescerá
com o tempo, quanto mais avulte a corrente de touristes que venham de toda parte do mundo
testemunhar a incomparável maravilha panorâmica que ela proporciona e ao mesmo tempo o milagre
de arte que representa. (VITOR, 1996: 55)
Nessa segunda metade do séc. XIX, o país dava seus primeiros passos em
direção à modernização capitalista. O tráfico de escravos fora abolido, a Lei de Terempresas de navegação. Mas nada materializava melhor o “espírito da modernidade”
do que os trens de ferro. No entanto, mesmo o aço mais sólido evapora no ar. O que
um dia foi sinônimo de progresso acabou tornando-se um símbolo do passado.
1
Curitiba, junho de 2010. Da sua casa, com uma visão privilegiada do estribo
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 21.
PELOS TRILHOS
ras, promulgada e a imigração europeia, incentivada. Surgiram bancos, indústrias e
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Ahú, o Sr. Ivo Ferreira, alfaiate, observa o trem passar há 60 anos. Uma paisagem
familiar, ameaçada por quem reivindica a retirada das linhas para dar mais agilidade
à circulação de veículos: “O trem nunca incomodou. Só umas pessoas aí que acham.
Só que antes de elas nascerem, o trem já existia. O trem, pra nós aqui, é uma cultura”. Com quase 75 anos, lembra com prazer dos “bons tempos” e, solidário com o
trem, conclui, irritado: “Essa modernidade, pra nós, é uma porcaria”2.
As impressões de Nestor Vítor e do Sr. Ivo, tão distantes no tempo, põe em
jogo os elementos que compõem a modernidade, tal como foi enunciada por Baudelaire: o transitório e o eterno, o contingente e o imutável. E evidenciam as relações
complexas – ora complementares, ora contraditórias – entre os antigos ramais ferroviários da cidade e a paisagem urbana que os envolve. Esses ramais são as estradas
de ferro Curitiba-Paranaguá e Curitiba-Rio Branco, os quais são considerados, neste
trabalho, apenas nos trechos circunscritos aos limites do município. Os ramais, bem
como as edificações ligadas direta ou indiretamente a eles, compõem as paisagens
ferroviárias de Curitiba. No entanto, essas paisagens não nos remetem apenas a
tempos idos. Elas imprimiram marcas até hoje presentes nos traçados das ruas e
na disposição das casas. E para além dessa materialidade urbana, e em relação com
ela, alguns aspectos da formação dessas paisagens ainda estão vivos na memória
coletiva daqueles que se utilizaram dos trens como meio de transporte, daqueles que
trabalharam e trabalham na rede ferroviária e daqueles que moram na proximidade
das vias. Essas paisagens ferroviárias vêm sendo construídas e reconstruídas, material e simbolicamente ao longo do tempo, ganhando (e perdendo) contornos e significados, em uma sobreposição, um palimpsesto de diferentes necessidades, intenções
conflitantes e novas práticas sociais. Esse livro é um registro (e como todo registro,
sempre parcial) dessas paisagens.
PELOS TRILHOS
Paisagem ferroviária, paisagem urbana
16
Nos debates que permeiam as políticas sobre patrimônio, a noção de paisagem
tem sido cada vez mais utilizada, sobretudo nos casos em que se constata
2
As citações que correspondem à linguagem oral transcrita foram padronizadas com destaque
em itálico.
ISBN 987-85-86107-17-7
a ocorrência, em uma fração territorial, do convívio singular entre a natureza, os espaços construídos
e ocupados, os modos de produção e as atividades culturais e sociais, numa relação complementar
entre si, capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida por qualquer um deles
isoladamente. (RIBEIRO, 2007: 7)
Os ramais ferroviários, com suas edificações características e suas práticas
econômicas e sociais, se ajustam bem à noção de paisagem. Além disso, esse conceito permite superar certos limites presentes nas abordagens mais tradicionais das
políticas de preservação. Conforme Rafael Winter Ribeiro:
a grande vantagem da categoria paisagem cultural reside mesmo no seu caráter relacional e
integrador de diferentes aspectos que as instituições de preservação do patrimônio no Brasil e no
mundo trabalharam historicamente de maneiras apartadas. É na possibilidade de integração entre
material e imaterial, cultural e natural, entre outras, que reside a riqueza da abordagem do patrimônio
através da paisagem cultural e é esse aspecto que merece ser valorizado. (idem: 111)
Em um trabalho pioneiro sobre o patrimônio ferroviário nos ramais que ligam
Santos a Jundiaí, no estado de São Paulo, a pesquisadora Silvia Helena Passareli
contrasta a grande importância da ferrovia na formação de núcleos urbanos com os
limites de uma política de preservação convencional:
à paisagem observada da janela do trem e ao longo das ruas ao redor de muitas estações ferroviárias
de Santos-Jundiaí estamos denominando de ‘paisagem ferroviária’, composta por edifícios industriais
e casario simples ao longo de ruas estreitas e permeadas de poucas áreas livres, e sem apresentar
os destaques de monumentalidade ou excepcionalidade da arte ou da técnica construtiva que
frequentemente têm merecido maior atenção das políticas de patrimônio cultural. (PASSARELLI,
2007: 274)
No entanto, “paisagem ferroviária” é justamente o conjunto dessas casas sim-
ples, desses armazéns e fábricas, situado nas imediações das estações ferroviárias,
a gênese de importantes núcleos urbanos, marcos de memórias e identidades locais
Os vínculos entre os ramais ferroviários e o desenvolvimento da urbes também
são facilmente identificáveis em Curitiba. Nestor Vítor foi um dos primeiros a relatar
a importância da ferrovia na superação daquele acanhamento inicial ao qual a cidade
parecia destinada. Entre 1885 e 1930, no período das concessões (quando as estradas eram construídas e controladas por empresas particulares, notadamente estrangeiras) as transformações no espaço urbano eram evidentes. A Rua da Liberdade
PELOS TRILHOS
e regionais.
17
ISBN 987-85-86107-17-7
(atual Barão do Rio Branco) ganhou notoriedade ao ligar o núcleo do povoamento original da cidade com a Estação Ferroviária. As imediações da Praça Eufrásio Correia,
de frente para a Estação, foram ocupadas por hotéis e estabelecimentos comerciais.
O Bairro Rebouças, que era atravessado pelo Ramal Curitiba-Ponta Grossa (hoje
extinto), foi ocupado por fábricas e grandes armazéns, tornando-se o centro industrial da cidade. Nas proximidades da Estação e das linhas, os ferroviários ergueram
suas casas, dando origem aos bairros do Cajuru, Capanema e Cristo Rei. No rocio, a
proximidade com a estrada de ferro reforçava a ocupação de núcleos coloniais como
Colônia Argelina, Abranches e Barreirinha.
Entre 1930 e 1957 as ferrovias no Paraná passaram por um processo de en-
campações que colocou a administração das estradas nas mãos do poder público. Em
1942, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criada a Rede Viária Paraná-Santa
Catarina (RVPSC). A partir de então, o quadro urbano de Curitiba cresceu e encontrou nas linhas dos ramais a sua moldura. O calçamento das ruas e a abertura de
algumas estradas melhoraram o transporte rodoviário, mas a ferrovia seguia seu curso. Nesse período, para adequar o serviço ferroviário às necessidades da economia
paranaense, grandes obras foram implementadas, em especial nas administrações
dos superintendentes Cel. Durival Britto e Silva (1940-1947) e Cel. José Machado
Lopes (1947-1952). Traços da arquitetura art-déco e do racionalismo clássico italiano, influentes na época (SUTIL e GNOATO, 2005: 51) podem ser encontrados nas
edificações da rede, como no Edifício Teixeira Soares, no Escritório da Vila Oficinas,
na Escola Profissional Ferroviária e no Hospital Cajuru. O uso do concreto armado
estava presente nos galpões das Oficinas e no Depósito de Locomotivas. A rede era,
ainda, a protagonista de sua própria modernidade.
Em 1957 foi criada a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). A RVPSC integrou
essa rede, de caráter nacional, como parte do Sistema Regional Sul, sediado em Porto Alegre. Em 1975, em um processo de descentralização administrativa, as ferrovias
PELOS TRILHOS
do Paraná e Santa Catarina passaram a compor o Sistema Regional 5 (SR-5), agora
18
com sede em Curitiba, para melhor atender às demandas da produção agrícola e ao
transporte de derivados de petróleo da refinaria de Araucária (RFFSA, 1985: 321).
Mas, para além desses novos arranjos administrativos, as décadas de 1960 e 1970
marcaram um período de crise para as representações das paisagens ferroviárias,
como símbolos da modernidade. Com a emergência do automóvel, a constituição de
um novo Plano Diretor para o município e uma dinâmica urbana acelerada pelo cres-
ISBN 987-85-86107-17-7
cimento da população, o trem e sua linha férrea passaram a ser identificados como
uma barreira às novas necessidades de circulação urbana. As paisagens ferroviárias
começaram a sofrer um processo de desterritorialização. Antigas atividades econômicas e partes da infraestrutura ligadas ao transporte ferroviário foram desativadas,
perderam seus vínculos com a ferrovia e com as relações nela efetivamente realizadas. Elementos que compunham as paisagens foram eliminados, e houve a formação
de alguns vazios urbanos3.
Parafraseando Aldo Rossi (1995: 03), pode-se perceber que nos contextos
urbanos atuais novos elementos marcam visualmente a paisagem: grandes eixos
viários, viadutos e edifícios verticais camuflam referências históricas e ambientais, e
alteram os desenhos das cidades. Prédios e estações foram desativados e substituídos por shopping centers, casas de ferroviários foram escondidas por arranha-céus
e viadutos. E para reencontrar essas linhas de histórias ferroviárias, nada melhor do
que viajar por paisagens urbanas em transformação, com um olhar atento aos seus
vestígios.
Viajantes
Em Tristes Trópicos, o viajante Claude Lévi-Strauss escreve que
concebemos as viagens como um deslocamento no espaço. É pouco. Uma viagem inscreve-se
simultaneamente no espaço, no tempo e na hierarquia social. Cada impressão só é definível se
a relacionarmos de modo solidário com esses três eixos, e, como o espaço possui sozinho três
dimensões, precisaríamos de pelo menos cinco para fazermos da viagem uma representação
adequada. (1996: 81)
Por suas várias dimensões, a apreensão da paisagem se enriquece a partir
de uma multiplicidade de olhares. Diversos pesquisadores, de diferentes áreas do
seram a equipe de Paisagens Ferroviárias de Curitiba.
O trabalho de varredura realizado pela equipe de arquitetura foi fundamental
para identificar e caracterizar os elementos que fazem parte da paisagem ferroviária
na cidade. A partir desses elementos, essa equipe identificou conjuntos paisagísticos
3
Na década de 1990 iniciou-se o processo de privatização e o governo federal anunciou a extinção da RFFSA (YAMAWAKI e HARDT, 2008: 157).
PELOS TRILHOS
conhecimento (história, arquitetura e urbanismo, antropologia e fotografia), compu-
19
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que foram analisados e georreferenciados, resultando em um amplo levantamento
material que serviu de base inicial aos trabalhos subsequentes dos outros pesquisadores.4
A pesquisa de história se concentrou nos arquivos do Museu Ferroviário, da As-
sociação Brasileira de Proteção Ferroviária (ABPF), do Instituto Bandeirantes e da Biblioteca Pública do Paraná5. Em especial, nos relatórios anuais da RVPSC e da RFFSA
e nas coleções da revista Correio dos Ferroviários, encontrados nessas instituições.
Outra fonte importante de informações para a reconstituição da paisagem foram as
crônicas escritas por viajantes e moradores sobre a Curitiba da primeira metade do
século XX. Além dos registros de história oral, colhidos com ferroviários, usuários de
trens e moradores que vivem próximos aos ramais.
A pesquisa de imagens encarregou-se do levantamento e análise de fotografias
históricas e do registro dos elementos encontrados nas paisagens ferroviárias, levantados pelo restante da equipe do projeto, na dupla perspectiva de fotografar “para
descobrir” e “para contar”6.
As antropólogas ligadas ao projeto se dedicaram ao estudo do(s) conceito(s)
de paisagem e alguns exemplos de seu emprego em pesquisas e publicações relativas ao patrimônio cultural. Foram, ainda, responsáveis por articular as informações
produzidas pelas diferentes áreas de conhecimento. A partir desse trabalho teórico
PELOS TRILHOS
e de imersões no campo de pesquisa, categorias metodológicas propostas durante
20
4
O trabalho da equipe de arquitetura teve como resultado o Relatório de “Paisagem Material”
do projeto. Uma cópia deste relatório foi entregue à Casa da Memória da Fundação Cultural de
Curitiba e está disponível para consulta no local. Esse relatório também pode ser encontrado no
site www.pelostrilhos.net.
5
Os arquivos da RFFSA não foram acessados porque estavam sendo inventariados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A disponibilização desses arquivos,
terminado o processo de inventário, será de fundamental importância para o avanço de novas
pesquisas.
6
O antropólogo e fotógrafo Milton Guran (2002) trabalha com a possibilidade de utilizar a fotografia nas ciências sociais tanto como instrumento para conhecer, coletar dados na pesquisa de
campo (“fotografar para descobrir”), quanto como instrumento “narrativo” para versar sobre a
pesquisa (“fotografar para contar”). A fotografia ocupou, no projeto Paisagens Ferroviárias de
Curitiba, esses dois lugares. Foi entendida não como uma maneira de ilustrar as informações
textuais do projeto ou algo anexo a ele, mas como recurso capaz de trazer outras informações
para o leitor (tanto do livro como do site), desta vez imagéticas, de natureza diversa da textual.
Se a palavra é, neste livro, um recurso narrativo predominante, a imagem é predominante no
site do projeto.
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o levantamento de dados foram tensionadas, repensadas, por vezes reconstruídas,
dando lugar a categorias analíticas sensíveis às informações e leituras oriundas da
primeira etapa de pesquisa.
Ao pensarem as edificações enquanto espaços, lugares e coisas, suas relações
entre si e suas transformações através de diferentes práticas7, as antropólogas notaram a possibilidade de trabalhar com as paisagens ferroviárias estudadas a partir
de três agrupamentos: paisagem-conjunto, paisagem-trajeto e paisagem-circuito.
Por paisagem-conjunto, a partir da categoria pedaço8 – concebida pelo antropólogo José Cantor Magnani –, compreendeu-se aquela paisagem cujos elementos para
os quais voltamos nossos olhares apresentam uma contiguidade territorial entre si,
uma relação de vizinhança e identitária, e que guardam (ou guardaram) práticas
complementares umas às outras. As categorias circuito e trajeto foram diretamente
apropriadas do livro Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade (1984) e do
texto Quando o Campo é a Cidade: Fazendo Antropologia na Metrópole (2000), ambos de Magnani. O circuito (do qual advém o conceito de paisagem-circuito) é aquilo
que “une estabelecimentos, espaços e equipamentos caracterizados pelo exercício
de determinada prática ou oferta de determinado serviço, porém não contíguos na
paisagem urbana, sendo reconhecidos na sua totalidade apenas pelos seus usuários”
(MAGNANI, 2000: 45). E o trajeto é o que une pontos, pedaços, circuitos. É o espaço
de deslocamento e o caminho entre os lugares. Todas essas categorias, assim como
as de lugar e não lugar são relativas e relacionais: dependem da maneira a qual uma
pessoa (ou grupo de pessoas) se relaciona com determinado espaço ou o percebe,
como um conjunto de edificações e paisagens ferroviárias; e dependem também da
distância à qual se olha para as paisagens.
Concepção que surge do encontro de ideias, de dois autores, caras a este trabalho: lugar e não
lugar, de Marc Augé (2003) e práticas na cidade, de Michel de Certeau (2009)
8
A categoria pedaço refere-se, para Magnani, ao “espaço intermediário entre o privado (a casa)
e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços de relações familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e
individualizadas impostas pela sociedade” (1984: 138). O autor pensou na categoria partindo
do contexto do bairro, a vizinhança da casa. Mas deixou claro que outros pontos podem ser
utilizados como pedaço: áreas de lazer, lugares de encontro, etc. Em um mesmo pedaço as
pessoas não se conhecem, necessariamente, mas “se reconhecem enquanto portadores dos
mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de
vida semelhantes” (2000: 39).
PELOS TRILHOS
7
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O caminhar e a construção do olhar
Para além de metodologias e conhecimentos específicos de cada área, o “cami-
nhar” foi uma ação comum a todos os pesquisadores do projeto. Caminhando ao lado
e sobre as linhas de trem selecionadas, pudemos construir olhares sobre o “objeto”
de pesquisa, ao mesmo tempo em que o próprio “objeto” foi compreendido enquanto
tal e constituiu o nosso olhar. Caminhar foi um exercício fundamental para “descobrir”, entender, interpretar e criar possibilidades analíticas às paisagens ferroviárias.
A narrativa deste trabalho está impregnada desses inúmeros caminhares: são narrativas sobre lugares, não lugares, espaços, paisagens.
Caminhar como forma de apreender e praticar espaços (DE CERTEAU, 2009)
não é uma novidade no universo das ciências humanas. Walter Benjamin, em Paris, a
capital do século XIX (2006), nos chama a atenção para a figura do flâneur na obra de
Baudelaire. O flâneur era aquele que caminhava pela cidade devagar, apreendendo-a,
em plena efervescência da modernidade, na contramão do ritmo cada vez mais acelerado dela. Caminhando, o flâneur lia os sinais e pistas da cidade, criava narrativas
associando impressões fragmentadas, percebia seus fluxos, movimentando-se lentamente por ela, o que lhe permitia observar aquilo que não era visto corriqueiramente por aqueles que estavam dentro do ritmo acelerado da cidade (FEATHERSTONE,
2001).
Assim como o flâneur, é preciso se caminhar contra o fluxo da aceleração
urbana para reconhecer suas paisagens. Este caminhar foi sugerido pelo próprio
objeto estudado, pela maneira com que o patrimônio ferroviário se relaciona com a
cidade: ele a atravessa, se distribui não apenas em concentrações específicas, mas
“ao longo” dos trilhos, formando “circuitos” entre seus elementos, suas paisagens.
As paisagens ferroviárias não se concentram em algumas quadras ou ruas: elas atravessam bairros, zonas, classes sociais e interesses múltiplos. E, por sua amplidão,
PELOS TRILHOS
ultrapassam qualquer narrativa que se possa construir em alguns meses de trabalho
22
– muita coisa escapa da percepção dos pesquisadores.
Em uma relação dialética, as paisagens ferroviárias e os olhares dos pesquisa-
dores foram construídos, e se construíram, mutuamente. As informações contidas na
paisagem material foram lidas através de certos pontos de vista, impregnados pelas
experiências de pesquisa, conhecimentos específicos e pelas questões levantadas por
cada pesquisador.
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A visão […] não é uma questão de reagir mecanicamente a estímulos. […] Só vemos aquilo que
olhamos. Olhar é um ato de escolha. Como resultado dessa escolha, aquilo que vemos é trazido para
o âmbito do nosso alcance – ainda que não necessariamente ao alcance da mão. Tocar alguma coisa
é situar-se em relação a ela. […] Nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre olhando
para a relação entre a coisa e nós mesmos. (BERGER, 1999: 11 e 12)
A intenção desse trabalho, então, não é oferecer uma visão fechada das ins-
talações ferroviárias em Curitiba. Mas chamar a atenção para suas permanências e
descontinuidades; revelar algumas práticas sociais relacionadas a essas paisagens;
provocar o leitor para a reconstituição de seus espaços, trajetos e circuitos; oferecer um panorama, um ponto de partida e alguns roteiros para que cada pessoa, ao
percorrer essas páginas, possa reconstruir e ressignificar as paisagens ferroviárias
da cidade. É preciso lembrar que, “apesar de o trem haver sido concebido para o
transporte de cargas, sua invenção – assim como a do navio a vapor – propiciou uma
nova categoria de seres humanos: os passageiros” (BONI, 2005: 257). Então, bilhete
PELOS TRILHOS
na mão e boa viagem!
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I – R A M A L D O N A I S A B E L / E S T R A DA D E F E R R O
D O PA R A N Á / R A M A L C U R I T I B A – PA R A N A G U Á
O Ramal Curitiba-Paranaguá foi inaugurado com o nome de Dona Isabel em
fevereiro de 1885, construído em regime de concessão pela Compagnie Générale des
Chemins de Fer Brésiliens, empresa controlada pela firma Société Anonyme de Travaux
Dyle et Bacalan, com sede em Louvain, Bélgica (Relatório da RFFSA, 1985). A principal
atividade dessa estrada de ferro era escoar a produção de erva-mate para o litoral paranaense, de onde seguia pelo mar para os centros consumidores, em especial, para a
Bacia do Prata. No início da República, o governo federal resgatou a concessão dessa
estrada, já conhecida como Estrada de Ferro do Paraná9. Depois de passar pelas mãos
de vários administradores, ela foi finalmente arrendada em 1910 pela poderosa Brasil
Railway Company, que estendeu os braços da ferrovia até São Francisco do Sul (SC),
pelo Ramal Rio Negro, e até São Paulo (SP), pelo Ramal Ponta Grossa.
Mais ramais, mais locomotivas. As oficinas que ficavam na Estação de Curitiba
ficaram acanhadas para o volume de trabalho. Em 1926, engenheiros da Brasil Railway
projetaram uma oficina no pátio 108. Mas o projeto não foi implementado por causa da
grave crise financeira enfrentada pela companhia, que se agravava desde a 1a Guerra
Mundial, e que culminou em sua falência (SCHOPA, 2004: 72).
A tônica nacionalista da Era Vargas e a necessidade de resolver a situação
das ferrovias sob controle da falida Brazil Railway Company levaram ao processo de
encampação dos ramais. Os decretos de desapropriação abriram caminho para um
regime administrativo controlado pelo Estado, que se consolidou com a criação ofi-
9
Para estimular a construção das ferrovias, o governo imperial assegurava o lucro dos empreendedores, incluindo nas concessões garantias de juros, em caso de resultados adversos. No
primeiros anos da República, o peso do pagamento dessas garantias já consumia um terço do
orçamento da União, o que levou às expropriações das companhias estrangeiras (SCHOPPA,
2004: 67).
10
Na prática, a Rede Viária Paraná-Santa Catarina (RVPSC) já vinha operando desde os anos
1930, quando as estradas de ferro da Brazil Railway sofreram intervenção do Estado.
PELOS TRILHOS
cial da Rede Viária Paraná-Santa Catarina (RVPSC) em 194210. Nesse período, teve
25
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início a construção das atuais Oficinas Ferroviárias de Curitiba, localizadas na região
que hoje conhecemos como Vila Oficinas. É daqui que sai “nosso trem”, que nesta
primeira parte da viagem nos apresenta três paisagens pelas “suas janelas”, cujas
esquadrias são dadas pelo olhar que construímos no decorrer deste projeto: o conjunto Vila Oficinas, o trajeto entre a Parada Stresser e a Parada Cajuru, e o trajeto
entre o Viaduto da BR 116/Linha Verde até o Viaduto do Capanema.
1 ª PA I S AG E M
Conjunto Vila Novas Oficinas/Vila Oficinas
Aqui era a oficina das locomotivas da Rede. E o
almoxarifado central da ferrovia do Estado do Paraná
e Santa Catarina [...]. Daqui é que saía o material pro
pessoal, para tudo quanto é lugar. E a sucata era toda
recolhida aqui também. Era bastante material. (Sr. Sidnei
Grossko – segurança da Rede aposentado)
No coração do Bairro Cajuru, região leste da cidade, em um imenso quarteirão,
pulsam as oficinas da antiga RVPSC11. O nome Vila Oficinas é o indício mais evidente
da influência que as instalações da Rede tiveram na região. Mas há outras marcas
suas nas casas, ruas e edificações do entorno. As paisagens que circundam as oficinas são ramificações de sua história.
Comparando a planta de implementação das Oficinas e suas imagens atuais,
percebe-se que a estrutura do complexo permanece semelhante à original, salvo a
construção de algumas edificações pontuais e a demolição de três das quinze casas
que abrigavam funcionários especializados da RVPSC. Hoje existe uma maior autonoPELOS TRILHOS
mia da região em relação às Oficinas. Mas o complexo ferroviário, os ruídos e apitos
26
dos trens e o cheiro de graxa ainda ocupam uma centralidade espacial e identitária
na região.
11
Atualmente, as instalações das Oficinas estão sendo usadas por uma das empresas concessionárias da estrada de ferro, a América Latina Logística (ALL).
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Imagem aérea da década de 1970 da paisagem Vila Oficinas (IPPUC, 1972).
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Planta Novas Oficinas Ferroviárias. Acervo do Museu Ferroviário de Curitiba (PFC – Relatório Paisagem Ma-
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terial).
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1.1 Complexo das Oficinas
Na década de 1940, quem estava acostumado a cruzar de trem os antigos
descampados desta região iria se surpreender com os serviços de terraplanagem iniciados em 1943. Os terrenos ficavam a seis quilômetros do centro de Curitiba e foram
doados à RVPSC pela Companhia Territorial Cajuru (MELO, 2008: 08). Foram escavados mais de 200 mil metros cúbicos de terra para que tivesse início a construção
das fundações e estruturas de concreto armado das instalações das Oficinas12. Uma
obra fáustica para a Curitiba de então: a Leão, Ribeiro & Cia. Ltda. era a empresa
responsável pela construção do complexo. Em 1949, a maior parte dos galpões já
estava pronta. O gigantismo da obra ainda surpreende.
Nós tínhamos uma grande oficina de equipamentos de via permanente e uma de locomotiva, que era
aqui na Vila Oficinas. Aliás, a oficina de Curitiba é a maior oficina de locomotivas da América Latina
e que foi inaugurada pelo presidente Getúlio Vargas. (Eng. Saulo Ramos)
A obra inovou também em relação às técnicas construtivas, ao utilizar o con-
creto armado na estrutura dos imensos galpões e da enorme caixa-d’água, que, em
seus quase 17 metros de altura, se destaca no conjunto.
A instalação de todo o maquinário necessário ao funcionamento das seções de
ferraria, fundição, modelagem e fabricação de pregos de linha e parafusos levou mais
alguns anos. Essas seções só ficaram prontas em 1953, quando um trem presidencial entrou pelo desvio e seguiu até as Oficinas. Getúlio Vargas, acompanhado pelo
deputado federal João Goulart e outras autoridades, inaugurou as novas instalações
da Rede (Correios dos Ferroviários, jan. 1953). Na ocasião, o Presidente anunciou a
Bento Munhoz da Rocha Neto, governador do Paraná, a intenção de voltar à cidade
em dezembro daquele mesmo ano para participar das comemorações do Centenário
de Emancipação Política do Estado. O governo estadual projetou a construção do
comemorações. As grandes edificações iniciadas pela Rede na década de 1940 se anteciparam ao canteiro de obras que a cidade iria se transformar na década seguinte.
12
As quais incluíam: caixa-d’água e edificações relacionadas aos setores de força e ar, fabricação e enchimento, modelação, ferraria, rodas e eixos, fundição, calderaria, montagem e mecânica (Relatório da Rede, 1944).
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Teatro Guaíra, do Centro Cívico e da Biblioteca Pública do Paraná como parte dessas
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“Construção das novas Oficinas de Locomotivas em Curitiba. Estrutura de concreto armado do
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edifício do Almoxarifado” (RVPSC, 1944).
30
Pátio do complexo das Oficinas, vista próxima do terminal de ônibus Vila Oficinas.
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O complexo das Oficinas contou ainda com uma série de edificações de su-
porte: o prédio para abrigar os escritórios da RVPSC, o restaurante e o vestiário dos
funcionários, a Escola Profissional Ferroviária e, mais recentemente, o centro de treinamento profissional da Rede.
1.1.1 Escritório das Oficinas/Universidade Corporativa ALL
A atual Universidade Corporativa ALL é um edifício de dois andares que, impo-
nente, se destaca em relação às demais edificações da região devido ao seu tamanho
e estilo. Com entrada pela Rua Emílio Bertolini, a edificação abrigou durante muito
tempo os escritórios da administração, o restaurante e o vestiário dos funcionários
da Rede.
1.1.2 Centro Sul de Treinamento/Instituto Federal
No espaço entre a Escola Profissional Ferroviária Durival de Britto e Silva e o
escritório da Rede, uma nova construção surgiu na década de 1960: o Centro Sul de
Treinamento, responsável pelo treinamento de profissionais da Rede não atendidos
pela escola. Trata-se de uma grande construção térrea, composta de núcleos administrativos, didático, recreativo e cultural, que se destaca arquitetonicamente por
suas linhas modernas e parte da fachada em vidro. Os jardins à sua frente ainda
guardam a placa com o símbolo da RFFSA.
1.1.3 Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de Britto
e Silva/Escola Municipal Coronel Durival de Britto e Silva
Hoje separada do conjunto das oficinas por um muro, a atual Escola Municipal
Coronel Durival de Britto e Silva
É uma construção em alvenaria de tijolos, composta por três blocos retangulares dispostos em forma
de “H”. Cada bloco tem o telhado em quatro águas coberto por telhas de fibrocimento que ficam
maior, em forma de “H”, era a sede da Escola Profissional; a do meio, o pavilhão de educação física
(PFC – Relatório Paisagem Material).
Na chamada Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de Britto e Silva
formavam-se caldeireiros, soldadores, serralheiros, ferreiros, marceneiros, eletricistas, operadores, mecânicos e ajustadores. Funcionava como internato para alunos
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parcialmente escondidas em uma platibanda. No lote encontram-se três edificações: a da frente e
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Antigo escritório das Oficinas, atual Universidade Corporativa ALL, cuja construção foi
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finalizada em 1955. Fotógrafo: Gabriel Gallarza (PFC – Relatório Paisagem Material).
32
Centro Sul de Treinamento (Correio dos Ferroviários, jan. 1968).
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Escola Municipal Coronel Durival de Britto e Silva, antiga Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de
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Britto e Silva, construída entre 1944 e 1945.
33
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que vinham de outras regiões do estado, em geral, filhos de funcionários da Rede.
José Carlos Rodrigues, maquinista, estudou na escola antes de entrar para a Rede:
“A escola era integral, quem estudava de manhã fazia um curso à tarde, se formava
eletricista, mecânico, torneiro mecânico: várias profissões”.
A Escola Profissional Ferroviária foi um projeto consoante às novas orientações
educacionais do Governo Vargas e sua aproximação com setores da burguesia industrial. O crescente interesse de Vargas em promover a industrialização do país terminou
por se refletir no campo educacional, com estímulo à organização da educação profissional (FAUSTO, 2002). Em 1964, a escola começou a dar formação ginasial e em
1970, um acordo entre a RFFSA e o SENAI transformou a instituição em um Colégio
Técnico (Correios dos Ferroviários, mai. 1969). A importância da escola para a formação dos trabalhadores da Rede é atestada por vários depoimentos. Essa escola, que
fazia parte de uma ação social da empresa junto aos funcionários, possibilitou o aprendizado de técnicas e profissões até então desconhecidas ou inacessíveis na cidade.
[…] como a Rede Ferroviária era uma indutora de nova tecnologia […,] ferrovia sempre foi uma coisa
de ponta, como é hoje [,…] a Rede Ferroviária tinha a necessidade de desenvolver o conhecimento
de seus empregados, então [...] punha seus empregados nessas casas, pegava o filho do empregado,
punha em uma escolinha técnica, e ensinava, através de um convênio com o SENAI, e fazia dele um
técnico. A Rede Ferroviária formava por ano 7 mil crianças. […] a Rede precisava dessas escolas, junto
às suas oficinas […] os empregados da Rede eram de altíssima qualificação. (Eng. Saulo Ramos)
1.2 Vila das Oficinas
A implantação das oficinas no Bairro Cajuru impulsionou o desenvolvimento de
núcleos habitacionais em seu entorno. Destinadas a abrigar os funcionários que tra-
PELOS TRILHOS
balhariam nas novas oficinas, a construção dessas vilas operárias, comum nas em-
34
presas ferroviárias e que deram origem a vários núcleos urbanos, obedeciam, entre
outras coisas, à necessidade de disciplinarização do trabalhador frente às exigências
das relações capitalistas de produção.
[...] a Rede Ferroviária fornecia casa para seus empregados. E cobrava deles um aluguel simbólico.
Era uma forma de ter os empregados disponíveis a qualquer hora. Porque ferroviário é que nem um
militar. Não tem hora. (Sr. Saulo de Castro Ferreira - engenheiro)
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Além da disposição do pessoal, a Vila Ferroviária garantia a gestão da vida
cotidiana dos ferroviários por parte da empresa, os quais “morando nessas casas tinham acesso a um ambiente saneado, higienizado e organizado” (MELO, 2008: 11).
O som da sirene, que convocava os funcionários ao trabalho, era referência para a
organização do tempo dos moradores da vila. Ainda hoje, com um som mais baixo,
a mesma sirene marca a entrada e saída dos alunos da Escola Municipal Coronel
Durival de Britto e Silva. Por outro lado, a construção dessas vilas não obedece exclusivamente às questões de controle e disciplinarização da mão de obra, mas atende
também às reivindicações dos ferroviários por moradia e reforça a formação de uma
identidade de classe.
Quando foi construída, era surpreendente o isolamento da vila em relação à
cidade. Para se chegar ao centro de Curitiba, era preciso caminhar cinco quilômetros
até o ponto de ônibus mais próximo, que saía de hora em hora. Situação bastante
diferente da atual, tendo em vista a intensa movimentação, hoje, de usuários do
sistema de transporte público no terminal de ônibus que foi construído contíguo às
Oficinas. Outra mudança na paisagem da região é que hoje ela está servida por um
comércio diversificado. Naquela época, em que a Vila Novas Oficinas estava um tanto
quanto isolada do restante da cidade, as compras eram feitas na Cooperativa 26 de
Outubro – a qual era administrada pela Rede e ficava no Bairro Rebouças – e levadas
até a casa dos ferroviários na vila. Na década de 1950, um trem começou a trazer
pela manhã os funcionários da Rede que não moravam na vila, fazendo surgir o protótipo dos trens de subúrbio.
1.2.1 Casas do Complexo das Oficinas
O conjunto com 15 casas, construído com recursos da própria Rede e projeta-
das dentro do complexo das Oficinas, destinava-se à moradia de alguns funcionários
especializados, como mestres e contramestres da Rede. Está situado na Rua dos Fercasas:
A maior parte delas segue o mesmo desenho arquitetônico. São casas térreas de alvenaria com
varanda saliente frontal, e acabamento do vão em arco. Possuem um ornamento no frontão formado
por três círculos e o brasão RPVSC. No fundo do lote aparece uma pequena edificação desligada da
casa, que servia de garagem. Originalmente, as casas tinham uma cerca baixa de madeira nos limites
do lote. (PFC – Relatório Paisagem Material)
PELOS TRILHOS
roviários, aos fundos e no mesmo quarteirão que as oficinas. Hoje, restam 12 dessas
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A pequena edificação anexa às casas mencionada acima servia também como
depósito. Todas as casas se encontravam em uso na ocasião do término desta pesquisa (em julho de 2010) – salvo uma casa abandonada e em estado de conservação
extremamente precário – e algumas delas sofreram alterações significativas no desenho arquitetônico.
Entre as casas, em um lote que antigamente servia como entrada para os fun-
cionários das Oficinas, está sediada a Associação Ferroviária UNIFER.
1.2.2 Outras Casas da Vila Oficinas
As 96 casas construídas com recursos do Instituto de Aposentadoria e Previ-
dência dos Ferroviários de São Paulo (IAPFSP) foram adquiridas tanto por ferroviários
quanto por funcionários públicos e estão situadas em seis quadras contíguas às Oficinas.
Em 1969, a RFFSA anunciou um acordo com a Companhia de Habitação Po-
pular (COHAB), permitindo a 500 ferroviários a participação na aquisição de casas
no conjunto residencial que estava sendo construído na Vila Oficinas, no entorno das
quadras desse primeiro conjunto de 96 casas (Relatório da RFFSA, 1969). “A ocupação do conjunto habitacional se deu por tipologias arquitetônicas diversas e por um
desenho urbano diferenciado, que promovia a ocupação em pequenos quarteirões
com baixo fluxo de veículos, ao redor de praças e escolas no centro” (PFC – Relatório
Paisagem Material).
1.3 Desvio para as Oficinas
Logo que saem das Oficinas, os trilhos seguem em direção ao Ramal Curitiba-
-Paranaguá sobre um elevado com sete metros de altura em relação às ruas que o
PELOS TRILHOS
margeiam. Com casas em seus dois lados, o desvio e seu aterro criam por algumas
centenas de metros uma muralha que divide fisicamente a comunidade em duas,
36
sa os trilhos em algum de seus poucos cruzamentos de pedestres. O andar do pedes-
impedindo que de um lado se veja o outro. Apesar disso, ambos os lados têm uma
unidade paisagística: são compostos por casas e sobrados, em sua maioria, residenciais.
O trem passa na comunidade. Esporadicamente, uma pessoa ou outra atraves-
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PELOS TRILHOS
Casas construídas pela Rede na Rua dos Ferroviários.
Desvio Oficinas (sentido Oficinas – Ramal Curitiba-Paranaguá).
37
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tre sobre os trilhos parece, neste trecho, solitário. Os trilhos estão isolados pela altura
e isolam, contextualmente, aqueles que estão sobre eles. A Serra do Mar, que já era
visível de outros tantos pontos da Vila Oficinas, torna-se visualmente mais presente
e marcante, lembrando a proximidade do litoral e destacando a baixa verticalização
das construções da região, o que viabiliza uma grande profundidade de campo de
visão. Esse desvio “é marcado por diversas ocupações originalmente irregulares em
suas margens. São ocupações antigas, hoje bastante consolidadas” (idem). A serra
acompanha o caminhar sobre os trilhos, enquanto o viajante, rumo à Curitiba, dá as
costas e se distancia das Oficinas. Os trilhos encontram o Ramal Curitiba-Paranaguá,
pouco antes do cruzamento, em forma de viaduto, da linha férrea com a Av. Pref.
Maurício Fruet. Aqui é o limite da paisagem chamada Vila Oficinas.
2 ª PA I S AG E M
Trajeto Parada Stresser/km 104 – Parada Cajuru
Quando eu morava em Piraquara, eu vinha com o
Subúrbio. […] Vinha de manhã e voltava à tarde [...]. O
trem era cheio. Andava com seis, sete vagões. Cada vagão
cabe sentado 40 pessoas. [...] ele parava nas estações e
em alguns lugares nas passagens de nível. Onde tinham
essas casas da Rede sempre parava o trem. Eram casas
de turmeiro, de trabalhador conservador. Tinha essa
estação em frente à Vila Oficinas, para o pessoal que
desembarcava ali, no Capão do Imbuia. (Sr. Sidney
Grosko, segurança da RFFSA)
O desvio da Vila Oficinas encontra o Ramal Curitiba-Paranaguá e segue, no
PELOS TRILHOS
sentido que o percorremos, até o centro de Curitiba. Em determinado momento,
38
e o percurso entre elas, pode ser apreendida a partir de um trajeto claro e definido,
a linha férrea passa sob um viaduto na Linha Verde (antiga BR-116) e este ponto,
vizinho à parada Cajuru, é o limite desta paisagem. Das Oficinas até o referido cruzamento despontam dois pequenos núcleos de edificações ferroviárias: as casas de turma das paradas Stresser e Cajuru. Essa paisagem, composta pelas vilas ferroviárias
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dado pela linha do trem e o seu entorno13.
Da mesma forma que a próxima paisagem-trajeto, os trilhos e a Av. Pres.
Affonso Camargo seguem lado a lado. Antes disso, no final de década de 1920, aquela via, então conhecida como Av. Capanema, partia do Largo Bom Jesus (atualmente,
Largo Baden Powell) e não avançava muito além do pátio 108. Com a construção das
oficinas no Bairro Cajuru, essa avenida, de mão simples, chegou até o desvio do km
104 (IPPUC, 1972). Somente na década de 1970 estendeu-se até Pinhais, em um
traçado que segue as curvas da ferrovia. Do outro lado da ferrovia está a Av. Pref.
Maurício Fruet. Ambas, hoje em dia, são largas e bastante movimentadas. Assim,
para quem caminha sobre a linha do trem, os ruídos da cidade são uma companhia
constante.
Uma das singularidades desta paisagem é a distância entre o trilho e as ruas.
Esta distância, determinada pelo recuo da via férrea, é ocupada por grama e uma
vegetação rasteira, além de ciclovias. Alguns fungos alaranjados, presentes em outras paisagens-trajetos da ferrovia, destacam-se nos dormentes enegrecidos e, junto
com pequenas flores lilases, amarelas e púrpuras, colorem o chão verde ao redor dos
trilhos. Às vezes concentradas, às vezes esparsas, árvores de pequeno e médio porte
também estão presentes nesta área verde, sempre a uma certa distância do trilho.
Há um considerável fluxo de pessoas que atravessam as linhas neste trajeto, além
de movimentados cruzamentos de trens com carros e ônibus. São quatorze os cruzamentos improvisados para pedestres: pequenas trilhas, em meio à vegetação, que
recortam a paisagem em diferentes pontos. Em um deles, um curioso “calçamento”
feito com tapetes e pedaços de carpetes velhos facilita o acesso de quem quer chegar
ao terminal de ônibus do Capão da Imbuia. Os cruzamentos de pedestres dão acesso
a ruas, escolas, estações-tubo, ao centro de abastecimento do Armazém da Família;
ligam as avenidas Pres. Affonso Camargo e Pref. Maurício Fruet e algumas ruas perpendiculares a essas avenidas. Sobre as linhas férreas, é frequente a presença de
gios de oferendas de religiões de matriz africana. A linha e suas orlas tornam-se um
lugar de passagem ou de culto para alguns, mas também um não lugar para outros,
que ali despejam restos de construção e sacos plásticos.
Grande parte das paisagens que analisamos ao decorrer deste trabalho foram apreendidas e
são apresentadas enquanto trajetos.
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cacos de cerâmicas, garrafas, pedaços de velas – brancas, vermelhas e pretas. Vestí-
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Vegetação e trilhos.
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Oferendas sobre trilhos.
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Neste trajeto os trilhos são a fronteira entre os bairros Capão da Imbuia e
Cajuru, bastante populosos, mas predominantemente horizontais. Aqui, as casas
começaram a se estabelecer depois da construção das Oficinas e da consolidação dos
principais acessos àquelas paragens, como as grandes avenidas contíguas ao trilho.
O isolamento da Vila Oficinas começa a ser vencido nas décadas de 1960 e 1970
(DITTRICH, 1962).
2.1 Parada Stresser/km 104
Logo que o desvio das Oficinas encontra o Ramal Curitiba-Paranaguá há um
conjunto de casas construídas pela Rede, conhecido como parada Stresser, posto
de Cruzamento Engenheiro Theodoro Stresser ou, simplesmente, km 104 – que na
linguagem ferroviária indica a distância daquele ponto em relação ao início da linha,
neste caso, Paranaguá. São seis residências térreas e de madeira que ficam entre os
trilhos e a Av. Pres. Affonso Camargo. Dentre as seis, três encontram-se “bastante
descaracterizadas por reformas” (PFC – Relatório Paisagem Material). A primeira e
mais antiga das casas foi construída na mesma época que as Oficinas, para servir de
moradia ao guarda-chaves, funcionário que era responsável pela chave que altera o
trilho, definindo a direção por onde o trem vai seguir.
Logo o lugar se tornou também um posto de controle e uma parada, por causa,
principalmente, da crescente expansão habitacional das redondezas. Junto àquela
primeira casa há um elevado de concreto, ainda com alguns tacos de madeira do
chão: ruínas de um posto de cruzamento que, em 1985, foi batizado como Engenheiro Theodoro Stresser14. Este posto fazia o controle das locomotivas que entravam e
saíam das oficinas, dos trens de carga, de passageiros e das litorinas que seguiam
pelo Ramal Curitiba-Paranaguá. Como lembra o Sr. Leocádio, ferroviário que hoje
PELOS TRILHOS
vive nessa pequena vila, ali também “era uma estaçãozinha, pequenininha. Tinha
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agente de estação que cuidava e tudo […,] dava aquele ‘pode’ para ir viajar, essas
coisas de estação”. O desembarque era feito na linha mesmo: “As pessoas que moravam pra cá não pegavam o ônibus. Pegavam o Subúrbio. Quem morava aqui, nas
redondezas, descia tudo aqui.” (Sr. Leocádio).
14
Disponível em: http://www.estaçõeosdetrens.com.br. Acesso em: 04 set. 2010.
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Os trens de subúrbio eram uma alternativa de transporte coletivo, sobretudo
frente à precariedade do transporte rodoviário entre os municípios aos quais atendia. Eles saíam cedo de cidades vizinhas, transportando trabalhadores, e chegavam
a Curitiba perto das sete horas da manhã. Havia três linhas de subúrbio: a de Rio
Branco do Sul, a do Passaúna (com escala em Araucária) e aquela que passava pela
parada Stresser, vinda de Roça Nova, passando por Piraquara e Pinhais (Correios dos
ferroviários, jun. 1968). Os trens de subúrbio foram um anúncio, bastante precoce,
da formação da Região Metropolitana de Curitiba.
Quatro casas da parada foram construídas em momentos subsequentes ao da
primeira casa. Abrigaram, conforme indica a garagem de trole15 (pequena edificação
de madeira com porta tipo garagem), o pessoal da Via Permanente, responsável pela
manutenção da linha. No jargão ferroviário: uma “turma”. Como recorda o ferroviário
Sidnei Grossko: “Eles tinham um percurso para fazer, tipo, dois ou três quilômetros
[de trilhos] para fazer a manutenção […]. O pessoal conservava tudo. Limpava bueiro, as canaletas de chuva, trocava os parafusos, trocava as placas, trocava o trilho,
trocava dormente”. A organização desse pessoal é explicada pelo Sr. Nery: “Tínhamos as turmas fixas e as turmas volantes. Tinha o mestre de linha, que coordenava
toda a seção e coordenava as turmas fixas e as volantes, através dos feitores de
turma fixa e de turma volante, ele coordenava os trabalhadores de linha”.
A última das seis casas foi construída recentemente, há aproximadamente 13
anos, quando o Sr. Leocádio teve sua antiga moradia – também uma casa da Rede –
demolida em favor da construção do prolongamento da Av. Getúlio Vargas, próximo à
atual Rodoferroviária. Assim como na maioria das casas construídas pela Rede, hoje
vivem, nas casas do km 104, ferroviários (aposentados ou não) e seus familiares.
Um pouco adiante do km 104 é possível observar os dormentes de um antigo
desvio que levava ao Instituto Brasileiro do Café, onde hoje estão instalados depósitos do Armazém da Família e da Justiça do Trabalho. Era um longo desvio, que
Curitiba, indo “até quase ali, no Colégio Uruguai e recuava para entrar no IBC […]. A
15
O trole, também conhecido como vagonete, era usado no trabalho dos turmeiros para transporte de equipamentos e materiais: “eles tinham uma casinha que tem uns trilhos, que saem de
lá e que vêm para cá [para o ramal]. É onde ficava o vagonete. A casinha do vagonete. Então,
ele sai daqui, entra lá em cima da linha. Eles giravam o vagonete e punham certo na linha, para
andar com o vagonete.” (Sr. Sidnei Grossko – segurança da Rede aposentado).
PELOS TRILHOS
começava em frente ao posto de controle e seguia paralelo ao ramal, em direção a
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Ruínas do posto de cruzamento do km 104.
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Casas da Parada Stresser da perspectiva da Avenida Presidente Affonso Camargo (sentido
Paranaguá-Curitiba).
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Casas da Parada Stresser da perspectiva dos trilhos (sentido Curitiba-Paranaguá).
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máquina ia até lá e aí empurrava de recuo para ir para o IBC. Ela cruzava a Maurício
Fruet.” (Sr. Leocádio). Os galpões do IBC, que têm sua instalação datada na década
de 1960, são gigantescos: “Nós vinhamos ali com café e feijão. Aqui dentro do IBC
você colocava 14 vagões” (Sr. João de Souza Albino – maquinista).
Alguns metros à frente do desvio para as Oficinas, no sentido Paranaguá, exis-
tia também uma seringa, onde a Rede realizava o descarregamento de bois que vinham em vagões-gaiola. Um desembarque quase sempre acompanhado pelos olhos
fascinados de crianças que moravam na região: “vinham os vagões de bois, descarregavam ali, e os caminhões carregavam os bois para levar para os clientes [frigoríficos]. Era um troço muito bem feito. Com os próprios trilhos usados” (Sr. Leocádio).
2.2 Parada Cajuru
Próximo ao viaduto da Linha Verde fica a parada Cajuru, que conserva hoje
quatro casas. A exemplo da parada Stresser, as casas beiram o trilho do trem. Mas,
enquanto naquela primeira vila as casas estão entre o trilho e a Av. Pres. Affonso
Camargo, nesta estão entre o trilho e a Av. Pref. Maurício Fruet.
A principal casa desta vila é uma edificação de alvenaria que fica na esquina da Rua Santo André,
em um quintal com grandes araucárias. Esta edificação tem cobertura em duas águas com telhas
cerâmicas e apresenta lambrequins nos beirais. Possui ainda as esquadrias originais de madeira.
[…] Junto a esta edificação encontramos outras três casas, estas de madeira, com suas arquiteturas
bastante alteradas e em mau estado de conservação. (PFC – Relatório Paisagem Material)
Segundo a Sra. Diair, filha e viúva de ferroviário (seu pai era mestre de linha
e seu marido, fiscal de departamento), que mora em frente às casas mencionadas,
desde 1956, havia mais duas casas na pequena vila ferroviária, do outro lado da
PELOS TRILHOS
via16, e o fluxo de pessoas era intenso em função do trem de subúrbio, que tinha ali
46
uma de suas paradas. O Sr. Leônides Thur, funcionário da Companhia Força e Luz e
dono de um antigo armazém na região, faz a descrição desta parada:
Tal informação foi confirmada por antigas fotos aéreas da parada (IPPUC, 1972) – fotos estas
nas quais também foi possível visualizar a garagem de trole ou vagonete (hoje inexistente) e a
estação, no terreno ao lado da casa de alvenaria.
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Casas da parada Cajuru da perspectiva dos trilhos (sentido Paranaguá-Curitiba).
Casas da parada Cajuru da perspectiva dos trilhos (sentido Curitiba-Paranaguá).
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A Estação era até bem grandinha. A turma em dia de chuva se escondia ali […]. Depois tinham as
casas da Rede. A Estação tinha uma casa perfeita, toda bonitinha […] só que era marronzinha. Era
meia estreitinha, mas era comprida. Era coberta para os dois lados, tipo chalezinho.
A quantidade de operários que utilizava o trem e saltava na parada Cajuru era
significativa: “o pessoal que vinha trabalhar, vinha de Piraquara, Banhado, a maioria
descia aqui para trabalhar, porque tinha a Irmãos Thá ali para baixo e tinha bastante
industriazinha por aí, sabe? E tinha o Centro Polítécnico, que eles estavam construindo.” (Sr. Leônides Thur). Por ser uma região próxima ao pátio 108, a meio caminho
para as Oficinas, vários trabalhadores da ferrovia estabeleceram-se nas imediações:
“tinha o Zé Linguiça, tinha o Cordeiro, tinha o Gervázio. Aqui era quase só o pessoal
da Rede que morava. Era maquinista, foguista, carvoerio, chefe de trem. Tinha o
Seu Vitório ali, que faleceu ano passado” (idem). Muitos desses trabalhadores pegavam a maria-fumaça que ia até a Vila Oficinas. Alguns moradores também tomavam
esse sentido para se divertir: “Era até gostoso. A gente ia pescar lá para Piraquara.”
(idem).
Além das casas da própria Rede onde moravam “turmeiros” da via perma-
nente, havia uma garagem do vagonete, recorda o Sr. Leônides Thur, onde ficavam
guardadas as ferramentas dos trabalhadores que também eram emprestadas aos vizinhos. Quase todos que vivem nas casas que eram (ou são) da Rede convivem com
uma situação delicada de despejo sempre em iminência, como afirma a Sra. Diair:
“parece que no próximo ano vão tirar essas casas daí”. Essa relação e a incerteza da
permanência das vilas ferroviárias decorrente da extinção da Rede foi expressa em
diferentes situações e lugares, por diferentes pessoas. Ela é talvez o maior incômodo
que esses moradores, ferroviários ou não, têm em relação ao complexo ferroviário.
O trem, mesmo com seu barulho e apito, não chega a incomodá-los. Ele passa oito
vezes por dia, e na altura do km 104 são realizados também alguns testes de força.
Pouco, perto do trânsito das avenidas onde estão localizadas as casas dessas duas
PELOS TRILHOS
vilas ferroviárias, em especial na parada Cajuru, que fica ao lado de um cruzamento
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de intenso fluxo de veículos.
Neste trajeto, a proximidade com o centro da cidade fica cada vez mais eviden-
te, não só pelo aumento desse ruído típico das grandes metrópoles – de carros, ônibus, motocicletas, buzinas, etc. –, mas também pela verticalização das construções.
São as edificações, prédios, viadutos e o próprio relevo da cidade que encobrem a tão
bela vista da Serra do Mar que acompanhou o viajante até aqui.
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3 ª PA I S AG E M
Trajeto Viaduto BR 116/Linha Verde – Viaduto do
Capanema
Era uma estrada que beirava a linha de trem. […]
O progresso, porém, também a atingiu e a Avenida
Capanema tomou a direção dos trilhos, à direita, deixando
São José a denominação da rua que quebrava para a
esquerda [onde hoje é o Hospital Cajuru…] Embora
Curitiba fosse considerada moderna e progressista,
possuía, nos anos 40, perto de 150 mil habitantes.
E a Avenida Capanema, ou Affonso Camargo, como
deve ser considerada hoje, cresceu em função de uma
circunstância maior: a estrada de ferro. […] A avenida
Capanema custou a decolar […] Outros bairros vieram a
formar-se e lá pelas bandas do Capão da Imbuia, onde a
rede ferroviária também se assentava, foram aparecendo
e o bairro foi se tornando realidade. Com isso, a Avenida
Affonso Camargo pôde sair daquela espécie de estagnação
e, ao lado da linha de trem, que nunca a abandonou,
cresceu, populou-se e inscreveu-se definitivamente na
história, contemplando o aspecto urbano com melhoria
fundamental para o progresso incontrolável da cidade.
(HOERNER JÚNIOR, 1989: 109)
Este percurso está na fronteira entre os bairros Jardim Botânico e Cristo Rei. A
com a ferrovia17. A especificidade da paisagem se dá pelas relações do trilho com a
cidade: o desnível do trilho frente à Av. Pres. Affonso Camargo e a respectiva ciclovia, aramados que cercam o ramal e o isolam, a passagem pelo Jardim Botânico,
E sobre o qual optamos, por uma questão analítica, discutir no capítulo “Quinta paisagem”,
que versa sobre o que chamamos de “sociedade ferroviária”.
17
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paisagem é bastante heterogênea e apenas o Hospital Cajuru guarda relação direta
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Trecho paisagem 3 (sentido Paranaguá-Curitiba).
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os prédios altos no decorrer do trajeto, os cruzamentos de pedestres cada vez mais
escassos.
Como pontos de referência dos extremos da paisagem temos dois viadutos.
A região era propriedade do Barão de Capanema. Como a Estação ainda não estava
pronta, em 1884, a princesa Isabel e seus filhos, em visita ao Paraná, embarcaram no
trem em direção a Paranaguá, na chácara do Barão. A região começou a ser ocupada
por ferroviários na década de 1920, devido à proximidade com o pátio 108, dividindo
o espaço com as chácaras, como a Santa Bárbara, do Desembargador Antônio Martins Franco – no local onde está hoje o Jardim Botânico (FENIANOS e JUNG, 1996:
21). Na altura do parque, a linha férrea começa a ficar abaixo do nível da rua. “Esse
desnível é garantido por um muro de arrimo de concreto entre as vias. Tal condição
de desnível não permite que a linha seja cruzada por ruas ao longo deste trecho e as
únicas transposições são cruzamentos de pedestres através de escadas de concreto”
(PFC – Relatório Paisagem Material) que estão próximos às estações-tubo.
Além disso, esse desnível marca fortemente a paisagem com o desaparecimento visual do trem para
quem está em cima, na Avenida Presidente Affonso Camargo, e o contrário para quem está embaixo,
ao longo da Rua Doutor Mário Lopes dos Santos, que tem a presença visual do trem e como fundo
o muro de arrimo. Este muro se encontra em grande parte decorado com grafites, arte urbana
frequentemente encontrada nos espaços de paisagem ferroviária, inclusive vagões. (idem)
Próximo à Rodoferroviária, o trilho volta a se nivelar com a rua. As experiên-
cias de andar sobre o trilho ou beirá-lo através da ciclovia são distintas daquelas que
se tem quando o trilho está abaixo da Av. Pres. Affonso Camargo. Na ciclovia, boa
parte da perspectiva sobre o trilho é do alto. Pode-se observar o trecho mais imediato, ou lançar o olhar para os trechos mais distantes. O mesmo não acontece ao andar
armadilhas dos dormentes e das pedras, a muralha criada pelo muro de arrimo entre
o trilho e a rua somada às curvas da linha e à vegetação um pouco menos rasteira
dificultam a visão do que está logo à frente. E, em muitos momentos, não há outra
alternativa que não seguir em frente ou retornar: saídas laterais são impossíveis.
Restos de marmitas, cobertores, colchões e garrafas de cachaça são evidências de
que aqueles espaços são ou foram recentemente ocupados. Entre moitas, protegidos
PELOS TRILHOS
sobre o trilho: a atenção constante para não tropeçar ou torcer o pé nas pequenas
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sob as curvas, pessoas solitárias dormem. Outras, acompanhadas, comem, bebem,
fumam crack. Um não lugar18, onde pouca gente passa e pouca gente fica.
Densidade factual, individualização dos procedimentos e superabundância espacial são as
principais características do mundo contemporâneo para o antropólogo Marc Augé. Dentre as
inúmeras “consequências” destas características, associada principalmente à superabundância
espacial (correlativa a uma sensação de “encolhimento do planeta” frente aos atuais meios de
transporte, comunicação e necessidade de mobilidade), está a criação de não lugares, contextualmente opostos a casa e ao espaço personalizado. São, por exemplo, espaços públicos e
de circulação. “Os não lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das
pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de
transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde
estão estacionados os refugiados do planeta.” (AUGÉ, 2001: 36). O não lugar é um mundo prometido à passagem, ao provisório e ao efêmero. Mas também existe o não lugar como lugar: ele
nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele: relações se reconstituem nele.
Ou seja, como o lugar, o não lugar é contextual. O não lugar funciona, segundo Augé, como
espaço-paisagem, que contém uma pluralidade de lugares e impõem um excesso ao olhar que
impede que o “viajante-espectador” veja nele um lugar. O não lugar, neste caso, transforma
o espaço em uma “prática dos lugares e não do lugar” em decorrência de “um duplo deslocamento: do viajante [... e] das paisagens, dos quais ele nunca tem senão visões parciais, ‘instantâneos’, somados confusamente em sua memória. [...] A viagem [...] constrói uma relação
fictícia entre olhar e paisagem [...] onde o indivíduo se experimenta como espectador, sem que
a natureza do espetáculo lhe importe realmente. Como se a posição do espectador constituísse o
essencial do espetáculo. […] O movimento acrescenta à coexistência dos mundos e à experiência
combinada de lugar e daquele que não é mais [...] a experiência particular de solidão e, em sentido literal, de uma ‘tomada de posição’” (idem: 80 e 81).
PELOS TRILHOS
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I I – C E N T R O, C A PA N E M A , R E B O U Ç A S
Na década de 1950, o jornalista Evaristo Biscaia fez uma viva descrição da
cidade de Curitiba e de seus bairros. Entre eles, o bairro do Capanema19 com sua
paisagem tipicamente industrial: lá estavam localizados o Moinho Inglês, o engenho
de erva-mate da firma Leão Júnior, as Indústrias Fontana, a fábrica de laminação
Raul Lacerda e a subestação da Cia. Força e Luz, entre outros estabelecimentos importantes. Destacando-se das instalações fabris, erguia-se o Estádio Durival Britto e
Silva, que tinha em suas vizinhanças um conjunto residencial para operários da Rede
de Viação Paraná-Santa Catarina. “É uma parte da cidade aprazível devido aos lindos
campos e inúmeras árvores que dão ao conjunto encanto e harmonia. O impulso
dessa parte da cidade é bem recente, mas já se nota o notável desenvolvimento e
dentro em breve será, sem dúvida, um bairro de que a cidade se orgulhará” (BISCAIA, 1996: 113 e 114).
O progresso anunciado por Biscaia se confirmou. Mas parece que o encanto e a
harmonia do conjunto foram perdidos em algum momento na história. O fluxo incessante dos ônibus, na Rodoferroviária e nas canaletas da Av. Pres. Affonso Camargo,
e dos veículos, nas avenidas e viadutos, se contrapõe ao silêncio residencial de algumas ruas; a disposição dos consumidores em direção a um shopping contrasta com
o cansaço dos operários que deixam as fábricas que insistem em funcionar no bairro;
e em frente às instituições de ensino, bem iluminadas, o movimento dos estudantes
acentua o escuro abandono de armazéns antigos nas imediações. Assim, a paisagem
está marcada pelos diversos usos e funções que se desenvolveram na região, sobrepostos pelo tempo.
Mas, na primeira metade do século XX, as edificações presentes nessa área,
registradas por Biscaia, tinham uma coerência que escapa ao observador contemporâneo. E eram os trilhos e outras edificações ferroviárias que davam sentido àquele
lugar. A reconstituição dessa paisagem forma a base a partir da qual é possível compreender o emaranhado de tantas outras paisagens que ali se cruzam atualmente.
Na época, Biscaia incluía como parte do Capanema regiões que hoje fazem parte dos bairros
Jardim Botânico e Rebouças.
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PELOS TRILHOS
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Para efeitos de análise e de apresentação, a região foi dividida em cinco pai-
sagens, de acordo com as funções das edificações selecionadas e sua relação com a
ferrovia. São os conjuntos de edificações do Pátio do km 108 e do Complexo Central
da Rede e as construções do entorno, compostas pelos circuitos dos Desvios Particulares, da Sociedade Ferroviária e dos Lugares Públicos e de Serviços.
4 ª PA I S AG E M
Conjunto Pátio km 108
Desde que foi inaugurada, em 1885, a ferrovia foi ocupando com suas instala-
ções uma grande área nessa região. Os limites dessa área estavam marcados pelos
trilhos do Ramal Curitiba-Paranaguá (hoje, Av. Pres. Affonso Camargo) e do Ramal
Curitiba-Ponta Grossa (hoje, Rua Conselheiro Laurindo), pela Rua Engenheiros Rebouças e pelo Rio Juvevê. Essa região era conhecida como campo do Schimidtling e
chegou a ser cogitada para receber a Estação, em 1880. Mas a comissão responsável
pela escolha descartou o local por estar sujeito às inundações dos rios Belém, Juvevê
e Capão Barbado, além de ficar, na época, muito distante do núcleo central da cidade
(RFFSA, 1985). Mas a ferrovia não deixou de aproveitá-lo. Lá foram assentadas as
linhas do pátio de manobras do km 108, o Depósito das Locomotivas e, mais tarde,
a Rodoferroviária.
Este conjunto de edificações estava no centro de outras paisagens ferroviárias
de Curitiba. Os ramais que vêm de Paranaguá, Ponta Grossa e Rio Branco do Sul
marcavam seu encontro nas linhas do pátio de manobras; grandes indústrias do Rebouças estavam a ele ligadas por desvios particulares; nas suas margens, floresceu
uma sociedade de ferroviários, com suas escolas, associações de classe, armazéns e
clubes recreativos. A Ponte Preta, vigiada apelo Edifício Teixeira Soares, era o liame
PELOS TRILHOS
que atava a antiga Estação e seu entorno àquele conjunto.
54
4.1 O Viaduto do Capanema enquanto cruzamento
Hoje, as linhas de ferro que dão entrada ao antigo Pátio 108 descansam às
sombras do Viaduto do Capanema. Com seus 268 metros de extensão, apoiados em
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Fragmentos de paisagens centrais da perspectiva do Viaduto do Capanema (sentido Rebouças). No canto inferior esquerdo está o pátio de manobras do km 108; no canto superior
esquerdo, o Moinho Rebouças; ao lado do moinho, a Matte Leão. No canto inferior direito
está os fundos da Rodoferroviária; logo acima, a antiga Fábrica de Phospohoros. Cruzando
PELOS TRILHOS
a paisagem é possível observar o Viaduto do Colorado.
Imagem frontal da Rodoferroviária ao lado da Garagem das Litorinas.
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cinco pilares e passando a uma altura de seis metros e meio em relação ao solo, o
viaduto se destaca na paisagem (Correios dos Ferroviários, 1969). Além dos trilhos,
o Viaduto do Capanema se sobrepõe às avenidas Pres. Affonso Camargo e Dr. Dario
Lopes do Santos. Mas, para além da sua grandiosidade como edificação, o que chama a atenção é o caráter emblemático do viaduto enquanto cruzamento entre ruas,
trilhos e passagens de pedestres.
Os cruzamentos fazem parte da paisagem ferroviária. Neles, os trens têm a
preferência, tanto por seu fluxo menos intenso quanto por suas proporções – são toneladas e mais toneladas de ferro que cruzam as ruas e avenidas da cidade. Por isso
ele não para, apenas diminui a velocidade. Veículos e pessoas, nos cruzamentos de
nível, é que devem parar, olhar e escutar. O apito do trem soa repetidamente quando
ele se aproxima de cada cruzamento. É um som alto que recorta a paisagem sonora
da cidade.
O respeito às regras de trânsito nesses espaços é o que permite que trens,
pessoas e veículos em movimento se encontrem momentaneamente, se aproximem
fisicamente e estabeleçam uma relação, mesmo que efêmera, de vizinhança. Esse
encontro é, portanto, a proximidade sem o choque. Existe, no entanto, uma certa
tensão nos cruzamentos, pela potencialidade de colisão. E quanto maior o fluxo de
coisas que o perpassam, maior é esta tensão. Isso porque acidentes eventualmente
acontecem. Atropelamentos de animais, que cruzavam os trilhos nas áreas rurais de
Curitiba, eram tão comuns no passado como hoje são as colisões com os automóveis, e estão registrados nos relatórios da Rede. Além disso, a memória de antigos
moradores da região guarda algumas dessas fatalidades ocorridas nos trilhos. João
Lazzarotto, filho de ferroviário, que nasceu e que ainda trabalha nas imediações do
Capanema, lembra-se do atropelamento da charrete da Sra. Rosa Bordingnon, na
década de 1940. As cancelas instaladas pela RVPSC, alguns anos antes, não conseguiram evitar a colisão20, mas não houve vítimas fatais.
PELOS TRILHOS
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Com o crescimento da cidade e com o rápido desenvolvimento do transporte
rodoviário após a década de 1950, aumenta a preocupação da RFFSA com os cruzamentos em Curitiba. Antes da construção do Viaduto do Capanema, a Avenida
Centenário (hoje, Rua Ubaldino do Amaral) cruzava as linhas da ferrovia no mesmo
nível. Com o aumento do fluxo de veículos, a RFSSA instalou ali um sistema moder-
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Informação presente no Relatório da Rede de 1936.
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Viaduto do Capanema (sentido Paranaguá-Curitiba).
Pátio de manobras visto do Viaduto do Colorado.
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no de sinalização ótica e acústica, em substituição às antigas cancelas. Na verdade,
essa medida era parte de um programa mais abrangente, que começava a sinalizar
as principais passagens de nível nos ramais Rio Branco, Paranaguá e Ponta Grossa
(RFFSA, 1962).
Mas, na década de 1960, a ferrovia começava a entrar em uma encruzilhada.
Antes, sinônimo da modernidade, ela pareceu incapaz de acompanhar a aceleração
do fluxo de mercadorias, pessoas e ideias no Brasil da segunda metade do século XX.
Em 1965, teve início o Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Com esse plano,
a cidade repensou seu destino de estrutura radial – marcado pelo plano Agache – e
desenvolveu em seu lugar uma proposta de linearização do crescimento, a partir de
eixos estruturais em direção norte-sul e leste-oeste. Para boa parte dos administradores públicos e da elite empresarial de Curitiba, os extensos territórios ocupados
pela ferrovia em uma região central da cidade passam a representar uma barreira a
ser suplantada (DITTMAR e HARDT, 2006). O Viaduto do Capanema começou a ser
construído em 1969 para servir de ligação entre os bairros das regiões norte e sul
da cidade, tornando-se um importante acesso para quem quisesse alcançar a antiga
BR-116 (Linha Verde) e a BR-277 (Correios dos Ferroviários, nov. 1969). O viaduto,
ao transpor pelo alto o Pátio 108, é um marco no processo de desterritorialização da
ferrovia. Com ele, a cidade dá sinais de que vai avançar sobre as instalações ferroviárias, que até então governavam soberanas naquela região.
4.2 Pátio de Manobras km 108
Onde é a Rodoferroviária era o Pátio 108. Dali é que saíam
todos os trens de carga. Entre a Estação Ferroviária e o
estádio Durival de Britto era tudo cheio de linhas. Os trens
de carga eram formados ali. Mas quando começaram fazer
PELOS TRILHOS
a Rodoferroviária, todo o dia você via a mudança. (Sr.
58
Pimpão – engenheiro aposentado da Rede).
A ocupação do campo do Schimidtling pelas linhas de trem foi lenta, obede-
cendo às novas demandas do serviço ferroviário e às condições de investimento das
diferentes administrações dos caminhos de ferro. Em 1885, as manobras para montagem das composições eram feitas no pátio da própria Estação, mas com as inau-
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gurações de novos ramais, como o de Ponta Grossa, em 1892, e o transporte crescente de gente e mercadorias, o campo do Schimidtling foi cumprindo essa função.
Em 1915, durante a administração da Brasil Railway, já havia ali alguns desvios em
formato de semicírculo usados para manobrar as locomotivas (BELTRÃO e FRANCO,
1915). Na década de 1930, estava se consolidado o formato triangular das linhas do
pátio de manobras: pelo Ramal Curitiba-Paranaguá, um desvio iniciado no km 108
atravessava todo o terreno na diagonal, indo de encontro ao Ramal Curitiba-Ponta
Grossa, na altura da Av. Getúlio Vargas. Na junção dessas linhas, um novo desvio
ajudava a compor um triângulo de reversão para as locomotivas. Esse longo desvio
em diagonal do km 108 se subdividia em várias linhas paralelas, formando um pátio
de manobras, utilizado para compor trens de carga21.
Nas linhas paralelas, todos os dias dezenas de vagões aguardavam a vez de
serem arrastados pelo movimento frenético de pequenas locomotivas e de funcionários da rede, e engatados nas composições. Mas as atividades no Pátio 108 não se
restringiam apenas às manobras de locomotivas e vagões. Na década de 1940, as
crianças do bairro acompanhavam o embarque e o desembarque do gado em uma
seringa localizada em um dos desvios. E torciam pela fuga de um dos bois, para se
divertirem com a farra da captura, segundo o relato de João Lazzarotto. Esse desvio,
que terminava atrás do Estádio Durival Britto e Silva, foi utilizado mais tarde pelo
Serviço Rodoviário como um dos pontos para a carga e descarga de caminhões. Além
disso, no pátio foram construídos um barracão para o pessoal da via permanente,
um galpão de carpintaria, uma oficina de manutenção de carros de passageiros e
dezenas de casas para os operários, de acordo com os relatórios da Rede, entre 1934
e 1952. Foi construído, ainda, o imponente Depósito de Locomotivas, que hoje é a
Garagem das Litorinas.
Tudo aquilo ali era o Depósito das Locomotivas. A locomotiva
chegava e fazia uma revisãozinha ali. Mas conserto era nas
oficinas. (João de Souza Albino – maquinista)
As composições com carros de passageiros continuariam a ser montadas no pátio da antiga
Estação.
21
PELOS TRILHOS
4.3 Depósito das Locomotivas/Garagem das Litorinas
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Até 1942, as locomotivas eram recolhidas ao pátio da antiga Estação. Ficavam
em uma rotunda: uma construção peculiar, em forma de ferradura, onde estacionavam várias marias-fumaças lado a lado, com trilhos que desembocavam em uma
estrutura central, o que permitia girar a locomotiva em direção ao compartimento
reservado para ela. Naquele ano, a que existia em Curitiba começou a ser demolida
(RVPSC, 1942). Para substituí-la, iniciou-se a construção, em regime de empreitada,
do moderno Depósito de Locomotivas, localizado no Pátio 108. Essa obra foi cons­
truída na administração do superintendente Cel. Durival Britto e Silva, assim como as
Oficinas. E, guardadas as devidas proporções, acabou por compartilhar com estas as
grandes dimensões e o uso de certas técnicas construtivas. A edificação foi projetada
para ter 60 x 45 metros. Com três vãos de 15 metros cada um, a cobertura foi feita
com laje impermeabilizada. Sua estrutura é de concreto armado, com fundações em
estacas pré-moldadas. No seu interior, quatro valas foram construídas para limpeza
e manutenção das locomotivas. A obra também foi dotada de escritórios, armazém
e ferramentaria (RVPSC, 1944). Em 1947 ela estava praticamente pronta. As linhas
de acesso atravessavam o depósito e seguiam nos dois sentidos. De um lado, se encontravam com as linhas em diagonal do km 108, cruzando uma ponte sobre o Rio
Ivo. Na frente, comunicavam-se com o Ramal Curitiba-Paranaguá22. Hoje é utilizada
como garagem e local para reparos das litorinas e carros de passageiros de uma das
concessionárias da via férrea. Além de servir de abrigo para a memória ferroviária,
acolhendo o acervo da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF).
4.4 Rodoferroviária
Em 1880 era notória a disposição das autoridades municipais de Curitiba em
favorecer a construção dos caminhos de ferro, confiando aos itinerários dos trens o
PELOS TRILHOS
destino da própria cidade. Com a década de 1960, os sinais apareceram trocados.
60
Para realizar estudos e atender às novas orientações do Plano Diretor de Curitiba,
em 1965, uma comissão de engenheiros foi designada pela RFFSA. Presidida pelo Sr.
A ligação do Depósito de Locomotivas com o Ramal Curitiba-Paranaguá, e esse próprio ramal,
em toda a extensão do km 108 até a Ponte Preta, foram retirados ou desativados com as obras
de ampliação das avenidas Pres. Affonso Camargo e Sete de Setembro.
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PELOS TRILHOS
Garagem das Litorinas.
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Euro Brandão, essa comissão elaborou um influente relatório, intitulado Instalações
Ferroviárias em Curitiba (1965). Era a hora de a Rede se pôr à disposição das demandas da municipalidade. Já com 400 mil pessoas vivendo em Curitiba, a comissão
concluiu que a antiga Estação “[…] é incompatível com o desenvolvimento vertiginoso
registrado nas últimas décadas e constitui, entre outros motivos, entrave ao melhoramento urbanístico, econômico e populacional da cidade” (idem). Além disso, o Pátio de Manobras do km 108 já não atendia às necessidades crescentes das operações
de carga da Rede23. Sua conformação triangular impedia a utilização adequada da
área total do terreno, formando “uma área grande, com mau aspecto e sem possibilidade de tratamento urbanístico ou aproveitamento ferroviário” (idem). O Pátio do km
108 também não poderia ser ampliado sem graves entraves para manobras e para o
tráfego da cidade.
As conclusões dessa comissão são radicais, recomendando a política de “terra
arrasada”. O crescimento da cidade já não comportava o tráfego de trens de carga
e por isso era preciso fechar os ramais Curitiba-Ponta Grossa e Rio Branco. Em um
novo Ramal Curitiba-Ponta Grossa, contornando o perímetro urbano, seria construído
um moderno pátio para as operações de carga24. Apenas a linha Curitiba-Paranaguá
deveria permanecer para atender aos trens de passageiros, mas agora operando em
um novo terminal ferroviário, que seria construído no Pátio do km 108. Com essa medida, a intenção era abrir os terrenos mais centrais da Rede ao transporte rodoviário.
Esse plano sugeria a retirada da Ponte Preta, para facilitar a circulação de veículos na
Rua João Negrão; e a abertura das ruas Barão do Rio Branco, Conselheiro Laurindo,
Mariano Torres, Dr. Faivre e General Carneiro: todas elas cortando e fracionando os
terrenos e edificações da Rede. As despesas com as novas instalações ferroviárias
seriam cobertas com o loteamento e a venda desses imóveis centrais da Rede, incluindo a antiga Estação.
Em 1968 avançam as negociações da prefeitura com a Rede, já orientadas
PELOS TRILHOS
pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). No dia 25 de
62
Em 1949, começava a construção da Estrada de Ferro Central do Paraná, que expandiria a
malha ferroviária até o norte do estado, principal região produtora de café (RFFSA, 1985).
24
Sobre os ramais, as propostas da comissão foram parcialmente aplicadas. O ramal do antigo
traçado Curitiba-Ponta Grossa foi substituído em 1977 pela variante Pinhais, que passa ao lado
do Rio Iguaçu. Esse novo ramal recebeu um moderno pátio para as operações de carga: o Pátio
Iguaçu (DITTMAR e HARDT, 2006). O Ramal Rio Branco, no entanto, permanece em operação.
23
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março de 1969, o presidente da RFFSA, General Antônio Andrade Araújo e o prefeito
municipal de Curitiba, Omar Sabbag, firmaram o convênio para a construção da “Estação Rodoferroviária de Curitiba” (RFFSA, 1985). A RFFSA cederia o terreno do Pátio
do km 108, e a construção ficaria a cargo da prefeitura, que precisava de uma nova
rodoviária, já que as instalações do Guadalupe estavam deficitárias. A construção do
Viaduto do Capanema fez parte dessas negociações.
Com o convênio firmado entre a prefeitura e o IPPUC, em 1969, tem início o
processo para a construção da Rodoferroviária, com pretensões futurísticas: ela seria
a primeira no país a integrar, em um mesmo terminal, os transportes rodoviário e
ferroviário de passageiros. A nova Estação seria inaugurada no dia 13 de novembro
de 1972, com um projeto assinado pelo arquiteto Rubens Meister, importante criador de outros grandes espaços públicos da cidade, como o Teatro Guaíra e o prédio
da Prefeitura Municipal de Curitiba. Contratado pelo prefeito Omar Sabbag, Meister
deu mostras da sua capacidade para projetar uma “estrutura simples, usando telhas
de cimento-amianto e grandes vãos que o programa solicitava” (SUTIL e GNOATO,
2005: 79). No setor rodoviário, “um detalhe construtivo chama atenção na concepção estética da obra: o pilar que ‘torce’ de lado, na relação do apoio no piso e na
junção com a viga superior” (idem: 79 e 80)25. Já os pilares do setor ferroviário,
apesar de em proporções menores, também têm seu encanto: lembram trilhos. Uma
longa plataforma principal foi projetada para o embarque e desembarque dos trens
de passageiros com destino ao litoral. Hoje, o espaço recebe a animação colorida dos
turistas com suas sorridentes máquinas fotográficas, mochilas e óculos escuros. Em
frente, uma plataforma menor perdeu seu uso original. Lá desembarcavam os operários dos trens de subúrbio, com seus passos rápidos e pontuais e com suas marmitas
e preocupações a tiracolo, em direção ao trabalho.
Chama atenção, na paisagem, as dimensões acanhadas da edificação do setor
ferroviário em relação ao rodoviário. Essa característica é sintomática. A nova esMas, agora, pelas mãos da Prefeitura Municipal de Curitiba e não por iniciativa da
Rede. Os trens já não tracionam a modernidade. A Rodoferroviária é a materialização
Mas alterações na execução do projeto, feitas pela administração municipal posterior, como
o fechamento de passagens inferiores e a construção de novas escadas de acesso e passarelas,
além da ampliação equivocada das áreas destinadas ao comércio, traíram a funcionalidade do
desenho original, levando o arquiteto a protestar nos jornais.
25
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tação ferroviária ganha linhas modernas e funcionais com o novo desenho da gare.
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Rodoferroviária de Curitiba: espaços de uso ferroviário.
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disso. As diferenças dos espaços reservados aos seus setores é a expressão da centralidade ocupada agora pelas rodovias, no transporte de passageiros.
O relatório Instalações Ferroviárias era a admissão de que, no quadro urbano,
a preferência seria dada ao sistema rodoviário. As áreas que estavam reservadas à
ferrovia seriam transpassadas em nome do desenvolvimento da cidade. Na década
de 1980 o Viaduto do Colorado atravessa o Pátio 108, tornando-se outra via de ligação da cidade no sentido norte-sul. Na década de 1990 o antigo Ramal Curitiba-Ponta
Grossa é retirado e a Rua Conselheiro Laurindo ganha seus contornos atuais. Terrenos foram repassados à iniciativa privada para a RFSSA pagar dívidas trabalhistas
surgidas com o processo de privatização (YAMAWAKI e HARDT, 2008). A Rua Dr. Dário Lopes dos Santos, uma continuação da Getúlio Vargas, corta os terrenos da Rede
no sentido leste-oeste, obrigando a retirada de alguns desvios, incluindo a oficina de
manutenção de carros de passageiros e algumas casas de funcionários, isolando de
vez a Vila Ferroviária e o Estádio Durival Britto e Silva do terreno do antigo Pátio do
km 108.
5ª PAISAGEM
Circuito Desvios Particulares
Longos muros e grandes galpões, pontuados por chaminés. A formação dessa
paisagem fabril, que caracteriza o Bairro Rebouças, esteve intimamente ligada às
instalações ferroviárias que havia na região. A construção da Estrada de Ferro do
Paraná, tão desejada pelas elites políticas e econômicas locais como uma solução
para o isolamento da cidade em relação ao litoral, serviu, em especial, para escoar a
crescente produção ervateira para os centros consumidores do Rio da Prata. O transporte do mate foi a principal atividade da linha férrea até as primeiras décadas do
final do século XIX, coincide com esse desenvolvimento da economia da erva-mate
e da madeira, e com a intensificação da imigração. As primeiras fábricas estavam
relacionadas com as atividades de beneficiamento ou de transformação daquelas
26
O transporte da erva-mate e de madeira começa a ser ultrapassado pelo do café na década de 1930 (KROETZ: 1985,
p. 185). Hoje, predominam o transporte de grãos (soja, em particular) e de cimento.
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século XX, junto com a madeira26. O primeiro surto de industrialização no estado, no
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matérias-primas (OLIVEIRA, 2001: 25).
A ferrovia facilitou os negócios dessa industrialização pioneira. Suas linhas
permitiam o transporte das matérias-primas e do maquinário para as unidades fabris e a condução dos seus produtos finais até o Porto de Paranaguá. Muitas dessas
empresas, próximas aos trilhos do trem, contavam com desvios particulares e eram
proprietárias dos vagões que carregavam seu material.
Na ocasião da construção dos caminhos de ferro, em 1880, os engenhos de
erva-mate de Curitiba estavam localizados no quarteirão do Mato Grosso (atual Rua
Comendador Araújo, no Bairro Batel). A produção desses engenhos alcançava os armazéns da Estação Ferroviária através do serviço de bondes de mulas, instalado em
1887. Mas a partir de 1892, com a inauguração do ramal para Ponta Grossa – que
ligava Curitiba às regiões do interior do estado – as margens daquela linha, na região
dos bairros Rebouças e Portão, começaram a receber instalações industriais mais
modernas, com seus desvios ferroviários.
O jornalista Ernesto Senna (1900), em viagem pelo estado para a inauguração
da ferrovia São Paulo-Rio Grande, em 1899, não esconde a surpresa com uma dessas
fábricas pioneiras:
Na rua João Negrão, acha-se installada em grande edificio, construido expressamente para esse
fim e que ainda agora está sendo augmentado, a importantissima fabrica de phosphoros de páo,
dos Srs. Eisenback & Hurlemann, com o titulo de Fabrica Paranaense de Phosphoros de Segurança.
[…] Machinas as mais curiosas e mais aperfeiçoadas ahi se encontram, occupando a fabrica 600
operarios, entre homens, mulheres e crianças e possuindo diversas officinas, como de carpinteiro,
latoeiro, ferreiro e marcineiro. (SENNA, 1900: 34)
A opção da Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança (hoje, Swedish
Match) pela localização no Bairro Rebouças era estratégica: ficava ao lado da linha
Curitiba-Ponta Grossa, que trazia do interior as toras e o material de consumo para
a fábrica. Ainda hoje, ao lado de seu terreno, sobre uma ciclovia e um pequeno gramado que acompanha os muros da fábrica, é possível observar alguns rastros dessa
PELOS TRILHOS
linha férrea.
zéns e residências, determinada pela proximidade com a Estação Ferroviária e com
66
ças, com o calçamento e o alinhamento das ruas, com a retificação do Rio Belém e
A ocupação da região do Rebouças a partir dessas primeiras fábricas, arma-
seus ramais, encontrou apoio nas administrações municipais. Na primeira década do
século XX, a prefeitura da cidade vai investir na infraestrutura da região do Rebou-
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Desvios (IPPUC, 1972). Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança (1),
Serviço de Subsistência da 5ª Região Militar (2), Moinhos Unidos Brasil-Mate e
Leão Jr. (3), Leão Jr. e Moinho Paranaense Limitada (4), Fábrica de Compensados
Duca (5), Desvio Novo (6), Estádio Durival de Britto (7), Moinho Anaconda (8).
Fábrica de Phosphoros de Segurança, fundada em 1895, atual Swedish Match.
67
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a canalização do Rio Ivo e com o estabelecimento de linhas de bondes elétricos (Boletim informativo Casa Romário Martins, 2000). Aos poucos, o Rebouças passa a ser
um centro industrial, com a instalação de novas empresas, voltadas para o mercado
nacional e para a exportação: cervejarias, engenhos de erva-mate, madeireiras e
construtoras. Mas tais medidas também estimularam a presença de pequenas empresas familiares na região, com produção voltada para o consumo doméstico, como
tanoarias, olarias, serralherias, marcenarias, funilarias e barricarias.
Aproveitando essas facilidades, ali se instalou, em 1934, o Serviço de Sub-
sistência da 5a Região Militar (hoje, 5o Batalhão de Suprimento do Exécito) entre a
Rua João Negrão e o Ramal Curitiba-Ponta Grossa. O Serviço de Subsistência era
encarregado do abastecimento dos quartéis do Paraná e Santa Catarina. Alimentos,
forragem para animais de carga e montaria, fardamento, munição e medicamentos,
enviados pelos fornecedores, chegavam ao Batalhão e eram por ele distribuídos pela
via férrea. Um desvio exclusivo levava a locomotiva e os vagões para o interior do
quartel (idem). Na Conselheiro Laurindo, rua que hoje ocupa o espaço destinado às
linhas do trem, o muro do quartel vai recuando progressivamente em relação à calçada, até chegar a um portão. Era por esse acesso que passava o antigo desvio.
Outra empresa que tinha seu desvio particular no Ramal Curitiba-Ponta Grossa
era a Moinhos Unidos Brasil-Mate, surgida da fusão das empresas ervateiras Tibagy e
Fontana, em 1934. A transformação da empresa em sociedade anônima, em 1943, deu
a ela a denominação atual de Fábricas Fontana S.A. Sua produção de erva-mate em
folhas torradas e moídas e em saquinhos era levada dali para as principais cidades do
país a partir de um desvio ferroviário que atravessava todo o pátio da fábrica.
No final da década de 1930, além dessas empresas citadas, contavam ainda
com trilhos exclusivos o Paiol de Pólvora e os depósitos das firmas Irmãos Matarazzo
e João Carvalho Oliveira. Entre as décadas de 1940 e 1960, essa lista vai se estender.
Em 1943, o Plano Agache acentua a vocação fabril do bairro – em sua vizinhança com
PELOS TRILHOS
as linhas – indicando que as indústrias deveriam se concentrar ali, entre a Rua Ma-
68
rechal Floriano e o Rio Belém, formando o centro industrial de Curitiba. Nessa época,
novas fábricas reforçaram o mutualismo das instalações industriais com as linhas de
trem, inaugurado pela Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança.
A empresa Leão Júnior e Cia. S.A. já experimentara a convivência com os tri-
lhos no Bairro Portão, na década de 1920. A firma, fundada por Agostinho Ermelino
de Leão, em 1901, edificou naquele bairro uma moderna fábrica, alimentada por um
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5o Batalhão de Suprimentos, construído em 1934. À esquerda é possível observar a Ponte Preta.
Mate Real, antiga Moinhos Unidos Brasil-Mate.
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desvio ferroviário. E foi a proximidade com os trilhos o motivo de um desastre: em
1930 essas instalações foram destruídas por um incêndio provocado pela fagulha de
uma locomotiva a vapor (FENIANOS, 2000). Mas, apesar dos riscos, o trem ainda
era a melhor alternativa de transporte para escoar a produção. As novas e amplas
instalações da empresa, construídas no Bairro Rebouças, entre as ruas João Negrão,
Eng. Rebouças, Rockefeller e a Av. Getúlio Vargas,27 foram servidas por dois desvios
particulares. O primeiro era uma continuação da mesma linha que atendia às Fábricas Fontana, e que chegava à Matte Leão na esquina da João Negrão com a Pres.
Getúlio Vargas. O segundo adentrava a empresa pela esquina da João Negrão com a
Engenheiros Rebouças.
Essa última linha, depois de atravessar todo o pátio da Matte Leão, também
era utilizada pela Moinho Paranaense Limitada, localizada do outro lado da Rua Piquiri. A fábrica de farinha de trigo e agente dos biscoitos Aymoré, no Paraná, pertencia a
uma sociedade formada pela empresa Moinho Paulista e pelos donos da Matte Leão –
os senhores Agostinho Ermelino e Ivo Abreu de Leão. As atividades do Moinho foram
encerradas definitivamente com um incêndio, em 1942 (Boletim informativo Casa
Romário Martins, 2000). Hoje, o imponente e belo moinho é sede da Fundação Cultural de Curitiba e passou a ser conhecido como Moinho Rebouças. No pátio do moinho
estão bem preservados os trilhos do desvio, que apontam na direção da Matte Leão,
revelando a relação que existia entre as duas edificações.
Nas vizinhanças da Matte Leão estava a empresa madeireira Raul Suplicy de La-
cerda & Cia ou Fábrica de Compensados Duca. Inaugurada em 1935, também contava
com um desvio, que se projetava em direção às instalações da empresa na altura da
Rua João Negrão com a Brasílio Itiberê. O circuito dos desvios utilizados para operações de carga não se limita aos do Ramal Curitiba-Ponta Grossa. O Desvio Novo ficava
entre o Ramal Curitiba-Paranaguá e a Av. Sete de Setembro, já na altura da Ponte
Preta. O desvio fora construído para facilitar as atividades do recém-­inaugurado Ser-
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viço Rodoviário, no Edifício Teixeira Soares. Era “novo” porque surgiu depois do outro
70
desvio rodoviário nas imediações do Estádio Durival Britto e Silva. Não era um desvio
particular, mas era muito utilizado para atender aos armazéns que se localizavam nas
proximidades, como o do Açúcar Diana, na década de 1950. A empresa do Sr. Emílio
Um quarteirão inteiro da fábrica foi recentemente vendido para a Igreja Universal do Reino
de Deus, que não tardou em colocar gigantescas placas informando que aquele local receberá
suas futuras instalações.
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Leão Júnior e Cia. Acima, fachada localizada na esquina da Rua Piquiri com a Avenida Presidente Getúlio Vargas. Abaixo, fachada localizada na esquina da Rua João Negrão com a Avenida Pres. Getúlio Vargas.
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Moinho Rebouças (vista da Rua Piquiri).
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Romani ocupava os galpões da Av. Visconde de Guarapuava, que hoje abrigam a
Previdência Social (depoimento do Sr. Pimpão).
Mais à frente, retornando ao km 108, um último desvio particular faz a ligação
entre a Anaconda Industrial & Agrícola de Cereais S.A. e a ferrovia. As instalações
dessa empresa, com seus silos monumentais se destacando na paisagem, foram concluídas em 1961 (FENIANOS, 1996). Bem mais singelo, o desvio resiste ao tempo,
em toda a sua integridade.
Todos esses desvios colocavam a malha ferroviária a serviço de grandes empresas,
que com seus produtos, disputavam (e algumas ainda disputam) o mercado nacional e
internacional. A ligação da ferrovia com as empresas de grande capital parece reforçada,
hoje, pelos enormes trens de carga que correm os trilhos com alguns poucos produtos
agrícolas e minerais, invariavelmente. Mas é uma visão enganosa, principalmente se
levadas em conta as décadas anteriores ao desenvolvimento do transporte rodoviário.
Além das grandes cargas, o trem transportava também todos os tipos de miudezas.
Eram produtos agrícolas, como alfafa, batata, frutas, milho e mandioca; animais, como
bois, cavalos, porcos e galinhas; alimentos, como banha, toucinho e queijo; bebidas,
como cervejas, vinhos e aguardentes; materiais de construção, como areia, cal, telhas
e tijolos; produtos de primeira necessidade, como velas, lenha e calçados; e artigos de
luxo, além de automóveis e máquinas agrícolas (RVPSC, 1935: 50-55). As mercadorias
dos grandes e pequenos, sejam eles agricultores, comerciantes ou industriais, encontravam no trem o seu mais seguro e eficiente meio de transporte até a década de 1950,
pelo menos. Essa movimentação toda de mercadorias dava às estações, nas primeiras
décadas do século XX, o aspecto de um grande empório.
A paisagem do Rebouças foi possível graças à composição que uniu o desen-
volvimento de atividades industriais com incentivos públicos, em um lugar demarcado pelos trilhos do trem. A partir da década de 1960, no entanto, seus componentes
começaram a tomar novos rumos. Os produtos das indústrias foram atraídos pelo
transformações do setor produtivo, levou as plantas fabris para a Cidade Industrial
de Curitiba (CIC); o Ramal Curitiba Ponta-Grossa e seus desvios particulares foram
desativados. A região do Rebouças passou por um processo de “abandono”. No final
da década de 1990 e início dos anos 2000, eram comuns (e em grande medida ainda
o são) narrativas sobre violência no bairro, associada às edificações vazias e à baixa
densidade populacional.
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transporte rodoviário, mais flexível e em expansão. O novo Plano Diretor, atento às
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Moinho Anaconda (vista sentido Curitiba-Paranaguá).
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O Bairro Rebouças, em Curitiba, não é para amadores. Há quem diga [...] que o local estacionou no
Plano Diretor de 1965 [...]. Algumas quadras, como as da Almirante Gonçalves, são tão pacatas que
dá para contar os paralelepípedos no meio da rua. Dali mesmo, contudo, ouve-se o ruído vindo do
encontro da João Negrão com a Getúlio Vargas e da Engenheiros Rebouças com a Iapó. […] A marca
mais forte do Rebouças, no entanto, é guardar quase intacta a arquitetura dos tempos em que ali
funcionava a Cidade Industrial de Curitiba. Sobram na redondeza paredões vigorosos e sombrios,
sob medida para despertar aquela pontinha de nostalgia [...] Quem anda pelo bairro – faça o teste
– sempre arruma um jeito de contar que já foi assaltado, ou que foi por pouco. Mas nada que roube
da região um título que já é seu há mais de três décadas – desde que a CIC foi inaugurada e levou
a chaminé da fábrica para bem longe: o Rebouças é por direito o Soho curitibano. (FERNANDES,
200828)
A tentativa de transformar o Rebouças no “Soho curitibano” está associada a
uma necessidade percebida (e/ou criada) pelos administradores públicos de efetivar
uma mudança de perfil do bairro. Já em 1975, a Lei de Zoneamento de Uso e Ocupação do Solo considerava a região como Setor Especial de Recuperação, estimulando
novos usos residenciais e comerciais nos espaços vazios deixados pelas fábricas e
pelas instalações da ferrovia. Em 2001, foi lançado o projeto Novo Rebouças, que
quer fazer da região um centro de lazer e cultura e um polo de formação profissional
e de desenvolvimento tecnológico.
6 ª PA I S AG E M
Circuito Sociedade Ferroviária: serviços, residências e
espaços de lazer
Nós tínhamos 27 associações de ferroviários no Paraná e
Santa Catarina. Toda associação de ferroviários ocupava
uma casa ou um prédio qualquer, ou um terreno da Rede.
se reuniam, a família se reunia. (Sr. Saulo, engenheiro).
No entorno do Pátio 108, e dos ramais ferroviários, estão preservadas as
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=
734524&tit=Enquanto-o-SoHo-nao-vem. Acesso em: 28 ago. 2010.
28
PELOS TRILHOS
Tinha campo de futebol e churrasqueira. Os empregados
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marcas de uma sociedade ferroviária que ultrapassam as edificações com relações
exclusivamente operacionais com a Rede. Era ao redor da linha férrea que seus funcionários moravam, se reuniam, se divertiam e procuravam soluções para problemas
do dia a dia. Associações eram formadas com diferentes finalidades: previdenciárias,
sindicais, esportivas, culturais, assistencialistas. Em 1928, a ferrovia, sob a administração da Brasil Railway, ocupava o posto de maior empresa do Estado, contando
com mais de 6 mil ferroviários espalhados em diferentes regiões (RVPSC, 1935). Há
uma profusão de associações – algumas mais frágeis, outras mais perenes – tanto
no Paraná quanto em Santa Catarina. A imensa maioria foi fruto da iniciativa particular dos trabalhadores da Rede. Em Curitiba, a União de Socorro e de Consumo
dos Ferroviários, a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Empregados da Estrada de
Ferro São Paulo-Rio Grande, os Sindicatos dos Operários e Empregados Ferroviários
do Paraná e o Clube Atlético Ferroviário estavam entre as associações mais atuantes,
associadas ou não à administração da Rede. Com a encampação da ferrovia, durante
o governo de Getúlio Vargas, começou a se conformar uma política de proteção aos
trabalhadores urbanos, e ao mesmo tempo, se colocar sob estrito controle do Estado
as organizações de classe, atraindo-as para um apoio difuso ao governo getulista
(FAUSTO, 2002). Assim, a RVPSC, que passa a administrar a ferrovia, começou a
tomar uma série de medidas de proteção social e de cooptação de algumas dessas
entidades. As ações sociais da Rede e dessas agremiações deram a sua contribuição
para a formação da paisagem ferroviária da cidade.
6.1 Espaços de assistência
6.1.1 Escola de Artes e Ofícios do Cajuru
A União de Socorro e de Consumo dos Ferroviários tem sua origem na for-
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mação de uma caixa de empréstimos, formada por funcionários da contabilidade do
almoxarifado em 14 de julho de 1923 (Correios dos Ferroviários, jan. 1950). Além
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associação que fundou, em 10 de dezembro de 1933, a Escola de Artes e Ofícios do
das atividades de empréstimos, a União manteve um armazém que fornecia produtos para os funcionários da Rede, com as compras descontadas diretamente na folha
de pagamento. Durante o Estado Novo, em observação a dispositivos legais, essa
associação mudou sua razão social para Cooperativa dos Ferroviários Ltda. Foi essa
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Cajuru, voltada para os filhos e enteados dos ferroviários associados. Esta escola
oferecia formação primária e intermediária para as crianças, além de cursos de formação profissional. Os garotos faziam cursos de mecânica, serralheria, marcenaria,
carpintaria e sapataria. As meninas se dedicavam ao trabalho com agulha, bordado
e costura. Os primeiros exames realizados pela escola datam de 15 de dezembro
de 1934. Entre os aprovados no curso primário, e com distinção, está o menino
Napoleão Lazzarotto (Correios dos Ferroviários, jan. 1935). Dificuldades financeiras
da associação levaram ao fechamento da escola, em janeiro de 1940 (Correios dos
Ferroviários, jan. 1950).
6.1.2 Hospital Central Ferroviário/Hospital Universitário
Cajuru
Durante a administração da RVPSC pelo Coronel Machado Lopes teve início
uma importante obra de assistência social aos ferroviários: a construção do Hospital Central Ferroviário, o primeiro da Rede. O terreno era o mesmo onde ficava a
Escola de Artes e Ofícios, doado à RVPSC pela Cooperativa dos Ferroviários Ltda. No
dia 23 de dezembro de 1949, foi celebrado com o engenheiro Nival Faria Maranhão
o contrato para a construção do hospital. O projeto previa um prédio de três andares, com cerca de 5.000 metros quadrados, repletos de modernos aparelhos e com
um amplo ambulatório. Os serviços de terraplanagem iniciaram-se em janeiro do
ano seguinte (Correios dos Ferroviários, jan. 1950). Em 1953, a comissão responsável pela programação da visita do presidente Getúlio Vargas a Curitiba incluiu as
obras do Hospital Central Ferroviário na agenda do Presidente, para que “numa breve inspeção, visse o hospital que a Rede estava construindo com capacidade para
100 leitos destinados aos seus empregados e respectivos familiares. Será, senão
o maior, seguramente, o mais perfeito da cidade” (Correios dos Ferroviários, jan.
1953). Já aparelhado, o hospital começou a funcionar em 1955. Depois de passar
Brasil, segundo o depoimento do Sr. Neri – o hospital foi vendido, durante o regime
militar, para a Pontifícia Universidade Católica do Paraná, tornando-se, em 1975, o
Hospital Universitário Cajuru.
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para a administração de uma associação de classe – a União dos Ferroviários do
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Hospital Universitário Cajuru.
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6.2 Vila Capanema
As casas eram da Rede, e residências, de ferroviários. Era
outro reduto ferroviário, como é o Cajuru, Vila Oficinas.
Tinha bastante ferroviário. (Neri Carvalho - diretoria da
UNIFER)
Em 1935, o Sr. Alexandre Gutierrez, superintendente da RPVSC na época,
demonstrou sua preocupação com a construção de casas para os funcionários, em
especial para as turmas da Via Permanente, responsáveis pela manutenção da via
férrea (RVPSC, 1935). Até a década de 1930, os ferroviários já vinham se estabelecendo nas proximidades das linhas. Os funcionários de alto escalão procuravam
terrenos próximos à antiga Estação, em especial, na Av. Silva Jardim. Os operários da
Rede formavam pequenos núcleos de habitação em regiões mais afastadas do centro,
nas imediações do Pátio 108, que ajudam, hoje, a compor os bairros Capanema, Cajuru e Cristo Rei. Nos primórdios do período getulista, as reivindicações das entidades
de classe por moradias foram frequentes na revista Correios dos Ferroviários. O que
ajuda a entender a preocupação do Sr. Gutierrez. Porém, a construção de casas pela
própria Rede só ganhou impulso alguns anos mais tarde. A partir de 1937, a RVPSC
deu início à construção de casas para operários no Pátio de Curitiba. Era o princípio
daquilo que hoje é conhecido como Vila Capanema, um dos principais redutos ferroviários da cidade.
Ao longo do trecho final do Rio Juvevê, antes do deságue no Rio Belém e único trecho que aparece à
céu aberto, encontramos uma vila ferroviária, a Vila Capanema. A vila fica nas duas margens do rio,
que é transposto por duas pequenas pontes de madeira.
Esta região é uma antiga área alagadiça, que por este motivo foi escolhida para receber grandes
lotes, como a Estação Rodoferroviária, um estádio de futebol, uma subestação elétrica e grandes
indústrias.
aspecto diferente daquele que tinha na década de 1930. A distribuição das habitações
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A vila fica ao lado do Estádio Durival de Britto, antigo estádio do Clube Atlético Ferroviário, e foi
construídas pela própria Rede no Pátio 108 era bem mais difusa. Naquele período, as
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construída para servir como moradia de funcionários da antiga Rede Ferroviária. (PFC – Relatório
Paisagem Material)
A localização das casas remanescentes naquela área determinada assumiu um
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Rio Juvevê na altura da Vila Capanema.
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Casas de alvenaria da Vila Capanema, localizadas na Rua Engenheiro Rebouças.
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residências ocupavam também o local onde seria construída a Rodoferroviária, mais
tarde. Havia um conjunto de casas alinhadas nas proximidades da Av. Capanema
(Av. Pres. Affonso Camargo), sob as sombras acolhedoras de algumas palmeiras ali
plantadas (HOERNER JUNIOR, 1989). Mas as mudanças no Pátio 108 alteraram aos
poucos essa distribuição. Em 1979, as casas se restringiam àquela região.
Nessa época, a Vila Capanema estava composta “por 68 lotes. Sendo 5 deles
na Rua Engenheiro Rebouças ocupados por casas de alvenaria ainda existentes, que
serviam a funcionários de maior função, e o restante eram casas de madeira” (PFC Relatório Paisagem Material).
Essa hierarquização das moradias é confirmada no relato do Sr. Portela, mo-
rador da Vila Capanema. Mecânico, trabalhava na manutenção de carros (como são
chamados os vagões de passageiros), no Pátio 108. As casas de alvenaria eram ocupadas pelos funcionários da administração, que trabalhavam nos escritórios do Edifício Teixeira Soares. É o próprio Sr. Portela que contabiliza a diminuição do número de
casas de operários. Na época em que foi morar na Vila, haviam “22 casas de madeira
e hoje, em 2010, são encontradas apenas 12” (idem). As enchentes periódicas do Rio
Juvevê, a fragilidade do material empregado, o abandono, a falta de manutenção e a
abertura de novas ruas contribuíram para a redução do número de residências. Tudo
isso somou-se para dar à vila o aspecto que tem hoje: A vila é composta por casas
de madeira dispostas isoladamente nos lotes, seguindo algumas tipologias arquitetônicas que se repetem. A maior parte delas está em uso e encontra-se em mal estado
de conservação (idem).
A Rua Walter Marcquadt dá acesso ao interior da vila, onde se concentram boa
parte das casas preservadas. Embora esteja há alguns metros do Viaduto do Capanema, o local apresenta uma paisagem completamente diferente da região de entorno.
Pouco se ouve do barulho dos carros e outros ruídos da cidade. Quase não se vê prédios. O local é bastante arborizado, inclusive com algumas árvores frutíferas. É um
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pequeno recanto verde em plena região central de Curitiba.
6.3 Espaços de lazer
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6.3.1 Estádio Durival de Britto e Silva
Na manhã do dia 24 de abril de 1955, centenas de ferroviários, em trajes de
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Casas de madeira da Vila Capanema.
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domingo, caminhavam com seus familiares em direção ao Estádio Durival de Britto.
Iam participar da 2a Páscoa Coletiva dos Funcionários da RVPSC, uma das atividades de confraternização promovida pela Rede. Uma banda de música composta por
ferroviários acompanhou o ato litúrgico. Depois da missa, veio a parte recreativa:
uma seleção de funcionários da administração desafiou o time das Oficinas para uma
animada partida de futebol. Dois a um para o pessoal do colarinho branco, que levou
a taça “Páscoa dos Ferroviários” (Correios dos Ferroviários, set. 1955: 08).
As origens do Estádio Durival de Britto remontam à formação de uma pequena
sociedade esportiva, composta por trabalhadores das oficinas da Rede. A associação
foi fundada em 12 de janeiro de 1930 e batizada de Clube Atlético Ferroviário (CAF)
(Correios dos Ferroviários, 1969). Inicialmente, os treinos aconteciam em um campo
situado entre as linhas do Pátio 108. Em 10 de setembro de 1931 o CAF inaugurou
sua sede própria, no número 849 da Rua Desembargador Westphalen. O time cresceu e, carinhosamente apelidado de “Boca Negra”, consagrou-se campeão paranaense nos anos 1937, 1938, 1944, 1948, 1950, 1965 e 1966, além de vencer o importante Campeonato do Centenário, em 1953. Em 1942, dirigentes do clube, políticos
e empresários locais começaram um movimento que levou à construção do estádio.
Entre os seus idealizadores, estão: Reinaldo Thá, dono de uma construtora; o Cel.
Durival de Britto, superintendente da Rede; o Sr. Heron Wanderlei, presidente do
Clube; além do Dr. Lineu do Amaral, Sr. Flávio Suplicy de Lacerda e Sr. Walter Scott
de Castro Veloso. Em 1945, a RVPSC fez doações significativas para a construção do
estádio, utilizando-se de recursos do fundo de melhoramentos (RVPSC, 1945). Parte
das arquibancadas ficaram prontas nesse mesmo ano. O projeto também previa a
construção de quadras de basquete, vôlei, tênis, bocha, boliche, pistas de atletismo,
piscinas de natação e de polo aquático, além de um auditório para apresentações
musicais. A preocupação da Rede era construir um espaço para o lazer e a confraternização dos seus empregados (RVPSC, 1946).
PELOS TRILHOS
84
Em 23 de janeiro de 1947 foi inaugurado o “Colosso do Capanema”, o terceiro
maior estádio do país, na época, que perdia em capacidade apenas para os estádios
do Pacaembu (SP) e São Januário (RJ), e que por isso foi escolhido para sediar alguns
jogos da Copa do Mundo em 1950. Mas com o processo de federalização das ferrovias, o CAF foi perdendo o apoio que recebia da RVPSC e o estádio viu esmorecer sua
estrita vinculação com a “Sociedade Ferroviária”. Em 1971, em meio a dificuldades
financeiras, o “Esquadrão de Aço” resolveu se unir ao Britânia e ao Palestra Itália,
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Estádio Durival de Britto visto do Viaduto do Capanema.
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dois outros clubes de Curitiba, para dar origem ao Colorado29.
6.3.2 Vagão do Armistício
Bem no início do Ramal Curitiba-Rio Branco, logo após cruzar a Av. Pres. Affon-
so Camargo, o trilho segue alguns metros entre dois muros altos. Dos trilhos, sobre
o muro do lado direito, é possível ver o telhado de uma pequena casa de madeira, a
poucos metros da linha. A construção está no terreno de um cartório. O responsável
pelo lugar é o Sr. João Lazzarotto, filho do ferroviário Isaac Lazzarotto e irmão do conhecido artista paranaense Poty Lazzarotto. A edificação de madeira, extremamente
bem conservada, abrigava o famoso Vagão do Armistício.
No início do século XX, aproveitando a proximidade dos trilhos e o despontar
de núcleos urbanos nas imediações do Pátio 108, em boa parte formados por ferroviários, várias casas comerciais e pequenas indústrias foram se estabelecendo no
entorno, especialmente na Av. Capanema (Av. Pres. Affonso Camargo). Entre eles,
o curtume de Albano Boutin, a britadeira da família Greca, o comércio de João Vello
e os grandes armazéns atacadistas Bassi e Cazzetta. No Rebouças, os armazéns da
Economat, da União de Socorro e de Consumo dos Ferroviários e da Cooperativa 26
de Outubro, em diferentes épocas, forneciam mercadorias aos trabalhadores da Rede
com as facilidades do desconto em folha.
Menos pretensioso, um pequeno armazém de secos e molhados foi construído
no começo do Ramal Curitiba-Rio Branco, propriedade de um guarda-freios e chefe
de trem aposentado, Sr. Isaac Lazzarotto. Entre os clientes do Sr. Isaac estavam os
oficiais do 5o Batalhão de Suprimentos. Daí surgiu a ideia de servir refeições, aproveitando uma estrebaria nos fundos do armazém (HOERNER JÚNIOR, 1989). O singelo
restaurante, que começou a funcionar em 1937, fez sucesso. Passou a ser frequentado por políticos da época, como o interventor do estado Manoel Ribas, e artistas
de renome nacional, como o cantor e compositor Sílvio Caldas. O apelido de Vagão
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veio mais tarde: “[…] Isaac Lazzarotto fez forrar o teto, abaulando-o, como se fora na
86
verdade um vagão de trem. Com esta providência, para melhor caracterizar a casa,
contou com a criatividade do filho [...] Desenhos sugestivos. Estrada de ferro, trem,
vagão, maquinista...”30 (idem: 118).
29
30
Disponível em: http://mavalem.sites.uol.com.br/pr/Curitiba4.htm. Acesso em: 03 jun. 2010.
O Vagão do Armistício teve suas dimensões reduzidas, depois de desativado.
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Vagão do Armistício.
Vagão do Armistício (parte interna).
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7 ª PA I S AG E M
Conjunto Central da Rede
Sentado no banco da plataforma da Estação, o menino,
comendo pão com gemada ou com açúcar, aguardava a
chegada do trem. A sua alma se enchia de um sentimento
que não lhe era possível compreender, quando ouvia ao
longe o apitar demorado da locomotiva. […] Maquinista,
estrada de ferro, locomotiva, vagões, cargas de madeira
e de animais, fumaça, vapor d’água, lenha, plataforma,
tudo aquilo, para êle, se resumia na emoção primaria
da chegada do trem. O menino era eu. (Osvaldo Pilotto,
Correios dos Ferroviários, mai. 1952: 07)
As transformações ocorridas na ferrovia a partir das orientações da comissão
responsável por atender às especificações do novo Plano Diretor, em 1965, tiveram
um forte impacto sobre as edificações centrais da Rede, como a antiga Estação, o
Edifício Teixeira Soares e a Ponte Preta. A retirada dos trilhos que ligavam essas
edificações com a ferrovia pôs termo às suas funções primeiras. A antiga Estação recebeu novos usos ao ser transformada em shopping center. Mas arquitetonicamente
manteve sua ligação com a paisagem ferroviária – em parte pelo espaço tradicional
que ocupa na paisagem local, em parte pelo novo imaginário coletivo de estação,
evocado pelas edificações do shopping, mas cujas dimensões e arquitetura já não
correspondem às características anteriores. A Ponte Preta e o Edifício Teixeira Soares
permanecem sem uso definido, e se tornaram uma espécie entreato do drama urba-
PELOS TRILHOS
no, aguardando a definição de novas ocupações.
88
7.1 Ponte Seca/Ponte Preta
A modernidade ganhou contornos surreais para muitos populares em Curitiba,
com a construção da “Ponte Seca” – o primeiro viaduto de Curitiba. Até aí, a cidade
só conhecia duas pontes rudimentares, usadas para a passagem de pedestres, carro-
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No canto inferior esquerdo temos a Ponte Preta; ao lado, o Edifício Teixeira Soares; e no canto superior direi-
PELOS TRILHOS
to, a antiga Estação (Shopping Estação).
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ças, cavaleiros e tropas. Uma sobre o Rio Belém, na altura do passeio público. Outra,
na Praça Zacarias, sobre o Rio Ivo. Com um misto de descrédito e assombramento,
meninos e adultos corriam para ver a novidade, e com chacotas e zombarias, molestavam os operários, perguntando se eles sabiam para onde tinha ido o rio daquela
ponte. Construída para evitar a passagem de gado e tropas em frente à Estação, e já
prevendo o crescimento da cidade, a Ponte Seca foi inaugurada pelo primeiro trem a
chegar a Curitiba, no dia 10 de dezembro de 1884. Era uma locomotiva de serviço,
que trazia material que faltava para o acabamento da Estação. Desde a sua construção, a Ponte Seca (ou Ponte Preta) foi uma das sensações da cidade, um ponto de
referência para muitos moradores.
Aos domingos e feriados as famílias saíam a passeio e obrigatoriamente iam à rua João Negrão
para ver a Ponte Preta servir de passagem aos trens da Rede Viação. Sua construção de ferro para
unir duas extremidades provocava ruído quando os trens por ali passavam. O viaduto da rua João
Negrão é muito útil ao tráfego da cidade e é o único que possuímos. As crianças principalmente eram
assíduas frequentadoras e adoravam ver o tráfego dos trens com os seus apitos estridentes. Todos
nós que tivemos a ventura de conhecê-la recordamos essas passagens com saudade. Hoje em seu
lugar existe outra, pintada de cinza, mais moderna e silenciosa. Mas nós não esquecemos a querida
ponte antiga que nos traz suaves recordações de meninice. (BISCAIA, 1996: 30 e 31)
A nova ponte, edificada em 1944, acabou ganhando, um pouco mais tarde, a
mesma cor e nome da antiga – e ao que parece, o mesmo lugar na memória afetiva da cidade. Na década de 1960, frente à ameaça de remoção – já que sua altura
era “insuficiente para o tráfego atual, sendo frequentes os esbarros de cargas altas
de caminhões” (Instalações Ferroviárias, 1965: 02) – a Ponte Preta angariou apoio
suficiente para ser tombada pelo IPHAN/PR, em 1976. Com a retirada dos trilhos, a
ponte perdeu sua função – ultrapassada pela modernidade –, mas acabou renovada
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em seus traços surreais, como uma ligação entre espaços que não mais existem.
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7.2 Edifício Teixeira Soares
Na década de 1940, um moderno edifício, recém-inaugurado, pode exibir suas
linhas elegantes na Rua João Negrão, ao lado da Ponte Preta. O entra e sai de caminhões, pintados com o símbolo da RVPSC era um aviso de que ali funcionava o
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Ponte Preta (RVPSC, 1944): construída em 1944 pela United States Steel Company. Uma placa informa:
“Viaduto João Negrão – Construído na Administração do Coronel Durival Britto e Silva pelo Engenheiro Oscar
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Machado da Costa – RVPSC – 1944”.
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Serviço Rodoviário e Comercial da Rede. Hoje, Edifício Teixeira Soares.
Tem estilo arquitetônico de grande influência Art Déco. Funcionou com esta estrutura até a extinção
da Rede, em 1997. Foi repassado ao patrimônio da União, e hoje pertence à Universidade Federal do
Paraná. O edifício passou por diversas reformas e ampliações, uma delas promoveu o surgimento de
uma torre de 5 pavimentos na qual temos a presença de um relógio, elemento marcante na paisagem
urbana. (PFC – Relatório Paisagem Material)
Em meados da década de 1930, a construção de rodovias no Paraná – como a
Estrada da Ribeira ligando Curitiba a São Paulo – e a intensificação do uso de caminhões representavam uma primeira ameaça à hegemonia do transporte ferroviário. A
RVPSC, no entanto, respondeu bem ao desafio lançado. Em 1935, a Rede inaugurava
seu próprio serviço rodoviário de entrega de cargas “porta a porta”, nas estradas que
iam para São Paulo, Joinville e Araucária (RVPSC, 1935). No começo, a expedição e o
recebimento de mercadorias por parte do serviço rodoviário eram feitos na Estação.
Já a garagem e a oficina dos caminhões ficavam em um prédio alugado na Rua Dr.
Muricy. A administração do Serviço Rodoviário, por sua vez, funcionava junto aos outros escritórios da Rede, no Edifício Moreira Garcez. O crescimento das encomendas
e a inauguração do transporte de passageiros com o uso de automotrizes (litorinas),
na via férrea, passaram a exigir da Rede a construção de edifícios próprios para essas
atividades.
A construção do Teixeira Soares foi rápida. Na ocasião de sua inauguração, o
edifício contava com apenas dois pavimentos. Nos fundos, com acesso pelo pátio da
antiga Estação, eram erguidos os galpões das Oficinas das Litorinas. Além do Serviço
Rodoviário, ali também funcionou a impressora, a estação central de rádio e a oficina
eletrotécnica da Rede. Em 1945 teve início a ampliação do edifício, que ganhou mais
alguns andares. Os escritórios da administração, que estavam no Moreira Garcez,
para lá foram transferidos com a conclusão das obras, em 1947.
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No Teixeira Soares funcionava a área de recursos humanos, o departamento de transportes, o
92
departamento de via permanente, o departamento de obras, o departamento de finanças, o centro de
processamento de dados, o departamento de material, o departamento comercial e o departamento
rodoferroviário, que era aqui, na garagem. (Neri Carvalho – diretoria UNIFER, que até este ano ficava
sediada no Teixeira Soares)
Através do Decreto Municipal 1033, de 25 de outubro de 2001, o prédio passou
Edifício Teixeira Soares: finalizado em dezembro de 1942 pela construtora Irmãos Thá. Foto acima
é da década de 1940 (RVPSC, 1942). Abaixo, atual configuração do edifício.
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a ser considerado Setor Especial de Preservação da Paisagem Ferroviária de Curitiba.
Atualmente, o Teixeira Soares está prestes a entrar em reformas para abrigar cursos da Universidade Federal do Paraná. Enquanto espera por seus novos usos, suas
marquises solidárias protegem homens e mulheres que, em um ponto da Rua João
Negrão, aguardam os ônibus do transporte coletivo para retornar para suas casas.
7.3 Antiga Estação/Shopping Estação
Na Estação do caminho de ferro o movimento era
consideravel; muita gente, muitas carruagens. Em frente
uma rua muito larga para subir. Era a parte nova da
cidade, ha uns doze annos coberta de pantanos. (Tobias
Monteiro, in: RPVSC, 1935: 10)
Em alguns pontos da região central, uma estrutura monumental pode ser apre-
ciada a certa distância: uma mistura de referências cinematográficas de grandiosas
e luxuosas estações de dimensões gigantescas, com estruturas de vidro e metal e
com a preservação de uma edificação mais antiga. “Localizado dentro de uma antiga
Estação Ferroviária no Bairro Rebouças em Curitiba, o Shopping Estação teve todo o
seu projeto realizado para manter a concepção original da antiga construção, integrando o antigo e o novo com perfeição”, informa o site do shopping31. Sua imponente edificação acaba por se sobrepor a antiga Estação Ferroviária, ao mesmo tempo
em que busca evocá-la em sua arquitetura e decoração. A antiga Estação tem suas
instalações relativamente bem preservadas, conservando, em seu interior, o Museu
Ferroviário.
A Estação foi um marco fundamental na ocupação urbana da região. Em 1880,
a escolha do local estava a cargo de uma comissão criada pelo Comendador Ferrucci,
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responsável pela construção da ferrovia. A comissão era composta por engenheiros
94
indicados pela Câmara Municipal e pela Caminhos de Ferro, para melhor conciliar os
interesses da empresa concessionária com os da municipalidade. Eram duas as localidades possíveis para edificar a Estação: o campo do Schimidtling e o local onde, de
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Disponível em: http://www.shoppingestacao.com/institucional/index.aspx?CodPag=5. Acesso em: 25 ago. 2010.
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Estação vista da Avenida Sete de Setembro (sentido Rodoferroviária-Estação).
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fato, ela seria construída. O campo do Schimidtling foi descartado por estar sujeito
às inundações e pela distância maior em relação a qualquer núcleo urbano.
O local escolhido era um potreiro, distante cerca de 800 metros da Rua do
Comércio (hoje, Marechal Deodoro), que, com suas casas, assinalava na época os
limites do quadro urbano de Curitiba. “De sorte que há vasto espaço, no qual a cidade poderá desenvolver-se regularmente, antes de surgir necessidade de prolongar
as ruas além da estação” (RFFSA, 1985: 184). Outra vantagem do local escolhido
era sua maior proximidade com o quarteirão do Mato Grosso (hoje, Rua Comendador Araújo) onde estavam assentados os engenhos de erva-mate. Ferrucci deixou a
cargo de Cuniberti o desenho da Estação, traçando, no entanto, algumas orientações
gerais: o projeto deveria conter um edifício de passageiros, um recinto coberto e uma
plataforma descoberta para as mercadorias, um reservatório de água, um abrigo
para duas locomotivas e um hangar para abrigar de oito a dez carros de passageiros.
Para esse trabalho, Cuniberti deveria consultar os modelos sugeridos por Opermann,
em seu tratado sobre estradas de ferro, e particularmente, sobre os das estações da
linha Bolonha-Ancona-Roma, muito cômodos e de um custo moderado.
A Estação projetada por Cuniberti era uma construção baixa, “com três por-
tadas sobre a escadaria” que se lançava sobre a futura Rua Sete de Setembro, “encimada por modesta cobertura”, tendo um relógio que se destaca na fachada, com
um armazém de carga dos dois lados e, “na extremidade deste, três dependências
para escritório” (GRAF, 2008: 27). Em 1883, o edifício já estava quase pronto, sem
os trilhos e cercado por pastos e pequenas propriedades rurais. Para ligar o quadro
urbano com a Estação, a Rua da Liberdade (hoje, Barão do Rio Branco) seria aberta
logo em seguida.
No dia 02 de fevereiro de 1885, um trem inaugural, com várias autoridades do
Império e da Província, fez o percurso de Paranaguá a Curitiba:
Às 19 horas, debaixo de intenso foguetório, a composição adentrava na estação ferroviária da rua
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Barão do Rio Branco, sendo recebida com grande alegria do povo. Respeitamos o gesto de uma parte
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da população de Curitiba, que, em outro local e tendo à frente a Câmara de Vereadores, protestava
contra tal inauguração. Temiam o desemprego dos carroceiros em atividade de transporte de cargas,
principalmente erva-mate, na estrada da Graciosa! (RFFSA, 1985: 56)
Em 1894, com o aumento do volume transportado e com a ampliação da es-
trada de ferro até Ponta Grossa e Rio Negro, o edifício da Estação passa por uma
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Estação na década de 1930, na ocasião do início da prestação de serviços rodoviários pela Rede (RVPSC,
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1935).
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grande reforma. Seguindo o traçado de Cuniberti, mais um andar foi erguido, sobre
as mesmas paredes e fundações da planta original, permanecendo o relógio no topo
da fachada. Não existe registro sobre a autoria dessa reforma, que deu ao edifício
ferroviário seu estilo Renascença. Há, no entanto, algumas pesquisas que indicam
autoria do engenheiro Rudolph Lange, pai do pintor Lange de Morretes, pela semelhança com “a bela residência que ele construiu para a família na cidade de Morretes”.
(Boletim informativo Casa Romário Martins, 1981: 09).
Já sob a administração da Brasil Railway, a Estação e suas oficinas passaram por
melhorias, principalmente após uma grande explosão, em 1913, que destruiu parte
dos armazéns, fez vítimas e atingiu os prédios em volta (Correios dos Ferroviários,
1963). Em 1918, com a transferência de alguns escritórios da Rede para outro lugar,
a Estação passou por mais uma reforma, ganhando um salão nobre. As salas do pavimento superior eram ocupadas pelos escritórios operacionais, como o dos grafistas, do
movimento e do telégrafo. E a Estação ganhou sua configuração atual:
Implantada no alinhamento predial, é um edifício de dois pavimentos em alvenaria de tijolos com
cobertura duas águas, telhas francesas e platibanda abalaustrada. Apresenta uma marquise ao longo
da fachada do antigo setor de cargas, com mãos francesas e forro em madeira, bem como suas
esquadrias originais em madeira. A fachada interna apresenta uma estrutura metálica formada por
colunas cilíndricas e braços em T, que suportam a cobertura da plataforma. (PFC – Relatório Paisagem
Material)
Com a encampação da Rede, em 1930, as oficinas no pátio da Estação foram
ampliadas com a construção de galpões para ferramentaria, carpintaria e pintura,
abrigo para carros de passageiros e uma nova extensão do galpão para reparos de
vagões (Correios dos Ferroviários, 1968). Mas, era cada vez mais evidente que, tanto
as oficinas quanto a própria Estação estavam alcançando seus limites. Naquela plataforma, mercadorias e pessoas se misturavam para aguardar a partida dos trens de
carga ou de passageiros, quando não mistos, para destinos tão diferentes quanto Rio
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Branco do Sul, Ponta Grossa e cidades de Santa Catarina e São Paulo. Os vagões e as
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locomotivas disputavam espaço com um amontoado de galpões das oficinas. Passados mais de cinquenta anos de sua construção, a Estação não podia mais comportar
as demandas de uma cidade em franco desenvolvimento:
Ao atual prédio da gare da Rua Rio Branco cabe uma denominação, apesar dos esforços da administração
em lhe dar bom aspecto e certo conforto: um pardieiro. […] Nossa capital era uma aldeia com apenas
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Fachada do setor de cargas da Estação Ferroviária (fotografia: Gabriel Gallarza).
Estação Ferroviária: plataforma de embarque de passageiros (Acervo: Sr. Leocádio).
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uns 10.000 habitantes, quando hoje conta com mais de 150.000. Tinha umas 100 casas comerciais,
hoje, mais de 3.000. Possuia 20 fábricas primitivas, hoje mais de 1.000. […] Tudo apertado, tudo
constrito, tudo reclamando arejamento. Tocará ao nosso conterraneo os aplausos da posteridade pela
iniciativa da construção de novo edifício. (Correios dos Ferroviários, fev. 1937: 170)
Com a construção da Vila Oficinas, os antigos galpões e garagens foram sendo
desativados e demolidos. As operações com os trens de carga passaram a ser realizadas no Pátio 108. Na década de 1990, o lugar das antigas oficinas era ocupado
por dois campos de futebol. Mas o projeto de uma nova Estação teria que esperar.
Em 1965, o Relatório das Instalações Ferroviárias chegava a conclusões conhecidas
sobre a condição da antiga Estação em continuar atendendo à cidade:
A estação de Curitiba, velho edifício, construído a 70 anos é atualmente incompatível com a cidade
atual, que não só atingiu elevado gráu de desenvolvimento urbanístico, econômico e de população,
como continua com ininterrupta aceleração dêsse ritmo de progresso. As dependências são exíguas
e antiquadas. O público fica comprimido em minúsculas salas de espera e em uma única plataforma,
não raro sentado sôbre as próprias bagagens”. (Instalações Ferroviárias, 1965: 01)
No dia 13 de novembro de 1972, com a inauguração da nova Rodoferroviária, a
antiga Estação recebeu seus últimos vagões do serviço regular. Em 1974, um projeto
para sua demolição tramitou na Assembleia Legislativa Estadual (DITTMAR e HARDT,
2006). Mas a Estação sobreviveu definitivamente ao ser inscrita, em 1976, juntamente com a Ponte Preta, no livro de tombamento do IPHAN. Em 1982 foi inaugurado
o Museu Ferroviário e, ainda nesse período, trens turísticos com destino à cidade da
Lapa e Antonina partiam de sua plataforma aos domingos. No início dos anos 1990,
os trilhos foram definitivamente desativados. Estava desfeita a ligação daquele lugar
com a malha da ferrovia. Restaram apenas os trilhos em frente à plataforma e rastros
ao lado do Teixeira Soares – e as lembranças de quem viveu uma época em que a Estação vivia agitada por locomotivas e passageiros. Como a do Sr. Pimpão, engenheiro
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que se recorda, com certa graça, do movimento e dos sons da partida de um trem:
100
“atenção senhores passageiros, dentro de dois minutos, partirá o trem para Paranaguá. Senhores
passageiros, boa viagem”. E tocava uma musiquinha32. O agente “péim, péim”, no sino, e o chefe
de trem, aqui “fiu, fiu’ com o assobio, com o apito. E o maquinista dava com o apito e lá saia a
maria-fumaça: “tché, tché, tché...”
32
Na década de 1970, a música era o Cisne Branco.
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Maquete da Estação feita em 1930 (Acervo: Museu Ferroviário de Curitiba).
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8ª PAISAGEM
Circuito Prédios e Lugares Públicos e de Serviço
Enfim surgiu Curityba. Havia no panorama algo a lembrar
São Paulo. A cidade despontava no dorso das collinas; as
torres da cathedral surgiam de vez em vez, dominando a
paisagem, e a casaria elevava-se pouco a pouco, manchando
de branco a verdura do quadro. Curityba parecia maior
do que eu esperava. […] Na Estação do caminho de ferro
o movimento era consideravel; muita gente, muitas
carruagens. Em frente uma rua muito larga para subir.
Era a parte nova da cidade, ha uns doze annos coberta de
pantanos. O centro principal ficava no alto, do lado opposto;
mas a estrada veiu ter alli e as construções conquistaram
o terreno, entre ellas o palacio do Governo e o edificio do
Congresso. (Tobias Monteio, in RVPSC, 1935: 10)
Vários viajantes que chegavam a Curitiba no começo do século XX deixaram
registros do grande progresso que a cidade experimentava desde a conclusão da
ferrovia. Em 1880, o local escolhido para a construção da Estação podia surpreender
pelo seu isolamento em relação ao quadro urbano. Era preciso estender a acanhada
Rua Leitner, que se encerrava na altura da Marechal Deodoro, até a entrada do edifício, fazendo a ligação da Estação com o centro. O projeto de abertura dessa via, que
passaria a se chamar Rua da Liberdade (atual Rua Barão do Rio Branco), apresentava os signos do que se entendia como modernidade: a avenida deveria ser ampla,
arborizada, ladeada por dois largos na entrada da Estação, lembrando os boulevards
franceses. Junto com mercadorias e passageiros, essas novas concepções de planePELOS TRILHOS
jamento urbano também chegavam à cidade pelos trilhos do trem.
102
A construção da ferrovia trouxe para Curitiba operários, técnicos, engenheiros
e arquitetos de uma Europa entusiasmada pela ideia de progresso. Esses profissionais carregavam em suas bagagens “propostas arquitetônicas consoantes ao que se
fazia nos grandes centros urbanos” (SUTIL, 1996: 33). A mudança nos padrões de
construção de casas e prédios comerciais da cidade já se fazia sentir, desde a chegada dos primeiros grupos de imigrantes em Curitiba a partir da segunda metade do
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século XIX. A ferrovia acelerou ainda mais esse processo. A cidade, com seu casario
colonial de taipa, pedras e ruas estreitas, viu surgir novas edificações: sobrados de
alvenaria, que usavam ferro nos gradis e nas estruturas internas, cobertos por telhas
alemãs. O ecletismo e o neo-classicismo deram à cidade um novo colorido. As ruas
agora tinham como modelo o projeto de reformulação urbanística de Paris, feito pelo
Barão de Hausmann, em 1850. A Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco) é um
dos frutos desse novo modo de pensar e construir a cidade.
O engenheiro contratado pela Câmara Municipal para orçar a obra, em 1883,
foi o italiano Ernesto Guaíta, que também havia trabalhado na ferrovia. Dois anos
depois, o mesmo engenheiro apresentou o projeto de toda a malha urbana das imediações, desde os fundos da Estação até a Rua do Comércio (Rua Mal. Deodoro). O
plano de urbanização, em formato de grade, se preocupava com a simetria das ruas,
orientando a Câmara a realizar algumas desapropriações para preservar a estética
urbana (idem: 48). Mais tarde, esse mesmo engenheiro também deixou sua assinatura em importantes edifícios da região, como o Palácio do Congresso e o Palácio do
Governo.
“Com a chegada da ferrovia, Curitiba cresceria em uma década mais do que
nos dois séculos anteriores de sua história” (idem: 47). Em 1905, a Rua da Liberdade
já havia se tornado um dos principais logradouros da cidade, junto com a Rua XV de
Novembro e a Praça Tiradentes. Nessa época a legislação municipal determinou que
seriam liberados para construção, nesses lugares, apenas sobrados de alvenaria com
dois ou três pavimentos. É essa nova cidade que causa surpresa a Nestor Victor:
Olha como a cidade está mais solene. Emiliano Pernetta dizia-me, na noite da chegada, da primeira
vez, indicando os prédios de um lado e de outro, enquanto o carro atravessava, primeiro, a rua
da Liberdade, depois a rua Quinze de Novembro […]. Efetivamente, desde a estação […] eu vinha
observando a notável mudança que fizera a nossa capital de há dezessete anos para cá. [...]
Os pobres e os sapos vão indo de cada vez para mais longe, dizia-me Emiliano Pernetta, com a
perversidade de quem não quer perder uma boa frase, tanto mais quando, realmente, ela bem
cheiro campesino de que falas, e de que eu me recordo: com os pobres vão-se distanciando também
as culturas. (VITOR, 1996: 82 e 91)
Impulsionada pelo movimento da ferrovia, a Rua da Liberdade já estava intei-
ramente compactada e havia se tornado a rua do poder, abrigando o Palácio do Congresso e do Governo. Nas imediações da Estação, a Praça Eufrásio Correia recebia as
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resumia a situação. Está aí o motivo principal, acrescentou, porque não achas mais na cidade esse
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instalações de armazéns, casas comerciais e hotéis, para atender ao fluxo de pessoas
e mercadorias. A expansão da cidade na direção do Rebouças confirma a centralidade
ocupada pela Estação na paisagem urbana da primeira metade do século XX (YAMAWAKI, 2006: 154).
8.1 Linhas de Bondes
No tempo das tropas, carroças e estradas de terra, os trilhos representavam
o que havia de mais moderno em termos de mobilidade. Assim, como uma extensão
dos caminhos de ferro dentro do quadro urbano, as linhas de bonde foram instaladas
pouco depois, na cidade. A garagem desses veículos se localizava na esquina das
ruas Barão do Rio Branco e Visconde de Guarapuava, em frente ao Palácio do Congresso (hoje Câmara Municipal). No princípio, eram os bondinhos de mula. O serviço
foi inaugurado em 1887 e, além de passageiros, transportava também barricas de
erva-mate dos engenhos localizados no Bairro Batel para os depósitos da Estação
Ferroviária. Em 1913, começaram a operar os bondes elétricos, que conectavam o
centro da cidade com as regiões do Batel, Seminário, Guabirotuba, Juvevê, Bacacheri
e Portão (MARCASSA, 1989), até serem substituídos definitivamente pelas linhas de
ônibus, em 1952. Mas a antiga garagem dos bondes permaneceu, registrando parte
dessa história:
É composta por galpões de alvenaria com coberturas de duas águas, de estruturas e telhas metálicas,
bem como algumas telhas transparentes para iluminação natural. Com o desativamento das linhas
de bondes a edificação recebeu diversos usos comerciais, e foi por muito tempo subutilizada. Hoje
funciona como estacionamento da Câmara Municipal de Vereadores, que fica em frente. (PFC –
Relatório Paisagem Material)
No pátio do atual estacionamento é possível observar fragmentos dos trilhos
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dos bondes que ainda emergem sob sua pavimentação.
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8.2 Prédios e Lugares Públicos
Com a construção da Estação, vários órgãos do governo e centros de serviços
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Garagem de Bonde.
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importantes se instalaram nas imediações da Praça Eufrásio Correia e Bairro Rebouças até a década de 1950. As oficinas da Rede, com seus artífices, trouxeram procedimentos técnicos desconhecidos na cidade e passaram a formar uma mão de obra
especializada. As indústrias ali localizadas também começaram a exigir uma maior
qualificação profissional dos trabalhadores. Para atender a essa demanda, foram instaladas no Rebouças a Escola de Aprendizes e Artífices, em 1936 (que dará origem
ao futuro CEFET) e o SENAI, em 1948. Organizações militares e empresas concessionárias de serviço público também escolheram esse bairro para suas sedes, como o
Regimento de Segurança da Polícia Militar, o 5o Batalhão de Suprimentos do Exército
e a Empresa Sanitária de Curitiba. A Companhia Força e Luz tinha seus escritórios na
Praça Eufrásio Correia, na década de 1940, em um edifício hoje ocupado pela Câmara
Municipal. Na Rua da Liberdade estavam o Palácio do Governo, o Quartel General do
5o Distrito Militar e, mais acima, nas proximidades da Rua Riachuelo, o Paço Municipal
e o Edifício da Mútua Predial. Mais próximo da Estação, o que se destaca na paisagem é um antigo prédio, com elementos greco-romanos e capitéis coríntios, ocupado
pela Câmara de Vereadores de Curitiba, desde 1957. Era o Palácio do Congresso do
Estado (Assembleia Legislativa). Esse prédio foi construído entre 1891 e 1895, com
projeto assinado por Ernesto Guaíta. Seus arcos da entrada e das portas, junto com
os elementos decorativos na cimalha e na fachada, dão ao conjunto certa leveza, em
comparação às pesadas construções que serviam de hotéis e casas comerciais, e que
ficam em frente à Praça Eufrásio Correia (SUTIL, 1996).
8.3 Casas Comerciais e Hotéis
O ramo de hotelaria estava ali (na praça Eufrásio Correia)
concentrado: Hotel Tassi, Hotel Roma, Hotel do Comércio,
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Hotel Paraná, Hotel Curitiba, Hotel Guarani. Destes, resta
106
ainda, modestamente, o Novo Hotel Roma. (MARCASSA,
1989: 23)
Nas proximidades das avenidas Sete de Setembro e Pres. Affonso Camargo,
hotéis e pensões, de diversos tamanhos e categorias, foram construídos, em diferentes épocas, para atender aos viajantes que chegavam a Curitiba pela Estação Ro-
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Câmara Municipal de Vereadores.
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doferroviária, pelo aeroporto Affonso Penna ou por seus carros particulares. Os mais
antigos estabelecimentos desse tipo na região surgiram junto com a Estação, na Praça Eufrásio Correia. Desses, ainda está em funcionamento o Hotel Roma. Restaurado
recentemente, opera na qualidade de hostel, relacionado ao sistema de Albergues
da Juventude. Trata-se de um “sobrado de alvenaria de tijolo, com três pavimentos,
com sacadas no segundo pavimento; implantado no alinhamento predial e colado às
divisas laterais” (PFC – Relatório Paisagem Material).
Imediatamente ao lado do Hotel Roma, encontra-se o antigo Hotel Tassi, em
processo de restauro. Trata-se de uma edificação de esquina com três pavimentos,
de alvenaria de tijolo; implantado no alinhamento predial e colado às divisas laterais. Originariamente essa casa era térrea, no início deste século foi ampliada com
a sobreposição de mais um andar, passando a abrigar o hotel. É um exemplar de
arquitetura eclética.” (idem).
Essas edificações são consideradas patrimônios históricos e foram tombadas,
junto com a Praça Eufrásio Correia, em 1985, ano em que se comemorou o centenário de inauguração da Estrada de Ferro do Paraná.
Outra edificação ligada a essa paisagem ferroviária é a casa Emílio Romani. A
empresa de Emílio Romani era uma das que mais se utilizava do transporte ferroviário.
Na década de 1960, suas instalações próximas a Av. Mal. Floriano e ao antigo Ramal
Curitiba-Ponta Grossa contavam com um desvio particular para escoar sua produção.
Já a casa, que leva o nome do empresário, foi construída em torno de 1880:
É um sobrado localizado em frente à Praça Eufrásio Correia. Foi a antiga sede da Companhia Francesa
de Estrada de Ferro. Com arquitetura em estilo neoclássico, possui galeria porticada de seis arcos,
com terraço no andar superior. A cobertura, em quatro águas, é ocultada por platibanda. Os vãos
de portas e janelas são em arcos com bandeiras envidraçadas. Possui suas esquadrias originais de
madeira e está totalmente restaurada. O imóvel foi comprado em 1911 por Emílio Romani, proprietário
dos Produtos Diana, o que acabou dando o nome popular para a arquitetura. (idem)
PELOS TRILHOS
108
Além dos hotéis, grandes armazéns e casas comerciais, havia o varejo dos pe-
quenos estabelecimentos, que atendiam às necessidades miúdas daqueles que passavam pela Estação Ferroviária. Ainda no final do séc. XIX, comerciantes como Custódio de Melo e Francisco Serrador construíram, na Praça Eufrásio Correia, quiosques
que vendiam biscoitos, doces, cafés, cervejas, charutos, cigarros e jornais (Boletim
informativo Casa Romário Martins, 2006). Hoje, a lanchonete Ferroviária, da década
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Hotel Roma.
Hotel Tassi.
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Casa Emílio Romani.
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Lanchonete Ferroviário, que atende aos frequentadores da região desde a década de 1960, embora com
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diferentes “direções”.
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de 1950, localizada na Av. Sete de Setembro, guarda a lembrança desses singelos
estabelecimentos e de sua clientela, formada por passageiros, frequentadores da
região e ferroviários.
8.4 Largo da Estação/Praça Eufrásio Correia
As poucas pessoas que passam pela praça não fazem
ideia de que esse agradável recanto da cidade, no fim do
século passado e início deste, foi o “coração de Curitiba”.
(MARCASSA, 1989: 23)
A proposta inicial de urbanização da região incluía a formação de dois largos,
separados pela Rua da Liberdade e cobrindo toda a fachada da Estação. Mas apenas
um dos largos foi executado, dando origem a atual Praça Eufrásio Correia. No começo, não passava de um terreno com mato baixo, ainda bastante irregular. A própria
Companhia Caminhos de Ferro começou a aplainar o largo, para facilitar o acesso
à Estação. Em 1888 ganhou o nome atual, mas as melhorias só vieram em 1903,
quando se tornou cenário de uma exposição que comemorava o cinquentenário da
instalação da província. O largo foi macadamizado e recebeu seu primeiro ajardinamento. A administração municipal de Cândido de Abreu, entre 1913 e 1916, deu à
praça seu desenho atual e a fonte com suas estátuas trazidas da França (Boletim informativo Casa Romário Martins, 2006). Mais tarde, a escultura O Semeador e alguns
bustos vão completar a praça, considerada uma das atrações turísticas da cidade na
primeira metade do século XX. Porta de entrada de muitos visitantes que chegavam
a Curitiba, o largo era “o coração da cidade”, principalmente nos momentos em que a
Estação se enfeitava para grandes recepções. Desfiles cívicos foram organizados para
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recepcionar os presidentes da República em visita ao estado; a população se aglo-
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merou nas calçadas para saldar, emocionada, os pracinhas que retornavam da Itália;
por ali desfilou Didi Caillet, a representante do estado no badalado concurso de miss
Brasil de 1929; o Tiro Rio Branco, comandado pelo Coronel João Gualberto, marchou
na Rua da Liberdade, depois de participar das cerimônias fúnebres do Barão do Rio
Branco, no Rio de Janeiro. Nessa ocasião, a rua mudou de nome para homenagear
o diplomata. Até a década de 1950, a Estação e a praça eram uma festa. Mas o fim
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Praça Eufrásio Correia da perspectiva do Shopping Estação.
Praça Eufrásio Correia.
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dos serviços de bondes, a transferência dos espaços de poder para o Centro Cívico
e a construção da Rodoferroviária desviaram do largo a centralidade que ele havia
ocupado.
Hoje a praça, bastante arborizada, parece inspirar em quem nela passa um
certo prazer melancólico.
Algumas árvores impressionam pelo grande porte e promovem um ambiente sombreado e muito
agradável ao estar e à vista, como os plátanos, cujas folhagens ganham, no outono, diversos tons
que vão do laranja ao castanho. Não só por sua beleza, mas também por sua importância histórica,
a Praça Eufrásio Correia foi tomada pelo Patrimônio Estadual no ano de 1985, quando do centenário
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da Estação Ferroviária. (PFC – Relatório Paisagem Material)
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I I I – E S T R A DA D E F E R R O N O R T E D O
PA R A N Á / R A M A L C U R I T I B A – R I O B R A N C O
Quatro horas da madrugada. É bom que o Pedro Neves já
tenha acordado […] e lá se vai, marmita embaixo do braço,
para a Estação de Rio Branco do Sul, onde dentro de trinta
minutos vai sair o trem do dia.
Passagens, passagens – o chefe do trem, o Ferreira,
acordou mais cêdo ainda e vai recolhendo os bilhetes dos
operários, que está na hora do expresso partir para a
sua viagem diária. E lá vai o trem. Em Rio Branco do Sul,
junto com o Pedro das Neves devem ter embarcado mais
uns quarenta trabalhadores, o que não chegou a lotar um
vagão, cuja capacidade é de 44 sentados. Daqui a pouco
os três vão estar lotadinhos e vai ter mais gente em pé do
que sentada […] E lá vai o trem. São seis e vinte e, agora
é que está nascendo o sol. Nasce o sol, o trem chega à
Estação Ferroviária de Curitiba”. (Correios dos Ferroviários,
jun. 1968: 09)
O Ramal Curitiba-Rio Branco (ou Estrada de Ferro Norte do Paraná) tem início
no Pátio 108, sob o Viaduto do Capanema e segue em direção à região norte da cidade. Seu traçado está ligado à história das primeiras colônias formadas por imigrantes
no Vale do Ribeira. O auge da produção ervateira, em meados do século XIX, ocupava
gêneros de subsistência e ao encarecimento do custo de vida. A solução encontrada
pela elite paranaense foi a constituição de núcleos coloniais formados por mão de
obra imigrante, dedicados à produção de alimentos.
Assim, um contingente considerável de brasileiros, franceses, ingleses, ita-
lianos, alemães, espanhóis e suecos é levado a constituir a Colônia de Assungui,
distante cerca de 110 quilômetros ao norte de Curitiba. As terras eram férteis, mas a
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praticamente toda a mão de obra local, levando à falta de braços para a produção de
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ligação com núcleos urbanos importantes como Curitiba era precária. Existia apenas
um caminho de tropas para Curitiba, conhecido como Estrada do Assungui (atual
Rua Mateus Leme), inadequada para escoar a produção de alimentos dos colonos.
Diante dessas dificuldades, muitos daqueles imigrantes abandonaram suas terras,
retornando para seus países ou se estabelecendo em outros lugares. Mas um núcleo
permaneceu e deu origem ao município de Cerro Azul (WACHOWICZ, 2002).
Pensando em resolver a questão do isolamento de Cerro Azul e dotá-la de ade-
quada infraestrutura, o governo do estado projetou a construção da Estrada de Ferro
Norte do Paraná, já em 1876. Mas a estrada demorou a sair do papel33. Em 1906, o Sr.
Gaston de Cerjat, ex-diretor da Compagnie Générale des Chemins de Fèr Brèsiliens, assumiu a construção da estrada, cujo traçado, além de atender às colônias de imigrantes e atravessar áreas de extração de madeira e erva-mate, deveria passar também
por uma região calcária, fornecedora de mármore branco, cal e cimento. A primeira
seção da obra contava com 43 quilômetros e foi inaugurada em 1o de março de 1909.
Ligava Curitiba à Rocinha (atual Rio Branco do Sul), e contava com estações em
Itaperussu, Tranqueira, Almirante Tamandaré e Cachoeira (KROETZ, 1985). O ramal
tem uma sinuosidade impressionante, acompanhando o relevo da região.
Esta ferrovia passou pelas mãos da concessionária Brasil Railway, foi encampa-
da nos anos 1930 e finalmente incorporada à RVPSC. Nenhuma dessas gestões levou
a cabo o projeto inicial que pretendia ligar Curitiba a Assungui. A característica mais
marcante dessa ferrovia nas primeiras décadas de sua existência foi seu constante
e crescente déficit: ela foi sustentada ora pelo Estado, por causa dos compromissos
assumidos com a garantia de juros, ora pelo lucro de outros ramais da Rede. Somente com o desenvolvimento de uma grande indústria de cimento em Rio Branco do
Sul, a partir de 1950, o transporte ferroviário nesta via começou a cobrir seus custos
(idem).
Dentro dos limites do município de Curitiba, esse caminho de ferro cruzava
PELOS TRILHOS
dois importantes acessos ao litoral: o Caminho de Itupava e a Estrada da Graciosa.
116
33
O Estado do Paraná enfrentou dificuldades em atrair empresas interessadas no empreendimento. A ferrovia projetada era uma concessão estadual, com o objetivo principal de servir
a uma experiência de colonização voltada para o abastecimento do mercado interno. Essas
características parecem ter colocado em dúvida a viabilidade econômica dessa via férrea, em
comparação com outras ferrovias que serviam ao mercado externo, como a própria Estrada de
Ferro do Paraná.
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Mais ao norte, se encontrava e seguia junto com uma vertente do Caminho do Assungui (atual Anita Garibaldi). Nesse trajeto, a ferrovia fortaleceu a existência de núcleos
populacionais, dedicados principalmente à agricultura de subsistência. Alguns desses
núcleos eram formados por imigrantes vindos de Assungui e deram origem a duas
importantes colônias, cortadas pela linha do trem: a Colônia Argelina e a Colônia do
Abranches.34
Assim, durante muito tempo, os trens que percorriam essa linha transporta-
vam não apenas cal, cimento, madeira e algum mate, mas principalmente milho,
porco, aves e outros produtos vindos das colônias localizadas próximas à estrada.
Pensando na distribuição desses produtos, mas também no transporte de pessoas,
os núcleos populacionais mais importantes dentro de Curitiba ganharam algumas
paradas de trem, como a Colônia Argelina, o Estribo Ahú e, mais à frente, a parada
do 21 ou Santa Efigênia.
As chácaras ao longo da estrada de ferro, nas décadas de 1950 e 1960, pas-
saram por um processo de urbanização, com loteamentos despontando em todo
o trecho, dando origem aos atuais bairros do Cristo Rei, Alto da XV, Hugo Lange,
Cabral, Boa Vista, Barreirinha e Cachoeira. Com mais pessoas morando ao longo da
via, o transporte de mercadorias foi se separando do transporte de passageiros. Os
trens mistos foram substituídos pelos trens de carga e pelos trens expressos, exclusivos para passageiros. Na década de 1950, o trem expresso vai se chamar trem de
subúrbio, que encerrou suas atividades em 12 de janeiro de 1991. A linha perdia sua
função social, motivo mesmo de sua construção. Hoje, ainda em funcionamento, o
ramal é praticamente um grande desvio particular para as operações de transporte
de uma grande empresa de cimento. Atravessando, dentro dos limites da cidade, regiões habitadas por pessoas de diferentes classes sociais, o trem não conta mais com
a simpatia de muitos moradores. A substituição das marias-fumaças por locomotivas
diesel-elétricas, na década de 1950, multiplicou o poder de tração e o tamanho das
pela potência ensurdecedora das buzinas pneumáticas. Sem relação com as comunidades que cruza, mais pesado e barulhento, o trem neste ramal se apresenta hoje
cortando a paisagem social de forma agressiva. Mas na memória de muitos moradores permanece as lembranças do caráter social da estrada, tanto por ter transportado
É interessante destacar que, enquanto esse ramal sublinhava ocupações já existentes, a estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá viabilizou o surgimento de núcleos urbanos.
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composições. No mesmo passo, o som cheio e agradável dos apitos foi substituído
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trabalhadores, quanto por ter carregado os produtos de subsistência dos produtores
locais – o que lhe rendeu o simpático apelido de “ferrovia das galinhas”35.
9ª PAISAGEM
Trajeto Cristo Rei – Alto da XV
É ao lado do Vagão do Armistício que essa estrada desponta. Ao deixar a Ro-
doferroviária, o trilho segue ladeado por dois muros altos e pichados por cerca de
trezentos metros. Estes muros fazem as vezes de um portal. Enquanto na região
da Rodoferroviária a cidade pode ser sentida como metrópole, devido à altura dos
prédios e ao ruído de carros e ônibus, esta passagem acaba por conduzir a espaços
e paisagens que proporcionam uma outra vivência da cidade. A diferença é notável
logo ao final daqueles dois muros: o ruído dos carros é substituído pelo canto de
pássaros, há pouco movimento de veículos nas ruas que ladeiam os trilhos (estes se
concentram nas ruas que o cruzam), há muito verde (árvores, gramados, jardins), e
predominam casas ao invés de grandes edifícios. Como no interior da Vila Capanema,
em alguns passos e poucos instantes o centro da cidade ficou para trás.
Nas imediações do trilho, nas ruas Francisco Alves Guimarães, do Herval, bem
como na própria Zélia Moura dos Santos, antigas casas de madeira se destacam na
paisagem. Dispostas em amplos e arborizados terrenos cercados por muros baixos,
algumas das casas estão em excelente estado de conservação e indicam nossa entrada
em uma área predominantemente residencial. Essas casas são reminiscências do início
da ocupação da região, que hoje corresponde ao Bairro Cristo Rei. O lugar era repleto
de chácaras que cultivavam frutas, verduras e criavam animais. Com a construção da
ferrovia a região atraiu novos moradores, que compraram lotes nas imediações. Além
das chácaras, casas de madeira com grandes quintais tornaram-se comuns na paisaPELOS TRILHOS
gem. A presença dos ferroviários nesse primeiro núcleo de povoamento do Cristo Rei é
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notória. Em 1918, funcionários da Rede e outros moradores fundam aqui um clube, a
União Beneficente e Recreativa Vila Morgenau. O primeiro presidente a dirigir a sociedade Morgenau foi um maquinista, o Sr. Sergio Ricetti (FENIANOS, 1996).
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A década de 1960 mudou a fisionomia do bairro com um intenso processo
Como recorda o Sr. João Lazzarotto, cuja família morava em um lote no início do ramal.
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Trilho ao lado do Vagão do Armistício, logo após a Rodoferroviária, sentido Curitiba-Rio Branco.
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Área verde presente ao se deixar para trás o centro da cidade.
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de urbanização, embora a característica residencial da região tenha predominado.
Poucos prédios vistos neste trajeto ultrapassam a altura de quatro ou cinco andares.
Com exceção de quatro grandes torres de edifícios, que ficam na esquina da Rua Senador Souza Naves. Por coincidência, no mesmo terreno antes ocupado pela fábrica
de fósforos Mimosa que, a exemplo da Fiat Lux, também veio se instalar junto à ferrovia para receber e exportar seus produtos através de um desvio (RVPSC, 1936).
A paisagem do Ramal Curitiba-Rio Branco, no trajeto que vai do Vagão do
Armistício até o cruzamento do trilho com a Rua Jaime Balão, ainda é marcada por
uma grande convivência da cidade e citadinos com o trilho. Em todo esse trajeto, no
qual o trilho é acompanhado pela Rua Flávio Dallegrave, a presença de pedestres e
ciclistas circulando na calçada junto ao trilho ou cruzando-o é muito mais constante,
se comparado aos trechos do Ramal Curitiba-Paranaguá. Essa circulação é favorecida
pela existência de uma ciclovia que segue o mesmo traçado plano do trilho, e pela
coexistência de um comércio diversificado e de uso cotidiano (lojas de roupas – incluindo um shopping center – padarias, farmácias, bares, pet shops, lanchonetes,
lavanderias, salões de beleza, bancas de revistas, etc.). O grau de arborização próxima ao trilho, que proporciona sombra aos caminhantes, e a existência de diversas
praças, jardinetes e largos também é notável.
Comparada ao Ramal Curitiba-Paranaguá, esta primeira paisagem do Ramal
Curitiba-Rio Branco apresenta um aumento considerável no número de cruzamentos
de veículos e pedestres e um menor número de cruzamentos apenas de pedestres.
Nos bairros Cristo Rei, Alto da Rua XV e Hugo Lange, o trilho é cruzado por algumas
ruas de grande fluxo devido às suas tendências comerciais e por serem importantes
vias de acesso ao centro da cidade. Não é à toa que, mesmo sem plataforma de
desembarque, os maquinistas dos trens de subúrbio se solidarizavam com os trabalhadores, fazendo algumas paradas “não oficiais”, como recorda o Sr. Bittencourt: “O
subúrbio que vinha de Rio Branco tinha várias paradas. Parava ali no Alto da XV. Na
10ª PAISAGEM
Trajeto Argelina
A paisagem ferroviária anteriormente descrita é marcada por uma forte ten-
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Souza Naves também tinha parada”.
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Fotos do trilho e da ciclovia na passagem da 9a para a 10a paisagem.
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dência a residências unifamiliares dispostas em amplos e arborizados terrenos, pelo
alto grau de arborização, pela ciclovia que acompanha o traçado do trilho e pelo grande número de cruzamentos de ruas com intenso tráfego. Esta paisagem, que começa
de forma um tanto quanto brusca após a passagem pelo que denominamos “pórtico”
– dois muros altos que conduzem os transeuntes do centro a um bairro residencial
considerados de alto padrão –, sofre uma brusca alteração diante de novos muros.
Nas imediações da Praça Soroptismo Internacional ainda é possível observar a oeste
e de forma panorâmica a cidade de Curitiba e seus altos prédios. Mas, por enquanto, porque os referidos muros que cercam a linha férrea a partir de então indicam
a proximidade do Bairro Cabral, onde se encontram em construção diversos prédios
residenciais que chegam a dez ou mais andares.
Pouco depois de um primeiro muro e de uma paisagem um tanto árida em
decorrência das cores e ruídos das construções desta região, em franca expansão
imobiliária, o verde volta a encher os olhos daqueles que caminham pela ciclovia que
ladeia o trilho. Algumas árvores altas fazem as vezes de cerca viva ou cortina para os
campos de golfe do Graciosa Country Club. O aristocrático clube, fundado em 1927,
é um indício da ocupação remota daquela região. Caminha-se umas centenas de
metros acompanhado pelo Graciosa e chega-se a um local bastante singular. À esquerda do trilho, para quem segue no sentido Curitiba-Rio Branco, está um conjunto
de antigas residências de madeira que constitui o que chamamos de Vila Argelina.
São seis singelas casas térreas de madeira, com idade aproximada de 60 anos, quase
“engolidas” pela recente verticalização no local.
As casas da Vila Argelina pertencem atualmente à União, mas ainda apresen-
tam a placa indicativa de que foram um dia patrimônio da RFFSA. Estão dispostas a
cerca de cinco metros da linha férrea na região da antiga Colônia Argelina. Foi nessa
região que se formou, ainda em 1869, uma colônia com mais de 200 famílias. Suas
chácaras se estendiam pelos bairros do Bacacheri e Boa Vista. A grande maioria eram
também alemães, suíços, suecos, ingleses e escoceses. A localização da Colônia era
estratégia: ocupava as duas margens da Estrada da Graciosa (hoje, Av. Erasto Gaetner) e distava apenas quatro quilômetros do centro de Curitiba. O núcleo colonial
enfrentou problemas com a pobreza do solo e com o abandono da Estrada da Graciosa após a construção da estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá (Boletim
informativo Casa Romário Martins, jul. 1989). Mesmo assim, a colônia se fixou, como
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franceses vindos da Argélia, daí o nome Colônia Argelina. Mas ali estabeleceram-se
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Vista panorâmica da cidade e torre em construção, na passagem da 9a para a 10a paisagem.
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Imagem aérea da região da Colônia Argelina (GOOGLE MAPS, 2010).
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outras que se desenvolveram no Pilarzinho e no Abranches. A Colônia Argelina logo
se constituiu em parada para trens mistos e bondes elétricos, que levavam e traziam
cargas e passageiros.
Em 1921 teve início a ocupação militar da região, com a construção do prédio
que recebeu o 5o Batalhão de Engenharia de Combate, mais tarde transformado em
Regimento de Cavalaria Divisionária e, no pós-guerra, o 20o Batalhão de Infantaria
Blindado. Na década de 1930, a ocupação da região intensificou-se, com a instalação
nas imediações do Aeroclube do Paraná. Em 1937, foi construído o complexo militar
do Bacacheri. Localizadas na então Estrada da Graciosa, a proximidade da Estrada
de Ferro parece ter sido decisiva para a implantação dessas unidades na região. Na
década de 1930 já operava ali na Colônia Argelina um desvio para carga e descarga
de material bélico.
A Colônia Argelina tinha o pátio de carregamento de material bélico. Nas casas da Rede morava o
pessoal que trabalhava aqui, arrumando a linha. Antigamente aqui tinha um muro de palanques.
Ainda tem alguns postes por ali. Esse muro era uma rampa. Os vagões vinham e tinha quatro linhas.
Tem essa principal e quatro desvios que saíam daqui e paravam todos lá, junto ao muro. Os vagões
encostavam, daí os materiais subiam por cima. (Sr. Grosko – segurança da Rede)
Ainda habitadas por ferroviários, as casas da parada Argelina seguem o mes-
mo padrão construtivo: são térreas e de madeira, frontalmente apresentam a porta
principal e quatro janelas ainda com as esquadrias originais também em madeira,
cercas baixas e cobertura quatro águas com telhas de cerâmica – as quais, segundo
relatos de alguns dos moradores, volta e meia são quebradas por bolinhas de golfe
lançadas pelos frequentadores do Graciosa Country Club. São casas de duplas para
operários, construídas pela Rede a partir dos anos 30 (RVPSC, 1935: 240).
O trilho segue seu curso em direção à região norte de Curitiba, ainda acompa-
nhado pela Rua Flávio Dallegrave e pela ciclovia. Nas imediações do trilho algumas
jeto o trem também cruza algumas ruas com alto fluxo de veículos e pedestres, tais
como a Avenida Munhoz da Rocha, a Rua Nicarágua, a Rua Deputado Joaquim Pedrosa, a Avenida Paraná e a Rua Belém. Mas são ruas que só começam a cruzar a linha
depois da década de 1950. Até aí, as chácaras dominavam a região, e o batalhão
usava os campos como invernada para seus burros e cavalos (Boletim informativo
Casa Romário Martins, dez. 1996). O loteamento da região se deu apenas a partir
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edificações não ligadas diretamente à Rede se destacam pela antiguidade. Neste tra-
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Casas da Vila Argelina.
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Casas da Vila Argelina.
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dos anos 1960. Depois daqueles cruzamentos, a intensificação das áreas verdes e a
ocupação quase exclusiva dos terrenos por casas térreas acabaram por conservar na
paisagem do Bairro Boa Vista um ar um tanto “interiorano”, fazendo a intermediação
com a próxima paisagem. Há, inclusive, logo após a Rua Ary Barroso, uma propriedade particular que mantém uma ampla área verde repleta de grandes árvores, uma
espécie de ilha verde na cidade.
Esta paisagem vai até o cruzamento do ramal com a Rua Simão Mansur, no
Bairro Boa Vista. Um local elevado no relevo da cidade, de onde novamente pode-se
observar parte da região norte de Curitiba em panorâmica. Nesta vista, o baixo grau
de verticalização e o aumento das áreas verdes parecem sugerir que os limites do
município estão próximos.
11ª PAISAGEM
Trajeto Avenida Anita Garibaldi
Seguindo o Ramal Curitiba-Rio Branco a partir da Rua Simão Mansur, os trilhos,
acima do nível da Rua Flávio Dallegrave, traçam uma curva em formato de ferradura.
No meio desta curva, de frente para a Rua José Mansur, encontra-se o Estribo Ahú,
onde hoje há uma estrutura que:
consiste em uma pequena plataforma de concreto, coberta por um telhado de duas águas com telhas
francesas e estrutura de madeira. Nas laterais apresenta um guarda-corpo feito com dormentes,
que resguarda o usuário do grande desnível existente entre a Avenida Anita Garibaldi, na frente, e a
Rua Flávio Dallegrave, nos fundos. Este desnível se sustenta por um talude gramado, seguido de um
arrimo em pedra e é transposto por uma escada de concreto. (PFC – Relatório Paisagem Material)
No entanto, essa construção data da década de 1990, para lembrar que o es-
trens de subúrbio. Essa parada também era conhecida como km 7, quando ali
havia uma plataforma. Era feita de pedra, né? Que era da altura do vagão e ainda sobra um espaço
de quase um metro, assim. O pessoal descia meio com sacrifício. Era tipo de uma rampa. Ali também
eles traziam coisas para carregar, porque vinha o trem e trazia um vagão que era para as bagagens.
Um vagão de bagageiro. Às vezes os caras levavam as coisas daqui para Rio Branco do Sul: sacarias,
sal, açúcar, que eles usavam muito pra lá, então vinha pelo trem. Carregavam naquele trem de
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paço era uma das paradas dos trens de passageiros, que ficaram conhecidos como
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Estribo Ahú.
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bagageiro, porque as malas e outras coisas vinham no vagão. Ele tinha espaço para as malas. (Sr.
Pedro)
A localização privilegiada, no encontro do trilho do trem com uma das estra-
das para Assungui (atual Anita Garibaldi) fez com que ali se fixassem armazéns,
pequenas indústrias, casas comerciais e bares. Além de um açougue e matadouro,
que ficava em um lote atualmente ocupado pela Fundação de Assistência Social de
Curitiba. Pelo trilho, que passa nos fundos desse terreno, eram descarregados alguns
bois depois de suas viagens em vagões gaiolas, como se recorda o Sr. Carlito:
Ali eles soltavam os bois, ali pra baixo. E faziam a matança ali. Eu ia no catecismo, ali onde é a
guarda-mirim [antiga Capela Santa Cruz], e nós passávamos pela linha do trem. Mas era um fedor
ali. […] Os trens com animais vinham do Rio Branco. Tinha vagão de boi. Descarregava tudo ali. (Sr.
Carlito – morador da região)
Conforme o relato de moradores, seguindo pela Anita Garibaldi, quase em
frente ao Estribo, havia a fábrica de vassouras dos Mansur, logo depois de uma fábrica de barricas para transporte de erva-mate – que fez história na região com sua
Sociedade dos Barriqueiros do Ahú – e um grande depósito de sacarias, onde hoje
funciona um depósito da Justiça.
Mas não era apenas o comércio que se desenvolvia na região. Ali também tinha
espaço para diversão e lazer, tudo ao lado do trilho. Ainda na década de 1960:
tinha um campo de futebol, que eu frequentava também. No caso era o União Ahú, que era o time
do bairro. Aos domingos, sábado à tarde, vinha uma multidão ali, pra assistir os jogos do União Ahú
com o Combate Barreirinha. Uma maravilha aos domingos à tarde. E ao lado do campo tinha um
espaço para parques de diversão. De vez em quando vinha um parquinho. E Circo também. (Sr. Ivo,
morador da região)
Apesar do fim dos trens de carga e de passageiros, por conta da expansão
abertura da Rodovia dos Minérios), a identidade da paisagem com a passagem do
trem permanece forte na memória de todos. O Sr. Ivo é enfático em afirmar que o
próprio nome do local reforça essa identidade: “Eu me lembro com saudade. Foi originário dessa estaçãozinha ali é que originou o nome estribo Ahú. Estribo Ahú é só
esse nucleozinho nosso aqui, por causa da parada do trem”.
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do transporte rodoviário e das melhorias nas ruas e avenidas da região (incluindo a
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O trilho segue seu traçado, margeado por construções residenciais e comerciais,
em sua maioria térreas, algumas áreas verdes e cruza, pela primeira vez, a Avenida
Anita Garibaldi. Esta importante via da cidade e os trilhos do Ramal Curitiba-Rio Branco passam a se cruzar e a se encontrar inúmeras vezes neste trajeto da paisagem
ferroviária de Curitiba, que marca os bairros Boa Vista, Barreirinha e Cachoeira. Nesta espécie de zigue-zague, nestes bairros predominantemente residenciais, são nos
encontros e cruzamentos com a Avenida Anita Garibaldi e seu forte comércio que é
possível sentir-se novamente em uma grande cidade.
Em um cantinho da Rua Flávio Dallegrave, esquina com a Rua Reinaldo Recke,
em uma construção térrea de alvenaria com cobertura duas águas e telhas de cerâmica, funciona um bar ainda no estilo “secos e molhados”, chamado “21”.
Nas mesas dispostas na varanda do bar pode-se ouvir inúmeras histórias dos
tempos em que ainda circulavam trens com passageiros, levando e trazendo gente do
subúrbio para o centro da cidade, bem como pode-se ver a Avenida Anita Garibaldi.
Os loteamentos apareceram por ali só na década de 1960. A região guarda
lembranças da vida em torno do movimento de Anita Garibaldi e da ferrovia antes
de sua urbanização. A igreja e a Vila de Santa Efigênia ainda não existiam. No lugar,
havia a propriedade do Sr. Ovídio Garcez, cuja sede ainda está conservada. Onde
está a igreja, havia o campo de futebol do clube local: o Combate Barreirinha. Por
ali passavam, vindas de Rio Branco do Sul, tropas de burros com seus cestos ou
carroças, trazendo fumo em corda, rapadura, feijão, galinha. Boiadas passavam em
direção ao matadouro. Nas terças e sextas, os sitiantes das imediações iam vender
seus produtos em Curitiba. Verdura, leite, lenha e ovos. Tanto na ida quanto na volta
paravam ali, no armazém do 21, para comprar o que precisavam. Como no núcleo
do Estribo Ahú, uma plataforma recebia os trabalhadores que se utilizavam dos trens
de subúrbio. Lembra a Dona Lourdes: “Era uma estaçãozinha assim que nem a do
Estribo Ahú. Passava a rua em frente ao Armazém, daí cruzava de novo o trilho e
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saía. Continuava a Anita Garibaldi dali. O trem fazia uma paradinha pra gente aqui”.
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O armazém também era ponto de encontro para aqueles que retornavam para casa
depois da jornada de trabalho: “Quando chegava o trem, aquilo era um alvoroço. O
povo vinha tudo: tinha aquele da cachacinha, outros que queriam fazer uma compra
pra levar pra casa, deixavam pra vir comprar o querosene para o lampião ali...” (Sr.
Pedro, morador da região).
Esse tempo permanece registrado em algumas das residências próximas à Ani-
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“21”.
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ta Garibaldi e à linha férrea. Até o Bairro Cachoeira, limite entre Curitiba e Almirante
Tamandaré, predominam casas térreas na paisagem, algumas visivelmente antigas,
sejam de alvenaria, sejam de madeira, dispostas em lotes bastante arborizados. Ao
longo da ciclovia é comum encontrar crianças e adultos pedalando e caminhando. A
vegetação colore com diversos tons de verde, mas também de vermelho, amarelo,
branco, lilás e outros tons florais, a paisagem calma desta região da cidade. O barulho da cidade é cada vez menos ouvido e o canto dos pássaros é tanto mais constante, sobretudo em locais de adensamento de árvores, como próximo ao Horto do
Barreirinha e das nascentes do Rio Belém. Em alguns pontos deste trajeto o observador pode encher os olhos com belas vistas da cidade. Uma região de relevo bastante
acidentado, mas de horizontes mais distantes.
A intimidade dos habitantes da região com o trem é apresentada pelo Sr. Pe-
dro, que morando no Ahú, pegava o trem de subúrbio retornando a Rio Branco do
Sul no final da tarde para encontrar a namorada no Cachoeira. Ou, então, quando
pegava o trem só para se divertir aos domingos, se aventurando entre os carros para
não pagar a passagem, driblando o chefe de trem:
No domingo, a gente saía para um passeio, né? Tinha um trem que vinha de lá do centro e cruzava
com outro aqui na Estação do Cachoeira, já em Almirante Tamandaré. Então, a gente que morava no
Ahú, eu era piazão com uns 14 ou 15 anos, pegava o trem e vinha encontrar o outro aqui. Fazia a
troca na Estação do Cachoeira, e a gente voltava com o outro trem de passageiros, só prá passear.
Para evitar a cobrança da passagem, a gente ficava atrás da porta do vagão. O trem vinha lotado. Na
troca de trem, quando a gente ia embarcar no Cachoeira, a gente já via onde tava o cobrador […] Às
vezes ele estava lá no primeiro vagão, e a gente pegava o último. Quando ele vinha para cobrar no
nosso vagão, já estava de volta na Estação do Ahú, e era hora de descer.
Essa intimidade com o trem também tinha seus riscos. No tempo das marias-fuma-
ças, as fagulhas podiam entrar nas casas e causar incêndios. Nos tempos de estiagem, o cuidado era redobrado, principalmente como a relva mais próxima da linha.
PELOS TRILHOS
Quase na divisa com Almirante Tamandaré, a linha férrea tinha um último desvio, que
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a maria-fumaça utilizava, ao vir da Estação de Cachoeira em direção a Curitiba.
As máquinas não conseguiam subir com todos os vagões, não. Então a locomotiva trazia uns três ou
quatro e deixava os vagões no desvio. E voltava lá embaixo, na Estação do Cachoeira, buscar mais
uns três ou quatro vagões. Isso porque da Estação do Cachoeira para cá era subida. Depois desse
desvio, daqui até Curitiba, só desce. Daqui o trem ia embora com todos os vagões. (Sr. Pedro)
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Paisagem próxima ao limite entre Curitiba e Almirante Tamandaré.
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Para operar o desvio, ficava ali um guarda-chaves, em uma pequena casinha
onde se abrigava. Além de cuidar do desvio, bronqueava com os meninos da vizinhança para que não mexessem onde não deviam e nem subissem nos vagões estacionados.
No cair da noite, o trem de subúrbio seguia seu caminho em direção a Rio
Branco do Sul, deixando Curitiba para trás. Nos carros de passageiros, depois de
cada parada, o guarda-freios aparecia com sua lanterna de querosene na mão. Dava
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um sinal para o maquinista e o trem seguia seu caminho, sumindo na escuridão.
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DESEMBARQUE
Saudações a vós, belas raças do futuro, rebentos da
estrada de ferro! […] Ao vagão! Ao vagão! O apito retiniu
agudo sob as abóbodas sonoras da estação […] Antes da
criação das estradas de ferro, a natureza não palpitava
mais; era uma Bela Adormecida no bosque...; até os céus
pareciam imutáveis. A estrada de ferro animou tudo...
O céu tornou-se um infinito que age, a natureza, uma
beleza em ação. O Cristo soltou-se de sua cruz, caminhou,
e deixou bem longe, para trás, na estrada, o velho
Ahasverus. (GASTINEAU apud BENJAMIN, 2006: 631)
Senhoras e senhores passageiros: em nossa viagem passamos por curvas,
ruínas, trens, grandes e pequenas edificações – tombadas (reconhecidas como patrimônio material) ou não. Coisas, grandes ou pequenas, relacionadas às políticas de
colonização do estado e/ou interesses econômicos e a um dos principais ensejos do
mundo moderno e do nosso mundo hoje: a mobilidade, a possibilidade de se deslocar
e deslocar coisas (cada vez em maior quantidade e mais agilmente). A paisagem ferroviária já foi, outrora, sinônimo de progresso. Meio de transporte e principal símbolo
da modernidade oitocentista, o trem foi fundamental para a constituição de Curitiba
enquanto cidade.
Eu entrei em 79 na rede. De 79 até o ano em que eu saí, não se construiu nada que não fosse a
maria-fumaça veio até 58, 57, quando foi feita a unificação. Daí foi feita a dieselficação, que é passar
do vapor à locomotiva diesel-elétrica. As ferrovias foram indutoras do desenvolvimento, porque elas
fazem a mobilidade humana. Se Curitiba não tivesse tido a ferrovia aqui, Curitiba não seria o que
é hoje. Porque ela não teria sido habitada como foi. As ferrovias sempre foram ponta tecnológica.
Por que, o que que era o automóvel em 1957? As pessoas só se transportavam por trem e por mar.
Não tinha ônibus, não tinha estrada. Juscelino se voltou para o sistema rodoviário e implementou
a rodovia. A rodovia tem capilaridade. Ou seja, ela vai em qualquer buraco, em qualquer lugar,
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ferrovia do aço. A ferrovia brasileira já teve 35 mil km, e hoje o Brasil opera 10 mil km de linha. [...] A
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Trem em paisagem limítrofe de Curitiba com Almirante Tamandaré.
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mas ficou de costas para o setor ferroviário. A parte de carga é que foi dada importância, e a parte
de transporte [de passageiros] foi ficando para trás […] Os governos não construíram ferrovias
modernas. Não há investimento. (Sr. Saulo Ferreira – ferroviário engenheiro).
Além de reiterar informações dadas ao longo deste trabalho, o depoimento do
Sr. Saulo traz à luz o fato de que o “avanço”, a “modernidade”, o “progresso” são frutos da ação humana. “O progresso não se situa na continuidade do decurso do tempo
e sim em suas interferências” (BENJAMIN, 2006). Assim, a suposta “defasagem” das
estradas de ferro presente em diferentes discursos que encontramos no decorrer
deste trabalho não “aconteceu naturalmente”: ela foi construída na medida em que
diferentes agentes históricos e sociais fizeram a opção por outras vias e meios de
transporte. Mas a contribuição dos caminhos de ferro para a constituição da paisagem urbana de Curitiba já estava estabelecida. As paisagens ferroviárias importam
enquanto patrimônio histórico e cultural porque suas linhas ajudaram a delinear os
contornos das identidades urbanas e sociais da cidade que crescia à sua volta.
Para além dos trilhos e das edificações da Rede, pessoas constituem e recons-
tituem as paisagens ferroviárias, sejam elas passadas – e presentificadas através de
suas memórias –, sejam como espaços reapropriados para novas práticas sociais. Na
diversidade dos grupos que estabelecem relações com as linhas do trem, o dos ferroviários merece aqui um destaque. São pessoas que conviveram ou convivem com os
trilhos em suas vizinhanças, porque trabalharam como ferroviários para a Rede (ou
tiveram, entre seus parentes, ferroviários), ou que ainda trabalham para as empresas concessionárias das ferrovias. Trabalhar como ferroviário não é algo ocasional.
Ser ferroviário é um ofício intimamente atrelado à identidade de cada um daqueles
que trabalharam na Rede: um ferroviário aposentado não deixa de ser conhecido e
identificado pelos seus pares como ferroviário. E este é o primeiro adjetivo que os
ferroviários associam a si mesmos, independentemente da função que exerceram ou
exercem (administrativa ou operacional), e pelo qual foram e/ou são classificados
pelas suas comunidades: “Sr. Pedro, ferroviário”.
E são os ferroviários, ou seus afins, que, residindo nas pequenas edificações da
Oficinas, etc.), constituem a paisagem ferroviária. Sem tais pessoas, muitas das ca-
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sas que hoje ainda estão “em pé” tenderiam ao mesmo fim que tantas outras casas
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Rede, praticando as casas construídas para as turmas e demais funcionários enquanto suas moradias, que conservam estas pequenas estruturas que, como as grandes
(Estação, Ponte Preta, Edifício Teixeira Soares, Estádio Durival de Britto e Silva, as
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que lhes eram vizinhas: foram invadidas, demolidas, incendiadas.
Além do cuidado com o patrimônio deixado pela Rede, são muitos os ferroviários
preocupados com a preservação da memória ferroviária, seja através de agremiações,
como a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, ou de iniciativas pessoais.
A memória das paisagens ferroviárias é enriquecida por essas diversas perspectivas
individuais e coletivas. Este trabalho é mais uma contribuição nesse sentido: um ponto de vista possível de uma paisagem histórica complexa, e que pode ser apreendida
através de suas múltiplas dimensões. O resultado depende de quem a observa e dos
roteiros escolhidos. Uma consciência manifestada no relato e no olhar experimentado
do Sr. Leocádio, ferroviário, com sua fala contida e exata: “cada viagem, uma histó-
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Artigos, Livros, Teses e Dissertações
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P reservação do patrim ô nio
arquitet ô nico industria l
pau l istano : iniciativas de
l evantamento, va l ori z ação e tute l a
Manoela Rossinetti Rufinoni1
[email protected]
A questão das áreas urbanas industriais subutilizadas e dos novos cenários a
serem buscados para a sua valorização são temas que vêm assumindo significativa
representatividade no panorama das políticas de desenvolvimento urbano em diversos países e em diferentes escalas. Além da localização geralmente privilegiada,
essas antigas áreas industriais representam reservas potenciais de terreno urbano
ocioso, degradado e de baixo custo; um considerável conjunto de vantagens para a
implementação de novos empreendimentos e que vem despertando, naturalmente,
a atenção de diversos setores envolvidos na produção e transformação da cidade.
Ao lado do mercado imobiliário privado, também o poder público tem demonstrado
interesse nessas áreas e em seu evidente potencial fundiário e econômico para o
desenvolvimento de grandes projetos urbanos.
Essa realidade tem sido observada no tratamento de sítios industriais ao longo
das estradas de ferro na cidade de São Paulo, como as áreas hoje encampadas pela
Operação Urbana Diagonal Sul (OUDS), ainda na fase de intenções. O perímetro delimitado pela Prefeitura como área estratégica para a realização de futuros projetos
urbanos, percorre o eixo da ferrovia Santos-Jundiaí desde as proximidades do bairro
to que atravessa vários bairros e perfaz cerca de 2 mil hectares encontramos diversos
edifícios fabris, galpões, espaços produtivos, pátios de manobras e vilas operárias;
1
Arquiteta e urbanista, Professora doutora da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo.
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do Pari até a divisa com a cidade de São Caetano do Sul (fig.1). Ao longo desse traje-
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conjuntos construídos e espaços urbanos cuja configuração fora condicionada pela
presença marcante da atividade industrial entre o final do século XIX e meados da
década de 1960, quando as indústrias de maior porte começaram a deixar a região.
Nesse perímetro marcado por extensas áreas subutilizadas, por vezes degradadas e
abandonadas, a municipalidade pretende promover transformações revitalizadoras
com o intuito de dinamizar a região e criar instrumentos de valorização, objetivo
principal das chamadas operações urbanas, instrumento previsto pelo Estatuto da
Cidade (BRASIL, 2001) e cujas áreas a serem trabalhadas na cidade de São Paulo
foram recentemente demarcadas pelo último Plano Diretor (SÃO PAULO, 2002).
Não obstante as questões econômicas e estratégias naturalmente envolvidas
na atuação sobre áreas urbanas de grandes dimensões e visivelmente degradadas,
uma particularidade essencial tem sido deixada para segundo plano nas discussões
sobre a atuação renovadora em antigas áreas industriais desocupadas: a caracterização de grande parte desses edifícios e sítios como patrimônio cultural.
O reconhecimento dos valores das paisagens urbanas, a sua caracterização
como bem cultural e a preocupação com a sua tutela, são temas que vêm sendo discutidos desde longa data, mas a repercussão na intervenção prática sobre a cidade
existente ainda é incipiente. Em um processo contínuo de amadurecimento conceitual, artefatos até então considerados menores, como conjuntos arquitetônicos e
paisagens construídas, passaram a ser reconhecidos por suas especiais qualidades
compositivas, contexto interpretativo que nos permite abarcar muitos exemplares
do patrimônio industrial. Essa expansão do conceito de patrimônio representa um
dos grandes temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos
bens culturais. Como toda ação modificadora em um bem cultural pressupõe o reconhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para
fundamentar qualquer proposta, a valorização de artefatos cada vez mais complexos
tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais. No caso
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do patrimônio urbano industrial, a diversidade e complexidade de edifícios e espaços
150
que o compõem representam uma série de dificuldades para uma correta apreensão
de suas especificidades. A grande extensão das áreas envolvidas, o entendimento das
relações entre espaços construídos, codificações sociais e expressividades estéticas,
a devida apreensão de suas características evolutivas, composição formal e integração com o entorno, são alguns dos principais desafios na análise desse patrimônio,
além, é claro, da própria dificuldade inicial de defender a sua caracterização como um
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1 – À esquerda, operações urbanas propostas pelo Plano Diretor da cidade de São Paulo. No círculo em
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destaque, a OUDS. À direita, perímetro da OUDS. (fonte: SÃO PAULO, 2003)
151
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bem cultural e da pressão especulativa a que frequentemente está sujeito.
O entendimento do valor cultural dos conjuntos arquitetônicos e urbanos e os
princípios teóricos que devem reger a atuação sobre os mesmos (e sobre quaisquer
bens culturais) são aquisições conceituais devidamente contempladas em vários documentos internacionais sobre a preservação e o restauro; textos que sugerem diretrizes gerais para o tratamento desses bens com base nas discussões travadas em
décadas de amadurecimento teórico.
A Carta de Veneza, elaborada em 1964 e até hoje nosso principal referencial
teórico, expõe com muita clareza e objetividade a citada ampliação do conceito de
patrimônio cultural. São considerados como monumento histórico, não apenas as
edificações grandiosas, mas também os sítios urbanos e rurais, bem como edifícios
modestos que tenham adquirido significado histórico ou cultural ao longo do tempo.
A Declaração de Amsterdã, elaborada em 1975, destaca a inserção de conjuntos
e bairros de interesse histórico na definição de patrimônio arquitetônico e ressalta
a necessidade de considerar a preservação desse patrimônio dentre os objetivos
do planejamento urbano e territorial. Para tanto, afirma ser necessário o diálogo
constante entre urbanistas e conservadores para que os procedimentos básicos do
planejamento urbano possam coadunar-se com as exigências de proteção aos edifícios e áreas históricas. A integração entre a proteção desses artefatos e as políticas
urbanas, portanto, torna-se indispensável. Esse seria um caminho pelo qual ambos
os instrumentos – preservação e políticas públicas – poderiam beneficiar-se mutuamente; ao acolher as exigências de conservação do patrimônio arquitetônico e integrar o artefato como dado de projeto, um planejamento adequado poderia incitar a
implantação de novas atividades em zonas decadentes, implementar usos contemporâneos em construções antigas como mecanismo de revitalização urbana e reduzir a
expansão da área metropolitana através da reabilitação dos bairros existentes, ação
que também representaria economia de recursos, pois exploraria a infra-estrutura
PELOS TRILHOS
disponível.
152
Outro documento que enfatiza tais aspectos é a Carta de Washington – elabo-
rada em 1987 pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, ICOMOS. A Carta
complementa as questões enunciadas na Carta de Veneza, enfocando precisamente
as cidades ou bairros que representem valores específicos das civilizações urbanas;
valores particularmente ameaçados pela urbanização acelerada das últimas décadas. Consolida-se, portanto, o entendimento de que a preservação de áreas urbanas
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especiais deverá necessariamente estar integrada a planos de maior abrangência,
bem como atentar para a manutenção das relações físicas e imateriais que compõem
esses conjuntos construídos: as relações entre volumes, o traçado urbano e o parcelamento, as características arquitetônicas dos edifícios e as relações com o entorno.
Tais diretrizes respondem perfeitamente, portanto, às especificidades dos sítios históricos industriais.
Paralelamente ao desenvolvimento desses debates e elaboração das citadas
cartas internacionais, cabe destacar a atenção de diversos pesquisadores para o
estudo e valorização do patrimônio específico da industrialização. Os téoricos da
chamada arqueologia industrial – Kenneth Hudson, Arthur Raistrick, Buchanan, Neil
Cossons, entre outros – , na mesma época em que se discutia a ampliação do conceito de patrimônio cultural, voltaram-se para o estudo dos artefatos provenientes
da industrialização e buscaram elaborar métodos de pesquisa, levantamento e registro dos artefatos industriais. Na decada de 1970, com a criação do TICCIH, The
International Committee for the Conservation of Industrial Heritage, órgão voltado
especificamente para a preservação desse patrimônio, tais estudos receberam um
significativo impulso.
Cabe ressaltar, contudo, que as diretrizes emanadas dos documentos citados e
a ampliação dos estudos no campo da arqueologia industrial não têm sido suficientes,
tanto no contexto nacional como internacional, para a consolidação de uma efetiva
prática de reconhecimento dos valores do patrimônio industrial ou a garantia de seu
devido estudo, seleção e preservação. De modo geral, defender a preservação de edifícios ou sítios industriais de interesse cultural é ainda tarefa muito difícil; o próprio
reconhecimento do valor cultural dessas estruturas esbarra em grandes entraves,
seja devido às características arquitetônicas da maioria dos edifícios industriais, em
geral pouco apreciadas, ou mesmo devido ao caráter de conjunto que não se compreende bem, predominam ainda as atitudes pautadas pela caracterização desses
desativadas – como aquelas existentes no perímetro da OUDS – , a prioridade geralmente é de ordem funcional: busca-se verificar qual o potencial que os edifícios
possuem para abrigar novos usos ou quais as possibilidades para nova ocupação
dessas áreas após a demolição. A verificação de suas possíveis qualidades históricas
e estéticas, portanto, facilmente passa para segundo plano ou nem mesmo chega a
ser aventada. Esse tipo de abordagem se verifica ainda mais quando consideramos a
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artefatos segundo critérios de funcionalidade e lucro. Ao atuar em áreas industriais
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escala urbana desse patrimônio. O fato de muitos sítios industriais ocuparem áreas
de grandes dimensões, por um lado dificulta a apreensão de suas especificidades
de conjunto e, por outro lado, aguça ainda mais o interesse na reutilização lucrativa
desses terrenos.
Considerando sobretudo as diretrizes de Amsterdã e de Washington, quando
identificado o interesse cultural dos conjuntos urbanos industriais, o seu tratamento
necessariamente deve ser pensado a partir de uma escala mais ampla, buscando
articular os diversos fatores envolvidos na dinâmica urbana e promovendo o diálogo entre as diretrizes de planejamento urbano e as exigências do restauro. É uma
situação, portanto, que nos remete às discussões em torno da preservação urbana:
a necessidade de pensar a inserção de novos elementos em sintonia com o preexistente, de propor novos usos condizentes com a escala e a situação local, bem como a
pertinência de integrar projetos pontuais a projetos de maior abrangência reinserindo
com cuidado as áreas restauradas em uma nova realidade (RUFINONI, 2009).
Os antigos sítios industriais geralmente agrupam diversos edifícios construí-
dos em diferentes épocas, com tipologias construtivas distintas e cuja composição
espacial provém de complexas relações pautadas pelo desenvolvimento das atividades produtivas ali sediadas. Dessa forma, esses sítios são compostos por grupos de
edifícios e espaços envoltórios vinculados entre si em função do processo produtivo.
Eventualmente, uma única edificação industrial isolada pode apresentar valores excepcionais, mas em muitos casos trata-se de uma rede de edifícios, fabris ou não,
inter-relacionados em torno da produção (galpões, edifícios fabris, vilas operárias,
pátios de manobras, equipamentos, etc.), cuja avaliação e preservação não fará sentido se todos os elementos que compõem esse cenário não forem analisados como
um conjunto, como um patrimônio urbano. Também o entorno desses sítios – áreas
voltadas a outros usos, residenciais por exemplo –, deve ser observado e analisado
com atenção pois geralmente é composto por parcelas urbanas formadas e conso-
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lidadas em grande parte devido à presença da indústria, são conjuntos construídos
154
que mantêm a homogeneidade volumétrica e a horizontalidade responsáveis pela
configuração da paisagem e da tradição urbana dos bairros industriais.
As características de parcelamento do solo em regiões ocupadas ou influencia-
das pela atividade industrial apresentam um ordenamento espacial específico para o
atendimento de funções produtivas que repercute em toda a composição do conjunto, seja na distribuição dos edifícios fabris, seja na localização de vilas operárias e ou-
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tras estruturas urbanas. Assim, a procura pela funcionalidade e otimização de fluxos
produtivos e logísticos condiciona uma configuração própria e dinâmica que, ao se
transformar de acordo com a evolução dos sistemas produtivos, permite a observação de diferentes períodos da história da técnica e da própria urbanização de cada
localidade. Em alguns ramos industriais específicos, a necessidade de extensas áreas
repercutiu diretamente no parcelamento do solo urbano a partir da delimitação de
grandes lotes e da conseqüente ordenação do sistema viário que contornou extensas
e compactas parcelas urbanas (RUFINONI, 2004: 137). A preservação de edifícios
isolados, portanto, não surte muito efeito para a manutenção dessa paisagem.
Em qualquer cidade que possua exemplares significativos desse passado, como
no caso de São Paulo, sabemos que não será possível preservá-los em sua totalidade; precisaremos realizar uma seleção. Essas escolhas, contudo, deverão basear-se
em aprofundados estudos e pautar-se por rigorosas análises histórico-críticas para
que se possa definir quais parcelas devem ser preservadas, como manter parte significativa dessas complexas relações e quais as diretrizes de desenvolvimento futuro
para as áreas envoltórias.
No caso dos sítios industriais existentes na área da OUDS, certos aspectos
dessa problemática têm sido observados pelo poder público. Em 2003, durante a
elaboração dos Planos Regionais Estratégicos – estudos que objetivaram complementar as propostas enunciadas em 2002 a partir da análise pormenorizada das áreas
encampadas por cada subprefeitura – , as características associadas à conformação
da paisagem e os valores de certos conjuntos urbanos do perímetro foram sensivelmente evidenciados, permitindo a proposição de medidas de preservação na redação
final do Plano Diretor, votado em 2004.
Entre outras análises, nos levantamentos elaborados pelos Planos Regionais,
a presença dos complexos fabris e a própria paisagem e morfologia característica da ocupação industrial foram consideradas com atenção. Tomando como base o
industrial, as análises efetuadas demonstraram certa sensibilidade com relação às
características históricas da região, não apenas voltada para edifícios isolados, mas
também para a própria morfologia urbana como importante elemento caracterizador
desse patrimônio (SÃO PAULO, 2003). A participação popular durante o processo de
diagnóstico também seguiu nesse sentido. A evidenciação desse patrimônio é citada dentre as preocupações mais prementes e sugeriu-se, inclusive, o tombamento
PELOS TRILHOS
Plano Regional da Subprefeitura Mooca, no que concerne ao patrimônio de origem
155
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de algumas edificações. Os moradores indicaram trechos da orla ferroviária onde
gostariam que fosse criado um parque linear, iniciativa que revitalizaria os galpões
industriais de interesse histórico e também supriria a carência de áreas verdes na
região.2 Na elaboração final do Plano Diretor, algumas das edificações sugeridas receberam um zoneamento específico: foram demarcadas como ZEPEC, Zonas Especiais
de Preservação Cultural, e encaminhadas para estudos específicos para verificar a
possibilidade de tombamento desses bens. Com este zoneamento, pretende-se estimular a preservação dos imóveis e sítios, bem como estudar a possível aplicação de
instrumentos urbanísticos que orientem a reconversão de uso.3
O zoneamento ZEPEC define restrições na transformação do imóvel e busca
ressarcir os proprietários por meio da transferência do direito de construir, ou seja, o
potencial construtivo do lote demarcado com este zoneamento poderá ser transferido
para outros terrenos. Trata-se de um instrumento que visa dinamizar o tratamento
de áreas tombadas (ou em processo de tombamento) impedindo que as restrições
impostas se transformem em motivo de congelamento do bem. Com este instrumento, o proprietário de um imóvel situado em ZEPEC pode transferir para outros terrenos o potencial construtivo que não poderá ser explorado na área preservada. Os
imóveis demarcados pelo Plano Diretor estão sendo analisados pelo DPH-CONPRESP
(Departamento de Patrimônio Histórico – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e alguns entraram
em processo de tombamento. Recentemente, proveniente de zoneamento ZEPEC,
foram tombados vários edifícios que compõem um significativo conjunto industrial
ao longo da rua Borges de Figueiredo, bem como definidos critérios específicos de
ocupação no entorno imediato.
Dentre as Subprefeituras envolvidas na Diagonal Sul, apenas na Subprefeitura Mooca (que
inclui os bairros do Pari, Brás, Mooca, Belém, Tatuapé e Água Rasa) o Plano Regional Estratégico (PRE) chegou a indicar edifícios e sítios industriais para preservação. Nos Planos das
Subprefeituras Sé, Ipiranga e Vila Prudente não encontramos indicações semelhantes. Dados
gerais sobre as análises desenvolvidas pelos PREs podem ser consultados no site da Secretaria
Municipal de Planejamento da Prefeitura Municipal de São Paulo.
PELOS TRILHOS
2
156
Segundo o Artigo 168 do Plano Diretor, “Zonas Especiais são porções do território com diferentes características ou com destinação específica e normas próprias de uso e ocupação do solo,
[...] As Zonas de Preservação Cultural – ZEPEC são porções do território destinadas à preservação, recuperação e manutenção do patrimônio histórico, artístico e arqueológico, podendo se
configurar como sítios, edifícios ou conjuntos urbanos”. (SÃO PAULO, 2002)
3
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Outro importante instrumento urbanístico que chegou a ser aventado para
certas parcelas da Diagonal Sul é o direito de preempção. Este instrumento, determinado pelo Estatuto da Cidade, permite ao poder público a prioridade de compra de
um terreno no momento em que estiver à venda. Assim, a Prefeitura define no Plano
Diretor as áreas onde pretende exercer o direito de preempção, geralmente porções
consideradas estratégicas para futuros projetos de requalificação ou reestruturação
urbana. Na Diagonal Sul, uma grande extensão do eixo da via férrea e significativas
parcelas urbanas envoltórias haviam sido demarcadas como preempção. Nas últimas
revisões do Plano Diretor, contudo, a demarcação inicial sofreu grandes alterações.
Notamos, portanto, tanto pela delimitação das ZEPECs, como na demarcação de
áreas de preempção (ainda que tenham sido suprimidas, posteriormente) que o patrimônio cultural da Diagonal tem sido observado com certa atenção e que existe a
intenção da municipalidade em promover a sua preservação. Conforme temos tratado, no entanto, a grande extensão dessas áreas e a rapidez com que o mercado
imobiliário tem avançado, dificultam sobremaneira a efetivação de um programa a
longo prazo que permita o desenvolvimento de estudos detalhados e que conduza
coerentemente quaisquer medidas de preservação e de intervenção.
Um primeiro passo para qualquer operação na área seria a elaboração de estu-
dos detalhados sobre o perímetro da Diagonal Sul e de pesquisas aprofundadas sobre
seu processo de urbanização, sobre as edificações existentes, suas características
construtivas formais e técnicas, acompanhadas de estudos multidisciplinares que
permitissem a apreensão das diversas e complexas relações materiais e imateriais
que definem essa paisagem. Ao longo do extenso perímetro da operação urbana,
observamos numerosos edifícios e sítios industriais, bem como áreas residenciais
vinculadas à presença histórica das indústrias, que configuram um inestimável patrimônio urbano ainda não identificado e estudado convenientemente4.
Na Diagonal Sul e arredores são poucos os edifícios e sítios industriais efeti-
Maria Zélia, em nível estadual e municipal (tombamento ex officio). Em nível municipal, além do Moinho Matarazzo e da Tecelagem Mariangela, protegidos na década de
4
Existem alguns levantamentos parciais, como o estudo realizado na década de 1970 pela
EMURB, Empresa Municipal de Urbanização e o IGEPAC elaborado pelo DPH na década de 1980,
bem como pesquisas acadêmicas que têm se ampliado nos últimos anos, mas ainda há muito a
ser estudado e atualizado. Nesse sentido, consultar RUFINONI, 2004 e 2009.
PELOS TRILHOS
vamente protegidos por Lei. São tombados os edifícios da Estação do Brás e a Vila
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1995, foram tombados em 2007, a partir de estudos impulsionados pelo zoneamento
ZEPEC, uma série de galpões na rua Borges de Figueiredo, na Mooca (fig. 2 e 3).
Além dos demais imóveis em ZEPEC que estão sendo estudados pelo DPH há, ainda,
outros pedidos encaminhados e processos de tombamento em análise, como a solicitação datada de 2006 que sugere a proteção de diversos galpões não listados pelos
Planos Regionais (RUFINONI, 2006).
O recente tombamento do conjunto industrial da rua Borges de Figueiredo
significou uma importante conquista para a preservação do patrimônio urbano industrial da cidade de São Paulo. Procurou-se proteger não apenas edifícios isolados,
mas todo um conjunto arquitetônico homogêneo e representativo de etapas decisivas
na formação urbana do bairro e da própria cidade.6 Foram tombados o conjunto de
galpões das Oficinas Vanorden; o Moinho Minetti Gamba (incluindo edifícios de produção de óleo, sabão e glicerina, os moinhos de trigo e arroz e espaços adjacentes);
o conjunto de depósitos para armazenagem de café posteriomente adquiridos pela
CEAGESP; o conjunto arquitetônico da Sociedade Técnica Bremensis e Schmidt Trost
(também conhecido como Cooperativa Banco do Brasil) e os armazéns da antiga São
Paulo Railway (fig.2).
O tombamento abrange o perímetro formado pelas ruas Borges de Figueiredo,
Monsenhor João Felipo, avenida Presidente Wilson e viaduto São Carlos e determina,
ainda, restrições de gabarito no entorno. As alturas das novas construções deverão
ser estudadas caso a caso, não ultrapassando, porém, 25m nas áreas adjacentes aos
imóveis tombados e 30m nos quarteirões entre a rua Borges de Figueiredo e a rua
João Antonio de Oliveira, que também não poderão ser remembrados, conforme o
mapa reproduzido na figura 3.
O tombamento desse extenso conjunto industrial e as restrições construtivas
PELOS TRILHOS
no entorno foram motivo de muita polêmica, sobretudo por parte de empreendedores
158
5
Tombamentos: Moinho Matarazzo e Fábrica Mariangela (CONPRESP, Res. 38/92); Vila Maria
Zélia (CONDEPHAAT Res. SC 43/92 e CONPRESP Res. 39/92); remanescentes da Estação do
Brás (CONDEPHAAT Res. 22/82 e CONPRESP 5/91).
6
CONPRESP. Resolução 14/2007. Há, ainda, processo de tombamento aberto para os edifícios
da Companhia Antarctica Paulista (Res. 09/07); para a chaminé remanescente da Companhia
União de Refinadores, conjunto industrial em desativação (Res.07/08), ambos em nível municipal; e para o conjunto industrial da rua Joli, no Brás, em nível estadual. Para informações detalhadas sobre os edifícios tombados na rua Borges de Figueiredo, consultar: SÃO PAULO, 2007.
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2 – Conjuntos industriais no bairro da Mooca tombados em 2007. Da esquerda para a direita:
galpões da rua Borges de Figueiredo; edifícios da Sociedade Técnica Bremensis e Schmidt Trost;
3 – Conjunto industrial da rua Borges de Figueiredo. Mapa anexo
à resolução de tombamento. (fonte: CONPRESP, Resolução 14/07)
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Moinho Minetti Gamba. (fotos Rufinoni, 2004)
159
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imobiliários que já planejavam investimentos na área. Algumas edificações chegaram
a ser demolidas internamente, mesmo estando protegidas pelo zoneamento ZEPEC.
Atitudes que evidenciam as dificuldades políticas e econômicas envolvidas na proteção desse patrimônio.
Um possível caminho para sugerir novos moldes de tutela e intervenção po-
deria se configurar a partir dos instrumentos urbanísticos a serem propostos pela
operação urbana. Se a preservação e o restauro do patrimônio urbano industrial integrarem, de fato, o escopo dos temas a serem abordados pela OUDS, conforme as
diretrizes de Amsterdã, a operação poderia configurar-se como um programa a longo
prazo voltado para a condução de um criterioso processo de requalificação, utilizando
a abertura jurídica que lhe é própria para a proposição de novos instrumentos de
tutela, preservação e intervenção devidamente estudados para atender às particularidades do contexto em pauta. Não há, contudo, qualquer previsão para iniciar a
elaboração desses estudos e a programação de toda a operação urbana por ora está
suspensa.
Cabe ressaltar que a preservação do patrimônio urbano industrial não significa,
como argumentam alguns, o congelamento da cidade ou a mumificação de parcelas estratégicas para o desenvolvimento urbano. Como esclareceu Miarelli Mariani
(1993), um dos desafios da preservação e do restauro urbano – de posse dos conceitos adquiridos e da compreensão dos valores inerentes às paisagens urbanas – é justamente permitir a relação dialética entre conservação e desenvolvimento, conforme
sugerem, inclusive, os citados documentos internacionais. Essa tarefa certamente
não será simples e implicará a congregação de diferentes disciplinas, adequadamente
interligadas, na busca pela interpretação dos pressupostos teóricos e por uma consciente aplicação na prática de intervenção. No caso específico de sítios industriais,
devemos considerar primeiramente um adequado e aprofundado conhecimento do
patrimônio existente, de suas particularidades compositivas materiais e imateriais,
PELOS TRILHOS
para que possamos apreender a inteireza dos conjuntos construídos e os elementos
160
formadores que devem ser preservados. Não defendemos que tudo deva ser tutelado indiscriminadamente; diante de tão extensas e complexas preexistências industriais é inevitável realizar uma seleção. Mas essas escolhas deverão pautar-se pelo
conhecimento amplo de cada território e pelas próprias análises histórico-críticas
que instrumentalizam a apreensão das qualidades de conjunto. O que não podemos
permitir é que essa seleção seja, na verdade, a tutela daquilo que sobrou; que as
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escolhas ocorram pela ação do mercado imobiliário e não pelas determinações de
uma criteriosa análise. O caminho para a preservação do patrimônio urbano – e dos
remanescentes cada vez mais ameaçados de nosso passado industrial – deve buscar
uma retomada do entendimento da preservação e do restauro como atos críticos e
como ações pautadas pelo reconhecimento das especificidades do artefato cultural.
Devemos buscar, portanto, o aprofundamento dos debates aqui brevemente enunciados de modo a permitir a abertura de caminhos investigativos e propositivos que
nos conduzam à efetiva preservação e reabilitação do patrimônio urbano de origem
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industrial.
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PA I S A G E M C U L T U R A L E P O L Í T I C A S D E
PA T R I M Ô N I O : T R A D I Ç Õ E S E C O N F L I T O S
Rafael Winter Ribeiro
Geoppol – Grupo de Estudos e Pesquisa em Política e
Território
Dept. de Geografia – UFRJ
Introdução
No Brasil, como parte de um movimento que tem origem internacional, desde
o final do século XX vivemos uma ampliação da noção de patrimônio, renovação refletida na forma de organização e atuação das instituições, bem como nos seus instrumentos legais de ação. Nesses primeiros anos do século XXI a noção de paisagem
cultural ganha cada vez mais destaque, tornando-se interesse de muitos que buscam
uma integração das políticas de patrimônio. A aparente facilidade de compreensão
da categoria – afinal, todos achamos que sabemos o que é uma paisagem, todos
achamos que sabemos identificá-la – além da possibilidade aventada de integração
através da paisagem de categorias antes analisadas em separado, como patrimônio
natural e cultural, material e imaterial, tornam a paisagem uma categoria extremamente sedutora. Entretanto, o canto da sereia muitas vezes pode levar a falsos
caminhos e a aparente facilidade em lidar com esta categoria pode causar prejuízos
às políticas de preservação.
Há muito que a paisagem é alvo de políticas de patrimonialização. No Brasil,
essa preocupação nasce junto com a política federal de preservação cultural, precriação de um Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico já em 1937,
no qual constam uma série de inscrições. Entretanto, quando se busca a designação
de paisagem cultural, procura-se uma espécie de reinvenção da categoria. Foi dessa
maneira que a paisagem cultural ganhou, nos anos 2000 no Brasil, o status de algo
novo, diferente da forma como a paisagem vinha sendo tratada tradicionalmente
nas políticas de patrimônio. O que pretendo discutir aqui é o fato de que esse novo
PELOS TRILHOS
sente desde o anteprojeto apresentado por Mário de Andrade e materializada na
165
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é construído a partir de tradições diversas nas quais se sobressaem, principalmente, os discursos da geografia e do paisagismo e a forma como essas tradições são
incorporadas tem sérias implicações no processo de seleção dos sítios e na maneira
como estes são vistos e tratados. Nesse trabalho preliminar, a partir das ações da
UNESCO e da forma como a categoria de paisagem cultural está sendo construída
como instrumento de preservação patrimonial, faço uma análise das tradições que
estão sendo incorporadas ao discurso do patrimônio. Desse modo, o que pretendo
discutir brevemente com esse texto é a forma como a categoria de paisagem cultural
vem sendo apropriada nas políticas de patrimônio, identificando algumas das tradições que são incorporadas, moldando essa prática, e apontando também possíveis
conflitos e potencialidades na integração dessas diferentes tradições.
A (re) invenção da paisagem cultural
La Petite Pierre, França, Parque Natural Regional de Vosges du Nort, outubro
de 1992. Foi ali que um grupo de especialistas de formações diversas se reuniu para
consolidar uma discussão que já vinha sendo levada a cabo há algum tempo dentro
de organismos internacionais (UNESCO ICOMOS, IUCN) preocupados em quebrar
a dicotomia entre natural e cultural na Lista de Patrimônio Mundial. Dessa reunião
saíram as diretrizes para a criação da categoria de paisagem cultural dentro da Lista
de Patrimônio Mundial que acabou por se tornar referência, dando considerável visibilidade a essa categoria e influenciando toda uma discussão sobre o tema e ações
em outras escalas. Não cabe aqui retraçar um histórico da implementação desta categoria pela UNESCO, já realizado alhures1, mas apontar brevemente suas principais
características.
No documento que é elaborado, o grupo reconhece as paisagens como ilustra-
PELOS TRILHOS
tivas da evolução da sociedade humana e seus assentamentos ao longo do tempo,
166
sobre a influência de contingências físicas e/ou oportunidades apresentadas pelo ambiente natural, bem como pelas sucessivas forças social, econômica e cultural, que
nelas interferem. A partir de um entendimento amplo da paisagem, o grupo entendia
que, no caso da Lista do Patrimônio Mundial, as paisagens culturais deveriam ser
1
RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007.
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selecionadas para a inclusão na Lista, assim como os demais sítios, pelo seu “Valor
Universal Excepcional” e pela representatividade em relação à sua região geocultural.
A partir de uma definição tão ampla, e visando maior objetividade para o reco-
nhecimento e atribuição de valor dessas paisagens, elas são divididas em três categorias distintas: 1) a paisagem claramente definida, aquela intencionalmente criada
pela homem, representada nos parques e jardins; 2) a paisagem essencialmente
evolutiva, que resulta da ação do homem como uma resposta ao ambiente natural,
refletindo o processo evolutivo da sociedade; 3) e a paisagem cultural associativa,
aquela cuja inscrição é justificada pelos valores associados a ela, muito mais do que
suas transformações físicas e seu agenciamento.
Nessa categoriazação das paisagens alvo de inscrição da Lista de Patrimônio
Mundial, emergem três focos claramente distintos: aquele que valoriza a planificação, os jardins e o paisagismo, um segundo que valoriza a maneira como sociedades,
notadamente as tradicionais, agenciaram seu ambiente, e uma terceira, que valoriza
os símbolos e valores associados a elementos da paisagem. Essa constituição não é
gratuita e está ligada à forma como diferentes ramos do conhecimento se apropriaram da noção de paisagem, conceitualizando-a e, claro, aos agentes responsáveis
por essas definições e ao jogo de forças internas e externas na UNESCO.
A dupla tradição
Em 2010, no mundo todo, existem 70 sítios inscritos como paisagem cultural
na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO. Apesar de toda a normatização para a
inscrição de um bem dentro desta categoria, é possível notar uma razoável diversidade de sítios inscritos, revelando diferentes formas como a categoria tem sido
ta e de onde partiu a maior parte das diretrizes para o Centro do Patrimônio Mundial,
PELOS TRILHOS
incorporada pelo Centro de Patrimônio Mundial.
a Europa, representado aqui neste texto pela Alemanha; e aquele que historicamente
167
Uma geografia das paisagens culturais inscritas pela UNESCO atualizada ainda
está por ser feita, mas a título de exemplo e apontando conclusões preliminares do
trabalho em curso, analisarei aqui sítios inscritos como paisagens culturais em dois
continentes: aquele que, historicamente tem sido privilegiado para inscrições na Lis-
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tem sido marginalizado e, ainda hoje, apesar das ações afirmativas para inscrição de
sítios, tem um número bastante reduzido de inscrições, a África, representado aqui
pela África do Sul. Trata-se de um exemplo didático sobre as diferentes apropriações
da categoria de paisagem para políticas de patrimônio que, se não contempla o grande universo de paisagens e países com inscrições na Lista, nos fornece um primeiro
olhar para a questão.
De uma maneira geral e esquemática, é possível identificar dois grandes gru-
pos de sítios, associados a duas tradições distintas em relação à paisagem: as quais
chamarei de a tradição geográfica, ou vidalina, e a tradição paisagista. A primeira remete a uma preocupação com a relação homem/natureza pautada sobretudo
em sociedades tradicionais, nas quais os aspectos considerados “naturais” mantém
predominância na sociedade e na paisagem. O outro grupo de sítios inscritos como
paisagem cultural remete à tradição do paisagismo, os jardins e áreas planejadas.
Analisarei mais detidamente esses dois grupos.
Embora sem citação explícita, a presença daquilo que poderíamos identificar
como uma tradição geográfica ou vidalina pode ser percebida na inscrição de uma série de sítios. Tomando como exemplo os dois sítios inscritos como paisagem cultural
pela África do Sul ela fica bem evidente. A “Paisagem Cultural e Botânica de Richterveld” é definida da seguinte forma: “O povo Nama leva ali uma vida pastoral seminômade, testemunho de formas de vida que podem ter persistido por não menos que
dois milênios na África Austral. É o único local onde os Namas constroem ainda suas
casas cobertas de junco (haru oms).”
2
O segundo sítio inscrito pela África do Sul é denominado “Paisagem Cultural
de Mupungbwe” e tem a seguinte descrição: “Trata-se de uma paisagem de savana,
espaçada com árvores, arbustos e alguns baobás colossais. Na confluência dos rios
Limpopo e Shashe e juntando as rotas norte/sul e leste/oeste no sul da África, Mapungubwe foi o maior reino do subcontinente antes de ter sido abandonado no século
PELOS TRILHOS
XIV. Sobreviveram vestígios quase intactos dos sítios do palácio, com toda a zona de
168
povoamento que dele dependia, e duas capitais anteriores. O conjunto oferece um
panorama do desenvolvimento de estruturas sociais e políticas attravés de cerca de
400 anos.”
2
Esta, e as demais referências aos sítios da UNESCO são cortes da Declaração de Valor Universal Excepcional destes sítios retiradas do portal da Lista do Patrimônio Mundial http://whc.
unesco.org/en/culturallandscape.
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Na geografia francesa, para Paul Vidal de La Blache o conceito de paisagem
desempenhava um papel importante, embora tenha ficado mais conhecido por sua
preocupação com o conceito de região e como o fundador da geografia regional francesa que se tornou o eixo principal não só da geografia na França, mas em boa parte
do mundo até pelo menos a década de 1950, incluindo o Brasil.
Ao lançar a premissa de que a história de um povo é inseparável da área
que ele habita, Vidal de La Blache procurava fazer uma correlação entre o meio e
a sociedade que nele se desenvolve, ao mesmo tempo fundando um conhecimento
geográfico sem cair em determinações de causa e efeito que desde o século XVIII,
como a Teoria dos Climas de Montesquieu, por exemplo, acompanhavam esse tipo de
preocupação.
O importante é ressaltar que para Vidal, a paisagem é moldada pela cultura,
fruto da relação entre homem e natureza, gerando um tipo peculiar de viver. O conceito de gênero de vida, por ele trabalhado e desenvolvido de maneira mais forte por
seus discípulos procura dar conta do produto dessa relação entre cultura e natureza
impregnada pela (e impregnando) a paisagem.
Embora sem citação direta, nota-se fortemente uma presença da tradição vi-
dalina, em confluência com a ecologia, nas diretrizes apontadas pela UNESCO e em
uma série de inscrições de sítios, como os apontados na África do Sul. A incorporação
dessa tradição à Lista de Patrimônio Mundial, embora tenha trazido com ela uma forma de compreender processos naturais e culturais em conjuntos, incorpora à paisagem cultural da UNESCO também uma daquelas que foi uma das críticas direcionadas
à Vidal, qual seja, sua associação com modos de vida tradicional e uma dificuldade
de inclusão de modos de vida modernos.
O paisagismo tem dado contribuições importantes para conceitualizações ope-
racionais de paisagem, marcadas sobretudo a partir de um caráter estético e também muito próximo da preocupação de projetos. É importante lembrar também que,
idealizada a partir da tradição geográfica, são os arquitetos que trabalham com patrimônio e/ou os arquitetos paisagistas que, em sua maioria, irão lidar com a categoria
de paisagem cultural dentro das instituições de patrimônio e, nesse sentido, a partir
da prática a tradição paisagista passa a ter um peso importante.
Tomar como exemplo os três sítios hoje inscritos na Lista pela Alemanha como
paisagem cultural é revelador dessa tradição. Hoje são três sítios inscritos como
PELOS TRILHOS
embora no momento de criação da categoria de paisagem cultural esta tenha sido
169
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paisagem cultural na Alemanha3. Os Jardins de Dessau-Wörtlitz são assim definidos:
“O reino dos jardins de Dessau-Wörlitz é um exemplo excepcional de concepção paisagista e de urbanismo do século XVIII, o Século das Luzes. Seus diversos componente – edifícios remarcáveis, parques, jardins ingleses e terras agrícolas sutilmente
modificadas – preenchem de maneira exemplar funções estéticas, educativas e econômicas. ”
O segundo é um sítio binacional, na fronteira entre a Alemanha e a Polônia,
o Parque de Muskau / Muakowski: “O parque de 559,90 ha, situado de um lado e
outro do rio Neisse na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, foi criado pelo príncipe
Hermann von Pückler-Muskau entre 1815 e 1844. Inscrevendo-se harmoniosamente
na paisagem agrícola de seu entorno, esse parque inaugura novas concepções paisagistas e influenciou o desenvolvimento da arquitetura paisagista na Europa e na
América.”
O terceiro é Vale do Reno: “Os 65 km do médio vale do Reno, com seus caste-
los, suas cidades históricas e seus vinhedos, ilustra de maneira viva a perenidade da
implicação humana na paisagem natural espetacular e diversificada. Esta paisagem
está intrinsecamente ligada à história e lendas e exerce, através dos séculos, uma
influência poderosa sobre escritores, pintores e compositores.”
Nota-se, sobretudo nos dois primeiros, uma predominância de paisagens pro-
jetadas, jardins e construções que remetem ao agenciamento planificado da paisagem e a valorização dos projetos que foram realizados. A natureza aqui é algo totalmente dominada e controlada pelo homem, seguindo preceitos estéticos e sociais. O
que se valoriza, acima de tudo, é o projeto, a maneira como a natureza foi agenciada
e o trabalho do homem foi incluído seguindo uma determinação bem dirigida.
PELOS TRILHOS
Considerações finais
170
Existe ainda a necessidade de uma ampla análise sobre os sítios inscritos como
paisagem cultural na Lista de Patrimônio Mundial, sua distribuição geográfica e a
3
Um quarto sítio, a Paisagem Cultural de Dresden, no Vale do Elba, foi retirado da Lista em
2009 em função de intervenções, notadamente a construção de uma ponte, que foi considerada
como incompatível com os valores inscritos na Declaração de Valor Universal Excepcional do
sítio.
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forma como as diferentes tradições e acepções do conceito de paisagem tem sido
incorporadas – um atlas das paisagens culturais patrimônio mundial, mas que além
de meramente descritivo seja capaz de fornecer informações sobre formas distintas
de compreensão de uma paisagem cultural.
Embora o número de sítios analisados aqui tenha sido extremamente pequeno
diante do universo já inscrito como paisagem pela UNESCO, ele oferece um laboratório para começarmos a pensar a forma como a ideia de paisagem tem sido integrada
nas políticas de patrimônio. Mais que isso ainda, ele nos permite começar a pensar e
repensar estas políticas, tomando conscientemente interpretações da paisagem que
melhor estejam adequadas às nossas necessidades.
No caso da forma como aquilo que chamamos de tradição geográfica tem sido
incorporada à Lista, como dito anteriormente, ela acaba refletindo as mesmas críticas
dirigidas à Vidal de La Blache por alguns. Áreas de grandes cidades tem dificuldade
de inscrição segundo essa tradição, uma vez não mais apresentam “elementos naturais” presentes na paisagem, já bastante alterada, embora a meu ver, elas possam
representar um bem acabado exemplo de paisagem cultural, na medida em que são
paisagens construídas pela cultura. Como também não são fruto de um projeto único,
também não se encaixam na tradição paisagista. É possível inscrever alguns projetos dentro de cidades, como tem sido feito, mas a paisagem urbana, também tem
dificuldade de encontrar explicação dentro da Lista. Essas são apenas algumas das
questões que, conseguimos enxergar a partir do momento em que analisados que
tipo de discurso sobre a paisagem tem sido incorporado nas políticas públicas.
Nesse momento em que se procura uma formulação de uma política brasileira
para paisagens culturais é necessário pensar a experiência brasileira à luz das diferentes tradições e incorporar, conscientemente, aquilo que melhor se adequar às
nossas necessidades. Reitero aqui, mais uma vez, a necessidade de que qualquer
trabalho sobre paisagem cultural não pode passar ao largo da rica discussão conceiconscientemente sobre essa discussão conceitual, sob pena de banalizar a paisagem
cultural.
O técnico/pesquisador que tem como objetivo trabalhar na identificação de
paisagens culturais precisa fazê-lo consciente de que realizará um recorte tanto espacial quanto conceitual, precisará se posicionar com relação a quais abordagens de
paisagem está se remetendo e, com isso, precisa ir buscar a história da discussão so-
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tual sobre o tema. Uma política de paisagens culturais no Brasil precisa ser montada
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bre o conceito. A paisagem cultural não pode e não deve ser usada a partir do senso
comum ou como o conceito que irá resolver todos os problemas agregando tudo que
se pensa “cultural”, sob pena de ser banalizada. Devemos fugir da tentação de identificar nessa categoria a solução para todos os problemas. Como qualquer categoria/
conceito, sua força está exatamente em suas limitações, nos forçando a trabalhar
dentro de um determinado quadro. Se bem utilizada ela apontará um rico caminho a
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ser trilhado na incorporação de novas referências às políticas de patrimônio.
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Paisagens Ferroviárias de Curitiba