Cadernos Mateus DOC VIII · Infinito
Quando no limite o risco tende para infinito!
à luz do “dogma central” da biologia molecular
Ricardo J. F. Branco
UCIBIO, Universidade Nova de Lisboa
1. Introdução
Quando nos interpelamos acerca da existência e sustentabilidade da vida na Terra, facilmente constatamos que sendo este, até
a data, um evento singular, pelo menos na diminuta fracção do
Universo que nos é dada a conhecer, não deixa de ser também
um processo contínuo de adaptação. Podemos então supor que,
mesmo na eminência de uma interrupção abrupta da organização da vida, tal como a conhecemos hoje, seria plausível assumir
como provável a ocorrência de eventos de natureza semelhante,
assumindo como condição necessária a conservação dos pressupostos termodinâmicos e das condições físico-químicas que lhe
têm servido de suporte existencial ao longo da sua evolução. É
aliás essa característica singular da perpetuação da vida de geração em geração, quiçá ad eternum, que nos tem permitido com
grande mestria interligar cronologicamente todas as formas e
etapas ao longo do desenvolvimento da vida neste contexto, quer
seja numa base celular ou noutra qualquer forma de organização
superior conhecida, materializadas nas inúmeras arquiteturas
alguma vez exploradas pela Natureza. Aqui o sentido do adjetivo “superior” é somente traduzir a maior complexidade destes
sistemas, por oposição aos demais corpos inertes ou inanimados.
Sendo o nosso objecto de reflexão um sistema dinâmico, na verdadeira acessão da palavra (i.e. em evolução ininterrupta), não
é de estranhar que uma interpretação causal da transmissão de
informação que o codifica – numa base genética, tenda a assumido um papel de destaque na discussão filosófica sobre o próprio
conceito de “informação” aplicado às ciências biológicas, nas
suas múltiplas dimensões, expressões e interdependências entre
organismos.1 Dela depende a sustentabilidade da vida, a qual assenta em mecanismos precisos e reprodutíveis de codificação e
transmissão da informação primordial, i.e. da informação genética, vital para a sua subsistência e continuidade material.
1. A descoberta da estrutura dos ácidos nucleicos
e a sua importância
para a compreensão dos
processos elementares da transmissão de
informação ao nível
genético inter-geracional
é ilustrado de forma
impar no livro de James
D. Watson de 1968, “the
double hélix”.5
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2. Tal como a encriptação de um qualquer
código, ou simplesmente
a codificação do alfabeto em palavras numa
determinada língua,
também a vida está
munida de um códice
universal e elementar, o
qual de forma unívoca
pode ser traduzido por
processos biológicos em
cadeia. Deste processo
complexo podemos destacar o primeiro passo
de transcrição no qual
a informação contida
na molécula primordial
de DNA, que constitui a
base dos nossos cromossomas, é transcrita numa
molécula análoga, a que
chamamos de mRNA.
Num segundo passo esta
molécula sai do núcleo
e vai ser traduzida numa
sequência de amino
ácidos que dará origem a
uma proteína depois de
maturada. Finalmente, a
divisão celular implica a
replicação prévia de todo
o material genético de
forma a dotar cada uma
das novas células descendentes geneticamente equivalentes. Estes
são em suma os três processos elementares dos
quais depende a transferência e interpretação
da informação genética
que dá suporte a todos
os seres celulares e não
celulares
3. Diz-se de moléculas
que se organizam em
agregados em número
variável, como seja a
formação de fibrilhas,
estrutura esta de maior
Assim sendo, a informação genética, codificada nas chamadas
“moléculas da vida” como são os ácidos nucleicos,1 constitui a
base do “Dogma Central” da biologia molecular, essencial para
a compreensão de processos complexos como o de replicação,
transcrição e tradução em entidades supramoleculares distintas,2 vulgarmente designadas de proteínas, tal como descrito
pela primeira vez no famoso artigo de Francis H. C. Crick, publicado em 1958 e intitulado “On Protein Synthesis”.2
Neste contexto, a questão trazida a debate no âmbito do oitavo e
último seminário do ciclo de encontros Mateus.Doc, subordinado ao temo “O Infinito”, procurará reflectir sobre a extensão, fundamento e aplicação deste conceito filosófico à noção científica
de codificação e transmissão fidedigna da informação, partindo
de uma base genética até ao nível supramolecular ou macromolecular,3 e do seu papel na “sustentabilidade” ou manutenção da
vida, à luz de uma interpretação causal.
2. Disseminação contínua e unívoca da informação
genética primordial
Podemos compreender melhor o problema subjacente à disseminação da informação nos sistemas biológicos, recorrendo ao
exemplo trivial de uma dada sequência macromolecular, e.g. sequência de DNA, codificar univocamente a sequência de uma outra estrutura macromolecular de natureza distinta e.g. sequência
primária de amino-ácidos de uma proteína, ambas estruturas finitas no número de elementos que as compõem. Duas questões
se colocam à partida: 1) desde logo qual o momento em que podemos assumir que uma dada estrutura ou sequência desta natureza passou a ter capacidade de codificar intrinsecamente na sua
composição elementar algum tipo de informação vital da qual
dependam estruturas derivadas?; 2) em que sentido e extensão
se operam os fluxos de transmissão dessa informação e subordinada a que hierarquia ou regulação?
Segundo a definição avançada por Crick, somente estruturas supramoleculares de determinado tipo possuem esta capacidade
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de codificarem informação biologicamente relevante, com vista
à sua tradução em sequências macromoleculares distintas, como
sejam as proteínas. Esta não é contudo uma relação biunívoca,
entre o código genético uno e universal e a respectiva sequência
de amino-ácidos aí codificada, uma vez que o mecanismo inverso não é biologicamente permitido. Isto é, nenhum organismo
conhecido até hoje conseguiu a partir da sequência de uma proteína, reproduzir a sequência genética específica que lhe deu origem aplicando um mecanismo idêntico de tradução e transcrição
inversos. Mesmo para as proteínas funcionais – conhecidas por
enzimas, que assistem este mecanismo de auto-replicação do
material genético, tal possibilidade não é permitida. No entanto,
é possível que uma simples cadeia de DNA pré-existente se replique indefinidamente e por complementaridade regenere a dupla
hélice original, assegurando assim que a informação aí codificada seja redundante e permaneça inalterada, processo este essencial para assegurar a integridade molecular do DNA e minimizar
potenciais riscos causados pela introdução fortuita de erros ou
mutações nas bases elementares do código genético.
Esta formulação é habitualmente designada por transferência ou
fluxo da informação genética, a qual propõe uma das maiores generalizações científicas que serviu de base ao enunciado “dogma
central” da biologia molecular contemporânea.4 Por “informação” Crick entende a determinação precisa de um amino-ácido
na sequência de uma proteína, ou elemento de uma cadeia de
ácidos nucleicos. Segundo ele, esta informação uma vez transferida para a sequência de uma proteína não mais pode ser revertida. Por outras palavras, a transferência de informação entre
ácidos nucleicos DNA/DNA, DNA/RNA ou de ácidos nucleicos
para proteínas é possível, mas a transferência contrária de proteína para um ácido nucleico ou para outra proteína está biologicamente inacessível.
complexidade, a qual
lhe confere propriedades
distintas e vantagens
cooperativas em relação
às suas unidades constitutivas individuais..
4. Esta corrente de
pensamento a qual
atribui ao dogma central
da biologia molecular
um “papel cognitivo”
tem suscitado aceso
debate na comunidade
científica opondo por
exemplo o cepticismo
radical manifestado por
Sarkar, S. 6 ao optimismo
excessivo expresso por
Maynard, S.7
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Figura 1 – Ilustração do mecanismo de transferência de informação postulado
originalmente por Francis Crick em 1958, no qual as setas sólidas representam as únicas transferências possíveis de acordo com o enunciado do “dogma
central”.2
A interpretação do fluxo ou transmissão da informação genética
abarca assim dois outros planos fundamentais em biologia molecular, para além da síntese proteica, são eles o da replicação
da molécula de DNA, dando origem a uma cópia fiel a qual é essencial ao processo de divisão celular inerente à perpetuação de
uma linhagem descendente de células geneticamente idênticas,
e a transcrição da informação para um outro tipo de ácido nucleico – mRNA, processo este igualmente implicado na produção de
proteínas no local específico da célula, o ribossoma. Esta relação
causal, com origem na molécula de DNA, tem sido experimentalmente demonstrada pela genética molecular, contudo ela depende em si mesma da pré-existência de maquinaria bioquímica
apropriada, ou seja de proteínas, as quais representam na cascata de processos: replicação → transcrição → tradução não só um
efeito mas também uma condição “sine qua non” ao mecanismo
unívoco de transmissão da informação genética.
Neste ponto somos confrontados com uma ambivalência causal
que nos remete para uma potencial regressão infinita, pois se é
verdade que à luz do modelo proposto por Crick a pré-existência
de uma cadeia simples de DNA é a causa primeira para a formação de uma segundo cadeia complementar através de um processo de replicação, não deixa de ser igualmente verdade a relação
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causal com a necessária pré-existência de enzimas e.g. DNA polimerase, para que a replicação da hélice de DNA ocorra. Assim,
Crick em 1964 3 sentiu necessidade de complementar o seu modelo de causalidade estrutural introduzindo a ideia de “template
causation”, segundo o qual qualquer um dos três processos referidos anteriormente requer a pré-existência de um “template” ou
molde molecular.
3. Sustentabilidade e risco nos mecanismos de transmissão de
informação genética “ad infinitum”
As experiências levadas a cabo entretanto vieram corroborar a
validade da tese que defende haver uma colinearidade entre a
informação contida numa sequência proteica e a do gene responsável pela sua codificação ao nível das respectivas estruturas moleculares, ou seja, qualquer mutação pontual introduzida numa
posição específica da sequência de DNA, resulta necessariamente numa alteração precisa da sequência de amino-ácidos da proteína que nela está codificada. Contudo, devido à redundância
do código genético, na qual diferentes sequências de três letras
ou codões codificam para o mesmo amino-ácido, é possível não
se observar qualquer alteração ao nível proteico, se essa sequência mutada codificar para o mesmo amino-ácido. Uma terceira
possibilidade seria obter-se uma proteína truncada, se a mutação
na sequência de DNA resultar numa sequência de terminação, a
qual abortaria prematuramente a síntese proteica inviabilizando
a sua posterior finalidade.
Esta aparente infinidade de possíveis combinações genéticas poderia traduzir-se igualmente num infinito universo de proteínas
por elas codificadas. Sabemos hoje no entanto que não é assim,
as soluções encontradas pela Natureza durante o seu processo de
contínua adaptação, como sendo as mais eficientes e funcionais
num determinado contexto ambiental estão codificadas numa
pequena fracção do material genético. Na prática a natureza encontrou uma forma muito expedita de resolver o problema da
potencial variabilidade infinita do código genético recorrendo ao
conceito de simetria e da combinação de domínios de um repertório vasto mas limitado de estruturas tridimensionais estáveis
nele codificadas – as proteínas, optimizado para as condições
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fisiológicas onde os organismos se desenvolveram e através das
quais evoluíram.
Um importante princípio subjaz no entanto a esta discussão, o
qual assegura que toda a “informação” necessária à criação de
uma estrutura tridimensional de uma proteína a partir da sua sequência primária linear de amino-ácidos, ou seja na sua conformação nativa, está contida nesta mesma sequência, sendo assim
a tradução proteica é em certa medida um processo determinístico. No entanto, a resiliência da estrutura proteica a alterações
pontuais de amino-acidos é muito elevada, permitindo por vezes uma acumulação elevada de alterações na sequência proteica sem comprometer a sua estabilidade estrutural ou funcional.
Quando tal não se verifica e as propriedades da proteína ficam
irreversivelmente comprometidas, ocorre o princípio da selecção
natural, resultando eventualmente numa variabilidade funcional que melhor responda à pressão evolutiva imposta pelo meio.
A hipótese da estrutura de uma proteína estar à partida pré-determinada pela sequência de amino-acidos que lhe dá origem
traduz a chamada hipótese termodinâmica associada ao enrolamento das proteínas numa estrutura bem definida, cuja experiência de Anfinsen veio demonstrar, pondo em causa a necessidade de um “template” externo na síntese proteica, ao contrário
dos processos de replicação e transcrição referidos anteriormente.4 No fluxo de informação entre os genes e as proteínas, a adopção espontânea de uma determinada estrutura nativa bem definida é o factor decisivo que assegura a sua função intrínseca num
determinado processo biológico.
A hipótese termodinâmica remete-nos para um conceito mais
lato, o de equilíbrio termodinâmico, para o qual todos os sistemas tendem no limite. Segundo a hipótese de Anfinsen, também
as proteínas tendem a adoptar espontaneamente a sua estrutura
nativa, termodinamicamente mais favorável. O mesmo será válido para dimensões de complexidade molecular superiores, nas
quais várias proteínas se podem agregar, revelando funcionalidades cooperativas, distintas da das suas unidades constituintes.
Por outro lado, a hipótese termodinâmica, ajuda-nos também a
entender quais os mecanismos de redução dos graus de liberdade
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num sistema biológico. Caso contrário, o número de hipóteses a
explorar e o tempo para que cada molécula encontre a sua precisa configuração funcional tenderia para o infinito. Na realidade o
mesmo aconteceria com o encontro efectivo entre duas moléculas na célula, caso não houvesse um reconhecimento molecular
específico para cada par.
4. Conclusão
A sustentabilidade de qualquer processo biológico no tempo está
assim depende de três factores fundamentais: 1) da capacidade
de assegurar um fluxo contínuo de transmissão fiel da informação genética primordial ao longo das gerações; 2) da capacidade
de aproveitar a variabilidade genética que codifica essa informação como fonte de diversidade funcional num contexto em
constante mutação; 3) do princípio termodinâmico que permite
optimizar o aparecimento e interacção selectiva de estruturas
moleculares, independentemente do seu grau de complexidade.
A verificação destes factores permite-nos entender a manutenção sine die dos sistemas biológicos, tal como os conhecemos
hoje, bem como aceitar como plausível a existência de sistemas
de codificação e transmissão de informação análogos, noutros
ambientes planetários do nosso cosmos, pelos quais procuramos.
Bibliografia
Šustar, P. Crick’s Notion of Genetic Information and the “Central Dogma” of
Molecular Biology. British Journal for the Philosophy of Science, 2007, 58, 13–24.
Crick, F. H. C. On Protein Synthesis. Symp. Soc. Exp. Biol. 1958, 12, 138–163.
Crick, F. H. C. The Biochemistry of Genetics. Int. Union Biochem. Symp. Ser.
1964, 33, 109–128.
Anfinsen, C. B. Principles That Govern the Folding of Protein Chains. Science
1973, 181 (4096), 223–230.
Watson, J. D. The Double Helix; Athenaeum Press, 1968; Vol. 40.
Sarkar, S. Information in Genetics and Development Biology. Philos. Sci. 2000,
67, 208–213.
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Smith, J. M. The Concept of Information in Biology. Philosophy of Science,
2000, 67, 177–194.
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