I
Os Capitães:
uma Revolução na forja
«Em 24 de Abril, numa quarta-feira, os cartazes de propaganda
difundiam a imagem de felizes multidões multirraciais de banhistas
nas praias de “sol e sonho” de Moçambique; em 26 de Abril, sexta‑feira, as paredes encontravam-se adornadas da foice e do martelo.
Os velhos liberais estavam horrorizados. Era de mais, em tão pouco
tempo.» [Kenneth Maxwel, «Portugal: uma revolução asseada» in
The New York Review of Books, Nova Iorque, 13JUN1974.]
É
com espanto e alguma expectativa que, no dia 25 de Abril de
1974, o mundo assiste ao derrube de uma das mais longas ditaduras europeias de então. O colapso do Portugal fascista foi súbdito e
paradoxal. Apesar dos múltiplos sinais de que o seu fim era eminente,
o próprio regime parece ter sido apanhado de surpresa, entregando‑se,
resignado, sem praticamente resistir, enquanto centenas de milhares
de pessoas saem à rua saudando os revoltosos.
Os últimos anos da Ditadura são de profunda crise. Há muito que
o processo de transição liberalizante encetado por Marcelo Caetano,
nos seus primeiros anos de governação caíra num impasse. A saída
da esmagadora maioria dos deputados da Ala Liberal da Assembleia
Nacional, em Janeiro de 1973, deixa patente o crescente isolamento
político do presidente do Conselho e o fracasso do seu reformismo.
Quando, a 16 de Março de 1974, um grupo de oficiais do Regimento
de Infantaria das Caldas da Rainha leva a cabo uma tentativa de golpe
de Estado, os seus dias estavam já contados.
Com os meios estudantis em crescente efervescência, minados pelas
novas organizações de extrema-esquerda, a prisão de cerca de três
dezenas de estudantes no Instituto Superior Técnico, em Janeiro de
1974, pouco interfere na luta e contestação destes sectores. Depois
do episódio da vigília da Capela do Rato1 os meios católicos voltam a
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agitar-se, assinalando-se então o julgamento e condenação do pároco
de Macieira da Lixa, P.e Mário de Oliveira, pelas suas homílias denunciando a guerra colonial. A «Santa Aliança» há muito ruíra.
Os sinais de perigo adensam-se visivelmente ao ser desmantelada
uma conspiração protagonizada pelo ex-comandante-chefe das Forças
Armadas de Moçambique, general Kaúlza de Arriaga. Em África a
guerra prossegue em três frentes, provocando um crescente desgaste
nas Forças Armadas portuguesas. À pressão dos combates junta-se
a popular: o assalto a uma fazenda de brancos provoca uma forte
reacção das populações de Vila Pery (Beira, Moçambique). As manifestações de protesto prolongam-se por vários dias, tendo como alvo
as autoridades locais mas, sobretudo, os militares portugueses que
são responsabilizados pelo ocorrido. Escandalizada com os massacres
denunciados pelo padre Hastings, a comunidade internacional reforça
a sua condenação do colonialismo português. Intransigente, Caetano
persiste no esforço de guerra, utilizando-o, ele próprio, como um
dos argumentos justificativos do fim da liberalização. A guerra tinha
de prosseguir a todo o custo, não tanto por razões de patriotismo e
defesa da integridade territorial mas, em seu entender, para defesa das
populações locais e dos seus interesses.
Economicamente o panorama não é também animador. Apesar do
seu bom desempenho nos primeiros anos do consulado marcelista, o
impacto da crise petrolífera de 1973 deixa patentes as debilidades e
deficiências estruturais da economia portuguesa. O regime caíra num
impasse, sem respostas para fazer face à crise que se abria em todas
estas frentes: as finanças, as Forças Armadas, a guerra, a agitação
social e política, o crescente isolamento internacional.
Enquanto os indícios de mal-estar se multiplicam, nos bastidores
prepara-se o derrube do regime. A mensagem que, cerca de um ano
antes, José Medeiros Ferreira enviara ao III Congresso Republicano
de Aveiro, atribuindo às Forças Armadas a missão de Democratizar,
Descolonizar e Desenvolver estava prestes a encontrar uma concretização prática. O detonador é accionado pelo número dois da hierarquia militar, António de Spínola, com o seu livro Portugal e o Futuro.
Os Capitães, que há muito conspiravam, aceleram os preparativos
para o golpe de Estado que, em breve, sairá à rua, vitorioso.
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1. Porque se fez o 25 de Abril?
Alertado pela possibilidade de um movimento conspirativo estar
em curso na sua Região Militar, o general Moreira da Câmara
interrompe abruptamente as suas férias estivais e regressa a Évora.
A fuga de informação deve-se a uma improvidência do capitão
Dinis de Almeida que, no decurso dos preparativos do evento, no
intuito de adquirir carne a melhor preço, se dirige ao RAL 3 em
Évora, dando a conhecer ao seu comandante, major Gaspar, que
está a preparar uma «confraternização» de militares num monte
situado a poucos quilómetros da cidade.
O sigilo fora, até então, a palavra de ordem. Apenas um grupo
muito restrito tem conhecimento do local exacto do evento. Os contactos efectuados nos primeiros dias de Setembro em diferentes pontos
do país garantiam a presença de, pelo menos, uma centena de oficiais
que, segundo indicação recebida, deveriam acorrer a dois locais – o
Templo de Diana e o campo de aviação de Évora – a fim de receber
instruções e indicações mais precisas.
Ostensivamente camuflados sob óculos escuros e trajes civis, o general Moreira da Câmara e o brigadeiro Carrilho (segundo-comandante
da RME), anotam as matrículas dos carros que acorrem ao largo do
Templo de Diana. O capitão Vasco Lourenço, que afincadamente distribuía croquis com a localização do monte, aborda-os acintosamente
convidando-os a participar no encontro. A iniciativa inviabiliza as
intenções do general que, apanhado de surpresa, recusa o convite.
A operação revela-se um sucesso e, em breve, o Monte Sobral será
palco de um momento histórico. Esta reunião de 136 capitães, tenentes e alferes do Exército e da Força Aérea, realizada a 9 de Setembro
de 1973, assinala, simbolicamente, o nascimento do Movimento dos
Capitães e o início da conspiração.
O consenso relativamente a esta questão não pode, no entanto,
esconder ou minimizar a complexidade desse momento e as profundas
tensões entre cadetes e milicianos, entre «legalistas» e partidários do
golpe de Estado, entre oficiais próximos ao ex-Governador da Guiné,
António de Spínola, e outros sectores militares mais progressistas.
O encontro de Alcáçovas é a resposta directa a dois Decretos‑Lei,
da responsabilidade do ministro da Defesa Sá Viana Rebelo, publi-
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Croquis fornecido aos participantes no encontro de Alcáçovas de 9 de Setembro
de 1973. (Arquivo Associação 25 de Abril.)
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cados no Verão de 1973. O primeiro, de 13 de Julho (Decreto-Lei
n.º 353/73), permite a passagem dos oficiais do Quadro Especial ao
Quadro Permanente (QP) das armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria, mediante a frequência de um curso intensivo de dois semestres. Ao possibilitar que um processo que até então demorava quatro
anos, passasse a apenas um, o ministro pretendia minimizar o grave
problema da falta de candidatos à Academia Militar e, consequentemente, de oficiais na frente de combate em África. Não deixa de
surpreender a falta de visão e de cálculo do ministro num momento
tão delicado como o que então se vivia, em que era óbvio o desgaste
provocado nas FA por mais de uma década de guerra colonial.
Injustiçados com as possibilidades de ingresso no quadro e de promoção que o decreto oferecia aos milicianos, os oficiais do QP reagem.
Os milicianos, por seu lado, inquietos com esta reacção dos oficiais
oriundos da Academia, exigem maior firmeza das chefias militares.
Uma situação potencialmente explosiva que leva o ministro a reconhecer publicamente o erro: a 14 de Agosto, Viana Rebelo recua e admite
terem-se verificado algumas situações que não estavam previstas na
aplicação do Decreto-Lei. Dias depois é publicado o Decreto-Lei
n.º 409/73 (de 20 de Agosto) que dá nova redacção aos artigos 3 e
6 do Decreto-Lei 353/73. Apesar desta rectificação solucionar o problema da ultrapassagem dos oficiais superiores (majores), mantém-se
a injustiça relativamente aos capitães e subalternos do Quadro Permanente. Por outro lado, a questão do prestígio da instituição também
não é resolvida. Neste contexto, ao invés de acabar com a contestação, o diploma rectificativo contribui para a adensar.
A brecha no corpo de oficias do Exército estava aberta, opondo
ex-milicianos e ex-cadetes, numa contenda que se arrastará até inícios
de 1974.
O impacto destes decretos é no entanto mais amplo, a ponto de
Otelo Saraiva de Carvalho os considerar o «verdadeiro rastilho para
a criação do Movimento dos Capitães». Uma «pequena bola de
neve que, rolando, daria lugar à avalancha» e, em última análise, à
queda «de um regime ditatorial de Direita, velho de quarenta e oito
anos»2.
Assim, logo a 28 de Agosto, 51 oficiais em comissão de serviço na
Guiné enviam uma exposição a várias individualidades (presidente
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da República, presidente do Conselho e ministro da Defesa e Exército) revelando-se «feridos no seu prestígio» profissional. Seguem-se
idênticos documentos de oficiais de Angola e Moçambique. Era o
princípio de uma ampla mobilização que levará a que, nos primeiros
dias de Setembro, seja distribuída em algumas unidades uma circular
equacionando as questões básicas com que os oficiais de carreira se
confrontavam, e apelando ao desenvolvimento de contactos e ao aprofundamento da reflexão sobre que atitude tomar. É neste contexto que
Dinis de Almeida, Vasco Lourenço, Rosário Simões, Carlos Camilo e
Bicho Beatriz promovem o já referido encontro de Alcáçovas. Objectivo prioritário: preparar um acto de repúdio que obrigasse o governo
a reconsiderar a sua posição e a rever os diplomas.
O evento é minuciosamente preparado, sob a capa de uma confraternização – era preciso evitar qualquer suspeita. Superados os
receios iniciais, gera-se um acalorado debate: em causa os problemas
da classe e as consequências da aplicação da nova legislação. A diversidade de posições e de sensibilidades presentes dificulta a obtenção
de uma plataforma de entendimento. A estratégia acordada, marcadamente legalista, traduz-se no envio ao presidente do Conselho,
Marcelo Caetano, de um abaixo-assinado pedindo a revogação dos
polémicos Decretos-Lei. Paralelamente, os organizadores do encontro
ficam encarregues de constituir a primeira comissão do Movimento
contando, para o efeito, com a colaboração de Rodrigues de Castro
e Carlos Clemente.
O Movimento dos Capitães era já uma realidade, permitindo-nos
concluir que as questões corporativas foram fundamentais no início
do processo da sua mobilização.
A antecâmara do Movimento dos Capitães
No Verão de 1973 assiste-se a uma outra mobilização cujo carácter
político é óbvio. Trata-se do I Congresso dos Combatentes realizado
no Porto nos dias 1 a 3 de Junho.
Organizado pelos sectores de extrema-direita do regime, com o
apadrinhamento público do presidente da República, Américo Tomás,
o congresso propunha-se «combater tudo quanto ameace a unidade
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e a grandeza de Portugal». Em última análise, trata-se de uma reunião de apoio à política integracionista do regime e à continuidade
do esforço de guerra, através do qual se pretendia revelar à opinião
pública nacional e internacional a adesão das Forças Armadas ao seu
projecto. A percepção de que um grupo bastante alargado de oficiais
do Quadro Permanente se preparava para contestar o evento leva
o ministro da Defesa e Exército, Sá Viana Rebelo, a proibir a sua
participação nos trabalhos. As dificuldades e resistências ao envio de
representantes ao congresso encontradas pelos oficiais em serviço na
Guiné são apenas um exemplo de como se pretendeu silenciar as vozes
discordantes. Para o regime, o essencial era transmitir, uma vez mais,
uma imagem de união em torno das suas políticas.
A estratégia falha, assistindo-se à formação de uma ampla frente
contestatária, mobilizada em torno de duas ideias básicas: a antidemocraticidade formal da organização do congresso e o seu carácter reaccionário. Neste sentido, um grupo de oficiais do Quadro Permanente,
precisamente os mais sacrificados pela guerra, decide boicotar o evento
pondo a circular um abaixo-assinado demarcando-se do congresso e
dos seus resultados. Apesar da acção ser da iniciativa de oficiais que
tinham servido na guerra sob comando de António de Spínola (como
Ramalho Eanes, Hugo dos Santos ou Firmino Miguel) rapidamente tem
a adesão de outros sectores das Forças Armadas.
Desta manifestação colectiva sem precedentes resultará a recolha
de centenas de assinaturas e o envio de um telegrama em que os signatários afirmam não aceitar «outros valores» nem defender «outros
interesses» que não sejam «os da nação», não reconhecendo ao congresso, a «necessária representatividade» e legitimidade.
O conhecimento público desta contestação acaba por retirar qualquer significado ou expressão ao congresso, provocando uma profunda indiferença na opinião pública. Assinala-se, no entanto, tratar‑se do primeiro acto público de indisciplina e contestação à política
colonial do regime e, por isso, rotulado por Vasco Lourenço como a
«antecâmara da conspiração» que conduz à criação do Movimento
dos Capitães.
Discordando desta interpretação, e detectando a impossibilidade
de estabelecer uma ligação orgânica ou motivacional directa entre os
dois movimentos, não podemos deixar de assinalar o amplo signifi-
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cado e importância da iniciativa. Antes de mais porque, ainda que
indirectamente, a mobilização em torno do congresso deixa patentes
as movimentações em curso na Guiné. Refira-se a este propósito que
em meados de 1972, ao ver gorados os seus esforços de desenvolvimento de conversações com o Partido Africano para a Independência
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), o Governador e comandante-chefe
das Forças Armadas na Guiné incompatibiliza-se com Marcelo Caetano. A recusa do presidente do Conselho de participar na procura
de uma saída política para a guerra, que Spínola considera perdida
em termos militares, leva o seu «estado-maior» a promover uma tentativa de golpe palaciano. É nesse sentido que, durante o Verão de
1972, se desenvolvem contactos com a Ala Liberal tendo em vista
o afastamento de Américo Tomás da Presidência da República e a
sua substituição por António de Spínola. Marcelo Caetano acabará
por condenar o projecto ao pactuar com a recandidatura de Américo
Tomás. Mas o fracasso da iniciativa é apenas relativo porque a partir
de então se torna óbvio que na Guiné estava já criado o ambiente propício ao debate sobre a guerra, tema tabu do regime. A ideia de que a
solução do problema é política e não militar difunde-se rapidamente
entre a oficialidade spinolista.
Em segundo lugar, é fundamental integrar os acontecimentos que
rodeiam o Congresso dos Combatentes no contexto da guerra. Num
momento em que, sobretudo na Guiné, os confrontos se agravam, e o
desgaste provocado pelo esforço de guerra se reflectia perigosamente
no moral das tropas, aos olhos de muitos começava a ser óbvio que o
governo aceitaria mais facilmente uma derrota militar do que a cedência perante os movimentos de libertação. O espectro do caso da Índia
era preocupante, temendo-se que, uma vez mais, as Forças Armadas
fossem responsabilizadas pelos erros do regime e pela sua política
colonial. Segundo Dinis de Almeida, «a sucessiva responsabilização
dos oficiais do Quadro Permanente pelos insucessos, cuja razão de ser
era bem mais política do que militar, não traduzia senão a intencional
preparação da opinião pública, não apenas para os periódicos, inevitáveis e frequentes insucessos militares, mas também para o colapso
previsível e iminente que se desenrolaria a curto prazo na Guiné. Tal
transferência de responsabilidades, já havia logrado êxito na Índia,
possibilitando ao regime a sua sobrevivência»3. Assim, em última aná-
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lise, a mobilização em torno da contestação ao congresso acaba por
patentear um clima de mal-estar que se instalara em amplos sectores
das Forças Armadas.
Finalmente, assinale-se a fraqueza manifestada pelo regime em
todo este processo. A sua ausência de reacção ao esvaziamento do
congresso é um sinal de que outras iniciativas poderiam ser levadas a
cabo e de que o poder estava muito mais fraco do que aparentava.
A mobilização do Movimento dos Capitães apresenta características bem diversas das que presidiram a esta contestação ao Congresso
dos Combatentes. Antes de mais porque os spinolistas são ultrapassados em todo o processo. Depois, porque esta mobilização é ditada por
razões estritamente corporativas – as questões profissionais e do prestígio da instituição acabam por funcionar como elemento aglutinador
para uma classe despolitizada e pouco dada a actos de insubordinação, permitindo progressivamente o alargamento do movimento contestatário. Em poucos dias as suas ramificações estendem-se à Guiné,
Angola, Moçambique e a vários pontos de Portugal Continental.
Apesar das diferenças, ambas as iniciativas deixam patente um profundo mal-estar que perpassa largos sectores das FA. Em breve assistiremos à «confluência» dos dois movimento, na medida em que não
só vários dos oficiais que promoveram a contestação ao congresso vão
colaborar com os Capitães, como também porque o próprio Movimento será sujeito a um progressivo processo de politização que altera
radicalmente a sua essência.
A via do golpe de Estado
O primeiro sinal desta tendência encontra-se na sobrevivência do
Movimento à suspensão dos decretos e à exoneração do ministro
do Exército e Defesa (Outubro de 1973). A vastidão do protesto
impedia qualquer medida repressiva levando o governo a optar pelo
recuo em todas as frentes. Depois, mantendo a sua crença na natureza
puramente corporativa do movimento de contestação, o executivo
prometerá, pouco antes do fim do ano, uma melhoria substancial dos
vencimentos dos militares. Mas era já tarde: as reivindicações corporativas iniciais já não eram fundamentais e o Movimento assumia um
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Agenda para a reunião de Óbidos, aprovada em S. Pedro do Estoril em 24 de
Novembro de 1973.
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outro carácter. A questão da guerra e o problema colonial passam progressivamente a estar no centro das atenções, acabando por conduzir
à decisão de derrubar o regime4.
O processo de politização é lento e, em muitos aspectos, superficial. A experiência de guerra confere uma consciência política
prática, mas extremamente frágil e pouco fundamentada ideologicamente. Apesar das dificuldades, a essência do Movimento irá progressivamente alterar-se, num processo hábil e duramente conduzido
por um grupo mais restrito para quem é cada vez mais evidente que
a solução para a guerra é política e não militar. A atestar esta realidade, a discussão travada no seio da direcção do Movimento em
meados de Novembro.
Ignorando os princípios básicos de uma conspiração, os capitães
convocados para o evento reúnem-se animadamente num café em
Santarém, antes de se dirigirem para a adega da casa do sogro de um
capitão da Escola Prática de Cavalaria, em Aveiras de Cima. Presentes,
entre outros, os membros da Comissão Coordenadora do Movimento
dos Capitães (Dinis de Almeida, Vasco Lourenço, Rodrigo de Castro,
Mário Frazão, Mariz Fernandes, Campos Andrade, Sanches Osório,
Hugo dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Correia Bernardo) e
alguns oficias pára-quedistas. A discussão foi intensíssima. Além de
fortes resistências à integração dos spinolistas, as posições divergiram também quanto à forma de actuação. A via legalista proposta
por Mariz Fernandes não é bem acolhida pelo conjunto dos presentes. Mas também não se reúne um consenso em torno das propostas
de Vasco Lourenço e Dinis de Almeida, no sentido de se operar um
avanço qualitativo que não excluísse, à partida, soluções radicais.
A necessidade de dirimir alguns destes conflitos leva a Comissão a
promover uma reunião mais alargada, em que participam 45 oficiais
em representação das principais unidades do país. Este encontro,
realizado a 24 de Novembro de 1973, na Colónia Balnear Infantil
de O Século, em S. Pedro do Estoril, deixa patente a amplitude que
o Movimento adquirira. A discussão gira em torno da necessidade
de redefinir objectivos e de constituir uma nova Comissão Coordenadora. Às vias legalistas, até aí preponderantes, opõem-se as golpistas protagonizadas pelo tenente-coronel Luís Banazol: derrube do
Marcelismo, pela força das armas, e fim imediato da guerra colonial.
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Um salto qualitativo importantíssimo, permitindo que, pela primeira
vez, se equacione abertamente a via do «golpe de Estado». A discussão foi inconclusiva, optando-se, por isso, por levar a cabo uma
sondagem no interior do Movimento sobre as hipóteses e vias em
confronto.
Concluído o processo, a 1 de Dezembro realiza-se uma reunião em
Óbidos, com a presença de 86 delegados de todas as unidades em representação de algumas centenas de oficiais. Aí se decide uma mudança
de denominação da organização que é rebaptizada como Movimento
dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA). Depois, e uma vez que a
sua implantação era praticamente limitada ao Exército, determina-se
o seu alargamento aos outros ramos das Forças Armadas. No que diz
respeito à Coordenadora, a opção é pelo seu alargamento, passando a
integrar 19 elementos (3 de cada uma das Armas e Serviços do Exército excepto o Serviço de Material, que tem apenas 1), entre os quais
Vasco Lourenço, Hugo dos Santos (Infantaria), Otelo Saraiva de Carvalho e Sousa e Castro (Artilharia), Salgueiro Maia e Manuel Monge
(Cavalaria), Pinto Soares e Luís de Macedo (Engenharia) e José Maria
de Azevedo (SAM). Hugo dos Santos é substituído por Vítor Alves,
uma vez que se encontrava mobilizado para uma comissão de serviço
na Guiné. A missão desta nova comissão é essencialmente executiva,
cabendo-lhe tomar as decisões adequadas à prossecução dos objectivos a atingir.
O ponto mais polémico será, no entanto, o relativo à linha estratégica. O debate gravita em torno de três proposta: a) conquistar o
poder e entregá-lo a uma Junta Militar, para democratizar o país
[hipótese do golpe de Estado]; b) dar oportunidade ao governo para
se legitimar perante a nação através de eleições livres, fiscalizadas
pelo exército e antecedidas por um referendo sobre a política ultramarina [hipótese legalista]; c) utilizar reivindicações exclusivamente
militares para recuperar o prestígio do exército e pressionar o governo
[hipótese legalista]. Amplamente desenvolvida por Banazol, a primeira hipótese recolhe bastantes apoios. Mas não os suficientes para
suplantar a via legalista que acaba por sair vencedora nesta disputa,
na formulação consagrada pela hipótese c). Num momento em que o
Movimento pensava ainda a sua estruturação e alargamento, triunfa
a prudência.
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Resumo das respostas ao 1.º ponto da agenda (hipóteses de acção). Manuscrito de
Vasco Lourenço. (Arquivo Associação 25 de Abril.)
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Croquis com a localização da reunião de Óbidos de 1 de Dezembro de 1973.
(Arquivo Associação 25 de Abril.)
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Finalmente, a maior contradição e surpresa do encontro: a eleição
de dois «chefes prestigiados». Revelando a influência dos partidários
da intervenção militar, mas também o peso das hierarquias, os eleitos
são o então CEMGFA, Francisco da Costa Gomes, e António de Spínola. Ao primeiro, o mais votado, com larga margem, reservava-se
a Presidência da República. Quanto ao ex-Governador da Guiné, a
ideia era atribuir-lhe a direcção suprema das Forças Armadas.
A via do golpe de Estado volta a ser discutida, dias depois, numa reunião restrita realizada na Costa da Caparica, a 5 de Dezembro de 1973,
mas será novamente rejeitada por alegada falta de fundamentação.
As atenções centram-se então na proposta que saíra vencedora do
encontro de Óbidos. Nesse sentido, determina-se a prossecução de iniciativas legais, de carácter reivindicativo e profissional, «mas de natureza tal que o Executivo não tivesse possibilidades de as satisfazer, originando-se assim uma forma de pressão que, na melhor das hipóteses,
poderia levar à demissão do próprio Governo e, na pior, ao devido
encaminhamento para a hipótese A»5. Vítor Alves, Vasco Lourenço e
Otelo Saraiva de Carvalho ficam encarregues de elaborar um plano de
acção para o futuro. Paralelamente, num óbvio sinal da crescente complexidade do Movimento e da sua missão, constituem-se novas comissões: Estudos da Situação, Ligação Interna (Metrópole e Ultramar),
Estudos Psicológicos e Secretariado e outra para estabelecer contacto
estreito com a Marinha e a Força Aérea. Segundo alguns autores, «pode
dizer-se que o 25 de Abril “nasceu” nesta reunião, com a criação das
estruturas essenciais que assegurariam o êxito da operação»6.
Perto de finais do ano, o primeiro sobressalto: a 17 de Dezembro
é publicamente denunciada uma tentativa de golpe de Estado direitista dirigido pelo general Kaúlza de Arriaga. A acusação, feita numa
aula do estágio para oficiais superiores, no IAEDN, parte de Carlos
Fabião, um oficial próximo do general António de Spínola. Se é verdade que este episódio deixa patente a existência de várias conspirações, assinala-se também a tomada de posição do ex-Governador da
Guiné. Há muito que fora sondado por Kaúlza sobre o assunto, mas
também é sabido que já se desvinculara dessa conspiração. Encontrando-se, nesse momento, a aguardar colocação, significava esta
intervenção de um dos seus homens de confiança uma tentativa de
«aproximação» aos Capitães? E porque não teve uma intervenção
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mais directa, uma vez que se movia por dentro dos corredores do
poder? Uma posição eivada de ambiguidades mas cujas vantagens
em breve se revelarão.
Portugal e o Futuro
A partir de Janeiro de 1974 o Movimento adquire novo fôlego
e dimensão. Multiplicam-se os encontros e reuniões, de diferente
âmbito, tendo em vista a definição da estratégia a seguir. À medida
que a opção pelo golpe de Estado ganha adeptos e posições, intensifica-se o debate ideológico e equaciona-se a necessidade de um plano
político. Desenvolvem-se contactos com elementos da Armada, Força
Aérea e procuram-se novos apoios. A maior surpresa acabará por
residir na atitude dos que o Movimento escolhera como «chefes»:
enquanto Costa Gomes recusa qualquer envolvimento, António de
Spínola assume a posição inversa. Esta estratégia em breve dará os
seus frutos contribuindo, em última análise, para que seja catapultado
para um lugar cimeiro na nova ordem dos pós-25 de Abril.
Desiludido com a determinação governamental de impedir as conversações com o PAIGC, em Setembro de 1973 Spínola recusara assumir um novo mandato como Governador e comandante-chefe das
Forças Armadas da Guiné. O prestígio nacional e internacional de que
gozava coloca o regime perante a difícil questão da sua reintegração.
Depois de várias diligências mal sucedidas, em Janeiro de 1974, Spínola é empossado como vice-chefe de EMGFA. A assunção deste cargo
que para ele fora criado por sugestão do próprio CEMGFA, Costa
Gomes, leva os mais incautos a pensar que as velhas feridas estavam
saradas e que o ex-Governador da Guiné se submetia aos desígnios
do regime. Em breve as dúvidas se dissiparão deixando patente que a
ideia de promover um golpe palaciano não era rejeitada.
Spínola deixa nesses momentos clara a sua habilidade, desenvolvendo contactos não só com os Capitães mas também com os ex‑milicianos. Os seus conselhos para que estes últimos se aproximassem
dos Capitães, numa tentativa de unificar o movimento de contestação,
deixam transparecer o seu desejo de exercer a influência e controlo
sobre os dois grupos e a conspiração. Quanto aos Capitães, a sua
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estratégia será diversa. Consciente da sua força e importância, Spínola irá tentar orientá-los no sentido de os transformar «em força útil
junto dos chefes militares responsáveis, forçando estes a uma tomada
de posição». A sua ideia era integrar o Movimento numa «estratégia
global que viabilizasse uma saída digna para o problema ultramarino
e abrisse caminho para a institucionalização de um Estado Democrático alinhado pelos países da Europa Livre»7.
O primeiro encontro de Spínola com representantes do Movimento
tem como pano de fundo os problemas vividos em Moçambique onde,
na sequência de mais um assalto a uma fazenda de colonos portugueses, se verifica uma violenta reacção da população branca. Os incidentes mais graves ocorrem na manifestação da noite de 17 para 18 de
Janeiro, que acaba por se transformar num protesto contra as Forças
Armadas, acusadas de cobardia e inacção.
É esta situação que Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, destacados pelo Movimento para a missão, apresentam ao vice-CEMGFA,
no dia 21 de Janeiro, manifestando-lhe a indignação de grande número
de oficiais em relação aos acontecimentos da Beira. Spínola serena os
ânimos, revelando-lhes que «tudo se estava fazendo para esclarecer a
situação e tomar adequadas medidas», sendo que, nesse momento, o
próprio CEMGFA se encontrava em Moçambique «para se inteirar da
extensão dos incidentes». A sua principal recomendação é que se mantenham dentro da «legalidade», uma vez que se optassem por formas de
luta que «ultrapassassem os limites de uma atitude disciplinada e estruturalmente militar» não poderia, «por formação ética e por força do
cargo que desempenhava», continuar a recebê-los e a apoiá‑los8. Não
deixa, no entanto, de lhes dar uma esperança, revelando-lhes estar a
preparar um livro bomba: «Deixem-me publicar o meu próximo livro,
que está quase pronto, e depois vamos ver como é que eles reagem
quando o apanharem pelos queixos»9. Num momento em que a actividade do MOFA se intensifica, são grandes as expectativas em torno da
publicação do livro.
A questão que se colocava então era a de saber qual o impacto do
livro no Movimento e qual o projecto político que lhe estava subjacente. São estas algumas das preocupações que Otelo Saraiva de Carvalho manifesta numa reunião da Comissão Coordenadora realizada
em sua casa, a 3 de Fevereiro. Além do risco de perder a sua autono-
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mia e identidade, existia o perigo de esvaziamento da acção do Movimento o que, segundo Otelo, era manifestamente injusto porque este
«caminhava seguro e firme, sem precisar e sem recorrer ao conselho
político do general em qualquer definição do seu ideário. E era Spínola, de facto, quem necessitava da força e impulso do Movimento
para vir a alcançar, no futuro próximo, aquilo por que ansiava»10.
Diversa é a interpretação de Spínola que virá mais tarde a lamentar
não ter tomado o poder em Fevereiro de 1974, evitando assim o golpe
dos Capitães11.
Quando confrontado com a notícia da iminente publicação do
livro de Spínola, Marcelo Caetano é dos primeiros a constatar a
inconveniência de uma proibição governamental dado o prestígio
e a posição ocupada pelo seu autor. Por isso, remete o problema
para Costa Gomes que, consciente de que a sua posição «favorável
à publicação, ia dar muito que falar», lhe dá o seu aval num parecer
em que afirma que «o general Spínola acaba de prestar desta forma
ao país serviços que devem ser considerados tão brilhantes como
os que com tanta galhardia e integridade moral provou possuir nos
campos de batalha»12.
A 22 de Fevereiro, Marcelo Caetano convoca os generais Spínola
e Costa Gomes a S. Bento. Acabara de ler Portugal e o Futuro e «ao
fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado militar»,
cuja marcha «pressentia há meses, era agora inevitável»13. A conversa é fria e grave. Caetano reconhece ser-lhe impossível continuar
a governar o país «com um corpo de oficiais insubmissos e os chefes
militares discordantes», chegando mesmo a sugerir que os generais
reivindicassem o poder junto do Chefe de Estado14. A proposta chegava já tarde. Marcelo era um homem derrotado, sem alternativa,
que esperava o seu fim. Portugal e o Futuro estava já a ser distribuído
pelas livrarias e rapidamente se transforma num sucesso editorial
inédito no nosso país.
Num momento em que é evidente o cansaço e o desgaste provocado
por mais de uma década de guerra, o livro de Spínola propõe uma
solução para a «crise que enfrentamos»: o «rápido restabelecimento
da paz» porque «a vitória exclusivamente militar é inviável. Às Forças
Armadas compete, pois, criar e conservar pelo período necessário […]
as condições de segurança que permitirão soluções político-sociais,
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únicas susceptíveis de pôr termo ao conflito». Pretender «ganhar uma
guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, de antemão, a derrota»15.
Defendendo a aplicação de uma solução federativa «materializada
na desconcentração e descentralização de poderes», na «descentralização administrativa e progressiva autonomia dos Estados e Províncias
Ultramarinas», reconhecendo o «direito dos povos à autodeterminação», Spínola demolia um dos mais fortes pilares do regime – o
Império – e abria o debate sobre um tema tabu – a guerra16. Mas se
Portugal e o Futuro é uma derradeira tentativa para encontrar uma
saída para a questão ultramarina mantendo o regime, a verdade é
que acaba por acelerar a sua morte, num processo que ultrapassa as
próprias intenções do seu autor.
Para além do seu óbvio impacto junto da opinião pública nacional e
internacional, o livro gerou uma onda de entusiasmo em grande parte
dos capitães. Apesar de nem todos concordarem com as teses federalistas de Spínola, muitos se revêem nas suas críticas à política colonial
do regime e na ideia de que a solução para a guerra era política e não
militar. Portugal e o Futuro transforma-se numa Bíblia, não por ter
constituído o suporte ideológico do Movimento, mas porque permitiu
que muitos ultrapassassem a questão da apoliticidade das Forças Armadas e, sobretudo, o complexo de se oporem à continuação da guerra.
Depois de Spínola o afirmar, ninguém seria acusado de cobardia.
A questão que se colocava de imediato era a de saber se, nestas circunstâncias, faria sentido o Movimento elaborar um programa autónomo ou, pelo contrário, deveria aproveitar o sucesso do general e
«colar-se» ao seu programa político. Mesmo optando pela primeira via,
os mais radicais viam-se agora obrigados a moderar os seus ímpetos.
Consciente ou inconscientemente, Spínola acabava de comprometer o
protagonismo dos Capitães, deixando-os numa posição incómoda.
Saída em falso: 16 de Março 1974
O Movimento evoluíra consideravelmente em termos numéricos
e organizativos. Desde pelo menos inícios do ano que estas questões
tinham estado no centro do debate e das suas prioridades. Logo a
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12 de Janeiro, a Comissão Coordenadora decide sondar o posicionamento das principais unidades do país e avaliar a sua capacidade
bélica. Depois, a 3 de Fevereiro, determina-se o estudo da situação das
forças militarizadas, GNR, PSP e GF, que tudo indicava virem a assumir uma posição pró-governamental. Estes eram apenas os primeiros
passos tendo em vista uma correcta avaliação das forças em presença
e intensificar-se-ão a partir do momento em que se assume a opção
pelo golpe de Estado.
Paralelamente, e na sequência de iniciativas anteriores, desenvolvem-se esforços tendo em vista o alargamento aos três ramos das
Forças Armadas. O Movimento dos Capitães tinha nascido no seio
do Exército e, apesar de contar com a colaboração de elementos de
outros ramos, essa participação fazia-se a título individual. São conhecidos vários contactos com elementos da Força Aérea, nomeadamente
o encontro realizado a 8 de Janeiro, com uma «comissão provisória»,
integrando oficiais como Costa Neves e Vítor Sousa. O resultado destas diligências é visível na histórica reunião de 5 de Março, em Cascais, onde a Força Aérea envia 24 delegados em representação de 100.
Refira-se, no entanto, que nesse mesmo encontro, o envolvimento da
Marinha continua escasso, limitando-se a participar na qualidade de
observadora. Os oficiais mais progressistas deste ramo das FA continuavam a manifestar as suas reticências relativamente à notória falta
de politização do Movimento.
Independentemente destas e de outras motivações que tenham existido a verdade é que, em última análise, quer a Armada quer a Força
Aérea não participam directamente no golpe de Estado. Depois dos
páras terem recusado executar as missões que lhes estavam atribuídas
no Plano de Operações, os oficiais da Força Aérea que se envolvem,
como Costa Neves, fazem-no a título individual. Quanto à Armada,
a sua participação, não prevista nesse plano, acaba por se verificar
apenas ao final do dia 25, no assalto à sede da PIDE/DGS. Não é,
pois, de estranhar que muitos continuem a afirmar, ainda hoje, que
o Movimento dos Capitães é quase exclusivamente composto por
oficiais do Exército.
Em inícios de Março, o Movimento é reforçado com a adesão
dos ex-milicianos. Quando ocorre a já referida reunião de Cascais,
a unificação dos dois movimentos de capitães já se tinha operado.
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Essa reunião de 5 de Março reveste-se, aliás, de extrema importância. Num momento em que Marcelo Caetano se revelava cada vez
mais acorrentado aos ultras do regime e em que se tornava óbvia a
iminente demissão de Spínola e Costa Gomes, os Capitães decidem
acelerar o processo. Assumindo como irreversível a opção pelo golpe
de Estado, determinam um reforço da sua organização e fazem aprovar «um projecto político consubstanciando os grandes objectivos do
Movimento»17.
A 8 de Março quatro capitães – Vasco Lourenço, Carlos Clemente,
Antero Ribeiro da Silva e David Martelo – tomam conhecimento de
uma ordem superior tendo em vista a sua transferência de unidade.
Os dois primeiros são enviados para o Comando Territorial dos
Açores; Ribeiro e Silva para o Comando Territorial independente da
Madeira e Martelo para o Batalhão de Caçadores 3, em Bragança.
O regime reagia assim à descoberta de uma célula de ligação coordenada por Vasco Lourenço. Decidido a não acatar determinações,
o Movimento encena o «rapto» de dois dos capitães: na madrugada
do dia 9, Vasco Lourenço e Ribeiro da Silva recebem instruções para
abandonarem as suas casas. Decididas a evitar uma possível acção
do Movimento, as autoridades militares declaram o estado de prevenção rigorosa em todos os quartéis. A «aventura», que visava deixar patente a discordância com estas transferências abusivas, termina
com a prisão dos dois foragidos, assim como do capitão Pinto Soares,
elemento encarregue pelo Movimento de «entregar» os raptados ao
Quartel-General da Região Militar de Lisboa.
O afastamento compulsivo de Vasco Lourenço não faz esmorecer
os ânimos. Antes pelo contrário. Nesta matéria, os sectores spinolistas
revelam-se particularmente activos, envolvendo-se não só na preparação do plano militar como ainda exigindo a sua rápida aplicação.
As reuniões sucedem-se, dinamizadas por Casanova Ferreira e
Otelo Saraiva de Carvalho, tendo em vista a preparação do golpe militar. Aparentemente a conspiração corria mais depressa que os acontecimentos políticos. Mas só aparentemente. Quando é anunciada a
demissão de Spínola e Costa Gomes (14 de Março), na sequência da
sua não participação na cerimónia de vassalagem dos oficiais-generais
para com o regime (cerimónia da brigada do reumático), parte do
grupo conspirativo decide avançar para um golpe de Estado e o seu
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fracasso é completo. Quando, na madrugada de 16 de Março, os
capitães do Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha tomam
o comando do quartel e avançam sobre Lisboa estão sozinhos.
As restantes unidades envolvidas na conspiração hesitam e acabam
por se envolver. O capitão Virgílio Varela é obrigado a recuar e,
pouco depois, a render-se. Uma acção manifestamente descoordenada que resulta na prisão de cerca de duzentos militares.
Muito se tem especulado acerca do que verdadeiramente provocou
a saída em falso, a 16 de Março de 1974. Para uns, tratou-se de uma
tentativa dos spinolistas de se apropriarem da liderança do Movimento; outros, pelo contrário, apresentam o golpe das Caldas como
uma tentativa para afastar os spinolistas do processo.
Segundo o investigador Sánchez Cervelló, defensor da primeira
tese, «a preocupação fundamental do general Spínola e dos seus seguidores era o Ultramar, e por isso a realização do golpe de Estado, antes
que o Movimento tivesse elaborado um programa definitivo, que lhes
desse a superioridade moral para impor as suas soluções»18. Spínola,
por seu lado, interpreta o 16 de Março como uma tentativa de afastar
os seus homens da conspiração.
A tese de Sánchez Cervelló apresenta uma vulnerabilidade: é que
ignora o facto de, até às vésperas, Spínola não ter tido conhecimento
dos preparativos em curso. Esta informação, dada por Spínola, é confirmada por Costa Gomes que afirma que o general foi apanhado
de surpresa com a saída do Regimento das Caldas19. É óbvio que os
spinolistas poderiam ter actuado sem conhecimento do seu chefe. Mas
isso não deixa de enfraquecer a tese de Cervelló.
Denotam-se também algumas incongruências na interpretação dos
acontecimentos feita por Spínola. Apesar de nas suas memórias o
general transmitir a ideia que, depois do golpe das Caldas, se manteve
afastado da conspiração20, os factos demonstram o contrário. Se é
verdade que o 16 de Março teve uma importância fundamental para
os Capitães – representando uma intensificação da acção conspirativa,
agora sob redobrada vigilância, e uma aceleração dos preparativos
militares21 –, Spínola não só se mantém em estreito contacto com o
Movimento como tentará interferir nos seus planos, nomeadamente
no que diz respeito ao programa.
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Um Programa a elaborar
A génese do Programa do MFA é um dos aspectos mais interessantes do processo que conduziu ao 25 de Abril. Antes de mais, porque
revela uma preocupação de clarificação política – era fundamental
que o Movimento tivesse um programa político, deixando inequivocamente patente a ideia de que o golpe de Estado visava a instauração
de uma democracia e não a substituição de uma ditadura por outra.
O debate em torno do programa é também fundamental para entender
muitos dos problemas que, depois do golpe, se colocaram em termos
de partilha de poder e de projectos políticos. Além do mais, permite‑nos detectar com mais precisão o envolvimento e posicionamento
de um dos principais protagonistas da primeira fase do processo revolucionário – António de Spínola – no projecto dos Capitães.
A decisão de elaborar um programa data de inícios de Janeiro de
1974, altura em que a Comissão Coordenadora delega a missão no
major José Maria Moreira de Azevedo22. A 26 de Janeiro, numa reunião alargada da Comissão Coordenadora realizada em casa de Vasco
Lourenço, Moreira de Azevedo apresenta a sua proposta de intro­dução
ao documento programático que será aprovada na generalidade.
Fazendo uma retrospectiva sobre os problemas que levaram à criação do Movimento dos Capitães e integrando-os num contexto de
crise mais ampla que atingira toda a vida nacional, o documento é no
entanto omisso quanto aos objectivos a alcançar. Será essa uma das
críticas que lhe são feitas, nomeadamente por Melo Antunes, para
quem o documento se reveste de uma perigosa ambiguidade. Para
reformulá-lo é eleita uma nova comissão de redacção integrando,
além do próprio Melo Antunes, Costa Brás, Moreira de Azevedo e
Sousa e Castro.
Como referimos anteriormente, o processo fica aparentemente
comprometido com a publicação de Portugal e o Futuro. No entanto,
três dias depois, a 25 de Fevereiro, a Comissão Coordenadora define
a estratégia a seguir: o Movimento teria o seu próprio programa.
São então dados a conhecer os resultados da Comissão de Redacção. A ampliação do debate e a difusão do documento revelavam-se
nesse momento fundamentais, permitindo, entre outras coisas, sondar
a força e dimensão do Movimento, redefinir estratégias e, paralela-
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Fragmento do documento O Movimento, as Forças Armadas e a Nação.
(Arquivo Associação 25 de Abril.)
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mente, encontrar um consenso que servisse de base para a elaboração
do texto final do programa. É com este espírito que numa das mais
importantes assembleias da história do Movimento, a 5 de Março, o
documento programático é apresentado.
A nova versão do programa – Os Militares, as Forças Armadas e
a Nação –, revelava não só uma maior clareza como, sobretudo, um
acentuado pendor ideológico. Denunciando a «crise que a nação atravessa» e o facto de as Forças Armadas serem apresentadas como «bode
expiatório» pelos desastres a que a política colonial do regime conduziu, este documento expressa abertamente a ideia de que «a solução dos
problemas ultramarinos é política e não militar». Não é de estranhar
que gere uma discussão duríssima. O conteúdo marcadamente político
do manifesto assustava muitos dos presentes23.
Um dos grupos mais inquietos foi o dos spinolistas. Em seu entender, depois da publicação de Portugal e o Futuro o programa político perdera relevância. Além do mais, três meses passados sobre o
encontro de Óbidos, era pertinente recolocar a questão dos chefes
do Movimento. Procede-se então a nova votação que confirma Costa
Gomes, em primeiro lugar, e, depois, Spínola, como chefes do Movimento. As críticas da Força Aérea recaem sobretudo sobre a questão
ultramarina e acabam por levar à sua oposição à proposta. O facto
não deixa de surpreender os presentes tanto mais que dias antes, um
dos seus representantes, o capitão Seabra, participara na discussão e
elaboração do manifesto.
Apesar de algumas dissidências, a maioria dos presentes (112 em
194) acaba por subscrever o que é sem dúvida o primeiro projecto
político do Movimento. Decide-se ainda, nessa mesma reunião em que
se dá um voto de confiança à Comissão Coordenadora e à direcção
para desenvolver todas as actividades necessárias para a preparação
do golpe de Estado, delegar em Melo Antunes a responsabilidade de
presidir e coordenar a comissão de elaboração do programa.
Os trabalhos da comissão conhecem um grande impulso no rescaldo do golpe das Caldas. Na noite de 18 de Março, Vítor Alves e
Otelo Saraiva de Carvalho entregam a Melo Antunes um exemplar de
uma circular que tinham acabado de produzir acerca do impacto do
16 de Março, e pedem-lhe que ultime o programa político. Com base
nesta circular e no documento aprovado na reunião de Cascais, Melo
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Antunes trabalha intensamente. A 22 de Março, vésperas da sua partida para os Açores, apresenta a primeira versão do programa.
Vítor Alves assume agora a responsabilidade por um novo grupo
de trabalho a que é atribuída a missão de trabalhar o documento, promover a sua discussão interna e externa e chegar a uma versão final.
Além do próprio Vítor Alves, integravam o grupo Franco Charais,
Costa Brás e Vasco Gonçalves.
Em finais de Março os trabalhos da comissão estão concluídos.
Cabia agora apresentar o programa a Costa Gomes e Spínola que,
como futuros chefes, deveriam fazer as suas sugestões e propor alterações. Curiosamente, enquanto o primeiro recusa envolver-se, o
segundo empenha-se afincadamente na tarefa.
Spínola tem pela primeira vez oportunidade de ler a proposta dos
Capitães a 7 de Abril. A sua reacção inicial não é a melhor:
«Li imediatamente o citado programa e, apesar da superficialidade com
que o fiz, logo detectei a sua inspiração comunista, pondo, por isso,
reservas à minha eventual colaboração, que acabei por dar na convicção
de que, com o apoio do general Costa Gomes, conseguiria evitar que o
Movimento fosse dominado pelos comunistas»24.
É pois com desagrado que lê e anota o programa.
O vaivém do documento intensifica-se. Por exemplo na segunda
versão, entregue a Spínola a 13 de Abril, são já integradas várias
das sugestões do general à excepção da relativa à constituição de um
governo militar. Considerando que o mesmo mantinha, sob o seu
ponto de vista, um «cunho extremista», Spínola recorda ter então
decidido «ordenar as ideias ali expostas num novo texto – a proclamação que li ao país na madrugada de 26 de Abril de 1974 – ao mesmo
tempo que redigi a mensagem de transferência de responsabilidades
para a Junta de Salvação Nacional, que deveria ser lida pelo Chefe
Militar do Movimento»25. Refira-se, a propósito, que é nessa ocasião
que Spínola é informado que, em caso de vitória, a intenção do Movimento era a de entregar a presidência a Costa Gomes, reservando-lhe
a chefia do EMGFA. É neste contexto que decide contactar Costa
Gomes e sondar a sua posição sobre as negociações em curso. Para
sua grande surpresa, Costa Gomes aconselha-o a não se comprometer
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com o MFA. Esta atitude, que o próprio confirma, acabará por ser
mais um factor que favorece a ascensão de Spínola.
Sem entrar em mais detalhes quanto às sucessivas correcções ao
programa, reveladoras não só da insatisfação como também da vontade interventora do antigo governador da Guiné, limitamo-nos a
salientar que as suas múltiplas e controversas propostas obrigaram os
homens do Movimento a um trabalho intenso e desgastante.
A 20 de Abril, finalmente, após a introdução de mais umas alterações sugeridas por Spínola, a Comissão Política tem pronta a última
versão do programa. Esta não será a última vez que o Programa do
MFA é modificado. Mas se tivermos em conta que nesse mesmo dia
estão completos outros dois textos políticos – a Proclamação do Movimento ao País e o Protocolo Secreto a assinar pela Junta de Salvação
Nacional e pelo MFA – podemos afirmar que, em termos programáticos, tudo está a postos.
Finalmente, não podemos deixar de observar que a redacção final
do programa não obedeceu a quaisquer compromissos prévios com as
forças partidárias civis, facto que acabará, como sabemos, por conferir
um carácter original ao golpe de Estado do 25 de Abril de 1974. Revelações recentes, de alguns dos protagonistas do processo, fazem alusões
à existência de contactos entre oficiais do Movimento e os partidos
políticos que actuavam na clandestinidade. Carlos Brito, por exemplo,
esclarece que o PCP «Através dos seus membros nas FA […] procura ter
um diálogo interno com o Movimento, fazer lá chegar as suas ideias, as
suas opiniões»26. Melo Antunes, por seu lado, refere os seus encontros
com Sottomayor Cardia e a colaboração que, nesses momentos, teve
com o PS27. No entanto, apesar desta proximidade (sempre limitada
e pontual), no final, as forças que derrubaram o regime são exclusivamente militares. Um golpe militar feito por militares.
2. Por que é que António de Spínola é o primeiro presidente da
República da transição?
A Operação Fim-Regime desencadeada pelo Movimento dos Capitães na madrugada de 25 de Abril tem como epicentro a cidade de Lisboa. Em pouco menos de 24 horas, a Ditadura é derrubada e o poder é
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transferido para a Junta de Salvação Nacional (JSN) que, mandatada
pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) passaria a presidir aos
destinos do país.
A constituição de uma Junta Militar estava prevista no Programa
do MFA, sendo-lhe atribuída a missão de garantir o exercício do
poder político até à formação de um governo civil provisório. O processo da sua constituição requeria, por isso, particular atenção tanto
mais que estavam em causa a representatividade dos diferentes ramos
das Forças Armadas como também a confiança que os seus membros
deveriam merecer ao MFA.
O primeiro problema é rapidamente ultrapassado: ao Exército,
único ramo verdadeiramente envolvido nos preparativos do golpe
de Estado, são atribuídos três lugares, enquanto a Armada e a Força
Aérea dispõem de dois cada um. Circunstâncias várias, a que não são
por certo alheias as complexas negociações do programa, fazem com
que as outras questões centrais (como a da fidelidade ao programa e da
confiança depositada pelos Capitães) acabem por ser «esquecidas».
O processo de constituição da Junta foi relativamente rápido e
próximo da data do golpe de Estado. Rosa Coutinho, por exemplo,
recorda ter sido «convidado pelos sectores da Marinha, nomeadamente pelo Vítor Crespo», apenas dois dias antes do golpe, altura em
que lhe é revelado o Programa do MFA e o protocolo adicional28. Este
não foi, no entanto, o método utilizado em todos os casos levando a
que, em algumas situações, os membros da Junta não tenham conhecimento prévio do texto programático.
Costa Gomes e António de Spínola eram nomes incontestáveis,
eleitos pelo Movimento em Óbidos e confirmados, em Cascais, a
5 de Março de 1974. O terceiro elemento do Exército na JSN, Jaime Silvério Marques (1915-1986), destacara-se como Governador de Macau
e comandante da Zona Militar de Nova Lisboa, em Angola. É escolhido
por Vasco Gonçalves, com o acordo de Costa Gomes, de uma lista apresentada por António de Spínola. Curiosamente, no dia 25 de Abril, é
preso no BC5 acusado de ligações a Kaúlza de Arriaga e quando, mais
tarde, é chamado à Pontinha não tem ainda conhecimento da sua nomeação para a Junta. Estamos, pois, perante um elemento que não é da
completa confiança do MFA e que não dava quaisquer garantias de fidelidade e cumprimento dos seus princípios consignados no programa.
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Na Força Aérea e na Armada o critério é idêntico: a escolha dos
seus representantes na JSN é da responsabilidade dos delegados destes
ramos das Forças Armadas à reuniões do Movimento. No primeiro
caso, o processo parece ter sido relativamente simples. Um dos eleitos é Galvão de Melo (1921-…), ex-comandante da Base Aérea 9 em
Luanda (Angola) e então na situação de reserva; o outro, Diogo Neto,
encontrava-se em comissão de serviço em Moçambique, onde comandava a Região Aérea e apenas posteriormente terá conhecimento da
sua nomeação e consequentemente do Programa do MFA.
Quanto à Armada a escolha de Pinheiro de Azevedo (comandante
do Corpo de Fuzileiros) e Rosa Coutinho (comandante da fragata
Almirante Pereira da Silva) é essencialmente da responsabilidade de
Vítor Crespo e Almada Contreiras. O processo parece não ter sido
simples. O próprio Rosa Coutinho confessa ter sido convidado depois
de outros dois oficiais recusarem integrar a JSN: «Eu fui convidado
nas vésperas, pelo Vítor Crespo, que já tinha convidado o Pinheiro
de Azevedo […] e dois outros oficiais. Eles iam procurar gente o
mais próximo possível de oficiais-generais. Dois não aceitaram. Eu
fui o quarto. Eu era apenas capitão-de-fragata. Fui convidado por
um comodoro – Ferraz de Carvalho – e um capitão-de-mar-e-guerra
– Dias Martins – que, por razões várias, não aceitaram fazer parte
do plano»29. Refira-se que, no caso dos representantes da Marinha,
ambos tiveram conhecimento e manifestaram a sua concordância com
o programa do MFA.
Apesar de questionar os critérios que estavam a presidir à constituição da Junta, Rosa Coutinho atribui-os aos receios de que «um órgão
de cúpula constituído só por capitães não tivesse depois a aceitação
da hierarquia militar»30. Vasco Lourenço partilha desta posição, afirmando que sempre se manifestou contra a constituição de uma Junta
integrando apenas oficiais-generais. Encontrando-se, nessa altura, nos
Açores, não pôde intervir nessa decisão. O peso que a hierarquia tinha
no meio militar acabou por vencer num processo que, como veremos,
a breve prazo, terá graves consequências na evolução política nacional. A JSN escolhida estava longe de merecer a completa confiança
do MFA.
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Momentos-chave do dia 25 de Abril de 1974
Ultrapassada esta questão, outra ganhava acuidade: a da presidência. Inquietos com qualquer tentativa de assenhoramento do golpe por
parte de um oficial «direitista» que não partilhasse dos seus objectivos,
os Capitães tinham-se não só munido de um programa como também
designado, antecipadamente, os futuros responsáveis político-militares. No próprio dia do golpe de Estado os seus planos conhecerão um
sério revés, de consequências imprevisíveis para o sentido da intervenção militar.
António de Spínola toma conhecimento do dia e hora da acção dos
Capitães na noite de 24 de Abril. As primeiras movimentações militares são acompanhadas com grande expectativa, através da rádio,
em casa do general onde, ao longo da madrugada, afluem vários dos
seus homens de confiança (Carlos de Morais, António Ramos, Xavier
de Brito, Dias de Lima, Carlos Vieira da Rocha). Francisco da Costa
Gomes, por seu lado, aparenta um completo alheamento das movimentações em curso, recolhendo ao Hospital Militar onde sua mulher
se encontrava internada.
Com maior ou menor dificuldade, os sublevados tomam diversas
unidades militares e preparam-se para desempenhar as missões que lhe
tinham sido distribuídas por Otelo Saraiva de Carvalho. Forças militares do Porto, Tomar, Vendas Novas, Figueira da Foz, Viseu, Lamego,
Mafra e Estremoz entram em acção. Mas o centro das operações será,
no entanto, Lisboa. No Posto de Comando (PC), instalado no Regimento de Engenharia da Pontinha, Otelo, Garcia dos Santos, Sanches
Osório, Fisher Lopes Pires, Vítor Crespo, Hugo dos Santos aguardam
a chegada das primeiras notícias sobre a progressão do golpe.
Os planos dos Capitães corriam como previsto. A boa coordenação das forças em acção fica patente às 3 horas (hora H). Com uma
diferença de apenas alguns minutos vários pontos vitais da capital
são conquistados. A EPAM cumpre pontualmente a sua missão: ocupar a RTP. Tratava-se de um objectivo difícil, recusado pelos páras,
e que asseguraria, para todo o país, as emissões de TV ao serviço
do MFA. Depois, um a um, os principais objectivos são alcançados:
Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Aeroporto da Portela,
Quartel‑General da Região Militar de Lisboa, Banco de Portugal,
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Manuscrito de Otelo Saraiva de Carvalho do Plano Geral das Operações do 25
de Abril de 1974 (excerto). (Arquivo Associação 25 de Abril.)
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Código de Transmissões do Plano Geral das Operações do 25 de Abril de 1974
(excerto). (Arquivo Associação 25 de Abril.)
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Rádio Marconi, Terreiro do Paço… Depois de uma alucinante viagem desde Santarém, à frente de uma coluna de blindados da Escola
Prática de Cavalaria, Salgueiro Maia «conquistara» simbolicamente
esta praça, onde instala uma chaimite e uma auto-metralhadora EBR
e resiste a algumas investidas governamentais. Quando, ao final da
manhã, recebe instruções para se dirigir ao Largo do Carmo, Maia é
seguido por um impressionante número de pessoas que tinham afluído
ao local. O ambiente é de euforia e os populares não hesitam em subir
para os carros de combate manifestando o seu apoio aos homens do
Movimento. Maia é já um ídolo popular.
Ao princípio da tarde, as atenções voltavam-se para o Quartel da
GNR, no Carmo, onde se encontrava refugiado o presidente do Conselho. Tentando a todo o custo conter a multidão que progressivamente vai enchendo o largo, Salgueiro Maia e os homens da EPC de
Santarém lançam sucessivos ultimatos aos sitiados.
A situação era, nesse momento, claramente favorável aos sublevados. Segundo o comunicado do MFA das 14h30, estavam já dominados vários pontos estratégicos: Comando da Legião Portuguesa,
Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Radiotelevisão Portuguesa, Rádio Marconi, Banco de Portugal, Quartel-General da Região
Militar de Lisboa, Quartel-General da Região Militar do Porto, Instalações do Quartel-Mestre-General, Ministério do Exército, Aeroporto da Portela, Aeródromo Base n.º 1, Manutenção Militar, posto
de televisão de Tróia, penitenciária do forte de Peniche. Apenas duas
unidades resistiam: Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, que acabará
por se render pouco depois das 16h; no Carmo, onde, apesar das
hipóteses de resistência da GNR serem já nulas, a situação continuava
por resolver.
Marcelo Caetano toma então a iniciativa: «Via que era a populaça
que estava no largo do Carmo, tinha informação da politização do
MFA, procurei não lhes cair nas mãos (tencionava que não me apanhassem vivo, aliás) e tentar prestigiar alguém que salvasse o país do
caos». Face à tensão que crescia na rua, pede a António de Spínola que
compareça com urgência no Carmo. Prudente, o general recorda-lhe
que, não estando directamente envolvido no golpe em curso, precisa
da autorização do Movimento antes de tomar qualquer iniciativa. Este
telefonema revelar-se-á um importante trunfo, a sua primeira fonte de
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Dispositivo militar no Terreiro do Paço e no Largo do Carmo (25 de Abril de
1974). (Arquivo Associação 25 de Abril.)
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legitimação. A segunda será a anuência que, depois de um contacto
telefónico com Otelo Saraiva de Carvalho, obtém dos Capitães para
receber a rendição do presidente do Conselho.
É só ao final da tarde, depois de obter o consentimento do posto
de comando da Pontinha, que Spínola se dirige ao Largo do Carmo
onde, com grande emotividade, é aclamado por uma multidão em
delírio, entoando «A Portuguesa». As conversações no interior do
quartel são breves. Obtida a rendição, prepara-se a evacuação para a
Pontinha. Lá fora Salgueiro Maia tenta a custo acalmar a população.
A saída dos sitiados do Carmo é cuidadosamente preparada e, por
prudência, Marcelo Caetano, Moreira Baptista, Rui Patrício e Coutinho Lanhoso são conduzidos até à Pontinha numa chaimite. Spínola
acompanha o cortejo até ao quartel-general da Pontinha onde chega
cerca da 20h.
Legitimado pelo próprio Marcelo Caetano, pelo Movimento que
lhe conferira autoridade para receber a sua rendição e pela multidão
que o ovacionara, António de Spínola joga habilmente nesses momentos. Efusivamente recebido pelo chefe das operações, Otelo Saraiva de
Carvalho, assume com imprevisível naturalidade o comando; recebe
os cumprimentos do comandante do regimento e de vários dos presentes; faz o ponto da situação; telefona a Silva Pais e obtém a rendição
da PIDE; depois, contacta Costa Gomes e chama-o para o posto de
comando. Começa a convocação dos membros da Junta de Salvação
Nacional.
Escoltado por Almeida Bruno e Jaime Neves, Costa Gomes abandona o Hospital Militar de Estrela e dirige-se à Pontinha. Depois chegam Jaime Silvério Marques, Galvão de Melo, Pinheiro de Azevedo e
Rosa Coutinho. Do núcleo previsto para integrar a JSN apenas falta,
como referimos, Diogo Neto. Podia agora começar o primeiro encontro da Junta com o gabinete político do MFA (Franco Charais, Vítor
Alves, Vítor Crespo), reforçado com a presença de Costa Martins.
Esse iria ser dos momentos mais tensos da noite.
Assumindo mais uma vez a liderança, António de Spínola abre a
sessão propondo a revisão do Programa do MFA. A surpresa é geral,
tanto mais que o general o conhecia desde início de Abril. As suas
observações e propostas, algumas das quais profundamente controversas, tinham resultado em sucessivas emendas e modificações no
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programa original. Agora, depois do sucesso do golpe de Estado, exigia novas alterações. Em causa duas questões centrais que tinham
resistido às suas emendas: as alíneas relativas ao «direito dos povos à
autodeterminação» e à «nova política económica e a estratégia antimonopolista». As opiniões dividem-se. Silvério Marques alinha com
Spínola. Costa Gomes levanta objecções quanto à imediata extinção
da PIDE/DGS no Ultramar. A discussão estava lançada.
Para entender a amplitude do debate então travado, é preciso recordar que quando, na noite de 25 de Abril, a JSN se reúne na Pontinha,
apenas quatro dos seus sete membros tinham conhecimento do programa: Spínola, Costa Gomes e os dois representantes da Marinha.
A ingenuidade política dos Capitães começava a revelar-se.
As objecções de Costa Gomes à extinção da PIDE/DGS nas colónias colhem o apoio da maioria dos presentes, uma vez que esta
polícia política é tida como fundamental para o esforço de guerra.
O mesmo não se pode dizer quanto às exigências de Spínola. No
meio da polémica, os Capitães recordam os compromissos assumidos e ameaçam fazer regressar os blindados à rua. Por outras palavras, ou Spínola aceitava o programa ou era afastado. A necessidade
de apresentar a Junta ao país obrigava à suspensão da reunião e ao
adiamento do debate.
Ainda antes de partirem para os estúdios da RTP, no Lumiar, os
membros da Junta lêem e aprovam a proclamação que lhes é proposta. Era também necessário esclarecer quem tomaria a palavra, ou
seja, e em última análise, decidir quem seria o presidente da JSN. E é
aqui que a História muda de rumo, num dos episódios menos claros
deste longo dia 25 de Abril de 1974. Na versão de Costa Gomes, foi
ele próprio quem sugeriu o nome de Spínola: «estava convencido de
que o general Spínola, pelas suas relações com os políticos e com os
conhecimentos que tinha na imprensa – desde o Raul Rego e o República até ao Diário de Lisboa e ao Expresso – era a pessoa indicada
para ocupar o cargo»31. A questão está longe de ser pacífica.
Terão sido estas as suas verdadeiras intenções ao recusar a Presidência? Não descartando completamente a hipótese, há muito defendidas
pelos spinolistas, de que a intenção era «queimar» o ex-Governador
da Guiné, Vítor Alves interpreta de forma diferente o ocorrido: «Eu
acho que isto foi brilhante porque o Costa Gomes não quis deixar as
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FA nas mãos do Spínola. Sabia que se o fizesse ele tomava conta do
país. Reserva para si o lugar de CEM sabendo que o Spínola, que era
um obtuso politicamente, […] entrariam a curto prazo em colisão com
o MFA»32.
A recusa de Costa Gomes foi, sem dúvida, decisiva mas não foi
o único factor a condicionar o curso dos acontecimentos. Com uma
carreira militar brilhante, dispondo de uma folha de serviços exemplar
sobretudo devido ao seu desempenho como Governador e Comandante das Forças Armadas na Guiné, Spínola não escondia as suas
ambições. Líder militar incontestável, a publicação de Portugal e o
Futuro acabara por projectá-lo também em termos políticos. O golpe
de Estado era a oportunidade desejada para completar este percurso
e, por isso, Spínola mantivera um estreito contacto com o Movimento
durante todo o processo conspirativo. No dia 25 de Abril, como
vimos, os acontecimentos jogam em seu favor dando-lhe o acréscimo
de legitimidade que lhe faltava. A recusa de Costa Gomes em assumir
o cargo projecta-o de imediato e, assevera Otelo Saraiva de Carvalho,
nenhum dos membros da Junta «põe em dúvida a natural designação
de António de Spínola para o lugar. Ele é considerado, incontestavelmente, o homem forte do grupo e o de maior ambição e tarimba
política»33.
Cerca da 1h30, é anunciado pela TV que se vai proceder à apresentação de uma Junta de Salvação Nacional (JSN). António de Spínola
toma a palavra e anuncia que a Junta fora «constituída pelo imperativo
de assegurar a ordem e de dirigir o país para a definição e consecução
de verdadeiros objectivos nacionais», garantindo a «sobrevivência da
Nação soberana no seu todo pluricontinental»34.
Concluída a apresentação, a discussão do programa é retomada.
Ao fim da larga troca de impressões, onde novamente ficam patentes
as divergências entre o grosso da JSN e o gabinete político do MFA,
chega-se a um compromisso quanto a alguns aspectos fundamentais:
não extinção da PIDE/DGS nos territórios ultramarinos em guerra;
manutenção dos secretários-gerais investidos nas funções de encarregados do Governo, até à nomeação dos novos governadores; não
extensão da amnistia política aos presos de delito comum; e abolição
do item que consagrava o reconhecimento do direito dos povos à
autodeterminação. Mais uma vitória de Spínola nessa noite a que não
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foi, por certo, alheio o apoio tácito recebido de Costa Gomes que,
mais preocupado com o problema da guerra nas colónias, acaba por
«alinhar» na estratégia de Spínola.
Finalmente, a polémica em torno da divulgação do programa.
Segundo alguns dos presentes, «Spínola queria manter o programa como
um acordo de cavalheiros mas não divulgá-lo», pretensão em que era
apoiado pela maioria da JSN35. Os representantes do MFA opõem‑se
aberta e frontalmente à ideia. O debate é inconclusivo, o que nos leva a
concluir que a sua apresentação à imprensa, na manhã de 26 de Abril,
constitui uma manobra dos Capitães. Segundo Martins Guerreiro, ele
próprio se encarregou de entregar uma versão integral do programa a
Álvaro Guerra para ser publicado no República, movido pela preocupação de impedir que o Movimento fosse manipulado pela direita militar.
Uma estratégia bem sucedida mas que não consegue impedir o fim das
polémicas. O programa era o compromisso possível, polémico, cheio
de ambiguidades e nascido contra a vontade de muitos. Um programa
para ser esquecido ou, pelo menos, rapidamente revisto.
3. Quem manda? A nova estrutura constitucional provisória
O golpe militar de 25 de Abril de 1974 teve como implicação imediata o desmantelamento dos órgãos e instituições do regime então
deposto e a implantação de medidas tendo em vista a instauração da
nova ordem. Na base da nova estrutura estão as determinações do
Programa do MFA, cuja importância ultrapassa em muito o amplo
processo negocial de que resultou. Em última análise, representa não
só um contrato político com a JSN mas também com o próprio povo
português, clarificado logo no preâmbulo do documento por intermédio da definição do objectivo do MFA: a instauração, a curto prazo,
de uma Democracia Política.
Além do mais, e apesar de se tratar de um programa mínimo, são
fornecidas coordenadas quanto à forma como o processo de implementação dessa democracia se deveria desenrolar e quais as novas
estruturas a criar para esse mesmo fim. As «medidas imediatas»
propostas na primeira parte do documento (A) apontam nesse sentido, prevendo o desmantelamento dos organismos e instituições do
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regime deposto (DGS, Legião Portuguesa, organizações políticas de
juventude, Governo, Assembleia Nacional, Câmara Corporativa e
ANP), a amnistia dos presos políticos («salvo os culpados de delitos
comuns») e, sobretudo, prevendo a «convocação, no prazo de doze
meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio
universal, directo e secreto». Ainda no que diz respeito à polícia política, na versão definitiva do programa, e, como vimos, por pressão de
Costa Gomes, determina-se que «no Ultramar a DGS será reestruturada e saneada, organizando-se como Polícia de Informação Militar
enquanto as operações militares o exigirem» [A, 2, c)].
O programa do MFA, que previa o restabelecimento das liberdades
fundamentais, definia também os novos centros de poder. Assim, a
JSN estava encarregue «até à formação, a curto prazo, de um Governo
Civil Provisório» do exercício do poder político, estabelecendo-se
ainda que «a Presidência da República será confiada ao militar que
no Directório desempenhava as funções de Presidente». Determinava‑se ainda a constituição, «no prazo máximo de três semanas após a
conquista do poder», de um Governo Provisório civil que estaria em
funções «até à realização de eleições gerais para o futuro Parlamento,
por sufrágio universal e directo, em data e condições a estabelecer pela
futura Assembleia Nacional Constituinte» (D, 1.1).
Quanto às linhas de actuação do futuro Governo Provisório, estabelece-se que «promoverá um conjunto de medidas e disposições tendentes a assegurar, a curto prazo, a independência e a dignificação do Poder
Judicial» (D, 4.1); «lançará os fundamentos duma nova política económica, posta ao serviço do Povo português, em particular das camadas da
população até agora mais desfavorecidas» (5.1) e de uma «nova política
social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivos
a defesa dos interesses da classe trabalhadora e o aumento, progressivo,
mas acelerado, da qualidade de vida dos Portugueses» (6.1). Quanto à
política externa, a novidade reside na proposta de estabelecimento de
relações diplomáticas com os países socialistas.
No último ponto, é abordada a polémica questão da descolonização com o «reconhecimento de que a solução das guerras em África é
política e não militar», determinando-se, entre outras coisas, a criação
de condições para um debate do problema ultramarino e o «lançamento de uma política ultramarina que conduza à paz».
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Em suma, e apesar de todas as alterações a que foi sujeito, observa
o constitucionalista Jorge Miranda, o Programa do MFA não foi
um mero texto político mas antes «um texto carregado de sentido
jurídico, pois, com o êxito da acção revolucionária, transformou-se
de acto interno do Movimento em acto constitucional do Estado»36.
E, enquanto «momento constituinte», a sua importância é amplíssima.
Neste sentido, entre as suas disposições destacaríamos as que determinam a realização de eleições – por «sufrágio universal, directo e livre»
– para a Assembleia Constituinte, no prazo máximo de doze meses, e
a existência de um período de transição a vigorar até à aprovação da
nova Constituição. Estes preceitos, que determinavam o período de
presença dos militares na vida política nacional, terão amplas implicações no próprio desenvolvimento do processo revolucionário.
O programa, suficientemente abrangente para que todos concordassem, mas por isso mesmo muito ambíguo, apresenta um projecto
político mínimo, limitando-se a estabelecer as linhas mestras do processo. Muitas questões são deixadas em aberto, não só no que diz
respeito ao processo de descolonização como também aos de «democratização» e «desenvolvimento». Veja-se, por exemplo, a indeterminação dos itens relativos à composição e poderes do novo executivo
ou, então, quanto aos fundamentos da «nova política económica e
social» a implementar. Esta ambiguidade terá pesadas consequências,
tanto mais que era impossível, naquele momento, prever a intensidade
da explosão social, o processo de profunda mutação na cadeia hierárquica de comando tradicional nas Forças Armadas e, sobretudo, as
lutas pelo poder que irão ocorrer. O Programa do MFA é, em última
análise, pioneiro da ambiguidade que caracterizará muitos aspectos
do processo revolucionário português.
MFA: o grande ausente da nova ordem
A actividade legislativa da JSN é particularmente intensa nos primeiros momentos do pós-25 de Abril. Dando expressão legal a algumas das disposições do Programa do MFA, começa por publicar a
Lei 1/74, de 25 de Abril, pela qual se determina a destituição do
presidente da República e do Governo, a dissolução da Assembleia
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Nacional e do Conselho de Estado e a transferência dos seus poderes
para a JSN. Dias depois, a 14 de Maio, pela Lei 2/74, são extintas a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa. No mesmo dia,
é publicada a Lei 3/74 que, pela definição que estabelece da nova
estrutura constitucional provisória, é uma das mais importantes do
período e um dos textos fundadores da nova ordem.
Nas suas disposições introdutórias, a Lei 3/74 estabelece que a
Constituição de 1933 se mantém em vigor naquilo em que não contrariasse os princípios consignados no Programa do MFA ou nas leis
constitucionais publicadas ou a publicar. Segundo Medeiros Ferreira,
esta posição da JSN «pode ser melhor compreendida se partirmos
do postulado» de que «o objectivo do MFA era o de criar um novo
poder político sempre assente na legalidade, e desde logo solidamente
instalado numa tentativa de manter sob controlo a evolução da sociedade portuguesa no período pré-constitucional»37.
Mais importante é o facto desta mesma lei, que ao publicar em
anexo o Programa do MFA lhe confere nova legitimidade, institucionalizar o poder revolucionário ao determinar a existência, neste
período de transição pré-constitucional, de seis órgãos de soberania – Assembleia Constituinte, presidente da República, JSN,
Conselho de Estado, Governo Provisório e tribunais –, alguns dos
quais com amplos poderes constituintes (Conselho de Estado) e
legislativos (Governo Provisório e, em algumas matérias, Conselho
de Estado).
No que diz respeito à Assembleia Constituinte, a Lei 3/74 consagra algumas das mais importantes disposições do Programa do MFA.
Determina, entre outras coisas, que será eleita por sufrágio universal, directo e secreto, de acordo com a lei eleitoral a elaborar pelo
Governo Provisório e a aprovar pelo Conselho de Estado (até 15 de
Novembro de 1974) e terá como missão aprovar a nova Constituição no prazo de 90 dias, contado a partir da data da verificação dos
poderes dos seus membros, podendo esse prazo ser prorrogado por
mais 90 dias. Quanto à eleição da Assembleia, estabelece-se que esta
se realizará em data a fixar pelo presidente da República, mas tendo
como prazo máximo o dia 31 de Março de 1975.
Nesta nova ordem constitucional provisória, a tutela militar é institucionalizada de uma dupla forma. Em primeiro lugar, pela con-
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sagração como órgão de soberania da JSN a quem compete, entre
outras coisas, vigiar pelo cumprimento do Programa do MFA e das
leis constitucionais. Depois, pela determinação de que o presidente
da República, a ser escolhido pela JSN de entre os seus membros,
seja um militar. Tendo em conta que as competências do presidente
da República coincidem, em linhas gerais, com as da Constituição de
1933, concluímos que aos militares era reservado um poder moderador e fiscalizador, o designado quarto poder.
O presidente da República exerce a chefia suprema das Forças
Armadas e tem o poder da suspensão total ou parcial das garantias
constitucionais (art. 7.o).
A tutela militar não invalida a criação de um «órgão executivo»
maioritariamente civil – o Governo – e um órgão legislativo com
amplos poderes: o Conselho de Estado. Politicamente responsável
perante o presidente da República, o Governo Provisório tem a sua
competência limitada pela sua natureza transitória e, sobretudo,
pelas linhas de orientação do Programa do MFA. A este respeito a
lei determina que «os ministros do Governo Provisório definirão em
Conselho as linhas de orientação governamental, em execução do
Programa do Movimento das Forças Armadas», especificando depois
competir-lhe: 1) conduzir a política geral da Nação; 2) referendar os
actos do presidente da República; 3) fazer decretos-lei e aprovar os
tratados e acordos internacionais; 4) elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução de leis; 5) superintender no
conjunto da administração pública e 6) elaborar a Lei Eleitoral. Em
suma, dispõe não apenas dos tradicionais poderes executivos como
ainda de amplos poderes legislativos.
As relações do Governo com as Forças Armadas são também
definidas, estabelecendo-se que o vínculo de ligação entre ambos
seria o ministro da Defesa. Fica, no entanto, consagrada a completa
independência das estruturas das Forças Armadas em relação ao
poder civil.
Finalmente, uma referência especial ao Conselho de Estado, com
competências inéditas no direito constitucional português. De composição tripartida – integram-no os sete membros da JSN, sete representantes do MFA e sete «cidadãos de reconhecido mérito, a designar pelo presidente da República» (art.º 12, 1) – dispõem de vastas
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atribuições constituintes e fiscalizadoras. Entre os seus múltiplos
poderes contam-se o de vigiar o cumprimento das normas constitucionais e das leis ordinárias; apreciar os actos do Governo e da
Administração; sancionar diplomas governamentais em áreas como
a da política económica, social e financeira, do exercício da liberdade de expressão ou da defesa do Estado; pronunciar-se em todas
as emergências graves para a vida da Nação e sobre outros assuntos
de interesse nacional sempre que o presidente da República o julgue
conveniente; etc. (art.° 13).
Estabelecia-se ainda que «os diplomas que devem ser sancionados
pelo Conselho de Estado não poderão ser promulgados pelo presidente
da República sem que a sanção tenha sido concedida» (art.° 13, 2). Em
suma, mais que um órgão consultivo do presidente da República, o
Conselho assume competências de um verdadeiro órgão de soberania
com amplas capacidades constituintes, um misto de Tribunal Constitucional e Assembleia Legislativa.
Independentemente das intenções dos autores desta lei e, sobretudo, sobre as suas implicações práticas, não podemos deixar de
observar que, apesar de integrar o Conselho de Estado e de lhe
ser reconhecida a «autoridade» de ter mandatado os membros
da JSN (art.º 9, 1), enquanto organismo autónomo, com poderes
próprios, o MFA é o grande ausente da nova ordem constitucional revolucionária. Mesmo o poder de designação de novos
membros da Junta lhe é retirado e transferido para o Conselho de
Estado (art.º 9, 3).
Numa primeira análise, a definição constitucional que acabámos
de analisar não se afasta dos próprios desígnios do MFA que, derrubada a Ditadura, e de acordo com o consignado no seu programa,
no próprio dia 25 de Abril entrega o poder à JSN. Mas não tinham,
como vimos, os seus planos sido alterados logo nessa noite quando
Spínola assume a presidência da Junta e exige novas alterações ao
Programa?
A ameaça, perante essas pressões, de continuar as acções militares
não teria revelado as distâncias já existentes entre as intenções dos
Capitães e a vontade de alguns membros da Junta? Mais do que um
problema de definição de centros de poder, estarão em causa as funções e poderes dos diferentes agentes político-militares.
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Na noite de 25 de Abril é a força das hierarquias que dita o curso
dos acontecimentos e origina a «subalternização» do MFA à vontade
de Spínola. A resistência dos Capitães impedira a completa anulação
do programa, mas não conseguira evitar que Spínola dominasse, pelo
menos aparentemente, a JSN. Por medir estavam os limites dessa
subordinação e, paralelamente, o peso das ambições de poder do
presidente da Junta.
O período que medeia entre o derrube da Ditadura e a tomada
de posse do novo Governo e do presidente da República é excepcional. Durante cerca de 20 dias (de 25 de Abril a 14 de Maio) a JSN é
senhora absoluta do poder, «órgão solitário de soberania» no dizer
de Medeiros Ferreira, tratando-se de um período de «extrema concentração de poderes» em que «contrariamente a outros períodos de
ditadura militar, desta vez e desde o início, se separam as leis constitucionais e as leis ordinárias»38.
A excepcionalidade da situação leva a que, a 27 de Abril, no mesmo
dia em que os presos políticos são libertados, a Junta determine que,
«enquanto não tomar posse o Governo Provisório Civil», seja criado
junto dos Ministérios o cargo de delegado da JSN (Decreto-Lei
n.º 174/74). A competência, legalmente atribuída aos titulares
dos departamentos militares, é exercida pelos respectivos chefes
do Estado-Maior. Os seus poderes clarificam-se pelo Decreto-Lei
n.º 192/74, de 7 de Maio, que estipula que os delegados da JSN junto
dos Ministérios civis possam praticar actos de competência dos respectivos ministros.
A autonomia destes delegados é, no entanto, relativa. Enquanto
presidente da JSN, António de Spínola segue de perto a sua acção e,
logo a 8 de Maio, convoca-os para uma reunião no Instituto de Altos
Estudos de Defesa Nacional (IAEDN). Dos cerca de 60 delegados
presentes, uns encontram-se adstritos aos diferentes departamentos
ministeriais e outros a comissões ad hoc de diversas instituições ou
empresas39. Entre eles encontramos Ricardo Durão (delegado da JSN
no Ministério do Trabalho), Vasco Vieira de Almeida (no Ministério
das Finanças) e Mariz Fernandes (na Secretaria de Estado de Informação e Turismo).
A par desta iniciativa, e da conhecida e polémica decisão de
permitir o exílio no Brasil dos ex-presidentes da República e do
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Conselho, a JSN desenvolve uma intensa actividade por forma
a garantir a gestão política neste período de excepção. Antes de
mais, produzindo uma série de diplomas avulsos para solucionar
problemas prementes. Veja-se, a este respeito, os diplomas publicados nos primeiros dias de Maio tendo em vista a resolução de
diversos problemas bancários e financeiros, numa clara assunção
de poderes legislativos que tradicionalmente seriam competência
do Governo.
Depois, emitindo comunicados e esclarecimentos vários, para
solucionar outro tipo de questões ou mesmo dar cobertura a situa­
ções de facto. A título de exemplo, podemos referir a autorização
para o regresso dos exilados políticos – «medida, cujo alcance e
significado traduz inequivocamente o desejo de realizar a harmonia e convivência pacífica de todos os portugueses»40 – concedida
pela JSN no dia da chegada a Lisboa do líder comunista Álvaro
Cunhal.
Finalmente, promovendo encontros vários, com grupos de interesse e representantes de classe. A este respeito refira-se a reunião,
convocada pelo presidente da JSN, com homens da indústria e da
banca «a fim de os esclarecer sobre a nova conjuntura político-económica e procurar restabelecer a confiança naturalmente abalada com a
exploração política das manifestações do 1.o de Maio»41.
Este objectivo não era, no entanto, fácil de alcançar. As ruas
enchiam-se, numa explosão social inédita, traduzida em protestos,
reivindicações, greves, ocupações, etc. E se no terreno social a situação se revelava quase incontrolável, o panorama nas Forças Armadas
não era mais animador. O perigo de recuperação da direita militar
levara, logo a 30 de Abril, a JSN a fazer publicar um decreto sobre o
saneamento das Forças Armadas (Decreto-Lei n.º 179/74, de 30 de
Abril). A 15 de Maio é divulgado um comunicado da JSN em que,
depois de apresentar uma lista de quarenta e dois oficiais saneados,
é decretado o fim do processo. Como este se encontrava longe de
concluído, tal medida acaba por contribuir para o agravamento da
tensão no seio de algumas unidades militares e das Forças Armadas
em geral.
O processo de desagregação da hierarquia tradicional das Forças
Armadas era já irreversível. Apesar de não se poder falar numa situa­
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ção de insubordinação generalizada, uma insólita vaga de indisciplina percorre várias unidades militares. O então ajudante-de-campo
de António de Spínola, António Ramos, faz alusão a uma «ruptura
na hierarquia», propiciada pelo próprio CEMGFA42. Costa Gomes,
por seu lado, prefere falar numa «onda de subversão e de indisciplina
que invadiu as Forças Armadas»43. Uma situação de grande complexidade, encerrando perigos múltiplos.
Por inerência do cargo que ocupava na JSN, a 15 de Maio Spínola
toma posse como presidente da República e clarifica os seus propósitos de proceder a uma transição gradual, sem sobressaltos, levada a
cabo num clima de ordem social e disciplina:
«Vividas as primeiras semanas de natural explosão emotiva, pontuada
todavia por alguns excessos lesivos do clima de tranquilidade cívica
cuja firme salvaguarda se impõe, o País vai entrar numa fase de reflectida ponderação, iluminada pelo reconhecimento de que a democracia
não significa anarquia, e de que a confusão dispersiva de actuações
descoordenadas não ajuda, de modo algum, a construção do futuro que
o Povo Português anseia»44.
No dia seguinte, na cerimónia de tomada de posse do I Governo
Provisório, esclarece outro aspecto do seu projecto, ao reiterar as
teses federalistas já exploradas em Portugal e o Futuro:
«Na plena consciência de que o problema não é militar, afirmamos
desde já o nosso reconhecimento do direito de todos os povos à autodeterminação. […] Nesta base, serão exploradas todas as possibilidades
que possam conduzir à paz no Ultramar, havendo entretanto de acelerar-se ao mais elevado ritmo a regionalização das estruturas políticas
dos territórios ultramarinos, com apelo à participação dos seus naturais
nas actividades de gestão pública»45.
Depois das polémicas que rodearam o Programa do MFA, Spínola
aventurava-se a fazer uma referência ao direito dos povos à autodeterminação, deixando, mais uma vez patente que o seu objectivo
quanto ao futuro das colónias era bem diferente do proposto pelos
Capitães. Além do mais, o projecto político do antigo Governador da
Guiné trazia implícita a ideia de um poder forte. Spínola interpretava
a intervenção dos Capitães como um mero golpe de estado; queria
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reorganizar a estrutura política concentrando o poder nas suas mãos
e levar a cabo uma «renovação» do regime. Ou seja, uma proposta
visando dar continuidade ao projecto que Caetano não conseguira
implementar.
A atribuição aos membros da JSN de cargos de responsabilidade
militar deve também ser entendida neste contexto: à excepção de Galvão de Melo e Rosa Coutinho, os membros da JSN ocupam de imediato a chefia dos diferentes ramos das Forças Armadas: CEMGFA
(Costa Gomes), CEMA (Pinheiro de Azevedo), CEME (Silvério Marques) e CEMFA (Diogo Neto). A subalternização do MFA e dos
seus projectos de uma rápida transformação económica e social, por
forma a conduzir o país para a democracia e descolonização, pareciam inevitáveis.
Atento às manobras do general, o MFA empenha-se em contrariar esta tendência. Consciente da tentativa de hegemonização do
processo por parte de Spínola e do risco de anulação do seu programa, nos últimos dias de Abril, o MFA decidira conferir poder
de intervenção e decisão à sua comissão política o que, na prática,
significa recriar e revitalizar a Comissão Coordenadora do Movimento.
Apesar de não consagrada constitucionalmente, a Coordenadora
irá progressivamente assumir-se como organismo de vigilância e controlo do cumprimento do Programa do MFA e, ainda, como um agente
político e centro de poder revolucionário. Se inicialmente a força e
hegemonia do presidente da JSN parecem óbvias, e os seus ataques
e tentativas de dissolução da Coordenadora quase têm sucesso, rapidamente a situação tende a inverter-se. Os meses de Maio a Setembro
de 1974, são pautados por um constante braço de ferro e uma luta
pela condução do processo revolucionário.
4. Spínola em vantagem
A escolha do primeiro-ministro constitui o primeiro choque institucional entre António de Spínola e o MFA, o primeiro round da dura
luta a que vamos assistir nestes meses iniciais.
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25 de abril – mitos de uma revolução
Ainda antes do golpe de Estado, os Capitães tinham comunicado
a Spínola a sua decisão nesta matéria: caso o golpe fosse bem sucedido, o primeiro-ministro deveria ser escolhido de entre três destacados anti-salazaristas – Pereira de Moura (ex-dirigente da CDE),
Miller Guerra (ex-Ala Liberal) ou Raul Rego (anti-fascista republicano). Derrubada a Ditadura, e depois de ter garantido o seu lugar
como presidente da República, Spínola decide rejeitar as propostas
da Coordenadora e avançar com um candidato próprio: Adelino da
Palma Carlos. Apesar de não dispor de um passado antifascista, este
distinto advogado, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, com
fortes ligações aos sectores económicos nacionais e conhecido nos
meios jurídicos internacionais era, segundo Spínola, a figura indicada
para o lugar.
A nomeação de Palma Carlos não encontrou qualquer resistência por parte da JSN. Diversa é a posição da Coordenadora que
não consegue encobrir a sua frustração. Ainda que a contragosto,
a decisão é acatada e começam os preparativos para a constituição
do novo executivo e elaboração do seu programa. Neste complexo
processo, que envolve numerosas audiências e consultas, António de Spínola manteve um lugar preponderante, acabando por
fazer vingar a sua vontade e, paralelamente, a tutela militar sobre
o poder civil.
A excepcionalidade da situação obrigava a que se constituísse um
governo de coligação integrando representantes dos partidos e movimentos políticos com alguma expressão na sociedade portuguesa: Partido Socialista (PS), Partido Comunista Português (PCP), Comissão
Democrática Eleitoral (CDE), Partido Popular Democrático (PPD),
Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social
(SEDES) e independentes. Mais de metade dos postos são ocupados
por dirigentes partidários.
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Quadro n.o 1
I Governo Provisório
(15/5/74-10/7/74)
Primeiro-Ministro
Adelino da Palma Carlos (ind.)
Coordenação Económica
Vasco Vieira de Almeida (ind.)
Ministros sem Pasta
Álvaro Cunhal (PCP)
Francisco Pereira de Moura (CDE)
Francisco Sá Carneiro (PPD)
Negócios Estrangeiros
Mário Lopes Soares (PS)
Defesa Nacional
Mário Firmino Miguel (militar)
Equipamento Social
Manuel Rocha
Educação e Cultura
Eduardo Correia (ind.)
Coordenação Interterritorial
António de Almeida Santos (ind.)
Trabalho
Avelino Pacheco Gonçalves (PCP)
Administração Interna
Joaquim Magalhães Mota (PPD)
Assuntos Sociais
Mário Murteira (ind.)
Justiça
Francisco Salgado Zenha
Comunicação Social
Raul Rego (PS)
A grande surpresa é a inclusão de comunistas no elenco governamental. Conhecido pelas suas posições de direita, Spínola justifica-se:
«Tendo-se chegado à conclusão de que o Partido Comunista estava
amplamente infiltrado no MFA, havia que responsabilizá-lo abertamente nas tarefas do governo, pois, caso contrário, mantendo-se nos
bastidores e dominando as estruturas dos diversos sectores da Administração e as cúpulas marxistas do Movimento, tiraria todas as vantagens
de uma situação de facto e nela não assumiria qualquer responsabilidade, reforçando, até, a sua posição na crítica aos partidos representados no Governo»46.
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25 de abril – mitos de uma revolução
A atribuição da pasta do Trabalho a um comunista, Avelino Gonçalves, assim como a integração do líder do partido no elenco governativo, respondia perfeitamente a esta pretensão. Segundo Mário Soares, a inclusão de Cunhal deveu-se, em grande medida, à posição dos
socialistas que dela fizeram depender a sua participação no Executivo.
Tal como Spínola, também Soares tinha a percepção da necessidade de
«comprometer» os comunistas na nova estrutura constitucional47.
Spínola vangloria-se de ter sido o autor do programa do Governo,
que terá elaborado em colaboração com Veiga Simão. Dividido em
oito pontos fundamentais, o programa apresenta um cunho neoliberal
e moderado. Na prática, observa o constitucionalista Vital Moreira,
trata-se de uma «espécie de regulamento executivo» do programa do
MFA:
«É nesse programa do primeiro governo provisório que se prevê a elaboração da lei eleitoral, a extinção do sistema corporativo e a instauração
das liberdades cívicas fundamentais – que, de resto, não esperaram por
leis para se começarem a exercer. Além de, curiosamente, algumas medidas no campo da ordem económica e social, inclusive a nacionalização
dos bancos emissores […], a criação do salário mínimo, a construção de
um Serviço Nacional de Saúde e de um serviço integrado de Segurança
Social. Por outras palavras, o programa do primeiro governo provisório
dava execução às vertentes do programa do MFA, quer a vertente política (instauração das liberdades cívicas), quer a de política económica e
social, quer, naturalmente, a vertente procedimental, isto é, a preparação da futura Assembleia Constituinte»48.
Apesar do compromisso, no preâmbulo do programa diz-se que
«o carácter transitório do Governo Provisório determina que não poderá
proceder a grandes reformas de fundo»49, o que, de facto, estava mais
de acordo com o projecto de Spínola. Na prática, o governo estava condenado a ter uma missão essencialmente técnica e executiva, enquanto
o verdadeiro poder decisório era repartido por diferentes centros polarizados por Spínola e pela Coordenadora do MFA.
Spínola dispunha nesse momento de importantes apoios na JSN e
no Governo. Estava, no entanto, consciente de que enquanto a Coordenadora existisse, enquanto o MFA mantivesse as estruturas revolucionárias em actividade actuando como um órgão de poder paralelo,
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o seu poder seria sempre limitado. Por isso, um dos seus objectivos
prioritários será liquidar a Coordenadora do MFA:
«Impunha-se pois, quanto antes, resolver o problema da continuidade
daquela Comissão. Para o efeito, mandei chamar o coronel Vasco Gonçalves, o oficial mais graduado do MFA, a fim de acertar com ele a
melhor forma de solucionar o assunto. Esclareci-o que a entrada em funções do I Governo Provisório abrira uma nova fase no processo político,
onde não tinha cabimento a Comissão Coordenadora»50.
Vasco Gonçalves é então informado de que a Coordenadora seria
integrada no Conselho de Estado e os seus elementos deveriam regressar
«à sua actividade militar, sendo convocados para as reuniões do Conselho nas mesmas condições dos restantes membros». Apesar da aparente
concordância do seu interlocutor, a actuação dos homens do MFA está
longe de apontar para uma pacífica extinção da Coordenadora.
Consciente da debilidade que os partidos e forças políticas apresentavam nesse momento, e do reforço do poder pessoal de Spínola
que o seu desaparecimento proporcionaria, numa clara encenação da
sua presença na «nova ordem», a Coordenadora decide instalar-se em
S. Bento onde, segundo o então presidente da República, «funcionava
como órgão de poder paralelo» criando ao Governo «um insuportável
clima de indisciplina». António Spínola retoma então a iniciativa, contacta Costa Gomes, e, em comum, decidem a dissolução da Coordenadora e o regresso imediato dos seus elementos à actividade militar51.
É neste contexto que, a 24 de Maio, o CEMGFA, general Costa
Gomes, decreta que todos os oficiais, sargentos e praças passem a
considerar-se incluídos no MFA, exigindo o respeito pela hierarquia
e a disciplina52.
Se esta circular deixa patente que a necessidade de unificação do
comando militar denunciada por Spínola é partilhada por Costa
Gomes, sobretudo tendo em conta a continuidade da guerra em África
(que implicava a formação e envio de novos contingentes militares),
nas suas memórias-entrevista, o então CEMGFA garante, em termos
algo enigmáticos, que a sua intenção era a de promover uma «racionalização da própria hierarquia» e não uma «simbiose» entre as duas
hierarquias existentes. Ou seja, justifica-se, o objectivo era operaciona-
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lizar as Forças Armadas. Assim, advoga a integração de todos os oficiais, sargentos e praças no Movimento, «mas respeitando os princípios
hierárquicos, os valores advindos da hierarquia militar, onde existem
quadros qualificados, preparados para comandar os subordinados»53.
O alcance prático da circular é, no entanto, mais amplo: Costa Gomes
decretava o imediato fim das hierarquias paralelas e a diluição do MFA
nas estruturas tradicionais das Forças Armadas. Se estas determinações
tivessem sido cumpridas, o MFA teria desaparecido imediatamente.
Dias depois, a 27 de Maio, a intervenção televisiva de Galvão de
Melo reforça o princípio que enformava esta circular, apresentando a
JSN como fiel depositária da liberdade conquistada pela «juventude
heróica dos capitães». Esforços vãos: os Capitães estavam dispostos
a resistir, esclarecendo publicamente que «o MFA não se extinguirá
nem diluirá noutras estruturas e continuará sem desfalecimentos a sua
acção de permanente vigilância e intervenção firme, contra as manobras reaccionárias, venham elas donde vierem»; não tinha iniciado
«um processo revolucionário para assistir de braços cruzados à sua
paralização ou destruição»54.
Um Conselho de Estado
Como referimos ao analisar a estrutura constitucional criada pela
Lei 3/74, ao MFA apenas era reservada uma presença no Conselho
de Estado não sendo considerado como um órgão de soberania autónomo. Os poderes do Conselho de Estado eram no entanto amplos:
longe de ser um órgão com funções consultivas, como o fora no Estado
Novo, dispunha do poder constituinte, até que fosse eleita a Assembleia Constituinte; do poder de sancionar ou vetar os diplomas do
Governo Provisório sobre matérias de maior importância (eleição da
Constituinte, definição das linhas gerais da política económica, social
e financeira, exercício das liberdades fundamentais, organização da
defesa nacional, definição do regime geral do Governo dos territórios
ultramarinos); do poder de fiscalização dos actos do Governo e Administração («vigiar pelo cumprimento das normas constitucionais e das
leis ordinárias»); do poder de apreciação da constitucionalidade das
leis, etc…
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Segundo Freitas do Amaral, autor do Regimento do Conselho de
Estado, tratava-se de «um órgão de natureza híbrida, com poderes
moderadores, legislativos, judiciais e de controlo político. A sua função era, no fundo, enquadrar e articular institucionalmente o presidente da República, a Junta de Salvação Nacional e a Comissão
Coordenadora do MFA, não deixando nenhum dos três “à solta”»55.
Neste contexto, revelava-se fundamental assegurar o controlo do próprio Conselho de Estado.
Empossado a 31 de Maio de 1974, o Conselho apresenta uma
composição tripartida, num total de 21 elementos.
Quadro n.º 2
Conselho de Estado
(Maio-Julho de 1974)
JSN
MFA
Personalidades de
«reconhecido mérito»
António de Spínola
Vítor Alves
Freitas do Amaral
Francisco da Costa Gomes
Melo Antunes
Henrique de Barros
Diogo Neto
Almada Contreiras
Almeida Bruno
Jaime Silvério Marques
Vítor Crespo
Isabel Magalhães Colaço
Galvão de Melo
Vasco Gonçalves
Rafael Durão
Pinheiro de Azevedo
Costa Martins
Ruy Luís Gomes
Rosa Coutinho
Pereira Pinto
Azeredo Perdigão
O presidente da República revela-se extremamente hábil na escolha dos sete cidadãos de «reconhecido mérito», não tanto no que diz
respeito aos civis (onde, mesmo assim, pontificam elementos tidos por
moderados) mas sobretudo devido à inclusão de dois oficiais da sua
confiança no seu elenco. Assim, e apesar de inicialmente este grupo ter
sido pensado para integrar apenas civis (os militares detinham já 2/3
do Conselho), Spínola consegue incluir nele Almeida Bruno e Rafael
Durão. A imposição destas nomeações parece, no entanto, não ter
sido fácil. Nas suas memórias, António de Spínola confessa que de
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todos os nomes propostos, apenas o de Ruy Luís Gomes teve o completo aval do MFA56.
A correlação de forças, no interior do Conselho, nem sempre será
clara. O testemunho de um dos conselheiros de Estado, Diogo Freitas
do Amaral, é elucidativo a este respeito. Se, quanto à JSN, observa
dispor de «uma composição contrária à tendência claramente esquerdizante do MFA», quando se refere aos elementos da Coordenadora
não hesita em afirmar que, apesar das suas diferenças, «todos eram de
esquerda»57. Mais difícil é, segundo o mesmo autor, detectar o posicionamento político do terceiro grupo. Porque se era óbvia a submissão dos dois militares ao presidente da JSN, o mesmo não se passava
com os conselheiros civis, por sinal os mais intervenientes.
Longe de entender, nesse momento, a real correlação de força
no interior do Conselho, o discurso de Spínola na cerimónia da sua
tomada de posse deixa patente um grande optimismo. Afirmando
que, com este acto, se completava «a estrutura política que presidirá
ao País até à definição da nova lei fundamental», coloca novamente a
tónica no restabelecimento da «ordem» e no «regresso aos quartéis».
A fase do «pronunciamento militar» estava encerrada, prevendo-se
para breve, assim que garantida a «consolidação da ordem civil», a
retirada dos militares da cena política58.
Além do mais, tornava-se cada vez mais inequívoco o apoio que
Costa Gomes dava à Coordenadora: quando Spínola o confronta
com o problema desta se ter instalado em S. Bento, Costa Gomes
transfere-a para a Cova da Moura onde funcionava o seu gabinete de
CEMGFA. Apesar da indignação de Spínola, esta era, segundo Costa
Gomes, uma medida justa: «Eles é que tinham feito a revolução e
detinham a legitimidade do poder, pelo que seria absurdo dissolvê-la
e limitei-me a levá-la comigo para a Cova da Moura»59.
Longe de se resignarem, e conscientes da manobra do general-presidente, os membros da Coordenadora decidem integrar o Conselho
de Estado que, em última análise, dá cobertura jurídica à sua actuação. Ou seja, se o objectivo de Spínola era reduzir a sua capacidade
de acção, a iniciativa tem o efeito contrário, legitimando institucionalmente a Coordenadora.
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As intenções de Spínola
Ciente de não poder deixar o curso dos acontecimentos ditar o
seu destino, António de Spínola desenvolve, a partir de então, uma
nova linha estratégica. A 29 de Maio, realiza uma apoteótica viagem
ao Porto, a primeira de uma série que o levará às principais capitais de distrito e a várias unidades militares, sobretudo as de maior
capacidade bélica.
A luta por um Portugal «democrático, progressivo, livre», onde
«todos os Portugueses possam viver uma vida mais digna e mais
feliz»60, que anuncia no Porto, será na prática mais uma peça da
sua estratégia de captação de apoios. Jogando a todo o tempo com
a natural insegurança que atingia alguns sectores da sociedade portuguesa face à explosão social a que se assistia, apelando constantemente à implantação de uma democracia de contornos não claramente definidos, mas que pressupunha um regresso da «ordem»
às ruas, Spínola desenvolve ao longo do Verão de 1974 um estilo
populista numa tentativa de captar apoios e unir vontades em torno
do seu projecto político e, sobretudo, da sua figura.
No Porto, por exemplo, chama a atenção para o facto de, «passado
o primeiro mês de eufórico entusiasmo», ser «tempo de todos os Portugueses reflectirem que uma sociedade livre e democrática não é possível
sem disciplina cívica e respeito mútuo61; em Coimbra (31 de Maio) lembra que «para reivindicar é preciso primeiro edificar, e que não poderá
distribuir-se riqueza sem primeiro a produzir»62. A ideia é reforçada em
Tomar (3 de Junho) onde afirma ser necessário distinguir a «verdadeira
democracia das ideologias que, a coberto de um desvirtuado conceito
de liberdade, nos podem conduzir a regimes políticos bem mais despóticos do que o derrubado em 25 de Abril»63. Na Academia Militar (6 de
Junho), apela à coesão e disciplina das Forças Armadas salientando a
sua importância «no momento histórico» que se vivia. No mesmo dia,
em Évora, reafirma a sua vontade de «construir um Portugal africano
melhor e com mais justiça social», porque «não é na destruição nem no
ódio, nem queimando a terra sagrada de Portugal que poderemos construir o Portugal do futuro»64. Isto num momento em que Mário Soares
e Otelo negociavam com Samora Machel, em Lusaca, em parâmetros
bem diferentes, o futuro de Moçambique.
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Estes discursos, sobretudo os realizados em unidades militares, começam a inquietar não só a Coordenadora, como o próprio
CEMGFA, para quem «um chefe de Estado não se deve deslocar com
aquela frequência, em particular às unidades especiais, para fazer
discursos políticos»65.
A estratégia de aliciamento da oficialidade apoia-se em vários
argumentos com forte impacto num sector das Forças Armadas
maioritariamente conservador, assustado com o rumo dos acontecimentos e que se defrontava com a falta de autoridade dentro das
unidades. Acusando os dirigentes do MFA de se deixarem influenciar
pelo PCP, responsabilizando esse mesmo partido pelo caos social e
pela iminente perda dos territórios africanos, reavivava o anticomunismo habilmente alimentado durante os quarenta anos de ditadura.
A missão de Spínola era facilitada pela pressão da extrema-esquerda,
que exigia o regresso dos soldados e a suspensão dos embarques, e
pelo receio destes oficiais de serem acusados de cobardia.
Uma tentativa de golpe de Estado constitucional
Reflectindo sobre a actuação de Spínola enquanto presidente da
JSN, Rosa Coutinho comenta: «Vocês não fazem ideia da prepotência
com que o Spínola se comportava na JSN, com iniciativas que nos
punham completamente à margem»66. Se estas declarações demonstram que o comportamento de Spínola começa a gerar resistências na
JSN, quando sondamos a opinião de civis, as opiniões não são muito
diferentes. Álvaro Cunhal, por exemplo, recorda a forma como tratava o executivo, dando ordens ao primeiro-ministro «como se este
fosse um seu soldado. Tinha uma linha telefónica directa para o primeiro-ministro e, em pleno Conselho de Ministros, chegavam ordens
do presidente da JSN. E que ordens!»67.
A ideia de que Spínola tratava os políticos como soldados é relativamente consensual, assim como a das tentativas de subordinação da
vontade do executivo aos seus desígnios. A sua acção era, no entanto,
dificultada pela própria estrutura do Governo e pela complexidade do
quadro político, económico e social que se gera no pós-25 de Abril.
A este respeito, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soa-
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res, recorda a completa «descoordenação» do governo, «composto por
fortíssimas personalidades, cada um com ideias muito próprias, sem
que se dessem ao trabalho de as articular entre si: um complexo jogo de
xadrez onde cada um colocava as peças no tabuleiro, sem que os outros
se apercebessem bem do que estava a acontecer em cada Ministério».
A descoordenação e falta de estratégia atingiram tais níveis que Mário
Soares duvida ter alguma vez existido um programa de Governo: «posso
asseverar que nunca ouvi falar em tal programa – nem eu, nem o Zenha,
nem o Rego, que éramos ministros socialistas desse I Governo»68.
E se, ainda hoje, não é unânime que os problemas de gestão e de
governação sentidos decorressem directamente da pulverização dos
centros de poder, a verdade é que, desde cedo, e perante este panorama, o chefe do executivo se manifesta completamente paralisado.
Esta realidade gera o clima propício a um novo episódio do duro
braço-de-ferro entre a Comissão Coordenadora e Spínola.
Tendo sempre em vista o seu objectivo de dissolver a Coordenadora, a 8 de Junho Spínola convoca uma assembleia de oficiais na
Manutenção Militar. «Ele pretendeu dissolver-nos de uma maneira
brilhante: promovendo-nos a general», recorda Vítor Alves. O consenso relativo à recusa da promoção dos membros da Coordenadora
não é, no entanto, conseguido quando se passa ao debate da descolonização de Moçambique. A repulsa de muitos dos presentes perante
uma cedência face as exigências da FRELIMO, que se arrogava de ser
o único interlocutor nas negociações para a descolonização, e, sobretudo, os entraves levantados às propostas da Coordenadora quanto
à independência de Moçambique, são interpretados por Spínola não
só como um sinal da falta de unidade do Movimento e da sua pouca
coesão política mas também como um sintoma da fraca representatividade da Coordenadora. Este era o momento esperado para desferir
o golpe final e aniquilá-la. É neste contexto que devemos integrar a
assembleia realizada na Manutenção Militar, a 13 de Junho.
Para esta reunião muito alargada com o MFA, o presidente da
República faz-se acompanhar pelo primeiro-ministro, três ministros
(Sá Carneiro, Vieira de Almeida e Firmino Miguel), e alguns membros
da JSN (entre os quais Rosa Coutinho e Jaime Silvério Marques).
O MFA, por seu lado, conta com a presença de 200 elementos, em
representação de todas as unidades do país.
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Ao promover este encontro, Spínola tinha como objectivo exigir
um voto de confiança na sua pessoa e o seu reconhecimento como
o condutor dos processos de democratização e descolonização.
O catastrófico balanço da situação social e política apresentado por
Sá Carneiro e Vieira de Almeida, reforçava a ideia da necessidade de
alargamento dos poderes do presidente da República.
A estratégia é denunciada pela Coordenadora, gerando-se um aceso
e equívoco debate recordado por Rosa Coutinho:
«Nessa reunião estava o Spínola a tentar chamar a si todos os poderes
e a Coordenadora a não concordar com isso. E a minha intervenção foi
até no sentido de dizer que se o Spínola era o chefe, o Estado-Maior era
a Coordenadora. E o chefe não podia decidir sem ouvir o Estado‑Maior.
Porque o Estado-Maior é que ajuda a definir os planos possíveis e ajuda
a implementar os planos depois de decididos pelo chefe. Portanto o
Spínola não podia afastar a Comissão Coordenadora.
Depois interveio o general Vasco Gonçalves, também um pouco no
mesmo sentido. Foi a primeira vez que conheci o Vasco Gonçalves.
E o Vasco Gonçalves foi até visivelmente maltratado por alguns membros da Junta, principalmente o Neto e o Silvério Marques lhe interromperam a palavra. […] Esse mau tratamento de Vasco Gonçalves, que
era membro da Coordenadora, foi um dos grandes erros de Spínola.
Vasco Lourenço interveio e a meio da sua intervenção Spínola diz “eu
sabia que vocês estavam de acordo comigo”, e sai convencido que tinha
evitado o pior – a derrota da Junta»69.
Spínola abandona a reunião persuadido de que conseguiria fazer
vingar a sua proposta. Não chega a escutar a parte final da intervenção de Vasco Lourenço afirmando que apenas se mantinha presidente enquanto tivesse o apoio do MFA e que «não havia cheques em
branco para ninguém»70.
No dia seguinte, a Coordenadora pede uma audiência ao presidente
da República na tentativa de clarificar a situação. Mesmo assim, convencido de que conseguiria aniquilar a Coordenadora, Spínola enceta
uma nova estratégia e desdobra-se na recolha de apoios nacionais e
internacionais. A este respeito, e como analisaremos mais tarde, destacam-se pela sua importância e impacto o encontro com Richard Nixon
nos Açores, a 19 de Junho e, depois, com Senghor e Mobotu. Ainda
em finais de Junho, o projecto de Spínola recebe o apoio de Adelino
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83
Amaro da Costa, futuro dirigente do CDS, que, num artigo publicado
no Diário Popular, defende a legitimidade das Forças Armadas, mas
apresenta o presidente da República e o Governo como depositários
dessa legitimidade71.
Passado quase um mês sobre o revés da Manutenção Militar, fortalecido por uma conjuntura que pensa ser-lhe favorável, Spínola recupera o seu projecto e, numa acção concertada com o primeiro-ministro Palma Carlos, propõe ao Conselho de Estado várias alterações à
Lei 3/74. Assim, a pretexto do «clima de indisciplina social, o risco de
uma degradação a breve prazo da vida económica e a subsistência da
guerra do ultramar», e ameaçando demitir-se caso as suas propostas
não fossem aprovadas, Palma Carlos exige ao Conselho de Estado um
reforço dos poderes presidenciais e do executivo, a elaboração a breve
prazo de uma nova Constituição política (que substituiria o Programa
do MFA), a ser referendada popularmente, e a realização de uma consulta eleitoral para a Presidência da República. Em suma, utilizando
como arma de pressão o espectro da queda do I Governo Provisório,
pretendia-se promover um autêntico golpe de Estado através do qual,
observa Freitas do Amaral, «o MFA seria dissolvido, a autoridade
pessoal de Spínola seria grandemente reforçada, o regime definir-se-ia
na prática como um “quase presidencialismo” de tipo gaullista» e as
«eleições de Deputados seriam adiadas por ano e meio, adiada ficando
também, por igual período, a feitura da nova Constituição»72.
A ideia de que, nessa reunião do Conselho de Estado de 5 de Julho,
se estava a promover um golpe de Estado constitucional é relativamente consensual. Mário Soares, por exemplo, a quem Palma Carlos
revelara dias antes o projecto, comenta: «Queria, simultaneamente
conter a Comissão Coordenadora do Programa do MFA – que estava
já a fazer exigências e a ganhar peso político – e impor uma única
legitimidade, a de Spínola. E, como é óbvio, daí avançar-se-ia para
“domesticar” o Partido Comunista, conter a Revolução e quem sabe,
o Partido Socialista iria, muito provavelmente, atrás do Comunista»73.
Ramalho Eanes e Ricardo Durão surgem um pouco contra a corrente justificando o projecto Spínola-Palma Carlos. Enquanto Eanes
apresenta o primeiro-ministro como «um homem inteligente e um
democrata responsável» e faz revestir a proposta de uma «racionalidade política indiscutível», Ricardo Durão nega tratar-se de uma
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tentativa de golpe de Estado afirmando que «o poder, naquela altura,
apenas seria conseguido através da sua legitimação. Isto, porque era
utópico, na grave situação que o país vivia, esperar um ano por eleições. Tornava-se necessário acelerar a realização das eleições para
haver legitimidade. Foi essa a ideia de Palma Carlos»74.
Independentemente da interpretação que se fizer dos acontecimentos, as propostas de Spínola-Palma Carlos significavam uma radical
mudança de rumo e, em última análise, impunham a subalternização
definitiva do MFA e do seu Programa. Ou seja, para a Coordenadora
tratava-se de facto de uma tentativa de golpe de Estado constitucional.
A reacção do Conselho de Estado é algo inesperada. Apesar de
aprovar por unanimidade a proposta que visava o reforço dos poderes
do primeiro-ministro, todas as outras, nomeadamente as que diziam
respeito ao reforço dos poderes presidenciais, são rejeitadas. Nem
mesmo Freitas do Amaral, Galvão de Melo, Silvério Marques, Diogo
Neto, Almeida Bruno ou Ricardo Durão as apoiam.
Fracassado o «golpe de Estado constitucional», Palma Carlos
demite-se (9 de Julho de 1974). Numa tentativa desesperada de fazer
vingar a sua vontade, Spínola tenta, sem sucesso, obter o apoio do
Conselho de Ministros. Os votos favoráveis de Palma Carlos, Firmino
Miguel, Sá Carneiro e Vieira de Almeida não são no entanto suficientes. A posição do presidente da República sai claramente enfraquecida
deste episódio. «Estava consumada a primeira crise política grave do
pós-25 de Abril»75.
Dias depois, a pretexto da necessidade de «criar as condições
necessárias para que as Forças Armadas possam garantir o cumprimento dos objectivos do seu Programa», é criado o Comando Operacional do Continente (COPCON).
O COPCON: o braço armado de Spínola ou do MFA?
O processo de constituição deste grupo operacional não é totalmente transparente. Existe um relativo consenso quanto ao facto das
suas origens entroncarem no Centro de Coordenação e Controlo Operacional, isto é, no Comando Operacional montado por Otelo na
Pontinha para dirigir e coordenar as acções militares do dia 25 de
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Abril. Alguns testemunhos referem que, ainda antes da sua «legalização», o comando actuava já sob a alçada da JSN, operando como
«um Estado-Maior permanente, para acorrer a todas as situações, que
iam aparecendo no País (tipo bombeiros). Com as directivas da JSN,
lá se iam acalmando e solucionando os casos mais diversos. Um dos
executores era o então major Jaime Neves, com o seu pessoal»76.
As opiniões divergem, no entanto, quanto à autoria do projecto e suas
intenções. Spínola, por exemplo, atribui a ideia de criar o ­COPCON a
Costa Gomes que, preocupado com «o crescente agravamento da situação interna», lhe propõe a criação de um «Comando Operacional», na
sua dependência directa, com a dupla missão de intervir na manutenção
e restabelecimento da ordem pública […] e de garantir o exercício da
autoridade»77. A maioria dos autores e dos testemunhos disponíveis
apresenta outra versão dos acontecimentos, considerando a criação do
COPCON como mais uma manobra de Spínola para aniquilar o MFA,
retirar poderes ao CEMGFA e assenhorear-se da situação.
O COPCON é concebido como um órgão militar executivo, de rápida
intervenção, com poderes de mobilizar todas as unidades do Exército e,
se necessário, das forças especiais da Marinha (fuzileiros) e Força Aérea
(pára-quedistas), isto é, um órgão de comando operacional do Exército
com possibilidade de alargamento a outras forças e ramos. Dependendo
directamente do CEMFA, os seus poderes são amplos podendo, segundo
o Decreto-Lei que o institui:
«a) intervir directamente na manutenção e restabelecimento da ordem,
em apoio das autoridades civis e a seu pedido, nas seguintes condições: insuficiências das forças militarizadas; situações em que se torne
inconveniente a utilização de forças militarizadas; locais onde estas não
possam ser utilizadas em tempo oportuno;
b) garantir, quando se verifiquem situações internas de ameaça à paz
e tranquilidade públicas, reconhecidas pelo presidente da República:
1 – o livre exercício da autoridade constituída; 2 – as condições de
ordem pública julgadas necessárias ao regular funcionamento das instituições, serviços e empresas públicas ou privadas, essenciais à vida da
Nação; 3 – a salvaguarda das pessoas e dos bens»78.
A necessidade de nomear um comandante adjunto para agilizar o
Comando acaba por conduzir ao operacional de Abril, o então major
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Otelo Saraiva de Carvalho, que, para o efeito é graduado em brigadeiro e nomeado comandante da RML. A acumulação dos cargos
impunha-se por óbvias necessidades operacionais. A questão que se
coloca é a de saber quais as motivações que estiveram por detrás da
escolha de Saraiva de Carvalho. Mais uma vez as versões não são
coincidentes. Segundo António de Spínola a proposta, aprovada por
unanimidade pela JSN, terá partido de Costa Gomes «com a concordância geral do MFA»79. A versão de Virgílio Varela é diferente,
atribuindo a iniciativa a Hugo dos Santos80.
Mas se a ideia de nomear Otelo para o cargo partiu da entourage
do presidente da República, hipótese que consideramos como a mais
provável, quais as suas intenções?
Apesar de o próprio negar alguma vez ter sido um spinolista, a
verdade é que servira sob o comando do então Governador da Guiné e
trabalhara de perto com alguns dos seus homens de confiança na preparação do 16 de Março. Num momento em que se tornava óbvio que
cometera um erro estratégico grave ao assumir a presidência da República deixando as Forças Armada sob o comando de Costa Gomes
pretenderia retirar poderes ao CEMGFA e criar um comando que lhe
fosse «fiel»? Segundo Rosa Coutinho, foi essa a sua intenção: «ter
um braço armado às suas ordens», porque «confiava que Otelo era
um spinolista»81. Interpretação diferente é a de Vítor Alves, segundo
o qual Spínola queria «agarrar o Otelo a um lugar, não deixar o
Otelo livre. Ele já tinha sete elementos livres – os da Coordenadora
– que lhe davam um trabalho “dos diabos”. E ele conhecia o Otelo
melhor do que nós. Eu acredito que ele tenha querido agarrar o
Otelo»82.
Os acontecimentos que rodeiam a criação do COPCON revelam
que, efectivamente, Spínola depositava nele alguma confiança ou
pelo menos estava convencido de que seria um elemento facilmente
dominável. É o próprio Spínola que, por sugestão do seu ajudante‑de‑campo, major Manuel Monje, propõe a sua graduação. Segundo
Monje, era premente «pôr termo ao clima militar de indisciplina emergente da sobreposição da hierarquia revolucionária à cadeia normal
de comando» e Otelo tinha «a necessária ascendência para se fazer
obedecer ao nível dos capitães»83. As expectativas de Spínola relativamente a Otelo ficam patentes na cerimónia da sua graduação em
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brigadeiro, quando se refere ao «início de uma nova era de vivência
militar em clima renovado à luz dos novos conceitos de selecção de
valores». E acrescenta: «todos nós, militares, temos a plena consciência de que o respeito pela hierarquia é a base da disciplina»84.
Tinha então início uma «nova era de vivência militar», tal como
Spínola previra, mas não a que planeara ou desejava. No próprio dia,
na cerimónia de tomada de posse de Otelo como Governador Militar
de Lisboa, as suas esperanças «do retorno à disciplina», ou seja, ao
seu comando, desvanecem-se. Depois de ouvir as palavras do CEME,
general Jaime Silvério Marques, Otelo faz questão de frisar que a sua
nomeação para o cargo resulta da escolha dos seus camaradas e não
da vontade de Spínola. Era o prenúncio da linha de acção que enformará a sua actuação como chefe do COPCON.
De facto, apesar de formalmente depender do CEMGFA, o ­COPCON
acabará por actuar com grande independência, à margem dos Estados-Maiores, extrapolando largamente as funções militares que inicialmente lhe tinham sido atribuídas. Mais que um braço armado ao serviço da JSN ou do próprio Spínola, o COPCON revelar-se-á, sobretudo
nos primeiros meses, um importante apoio para as acções do MFA, a
ponto de ser por muitos considerado como «o principal sustentáculo
da Revolução»85. Bastante clarividente era o Diário de Lisboa quando,
a propósito da nomeação de Otelo, afirmava: «Deste modo, o MFA sai
reforçadíssimo, também do ponto de vista da orgânica militar»86.
5. Quem escolhe Vasco Gonçalves como primeiro-ministro?
A demissão do primeiro-ministro Palma Carlos marca uma importante viragem na complexa correlação de forças que se gerou na
sequência do 25 de Abril. O significado e impacto da dissolução do
Executivo é assinalado na imprensa nacional e na estrangeira, que
continua a acompanhar de perto a evolução política portuguesa.
O New York Times, por exemplo, faz alusão à «incapacidade dos
grupos políticos civis» em colaborarem na governação, o que «poderia adiar indefinidamente o regresso à democracia» e a «retirada»
dos territórios africanos, alertando ainda para uma «reposição do
poder militar directo» em Portugal87. O Diário de Notícias, por seu
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lado, desdramatiza a situação porque, apesar de ser «a primeira vez,
desde há cinquenta anos, que um chefe do Governo Português pede
a demissão», o facto é «considerado nos meios políticos como um
simples incidente sem significado de maior, dentro do livre jogo das
instituições democráticas, que tem nas Forças Armadas que fizeram o
25 de Abril, e no grande apoio do povo português, o seu verdadeiro
baluarte»88.
Mais precisa é, em nosso entender, a análise do jornal Expresso
sobre o significado político da queda do I Governo Provisório. Apresentando-a como uma consequência lógica do fracasso do golpe Palma
Carlos, isto é, da tentativa de introduzir alterações ao Programa do
MFA e à estrutura constitucional vigente, comenta: «quer dizer que
a grande força militar é hoje ainda o MFA, que a sua vontade no
Conselho de Estado foi decisiva, e que a posição do presidente da
República tem limites – os limites de um programa e de uma estrutura
constitucional que o MFA (com eventual audição e ou apoio de forças
políticas) julga prematuro alterar»89.
As atenções centram-se na constituição do novo executivo, processo ainda não completamente clarificado, nomeadamente no que
concerne à escolha do primeiro-ministro.
António de Spínola, a quem, enquanto presidente da República,
competia escolher o novo primeiro-ministro, dá a sua versão dos
acontecimentos, afirmando que o nome de Vasco Gonçalves lhe foi
pela primeira vez sugerido pelo Conselho de Estado:
«com surpresa minha, o almirante Rosa Coutinho sugeriu discretamente
a solução da crise com a nomeação do coronel Vasco Gonçalves para
primeiro-ministro, sugestão que teve o apoio imediato dos Conselheiros
que faziam parte da Comissão Coordenadora sem qualquer objecção dos
restantes. Limitei-me a afirmar que considerava prematuro empenhar o
MFA no Governo e afastei prudentemente o assunto por não considerar
conveniente discuti-lo na presença do coronel Vasco Gonçalves»90.
O então presidente da República refere ainda que em conversa particular com Costa Gomes este terá apoiado a posição da Coordenadora. Rejeitando esta hipótese, Spínola avança com os seus próprios
candidatos: tenente-coronel Firmino Miguel, que servira sob o seu
comando na Guiné e que, apesar de reunir um amplo consenso, acaba
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por desistir de formar governo «pela ameaça de que a sua posse seria
assinalada com a paralisação da Banca»; general Fontes Pereira de
Melo, comandante da Região Militar de Évora, recusa o convite, tal
como acontecerá com o brigadeiro Neves Cardoso; e finalmente o brigadeiro Almeida Freire, então na Junta Autónoma das Estradas, que
não aceita o cargo devido, segundo Spínola, a «razões circunstanciais
de natureza política»91.
Ainda segundo António de Spínola terá também avançado com a
hipótese de nomeação de Costa Gomes que «ao mesmo tempo que se
recusava a aceitar aquele encargo, passou a advogar abertamente a
nomeação do coronel Vasco Gonçalves, em quem afirmava depositar
as maiores esperanças, por o considerar o mais lídimo representante
do genuíno espírito do MFA»92. Perante este panorama, Spínola diz
que não lhe restou outra alternativa senão aceitar Vasco Gonçalves.
Parte desta versão dos acontecimentos é confirmada por outros
testemunhos, nomeadamente no que diz respeito às propostas apresentadas por Spínola. Há, no entanto, algumas divergências quanto
aos motivos do seu fracasso. Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Rosa
Coutinho, por exemplo, recordam que Almeida Freire não toma posse
porque, ao ser informado de que participara na célebre cerimónia da
brigada do reumático, Spínola lhe retira o convite93. Quanto ao recuo
de Firmino Miguel, cuja nomeação chega a aparecer nas primeiras
páginas de alguns jornais, a versão de Vasco Lourenço e Rosa Coutinho é a de que ele se deveu à oposição que lhe levantou a Coordenadora94. Costa Gomes, por seu lado, avança com a ideia, apenas confirmada por Vasco Lourenço, de que, depois de rejeitadas as restantes
propostas do presidente, a Comissão Coordenadora terá proposto
o nome de Melo Antunes, hipótese que Spínola terá rejeitado por o
considerar um «perigoso comunista»95.
Fracassadas todas estas possibilidades, a questão que nos colocamos é a da origem da proposta do nome de Vasco Gonçalves como
primeiro-ministro. Mais uma vez é difícil reunir um consenso. Parte
dos intervenientes atribui a responsabilidade da escolha a Spínola.
A este respeito é paradigmática a entrevista de Vítor Alves ao jornal
Expresso, em Setembro de 1975, ao afirmar que quando se formou o
II Governo Provisório, «o general Spínola – e não a Comissão Coordenadora, como então se disse – convidou Vasco Gonçalves para for-
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mar Governo. A Comissão Coordenadora reuniu-se e o general Vasco
Gonçalves teve de ser convencido a aceitar»96.
Esta versão é confirmada por um homem bastante próximo de Spínola, Ricardo Durão, que se arroga de ter sido o autor da ideia. Na
sua versão dos acontecimentos, depois de fracassadas as primeiras
propostas de Spínola, ter-lhe-á feito ver que «se a Comissão Coordenadora está a complicar com o poder paralelo, tire-os da clandestinidade!», tendo nesse sentido sugerido a nomeação de Vasco
Gonçalves «para eles serem responsáveis. Espalhar-se-ão e será o seu
fim irreversível» 97.
Finalmente, uma referência ao testemunho de Costa Gomes que,
apesar de não se recordar ao certo de quem partiu a ideia, assegura
ter sido Spínola a fazer o convite98. Não negando ter sido anteriormente sondado a este respeito pela Coordenadora, o próprio Vasco
Gonçalves confirma a tese e justifica a atitude de Spínola: «Ele fez
esta proposta in extremis e também por influência do MFA e dos dois
elementos da JSN, Rosa Coutinho e Pinheiro de Azevedo. Foi assim
que fui nomeado primeiro-ministro»99.
Posição diversa é a dos que afirmam que a proposta terá partido
da Coordenadora e terá sido imposta a Spínola. Otelo Saraiva de
Carvalho, por exemplo, reclama para si a ideia de nomear Vasco
Gonçalves. A proposta, transmitida pela Coordenadora a Costa
Gomes e por este ao presidente da República, acabaria por ser aceite
porque, segundo Otelo, «Spínola, em desespero, precisava de ter um
primeiro-ministro»100.
Semelhante é a versão de Vasco Lourenço, segundo o qual foi a
Coordenadora que indicou o nome de Vasco Gonçalves. Ainda assim,
recorda que a Comissão «fez todos os esforços para que fosse um
civil, e que a imposição de que fosse um militar partiu do próprio
general Spínola»101.
Esta multiplicidade de versões deixa patente o ambiente de tensão que perpassa todo o processo. A discussão e rejeição de sucessivas propostas é um óbvio sinal do mal-estar que se tinha instalado,
alargando cada vez mais o fosso entre o presidente da República e a
Coordenadora. Independentemente das versões apresentadas, é fácil
concluir que o convite a Vasco Gonçalves foi formulado pelo próprio
Spínola que, pressionado pela Coordenadora ou tentando mais uma
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manobra para a comprometer e desacreditar, vê nele a sua última
alternativa face ao impasse criado.
O II Governo e o crescente peso da Coordenadora na vida nacional
A distribuição das pastas ministeriais é feita pelo próprio Vasco
Gonçalves que, para o efeito, trabalha em estreita colaboração com
a Coordenadora e Costa Gomes. O processo foi complexo, dados os
sucessivos vetos de Spínola a nomes como Mário Murteira (ex‑ministro dos Assuntos Sociais), Avelino Gonçalves (ministro do Trabalho), Pereira de Moura (ministro sem pasta) e António Galhordas
(ex-secretário de Estado da Saúde)102. Incapaz de pressionar a permanência dessas personalidades no governo «sem abrir uma crise de
consequência imprevisíveis»103, Vasco Gonçalves cede.
Depois, terá que se confrontar com a pressão dos partidos que
se recusam a integrar o novo executivo ou, noutros casos, rejeitam
alguns dos nomes nele incluídos. Encontram-se no primeiro caso o
PCP e MDP que, não se mostrando interessados em ocupar cargos
ministeriais, apenas aceitam a nomeação de Álvaro Cunhal como
ministro sem pasta. Outros, como o PPD, opõem-se a algumas nomeações. Assinale-se, a título de exemplo, a sua oposição à inclusão de
Herberto Goulart (MDP/CDE) como ministro do Trabalho do novo
governo.
Consciente de que, nesse momento, Vasco Gonçalves representava
um «mal menor», o próprio presidente da República manifesta a sua
«adesão» à proposta no decorrer da cerimónia de tomada de posse
do executivo (18/7/74), classificando o novo primeiro-ministro como
uma figura de «reconhecida estatura moral e intelectual». Vasco Gonçalves, por seu lado, preocupa-se em reafirmar a sua fidelidade ao Programa do MFA e ao compromisso de realizar eleições, transmitindo
em simultâneo uma imagem de «renovação na continuidade»: «Não
haverá desvios ao programa do MFA»104.
Tal como ocorrera com o executivo de Palma Carlos, o II Governo
Provisório é integrado por representantes do PS, PCP, PPD, independentes e militares. No entanto, e apesar dos esforços desenvolvidos
por Vasco Gonçalves para manter o maior número de ministros do
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anterior executivo, houve profundas alterações. Apenas permanecem
no mesmo cargo Álvaro Cunhal, Firmino Miguel, Almeida Santos,
Salgado Zenha e Mário Soares. Magalhães Mota, anterior ministro
da Administração Interna, transita para ministro sem pasta. Quanto
a saídas, o seu número é considerável: além de Palma Carlos abandonam o executivo Francisco Pereira de Moura, Francisco Sá Carneiro,
Vasco Vieira de Almeida, Manuel Rocha, Eduardo Correia, Pacheco
Gonçalves, Mário Murteira e Raul Rego.
Quadro n.º 3
II Governo Provisório
(17/7-30/9/74)
Primeiro-Ministro
Vasco Gonçalves (militar)
Ministros sem Pasta
Álvaro Cunhal (PCP)
Joaquim Magalhães Mota (PPD)
Ernesto Melo Antunes (militar)
Vítor Alves (militar)
Defesa Nacional
Mário Firmino Miguel (militar)
Coordenação Interterritorial
António de Almeida Santos (ind.)
Administração Interna
Manuel da Costa Brás (militar)
Justiça
Francisco Salgado Zenha (PS)
Economia
Emílio Rui Vilar (PS)
Finanças
José Silva Lopes (ind.)
Negócios Estrangeiros
Mário Lopes Soares (PS)
Equipamento Social e do Ambiente
José Augusto Fernandes (militar)
Educação e Cultura
Vitorino Magalhães Godinho (ind.)
Trabalho
José da Costa Martins (militar)
Assuntos Sociais
Maria de Lourdes Pintasilgo (ind.)
Comunicação Social
José Sanches Osório (militar)
Mas as alterações introduzidas por este novo executivo no qual,
refira-se, o número de ministros sobe de quinze para dezassete, são
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mais amplas. Antes de mais, dada a descida considerável da representatividade dos partidos e movimentos: enquanto no I Governo os
partidos e movimentos ocupavam oito pastas, o que equivale a 53%
dos cargos disponíveis, agora o seu número desce para cinco, o que
representa apenas 30% do total de ministérios. O mesmo ocorre com
os independentes cujo número se reduz de seis para quatro. O MDP/
/CDE deixa de estar representado. Paralelamente, assinala-se o reforço
da presença dos militares: de um passam a oito, representando agora,
47% dos ministros. Firmino Miguel mantém-se como ministro da
Defesa e, além de Augusto Fernandes e Sanches Osório, integram o
executivo vários líderes do MFA como Costa Brás, Costa Martins,
Melo Antunes, Vítor Alves e o próprio Vasco Gonçalves, estes quatro
últimos membros da primeira Coordenadora. Em suma, o II Governo
Provisório revela não só um predomínio dos militares sobre os civis,
como também uma importante conquista de terreno do MFA.
No dia seguinte à tomada de posse do II Governo Provisório, o
líder do recém fundado CDS, Adelino Amaro da Costa, não esconde
a sua inquietação. Num artigo sobre o papel das Forças Armadas na
vida nacional, interroga-se se «será de concluir que os civis são incapazes de governar Portugal». Em seu entender, «trágico seria, para
os militares que fizeram o 25 de Abril, que a democracia política que
quiseram instaurar» não encontrasse «os protagonistas civis que o
Governo de um Estado moderno pede e exige»105.
Mais céptico é Sá Carneiro (PPD), alertando para a coincidência
entre o poder político e o poder revolucionário e denunciando os
perigos de instauração de uma ditadura militar. Mário Soares (PS)
contorna a questão, centrando-se na necessidade de uma efectiva solidariedade entre as forças democráticas, os partidos democráticos e
as Forças Armadas. Só assim seria possível «acelerar o processo de
democratização, da descolonização e do desenvolvimento económico
do País». Pereira de Moura (MDP/CDE) partilha deste optimismo
apresentando a «entrada em pleno do MFA, através de alguns dos
oficiais mais representativos, para o elenco governativo» como a
resposta directa à crise gerada pela demissão de Palma Carlos e dos
três ministros que com ele se solidarizaram. Com esta recomposição,
«quem se afirma de forma significativa é o MFA. O que sai reforçado
é o Programa do MFA» o que, em seu entender, é bastante positivo106.
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Em suma, conscientes das suas debilidades, os partidos reconhecem
a importância do MFA na vida nacional e na condução da transição.
Legitimados pelo seu papel no derrube da ditadura, os militares assumem-se com protagonistas da nova ordem. O essencial das lutas pelo
poder a que então assistimos trava-se entre militares e esta será uma
realidade que se arrastará durante grande parte do processo revolucionário.
A posição de Vasco Gonçalves era relativamente confortável uma
vez que, na sequência do golpe Palma Carlos, os poderes do primeiro-ministro são consideravelmente alargados107.
Crescentemente isolado no aparelho de Estado, mas longe de se
resignar, Spínola irá tentar, a todo o custo, alterar a situação. No seu
discurso na cerimónia de tomada de posse do novo executivo, onde
o tom catastrofista já se insinua, inicia os seus inquietantes apelos à
maioria silenciosa:
«Não podemos consentir que à sombra da liberdade se instalem ditaduras […]. Não se fez uma revolução para que o poder apenas passasse
de um extremo a outro à custa do Povo Português. E não tenhamos, a
tal respeito, qualquer ilusão. Ou a maioria silenciosa deste País acorda
e toma a defesa da sua liberdade, ou o 25 de Abril terá perdido perante
o Mundo, a História e nós mesmos, o sentido da gesta heróica de um
povo que se encontrou a si próprio. E com esse desengano se esfumarão
as nossas esperanças na democracia»108.
Na sequência da sua ampla participação no novo executivo, a
Coordenadora do MFA sofre uma restruturação. Para os lugares deixados vagos pelos seus quatro elementos que integram o governo, são
nomeados Vasco Lourenço, Pinto Soares, Franco Charais e Canto e
Castro.
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Quadro n.º 4
2.ª Comissão Coordenadora do MFA
(Julho-Setembro de 1974)
Ten.-cor. Manuel Ribeiro Franco Charais (Exército)
Cap. Vasco Lourenço (Exército)
Cap. Duarte Nuno Pinto Soares (Exército)
Maj. José Bernardo Canto e Castro (F. Aérea)
Cap. José Gabriel Coutinho Pereira Pinto (F. Aérea)
Cap.-ten. Carlos Almada Contreiras (Armada)
Cap.-ten. Vítor Manuel Trigueiros Crespo (Armada)
Dispondo, nesse momento, de uma grande coesão, a nova Coordenadora desdobra-se em iniciativas, quer a nível interno (promovendo reuniões para estudo de problemas, definição de estratégias
e «contagem de espingardas») quer externo. É neste contexto que
lança a ideia de uma «campanha militar de esclarecimento» e cria,
no mesmo dia da tomada de posse do II Governo, a 5.ª Divisão, sob
a alçada do CEMGFA, com o objectivo de difusão e propaganda das
ideias do MFA. Spínola opõe-se terminantemente à ideia mas não
tem força para a travar. A 5.ª DIV/EMGFA, nas palavras de Ramiro
Correia, rapidamente se transforma num «laboratório revolucionário», observando «o fluir do movimento popular» e procurando
«integrá-lo ao nível do poder militar»109.
Paralelamente, começa-se a denotar a crescente sintonia de posições entre o recém-criado COPCON e a Coordenadora. Em finais de
Julho, em entrevista ao Expresso, Otelo Saraiva de Carvalho esclarece
que o Comando tem por missão «dinamizar operacionalmente todas
as forças do Exército que estejam no Continente e que têm também
a apoiá-lo algumas forças da Marinha e da Aeronaútica» de maneira a
conseguir «uma comunhão perfeita entre o povo e as Força Armadas».
Para tal era fundamental «tirar os nossos homens dos quartéis e pô-los
em contacto com as populações»110. O COPCON definia-se como um
organismo ao serviço da Revolução e um «braço armado» do MFA.
Um posicionamento fundamental na luta institucional em curso.
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Sente-se, também, a partir deste momento, uma necessidade de clarificação dos objectivos do Movimento. Antes de mais para reforçar a
sua coesão; depois, para dar a conhecer à generalidade da população,
os princípios que enformam a sua acção e os seus propósitos. É nesse
contexto que se integra a entrevista concedida por Melo Antunes à
RTP em finais de Agosto.
Uma das suas principais preocupações é manifestar a fidelidade ao
Programa do MFA e o apartidarismo do Movimento. Este apartidarismo não invalida que, apesar do período de excepção vivido, para
o MFA a institucionalização da democracia só seja possível com a
participação dos partidos políticos:
«[…] era necessário um período de transição, que ainda não se pode
considerar de democracia instaurada. É uma situação para-democrática,
de construção da democracia, que comporta muitas hesitações, muitos
recuos, muitas variantes. Mas o que nos importa é que conduza a saldo
positivo. Penso que de um modo geral o povo português foi apanhado
um pouco desprevenido. As pessoas não tinham hábitos de vida democrática, pois aqueles que têm agora a responsabilidade de pôr em prática
o projecto que tinham em mente, e que está escrito no seu programa,
também não tinham. Estamos, portanto, todos a fazer a aprendizagem
da democracia. Apesar disso tudo, creio que o saldo é positivo. Quer
dizer, imaginamos que o país vá desembocar, daqui por um ano, num
sistema de democracia pluralista»111.
Paralelamente, tornava-se urgente solucionar o problema da descolonização, processo rotulado por Vítor Crespo, em entrevista à RTP,
em meados de Agosto de 1974, como «irreversível»112. Sabemos no
entanto que, desde o início, este foi um ponto de fricção entre a Coordenadora e Spínola, opondo-se este último frontalmente à proposta de
imediata concessão da independência às colónias portuguesas.
A questão colonial na ordem do dia
Há muito que Spínola manifestara ser portador de um projecto
– assente nas teses que defendera em Portugal e o Futuro – que contrariava os desígnios do MFA nesta matéria. Na proclamação que, como
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presidente da JSN, dirigira ao país, na madrugada de 26 de Abril, afirmara a sua vontade de garantir «a sobrevivência da Nação soberana
no seu todo pluricontinental». A ideia fora retomada nas suas primeiras intervenções como presidente da República. Depois, a 11 de Junho,
na cerimónia de tomada de posse dos novos Governadores de Angola
(general Silvino Silvério Marques) e Moçambique (general Henrique
Soares de Melo), sobe de tom e afirma que «o que hoje se entende por
independência imediata seria a mais gritante negação dos ideais democráticos […]. O direito dos povos à autodeterminação, com todas as
suas consequências, não se compadece de forma alguma com a imposição, a esses povos, de opções em que não participaram». Deixando
mais uma vez implícita a ideia de realização de uma consulta popular
nas colónias, e negando a imediata concessão da independência defendida pelo MFA, Spínola esclarece que o processo de descolonização irá
ser levado a cabo «ao ritmo que as nossas capacidades permitirem»113.
Enquanto o MFA preparava a paz, Spínola tentava controlar e travar
o processo de descolonização.
A questão colonial parece ter estado também no centro do encontro entre Nixon e Spínola, a 19 de Junho, nos Açores. O então presidente da República Portuguesa refere que, nessa ocasião, teve
a oportunidade de trocar impressões sobre a «situação política
portuguesa e sobre a descolonização programada para Angola e
Moçambique»114 e, nas suas memórias, divulga mesmo um «relatório resumo» dos assuntos abordados. No entanto, permanecem
ainda muitas incógnitas quanto ao verdadeiro teor das conversações que, no imediato, foram interpretadas como mais uma tentativa de Spínola de liderar o processo de descolonização em detrimento da vontade do MFA.
Nas colónias a situação deteriorava-se. A demissão de Palma Carlos originara um surto terrorista promovido por colonos brancos em
Moçambique e em Luanda. Acusado de estar implicado numa tentativa de golpe de Estado e, por isso, sofrendo uma forte contestação do
MFA local, Silvino Silvério Marques é afastado do cargo de Governador de Angola (19 de Julho). Em solidariedade, o governador de
Moçambique Soares de Melo pede a demissão (24 de Julho). Spínola,
que acabara de sofrer um forte revés com a demissão de Palma Carlos,
perdia mais dois importantes aliados.
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25 de abril – mitos de uma revolução
A crescente pressão a que, também nesta matéria, Spínola está
sujeito fica patente no discurso de tomada de posse de Vasco Gonçalves, onde o novo primeiro-ministro revela que «recentemente o
Conselho de Estado aprovou uma Lei constitucional que completando
e esclarecendo o pensamento que presidiu ao Programa do MFA, nas
medidas a curto prazo, reconhece o direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo o direito à independência»115.
Esta lei, publicada no Diário do Governo de dia 19 de Julho, como
Lei 6/74, esclarecia o alcance do n.º 8 do capítulo b) do Programa do
MFA nos seguintes termos:
«Art.° 1: o princípio de que a solução das guerras no ultramar é política
e não militar […], implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação dos
povos.
Art.° 2: o reconhecimento do princípio da autodeterminação, com todas
as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo 1 da Constituição política de 1933»116.
Estamos perante mais um episódio pouco claro do processo revolucionário português. Nenhum dos autores que se debruça sobre o
período lhe faz referência. A explicação é óbvia: no mesmo dia em
que é divulgada pela imprensa, a Lei 6/74 é anulada e substituída
por uma outra, com o mesmo número, em que se estabelece o regime
transitório de governo para Angola e Moçambique (Lei 6/74, de 24
de Julho).
Há mesmo quem refira que a primitiva Lei 6/74 foi enviada para
o Diário do Governo à revelia do presidente da República e que
este terá publicado «uma nota declarando que essa lei era inválida,
uma vez que o seu texto não correspondia ao que fora aprovado no
Conselho de Estado e por ele rubricado»117. Independentemente de
toda esta polémica, a verdade é que era já tarde para desmentidos.
A 26 de Julho, o Conselho de Estado promulga a Lei 7/74 que, como
veremos, reproduz no essencial a primitiva Lei 6/74, consagrando
o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência.
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Crescentemente pressionado pela Coordenadora, pelo apoio popular de que esta dispunha (patente na manifestação realizada a 25 de
Julho, em Lisboa), pelo próprio Conselho de Estado, para além da
forte pressão da comunidade internacional, das negociações em curso
com a Frelimo e dos próprios soldados que, no terreno, exigem o
cessar-fogo, a 27 de Julho, na televisão, Spínola anuncia o reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência dos povos
das colónias:
«[…] é com a mais viva emoção que dirijo ao Povo Português de aquém
e além-mar, na mais perfeita coerência com a nossa tradição histórica
e com o ideário que nos preside e nele se inspirou, a declaração formal
de haver chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos
territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios
destinos. […]
A lei constitucional n.º 7/74, decretada pelo Conselho de Estado e ontem
promulgada, cria o quadro de legitimidade constitucional necessário
para que se dê imediatamente início ao processo de descolonização do
Ultramar português. Assim, e na linha da mais perfeita coerência com a
linha de acção do meu governo na Guiné, chegou o momento de o presidente da República reiterar solenemente o reconhecimento dos povos
dos territórios ultramarinos portugueses à autodeterminação, incluindo
o reconhecimento do seu direito à independência!»118
Nas suas memórias justifica-se afirmando que, «embora fosse
determinada no tempo pela pressão dos acontecimentos e pela necessidade de antecipar soluções políticas a colapsos militares possíveis»,
a Lei 7/74 mereceu a sua plena concordância: «estava em consciência de acordo com ela, pois representava, no momento histórico
que vivíamos, a única oportunidade de criarmos, ainda, uma Comunidade de expressão portuguesa». Não fazendo qualquer referência
aos episódios insólitos de que muitos fazem rodear a promulgação
desta lei, Spínola afirma ter prescindido da realização de um referendo
popular, com «plena consciência de que ela [Lei 7/74] representava a
vontade generalizada do Povo Português»119. Como observa Manuel
Alegre, este foi um «discurso verdadeiramente histórico», no sentido
que produziu «consequências históricas irreversíveis»120. Com ele, e
com a publicação da Lei 7/74, a vontade da Coordenadora prevalecia,
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impondo-se o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e a adopção de medidas tendentes à autonomia administrativa
e política dos territórios ultramarinos que as primeiras versões do
programa previra.
Refira-se, no entanto, que esta lei não se limita a reproduzir os dois
artigos da revogada Lei 6/74, de 19 de Julho, em que se determinava
«o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação dos
povos» e que «o reconhecimento do princípio da autodeterminação,
com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência
dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo
1 da Constituição política de 1933». Porque a estes, na Lei 7/74, se
junta um artigo onde se diz:
«Art. 3.º: compete ao presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório, concluir
os acordos relativos ao exercício do direito reconhecido nos artigos
antecedentes»121.
Ou seja, Spínola reservava para si a competência de concluir os
acordos relativos à autodeterminação e independência das colónias.
Num momento em que a situação de Angola estava por definir, e
apesar da Guiné ter declarado unilateralmente a sua independência
(Madina do Boé, 24 de Setembro de 1973) e das negociações com
a FRELIMO de Samora Machel se encontrarem já em andamento,
esta era uma importante vitória. Mais uma vez, ficava patente a sua
reserva mental ao processo.
Apesar deste trunfo, habilmente conseguido, não há dúvidas de
que a publicação da Lei 7/74 significa uma inversão da correlação
de forças em favor da Coordenadora do MFA. Spínola é um homem
derrotado. Incapaz de obter o reforço dos seus poderes presidenciais
e de travar a demissão de Palma Carlos, obrigado a aceitar uma Lei
Constitucional que reconhecia o direito dos povos à autodeterminação e a concessão imediata da independência aos territórios coloniais,
consciente de que a conciliação com o MFA era já impossível, Spínola
teria de procurar novas estratégias para tentar reverter a situação.
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6. O que foi o 28 de Setembro?
Um dos vectores fundamentais da estratégia de Spínola é a captação de apoios no interior das Forças Armadas. Retomando as suas
visitas presidenciais, dá agora especial importância às unidades militares de maior capacidade ofensiva como o Regimento de Pára-Quedistas de Tancos (2/8/74), os Comandos da Amadora, o COPCON
(Alto do Duque, 5/8/74) ou a EPI de Mafra (14/8/74). Estas visitas
rapidamente chamam a atenção pelo tom dos discursos que então
profere. Se já no início do mês de Julho, numa visita à Escola Naval
do Alfeite, fora considerado alarmista ao afirmar que «a Pátria continua doente» e «em perigo», agora o seu dramatismo sobe de tom.
Em Tancos, por exemplo, afirma que «não é na demolição sistemática, não é na constante agressão ideológica, não é fomentando
ódios, não é ofendendo gravemente as Forças Armadas e pondo em
causa os princípios consagrados da ética militar que se constrói o
futuro»122.
Paralelamente, Spínola projecta a criação de novas unidades de
tropas especiais que lhe fossem afectas, sendo neste contexto que surgiu, ainda em Julho, sob o comando de Jaime Neves, o Batalhão de
Comandos. Depois, congemina um plano para decapitar a direcção do
MFA «por meio de acções terroristas», tendo para o efeito contactado
o comandante Alpoim Calvão. Após, num primeiro momento, ter alegadamente pedido ao operacional da Operação Mar Verde que eliminasse Vasco Gonçalves e Melo Antunes, manda suspender a operação
e mudar de alvo: a neutralização de Costa Gomes. Segundo Sánchez
Cervelló, o atentado só não se concretizou devido ao apertado sistema
de segurança do CEMGFA123.
Documento Engrácia Antunes ou Hugo dos Santos
É ainda neste contexto de controlo das Forças Armadas que surge
o pouco claro e polémico episódio do «documento Engrácia Antunes»
ou «Hugo dos Santos». Com uns considerandos iniciais relativamente
inocentes, em que se enaltece o Programa do MFA, o documento muda
de tom a partir do seu 6.º ponto, tecendo fortes acusações e reclama
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a extinção da Coordenadora. Depois, exige-se o restabelecimento da
hierarquia militar (o que implicava, entre outras coisas, que a escolha
dos conselheiros de Estado representantes das Forças Armadas fosse
feita por um colégio eleitoral dos Conselhos das Armas e que estes
Conselhos, por sua vez, seriam eleitos pelas unidades), uma tomada
de posição contra as atitudes que pudessem comprometer a isenção
política do MFA, a integração no MFA de todos os oficiais e sargentos que jurarem o Programa, etc… terminando com um compromisso
formal de apoio à JSN.
Redigido no gabinete do então CEME, Jaime Silvério Marques, com
a colaboração de alguns oficiais afectos ao presidente da República
(tenentes-coronéis Manuel Engrácia Antunes e Abel Cabral Couto,
majores Hugo dos Santos, Ramalho Eanes, Carlos Simas e Aurélio
Trindade e do capitão António Ferreira), o documento é entregue a
Spínola com a concordância e visto de Costa Gomes. A anuência do
então CEMGFA, tido como um progressista e de posições próximas
das do MFA, a um documento deste teor não deixa de ser surpreendente. Costa Gomes esclarece ter sido informado por Hugo dos Santos, em quem depositava plena confiança, que a Comissão Coordenadora tinha conhecimento e aprovara o seu teor124. O mesmo se passa
com o então delegado da JSN na Guiné, Carlos Fabião, que, pensando
tratar-se de uma tomada de posição do MFA, o assina sem discutir.
Posto a circular pelos quartéis de todo o país no dia 15 de Agosto,
este documento recolhe um considerável número de assinaturas o que
provoca um certo entusiasmo nas hostes spinolistas.
A resposta da Coordenadora do MFA é rápida e incisiva: numa
vasta acção de mobilização junto de várias unidades, faz saber que o
objectivo desta campanha era o controlo absoluto do poder por parte
de Spínola. Paralelamente, num óbvio recuo da sua posição inicial,
Costa Gomes envia uma circular a todas as unidades «condenando a
campanha de insinuações e boatos, dirigida contra os militares que se
distinguiram no 25 de Abril» orquestrada «pelos sectores reaccionários que se opõem, a todo o custo, ao cumprimento dos objectivos do
Programa do MFA» (22 de Agosto)125.
A posição do então CEMGFA clarifica-se quando, no dia seguinte,
a imprensa divulga um novo comunicado da sua autoria, legitimando
a actividade da Coordenadora do MFA126.
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Documento Engrácia Antunes ou Hugo dos Santos (Agosto de 1974).
(Arquivo Associação 25 de Abril.)
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Documento Engrácia Antunes ou Hugo dos Santos (Agosto de 1974).
(Arquivo Associação 25 de Abril.)
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A ofensiva spinolista tinha, mais uma vez, falhado e a Coordenadora saía reforçada deste novo embate onde Costa Gomes toma uma
posição abertamente em seu favor.
À medida que nos aproximamos do final do Verão de 1974, a fragilidade da posição de Spínola torna-se evidente. Apesar do relativo
controlo que ainda mantinha no interior da JSN, consolidado com
a ausência de Rosa Coutinho (recém-nomeado Comandante-Chefe
das Forças Armadas e da Junta Governativa de Angola), as recentes
tomadas de posição do CEMGFA em favor da Coordenadora do MFA
debilitavam a sua posição. Mesmo no que diz respeito ao controlo do
processo de descolonização, o seu poder era cada vez mais reduzido.
A este respeito é sintomático o episódio recordado por Manuel
Monge:
«Em relação à descolonização, recordo que, em Agosto, o Dr. Mário
Soares e o Dr. Almeida Santos deslocaram-se a Dar-es-Salam. Quando
regressaram, deslocaram-se ao Buçaco, onde estava o presidente Spínola, queixando-se ter havido uma negociação feita paralelamente pelo
MFA, mais concretamente pelo Melo Antunes, à revelia da delegação
oficial. Então o general Spínola começou a sentir-se impotente e estava
a preparar-se para se ir embora»127.
Crescentemente isolado no aparelho de estado e militar, ameaçando
constantemente demitir-se, restava-lhe apelar à maioria silenciosa,
numa tentativa de captar apoios dos sectores da direita civil para reverter a situação. A ideia não era nova. Pouco antes da sua demissão de
primeiro-ministro, em entrevista ao Diário de Notícias, Palma Carlos
deixara o apelo no ar: «As maiorias silenciosas têm de sair do seu comodismo ou do seu temor e de se pronunciarem abertamente»128. A expressão usada pela primeira vez por D. António Ferreira Gomes em Maio
de 1974, encontra em Spínola o seu maior arauto no Verão de 1974.
As forças políticas moderadas que detinham alguma credibilidade
ignoram estes apelos. O PPD, além de entender que a descolonização
era necessária, tivera uma má experiência ao apoiar Spínola na crise
Palma Carlos. O CDS, por seu lado, consciente da clara desvantagem
de Spínola, recusa-se a embarcar nesta aventura. No entanto, os apelos à maioria silenciosa encontram eco em sectores da extrema-direita,
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nomeadamente nos que gravitavam em torno do Partido Liberal.
A ideia era criar as condições para que Spínola proclamasse o estado
de sítio e assumisse plenos poderes.
O processo conspirativo da maioria silenciosa desenrola-se num
curioso paralelo com a aceleração do processo de descolonização.
Há mesmo quem integre os acontecimentos do 7 de Setembro em
Moçambique nesta teia conspirativa129. Sem termos a pretensão de
exaustividade, analisemos alguns marcos fundamentais desta complexa cronologia.
A maioria silenciosa mobiliza-se
Depois de acções pontuais, desencadeadas sobretudo na sequência
da demissão de Palma Carlos, a verdadeira mobilização das organizações de extrema-direita começa dois dias depois da assinatura do
Acordo de Lusaca que estabelece 25 de Junho de 1975 como a data de
independência de Moçambique. Assim, a 9 de Setembro, realiza-se em
Lisboa uma reunião que conta com a presença de membros do Partido
do Progresso, Partido da Democracia Cristã e Partido Liberal, onde se
iniciam os preparativos para a manifestação da maioria silenciosa.
Apesar de afirmar ter sido informado das acções deste grupo apenas
uma semana antes do 28 de Setembro, os apelos de Spínola à maioria
silenciosa intensificam-se a partir deste momento. A 10 de Setembro,
na cerimónia oficial de independência da Guiné-Bissau, alerta para os
perigos do processo de descolonização em curso – «Terá assim de distinguir-se entre uma descolonização autêntica e o apressado abandono
à satelização por terceiros; isto é, entre uma descolonização autêntica
e a entrega das populações dos territórios africanos ao arbítrio de
novas ditaduras» – e para o que considera o «assalto sistemático dos
centros de decisão» levado a cabo por «grupos à margem de toda
a ordem jurídica e até institucional»130. No dia seguinte, um novo
apelo para que «a maioria silenciosa do povo português reaja contra
o comunismo». Se a batalha de Spínola contra a «indisciplina, a anarquia e o caos» tinha começado durante as suas visitas presidenciais de
Julho e Agosto de 1974, este era «o sinal exterior da arrancada para a
operação maioria silenciosa»131. A 13 de Setembro, o Partido Liberal
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começa a enviar circulares convocando para uma manifestação nacional de apoio ao presidente da República.
Fortalecido por este movimento conspirativo, disposto a pelo
menos «salvar» Angola, Spínola encontra-se com Mobutu Seko na
Ilha do Sal, em Cabo Verde (14 de Setembro). A este respeito, tentando expressar o sentir do seu antigo chefe militar na Guiné, Ramalho Eanes observa:
«Aceitou-se a independência da Guiné-Bissau, Moçambique está negociado em Dar-es-Salam e em Lusaca com a FRELIMO… Spínola vai
aparentemente perdendo. Mas existe ainda Angola por descolonizar e
Angola é um problema complicado: tem uma burguesia forte, que não
é apenas branca, ao contrário daquilo que muitos disseram – é uma
burguesia mestiça. Por outro lado, há um número muito grande de elementos que participaram nas Forças Armadas Portuguesas, nomeadamente colonos, que estavam comprometidos connosco. Spínola entende
que uma descolonização feita sob o modelo moçambicano ou guineense
poderia ser um grande problema. E apesar de a Guiné e Moçambique
praticamente terem assegurada a sua independência, aliás ambicionada
pelo próprio Spínola, este pensa, ainda, em Angola.
Spínola entende que o modelo de entrega ao partido armado pode ser
impedido e que se pode encontrar outra solução. E vai empenhar-se
nisso. Tenta mobilizar as unidades, tenta alianças políticas, vai mobilizar a sociedade civil» 132.
No encontro da Ilha do Sal, o presidente da República terá obtido
do seu homólogo do Zaire a promessa de não intervenção na descolonização de Angola. Nem tudo estava perdido.
Na madrugada de 18 para 19 são colados cartazes nas principais
artérias de Lisboa, apelando à mobilização para uma manifestação de
apoio ao presidente da República. A 25, é anunciada a data da sua
realização: 28 de Setembro. Entramos em contagem decrescente.
Os acontecimentos do dia 26 fazem aumentar a confiança de Spínola no sucesso da iniciativa. Primeiro, pela calorosa aclamação de
que é alvo no Concurso Hípico Internacional de Lisboa, onde recebe
um cartaz da maioria silenciosa e se escutam apelos à participação na
manifestação. À noite, na tourada organizada pela Liga dos Combatentes no Campo Pequeno, é novamente vitoriado por uma assistência
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que vaia o primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Tudo apontava para
uma grande mobilização em seu favor e, por isso, ignora os apelos que
lhe são feitos para que cancele a manifestação.
A estratégia de Spínola clarifica-se quando, a 27 de Setembro,
propõe a demissão do primeiro-ministro à JSN. A sua intenção é reafirmada na reunião de Conselho de Ministros que promove depois em
Belém, fundamentando-a naquilo que classifica como uma situação
«de caos e desordem, anarquia, ruína da economia»133. Apesar da
oposição que a maioria do Conselho lhe manifestou, tenta a adopção de medidas para garantir a realização da manifestação no dia
seguinte e ameaça ele próprio tomar medidas excepcionais. A recusa
do governo em se submeter ao ultimato de Spínola seria apenas o primeiro revés que irá condenar ao fracasso a manifestação da maioria
silenciosa.
Confiante no sucesso do «golpe», Spínola menosprezou ainda
dois elementos determinantes no desenlace deste episódio. Por um
lado, «a força das massas populares» e, por outro, «a capacidade
do PCP e do movimento operário para, após o inesperado ultimato,
nas poucas horas de uma noite, mobilizarem as massas para uma
intervenção»134. A mobilização sindical começa na noite de 27 para
28. Os «Grupos de Vigilância Antifascista» distribuem comunicados apelando à população para que saia à rua e impeça a realização da manifestação. Nos acessos a Lisboa são erguidas barricadas
para controlar a eventual entrada de armas e o COPCON inicia uma
operação de detenção de vários indivíduos «suspeitos de implicação
num golpe contra-revolucionário». PCP e MDP/CDE mobilizam os
seus militantes. O projecto da maioria silenciosa fica definitivamente
comprometido135.
Em Belém vivem-se também momentos de tensão. Chamado à presença do presidente da República, Vasco Gonçalves é «convidado» a
demitir-se. Durante toda a noite presidente da República, primeiro‑ministro, CEMGFA, ministro da Defesa, comandantes do ­COPCON,
GNR e PSP mantêm-se reunidos. No dia seguinte, Spínola cede e
demarca-se da manifestação. Chegara a hora da Coordenadora.
Numa derradeira tentativa de concentração de poderes, Spínola
propõe a dissolução da Coordenadora. Como resposta, esta apresenta
uma lista de exigências que passavam pela imediata demissão de alguns
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dos oficiais afectos a Spínola (Galvão de Melo, Diogo Neto, Silvério
Marques, todos da JSN, e Sanches Osório, ministro da Comunicação
Social) e pela «confinação da actividade do general Spínola à sua esfera
de presidente da República, não interferindo nas acções de competência do Governo Provisório e do Chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas»136. No Conselho de Estado, entretanto convocado,
Spínola constata uma vez mais o seu isolamento. Para já, segundo se
confirma pelo comunicado da Coordenadora divulgado pela imprensa
da manhã de 30 de Setembro, os generais Manuel Diogo Neto, Jaime
Silvério Marques e Carlos Galvão de Melo são demitidos «por não
cumprirem de acordo com o espírito que norteia o MFA»137.
A Coordenadora mantém uma enorme serenidade ao longo do
processo, vendo como improvável o risco de uma demissão do presidente da República. Estas previsões estavam, no entanto, completamente erradas. Convocada nova reunião do Conselho de Estado
para a manhã de segunda-feira, 30 de Setembro, e perante as câmaras
de televisão, Spínola anuncia a sua renúncia por ter concluído «ser
inviável a construção da democracia sobre este assalto sistemático
aos alicerces das estruturas e instituições por grupos políticos cuja
essência ideológica ofende o mais elementar conceito de liberdade».
E remata: «o meu sentido de lealdade inibe-me de trair o povo a que
pertenço e para o qual, sob a bandeira de uma falsa liberdade, estão
preparando novas formas de escravidão»138. O homem que, na sua
chegada à Presidência da República, se comprometera em servir o país
«com a mesma isenta devoção com que sempre o servi, como soldado
que me orgulho de ser» revelava que não pretendia transformar-se
num presidente decorativo.
São muitas as descrições e interpretações sobre os acontecimentos
de 28 de Setembro. A recolha de alguns desses depoimentos revela-se
fundamental para o entendimento deste episódio marcante do processo revolucionário português.
Nas suas memórias o líder centrista Freitas do Amaral afirma que
o 28 de Setembro não foi «um momento de carácter revolucionário»,
mas, pelo contrário, «foi uma rápida reacção de autodefesa por parte
do PCP, que apanhou um grande susto». Porque, explica, perante a
iminência do 28 de Setembro, «o PCP entendeu que essa manifestação,
a ter êxito, alteraria profundamente a correlação de forças existente,
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em favor de um presidencialismo de tipo “gaullista”, senão mesmo
de uma nova ditadura que os designaria como principal adversário
a combater». É neste contexto que, em seu entender, promove essa
fortíssima mobilização que acaba por impedir a sua realização139.
Algo isolada no conjunto de testemunhos de que dispomos, esta
interpretação é frontalmente contestada por Álvaro Cunhal ao observar que há muito o PCP advertira sobre o poder das «forças da reacção» e para a conspiração em curso. Por isso, quando se torna óbvia a
preparação de um «novo golpe», os comunistas começam a preparar
a resposta sendo a este respeito bastante elucidativa a tomada de posição da Comissão Política do Comité Central do PCP, a 24 de Setembro, denunciando que a manifestação da maioria silenciosa «visa,
efectivamente, a liquidação de todo o processo de democratização e de
descolonização em curso» e, por isso, é «indispensável a intensificação
da vigilância e a acção pronta das massas trabalhadoras e de todos os
democratas e antifascistas»140.
Depois dos sucessivos confrontos travados desde o dia 25 de Abril
entre Spínola e a Coordenadora do MFA, o 28 de Setembro assume o
carácter de mais uma batalha que não será a definitiva. Por agora, no
entanto, ao tornar manifesta a incapacidade de Spínola de afastar o
MFA do processo político, o 28 de Setembro representa uma importante vitória para a Coordenadora. Encerrava-se, assim, a primeira
fase da transição, claramente dominada pelo confronto Spínola-Coordenadora.
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