Capítulo 1 Diferente do que poderia parecer, eu não estava exatamente dormindo. Se estivesse, o professor poderia ter ficado me chamando e pigarreando do meu lado o resto da aula, que eu nem ia me abalar, mas meu cérebro estava só parcialmente afundado na preguiça, e eu não estava muito ligada de que era comigo. Afinal, Saeyuri não era meu nome verdadeiro, e eu ainda estava me acostumando a ele. — Sim. — Eu falei, sentindo minha língua meio mole. — Senhorita Saeyuri, eu não aprecio que meus alunos adormeçam durante as aulas, mas começar uma dormindo, considerando que esse é seu primeiro dia nessa escola e que estamos no meio do semestre, não me deixa muito seguro quanto a sua presença nessa instituição. Devo me preocupar com a possibilidade de que essa situação se repita? — Não, senhor. — Sorri pra ele. Não que eu estivesse achando engraçado, ou algo assim, mas eu já tinha a consciência de que, se seus novos coleguinhas farejam qualquer tipo de medo ou embaraço diante a um professor, você é meio que automaticamente eleito o suculento da turma. — Peço perdão por tê-lo desrespeitado. — Certo. — Disse o professor, ajustando os óculos na ponta do nariz. — Venha até a frente, e se apresente devidamente. Então eu fui, e, de lá, pude encarar a fatídica realidade de que meus colegas me conheciam havia apenas dois minutos e alguns segundos, e já não tinham gostado muito de mim. O que não me incomodou, pra ser sincera. Aquela era eu: sempre não dando a mínima. Nem imagino o que seria de mim se não fosse assim. — Bom dia. Meu nome é Saeyuri Yuuki, é um prazer conhecê-los. Por favor, tenham paciência comigo. — Disse, e andei para o meu lugar. Yuuki também não fazia parte do meu nome. Meu verdadeiro nome era Khaiya Kuran. Uma menina colocou o pé na minha frente, bem propositalmente, enquanto eu passava, mas meus reflexos não são, assim, tão afetados pela minha sonolência, então eu apenas desviei, sorri pra ela e disse: — Nossa, me desculpe. Eu quase pisei no seu pé. Ela fez uma cara engraçada, sibilou um “então preste mais atenção da próxima vez” e riu, murmurando com suas amigas que eu era uma garota estranha. E eu voltei ao meu lugar. Eu não gostava de assistir aulas, mas achava importante ter um diploma verdadeiro, por isso, e também por achar que teria que passar no mínimo alguns anos no país, estava ali, embora assuntos de ensino médio não me interessassem quase nada. Eu nem entendia direito quando o professor falava, em primeiro lugar. Durante os intervalos entre as trocas de professores, eu deixava minha cabeça escapar por entre as mãos e cair em cima do caderno, dava uma cochilada, e esperava o sermão do professor da aula seguinte. Alguns nem me davam, e eu dormia direto. Quando deu o horário de almoço, nem fiz grandes planos de me mover. Continuei com a cabeça afundada entre meus braços e torci pra ninguém tentar roubar as minhas paradas. — Ei. — Uma voz falou do meu lado. Levantei a cabeça pra ver quem era e me preparei para ser bullyinada. A menina parecia um gangster, e não estava exatamente sorrindo. — Oi? — Falei, sentindo minha língua mole de novo. — Oi! — Disse uma das meninas com ela. Essa sorria até demais, e olhava pra mim como se falar comigo fosse algum tipo de último desejo, ou coisa do gênero. — Prazer em conhecê-la, essas são Saki Hanajima e Arisa Uotani — ela disse, gesticulando para ambas, de maneira a não me esclarecer de forma alguma quem era quem — e eu sou Honda Tohru. É realmente um prazer conhecê-la! Pensei em dizer “okay”, mas a menina era tão bonitinha e sorridente que precisei sorrir de volta. — É um prazer conhecê-la também, Honda Tohru. Me desculpe, quem é Hanajima e quem é Uotani? — Eu sou Uotani — disse a menina gangster — e essa é Hanajima. Hanajima também era bem animada. Para quem parecia estar em um cemitério, enterrando o tio distante da família, eu quero dizer. — Certo. — Sorri pra elas. E continuei sorrindo por um tempo. — Posso fazer alguma coisa por vocês? — Ah! — Exclamou Tohru, se inclinando pra mim como se tivesse feito alguma coisa muito errada. — Eu queria saber se você... Ahm... Não gostaria de almoçar conosco? — Eu adoraria, mas não tenho o costume de comer a essa hora e por isso não trouxe nada. — Continuei sorrindo. A felicidade daquela menina era tão contagiante que eu não sabia ao certo se conseguiria tirar aquele sorriso idiota da minha cara algum dia. — Ah, não tem problema! — Disse Uotani, sacudindo a mão pra mim. — Trouxemos bastante, você pode vir comer com a gente. Se você quiser, quer dizer. — Sim, por favor! — Insistiu Tohru. Aquilo parecia outro desejo a realizar antes da morte, então senti como se fosse ter remorso se não cooperasse. Fui com elas. O pátio da escola tinha bastante jardim, então nós nos sentamos na grama: as três no sol, e eu me espremendo numa sombra que encontrei. — Me diz uma coisa: — pediu Uotani — por que você usa o uniforme masculino? — Tenho problemas de pele. — Foi o que eu disse ao diretor. Era uma desculpa bastante válida, já que, depois que meu irmão me mordeu, embora, por uma razão que explicarei adiante, eu não tenha me tornado uma vampira, minha pele perdera pigmentação, e assim também o meu cabelo, que começara a nascer branco e frágil como os outros pelos do meu corpo. Eu não tenho nenhuma explicação pra isso, simplesmente começou a acontecer e se espalhou por todo o meu corpo, como uma doença maluca. Não fazia nenhuma diferença pra mim, na real. Eu nunca tinha passado protetor solar antes, e continuava não passando. Como não começaram a eclodir bolhas na minha pele, nem liguei. Estava extremamente grata por ter mudado tanto de aparência sem nem precisar fazer absolutamente nada. A propósito, eu também usava aquela desculpa para explicar porque sempre usava luvas. A coisa toda dos problemas de pele, eu quero dizer. Mas, sobre o uniforme masculino, a verdade era que, bom, eu queria que me confundissem com um menino. Só que, como isso não funcionava logo de cara com todo mundo, decidi deixar que cada um pensasse o que quisesse, sem contradizer ninguém. — Ah! — Ela, Uotani, exclamou, com a boca cheia de comida, se inclinando pra frente e olhando pra mim com os olhos arregalados. — Você é albina? — Não, — eu ri — eu... Meu Vigiante apitou e eu levantei com um salto. — Me desculpem! — Gritei pra elas, correndo em direção à sala. — Eu já volto! Quando cheguei, flagrei umas meninas da minha sala mexendo na minha mochila. Eu tinha deixado o meu computador carregando na tomada e, portanto, o zíper estava meio aberto. Talvez aquilo fosse um convite para revirar minhas coisas por aquele canto do planeta, eu lá ia saber. — Me desculpem, — eu as assustei, provavelmente não perceberam quando me aproximei — mas eu meio que preciso disso aí, será que vocês poderiam, hum, não me roubar? A menina que tinha tentado me fazer tropeçar mais cedo se levantou e empertigou-se. Ela estava com meu Token na mão e parecia pronta para me dizer algo pouco agradável, quando sua expressão se desarmou totalmente e ela lançou um olhar vago para algo além de mim. Eu me verei, esperando ver um espírito ou, no mínimo, uma pessoa bem assustadora. Mas era só um menino parecido com uma menina. — Está tudo bem? — Ele perguntou, sem se dirigir a ninguém especificamente. — Claro. — Eu sorri. — Eu estava mostrando às meninas uns aparelhos que eu personalizei. — Virei-me pra menina abobalhada e estendi minha mão pra ela. — Pode emprestá-lo pra mim por um segundo? — C-claro! E-eu acabei de lembrar que tenho que fazer... Uma coisa. Tchau! — Ela disse, praticamente jogando o Token em mim e saindo com sua gangue de patinhas atrás dela. Sacudi o aparelhinho na altura do meu rosto e dei um sorriso amarelo para o menino. — Tudo okay. — falei. — Uau — ele disse, olhando para o Token, bastante impressionado — você fez isso? Eu posso ver? — Ah, sim, claro. O menino o girou entre os dedos, examinando-o. — O que é isso afinal? — Ele me perguntou. — Um pen-drive. Normal. — Menti. — É pra ele ficar piscando desse jeito, mesmo? — É, sim. Eu não posso perdê-lo. As coisas que eu não posso perder, eu ponho para me avisarem se outra pessoa pegar. Estiquei a mão e o menino me entregou o aparelho, que parou de piscar no mesmo instante. — Viu? — Sorri pra ele. — Me desculpe, mas como é que você se chama? — Desculpe a mim, por não me apresentar. Meu nome é Sohma Yuki, é um prazer conhecer você. Sou o representante de turma, então, qualquer coisa que precisar, fale comigo. — Ah! Certo! Sinto muito, Sohma, mas eu meio que abandonei umas meninas que estavam sendo bem legais comigo para vir aqui pegar minhas coisas, então, hum, acho que eu tenho que voltar pra lá agora. — Claro. Por favor, não se sinta incomodada comigo. Peguei minhas coisas e acenei pra ele. — Foi um prazer conhecê-lo, até depois. — E saí andando. Voltei para onde estavam Tohru e suas amigas, pensando no quão Yuki lembrava certo alguém. Talvez toda aquela educação se devesse ao fato de ele ser o representante, mas, de qualquer forma, o garoto agia como se escondesse algo. Eu sabia disso, porque... Bem, era a voz da experiência. Voltei para junto das meninas. Elas tinham me esperado, o que achei muito legal da parte delas. — Está tudo bem? — perguntou Uotani. Tohru voltou a cabeça dela pra mim, com a mesma pergunta praticamente saltando de seu rosto. Ela era uma menina bem engraçada. — Claro! — Sentei-me de novo à sombra. — Só achei que alguém poderia estar mexendo nas minhas coisas, então resolvi trazê-las pra cá. — Ah! — Tohru gritou surpresa, quase deixando uma concha de arroz cair na toalha que forrava o chão. — Você pode sentir ondas elétricas também? Eu ri. — O que? Uotani também soltou uma risada. — A Hanajima aqui pode sentir ondas elétricas. — Ela explicou. — Basicamente, ela sabe quando algo vai errado. Olhei para Hanajima, que se limitou a beber chá sem fazer qualquer comentário. — Ah, isso, não, não, eu não posso fazer nada do gênero. — Ri de novo, sacudindo minhas mãos a minha frente. — Então — Hanajima falou. Fiquei bastante impressiona por ouvir a voz dela. Não estava esperando que ela fosse se dirigir a mim tão cedo — como soube que estavam mexendo nas suas coisas. — Eu, eeer, não sabia. Só achei que, hum, poderia ser... Hanajima sustentou seus olhos em mim, mantendo a pergunta. — Eu, hum... — Alcancei o Vigiante em meu bolso e mostrei a elas. — Esse aparelho me avisa se alguém, que não seja eu, toca nas minhas coisas. Eu as uso para fazer trabalhos, então prefiro estar por perto quando alguém mexe nelas. Ele também me diz onde estão, para o caso de eu perdê-las. Entreguei-o à Hanajima, que apenas olhou para ele, como se esperasse que fosse começar a sapatear ou recitar poemas. — Caralho! — Uotani esticou a mão, pedindo o aparelho. — Que louco. O que é isso? É, tipo, que nem aqueles bichinhos virtuais? — Sim. — Sorri pra ela, enquanto Uo mostrava à Tohru, que tão logo ficou encantadíssima. — Eu posso alimentá-lo e fazer carinho nele se eu quiser. Ele não vai morrer se eu não fizer, mas aí também não vai evoluir. — Me mostra? — Ela pediu. Cheguei perto dela e mostrei-lhe como dar comida ao bichinho. Para a alegria de todas nós, calhou de ele evoluir. — Fala sério! — Uo ficou toda animada. — Onde você arranjou esse troço? — O aparelho é um celular normal. Já o bichinho foi um programa que eu coloquei nele. — E o que mais ele faz? — Hana perguntou. Tohru tinha passado o celular pra ela, e, desde então, ela não parara de alimentá-lo. Não sei por que razão, mas fiquei feliz quando ela falou comigo de novo. — Nada demais, — menti — é só um bichinho. — E foi você que o criou? — Tohru perguntou pra mim. — Não, não. — Eu continuei mentindo, rindo meio sem graça. — Mas eu o tenho no meu computador. Se quiserem, mando pra vocês. E acho que foi assim que Hana me classificou como material amigo. Capítulo 2 Algumas semanas se passaram. Eu já estava me acostumando à vida de sem teto e ao fuso horário, então, naquela manhã, acordei na hora certa. Verifiquei minhas coisas na mochila e saí. Viver numa barraca tinha suas vantagens: eu não precisava me preocupar com assuntos inúteis, que só ocupam tempo, como, por exemplo, arrumar a cama, ou preparar café da manhã. Por outro lado, o tecido era só semipermeável. Eu achava que, quanto menos eu comprasse ou alugasse coisas que precisassem de informações pessoais minhas para fechar a negociação, mais difícil seria, para meu irmão, me encontrar, se ele tentasse me procurar. E estava certa. Boatos que foi, mesmo, difícil me encontrar. O lugar que eu tinha escolhido para viver era bastante arborizado. Eu gostava. Não tinha barulho, nada de carros passando, nada de vizinhos, não tinha gente... Eu achava. Até descobri que, na verdade, tinha gente, sim. Tentei contornar a casa sem ser vista. Eu devia ter me desviado um pouco do caminho para ir parar ali. Se eu soubesse que havia uma casa pelas redondezas, teria me enfiado em outro mato. — Nossa, uma garota vestida de garoto no meu quintal! Apertei os olhos, dando adeus com desgosto a minha esperança de sair daquela numa boa. E então me virei e dei meu sorriso mais que-belo-dia! para o homem de pé na varanda. — Me desculpe pelo incômodo. Eu estava passeando por aqui e acabei me perdendo, e invadindo a sua casa. — Nããã- — ele sacudiu a mão pra mim, sentando-se no chão. — Eu não me incomodo. Só achei estranho porque dificilmente vemos pessoas andando por aqui. Afinal, como veio parar nesse buraco? — Eu, ham... — Pensei em dizer que morava ali por perto, mas, geralmente, quando pessoas têm casas em lugares tão isolados assim, elas sabem que ninguém mora por perto. A não ser que você tenha chegado durante a noite anterior e acampado ali. — Eu gosto de caminhar um pouco de manhã antes de ir pra escola. E, como sou uma pessoa toda natureza, quando vejo um mato, preciso me embrenhar nele. Sabe como é. Instinto selvagem. É mais forte do que eu. — Fiquei lá, rindo. — Uau, os doze signos chineses! — Exclamei, apontando para um conjunto de doze pedras pintadas para parecerem animaizinhos, tentando desviar a atenção da minha explicação idiota. — São sim, eu os trouxe pra fora para que a tinta secasse mais rápido. — Ele deu uma gargalhada exagerada. —Desculpe, é que você não parece alguém que se interessa por esse tipo de coisa? — Ah, eu? Não, me interesso, sim. Me interesso muito. — Na verdade, eu não me interessava. — Ah, é? Então, você conhece a lenda? — Ahm... — Quase disse que sim, mas o moço parecia disposto a puxar conversa, e ia ficar meio chato se ele começasse a querer que eu comprovasse meu suposto conhecimento. — Não. Mas eu sei que o ponto fraco das pessoas que nascem no ano do macaco são as cochas. Ele deu outra boa gargalhada. E começou a me contar a lenda, sem que eu pedisse. Em resumo, deus tinha convidado todos os animais para uma festa, mas o rato disse ao gato que ela só aconteceria no dia seguinte ao que estava realmente marcada. Então, enquanto o gato trollado e enganado ficava dormindo em casa, o rato subia nas costas do boi e era o primeiro a chegar a tal da festa. Fiquei pensando. Quanta marotice. — Ah, certo. — Eu falei, olhando para o meu celular. — Bem, eu gostei muito das pedras da sua filha — não sei por que, em algum momento, eu assumi que o cara tinha uma filha, e que as pedras pertenciam a ela — mas eu tenho que, ahm... O cara começou a rir muito alto de novo. — Eu não tenho filha! — Ele riu mais um pouco. — Tenho só vinte e sete anos, sou solteiro, e muito novo para ter uma filha! A propósito, quantos anos você tem... — Cale a boca, Shigure, se não quiser que eu a encha de esterco pra você. — Disse Yuki, batendo na nuca de Shigure com sua pasta. Não sei se preciso dizer, mas eu me senti bem mais desconfortável ao saber que alguém da minha classe morava naquela casa. — Bom dia, senhorita Saeyuri. Por favor, não dê confiança ao meu primo. Ele pode engravidá-la só de olhar pra você por mais de três minutos. — Uau! Essa deve ser, realmente, uma técnica dominada por bem poucos praticantes. — Eu sorri, me sentindo muito mais sem graça. — Bom dia! E, não precisa se preocupar, nós só estávamos conversando. — Está vendo?! Só estávamos conversando! Não precisava me causar um traumatismo! O que diabos você carrega na sua mala, Yuki? Um dicionário?! — Dois dicionários. Senhorita Saeyuri, por que a senhorita está aqui? — Eu me perdi por aí. — Gesticulei. — Por favor, me chame de Yuuki. Eu meio que prefiro. — Falei, porque Killua disse que eu devia. Para fazer meu nome soar mais natural, eu acho. — Claro — ele sorriu, inclinando a cabeça — pode me chamar assim também, se preferir. Nós rimos. Pelo visto, agora tínhamos uma piada interna. — Yuuki! — Disse Shigure, parecendo já totalmente recuperado de seu anteriormente dramático traumatismo. — Vocês têm o mesmo nome? — Não sei, acho que se escreve diferente? — Olhei para Yuki. — É diferente, sim. — Ele continuou sorrindo pra mim. — Ah. Sim. É ótimo. Bem, eu tenho que ir indo, hum, quer dizer... Como faço pra sair daqui? É, hum, por ali? — Sim. Mas eu posso acompanhá-la, já estava mesmo de saída. — Sim, sim, crianças. — Shigure falou, ficando de pé. — Vão com cuidado, que o tio precisa trabalhar. E, Yuukizinha, você tome cuidado extra. O Yuki aqui tem essa cara de moça, mas, na verdade, ele também pode... Aí Yuki bateu nele com tanta força que eu fiquei imaginando se aquele tipo de agressão não dava cadeia, mesmo que entre primos. E então nós fomos embora. Tive uma conversa bastante tranquila, entediante e superficial com Yuki no caminho para nossa escola. Coisas como “está gostando da escola?”, “já se acostumou ao fuso horário daqui?” e blábláblá. Não que Yuki fosse uma pessoa tediosa. Eu gostava bastante dele, ele era bem simpático. Mas duas pessoas que escondem o que são não têm, mesmo, como conversar sobre qualquer coisa que ultrapasse o nível superficial, e eu já tinha aceitado isso nele, embora Yuki não tivesse percebido, ainda, que o mesmo valia para mim. Pelo que fiquei muito grata. Meu dia escolar foi totalmente normal. As meninas que me bullyinavam me bullyinaram naquele dia um pouco mais, aparentemente porque eu tinha vindo andando com Yuki para a escola, algo que eu, pelo que deu pra perceber, estava terminantemente proibida de fazer. Nada que me preocupasse. Eu estava bem acostumada a meninas com obsessões compulsivas por criar fãclubes com a nenhuma-finalidade-real para meninos que não davam a menor bola pra elas. Mas, pelo menos, na escola do meu pai eu podia botá-las pra correr, sem ter que me preocupar em estragar meu disfarce. Hanajima me disse que elas faziam isso com todas as meninas, mas que um dos motivos pelo qual deviam estar me dando uma marcação especial, era por terem achado de primeira que eu fosse um menino bonito, mas, ao descobrirem que eu era uma menina, tiveram um choque tão grande que me elevaram inconscientemente à inimiga número um em sua disputa imaginaria pelo amor do pobre garoto. — Sim, eu causo essa reação nas pessoas. — Respondi, colocando uma mão no quadril e dando uma requebrada de cintura. Quando o período de aulas terminou, tive que ir à casa de Satoshi, um “amigo” do meu pai que estava “resolvendo” algumas coisas pra mim, e evitando que eu me expusesse demais. A princípio, eu ia ficar na casa dele, mas, depois de dois dias, cheguei à conclusão que era melhor dar um jeito e tentar me virar sozinha do que ficar dependendo totalmente do cara. Primeiro porque ele não era muito amigo. E, segundo, porque ele, sim, me fazia ter a sensação de que corria o sério risco de engravidar. Satoshi me recebeu com bastante animação, como o de costume, e foi logo tentando me convencer a voltar a morar lá. — Satoshi, esqueça. Eu já me acomodei em outro lugar. — Murmurei, abrindo meu computador na mesa dele. — Me passe o trabalho de uma vez, quero voltar pra casa pelo menos antes da meia noite dessa vez. Ele suspirou um – eu desisto –, com um pequeno sorriso que, pra mim, significava claramente que, o que ele realmente queria dizer... Era que tentaria de novo. — É, eu sei. — Murmurei de volta. Satoshi trabalhava fazendo programas por encomenda, assim como eu. A única diferença é que eu sou boa naquilo. Mas, enfim, ele conseguira um contrato com uma empresa que, segundo ele, queria comprar a patente de alguns dos meus programas. Mas falo sobre isso mais tarde. Satoshi voltou do banheiro trazendo seu computador, e eu me perguntei por que diabos ele o teria deixado lá em primeiro lugar, mas não comentei nada. Conectei nossos computadores e usei o dele para acessar os dados. Passei quase duas horas procurando o problema, que, em si, era muito simples e pequeno. Levei cinco minutos para fazer alterações num dos programas, que resolveu o dito problema em três. — Terminei. — Anunciei, apagando tudo que era meu do computador dele e scaneando o meu para ter certeza de que ele não tinha me passado um vírus maluco para tentar invadi-lo depois. Acredite, Satoshi já tinha tentado. Ele soprou vapor de chá atrás da minha orelha. Tive a impressão de que esperava me assustar com isso, mas não dediquei muitos neurônios para meditar a respeito. — Você é muito desconfiada. — Só porque você é muito maroto, caro Pica-pau. — Sorri pra ele, fingindo entrar no jogo. — Está certo. — Ele se inclinou pra mim, soltando a caneca na mesa e apoiando suas mãos nela. — Quanto tempo você acha que Kaname levaria para chegar aqui, se, por exemplo, eu mandasse, hum, quem sabe, hoje, um e-mail pra caixa postal dele, porque, sei lá, eu não tinha nada melhor pra fazer? Fechei a tampa do meu computador e me virei para encará-lo. Satoshi parecia estar querendo me impressionar, derramando todo o seu conhecimento a respeito do meu passado em cima de mim. Mas não era como se eu esperasse que ele não fosse fazer seu dever de casa. — Nem sei, irmão. — Empurrei a mesa pra baixo atrás de mim, encolhendo os ombros. — Dois dias? Se ele estivesse com pressa, talvez um. Mas seria uma pena, porque, se ele me levasse de volta, a nossa pequena sociedade já era. — Sério? É só isso o que você tem? — Ele deu aquele seu sorriso de crocodilo. — Você não perde por não pedir pra ver. — Sorri de volta, bem inocente. Estava impressionada com o quanto tinha mudado desde que o conhecera. Eu não costumava ser tão cínica. Satoshi mordeu o lábio inferior, sem desmanchar seu sorriso, deixando as presas à mostra e olhando para as cicatrizes no meu pescoço. — Nós vamos ver isso ainda. — Ele se endireitou, me dando espaço pra sair. Ou chutar sua virilha, se eu assim desejasse. — Vamos, sim. — Falei, bem tranquila, andando até o outro lado da mesa e guardando minha tralha. — Antes de você ir, está precisando de alguma coisa? — Ele perguntou, colocando uma mão no bolso e levando a caneca até a boca. — Sim, querido, de um beijo de despedida. — Cantei, fazendo beicinho. Satoshi deu um meio sorriso e levantou uma sobrancelha. — Me liga, tá? Pisquei pra ele e sai, sem esperar que seu cérebro começasse a trabalhar na ideia de que aquilo poderia vir a ser uma abertura na minha elegantíssima muralha impenetrável, e que, com um pouco de insistência, ele conseguiria me fazer ficar. Talvez eu devesse me envergonhar, mas a verdade é que achava a pessoa que eu estava soltando bastante engraçada e inteligentemente divertida. Porque, sim, aquela era eu. Voltei para minha casa/barraca me sentindo muito responsável e independente. Meu bom humor diminuiu, no entanto, quando lembrei que teria que mudá-la de lugar, já que eu tinha vizinhos bastante reais que provavelmente eram donos da terra e, bem possivelmente, não ficariam muito contentes com uma inquilina parasitando sua propriedade. Só que a vida, irmãos, é uma caixinha cheia de surpresas. E, na minha volta, acabei encontrando os dois. — Yuukizinha! Se perdendo de novo? — Shigure assobiou, parecendo gostar de pensar que sim. — Ahn? Eu, não! Não, não, não estou perdido, é que eu perdi... Uma coisa aqui de manhã, e achei que não custava nada vir dar uma procurada. — Deve ser uma coisa realmente importante. — Yuki falou, bastante sério. — Você não devia andar por aqui à uma hora dessas. — E eu não ando, quer dizer, sempre. Só hoje. E, sim, o que eu perdi era realmente, mesmo, muito importante... Yuki parecia pronto para me explicar por que uma garota não deve andar sozinha no mato à noite, e aposto que ele teria feito isso, se seu primo não tivesse começado a gritar e apontar freneticamente para um ponto pouco definido na escuridão. — Olhem! O que acham que é aquilo? Será uma barraca?! Parece uma barraca?!!! E os dois olharam pra mim. Shigure parecia prestes a explodir, ou ter um ataque de risos, ou tentar as duas coisas ao mesmo tempo. Yuki, por outro lado, bom... Digamos que, se ele fosse ter um ataque, não seria de risos. — Você não está vivendo naquela barraca, está? — Ele perguntou, intransigente. — Que? Eu? Pufh! Não. Claro que não! Como eu poderia estar vivendo naquela barraca? Não existe a menor possibilidade. Quer dizer, eu nunca nem vi aquela barraca na minha vida... E os dois continuaram olhando pra mim. — Oookay. — Respirei. — Para efeitos futuros desta conversa, vocês estão perfeitamente lembrados que eu mencionei ter perdido algo realmente muito importante aqui essa manhã, certo? Capítulo 3 Bom. Chega o momento de toda história em que é extremamente importante revelarmos alguns pontos de nosso passado para ajudar as pessoas a entender um pouco mais sobre quem nós somos, e o que nos impulsionou a seguir pelos caminhos em que nós fomos. Então, vou começar a contar um pouco do meu passado agora, e mais tarde darei continuidade ao tópico à medida que eu achar... Que quero. Esclarecido isso, vejamos, acho que a primeira coisa que você deve saber sobre mim é que sou filha legítima de um casal de vampiros puro-sangue, e, hum, meus pais foram mortos por meu tio Rido, que apareceu alguns anos depois com um pedido formal de desculpas, explicando que suas reais intenções nunca foram matar meus pais, e que, de fato, tudo o que ele estava tentando fazer era apenas beber meu sangue até a última gota. Mas eu, assim como Harry Potter, sobrevivi a tal violento ataque a minha tão frágil existência, logo no início de minha infância, e não graças as minhas incríveis e inacreditáveis habilidades de sobrevivência, mas, boatos, que, sim, graças a minha mãe, que se sacrificou por mim. Só que, em vez de uma marca legal na testa, eu fui transformada permanentemente em humana, porque mamãe enfiou na cabeça que me permitir crescer como uma criança fraca de sangue doce, talvez, me fizesse uma pessoa mais feliz, e ninguém nunca conseguiu tirar essa ideia de lá. Ou talvez ela soubesse que meu irmão pretendia, no futuro, matar todos da nossa raça. Pura realidade. Não estou inventando nada disso. Capítulo 4 — Há quanto tempo você está vivendo numa barraca? — Yuki me perguntou. Ele ainda estava sendo todo sério a respeito. Eu meio que esperava que, uma vez que estivesse tudo esclarecido, nós poderíamos encarar a coisa como uma piada, ou uma espécie de revolta fracassada adolescente. Mas eu já estive errada antes. De qualquer forma, os dois estavam sendo bem legais quanto àquilo. Não chamaram a polícia, não me chutaram de lá, não me perseguiram com tridentes e nem correram atrás de mim gritando “saia já da nossa propriedade!”. Não. Eles foram mesmo legais, até me convidaram para casa deles pra tomar um chá. — Desde ontem à tarde. E, dessa vez, eu juro que estou falando a verdade. — Expliquei, muito séria, tentando parecer o máximo com uma adulta e o mínimo com uma criança sendo pega tirando do pote um biscoito, perto da hora do almoço. — Mas eu planejava seriamente me mudar logo que amanhecesse. A expressão dura de Yuki se abrandou um pouco quando eu disse isso. — Ah. — E então ela ficou dura de novo. — Pra onde? Pensei em dar-lhe outra mentira, mas elas não tinham me levado muito longe até ali, então imaginei que seria mais simples começar a dizer algumas verdades e ver se funcionava um pouco melhor. — Hum, pra outro mato. — Falei, mas antes que Yuki me repreendesse de novo, eu continuei. — Eu digo, em respeito a vocês, já que, tipo, vocês são donos daqui e eu invadi e nem falei nada, mas se estiverem abertos a negociar, eu poderia pagar, quer dizer, pra continuar lá. Shigure, que tinha rido que nem uma hiena louca até aquele momento, recuperou o fôlego e, de repente, já começou a falar sério comigo também. — A questão não é se você pode ou não pagar, Yuuki. O lugar em que você está morando sozinha não é nada bem frequentado à noite, em primeiro lugar. Além disso, estamos no meio de uma época de chuvas. A terra está molhada e têm acontecido vários deslizamentos. Não seria seguro pra ninguém morar ali, e com certeza não é nada seguro pra você. Agora, por que não nos explica o motivo de estar vivendo ali, e nós vemos o que podemos fazer a respeito? Era uma pergunta bastante válida, que eu estava tentando bastante evitar ter de responder. Mas ali estava ela e eu não tinha bolado nenhuma resposta satisfatória ainda, e duvidava que fosse conseguir nos próximos minutos. — Eu... — Cerrei os punhos. Não me restavam muitas opções, então achei que, talvez, continuar contando parte da verdade seria melhor do que nada. — Não posso voltar pra casa. Shigure e Yuki trocaram um olhar entre eles, como se, de alguma forma, aquilo significasse tudo. — Quantos anos você tem, Yuuki? — Shigure me perguntou. — Seus pais sabem que você está aqui? Eles sabem que você tem dormido numa barraca? — Sabem. — Afinal, diz-se que todos os segredos nos são revelados quando morremos, certo? — E eu, er, tenho quatorze, mas estou quase fazendo quinze. Sim, sim, eu estaria para quase fazer quinze em alguns poucos onze meses e não sei quantos dias. Mas ia fazer quinze, isso ia, certamente. — Houve um deslizamento. — Shigure falou, lançando um olhar vago para o lado de fora. — Mesmo? Não ouvi nada. — Declarei, seguindo seu olhar para encarar nada além da escuridão da noite. — Estou só dizendo por que parece ter sido perto de uma barraca. Mas seria muita coincidência se fosse a sua, não? — Ele riu. Já eu, bom, não achei tão engraçado. Afinal não era como se houvesse dezenas de barracas espalhadas pelo terreno. — Me deem licença. — Eu pedi, levantei-me e sai correndo da casa. Embora eu já imaginasse, não fiquei muito mais contente ao descobrir que a barraca era realmente e a minha, e que “perto”, na verdade, significava em cima. Caí de joelhos no chão, exausta só de pensar no trabalhão que teria para tirar tudo dali. Talvez fosse mais fácil comprar outra barraca. Meu equipamento de trabalho estava a salvo na minha mochila, também, então dentro da tenda tinha só umas roupas, alguns objetos de estimação, fotos pessoais... Suspirei, sabendo que não ia me desfazer de nada daquilo, e comecei a puxar terra do monte. Ela ainda estava macia. Quem sabe, eu pensei, talvez não demore tanto pra desenterrar tudo. — Senhorita Saeyuri... — Yuki segurou meus ombros, me afastando do monte de terra. — Não adianta começar a cavar agora. Já é noite, e não é como se você fosse terminar isso em dez minutos. Fiz um barulho exasperado com a garganta e deixei minha testa bater no monte de terra. — Eu idiota. — Murmurei. — Tudo sempre errado... Shigure agachou-se ao meu lado e colocou a mão na minha cabeça. — Você parece cansada, Yuukizinha. Está tudo bem se passar a noite em nossa casa. Amanhã de manhã podemos vir, então, e ajudá-la a tirar suas coisas, mas você não pode ficar aqui. Ninguém vai ganhar nada se você se machucar, caso outro deslizamento aconteça. — Eu agradeço. — Falei, sem me mover. — Me deem só um momento. Fiquei mais alguns segundos ali, parada, então finalmente me levantei. Pensei em voltar para casa de Satoshi, mas descartei a ideia logo que ela me ocorreu. Yuki e Shigure não pareciam pessoas ruins, e, mesmo que fossem, qualquer coisa era preferível quando Satoshi era a alternativa. Pelo menos, pelo que dizia respeito a mim, aqueles dois não iam tentar me morder se eu desse uma bobeada. E, é claro, voltar para ele e pedir pra ficar seria um ataque terrorista violento demais contra meu pobre ego já tão abalado, ainda mais depois da esnobada que tinha dado em resposta as suas propostas mais cedo naquela noite. Yuki e Shigure arranjaram umas roupas limpas pra mim, deixaram que eu usasse o banheiro para tomar banho e arrumaram um colchão na sala para que eu dormisse. E tudo que eu pude fazer foi ficar reforçando o conceito do tamanho da minha gratidão, até que os dois foram para seus respectivos quartos para me deixar descansar. Tentei dormir, mas não consegui, embora realmente me sentisse cansada, então peguei o computador e o coloquei em cima da mesa. Eu o abri e fiquei esperando que ligasse, com a testa encostada à madeira. Ouvi o barulhinho de iniciação, mas continuei de cabeça baixa. Bati com ela algumas vezes e fiquei murmurando “fuckmylife” pra mim mesma. Até que Yuki desceu as escadas e me perguntou como eu estava. — Bem. — Falei. — Apenas ponderando na probabilidade de o meu cérebro ser confundido com essa mesa se deixássemos os dois lado a lado para a comparação. — Você diz coisas engraçadas. — Ele disse, sem de verdade rir, sentando-se no lado oposto da mesa. — Às vezes tenho que dizer, sabe, assim crio a ilusão de que as pessoas não riem de mim só porque sou muito burro. — Você não é burra, Yuuki. — Yuki sorriu pra mim. Ele finalmente tinha parado de me chamar de senhorita Saeyuri, o que me deixou um pouquinho feliz. — E ninguém ri de você. — Riem, sim. — Afirmei, apoiando meu rosto nas mãos e meus cotovelos na mesa. — Mas não fique ligando pra mim, estou só fazendo um drama. Na real, eu não me importo que me achem burro ou que riam de mim. É meio o que eu espero que eles façam. — Eles? Quem? — Hum, eles. — Sacudi a mão. — As pessoas. Ele ficou um tempo olhando pra mim, com seu sorriso. — O que foi? — Perguntei, sacudindo a cabeça. — Tem bagulhos presos no meu cabelo? Dessa vez, Yuki soltou um breve riso. — Você realmente não se importa com o que pensam de você? — Não, não, você não entendeu. — Ergui as sobrancelhas. — Eu realmente me importo com o que pensam de mim. — Não parece. — Ele retrucou, e continuou me olhando. — Er... — Cocei o nariz e murmurei: — Acho que é porque você está assumindo que eu siga o senso comum. — O que? — Ahn? Nada, não. — Abri um sorriso. — Mudando de assunto, como seu primo soube do deslizamento? Quer dizer, eu não ouvi absolutamente nada. E o palpite sobre ter sido perto da minha barraca foi muito, tipo, na mosca. Quer dizer... Como ele poderia saber? — Ah, isso? — Yuki franziu sua testa. — Não faço ideia. Acho que pessoas problemáticas vêm com algumas habilidades inúteis como, por exemplo, a de prever um deslizamento de terra depois que ele já aconteceu. Sinceramente, não imagino como ele poderia saber. — Hum... — Pressionei os lábios um no outro e balancei a cabeça pra cima e pra baixo. — Então, tá bom. Yuki, muitíssimo obrigado, de novo, por me deixar ficar essa noite. Eu sinto muito, muito mesmo, por todo o inconveniente. Inclinei-me pra frente. — Não há nenhum inconveniente. — Ele se levantou. — Você não precisa se preocupar. — Eu, hum. Okay... Mesmo assim, obrigado... Er... Você vai sair? — Vou só tomar um pouco de ar. Tentarei não acordá-la quando voltar, então descanse um pouco. E ele saiu. Tamborilei meus dedos na mesa algumas vezes e fechei o notebook. Então o abri de novo e conferi se Killua não havia mandado nenhuma notícia. Nem tinha. Capítulo 5 Acordei na manhã seguinte muito mais tarde do que eu estava planejando. Eu pretendia acordar cedo para tentar recuperar algumas das minhas coisas, e, se fosse necessário, faltar à escola, mas à hora que acordei, definitivamente ia ter que faltar. — Bom dia! — Yuki me saudou. — Está se sentindo melhor? Ele colocou algumas sacolas no canto da sala. Eu achei que fossem compras semanais, ou coisa parecida, mas alguns dos objetos que pude ver de fora pareciam meio familiares pra mim – e não familiares do tipo nós-comemos-cereal-da-mesmamarca-olha-que-coincidência! — Ah, ahmm... — Eu disse, e soei muito elegante e inteligente dizendo aquilo, considerando que meus olhos e minha cara estavam inchados de dormir, e meu cabelo, todo amassado. — Ah, sim, isso é seu. Por favor, verifique se não está faltando nada. Fiquei olhando pra ele. E então agarrei uma sacola. Eram realmente as minhas coisas. — Mas quê! — Levantei meus olhos para Yuki. — Você desenterrou tudo? Sozinho?! — Ah, não. Eu não poderia ter feito isso. Há-há-há. Fiquei só olhando. — Muito obrigado! — Abracei a sacola, me inclinando pra sempre. — Muito obrigado, mesmo! — Imagine. — Ele sorriu. — Bom, você vai querer verificá-las ou posso levá-las lá para cima? — Eu vou, eu, ahm... — Parei. — Como assim, lá pra cima? — Ah. Bem, Shigure e eu conversamos e concordamos que, se você não tiver problemas com isso, pode morar conosco até voltar para sua casa. Há um quarto vazio no andar de cima, com um banheiro próprio. Hm, suíte. Você pode ligar para o seu pai pra pedir permissão, — ele indicou o telefone pra mim — vou levando suas coisas para o quarto, depois te mostro o resto da casa. — Yuki, eu... Eu não posso fazer isso. — Falei, baixinho. As coisas estavam tomando um rumo inesperado e eu não estava com todos os meus neurônios em atividade ainda. — Hm. — Ele olhou para mim. — Ah, não, está tudo bem, o quarto tem uma tranca. — Eu, ah. Não é isso. Quer dizer. Ainda bem que tem... Quer dizer, não! Eu não vou voltar pra minha casa, Yuki. Digo, não agora, nem, provavelmente, nos próximos anos. E eu não posso ficar aqui pra sempre, também. Ahm. Mas obrigado. Obrigado, de verdade, vocês estão sendo muito bons pra mim, eu não sei nem o que dizer. Eu realmente sinto muito por causar tantos problemas a vocês. — Yuuki, — ele se voltou para mim — você não nos causou problemas de forma alguma. Nós estamos sugerindo que fique, não é como se você estivesse forçando sua estadia. Pode se sentir à vontade para ficar o tempo que julgar necessário. Pensei por um momento. Aquela situação era totalmente fora do comum, mas era justamente o que eu precisava – viver num lugar escondido do mundo sem ter que assinar nada. Era quase melhor do que uma barraca. — Eu... Eu posso pagar. — Tenho certeza de que sim, mas nós não queremos o seu dinheiro. — Yuki sorriu. Ele esteve parado esperando que eu lhe desse uma resposta, mas aí começou a juntar minhas sacolas e subir as escadas. — Eu posso ajudar, então, certo? Quer dizer, eu não sou muito bom em afazeres domésticos, mas é só porque eu não pratico muito. Mas, se eu for ficar, posso fazer isso... — Seria ótimo. — Ele falou pra mim, do topo da escada, e desapareceu no andar de cima. — Bom dia, Yuuki! — Shigure cantou, surgindo do cômodo anexo à sala. — Yuki já falou com você, certo? Bom. Seja bem vinda à família Sohma! Ah, eu ia ajudar com suas coisas, onde estão? — Ele foi falando, bastante animado, e então colocou a mão ao lado da boca e gritou para escadas: — Yuki, empreste algumas roupas suas para Yuuki! Imaginei que Yuki não tivesse ficado muito feliz com a ideia de que suas roupas fossem usadas por mim, porque, como resposta, ouvimos o barulho de alguma coisa grande sendo arrebentada em milhões de pedaços violentamente, como um armário, ou sei lá. — Yuki?! Está tudo bem aí em cima? Você não está quebrando a minha casa, está? — CADÊÊÊÊÊÊÊ O RATO IDIOTA?! — Uma voz furiosa e desconhecida gritou do andar de cima. Sem pensar duas vezes, corri para o alto da escada, assumindo imediatamente que o dono da voz devia ser alguém que tinha vindo atrás de mim. Eu estava preocupada com Yuki, que estava sozinho lá em cima, com quem quer que fosse. Mas, daí, umas coisas muito engraçadas aconteceram: Primeiro, um menino de cabelos ruivos quase flamejantes se materializou na minha frente, me dando um enorme encontrão, antes mesmo que eu pudesse pensar na palavra “desviar”, e explodiu numa estranha nuvem de vapor, que se espalhou por toda a casa. Então Yuki, que estava no final do corredor daquele andar, viu que eu tinha me desequilibrado um pouco e achou que eu fosse cair na escada, torcer meu pescoço e morrer. Shigure deve ter pensado a mesma coisa, porque ambos correram na minha direção para impedir que eu caísse, quando eu, na verdade já tinha recuperado totalmente o equilíbrio e estava tentando adivinhar de onde tinha vindo toda aquela fumaça, para onde tinha ido o menino de cabelos flamejantes e por que agora eu estava segurando um gato. Outras duas explosões de fumaça aconteceram. Quando consegui enxergar de novo, Yuki e Shigure haviam desaparecido, e, no lugar deles, deixaram um rato e um cachorro, respectivamente. — Ai! — Exclamei, ligando todos os pontos com meu raciocínio disparado na maior velocidade. Eu não sabia como, nem por que, mas Yuki tinha se transformado em um rato, Shigure num cachorro, e o gato que eu estava segurando era provavelmente o menino ruivo. — Isso foi bem impressionante, galera. Quem quer fazer de novo?! — Gritei, levantando um braço para o ar. Mas o que posso dizer? Achei aquilo tudo bem legal. Capítulo 6 As pessoas perdem muito tempo tentando entender as coisas. Se alguém me dissesse que tem uma boneca que toma vida de vez em quando, e que a prova disso é que ela fala, faz chá e o toma, lendo romances renascentistas, quem seria eu pra questionar e tentar decifrar o que no mundo a pessoa estaria querendo dizer? Por isso, quando olhei para aqueles três animais fofíssimos, apenas disse a mim mesma que era assim que as coisas eram e coloquei o gato no degrau da escada. — Vocês estão todos bem? Ninguém quebrou nada, né? E ninguém me respondeu, também. Porque afinal, pensei, eles são animais, sua idiota. O que esperava que fizessem? Mas aí o gato deu um berro. — Do que está reclamando, gato idiota? A culpa disso é toda sua. — Disse o Yuki rato. — A culpa é toda minha? A culpa é toda minha?! Por que a culpa toda é minha?! Vocês se transformaram também! — Se você não tivesse tentado jogá-la da escada, nós não precisaríamos. — Bom, eles não precisariam, mesmo que o menino realmente tivesse tentado. Mas resolvi não fazer aquele comentário. — O que posso fazer se ela simplesmente brota na frente dos outros desse jeito?! Primeiro, por que tem uma garota aqui?! — Por que isso seria da sua conta? — O rato retrucou. Shigure, o cão, rosnou e latiu para os outros. — Vocês realmente ajudam muito, discutindo desse jeito. — Murmurou, voltando-se pra mim. — Yuuki, você percebe que somos nós? — Ah, sim, desculpe, fica meio difícil não perceber. — Olhei para o gato. — Hum, e você, quem é? — Esse é nosso primo, Sohma Kyou. — Hum, — assenti — há algo que eu tenha que fazer pra, ééé, trazer vocês de volta? Tipo, sei lá, um encantamento, uma sessão descarrego... Shigure riu. — Não, não! Nós voltamos ao normal depois de um tempo. E então eles voltaram, espalhando mais uma onda de fumaça pela casa. Infelizmente, não foi fumaça suficiente para impedir que eu percebesse que as roupas deles, que tinham caído no chão quando eles se transformaram em animais, não voltaram magicamente para os seus corpos ao voltarem a ser humanos. ... Fiquei sentada na varanda, rindo, bem boba, enquanto os três terminavam de se vestir. Shigure foi me explicando que, ao longo das gerações da família deles, alguns membros da família eram amaldiçoados com os espíritos dos Doze Signos Chineses e o espírito do gato, e que cada um deles se transformava em um dos animais ao ser era abraçado por um indivíduo do sexo oposto. — Mas, poxa, que vida tensa, por que os signos chineses não amaldiçoam chineses com seus espíritos? — Falei, juntando e espalhando poeira em cima de uma taboa. Os três, já vestidos, olharam pra mim com cara de “ãh?” e eu olhei pra eles com cara de “ãh?” e disse: “Ãh? Que? Não disse nada”. Então Kyou sentou-se num canto, e Yuki e Shigure sentaram-se à mesa, e eu fui juntar-me a eles. — Então... Isso era meio que, tipo, um segredo, né? — Falei de uma vez. Eu estava um pouco incerta sobre como chegar àquele ponto, visto que ele parecia importante. — Ou não tem problema eu ter ficado sabendo? — Ah, tudo bem. Acontece, às vezes, ainda mais quando os bobos da família voltam das montanhas e continuam achando que não precisam se preocupar com que haja outras pessoas além deles no ambiente. Eu entendo que você só tenha olhos para o Yuki, Kyou-Kyon, — ele disse ao menino ruivo — mas você podia ao menos ter sentido a presença de alguém indo na sua direção. Não é pra isso que vocês treinam, afinal? Afiar os sentidos e não sei o que mais lá? Que vergonha, Kyou-Kyon, que vergonha. Tenso. Fiquei com um pouco de vergonha também. Eu mesma não havia percebido que tinha alguém vindo pra mim. Mas Kyou se irritou bastante com o comentário, deu um berro, se levantou e gritou: “por que é que você não cala essa sua boca?!”. E aí deu um tapa num copo que estava em cima da mesa. Acredito que tenha sido um tapa com muito poder, porque vi algumas estrelinhas quando ele, quer dizer, o copo, veio estourar na minha cara. Mas imagino que o pobre garoto tenha visto uma Via-Láctea inteira, quando Yuki socou a cara dele. — Yuuki, você está sangrando! — Shigure falou, como se eu estivesse derramando minhas entranhas para todos os lados. — Quem? Eu? O que? Sangue? — Falei, sem prestar muita atenção no que estava dizendo. Kyou estava caído no chão, praticamente nocauteado, enquanto Yuki arregaçava as mangas. — Kyou, seu monstro, veja o que você fez! Causou danos mentais permanentes à menina! — Shigure segurou meu rosto, puxando-o para que ele pudesse examiná-lo. — Sim, Yuuki, está sangrando sangue! Deixe-me ver... — Ahm... — Eu murmurei. — Eu vou te arrebentar tanto, seu retardado, que você vai precisar de uma cirurgia pra colocar sua boca no lugar antes de você conseguir pedir desculpas a ela. — Vem, então! Eu estou há meses esperando pra chutar esse seu traseiro de rato afeminado! — Irmãos, quer dizer- Gente, pega nada, eu estou bem, é só sangue. — Tentei dizer a eles, com Shigure segurando meu rosto e limpando o ferimento com água oxigenada. Depois, quando parei pra pensar, gostei de como aquilo soou. De fato, era só sangue, e eu estava impressionada com como sangue podia ser só sangue quando não tínhamos nenhum vampiro pronto pra pular na nossa garganta toda vez que a gente se machuca. Mas, naquele momento eu estava mais preocupada em fazer com que os dois não começassem a brigar bem ali. Pensei em um balde d’água, mas como não havia nenhum por perto, levantei-me e abracei Kyou. — Ah... Perdão. Kyou ficou parado nos meus braços, meio incrédulo, então deu um chilique de gato, arranhando meu braço todo, e saiu correndo, sumindo por entre os arbustos. — Ahm... — Eu estava murmurando muitos “ahm’s” naquela manhã. Mas, do meu ponto de vista, até que estava lidando com tudo bastante bem. — Yuuki — Yuki ajoelhou-se ao meu lado, segurando meu braço arranhado. — Relaxa, isso não é nada. — Eu falei, porque realmente não era. — Francamente. Eu sempre soube que Kyou era um idiota, mas eu não achava que ele fosse tão idiota assim. — Shigure suspirou, tapando o meu ferimento quase fatal com um curativo maior que minha própria testa. — Shigure, — Yuki olhou para o primo, muito sério — eu vou matá-lo se ele aparecer aqui de novo. — O que? Por isso? — Apontei para o curativo, rindo nervosamente. — Que bobeira, é só um arranhãozinho. Yuki, pra mim, nem faz muita diferença, mas você, que tem uma reputação a manter, precisa chegar no horário pra aula, não é isso? Então! O que acha de darmos uma pausa nessa coisa toda de planejar matar nossos primos e irmos andando? Ahm... Desculpe, onde minhas coisas estão mesmo? Yuki olhou para meu rosto por um instante, então suspirou e se levantou. — Eu não tive tempo de te mostrar seu quarto, não é? Vem comigo, mostro pra você agora. Ele me levou ao andar de cima e me apresentou ao quarto, então sumiu e apareceu logo depois, trazendo uma muda de roupas. — Eu me esqueci de dizer que seus uniformes estão meio sujos de lama... Mas como você usa o uniforme masculino mesmo, posso emprestar um meu... Se você se quiser. Será que serviria? — Ah, claro, quer dizer, acho que sim. — Peguei a muda. — Mas você não acha que aquelas menininhas do seu fã-clube conseguiriam farejar seu cheiro nelas, acha? Porque, se elas conseguirem, eu provavelmente não vou durar até o final do horário de almoço. — Aquelas menininhas do meu... O que? Arqueei as sobrancelhas. Não era possível que ele nunca tivesse notado. — O que o que? — Rebati. — Aquelas menininhas do meu fã... Clube? — O que? Eu não disse isso. — Disse, sim. — Não disse, não. Eu disse... Clube de fãs de... Degustação. O Clube de Fãs de Degustação. Boatos que elas são ótimos fãs farejadores- quer dizer, cães farejadores. Cães, não fãs. Yuki processou por um momento e então começou a rir baixinho. Só que aí não parou mais. Ele riu e riu e riu. Até comecei a me preocupar com que ele tivesse algum espasmo por rir daquele jeito, mas ele continuou só rindo até o riso terminar. — Você tá legal? — Eu perguntei verdadeiramente preocupada. — Estou. Me desculpe, eu normalmente não rio tanto assim... — Ele falou e riu mais um pouco. Eu realmente tinha dito fãs farejadores no lugar de cães sem querer, mas não achei nada engraçado. De verdade, fiquei até meio sem graça com Yuki rindo daquele jeito, mas, também, contente de vê-lo tão de repente feliz. Pensei que o incidente com Kyou fosse deixá-lo de mau-humor para o resto do dia. — É, mesmo. Não te ouço rir muito. — Sorri. — O que? — Hum, nada. — Balancei a cabeça. — Vou me trocar e já vamos, okay? — Claro. Ele saiu do quarto, deixando-me o conjunto de peças de uniforme. Vesti-me rapidinho e desci. — Yuuki... — Shigure olhou pra mim, parecendo um pouco magoado, por cima de seus óculos de ler. Ele estava sentado no mesmo lugar, e os cacos de copo ainda estavam todos espalhados em volta da mesa. — Yuki me disse que você só usa uniformes masculinos, isso é verdade? — Er... É. Pois é. — Mas por quê? Você ficaria tão mais bonitinha com as minissaias do uniforme femin... Yuki, que acabara de chegar à sala, dera um tapa na nuca de Shigure, e então veio para o meu lado. — Estamos saindo. — Ele disse, me conduzindo para fora. — Ah, você não quer que eu limpe isso antes de ir? — Perguntei a Shigure, apontando pra bagunça. — Ah, mas é claro que não! O criminoso vai querer limpar quando voltar. — O gato estúpido vai voltar? — Yuki voltou os olhos estreitos para Shigure, como se planejasse assassiná-lo também. — Claro que vai, Yuki, as roupas dele estão aqui, afinal. Yuki continuou olhando para seu primo por um tempo, parecendo desconfiado. — Sobre o, hum, segredo de família, está tudo bem mesmo, quer dizer, eu estar sabendo? — Sim, claro. Eu vou ter que informar Akito, o atual chefe da família, sobre isso, mas não é nada com que você tenha que se preocupar. — Okay. — Falei, e olhei para Yuki. — Vamos? Mas ele estava diferente agora. Estava olhando pra mim meio preocupado, e desviou o olhar quando cruzei com ele. — Vá indo na frente, encontro você em dois minutos. — Disse. — Tudo bem. Eu fui, deixando os dois conversando. Capítulo 7 Eu não costumava participar das aulas de Educação Física no colégio, nem quando era mais nova, por um motivo muito simples: preferia passar meu tempo fazendo coisas úteis, ao invés de ficar jogando uma bola de um lado para o outro de uma rede, ou sei lá o que. Por isso, enquanto todos suavam, eu normalmente ficava sentada na arquibancada com o computador, exibindo meu atestado médico baixado diretamente de unauthorizedabsenceandfakemedicalcertificates.com pra quem quisesse ver. Mas, por alguma razão, Tohru e Uo achavam que Hana e eu estaríamos desperdiçando momentos preciosos de nossa juventude agindo daquela maneira e nos obrigaram a jogar. Bom, Uo nos obrigou. Tohru só ficou lá olhando pra gente com cara de que aquilo faria a maior diferença do mundo na vida dela. E, assim sendo, peguei um short emprestado e me preparei para batalha. Felizmente, as meninas neuróticas por praticar sua adoração a Yuki viram aquilo como uma oportunidade perfeita para se vingar de mim, por seja lá o que achassem que eu tinha feito, e estavam particularmente ansiosas para me passar a bola, ou atirá-la em mim, o que você preferir. E eu, muito espertamente, converti a situação a meu favor e aproveitei a primeira chance que tive para fingir ter torcido meu tornozelo seriamente e voltar para o lugar meu por merecido direito: a arquibancada. Foi justamente nessa ocasião que eu comecei a perceber que talvez não houvesse apenas meninas que quisessem me odiar naquela escola. — Yuuki, você está bem? Eu a vi caindo. Você se machucou? Desviei o olhar da tela do notebook e inclinei minha cabeça para Yuki, que surgira ali do meu lado, parecendo preocupado com algo um pouco mais sério do que um pé inchado. — Nããã- — sacudi a mão pra ele — tudo encenação. Meus pais gastaram rios de dinheiro comigo em aulas de teatro para que você pudesse presenciar o espetáculo que dei agora há pouco. Ei, por favor, se sente aí. — Disse eu, puxando minhas coisas para o outro lado e oferecendo um lugar a Yuki. Ele se sentou e olhou curioso para o que eu estava fazendo. — É um jogo. — Expliquei. — Está quase pronto, mas não tenho trabalhado muito nele ultimamente. — Você faz jogos? Sozinha? — Ele ficou com aquela carinha de surpreso que o fazia parecer tanto com uma menina bonitinha. Eu imaginava que, com a condição com a qual ele tinha que conviver, ser bonitinho daquele jeito podia ser um problema bastante sério. — Alguns, sim. — Sorri. — Mas são todos bem simplesinhos. Ele sorriu de volta um sorriso bem sem graça. E continuou sorrindo. — Você quer saber se eu comentei com alguém sobre o seu assunto, não quer? — Sugeri, quebrando o silêncio constrangedor que se formara. — Você...? — Não. Mas Yuki não pareceu muito mais aliviado, mesmo eu tendo dito aquilo. Dei a ele tempo para pensar em como me dizer o que tinha pra dizer, mas, quando finalmente o garoto pareceu se decidir, uma bola veio voando na minha direção. Yuki a desviou pra cima com o braço. Fiquei muito feliz por isso. Como eu não estava prestando atenção, não vira quando a bola fora atirada e levei um assusto ao notála já tão prestes a me acertar. Se Yuki não a tivesse tirado de sua trajetória antes do último segundo, eu teria feito uma besteira muito grande, que ia acabar com uma bola furada, meu braço jorrando sangue e uma porção razoável de questões muito importantes às quais eu teria certa dificuldade de responder com sinceridade. Ou mesmo sem ela. E além de tudo isso, eu teria destruído o casaco que Yuki me emprestara. O que, de qualquer forma, acabei fazendo um pouco mais tarde naquele mesmo dia. Mas eu já vou chegar lá. — Obrigado. — Arquejei, deslizando os dedos ao longo de meus antebraços para ter certeza de que não havia feito nada estúpido. Eles doíam bastante, mas estavam limpos. — Você está bem? Yuuki? — Ele me perguntou todo preocupado de novo. — Claro, foi em você que a bola bateu, lembra? Alguns meninos se aproximaram de nós e chamaram Yuki pra jogar – e me chamaram também, mas apontei para meu tornozelo e recusei com muita educação. — Podemos conversar depois? — Yuki se virou pra mim, enquanto ia com os outros garotos. — Prometo não fugir do país antes disso. — Levantei minha mão direita, muito solenemente. Fiquei observando as garotas jogarem até o final da aula, a fim de evitar que outra bola viesse e me acertasse “acidentalmente”. Não aconteceu de novo, e o jogo não ficou mais interessante, também, independente de quanto tempo eu olhasse pra ele. Por isso que digo: total perda de tempo. Passei quase o resto do dia normalmente. Fiquei acordada durante as aulas dos professores que se importavam e dormi durante as dos que davam prioridade a cuidar das próprias vidas, em vez de ficar enchendo a paciência dos alunos que não tinham o menor interesse em suas aulas. No entanto, ao final da tarde, acordei no meio de uma delas com a sensação divertida de ter tido um sonho bem impressionante. Percebi então que o professor estava olhando pra mim com repreensão, e algumas meninas riam. Eu devia ter resmungado algo engraçado enquanto dormia. Entrelacei os dedos e encostei a ponta do meu nariz neles, olhando para o quadro negro com bastante atenção, como se tivesse passado a aula toda pensando sobre o que estava sendo escrito nele e, finalmente, tudo fizesse sentido. Nem fazia. Minutos depois, um professor abriu a porta e chamou o nome de uma aluna qualquer da nossa sala que esqueci quase tão imediatamente a tê-lo ouvido. Eu, como todo mundo, olhei para porta aberta e para o professor, mas o que vi, diferente de todo resto, que não pareceu captar nada de incomum, foi um vulto escuro passando atrás dele no corredor daquele andar. E, por alguma razão, aquele vulto me fez pensar ter visto meu tio. Qualquer pessoa, que não fosse eu, é claro, provavelmente teria se levantado, ligado o foda-se e se precipitado porta afora exasperadamente, correndo atrás de uma sombra sem forma, para tirar a prova de que sua mente estava apenas pregando-lhe peças malucas, e que o vulto era, na realidade, um fruto indistinto de sua mente sonolenta. Só que, como nunca fui qualquer pessoa que não fosse eu, voltei a encostar a ponta do meu nariz aos meus dedos entrelaçados e meditei por um momento no que acabara de ver. E depois fiquei pensando em como se desenrolariam as coisas se eu fizesse exatamente o que qualquer outra pessoa que não fosse eu faria em meu lugar. O resultado foi um filme de terror trash que, se produzido, provavelmente passaria na televisão durante o horário de menor audiência possível. E cheguei à conclusão de que eu jamais me daria mal num filme de terror. Aliás, se eu participasse de um filme potencialmente destinado a seguir um enredo aterrorizante, eles teriam que mudar o tema do filme de terror para “como evitar que um filme sobre o dia ordinário de uma pessoa sem nada de especial se torne um filme com cenas tensas e impressionantes, no qual o protagonista passa por horas, ou dias, de torturas infinitamente desumanas apenas para morrer sozinho, e sem que ninguém faça a menor ideia do que aconteceu com ele, no final”. Porque, de fato, perseguir vultos imaginários é exatamente o tipo de coisa que leva os bobos, que as pessoas chamam afetuosamente de “mocinhos”, por um caminho direto e reto para a arapuca do - supostamente sobrenatural - vilão. Por tudo isso, permaneci firme e fortemente sentada em minha cadeira, construindo e desmoronando torres de objetos que encontrava dentro do meu estojo. — Você vai... Trabalhar hoje? — Yuki me perguntou, inclinando-se por cima de mim. Percebi que a aula tinha acabado e que Tohru acenava apressada pra mim, mostrando seu relógio e apontando para porta. Acenei de volta e ela saiu correndo. Uo e Hana também se despediram à distância, e Uo sorriu para mim como se soubesse qual era a marotice que eu estava aprontando. Pensei em como seria bom se ela me deixasse saber também. — Não. — Olhei para ele distraída, com a cabeça passeando em algum outro lugar. — Podemos voltar juntos. — Ele sugeriu com um sorriso amigo. — Podemos, sim. E fomos. Fiquei apenas calculando, durante algum tempo, todas as vantagens de ser vista andando em plena escola ao lado do amado e idolatrado, Sua Excelência, Yuki. Porque arrumar encrenca com pessoas perturbadas era meu passatempo predileto. Mas depois voltei a pensar em tio Rido. — Está tudo bem? — Ele me perguntou. Yuki, eu quero dizer. — Hm, sim. Estou apenas pensando. — Você passa bastante tempo pensando. — Nós dois passamos. — Retruquei. — Mas aposto que você pensa em coisas muito mais importantes, como, por exemplo, “como vou evitar hoje que dois terços das alunas desse colégio debandem pra cima de mim todas ao mesmo tempo". Yuki abriu seu sorriso. — Venho tendo sucesso há quase um semestre inteiro, afinal, não? — Acho digno! Tenho muito orgulho de você. Dei uns tapinhas no braço dele, parabenizando-o. E depois fiquei pensando se era bom, mesmo, sair encostando nas pessoas assim, sem mais nem menos. — Yuuki... — Ele começou. — Sobre o que eu queria dizer mais cedo... Eu sabia que interromper qualquer pessoa nesse ponto é uma falta muito grave, mas foi por um motivo justo. Puxei Yuki pelo braço para trás de uma das paredes da construção e o empurrei contra ela. — Ahm. Me desculpe. — Falei, sorrindo, bem sem graça, tirando as mãos dos ombros dele. — Mas, então, aconteceu que eu vou ter, sim, que trabalhar hoje. Eu ri. O que mais poderia fazer? Yuki estava um pouco surpreso. Talvez até mais que isso. Bom, vamos usar a palavra... Perplexo. Acho que podemos usar essa. — Certo... — Ele disse. — Eu, ahm, prometo que vamos continuar essa conversa, tudo bem? E, por favor, não se preocupe, seu segredo está seguro comigo. Eu vou tratá-lo como se fosse meu, ninguém nunca vai ficar sabendo de nada através de mim. Sinto muito, me dê licença. Eu corri de novo pra dentro da escola. Satoshi não tinha me visto sair com Yuki, então resolvi esperar que ele, Yuki, eu digo, chegasse pelo menos até a próxima rua antes de ir ao encontro de Satoshi. — Conheça: o telefone. — Apresentei o meu a ele. — Serve pra você me avisar quando quiser falar comigo. — A maioria das pessoas não avisa quando quer fazer uma surpresa. — Ótimo. Acontece que eu não to nem aí pra maioria das pessoas. E não gosto de surpresas. E, principalmente, não gosto de você vindo aqui, pra me vigiar. Satoshi sorriu e deu uma batidinha no meu queixo com o nó do dedo indicador. — É meu dever, princesa. Rolei meus olhos e puxei as alças da minha mochila, ajeitando-a nas costas. — O que quer comigo? — Sibilei. — Uau, minha nossa, essa é uma pergunta... Realmente... — Ele ficou pensando. — Bastante vasta. — Eu vou embora. — Inclinei-me para o lado. — Claro. Eu queria mesmo saber onde você está morando, então, por favor. — Ele fez um sinal com a mão, me dando passagem. — Quem disse que vou pra lá agora? — Ninguém disse. Dei de ombros. — Isso cansa. — Falei. — Estamos jogando o mesmo jogo, bebê. — Diga logo o que você quer! Ele sorriu, como se tivesse uma carta incrível escondida da manga, e me deu um momento para saborear a sensação. — Quer primeiro a boa ou a má notícia? — Vindo de você... Acho que... Só a má, irmão. — Hum, vou te dar a boa primeiro: seu advogado encaminhou pra mim essa manhã a nova oferta que eles propuseram pelo seu programa. — Certo. E qual é a má notícia? Ele suspirou. — Você não deveria ler a proposta antes de recusar? — Talvez. Qual é a má notícia? Satoshi deixou a cabeça cair pra trás e urrou irritado. Ele esperou um tempo pra ver se eu reconsiderava, mas, em resposta ao meu silêncio, urrou de novo e então disse: — Por que é que voc- Qual é o seu problema? Não respondi, só fiquei olhando séria para o rosto carregado dele. — Ah, que se foda. — Satoshi falou, finalmente, depois de me dar mais uma longa oportunidade de pensar a respeito. — Se vira aí, então. Ele me deu as costas e foi se afastando. Eu fiquei parada lá, respirando. Comecei a ficar nervosa e a trocar o peso de um pé pra outro. E se, pensei, aquela notícia tivesse a ver com meu irmão? E se tivesse a ver com tio Rido? E se não tivesse notícia nenhuma? Corri para frente dele e bloqueei seu caminho. — Me dá a droga da notícia. — Rangi os dentes, pretendendo demonstrar a ele que estava com pouca paciência, mas Satoshi se inclinou para mim, parecendo tão puto quanto eu, e disse o seguinte: — Quer tudo do seu jeito? Então faça sozinha, e depois me diga se ainda acha que é assim que as coisas funcionam. E passou por mim. Pensei que, ou a má notícia era algo com o qual eu realmente devesse me preocupar, ou Satoshi... Era um idiota. De uma forma ou de outra, eu decidira pagar pra ver, e levaria a essa decisão a diante. Mas esse não era exatamente um pensamento encorajador. Segui o caminho para a casa dos Sohma, sentindo-me estranha, e desejei ter ido com Yuki mais cedo. A sensação de ser vigiada não me largava, e eu tentei lidar com ela da maneira menos paranoica possível, até perceber que estava sendo realmente perseguida. Independentemente de estar certa ou não, eu não queria ninguém me seguindo até a casa de Yuki, por isso, peguei outro caminho. Tentei ficar a vista e passar por ruas movimentadas, mas, em determinado momento, me vi numa avenida bastante deserta, e as pessoas que estavam atrás de mim, por fim, sentiram-se confortáveis o bastante para se aproximar. Saí correndo, me enfiando por entre as casas, pulando muros, e atravessando propriedades privadas sem o menor constrangimento. Achei que os tinha despistado ao entrar numa área comercial e parei para respirar. Afinal, para começo de conversa, eu era apenas uma humana. Humanos ficam cansados, ponto final. E foi nesse momento que eles me alcançaram. Eu estava bastante impressionada com a persistência deles – não impressionada a ponto de parar para parabenizá-los por isso, mas digamos que eu esperava que tivessem desistido bastante antes. Tive uma ideia que poderia despistá-los e resolvi tentar colocá-la em prática, então corri por becos, procurando algum prédio que tivesse escadas de emergência. Não tive dificuldade de encontrar uma e apressei-me a escalá-la. Ao alcançar o terraço, foi até a beirada e concluí que não tinha como uma pessoa alcançar o terraço do prédio vizinho sem ter, no mínimo, a habilidade de voar. Por isso, recuei alguns passos, corri e pulei. E, não, eu não podia voar. Capítulo 8 Agora talvez seja uma boa hora para usar elementos do meu passado para tentar explicar a minha última e tão ousada decisão, tomada momentos antes de eu me jogar em uma queda livre a algumas dezenas de metros do chão sem nem hesitar. Bom. De acordo com as minhas pesquisas superficiais sobre o assunto, existem várias maneiras de se transformar um vampiro em humano, mas, mesmo que isso seja feito, é uma condição reversível e, ocasionalmente, como qualquer humano, o anteriormente vampiro pode voltar a se tornar um. Há, no entanto, uma técnica passada de geração em geração, dentro das famílias de caçadores de vampiros, que, se devidamente executada, previne humanos de serem transformados. E ela consiste basicamente em unir determinado tipo especial de arma, criado por caçadores com o objetivo único de matar vampiros, aos corpos de crianças humanas. Eu estive envolvida em um procedimento desses em algum ponto da minha infância humana, e, embora não tivéssemos certeza de quando ou como aconteceu, era fato que a culpa tinha sido do tio Rido. Mas eu pretendo contar essa história com maiores detalhes mais adiante. Por enquanto, o que há para saber é que posso projetar lâminas do meu corpo. E foi o que fiz. Embora Kaname tivesse me dado seu sangue, o poder que eu adquirira por causa dele já havia se desgastado bastante, e eu achava bem difícil que fosse chegar ao outro terraço. E não consegui, mesmo. Num instante, fiz duas serras grossas e poderosas saltaram pra fora dos meus antebraços, me causando muita dor, e eu tentei parar minha queda atritando-as, a alta velocidade, contra a parede do outro prédio. Infelizmente, esse tipo de coisa só funciona mesmo quando você é o Batman. Quando você sou eu, você continua caindo e gritando desesperadamente como se não houvesse amanhã, porque, provavelmente, não haverá nenhum mesmo. E, então, você sente uma dor aguda: as serrilhas engancharam em alguma coisa e a sensação que acaba de ter é o mais próximo que você vai chegar de saber como é ter seus braços arrancados fora, a não ser, é claro, que eles sejam de fato. Prendi meus dedos firmemente ao que descobri logo ser uma janela e puxei-me para dentro dela. A dor era tanta que a única coisa na qual eu consegui pensar por um tempo era que, talvez, não ter braços não fosse assim tão ruim. Mas tenho uma tolerância à dor relativamente alta, tudo devido a anos de muita prática, galera, então, enrolei uns panos aparentemente limpos, que encontrei naquele lugar que devia muito ser uma lavanderia, ao redor dos meus braços e parei de gemer, enquanto dava o fora dali. Incrivelmente, tinha conseguido despistar os malucos de verdade daquela maneira. Foi o que eu pensei. Só mais tarde eu ia descobrir que aqueles homens, e também a perseguição, tinham sido apenas ilusões. Capítulo 9 Certa vez, uma amiga pediu-me que a acompanhasse a uma entrevista de emprego. A entrevista em questão era para trabalhar numa loja de doces artesanais na zona leste, e, por isso, lá estava eu, atravessando a cidade havia mais de três horas: já tinha trocado de metrô três vezes, pelo menos, e, de ônibus, duas. Estávamos quase chegando ao terminal, onde eu marcara de encontrar minha amiga, quando um menininho pequeno entrou no ônibus e parou na minha frente. — Moça, minha mãe me perdeu. — Ele disse. — Ahm... — Eu respondi. Minhas reações àquele tipo de eventualidade não eram muito rápidas, e pensar que a criança estava jogando justamente sobre mim a responsabilidade de entregá-la à sua mãe deixou meu raciocínio um pouco perturbado. Planejei levar o menino comigo até o terminal e, depois de deixar Sayori, no local da entrevista, voltar ao lugar onde ele subira para o ônibus, porque achei que seria mais fácil começar a procurar seus pais por lá. Mas antes mesmo que eu sugerisse qualquer coisa, o menino já tinha começado a chorar escandalosamente, exigindo que eu o levasse até a mãe. E, alguns pontos antes do terminal, ele segurou minha mão e me puxou para fora do ônibus, apontando para um prédio bastante sujo, e dizendo que era para lá que ele tinha que ir. Como não via muitas opções para fazê-lo parar de chorar, dei uma chance à alternativa, e fui com ele até a entrada da construção. De alguma forma, o menino se acalmou na mesma hora. Ele puxou meu braço, dizendo – Obrigado, moça – então me deu um beijo no rosto e andou para dentro prédio, que, de perto, parecia muito mais um edifício condenado do que qualquer outra coisa. Tentei dizer ao menino que não tinha como a mãe dele estar ali, e que eu o ajudaria a encontrá-la, mas esqueci-me do resto da frase e senti minha pressão desabar que nem casa na beirada de rio. E caí no chão. Tive a impressão de ver o menino sorrir pra mim antes de me dar as costas e andar para longe. Cheguei à conclusão depois, quando descobri que aquele menino era, na realidade, meu primo, ou seja, filho de tio Rido, que aquele sorrisinho poderia não ter sido apenas uma impressão minha. Não sei se você já ouviu falar sobre isso alguma vez, mas vampiros de sangue puro podem pegar emprestados os corpos de seus descendentes. Coisa asquerosa, não? Tentei me apoiar à parede e me erguer de novo, mas isso provavelmente foi um erro, já que eu apaguei logo depois. Quando despertei, estava em algum outro lugar. Sentei-me rápido demais, assustada com o fato de estar acordando num lugar desconhecido. Aquela era uma situação nada comum para mim e eu não estava gostando muito dela. — Essa é sua pressão caindo outra vez, idiota, ok, ok — resmunguei, enrugando o nariz, e me deitei de novo. Então meus olhos correram para pessoa que eu tinha acabado de perceber sentada ali do lado. — Kaname... — Notei com surpresa e certo alívio. — Khaiya. — Ele respondeu. Pelo jeito, Kaname não podia estar muito aliviado ou surpreso. Na verdade, me olhava com clara desaprovação, sentado numa postura muito reta e com os braços cruzados, um sinal óbvio de sua impaciência. — O que faz aqui? — Eu... — Me levantei com calma, dando uma olhada em volta. Estávamos num quarto sem janelas, e a única saída era uma porta fechada a alguns metros de nós. — Aquela porta está trancada? — Perguntei imediatamente. — Não, apenas encostada. — Ele respondeu, sem mudar a expressão. Não que eu tivesse feito a pergunta com a intensão de amolecê-lo, ou que fizesse isso com alguma frequência, mas eu meio que me acostumara a vê-lo se desarmar ao menor sinal daquela pequena preocupação minha. — Okay. — Murmurei. — Eu estava, ahm... — Tentei lembrar. Não foi difícil. Eu estava a caminho de fazer uma boa ação, quando tomei um pequeno desvio para fazer uma boa ação enorme. Lembrar aquilo me deixou um pouco irritada. Eu estive sendo boa o tempo todo, e ali estava meu irmão, me olhando como se eu devesse um pedido de desculpas a alguém. — Eu, hum, acho que seria melhor eu ir indo. — Falei, me preparando para tentar ficar de pé. Mas, com apenas um aceno, Kaname me dissuadiu, e eu fiquei lá, sentada de um jeito estranho, a meio caminho de me pôr de pé. — Entre. — Disse ele, inclinando a cabeça para a porta. E Ichijou entrou. — Khaiya acordou! — Ele notou. — Ligamos para seu pai, Khaiy, ele está vindo buscá-la. — Eu corei e sentei-me direito, começando a achar o chão bem mais importante. — Kaname, o Sr. Aidou está esperando para conhecê-lo. — Ichijou olhou de novo para mim. — Peço para que ele espere um pouco mais? — Por favor. — Kaname respondeu. Ichijou me deu um sorriso encorajador e sua cabeça sumiu por trás da porta, que se fechou de novo. Deixei meus olhos seguirem Kaname, que se levantara para colocar a cadeira na qual estava sentado de volta no lugar de onde ele devia tê-la tirado. — Há uma pergunta que venho querendo fazer a você há algum tempo. — Ele disse, vindo sentar-se no sofá comigo. Esperei que ele a fizesse, mas, por um momento realmente longo, Kaname limitou-se a olhar pra mim. Encolhi minhas pernas e comecei a me chegar para o canto, mas ele se inclinou pra mim, e eu voltei à posição em que estava. — O que... C-... Tá fazendo? — Perguntei, franzindo a testa. Meu irmão havia aproximado tanto seu rosto da minha garganta que eu estava começando a ficar seriamente preocupada. — Quando era mais nova — ele me disse, sem tocar em meu pescoço, mas parecendo prestes a fazê-lo — você gostava de me morder e de dizer que eu devia transformá-la em uma vampira. Então — e nesse momento eu realmente senti duas pontas afiadas começarem a deslizar pela minha pele — você me viu beber o sangue de Luka e, desde aquela época, cada vez que tento trazê-la para perto de novo, você foge de mim, e se afasta mais. Se eu tivesse que adivinhar o que meu irmão tinha para falar comigo, aquele assunto não estaria nem entre os que eu tentaria chutar para ver se acertava na sorte. Kaname sempre soube que eu vira aquilo, e nunca chegou nem a propor que nós conversássemos a respeito. E, então, eu, mesmo na minha mente de criança, classifiquei o tema como território proibido e aceitei tudo sem dizer uma só palavra a ninguém sobre o que vira. Ouvi-lo tocar naquele tópico depois de tantos anos, e justamente naquele tópico, considerando todas as outras coisas que ele vinha fazendo ultimamente... Bom, era de se esperar que eu não fosse entender mais nada. — Fico imaginando quão maravilhosa poderia ter sido a imagem que uma criança doce como você criaria de nós, levando em consideração o fato de que simplesmente ver-me enquanto eu me alimentava poderia estragá-la dessa forma. Você ainda se lembra dessa imagem...? Khaiya...? Kaname passou um braço pela minha cintura e o outro ao redor dos meus ombros. Eu empurrei os dele, esperando manter a distância, mas Kaname não teve nenhuma dificuldade em vencer a pouca força contrária que eu fazia e me apertar contra seu peito. — Tá! Eu já entendi, agora me solta! — Eu arfei, sentindo as presas dele. Eu tinha a consciência de que meu irmão beberia meu sangue mais cedo ou mais tarde, mas ali ele só estava me testando, claramente. Coisa que me irritava profundamente. Kaname ainda me manteve em seus braços por um tempo, então, com cuidado, me soltou e deslizou sua mão pelo meu rosto. — O que você entendeu? — Ele quis saber. Desviei o olhar. — “Trate de ser mais cautelosa, não somos bichinhos de pelúcia com dentaduras de plástico” — falei. Meu irmão tinha um jeito todo especial de me dizer as coisas. E eu tinha que me virar para interpretá-las. — Eu volto logo. — Ele se ergueu para olhar pra mim. — Khaiya, por favor, não saia desse quarto. Mas, embora Kaname tivesse colocado aquilo como um favor, ele não estava pedindo. Então, eu me inclinei para frente e olhei-o em dúvida, e um pouco ansiosa. Também. — A porta não estará trancada. — Kaname tentou me tranquilizar. — Não vou deixá-la presa, Khaiya, mas quero que fique dentro do quarto. Até que eu volte. — Então ele beijou o topo de minha testa. — Eu não demoro. E me deixou lá. Àquela altura, eu ainda não sabia disso, mas minha vida, até o momento da morte dos meus pais, se passara num quarto fechado. Eu presenciara a morte de minha mãe num quarto muito parecido com aquele, e tivera de esperar que alguém fosse me tirar daquele banho de sangue, já que eu não podia nem mesmo sair sozinha. Isso provavelmente explicava a origem do meu medo. Eu não gostava de não poder ver o lado de fora. Começava a ter pensamentos complicados e a me imaginar morrendo lá dentro, sem poder pedir socorro. Quando já tinha me visto em todo tipo improvável de acidente, comecei a me perguntar se aquela porta estaria realmente destrancada, se eu deveria ou não ir verificar, e o que faria caso descobrisse que ela estava, na realidade, trancada. Pensar nessa possibilidade fez com que as imagens piorassem e eu me levantei, corri até a porta e estendi a mão para a maçaneta. Voltei ao dilema e o remoí por um momento, então segurei a maçaneta e a virei. Estava aberta. Fechei-a. Se alguém a visse aberta, pensei, poderia achar que precisava trancá-la, o que me deixaria presa lá dentro. Mas então a abri de novo, porque me ocorreu que eu não poderia ouvir uma pessoa que estivesse pretendendo trancar a porta caso ela se aproximasse. Aí fechei a porta outra vez. Olhei em volta a procura de um objeto que servisse. Em cima da mesinha havia um cinzeiro de pedra e eu o peguei, abri a porta e coloquei-o lá, entre ela e o rodapé. Mas, ainda assim, alguém poderia chutar o cinzeiro e me prender. Escancarei a porta. E fechei-a rapidamente. — Não tem janelas. — Falei. — Sem janelas. Ok, por que teria janelas? É um corredor, não tem que ter janelas. Apoiei as costas na porta e deslizei para o chão. Normalmente, meu problema se limitava a isso: eu ficava imaginando coisas ruins, até que pudesse me ver em um lugar aberto. Mas daquela vez, a primeira de muitas, foi diferente. Minha mente estava começando a projetar alucinações bastante nítidas de mulheres morrendo ao redor de todo o quarto. Eu não sabia, mas todas elas eram minha mãe. Achei aquilo desesperador, nunca tinha lidado com imagens tão reais. Enterrei o rosto nas mãos, mas continuei vendo tudo. Depois de ver a mulher morrendo, todas as outras situações que eu imaginara começaram a parecer reais também. Sai do quarto e vi-me no final de um corredor muito longo. Tentei me acalmar. Corredores normalmente não têm janelas, o que absolutamente não queria dizer que o resto do lugar fosse todo fechado. Não cogitei abrir as outras portas ao longo dele, e tentei andar calma até o outro lado, sem olhar para trás. Eu não sei se você fica com a sensação de que vai surgir um demônio atrás de você se você der uma espiadinha por cima do ombro depois de assistir um filme de terror. Ou se, quando você tem que passar por um lugar escuro para chegar a sua cama, o único lugar realmente seguro contra todos os monstros, você começa andando normalmente, até seu coração dizer – run-horse-ruuuuuuuuuuun! – e você sair correndo. Mas era assim que acontecia comigo. Eu achava que, se ficasse olhando demais as portas, elas iam explodir na minha cara, espalhando fogo, quantidades infinitas de águas repletas de tubarões extragrandes e de inteligência sobre-humana, assassinos armados até os dentes, avalanches, terremotos, dragões, leões, tiranossauros, entre outras calamidades que parecem muito divertidas quando você não tem que pensar em lidar com elas. E, assim como você diz a si mesmo “não seja bobo” nessas ocasiões, exigi de mim que parasse com aquela babaquice imediatamente. Mas sai correndo mesmo assim. Ao passar pelo corredor, me vi num patamar que apenas circundava a abobada de um salão muito alto. Me inclinei sobre a balaustrada e olhei para o salão. Havia muitas pessoas lá embaixo, e nenhuma janela. Dei a volta pela sacada e entrei em outros corredores, procurando uma maneira de descer. Não encontrei. Aparentemente, o único meio seria pulando por cima da balaustrada, mas eu ainda não queria fazer aquilo, então me sentei encostada a parede e fiquei olhando lá para baixo, através dos pilares. Comecei a ver aquele salão se inundar, sem que a água tivesse para onde escoar. Fiquei olhando, encolhida, enquanto o nível da água subia, e as pessoas se amontoavam nas portas, que já não mais podiam ser abertas. Algumas pessoas apontaram para o candelabro no centro do teto. Era um candelabro elétrico e estava balançando muito. Provavelmente cairia e eletrocutaria todo mundo. E então vi o menininho que pedira minha ajuda no ônibus mais cedo. Ele estava tentando subir numa mesa de madeira em cima da qual, agora, estavam todos tentando se equilibrar, mas, se mal os adultos conseguiam, o menino não tinha a menor chance. Levantei-me num salto e tentei escalar a balaustrada, mas braços agarraram meus ombros e me puxaram de volta. Vi o candelabro cair e o menininho ser eletrocutado, assim como as outras pessoas que não conseguiram subir numa mesa. Mas, logo, o nível da água alcançou os pés das que restaram, e elas morreram também. Tentei gritar, mas quem me impediu de pular cobriu minha boca com a mão, e tudo o que pude fazer foi chorar e apontar para o corpinho flutuante do garoto. — Não tem nada lá, Khaiya. — Ouvi a voz de Kaname dizer. Ele puxou minha mão de volta para junto do meu corpo, e afundou seu rosto em meu cabelo. — Vê? Está tudo bem... E, quando olhei de novo, estava tudo bem, mesmo. Mas aí comecei a sentir toda a construção balançar como um pudim de leite e encarei um enorme buraco que se abriu bem no meio do salão e começou a tragar todos para dentro dele. Eu me sentia encurralada e aflita. Comecei a lutar contra Kaname, para que me soltasse e me deixasse procurar outra saída, mas ele continuou me segurando com força. Quando não consegui mais fazer nada, meu irmão me levou até um elevador. Lá dentro, senti o cabo do elevador estourar e nos deixar cair; nos vi entrando em combustão espontânea e queimando até a morte; fui assassinada por Kaname de mil e quinhentos e trinta e oito formas diferentes, até que, finalmente, alcançamos o térreo e saímos do prédio. Fiquei encolhida como um filhote atrás dele, olhando para a rua e para os passantes. Ninguém estava morrendo, o mundo não era o apocalipse, e não tinha ninguém tentando me matar. Esfreguei meu rosto no casaco de Kaname, me escondendo das pessoas que passavam olhando pra mim, curiosas. Ele me colocou dentro do carro e me levou para outro prédio, que, ao contrário do qual havíamos acabado de sair, ficava totalmente acima da terra, e era muito aberto e arejado. Quando me dei por mim, estava olhando por uma das muitas janelas do quarto que Kaname havia pedido. — Se me trancassem aqui dentro, eu também não conseguiria sair. — Disse a ele. Eu estava deitada de costas numa cama e Kaname estava ao meu lado, meio sentado, meio com sua cabeça deitada na minha barriga. — Mas eu não começo a ver desgraças acontecendo para todo lado que olho, mesmo sabendo isso. Kaname não disse nada, apenas abraçou minha cintura e continuou lá. Fiquei pensando durante bastante tempo. Eu estava extraordinariamente calma. Imaginei se era normal ficar calma assim depois de passar por muito estresse. Deveria ser. Entrelacei meus dedos aos fios de cabelo de Kaname e fiquei mexendo neles. Não contei a ele o que tinha visto, e ele também não me obrigou a dizer nada, daquela vez. Capítulo 10 Decidi fazer. Satoshi estava a uma boa distância de casa, e, mesmo que ele decidisse voltar naquele exato momento, eu ainda teria tempo de dar, no mínimo, uma checada superficial. Quem sabe eu não tenho sorte, pensei. A primeira coisa que fiz foi verificar os telefones. Por causa de alguns incidentes envolvendo choques de altas voltagens nas orelhas de pessoas durante tempestades elétricas, ocorridos desde que os aparelhos telefônicos tornaram-se objetos essenciais em todos os ambientes domésticos, os telefones começaram a ser vendidos com medidores de ondas capazes de isolar o aparelho, caso a descarga ultrapassasse não sei quantos volts lá. O que, na minha opinião, é um mecanismo muito interessante, porque, além de prevenir as pessoas de morrerem fritas, nos permite ter acesso ao histórico de voltagem, que fica registrado nos medidores por nada menos do que quinhentos e trinta e oito dias. Por que razão o histórico fica registrado, ou por que fica registrado durante tanto tempo... Bom, dê-se ao trabalho de criar suas próprias hipóteses sozinho. Programas bem simples são capazes de converter as variações de voltagem nos registros, então deixei meu computador procurando por algumas palavras-chave que o permitissem localizar qualquer informação que tivesse alguma coisa a ver comigo nas conversas de Satoshi e fui revirar a casa dele enquanto isso. Não era a primeira vez que eu fazia aquilo, então procurei primeiro nos lugares mais óbvios e fui passando para os mais improváveis à medida que me sentia segura. Eu achava que Satoshi ainda estava bem longe de casa, já que ele não se movera muito desde a última vez que eu dera uma olhada, e, por isso, não estava tão preocupada. O problema é que, quando você coloca um rastreador no celular de alguém, você não está exatamente torcendo para que essa pessoa perca o aparelho. Eu, na verdade, tinha espalhado micro rastreadores por vários outros objetos de uso pessoal dele, mas, enfim, não era culpa minha que Satoshi não estivesse usando nenhum daqueles no determinado dia. Afinal, as pessoas compram coisas novas. É uma eventualidade com a qual a gente aprende a conviver. Mas, enfim, não encontrei na casa nenhum papel, correspondência, ou anotação de geladeira que me interessasse muito, então me sentei na frente do meu computador e coloquei o Vigiante para invadir o dele, enquanto lia suas conversas de telefone. Não tinha nada de interessante lá também. A maioria era papo jogado fora. Nos e-mails a mesma coisa. Nada de novo. E, como também monitorava as ligações dele por celular, eu podia ter certeza que Satoshi apenas seguia adiante com seu plano de tentar me ferrar por sua própria conta e risco. Toda aquela história de haver empresas de tecnologia querendo comprar os meus programas era apenas conversa mole pra me fazer de trouxa que ele tinha inventado por achar que seria fácil me enrolar. Eu até me ofendi, sinceramente. Os programas que Satoshi já havia me visto usando não eram nem meus, para começar. O Vigiante, por exemplo. Embora eu o tenha feito sozinha, a maior parte das suas funções era só um monte de coisas que tinha achado uteis e resolvera juntar. E eu não tinha dúvidas de que Satoshi sabia disso, mas, de alguma maneira, ele vira potencial em mim e decidira que ia conseguir prender-me a ele para me usar como bem quisesse depois. Por um lado, eu tentava não desencorajar isso mais do que o necessário. De certa forma, era melhor pra mim se ele mantivesse sempre em mente que eu poderia ser valiosa. Eu o deixava pensar que acreditava na lorota toda e o fazia achar que só recusava as “propostas” por orgulho infantil e que, mais cedo ou mais tarde, ele conseguiria me convencer. E, assim, o deixava bancando o bobo na palma da minha mão, enquanto o bobo achava que era eu que estava dançando na dele. Por outro lado, no entanto, talvez eu o tivesse deixado se empolgar demais. Eu já estava pensando em ir embora, certa de que os homens que haviam me perseguido àquela noite nada tinham a ver com Satoshi. Não era exatamente um pensamento tranquilizador, mas, ao menos, chegara à conclusão de que não era ali que eu devia estar procurando. Então ouvi um barulho. Não pode ser Satoshi, eu pensei, verificando que ele continuara no mesmíssimo lugar desde que eu chegara ali. Mas eu não gostava muito de barulhos suspeitos e, como já estava mesmo de saída, me levantei. Infelizmente, mal a ideia de que alguns achariam estranho que um vampiro pudesse passar tanto tempo sem se mover um centímetro sequer durante uma noite tão bonita quanto aquela havia resvalado pelo meu cérebro, quando Satoshi empurrou minha cabeça contra a mesa. — Alguém veio se desculpar, ou...? Ele jogou todas as minhas coisas longe, fazendo com que voassem pelo cômodo, então puxou meu braço e prendeu ambos os meus pulsos contra a mesa, deixando-me de costas nela para que pudesse olhar para mim. — Que ideia estranha essa de aparecer na casa de alguém como eu para fuçar nas minhas coisas. Ainda mais coberta de sangue da cabeça aos pés. Satoshi apertou meus pulsos com força, o que doeu bastante, mas, apesar da dor, eu só conseguia pensar no notebook que, muito provavelmente, estava agora bem quebrado. E foi com essa ideia feliz em mente que eu estraguei todo meu disfarce e liberei lâminas de meus antebraços. Quase rasguei suas mãos ao meio com isso. Deixei uma das lâminas sumir e chutei Satoshi logo abaixo das costelas. Ele cambaleou para trás, e eu o empurrei contra a parede com minha mão em seu peito, deixando o fio da lâmina rente ao seu pescoço. Como era muita dor e peso, eu tinha que apoiar aquele braço no outro para conseguir ficar com a ela parada tão no alto. — Por que surpreso? — Sussurrei, apertando os olhos e tentando não deixar transparecer nenhum sofrimento. — Você achou que eu baseava toda essa minha inabalável confiança no fato de que meu irmão é um sangue-puro e que, além de estar a apenas uns milhares de quilômetros de poder me socorrer, não faz a menor ideia de onde me encontrar? Não acha que isso seja um pouco... ingênuo da sua parte? Satoshi podia sentir nos ferimentos de suas mãos que aquela arma não era uma simples arma comum, mas deixou claro pelo ponto de interrogação na sua cara que não fazia a menor ideia de como ela tinha vindo parar no meu braço. Só que, de alguma forma, ele parecia estar gostando daquilo tudo. Vá entender. — A má notícia que você mencionou mais cedo. Se realmente existe uma, é melhor você me dar agora. Satoshi sorriu. Ele moveu as mãos, e eu não gostei. Cerrei os olhos, pressionando o fio em sua garganta, então Satoshi ergueu as duas de novo à altura do rosto. — Está no bolso da minha calça, princesa. Eu só vou pegá-la, está bem? Deixei que o fizesse e ele me mostrou um envelope todo dobrado. — Abra, por favor. — Pedi, inclinando a cabeça. Satoshi abriu a aba do envelope e tirou de lá uma passagem e um papel, em cujo qual havia apenas as palavras “volte para casa” escritas. — Parece que seu irmão sabe onde você está. — Ah, sim, claro, obrigado por me esclarecer essa parte. — Sibilei. Fiz a lâmina sumir e peguei o envelope, a passagem e o papel, então comecei a juntar minhas coisas, sem ligar para Satoshi. — Vou precisar que você compre outro computador pra mim. — Disse a ele, colocando minha mochila nas costas e caminhando para porta. — Passo aqui amanhã depois da escola. — Sim, senhora. — Ele inclinou a cabeça e deu-me as costas. Então saí. A parte boa era que eu não estava mais preocupada com ser perseguida novamente por aqueles homens. A má era que estávamos certos sobre a arma dentro de mim. Rido estava vivo dentro dela. Capítulo 11 — Yuuki! Eu estava parada em frente a casa de Satoshi, olhando para a lua, toda distraída. Ao ouvir a voz de Yuki, tive vontade de correr e desaparecer com meus problemas da sua vida. Mas achei que devia a ele uma satisfação em relação ao seu uniforme escolar, que eu arruinara. Pelo menos. Ele se aproximou de mim, ofegante. — Yuuki, você não voltava, eu fiquei... preocupado... Sorri pra ele. Yuki conhecia-me havia menos de uma semana e saíra para me procurar à noite, sozinho, porque achara que eu estava demorando muito. Perguntei-me se havia dito a ele onde eu trabalhava. Achei que não. — Me desculpe por preocupar você. — Falei. — E, me desculpe, mas eu destruí seu uniforme. Me desculpe. Yuki olhou para as mangas de sua blusa em mim e arregalou os olhos. — Yuuki... Ele segurou uma de minhas mãos e ergueu as mangas rasgadas com cuidado. — Ah... Mas como você... Como foi que você... — Yuki levantou os olhos para mim. Ele insistiu para me levar a um hospital, mas tentei explicar-lhe que tinha alguns motivos pessoais para não colocar os pés em hospitais e que sabia fazer curativos sozinha. Quando chegamos, no entanto, ele e Shigure puderam ver que eram ferimentos bem profundos, e, como eu me recusava terminantemente ir a um hospital, Shigure resolveu ligar para Sohma Hatori, outro primo deles, que, por acaso, era médico. Yuki não pareceu tão contente com a solução, mas não se opôs a Shigure quando ele foi fazer a ligação. Em vez disso, veio sentar-se ao meu lado e me olhou bastante sério. — Eu queria ter dito isso a você mais cedo... — Ele se desculpou, e então contou uma história de quando era criança e fora abraçado por uma menina, enquanto brincava com seus amiguinhos. No final, todos tiveram que ter suas mentes apagadas e Hatori fora quem fizera o trabalho. — É só uma hipnose. — Ele explicou. — Você não esqueceria seu nome, ou qualquer coisa do seu passado que não fosse relacionada a nós, mas a decisão de ter sua mente apagada, ou não, é tomada por Akito. — Yuki olhou para o chão, parecendo sentir-se miserável. — Mesmo que você fosse contra, não haveria nada que Shigure, Hatori, ou eu pudéssemos fazer... — Tudo bem, irmão... — Eu falei, e me repreendi por tê-lo chamado assim. Eu tinha que parar com aquele hábito. — É... Eu quero dizer... Eu jamais ficaria contra a alguma coisa se isso fosse causar mais problemas a vocês. Vocês têm sido legais pra caramba comigo, sem que eu tenha feito nada para merecer... Olha, independente do que Akito decidir, tenho certeza de que, como chefe da família, ele estará tomando a decisão que considera ser a melhor para todo mundo. Por isso, por favor, não se preocupe. — Me inclinei para cruzar seu olhar, que ainda estava fixo no chão. — Mas, caso apaguem minha memória, deixe que eu me torne seu amigo de novo, se achar que está tudo bem... Okay? Yuki me encarou, parecendo um pouco confuso. — Você não... Me acha estranho? Franzi a testa, imaginando se aquela poderia ter sido sua verdadeira preocupação todo o tempo. — Não existe esse negócio “estranho”. — Sorri pra ele, animada. — As pessoas são do jeito que são, não? E é bem melhor que elas sejam todas diferentes. Se não, que graça teria? Eu acho você uma gracinha do jeito que você é. E, depois de fechar com chave de barro aquela resposta que poderia ter sido uma resposta de ouro, ficamos ambos olhando um para cara do outro como dois bobões. — Mas digo isso no sentido mais másculo da palavra. — Segurei o ombro dele, com todo o meu ar determinado. Então, provavelmente sem se sentir com muita graça, Yuki sorriu e me agradeceu. Sorri de volta e balbuciei um “por favor, esqueça que eu disse as duas últimas partes”, pra mim mesma. Naquele momento, então, Kyou entrou em casa. Ele olhou para mim e para os meus braços ensanguentados, depois para Yuki, com muito ódio, e subiu para o segundo andar. — Estúpido sem educação. — Murmurou Yuki, seguindo-o pelo canto dos olhos. — Aquele menino, ele, hum, mora aqui? — Não. — Yuki respondeu, vagamente. Então ele foi buscar as compressas que estiveram esquentando para colocar em meus braços, e Shigure sentou-se a mesa para me fazer companhia. — Yuuki, como foi que esses machucados enormes foram parar nos seus braços, afinal? E lá estava a tal pergunta. Bom, eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela arranharia a superfície e riria para mim com sua cara de peixe congelado, e me impressionara com o fato de ninguém tê-la feito até ali. Mas aquele não era nem de longe o mais preocupante dos meus problemas e eu tinha certeza de que ninguém tentaria averiguar a veracidade de minhas palavras se eu simplesmente desse uma desculpa qualquer. Por isso, comecei a dizer que havia atravessado acidentalmente a barreira que separava o mundo dos humanos do mundo dos Imortais, e que, por ser humana, ninguém me curtia muito daquele lado – contei que eu tivera de enfrentar uma alcateia de Lobos Pastores de Cabras para atravessar os Vales Estéreis da Névoa Traiçoeira, e que fora atacada pelo Espírito da Floresta Abissal Amaldiçoada ao entrar em seu bosque sem permissão. — Esse foi um Lobo Pastor de Cabras que fez — mostrei o corte no meu antebraço direito — e esse eu fiz de propósito com um canivete quando voltei para o lado humano da barreira, por que não gosto de ter marcas assimétricas permanentes no meu corpo. Quando terminei, fiquei sorrindo pra ele, como se tivesse acabado de falar sobre algo que realmente acontecera comigo. Shigure riu e me perguntou se podia anotar o que eu havia dito. — Claro! — Eu falei. — Alguém tem que anotar, se não, como é que eles vão fazer canções sobre meu atos bravos e heroicos nas gerações futuras? — Canções sobre quem e o que? — Yuki me perguntou, chegando da cozinha com as compressas e começando a espalhá-las em cima dos meus braços. — Sobre como consegui isto. — Respondi, levantando meus braços e indicando os cortes com a cabeça. — Minhas futuras Cicatrizes de Batalha. — E inventei pra ele uma história completamente diferente de como aconteceram. Hatori chegou pouco depois. — Então, você é Saeyuri Yuuki. — Ele constatou, e, sem perder tempo, começou a examinar meus ferimentos. — Como fez isso? — Também quis saber. — Ah, eu caí em cima de umas caixas cheias de cacos de vasos de cerâmica. — Não sei se não o convenci com minha explicação, ou se ele estava simplesmente tentando demonstrar que, na verdade, não se importava e só perguntara pra saber se eu precisaria de um antitetânico ou algo tipo isso. Mas Yuki e Shigure compraram aquela na hora, parecendo achar muito sentido nela. Hatori costurou meu braço em silêncio, e, enquanto isso, Shigure foi me contando histórias de quando os dois estavam juntos no colegial. Eu não prestei muita atenção, pois meus pensamentos logo pegaram o atalho mais curto de volta para os meus próprios problemas. De alguma maneira, Yuki fora incluído a eles. Eu olhava para Yuki e não conseguia não me preocupar com o fato de ele estar tão tenso com a presença de Hatori ali. Talvez... A proximidade que Hatori estava de mim o incomodasse. Cheguei a imaginar se minha mente estava sendo apagada enquanto conversávamos. Mas chegamos ao último ponto, e todas as minhas lembranças estavam onde deviam estar. — Yuki, tire a blusa. — Por um momento, achei que Hatori estivesse falando comigo, mas ele tirou um estetoscópio de sua maleta e virou-se para Yuki, que parecia pronto para protestar. — O combinado era uma visita mensal, e você não tem cumprido, então cale a boca e obedeça, são ordens de Akito. E ele obedeceu. — Eu vou levar isso pra cozinha. — Peguei as compressas e sai. E fiquei enrolando lá por um tempo. Eu tinha tido a impressão de que Yuki não quisera tirar a blusa na minha frente. Como eu podia evitar? Ele era mesmo uma gracinha. Quando achei que tinha terminado, voltei. — Muito obrigada por vir, senhor. Perdão, quanto lhe devo? — Perguntei, sentando-me ao lado de Yuki. Hatori guardou suas coisas de médico e se levantou. — Eu atendo apenas membros da família Sohma, vir “ver” você foi uma ordem de Akito. — Certo. — Respondi. Aquilo provavelmente queria dizer que Akito queria saber como eu era, e que, baseado no julgamento de Hatori, sua decisão sobre apagar minha mente, ou deixar-me ficar, seria tomada. Fiquei pensando que teria sido muito bom ter sabido disso logo que Hatori colocara os pés na casa. — E quanto eu devo? — Nada. — Ele falou, e eu não me senti na liberdade de contestar, então só agradeci. Hatori quis falar com Shigure em particular e ficamos apenas Yuki e eu. Ele ainda estava todo tenso e parecia envergonhado. Esfreguei suas costas, então, antes de pensar em se contado físico era exatamente o que ele precisava naquele momento. Bom, já era. — Você vai ficar bem. — Falei. — Quer aprender a fazer waffles azuis? — O que são waffles azuis? — São, tipo, quem nem waffles, só que azuis. Acredite ou não, eu disse aquilo na maior inocência. Peguei a mão de Yuki e o levei para a cozinha. Eu não vou tentar te convencer disso também, mas carrego na minha mochila um frasco de corante azul em gel. Não estou mentindo. Para quem não faz ideia do que sejam waffles azuis, leia Persy Jackson. E comece a carregar corante azul na sua mochila para o caso de uma emergência. Na casa de Yuki não tinha nenhuma frigideira de waffles, então fizemos panquecas mesmo. Foi nosso jantar. Me senti muito responsável preparando-o, mesmo pensando nele apenas como um lanche da tarde. Waffles (panquecas) azuis eram uma das minhas poucas especialidades culinárias, e eu tinha muito orgulho dela. Como Kyou não comeu conosco, salvamos algumas para ele. — Deve estar no telhado. — Disse Shigure, quando perguntei. Então levei as panquecas salvas pra lá, mas não encontrei Kyou. De qualquer maneira, curti ficar de bobeira ali no telhado. A certa altura, peguei meu celular e fiquei olhando para ele. Eu sentia certa obrigação de avisar meu irmão sobre o que acontecera, e, após pensar por um minuto, liguei. Eu não tinha muitas ilusões a meu próprio respeito. Sabia que diria aquilo a ele mais cedo ou mais tarde, então resolvi não ficar enrolando. — Residência dos Aidou, com quem falo? — Pode passar o telefone pra Kaname Kuran? — Pedi. — Ahm... Sinto muito, mas o senhor Kuran não... — Ah, okay. Mas acho melhor você dizer ao, hum, senhor Kuran que tem alguém querendo falar com ele mesmo assim. Garanto que Kaname não vai ficar muito feliz se descobrir que não atendeu essa ligação simplesmente porque não passaram pra ele, e eu não vou ligar de novo. Então esperei a pessoa do outro lado quebrar o próprio silêncio. — Com quem eu falo? — Ela perguntou mais uma vez. — Moça, eu realmente preciso falar com Kaname. Ela ficou de novo em silêncio, só que, dessa vez, ela me colocou na espera. E a voz que atendeu depois foi a do meu irmão. — Khaiya? Contei-lhe o que acontecera. — Então — ouvi de novo a voz de Kaname, calma e tranquilizante como sempre. Não sei bem o que eu estava esperando, mas, certamente, não era por nada tão pacífico assim — alguma parte de Rido continua realmente confinada à Ártemis... Deram o nome de Ártemis pra ela? Fiquei pensando. Que legal. — Confinada a mim. — Eu o corrigi. — Você sabia, também... Ficamos ambos em silêncio. Se ele sabia, comecei a pensar, como se permitira ser tão descuidado a ponto de me deixar fugir? Teria feito aquilo de propósito? Se sim, sabia onde eu estava. É claro, se eu sabia onde ele estava, ele sabia onde eu estava. Óbvio. Mas, se tinha me deixado sair, não viria me buscar, viria? Viria? Por que ele me deixaria fugir? Imaginei se ele teria permitido que eu escapasse porque, do contrário, acabaria se decidindo por me matar para destruir Rido. Eu já tinha pensando naquela possibilidade várias vezes. Mas, se Kaname decidisse me matar, não importaria a distância que eu estivesse dele, ele viria e faria o que quisesse. Cheguei então à conclusão de que ele tinha, mesmo, me deixado fugir, mas não sabia mais onde me encontrar. Pensei em perguntar a Kaname se ele me mataria para acabar com Rido, mas achei a pergunta muito rude, então, em vez disso, perguntei: — Você está com raiva? Por eu ter ido embora? Ele não respondeu àquilo. Bom, eu me disse, é justo. Então perguntei: — De mim? — Não, Khaiya... Eu não estou com raiva de você. Para aquilo, a única explicação na qual eu conseguia pensar, era que ele só descobrira sobre Rido depois de eu ter fugido. Kaname devia ter percebido que eu estava considerando as chances de ter me tornar um alvo pra ele. Mas com eu poderia ter certeza? — Você... Quer que eu diga onde estou? — Perguntei. E ele também não respondeu imediatamente. O que só podia significar uma coisa: Kaname estava pensando a respeito. Desliguei o telefone. Sentei-me nas telhas ao lado do prato de panquecas e fiquei pensando em como minha vida era difícil. Até que Kyou subiu ali também. — Ah. — Ele disse, e me deu as costas para ir embora. — Você não precisa ir, sabe, eu não to usando o telhado inteiro. — Falei. Kyou olhou pra mim por cima de seu ombro e ficou parado lá, só me olhando. — Fizemos panquecas pra você também. Empurrei o prato pra Kyou e sorri, pra ver se ele vinha sentar-se ao meu lado. E ele, de fato, veio. Fiquei mais feliz. Kyou parecia ter algo pra dizer, então esperei, mas, quando ele finalmente falou alguma coisa, disse tão baixo que mal ouvi. Imaginei que ficaria bravo por eu não estar prestando atenção, então apenas balancei a cabeça. — Tudo bem. — Falei e deixei o tópico pra lá. — Não vai comer? Ele olhou pra frente e empurrou o prato um pouco mais para o meu lado. — Come você também, não vou conseguir comer tudo. — Vai sim, — rebati — eu estou cheio já. Então Kyou pegou uma e foi comendo. Ele ainda tinha algo pra falar, então fiquei atenta. — Eu... — Ele começou, e dessa vez me preparei para ouvir. — Vi você pular daquele prédio, hoje. — Oh — consegui dizer, pensando numa resposta rápida pra dar. — Tem certeza de que você me viu fazer isso? Porque, que eu saiba, esse tipo de coisa geralmente mata as pessoas quando elas chegam, quer dizer, no chão... Não? Achei que Kyou fosse gritar “Se estou dizendo, é porque tenho certeza!” e quebrar uma telha com seu poderoso punho, então seria fácil convencê-lo que ele estava delirando. Mas Kyou apenas correu os olhos para meus braços enfaixados, e então voltou a olhar a noite. — Como fez aquilo? — Ele perguntou, e eu percebi que seria uma perda de tempo muito grande tentar tirar qualquer coisa daquela sua cabeça laranja. — A verdade, — comecei a sussurrar, bem baixinho, por trás da mão — é que são técnicas ninjas proibidas secretas criadas por meus ancestrais e passadas para mim, a única descendente viva da família. Se eu as revelasse pra você, meu coração pararia de bater, e meu corpo instantaneamente se transformaria em pó, sendo espalhado pelos quatro cantos do mundo pelos espíritos vingativos da minha família. Falei tudo aquilo com a maior seriedade, e, por um momento, Kyou me olhou como se estivesse engolindo a baboseira toda. Mas, aí, ele ficou puto e realmente quebrou uma telha com um soco. Quase senti a dor na minha própria mão. — Não fica zoando comigo! Pará de inventar essas merdas! — Ele gritou. E eu ri muito alto. — Desculpa, só falei aquilo porque achei que fosse o que você queria ouvir, não foi pra te zoar. — Continuei rindo. — Mas não é nada verdade, mesmo, não. — É claro que não... ! — Kyou ainda gritou, mas então pareceu tentar se acalmar. — Por favor, não se irrite muito comigo. — Pedi a ele, exibindo um sorriso inocente. — Eu teria dito a verdade se fosse algo que eu pudesse explicar... Tenho certeza de que você sabe como é. — Eu sei! — Ele falou, não gritou, mas sua voz soou muito grossa. Kyou estava encarando a noite de novo, com um olhar bem quero-socar-alguém, então fez um barulho acirrado e deixou a cabeça cair entre os joelhos. — Eu sei. — Repetiu, mais calmamente. Fiquei calada ao seu lado. Kyou esticou-se e se deitou nas telhas, cruzando os braços atrás da cabeça. — Do que você estava fugindo? — Perguntou-me, depois de um longo silêncio. — Você tá com algum problema? — Não, só achei que seria divertido me exercitar pela cidade. Ele me olhou, bravo de novo. E eu arqueei as sobrancelhas, encolhendo os ombros. — Que foi? É verdade. Você viu alguém me perseguindo? Então Kyou desviou o olhar e disse: “Tem um monte de coisas... que eu não consigo ver”. Achei aquela frase abrangente demais e resolvi não filosofar em cima dela. — Mas aposto que tem um monte muito maior de coisas que você vê. — Falei, me levantando pra descer do telhado. — Leve o prato pra cozinha pra mim quando terminar, por favor? Ele assentiu, mas, quando eu estava descendo, Kyou se sentou muito rápido e me pediu com uma expressão cheia de determinação: — Lute comigo! — Ahm... — Pensei por um momento. — Não dá, eu não sei lutar, só correr. — Pará de mentir! — Ele gritou, então, de novo, pareceu fazer esforço pra manter a calma. — Quer dizer... Faz o que você quiser... Quer dizer. Tudo bem. Se não quiser. — E desviou o olhar. Deitei meus braços sobre as telhas e minha cabeça sobre eles. Fiquei pensando. Eu vinha pensando naquilo desde que descobrira o segredo deles. Quer dizer, não muito, mas mesmo assim... Havia algo que eu queria testar... — Sei alguns movimentos de defesa também. Mas podemos fazer isso amanhã? Estou bem destruído hoje. — Tá! — Ele se animou, mas aí fingiu não estar animado e se deitou de novo. — Bom... Sorri, desejando-lhe uma boa noite, e desci mais feliz. Senti como que ter me entendido com Kyou era quase uma missão cumprida com sucesso. Então voltei a dedicar minha mente para resolver meus próprios assuntos. Capítulo 12 Decidi falar sobre meu passado numa sequência cronológica. Então vou começar do começo, como mandam a ordem e os bons costumes. Naturalmente, não me recordo de minha infância humana com grandes detalhes, e, de minha infância vampira, não lembro absolutamente nada. Apenas uma memória, e justamente a que conecta as duas infâncias, permaneceu nítida e intacta ao longo dos anos. Esse é um dos motivos pelos quais acredito ser uma lembrança falsa. Lembro-me de estar sozinha na neve, coberta de um líquido vermelho desconhecido, quando fui abordada por um homem muito grande. Ele me disse algo, mas não entendi e fiquei só olhando. Aí ele me mostrou suas presas. Continuei olhando. Presas não pareciam assustadoras pra mim, já que eu não fazia ideia de para o que elas serviam. O monstro então se inclinou pra beber sangue do meu pescoço, mas, antes que o fizesse, Kaname apareceu e me livrou dele. O monstro sumiu imediatamente e Kaname me abraçou e me pegou no colo. Ele também sussurrou coisas pra mim, mas continuei sem entender nada. Outro motivo que me faz pensar que essa situação não poderia ter sido muito verdadeira é que, bem, Kaname não me deixaria sozinha num lugar tão exposto, onde eu estaria correndo um risco enorme de ser atacada por qualquer vampiro, ou bicho, o que me encontrasse primeiro. Afinal, eu não passava de um serzinho macio com um cheirinho muito interessante. Então, você vê, não seria muito filantrópico, da parte dele, me largar lá, mesmo que planejasse me pegar depois. Mas eu não recriminaria Kaname se ele admitisse ter colocado essa lembrança dentro da minha cabeça. Minha mente era uma folha em branco, e era bom que eu tivesse algo com o que começar. Ainda mais sendo uma cena tão impressionante, que mais tarde eu iria descobrir ter sido uma operação de salvamento muito heroica. Kaname me levou para casa de quem se tornaria meu pai adotivo, Kaien Cross, um caçador de vampiros que tinha tratado de se aposentar bem rapidinho, e ficou lá comigo. Fui enrolada em coisas quentes confortáveis e me deram um negócio engraçado e melequento para segurar. Como eu não sabia o que fazer com aquilo, fiquei mexendo, tentando descobrir para o que servia. Depois de me observar durante um tempo, e concluir que eu não teria sucesso algum sozinha, meu irmão pegou-o de mim e tentou colocar um pouco do negócio dentro da minha boca. Nisso, percebi que ele tinha presas também, igual ao outro moço. Eu me levantei e tentei tocar nelas. Kaname permitiu, deixando que eu examinasse seu rosto com bastante cuidado. Quando terminei, sente-me de novo e passei a sentir o meu próprio. Nós dois tínhamos estruturas com formatos muito parecidos, mas descobri que eu não possuía presas como as dele. Ele não é como eu. Foi o que senti naquele momento. Mesmo com meu cérebro completamente zerado e reiniciado, eu conseguia ser uma garota bem esperta. Pode ser que parte disso tenha realmente acontecido, mas eu não teria como confirmar. E não me daria ao trabalho se tivesse, também. Desde bem cedo, tomei nota de algo muito importante: adultos não compartilham informação com crianças. Depois de perceber isso, concluí que, para qualquer dúvida que eu tivesse, havia apenas uma maneira de conseguir a resposta: descobrindo sozinha. Felizmente, eu nasci numa geração cheia de alegria, na qual a maior parte das instituições, que lidavam com conhecimento importante de fato, estava organizando e digitalizando toda a sua documentação. Tudo o que tive de fazer foi aprender a invadir bancos de dados. E é claro que eu tirei o máximo proveito do fato de meu pai ter sido um membro (o presidente) importante da Associação de Caçadores no passado. Depois de aprender a mexer em seu computador, esclarecer os mistérios da minha infância ficou tão fácil quanto ler um livro cheio de imagens coloridas. Mas não posso dizer que mereço todo o mérito por minhas descobertas. Na época, eu achava que devia tudo a minha ótima intuição. Eu ligava os pontos todos sozinha, e só então saia para procurar fatos que confirmassem minhas teorias. Naquela época, eu ainda não sabia que tinha certo nível de acesso às memórias do meu tio, e que, devo admitir, esse era um grande fator realmente facilitador para com minha insaciável busca por respostas. Insaciável, eu digo, mas, bom, nem tanto assim. Aos nove anos, eu já tinha começado a me importar bem mais com coisas interessantes para o meu futuro e bem menos com bobagens chatinhas sobre o meu passado. Isso foi logo depois de ter visto Kaname bebendo o sangue de Luka. ... Certo, vou contar essa história direito aí. Aconteceu no dia das apresentações de dança das turmas do ginasial do meu colégio. Muito logicamente, eu não queria que Kaname estivesse lá quando eu fosse dançar, nem um pouco, mas meu pai o convidou e ele apareceu. Morri de vergonha, e, mesmo assim, dancei que nem uma princesa. Kaname viu a minha apresentação até o final, mas depois sumiu. Não aprovei nada aquilo. Eu realmente não queria que Kaname tivesse me visto dançar, mas fiquei muito chateada por não ter vindo falar comigo antes de ir embora. Por isso, quando voltamos pra casa, saí escondida e fui para o dormitório da turma noturna. Meu pai era diretor da Academia Cross. Fiz parte de uma das turmas de alunos normais apenas alguns meses antes de me mudar para a casa de Shigure, já que ela só abrangia os anos de colegial. A turma de “alunos normais” era a turma diurna, composta somente por humanos. A turma noturna não era exatamente uma “turma”. Na verdade, a coisa toda era só uma fachada. Kaname estava juntando vampiros da nobreza, sob a desculpa de pretender acostumá-los a lidar com humanos como iguais, e não como comida, em um ambiente supervisionado que permitisse uma proximidade segura entre ambos os grupos. Minha hipótese era que Kaname teria montado esse cenário apenas porque, assim, quando os Anciões olhassem para aquela atitude, veriam apenas um jovem sangue-puro com um senso de justiça ingênuo e inconstante, aproveitando-se do poder natural com o qual nascera para fazer joguinhos infantis que acalmassem sua consciência perturbada. E, dessa forma, não tentariam interferir. Somos todos uns espertos nessa nossa família feliz. Naquela época, eu já tinha quase certeza de que Kaname e eu éramos parentes. Mas não irmãos. Embora ainda não tivesse tido como provar que ele não era filho de Haruka e Jiyuri, eu confiava muito na minha “intuição”. Já tinha lido e relido todos os arquivos relacionados à família Kuran ao meu alcance Conhecia a linhagem toda como a palma da minha mão e, desde a primeira vez em que vira o nome “Kaname Kuran” no topo dela, eu desconfiara. Além disso, não existiam registros de sua morte, nem qualquer pista que indicasse o paradeiro de seu corpo adormecido. É claro que mesmo os investigadores mais experientes podem olhar para situações como essas e dizer “hum, talvez isso tudo seja apenas uma grande coincidência”. Mas eu não gostava de coincidências. Elas não funcionavam nem um pouco para mim. Ainda mais quando eu estava plenamente ciente dos inúmeros casos de sanguespuros que adormeceram por um ou dois milênios e, então, voltaram a andar por aí numa boa, como se nada tivesse acontecido. Entende? Ficaria difícil admitir que Kaname Kuran, um dos maiores precursores da nossa espécie, pudesse ter morrido ou, simplesmente, desaparecido, mesmo se tio Rido não fosse justamente o cara que o despertara, usando como sacrifício o sangue do legítimo primogênito de Jiyuri e Haruka: meu verdadeiro irmão mais velho. Com todos esses nós na corda em minhas mãos, mesmo sem nenhuma outra evidência sobre o caso, eu não duvidaria que aquele Kaname, que se dizia filho dos meus pais biológicos, seria, na verdade, muito provavelmente meu tatara(tatara)(e seja lá quantos outros tatara tenhamos que acrescentar)avô. Na minha opinião, ele tinha muita sorte de eu não sair espalhando minhas sacadas geniais para todos por aí que quisessem ouvir. Como ninguém compartilhava conhecimento comigo, assumi como correto que eu também não deveria compartilhar com ninguém aquilo que eu descobrisse sozinha. E falo sério quando digo que ninguém me contava absolutamente nada. Se dependesse de Kaname e do meu pai, eu provavelmente só descobriria aos quarenta anos que nascera como uma vampira sangue-puro. Eles nunca me diziam nada sobre mim, ou sobre meus pais biológicos, ou sobre meu tio. Por isso, podemos dizer que eu tinha até certo orgulho de esconder deles que sabia muito mais do que podiam imaginar. Mas, deixando isso de lado e voltando a falar sobre a primeira vez que vira Kaname usar suas presas... Bom. Certo, eu estava indo em direção ao dormitório da turma noturna. Eu não tinha problemas em ir até lá sozinha, porque, primeiro, eu era muito destemida. Mas, principalmente, porque eu tinha a convicção plena e absoluta de que Kaname arrebentaria o primeiro engraçadinho que pensasse em relar a mão em mim. Então bati à porta de dormitório sem grandes pudores. Ichijou atendeu, e me disse que Kaname não estava ali ainda, mas deixou que eu entrasse e fiquei esperando por ele lá dentro. Sim, admito que, fazer isso, não tenha sido muito esperto da minha parte, mas eu estava bem pouco me importando. Gostava muito do dormitório noturno, porque lá dentro era tudo bonito. Mas o bom senso de não ficar andando sozinha eu tinha, então me sentei comportadamente nas escadas e fiquei quietinha esperando. — Olá, mocinha. — Alguém disse, muito perto de mim, me dando um susto enorme. Um vampiro aproximara-se sem que eu percebesse, e aquilo tinha me deixado acuada. — Não faça isso. — Falei, irritada, levantando-me para encará-lo. — Isso o que? — Ele ergueu as sobrancelhas, me dando um sorrisinho. Aquele era Shiki Senri, meu outro primo. Embora eu ainda não soubesse disso também. Tio Rido tomava algum cuidado com o que me deixava ver em sua mente. — Ir chegando assim, sem fazer barulho. — Eu disse. — Você ainda não teve muito o empenho de ficar amigo dos regulamentos do colégio, né? — Não, na verdade. Você já? Tem alguma regra lá especificando que devo ser barulhento ao me aproximar de menininhas humanas bonitinhas que entram no dormitório da turma da noite? Semicerrei os olhos pra ele. — “Não é permitido caçar dentro da cidade, e, com sujeição à penalização, manifestar qualquer intenção de caça nos limites do colégio é terminantemente proibido”. — Citei. — Uau. — Ele ficou mesmo impressionado. — Decorou o número do decreto, também? — Não. — Respondi. Porque não tinha decorado mesmo, e não sabia o que significava decreto. Shiki riu e sentando-se ao meu lado. E eu me afastei imediatamente. Embora não soubesse nada sobre ele, eu não gostava da maneira como me olhava e chegava cada vez mais perto. — Não se preocupe, — Senri estendeu a mão para me tocar — eu ainda não estou “caçando” você. Por um momento, achei que tivesse batido na mão dele. Mas não tinha. Por alguma razão, eu não conseguia mais me mover. — Boa garota. — Ele falou pra mim, baixinho, deixando o sorriso deformar seu rosto de forma assustadora. — Senri. — Ouvi a voz de Kaname. Eu quis me virar pra ele, mas ainda não conseguia me mexer. — Kuran. — Shiki respondeu, recolhendo sua mão e apoiando o rosto nela. No instante em que seus dedos deixaram de tocar minha pele, meu corpo não se sustentou mais e eu caí no chão, como uma boneca inanimada. — Desapareça da minha frente. — Ordenou Kaname, parecendo trincar os dentes. — Como queira, Vossa Majestade. Ouvi os passos de Shiki se afastarem e achei que então poderia me mexer de novo. Me enganei. Kaname cobriu-me com seu casaco e me pegou no colo. — Sempre tão imprudente... — Ele disse. E me levou para algum quarto. Kaname me deitou numa cama, e ficou sentado ali ao meu lado, mexendo com os dedos de uma de minhas mãos. — Luka, ligue para o diretor. Diga a ele que venha buscar sua filha. Eu nem sabia que Luka estava lá. Kaname passou os dedos no meu pescoço, afastando meu cabelo. Ele vai me morder, pensei. E, embora eu quisesse aquilo, achei que Kaname estaria fazendo errado se me mordesse enquanto eu não pudesse reagir. Mas não havia nada que eu pudesse fazer, e, no final, nem precisei. Ele só chegou perto do meu ouvido e me perguntou se eu estava acordada. — Khaiya? — Tentei responder, sem sucesso, mas Kaname devia ter percebido de alguma maneira, pois encostou sua testa a minha e sussurrou: — Durma. E eu dormi. Mas fiquei com a impressão de não ter dormido muito. Quando acordei, já conseguia me mover normalmente, o que foi um grande alívio. Olhei em volta, procurando por meu irmão, mas não o encontrei, então achei que seria melhor voltar pra casa. Mas, ao sair do quarto, ouvi Luka gemendo. Não era um gemido muito alto, mas, com certeza, era de dor. Eu sabia que crianças exemplares deveriam correr pra debaixo das asas dos adultos ao menor sinal de perigo, mas, como eu não passava nem perto do que qualquer um poderia chamar de criança exemplar, para fazer jus a mim, tive que ir lá olhar o que estava acontecendo. E foi assim. É claro que eu sabia que vampiros faziam aquele tipo de coisa. Afinal, eu passava grande parte do meu tempo procurando descobrir sobre vampiros coisas que eu ainda não soubesse a respeito deles. Mas entre ver e saber existe uma grande diferença. A sensação foi parecida com a de quando a gente vê um parto natural pela primeira vez, depois de passar anos fantasiando sobre do belíssimo milagre do nascimento. Luka parecia estar, mesmo, sofrendo. De verdade. — Vá... embora! Some daqui... — Ela sibilou pra mim, fazendo um esforço enorme. Kaname, então, ergueu seu rosto. E me olhou também. Eu recuei, e, nisso, acabei esbarrando em algo atrás de mim, que caiu e se espatifou no chão, fazendo o maior barulho. Rangi e sai correndo. Eu esbarrei com Shiki de novo no saguão. Dessa vez não dei bobeira, e me afastei vários passos, preparando-me para me defender. Mas Shiki só me olhou, como se nunca tivesse me visto na vida, e seguiu seu caminho sem me dar muita bola. Na hora, eu não entendi nada, e me apressei a sair de lá. Zero estava me esperando na entrada. Zero também tinha sido adotado pelo diretor, então vivíamos juntos. Basicamente, o que havia para saber dele era que seus pais haviam sido assassinados por uma vampira, e que ele nascera numa família de caçadores. Uma combinação péssima, na minha sincera opinião. Eu nunca tivera total certeza de se ele fora ou não mordido, até o dia em que Zero realmente me mordeu, mas desconfiava fortemente que sim, e, como a criminosa tinha sido Hiō Shizuka, uma sangue-pura, temia que Zero estivesse para se tornar um vampiro em breve. — O que você estava fazendo aí dentro? — Ele me perguntou, olhando pra mim com aquela cara que só ele, mesmo, sabia fazer, puto da vida. Enfiei minhas mãos nos bolsos, mostrando pra Zero que eu não estava nem aí. — Rindo na cara do perigo. — Respondi. — Há-há. Ele fez um estalo com a língua e aí pegou a minha mão, e me arrastou de volta pra casa. — Você é muito burra. — Me disse. Coloquei meus olhos de novo no dormitório. E cruzei o olhar de Kaname, que estava sentado na travessa inferior de uma das janelas do andar de cima, recostado ao batente. Encolhi meus ombros para ele e continuei sendo puxada por Zero. Capítulo 13 Eu tinha acabado de entrar pra turma diurna do colégio do meu pai quando Zero me mordeu pela primeira vez. Admito, fiquei surpresa. Por ele ter aguentado tanto, eu digo. As vezes em que tentei conversar a respeito disso foram, tipo, infinitas. Eu não era nenhuma cega, e, também, não era como se Zero fosse expert em esconder sua transformação. Afinal, era a primeira vez dele. Coitado. Enfim, apesar de todos os meus esforços para fazê-lo se abrir comigo, Zero escolheu simplesmente se fechar, e esperar para ver até onde ele aguentava. E, quando seu limite saiu do bolo e veio fazer um strip no colo dele, quem pagou a conta fui eu. Porque, sim, sim, é assim que funciona. E aquela foi só a primeira vez. Não, porque, claro, a coisa se repetiu. Não importava o quanto eu tentasse explicar que, quanto mais tempo Zero passasse segurando sua sede, mais violentamente ele me atacaria quando não pudesse mais suportar. Mas Zero sofria de “Complexo de Herói”... Ou melhor, eu sofria com o complexo dele. Era sempre assim. Zero nunca deixava que papai e eu o ajudássemos. “Você não tem nada a ver com meus problemas” era sua frase favorita. No final, dava nisso. — Não olhe pra mim... — Zero rangeu, segurando meu rosto para que eu não pudesse virá-lo. — Quê isso, irmão?! Que diabos você... — Eu tentei me livrar dele. Obviamente, eu não estava o tempo todo, cem por cento, preparada para levar uma mordida. O que, na minha opinião, poderia ser considerado muito natural. Às vezes eu estava só passeando pela escola numa boa, se é que você me entende. Mas, aí, Zero me mordeu. Certo, certo, pensei, eu aguento isso. O choque durou apenas um instante, porque, sabe como é, tem a dor, e tal. Quando passou, decidi aguentar aquela dorzinha boba o quanto fosse preciso. Suave. Só que eu não contava com que não fosse só a mordida que fosse doer. Pensei em Luka. Realmente, para que apenas uma mordidinha pudesse colocar aquela expressão no rosto dela... Ela teria que ser muito fresca. Bem, mas é como eu disse, saber é diferente de ver. Ver, portanto, também é diferente de saber. E naquele momento, eu estava sabendo bem legal como que era aquele negócio. Foi só ali que eu compreendi que, no olhar que Luka me lançara, havia muito mais do que simplesmente dor. Aquilo também poderia ter sido tristeza. E vergonha. E humilhação. Rejeição, também, provavelmente. Quando as presas de Zero furaram minha pele, comecei a ter nojo de mim, como se eu estivesse traindo uma pessoa importante, que me amasse muito. Senti-me miserável, alguém que não merecia nem viver, e, mesmo quando percebi que aqueles eram os sentimentos de Zero, e não os meus, a sensação não passou. Então trinquei os dentes e apertei meus olhos com força, esperando ele terminar. Eu ouvia os seus pensamentos, me dizendo que gritasse por ajuda, ou que desse um jeito de escapar. Ou... Que tirasse a arma do cinto dele e o matasse. Quando finalmente me soltou, eu mal tinha forças pra falar. Notei que Zero parecia estar chorando. Ele se ajoelhou ao meu lado – eu tinha caído no chão, depois de cambalear alguns passinhos, certamente com um nível perigoso de anemia – e me abraçou com força. — Me perdoe. Me perdoe, me perdoe, me perdoe... — Ele ficou pedindo. Eu queria bater em sua cabeça, dizer que estava tudo bem, que ele não precisava chorar, e que aquilo tudo ia passar num segundo. A verdade era que eu estava muito bem, obrigada. As emoções de Zero me soltaram no momento em que suas presas o fizeram, e, sem elas, eu me sentia um passarinho. Um passarinho prestes a morrer devido à hipóxia generalizada, mas um passarinho de consciência limpa. Eu nem estava pensando muito em que toda aquela culpa podia estar corroendoo por dentro àquela altura. — Saia de perto dela, Kiriyuu! — Kaname gritou de algum lugar. Meu irmão tinha essa habilidade de aparecer nos momentos mais cruciais. Muito embora, talvez ele só tenha aparecido lá por causa do cheiro do meu sangue daquela vez. Zero deu um pulo pra trás, olhando para Kaname como um animal selvagem encurralado. — Meun houm mãein... — Falei, bem tranquila, apertando fracamente os dedos no braço do meu irmão quando ele chegou pra me pegar. Eu queria dizer que estava bem, mas não tenho certeza de que alcancei meu objetivo. Senti-o encostar seu rosto no meu. Estava morninho. O que só podia significar que o meu devia estar congelando, ou quase isso. A pele do meu irmão nunca ficava morna, ou quente. Era sempre fria. Kaname, muito eficientemente, não perdeu tempo fazendo ameaças tolas furiosas contra Zero e me levou rapidamente para a enfermaria do colégio, onde recebi uma transfusão de sangue. Preciso explicar por que havia sangue para transfusão na enfermaria do nosso colégio? Bem, não, certo? De qualquer forma. Fiquei novinha em folha rapidinho. Impressionantemente, eu tinha muito mais sangue do que imaginava. Nós, seres humanos, nunca estivemos nos equilibrando numa linha fina entre a vida e a morte afinal. Naquele dia, eu descobri que tinha mais ou menos uns cinco litros de sangue dentro de mim. Não é o máximo? Mesmo que Zero tivesse conseguido beber dois litros todinhos só de uma vez, ainda me restariam três! Aprofundei minhas pesquisas, e acabei descobrindo também que uma pessoa saudável podia passar até dois meses sem ingerir absolutamente nada de alimento, e sobreviver, (e, no caso de ela ser gordinha, então, havia chances de viver até se ficasse sem comer durante um ano inteirinho!)! Achei os humanos muito mais incríveis depois daquilo. Kaname ficou comigo o tempo todo, algo que achei muito legal da parte dele. Eu conseguia perceber perfeitamente que o que estava fazendo era um esforço enorme. Imaginei se eu teria tanto autocontrole em seu lugar. — Eu estou bem, irmão. — Disse a ele, sacudindo minha mão. Ah, sim. Antes de continuar, vou explicar uma coisa. Depois de descobrir que eu também era filha de Jiyuri e Haruka, e antes de descobrir que, na verdade, só eu era filha deles, passei a chamar todos de irmãos. Não sei se vou conseguir fazer com que entenda isso, mas, simplificadamente, eu queria esfregar minha descoberta tão sagaz no nariz de Kaname, e, ao mesmo tempo, acobertá-la. Assim, fiquei um tempo me acostumando a chamar meus amigos de irmãos, e, num belo dia, experimentei chamar Kaname assim. Foi divertido. — O que é? Eu chamo todo mundo desse jeito. — Expliquei a ele, depois de admirar, por um belíssimo momento de vitória, a cara que fez. Bom, como já mencionei, Kaname e eu viemos de uma família cheia de sagacidades. Por isso, duvido muito que, a partir daquele momento, meu irmão não tenha passado a se perguntar o quanto eu realmente sabia. Mas sua maneira de lidar com isso era muito simples: ele apenas continuou sem me dar nenhuma dica adicional. Algo que me decepcionou seriamente em diversos níveis diferentes. Então, aprendendo com meus tropeços, comecei a ficar mais esperta e parei de dar bandeira. Para camuflar meu pequeno deslize, continuei chamando todos de irmãos durante vários anos. Certo, voltando agora, então. — Imagino que ficar aqui, assim, deva ser bastante complicado pra você. — Continuei dizendo. Kaname estava sentado numa cadeira ao lado da minha cama, tentando disfarçar o fato de seus olhos estarem com aquela cor dinâmica esquisita, que parecia se movimentar como água agitada, refletindo um brilho vermelho. — Tudo bem se também quiser... Ir embora. Na verdade, eu ia completar a frase com “um pouquinho”, mas mudei de ideia. Ei, talvez eu já fosse cínica desde aquela época, afinal! Que alegria. Passar tanto tempo ao lado de tantos vampiros devia oprimir esse meu lado. Sabe-se lá. — Posso ver? — Kaname pediu, levantando-se e se inclinando para mim. — Você quer... Hum. Ver? — Arqueei as sobrancelhas, preocupada com a possibilidade de ele ter lido “tudo bem se também quiser um pouquinho” na minha mente. Porque era só brincadeira. Eu não estava pensando sério. Mas Kaname apenas levantou meu rosto e tocou na pele ao redor do ferimento com cuidado. — Nossa... — Como assim? — Franzi a testa. — Por que “nossa”? Tá muito feio? Tá esquisito? Têm duendes mutantes nascendo aí ou algo assim? Não consegui fazê-lo rir com meu comentário bobo. Kaname apenas me olhou por um instante com aquele seu Q de preocupação constante, como se a culpa fosse dele. — Está profunda. Ele não se conteve nem um pouco. Sua mão deslizou até meu rosto, e eu a segurei ali. — Ele se conteve. Sim. Totalmente. Durante vários anos. — Expliquei, olhando para meus pés. — Você sabia que ia acontecer. — Ele notou, sem se surpreender. — Zero me avisou. — Menti. Ninguém me avisava nada naquela merda, não. Mas eu já disse isso. — Ainda assim, deve ter doído muito. — Falou, então, de novo como se a culpa fosse dele. — A mordida, não. Quer dizer, não muito. Só no início. — “A mordida”? Você sentiu alguma outra dor? Levantei meus olhos para os dele. Kaname tinha detectado algo de errado. Talvez eu não devesse ter sentido nada além da mordida. — Não. — Menti de novo. Mentir era um arco-reflexo pra mim. Assim que meus sensores percebiam qualquer coisa fora do lugar, minha boca se abria e, antes mesmo que meu cérebro se desse conta disso, eu já tinha dito uma mentira. Depois, ele que se virasse para fazê-la soar verdadeira. — Só que ele me apertou com força, talvez tivesse achado que eu fosse lutar, sei lá. Mas... Esfreguei os pulsos, como se estivessem magoados, tentando forçar credibilidade. — Mas um dia eu vou ter filhos, boatos que qualquer outra dor não será nada comparado a isso. — Falei, dando um tapa no ar e sorrindo meu sorriso -tudo certo-. — Kaname. — Meu pai apareceu e o chamou da porta. — Você pode ir pra sala? Os outros vampiros estão ficando inquietos por causado do... Cheiro. — Uau! Por causa do meu cheiro? — Olhei para Kaname. — Sério. É muito o poder isso aí. Não fiz ninguém rir, de novo. O povo não estava de muito bom humor naquele dia. Kaname saiu e meu pai veio cuidar da minha ferida. Disse a ele que podia cuidar daquilo eu mesma, mas ele quis fazer. — Me desculpe, Khaiya. — Começou papai. Ai, pensei, sabia que ele ia puxar a conversa pra esse lado. — Eu não queria que as coisas tivessem acontecido desse jeito. Nós íamos contar a você, eventualmente, mas... Hum, pensei então, seria possível que nenhum dos dois soubesse que eu sabia? É claro que eu não chegava pra falar abertamente com Zero sobre esse assunto. Eu tentava convencê-lo a me contar, mostrava pra ele que eu ficaria ao seu lado, independente do que fosse, e que ele podia confiar em mim. Mas também procurava respeitar o seu direito de me contar quando se sentisse à vontade. Bom, na verdade, eu achava que ele acabaria percebendo que eu sabia. Enfim, meu pai, então, resolveu me explicar um montão de coisas. Falou sobre o massacre dos pais de Zero, sobre o que a família dele fazia, e sobre o poder dos vampiros sangue-puro de transformar humanos. E eu, bem, fiz meu papel. Acenei a cabeça em todos os momentos certos, e prestei atenção. Afinal, ao que dizia respeito a ele, tudo aquilo era novidade pra mim. — Você acha que... Eu vou, hum, virar uma vampira agora também? — Perguntei, tentando fingir preocupação verdadeira. É claro que eu tinha que fazer uma pergunta burra no final. Papai me abraçou, o que fez com que eu me sentisse um pouco mal comigo mesma, e disse pra mim, com sua voz gentil de pai: — Não, Khaiya. Zero é um ex-humano, não um sangue-puro. Você não tem que se preocupar com isso. Fiz que sim, e o abracei também. Eu era uma pessoa muito complicada. Capítulo 14 Na Academia Cross, assim como no Colégio Seijyo, onde eu estudara com a família Sohma, também tínhamos um montão de menininhas histéricas bem doidinhas. Mas, quando os alvos de toda aquela histeria tinham presas e atacavam, a coisa ficava um pouco mais complexa. Por isso, Zero, eu, e mais dois meninos, fôramos designados por meu pai como guardiões da escola. Nosso trabalho consistia basicamente em impedir que as alunas do diurno descobrissem que seus ídolos do noturno eram vampiros, e, principalmente, que fossem mortas por eles. Geralmente, Zero e eu patrulhávamos juntos, mas, como Zero estava confinado ao seu quarto desde o incidente envolvendo os dentes dele e meu pescoço, àquela noite erámos só Killua e eu. Killua Zoldyck fora um dos dois contratados por meu pai para nos ajudar a guardar a escola. Ele tinha doze anos O outro chamava-se Kurapika Kuruta, mas falo dele depois. Apesar da idade, Killua já tinha passado por umas coisas bem tensas. Ele também vinha de uma família de caçadores, mas, diferente da de Zero, a família Zoldyck não estava, nem nunca esteve, associada a nenhuma organização. Os Zoldyck eram assassinos mercenários profissionais muito famosos no submundo. Do pouco que eu conseguira descobrir sobre eles, eu sabia que Killua, assim como as outras crianças da família, matava desde os seis, e que uma grande quantidade de armas antivampiros já havia sido fundida ao seu corpo. Muitas delas depois que ele já tinha adquirido consciência bastante pra lembrar. Foi assim que eu descobri a existência daquele método, embora ainda não soubesse que ele fora aplicado também a mim. Killua era apenas um ano e meio mais novo do que eu, mas eu o adorava e totalmente adotaria o garoto se pudesse. Nós dois estávamos no terraço do prédio de “aulas” do noturno, vigiando. Bom, mais ou menos vigiando. Na verdade, estávamos jogando RPG online. — Tem duas garotas aqui perto. — Killua falou, numa hora, sem sequer tirar os olhos do seu computador. Coloquei o meu de lado e me inclinei sobre a amurada para procurá-las. — Achei. — Falei, me preparando pra pular do prédio e ir ao encontro delas. — Agora já era. — Killua sorriu pra mim, divertido. — Dois vampiros acabaram de sair do prédio e estão indo lá vê-las. — Uau. — Eu disse. — Sério, Killua, é muito poder pra eu processar de uma só vez. Dei mais uma procurada e encontrei. Eram Hanabusa e Kain só. Eu os conhecia, não era difícil lidar com os dois. — Quer que eu resolva isso bem rápido? — Killua subiu na amurada e ficou agachado, olhando pra mim e sorrindo muito. Ele levantou uma de suas mãos e fez aparecerem garras afiadas enormes e perigosas, onde deveriam estar as suas unhas. Aquilo não parecia doer nem um pouco nele. Em mim doía horrores. — Que graça teria pra você? — Perguntei, me deixando contagiar por sua animação repentina, e sorrindo também. — Você já é profissional, sou eu que estou em treinamento. E se a gente fizer assim: você me dá cinco minutos, se eu não conseguir lidar com a situação, você desce e faz as coisas do seu jeito. — Dois minutos. — Ele desafiou. — Quatro e meio. — Barganhei. — Três. — Três e meio. — Fechou. Se não conseguir convencê-los a entrar no prédio nesse tempo, eu vou lá e mato os dois. — Killua falou, e, embora ainda estivesse sorrindo, eu sabia que estava falando sério. — Hum. Ou... Você pode me ajudar a convencê-los a entrar, e, aí, amanhã eu te pago um sorvete do tamanho que quiser. — Sugeri. — Claro, por mim, pode ser isso. — Ele ficou feliz, pulando da amurada e colocando suas mãos atrás da cabeça. — Não desça antes de três minutos e meio. — Avisei. — Se não, perde a aposta. — Claro, claro. Killua voltou a mexer em seu computador e eu fui lá pra baixo. — Vocês! — Interceptei primeiro as garotas. — É estritamente proibido perambular pelo campus do colégio após as seis da tarde. Quero saber seus nomes e unidades de alojamento. Ambas terão que cumprir detenção. Elas fizeram aquela cara que todas faziam quando eu dizia aquilo. Óbvio. Mas depois de observar Zero fazendo milhares de vezes, eu aprendera a intimidar, e, com minha cara mais assustadora, gritei com elas. — O que estão esperando?! Voltem para seus dormitórios! E elas voltavam, achando que assim estariam se livrando da detenção. Porque, provavelmente, nunca haviam lido os regulamentos da escola, e, portanto, não sabiam que nem tinha detenção nenhuma, só uma advertência. — Você viu aquilo, Akatsuki? Ficou assustado? Eu fiquei. Hanabusa Aidou e Kain Akatsuki apareceram atrás de mim. Recuei, colocando uma distância segura entre eles e mim. Meu pai sempre me ensinara a usar velocidade contra vampiros, e dera bastante ênfase a esse tópico, já que, uma vez nas mãos deles, força não adiantaria de nada. A não ser que você tivesse uma Arma de Caçador. Mas, de novo, eu não sabia que tinha. — Dois! Vocês têm TRINTA SEGUNDOS para colocarem os pés dentro daquele prédio. — Se não? — Aidou levantou as mãos pra mim, mostrando-se desarmado. — Se não, chuto seu traseiro, irmão. — Sorri pra ele. Entre nós, era tudo brincadeira. Mas deixaria de ser se algum deles tocasse em mim, ou se Killua descesse do terraço. — Ela não é uma gracinha? — Hanabusa falou todo bobão, olhando para Kain, que estava alguns metros atrás dele. Aproveitei a deixa e estendi meu cajado, inferindo um golpe contra cabecinha de vento de Aidou sem hesitar. Ele segurou a ponta, antes que essa o atingisse, e puxou, então soltei o cajado imediatamente. Imaginei que, ao sentir que não tentaria disputar cabo de guerra com ele, Aidou pensaria que eu me afastaria mais uma vez. Por isso, avancei, e joguei meu cotovelo pra cima, acertando seu nariz. Depois virei-me e empurrei meu punho com toda a força, para impulsionar o outro cotovelo contra o diafragma dele. Por fim, me abaixei e chutei atrás de seus joelhos, passando-lhe uma rasteira logo em seguida. Foi uma bela sequência de movimentos. Me orgulhei muito dela. Aidou caiu de joelhos e eu enlacei seu pescoço com uma corrente, empurrando suas costas com um dos meus pés. E Kain ficou lá atrás, só dando risada. — Você perdeu. — Killua me disse, andando em nossa direção calmamente, com as mãos no bolso da blusa e uma expressão muito profissional no rosto. E eu fiquei ali, com aquela impressão de que ele não estava mais ligando muito pra sorvete. — Não. Eu convenci os dois. — Falei, toda feliz. — Vocês vão voltar pra dentro do prédio agora, certo? Hanabusa riu, me dando um meio sorriso por cima do ombro. — Vamos? E então, vi algo como uma serpente azul se enrolar na corrente em direção às minhas mãos, e, de repente, elas foram congeladas. — WOW! — Soltei um berro e as sacudi, bem louca, tentando me livrar daquele negócio. — Te peguei! — Aidou cantou vitória, puxando meu pé e me fazendo cair no chão. No segundo seguinte, ele estava em cima de mim, com Killua de pé ao seu lado, ameaçando-o silenciosamente com as suas garras afiadas. — Afaste-se, vampiro. — Ele disse, e realmente soou muito profissional. Os dois provavelmente nunca tinham se encontrado antes, porque, quando viu as garras dele, Aidou ficou bem impressionado. — Que isso, irmão?! — Ele me imitou, ainda flutuando sobre o que considerava ser apenas brincadeira, mas começando a considerar a possibilidade de aquele menino estar jogando sério. — Sai de cima, Hanabusa! — Eu falei, empurrando-o. — Vocês dois, voltem pro prédio, to falando sério! — Façam o que ela diz. — Ordenou Killua. — Oh... — Aidou arqueou as sobrancelhas, agora realmente começando a se sentir provocado. — Levante-se. Aí todos nós olhamos para Kaname. — Ah! Kuran... — Aidou sentou-se sobre os próprios calcanhares, deixando os meus em paz. — Você — meu irmão falou baixo e bem devagar — e Kain, vão para o dormitório e me esperem lá. — Aaaaa...aaah! — Rangeu Aidou, reclamando e se levantando. Também me coloquei de pé com um salto, quando Kaname deu um passo em minha direção. — É o que você ganha por ficar usando cheat, Hanabusa, seu maroto. — Ralhei com ele. — Que bruxaria foi essa que você fez com as minhas mãos afinal?! Aidou olhou pra mim por cima do ombro, pronto para se gabar de alguma arteirice sua, mas Kaname apenas olhou-o de cara feia e ele continuou andando. Então meu irmão encarou Killua. — Algo a dizer, senhor monitor? — Perguntou a ele, mas Killua não respondeu, apenas enfiou as mãos de novo no bolso e ficou encarando de volta. Kaname tocou em minhas mãos, que voltaram ao normal no mesmo instante. — Vocês têm que me ensinar as manhas dessas paradas qualquer hora aí. — Sorri pra ele, abrindo e fechando os punhos pra fazer a circulação voltar. — O ferimento ainda está aberto, Khaiya. — Ele me explicou. — Eles sentem seu cheiro. Você devia ficar em casa por enquanto. — Sinto muito, senhor líder do dormitório da turma da noite. — Fiz uma reverência. — Não posso fazer isso, tenho minhas obrigações para prestar conta. E o sinal da internet pegava melhor em cima do prédio de “aulas” da turma da noite. Mas, claro, não comentei isso com ele. — Certo. — Kaname deu-me as costas e foi atrás dos dois vampiros. — Só tenha a certeza de que não está se esforçando demais. Peço perdão pelo transtorno. Apoiei minhas mãos na minha cintura e olhei para Killua. — Ainda tem a pira de continuar jogando? — Perguntei. Ele me olhou. — Você entendeu por que perdeu? — Porque... Não consegui convencê-los a entrar no prédio. Certo? — Mas entendeu por que motivo você perdeu? — Hum. — Pensei. — Porque não tenho unhas maneiras que nem as suas. Killua torceu suas sobrancelhas, me olhando de um jeito engraçado. — Você os trata como se fossem amigos. — Ele explicou, como se aquela fosse claramente a única resposta válida. — E eles são amigos. Somos todos uma grande família feliz nessa nossa escola maluca. — Repliquei, abrindo mais o meu sorriso. — Eu tomaria mais cuidado se fosse você. Aquele vampiro estava pronto para te morder desde o momento em que você tocou o chão. — Ele terminou sua explicação, muito sério, e então, finalmente, me abriu um sorriso também. — Você me deve um sorvete do tamanho que eu quiser. Fiquei no estado mãe-pegajosa-mode_on e o abracei por cima dos ombros, dando uma mordida em seu pescoço. Ele ficou petrificado. — Te mordi. — Dei um sorrisinho. — E não deixamos de ser amigos só por causa disso. — Você é louca?! Eu podia ter te matado por bem menos que isso! — Ele gritou sem respirar. — Eu acredito. Mas confio nos seus sentidos para identificar a diferença. Você sabe que sou cem por cento humana. — Idiota. Me deve dois sorvetes agora! — Ooookay! Passei o resto da noite jogando com Killua. Quando terminamos nosso turno, fui ver Zero, mas ele ainda não queria falar comigo, então não insisti. No dia seguinte, levei Killua à cidade. Como ele não saia muito, ficou todo perdido. Levei-o de um lado para o outro em todas as lojas de jogos, doces e miniaturas de bonecos que achei que ele fosse curtir. Nós tínhamos gostos parecidos, portanto, foi um passeio divertido. No final do dia, no entanto, algo aconteceu. Eu estava levando Killua a um ponto do qual saiam ônibus que passavam bem na frente da escola. Era um ponto escondido, mas os veículos saiam de lá bem vazios e eu achava bem melhor ir até ele do que ficar trocando no meio do caminho. Ao passarmos por um beco ali por perto, Killua sentir a presença de vampiros. Ele puxou meu braço e ficou na minha frente. Mas o que nos atacou veio por trás de mim. E era só uma garotinha. — Me protege. — Ela pediu, abraçando minha barriga e afundando seu rostinho no meu casaco. — Não deixa me pegarem, me protege, me protege, me protege... Killua a atacou sem se segurar. Mas eu empurrei a menina comigo para trás, defendendo-a com um de meus braços. As garras de Killua rasgaram a manga da minha blusa e me arranharam. Ele ficou surpreso por aquilo ter acontecido, mas logo suas sobrancelhas se juntaram no meio e ele me olhou furioso. — O que está fazendo?! Ela é uma vampira! — E daí?! — Sibilei. Eu tinha ficado um pouco brava por Killua ter feito aquilo. E por ter me arranhado, também, mas isso era o de menos. — Sai de perto dela, Khaiya, eu estou falando sério. Ela tá fedendo a sangue. — Passa pela sua cabeça que talvez esse sangue seja dela? Killua ficou encarando a garotinha, que continuava se escondendo atrás de mim. — O jovem mestre Zoldyck está querendo dizer que essa garota está quase caindo para classe E, Khaiy. Ichijou apareceu para nós, trazendo consigo uma espada gigantesca. E Shiki, logo atrás. Àquela altura, eu já estava sabendo do nosso grau de parentesco. E daquela parada divertida que os sangue-puros podiam fazer com os corpos dos seus descendentes. Mas, embora eu continuasse cautelosa, nunca tinha acontecido de Shiki ser tomado por meu tio Rido de novo, desde aquela vez. Ou, pelo menos, não que eu tivesse ficado sabendo. — Você vai se tornar um caçador muito talentoso, se já é capaz de sentir isso com essa idade. — Ichijou sorriu para Killua, que se limitou a responder-lhe com uma expressão ameaçadora. Segurei a garotinha, que, assim que os dois apareceram, se escondera ainda mais atrás de mim. — Quase classe E não é classe E! — Falei. Eu estava ficando cada vez mais puta com todo mundo. — Some com essa espada de uma vez, você a está deixando assustada! — Ela sabe o que é um classe E? — Shiki ergueu as sobrancelhas. Ichijou também pareceu um pouco surpreendido. Revirei os olhos. — Se achavam que eu não ia saber, por que trazer o termo à tona? Quem eram os responsáveis por essa menina? Os dois trocaram um olhar um pouco perdido. — Nós. — Ichijou me disso. O que me deixou extremamente perturbada. — Kaname a transformou?! Foi ele quem fez isso?! — Arfei. Eu nunca tinha imaginado que Kaname fosse capaz... Quer dizer, capaz eu sabia que ele era, mas, mesmo assim, nunca imaginei que ele fosse fazer, antes daquele dia. Foi um verdadeiro choque pra mim. Mas aprendi a não riscar possibilidades baseado apenas no meu julgamento de caráter sobre as pessoas. — Não! Khaiy, não! Não é nada disso! — Ichijou se apressou a esclarecer. — Nós encontramos essa garota tentando entrar no colégio há algumas semanas, mas não sabemos quem pode tê-la transformado. “Como assim, não sabem?! NÃO EXISTEM TANTAS OPÇÕES ASSIM!!!” Eu estava pronta pra gritar. Mas me segurei. — Quero falar com Kaname. — Disse eu. Ichijou suspirou. — Certo. Com certeza, você vai... Entender melhor se for ele te explicando. Mas temos que levar a garota de volta. Teremos problemas se não o fizermos. Olhei para aquela espada. — Eu vou levá-la. — Anunciei. — Não, eles é que vão. — Killua me disse. Ele também estava puto, talvez mais do que eu até. — Ela está te usando como escudo, caso você não tenha percebido! Essa coisa é perigosa e você sabe disso muito bem! — Ela é uma pessoa, Killua, não é uma coisa. — Respondi, muito séria. Killua fechou as mãos com muita força, fazendo com que sangrassem, apertou os olhos e encarou o chão. — Como você pode dizer coisas assim depois do que aquele idiota fez... Percebi que ele falava de Zero. Obviamente, Killua também tinha percebido. Vida complexa. Olhei para Ichijou e ele levantou as mãos. — Deixe-me levá-la. — Pediu. — Minha preocupação maior é que ela te machuque se deixarmos que fique com você. Tem minha palavra de que ela não será ferida. Você confia em mim, certo? Eu confiava, sim. Mas não confiava muito em Shiki, por motivos óbvios. — Eu quero a espada. — Falei. — E quero que a garota volte só com você, e que Senri volte sozinho. — Olhei para Shiki. — Tudo bem pra você? Ele deu de ombros e colocou as mãos atrás da cabeça. — Por mim, tanto faz. Ichijou se aproximou de mim e deixou a espada no chão ao meu lado. Ele tentou persuadir a garota, mas claro que ela não quis ir com ele. Eu queria ir com Ichijou para levá-la, mas tinha certeza de que Killua não aceitaria isso também. Tentei me lembrar de como o homem do barco conseguira transportar seu lobo, cordeiro e cesto de repolhos, um a um, através do rio, sem deixar que nenhum deles devorasse o outro. Não consegui. Bom, não importava. Eu não tinha um lobo, ou um cordeiro. E muito menos um cesto de repolhos. Só um assassino profissional e três vampiros. O que, definitivamente, não era a mesma coisa. Então, antes que eu pudesse impedi-lo, Killua bateu na nuca da menina, e ela desmaiou. — Se alguém tocar a garota sem que Khaiya tenha consentido com isso, — ele disse a Ichijou — eu vou matar você. — Certo. — Ichijou deu um sorriso -eu aprovo- para Killua, e pegou a menininha no colo. E os dois foram embora. Fiquei lá parada, ainda pensando no homem do barco. Killua ficou do meu lado, me olhando sem dizer nada durante um tempo, então pegou a espada no chão e segurou meu pulso, passando a me guiar na direção em que estávamos indo, antes de toda aquela bagunça começar. — Ela ia gritar e pedir sua ajuda até te enlouquecer, se eu não tivesse feito aquilo. — Ele explicou pra mim. Assenti. E voltamos pra casa. Não fui tentar falar com Zero naquela noite. Em vez disso, fui ao dormitório da turma da noite. E que acabei encontrando no caminho foi justamente Zero. — Aonde você vai? — Ele me perguntou. — Pra lá. — Sinalizei com a cabeça. — Fazer o que? — Coçar meu cotovelo. Ficamos nos olhando. Então eu passei, e Zero me seguiu, sem mais uma única palavra. Ao chegarmos à entrada, encontramos Hanabusa e Kain. De novo. — Se encostarem em mim hoje, espanco os dois até a morte. — Falei, sem olhar pra nada. — Tudo bem. — Kain se moveu. — Estamos aqui porque Kaname nos disse que viria. Nós vamos só escoltar você, não se preocupe. Ele também vem? — Perguntou, apontando para Zero. — Se ele quiser. — Dei de ombros. E fui andando. A última vez que eu fora ao dormitório do noturno, fora naquela noite em que pegara Luka e Kaname juntos. Já falei dela. Normalmente, eu não passava do prédio de “aulas”. Eu, embora soubesse que bem poucos dos vampiros que moravam no dormitório frequentavam o prédio de aulas, não imaginava que havia tantos morando lá. Fomos andando, até encontramos Kaname. Ele estava sentado num sofá na varanda do dormitório. — Que bom que teve o bom senso de trazer companhia. Pensei que fosse vir sozinha. — Falou, mas, sem dúvida nenhuma, não tinha achado aquilo tão bom assim. — Eu não trouxe ninguém. — Encolhi os ombros, desviando o olhar. — Entendo. — Ele inclinou a cabeça. — Venha se sentar aqui comigo. — Não. — Falei, e Kaname me olhou estranho. — Eu, er... Vim aqui pra falar com você. A sós. Aqui tem muita gente. Kaname levantou-se e veio até mim. — Onde então? — Ele me perguntou. — Tanto faz. Ele sinalizou para que Senrei, sua... Sei lá, perseguidora profissional, não o seguisse. E eu segurei o braço de Zero e pedi a ele que voltasse pra casa. — Vou te esperar aqui. — Tá. Você é quem sabe. — Dei de ombros. Kaname passou um braço ao redor do meu ombro e, por um momento, ele e Zero se encararam. Depois, fomos para outro lugar. Percebi que Kaname estava deixando que eu o levasse, então eu o guiei a um tanque de carpas. O espaço do dormitório noturno era cheio de coisas legais. Eu passeava muito por lá durante o dia, quando era menor. — Então? — Kaname propôs. — Quer conversar sobre a garota? — Ela está bem? — Não. — Ele falou, calmamente. — Ela caiu. — Ah... Eu me agachei e comecei a arrancar matinhos do chão e jogá-los na água. Uma vez na classe E, não havia mais esperanças para ela. Então eu não tinha mais nada pra dizer. Bom, na verdade, eu tinha. — Eu descobri sobre a classe E quando estava na terceira série. — Comecei a explicação. Kaname claramente esperava que eu lhe desse uma, então, contei a ele a respeito de um menino que estudara comigo. Chamava-se Erick e era um garotinho hiperativo que vivia no meu pé. Eu não gostava nenhum pouco dele. Erick grudara em mim quando descobrira que meu pai era Kaien Cross, porque, embora vivesse com seu pai leigo, toda a família dele por parte materna tinha relações com caçadores. Sua própria mãe fora uma, antes de ser morta. — Erick me dizia que se tornaria um vampiro também, já que tinha sido mordido por uma sangue-pura. E que, então, perderia a consciência com o tempo, até se transformar numa besta por completo. E aquela história era quase toda verdadeira. Erick era, mesmo, um menininho que me perseguia na escola. Ele vivia roubando minhas coisas e jogando-as no lixo, além de me empurrar e fazer piadas sobre mim na frente das outras crianças. Eu, no entanto, estava sendo firmemente direcionada no caminho de uma caçadora por meu pai. E a primeira lição que todo caçador deixa bem gravado na cabeça de seu pupilo é que não se deve agredir humanos. Por isso, eu nunca revidava. Mas, em algum momento, minha paciência começou a se esgotar, e decidi que, se não podia vencê-lo, eu o faria desistir. Portanto, passei a segui-lo. Fiz isso durante apenas algumas horas e acabei descobrindo o que ele não queria que ninguém soubesse. Erick tentou me dar uma surra, mas, visto que já não tinha a humanidade em sua defesa, acabei levando a melhor. A partir dali, passei a vigiá-lo sempre. E até mesmo a cuidar dele. Erick, porém, não durou muito. Ele desceu de classe rapidamente, e seu pai passou a trancá-lo em casa. E foi em uma de minhas visitas secretas, enquanto eu revirava as coisas da mãe dele, que descobri que havia um jeito de reverter a queda. Aparentemente, a mãe de Erick estava pesquisando sobre o assunto para tentar salvá-lo. Procurei saber tudo o que havia para saber a respeito dos sangue-puros desde então. Erick dizia que quem o havia transformado fora uma mulher chamada Sara. E a única sangue-puro viva e acordada que se chamava Sara era Sara Shirabuki. É claro, qualquer pessoa podia mentir seu próprio nome, mas como havia apenas outra opção possível, e essa seria Shizuka, a mulher que mordera Zero e desaparecera, não tinha muito como errar. Kaname, Sara e Shizuka eram os três únicos vampiros puros acordados naquela geração. Bom, sem contar comigo e com tio Rido. Eu não tinha total certeza de que tio Rido estava acordado, embora achasse que ele devia estar, já que podia possuir Shiki de vez em quando. Mas achava que, se precisava pegar outro corpo emprestado para poder circular por aí, ainda devia estar bem fraco. De qualquer forma, com oito anos, não havia muitos recursos que eu pudesse usar para encontrar Sara e trazê-la até o garoto, para que ele bebesse seu sangue, e, por isso, Erick acabou morrendo. Tudo aconteceu em menos de dois meses. Foi por esse motivo que eu ficara tão emocionada com o tempo que Zero levara para ter seu primeiro ataque. — Ele sumiu da escola depois de um tempo. — Eu disse a Kaname. — Tentei ir visita-lo, mas o pai dele não permitiu. — O que também era verdade. — Nunca mais o vi, e fiquei sabendo depois que havia morrido. Bem, sem comentários sobre a última parte. — Você nunca me contou isso. — Kaname falou atrás de mim. — Nunca contei pra ninguém. Joguei mais alguns pedacinhos de grama na água. Duas carpas bem grandes e lindas tinham vindo verificar se eu não estava fornecendo o lanchinho da tarde, mas, ao perceberam que não passava de matinho, foram embora cuidar de suas vidas. Bati as mãos e me levantei. — Quero ver a garota. — Falei. — Por quê? — Kaname exigiu. Nem eu sabia bem o motivo. Talvez eu achasse que, se a visse, ou se ela me visse, sua condição poderia regredir um pouquinho, e, assim, ainda haveria chances de salvá-la. Se Kaname não a havia mordido, sobravam apenas três. Embora dois estivessem desaparecidos. Mas isso não importa, pensei, tem que ter um jeito. Meu irmão segurou meu braço, aquele que Killua havia ferido, e arregaçou a manga. — Ela conseguirá sentir isso. — Ela estava lá quando aconteceu, e não me atacou. — Rebati. Kaname me olhou por um tempo. E então aproximou meu braço de seu rosto e respirou sobre as feridas. De alguma forma, elas pararam de doer. — Não é culpa sua que Erick tenha morrido, Khaiya. — Ele falou. — Tão pouco o que aconteceu àquela menina. A culpa é nossa. Inteiramente. O poder de fazer algo tão cruel com vidas humanas — continuou, então levantando seus olhos pra mim — pertence a minha espécie. Percebi naquele momento. Kaname odiava sua “espécie”. Por isso eu havia sido transformada. E por isso ele estava se preparando para matar os outros vampiros puros. — Kaname... — Falei. Eu podia ter ficado calada, fingindo não ter entendido, como fazia sempre que ouvia algo que eu ainda não devia ser capaz de entender. Mas pensar em meu irmão como um assassino me entristeceu muito. — Você sabe que... Existem outras maneiras. Não precisa ir por esse caminho... Kaname imediatamente se arrependeu do que tinha feito. Afinal, pra ele, independente de quão sensitiva eu pudesse ser, eu ainda era apenas uma criancinha. Porque, quando a gente tem um bilhão de anos, todo mundo é criança. Certo? Então ele me abraçou e pediu-me desculpas. E aí apagou a menina e a descoberta da minha mente. Outra habilidade muito legal que os vampiros têm. Alterar memórias, eu digo. Esse era outro motivo pelo qual eu tomava muito cuidado ao revelar qualquer coisa de dentro da minha cabeça, para qualquer um. Mas estava tudo certo, porque eu sabia como recuperar arquivos perdidos. Capítulo 15 Naturalmente, eu me precavia contra a possibilidade de minhas memórias serem apagadas ou alteradas. Meu método era muito simples: eu andava com um gravador vinte e quatro horas por dia. Sim, era esse o nível de paranoia. É claro que não era um método perfeito, e, portanto, não garantia cem por cento de satisfação. Porque, venhamos e convenhamos, nenhum tipo de profilaxia garante. Por exemplo, ao reouvir o que Kaname dissera sobre a culpa ser de sua espécie, eu não pude estar lá na sua frente, para olhar os olhos dele. E o que eu tinha dito sobre aquele não ser o único caminho também não era muito esclarecedor. Mas eu sabia que a chave estava ali. Kaname apagara a menina da minha mente por motivos óbvios. O que eu descobrira naquele momento específico só podia ser algo igualmente doloroso. E o que seria? Meditei. Talvez Kaname não tivesse apagado apenas por ter achado que me deixaria triste, pensei. Talvez tenha feito para que eu não o atrapalhasse. Era uma justificativa muito válida. Matar a menina? Não, sacrificá-la, para que parasse de sofrer. Imaginei que tivesse algo a ver com aquilo. E ali estava eu, pensando no que fazer a respeito de uma menina da qual eu sequer me lembrava. Não, balancei a cabeça, e coloquei a gravação para rodar de novo. Tinha que haver algo a mais. Kaname podia ter acabado com aquilo tudo no momento em que eu perguntara se a menina estava bem, e assim evitar que eu sofresse com a resposta. Ou Kaname não esperava nem que eu pensasse que ele fosse sacrificá-la? Ouvi a gravação toda mais algumas vezes e me odiei por não ter dito o caminho que ele pretendia seguir em voz alta. — Maldição! — Sibilei, chutando meu edredom pra fora da cama. Fiquei sentada lá, pensando um pouco mais. Eu detestava não conseguir descobrir as coisas. Resolvi deixar para terminar de pensar sobre aquilo depois, então criptografei minhas memórias apagadas rapidamente e apaguei a gravação. Eu ainda queria saber o que seria feito da menina. Vampiros classe E eram guardados pelos pertencentes à nobreza. Como também não morriam pela idade, ainda existiam caídos vivos desde eras bem antigas. Se escapassem, e começassem a atacar humanos, eram mortos por caçadores. Então fiquei imaginado. Por que Kaname se daria ao trabalho de dar a Shiki e Ichijou a ordem de recuperar uma vampira quase classe E? Se ele soubesse quem a havia transformado, teria tentado ajudá-la? Sai do meu quarto. E, daí, dei de cara com um maluco meio estropiado, que pensei ser um mendigo arrombando a casa. — Você é a filha daquele ermitão babaca? — Ele me perguntou. Eu, que estava pronta pra me defender de um assédio, fiquei bastante confusa com a pergunta. — O senhor é amigo do meu pai? — Ajeitei-me rapidamente. — Fomos colegas, seu pai e eu. Sou Yagari Touga. Touga Yagari... Touga Yagari... Aquele nome tocava o sino. Ah, percebi, o mestre do Zero. — É um prazer conhecê-lo. — Falei, sem fingir nenhum prazer. Eu totalmente já tinha sacado qual era a dele de estar lá. — Claro que é. — Respondeu, passando por mim. Lembrei-me que a última vez que vira Zero fora no dormitório da turma da noite. Fui até o quarto dele. Ele não estava lá. Procurei-o em todos os cômodos da casa, mas não o encontrei. — Pai, — voltei à cozinha — cadê o Zero? — Khaiy, acabou de acordar? — Ele me perguntou. Aparentemente, não tinha nem percebido que eu passara por ali um pouco antes, enquanto procurava por Zero. — Sente-se melhor? — Mmm, só estou com um pouco de dor de cabeça. E o Zero, cadê? — Ele está, hum... Ele. Ahm... Zero teve outro ataque ontem à noite, filha. — Ele atacou alguém?! — Perguntei surpresa. Não podia ter sido eu, porque, provavelmente, Kaname tinha me trazido até papai depois de apagar minha mente. — Não, filha. Ele não atacou ninguém. Ele tentou... Beber seu sangue de novo, enquanto você dormia. Nós tivemos que... Isolá-lo. Pela experiência, eu sabia que, quando meu pai me chamava de filha, ele não estava contando a história direito. Então imaginei uma infinidade de coisas que poderiam ter realmente acontecido. — Merda. — Falei. Eu não tinha ouvido a gravação inteira. Quis correr para o meu quarto. Talvez eu não tivesse apagado permanentemente, fiquei pensando, talvez estivesse na minha lixeira. Pensei se não seria muito estranho se eu simplesmente andasse pra fora da cozinha e fosse mexer no meu computador. Papai se levantou da cadeira e veio esfregar meus braços. — Tudo bem. Vai ficar tudo bem, é algo temporário. O professor que cuidava dele está aqui, nós estamos lidando com ele. Vai dar tudo certo. Ele quis que eu sentasse e comece algo, mas eu estava com bastante pressa, então encenei um mal estar muito elegantemente e expressei minha necessidade de descansar um pouco mais. Foi um alívio encontrar a gravação na lixeira. Houve uma época em que eu apagava tudo permanentemente, mas achei que, uma hora ou outra, acabaria deletando algo importante, então criei uma lixeira com vários níveis. Quando eu jogava coisas nela, elas iam descendo de nível a cada cinco minutos, o que as tornava mais difíceis de encontrar e recuperar, até que, depois de setenta e duas horas, elas expiravam e eram totalmente apagadas. Três dias era o suficiente, talvez muito mais do que o suficiente, para eu perceber se tinha jogado algo importante fora. Mas às vezes eu dava shift-Del sem querer, por simples força do hábito. Ouvi a gravação até o final. E, como eu já meio que esperava, a “ataque” tinha envolvido Kaname. Zero atacara Kaname porque achara que ele tinha me feito mal quando o vira me carregando pra casa. Coisa chata, isso. Joguei a gravação de volta na lixeira e saí procurando por Zero. Se ele realmente tinha sido idiota a ponto de tentar enfrentar um sangue-puro a peito aberto, estaria bem ferido. Passei horas procurando-o por toda a escola. Perguntei a Killua e Kurapika se o haviam visto. Nenhum dos dois tinha. Então vi o tal Yagari vagando entre as árvores atrás do prédio de aulas da turma diurna. Hum, pensei. E comecei a segui-lo. Segui-o até uma pequena casinha de madeira, bem escondida naquela floresta densa, e tive certeza de que encontraria Zero lá dentro. Touga entrou, ficou um tempo por lá, e depois saiu. Quando ele já tinha sumido de novo no meio do mato, fui até a porta e tentei arrombá-la. Mas estava aberta. — Ah, tá. — Falei, rolando os olhos. — Duh-Uh. Entrei. Não tinha ninguém lá. Cocei meu nariz e cruzei os braços, pensando onde esconderia o Zero se eu fosse Touga. Andei pela casinha batendo as pontas dos meus pés no chão de madeira. Devia haver uma passagem dali para outro lugar em algum local. E, de repente, tuck-tuck. Bem diferente de tock-tock. — Debaixo do tapete. — Falei, puxando-o de lá. — Muito elementar, meu caro Watson. Abri o alçapão e fiquei agachada olhando lá pra dentro. A questão toda ali era muito simples, mas também muito complicada. Como eu faria para procurar Zero lá embaixo? Como já deixei claro, eu não gostava muito de lugares fechados. Lugares subterrâneos, então, nem pensar. Engoli. E engoli de novo. — Posso fazer isso. — Falei. E entrei. E aí sai. Dei um jeito de destruir as dobradiças do alçapão e tirei-o de lá. Agora era só um buraco. Eu não estaria bem presa, tipo, presa. Então, obstinada, entrei mais uma vez. E saí de novo. Quebre todas as taboas da porta do alçapão em vários pedaços e espalhei-os pela casa. Ofegante, entrei, e, daquela vez, era definitivo. Comecei a andar por algo que parecia muito com uma masmorra. Uma masmorra subterrânea. Tão originais. Havia várias celas vazias lá dentro. Que lugar inútil, fiquei pensando. Eu queria muito sair correndo de lá. Ou encontrar alguém. Zero, de preferência. Não, de preferência, eu queria só sair de lá. Mas continuei firme. Sabia que o encontraria, e, quando o encontrasse, tudo ficaria bem de novo. Fui deixando todas as portas pelas quais passava escancaradas. Eu tentava também não olhar muito para trás, e nem sair correndo com o menor barulhinho. Imagino que, se tio Rido tivesse começado a brincar de me fazer enlouquecer enquanto eu ainda estivesse lá dentro, muito provavelmente eu teria acabado me matando. Mas ele não fez nada. A primeira vez que brincaria comigo aconteceria só dali a alguns meses. Então, sobrevivi. E, depois de procurar pelo que me pareceu uma eternidade, finalmente, eu o encontrei. — Puta merda. — Ele me cumprimentou, deixando a cabeça cair pra frente. — Só pode ser brincadeira. — Fico feliz que você esteja bem também. — Cumprimentei de volta, tremendo tanto quanto um filhote de gato molhado. Apesar de tudo, eu estava extremamente aliviada. Ter alguém comigo fazia o medo parecer um pouco bobo. Não muito bobo, mas um pouco. — Vamos embora. — Pedi, sinceramente. — Vai você, eu não vou sair daqui. Ah, não, pensei, e fiz uma careta. Eu estava aliviada, mas ainda queria muito dar o fora. Meu plano original, quando comecei a procurá-lo, era dar-lhe sangue. Mas naquele momento, eu só conseguia pensar que queria sair. O que também não queria dizer que eu ia fazer o caminho todo de volta sozinha. — Zero, por favor... — Vai logo! — Ele gritou comigo. Mordi meus lábios e comecei a xingá-lo mentalmente de todo tipo de coisa. Eu queria chorar, gritar, correr pro lado de fora, e socar a cara dele, tudo ao mesmo tempo. Mas o que fiz foi sufocar o caroço na minha garganta e ir me sentar ao seu lado. — Só vou embora quando você for comigo. — Determinei. Ele rosnou alguma coisa e foi se sentar longe de mim. — Você não faz ideia da vontade que eu tenho de te arrebentar nessas horas. — Ele disse de lá. — Ótimo! — Sibilei, chorando de raiva. Esperei que Zero fizesse alguma coisa, mas ele só ficou lá. Eu nunca contara a ele que tinha medo de lugares fechados. E não ia contar, também. Enterrei minha cabeça entre os braços e esperei, tentando me imaginar num castelo de cristal, todo lindo e ensolarado. Depois tentei me imaginar na proa de um barco, com bastante vento vindo em meu rosto. Mas meus pensamentos acabavam voltando sempre para aquele alçapão. Perguntei-me se alguém não estaria arrastando uma pedra bem grande e pesada pra cima da abertura naquele exato momento. — Certo, garota, você vem comigo. Touga segurou meu braço e me levantou. Olhei para Zero, mas ele não olhou pra mim. Então deixei que seu mestre me levasse para o lado de fora. Já estava escurecendo. Quando saímos da casinha, puxei meu braço de volta e sentei-me na varandinha. — Preciso de um minuto. — Falei. Yagari bufou e puxou um cigarro. Respirei um pouco. Deixei meu corpo perceber que não estava nem ficaria enclausurado. Senti o ar da tarde. Quando já estava tudo no lugar, levantei meu rosto para Touga. — Se trouxer Zero até aqui, eu o convenço a beber meu sangue. — Hm? Ele me encarou com uma sobrancelha duvidosa, como se não tivesse certeza do que acabara de ouvir. Então riu, jogou o cigarro no chão e o apagou com o pé. — Você ficou três horas lá dentro. — Ele falou. Achei aquilo muito impressionante. No geral, eu chutaria que tinha ficado lá só uns quinze minutos, mas, na verdade, a impressão que tive foi a de ter passado a semana. — Se não conseguiu convencê-lo, não vai ser agora, também. Ele é um idiota determinado. — Se trouxer Zero até aqui, eu o convenço a beber meu sangue. — Repeti. Touga me encarou por um longo momento. E eu o encarei de volta. — O que ganho se você não conseguir? — Ele me perguntou. — O que você quer? — Respondi. E ele entrou de novo na casinha, resmungando qualquer coisa sobre essa criançada de hoje em dia. Entrei também, mas fiquei esperando na casa, sentada em cima de um baú velho. Zero saiu primeiro, e quando me viu, sua reação foi a mesma de antes. Ele xingou e perguntou o que eu ainda estava fazendo lá. Seu mestre me deu uma olhada e então saiu, fechando a porta. Zero mal pôde acreditar que Touga tinha feito aquilo. — O negócio é o seguinte: — comecei a dizer — deixa de ser veadinho e vamos fazer logo essa merda. Você sabe muito bem por que eu estou aqui, ele sabe muito bem por que eu estou, e eu sei muito bem porque estou aqui. Se quiser colocar a culpa na gente, vá em frente, mas, como eu disse, só vou embora quando você vier comigo. Ele estava furioso. Respirava com tanta força que seu corpo balançava. Eu estalei a língua, me sentindo uma idiota insensível. — Olha, me desculpa... — Pedi, realmente arrependida. — Sinto muito por ter dito isso, okay? Eu sei que você... Só está tentando fazer a coisa certa. Mas me escuta. — Eu me levantei. — Você acha que, se continuar aguentando, vai ficar mais fácil com o tempo. Não vai. Vai ficar mais difícil. E, se você acha que pode se matar de fome, te digo que isso também não vai rolar. Apontei para a sombra de Touga do lado de fora. — Aquele cara me trouxe aqui porque achou que seria mais fácil pra você fazer isso se fosse comigo, mas, se não beber o meu sangue hoje, amanhã ele vai trazer outra pessoa. E, se amanhã você não beber, depois de amanhã ele vai trazer outra pessoa. Acontece que — e naquela hora tentei dizer da forma mais calma e macia possível — se você continuar se recusando a beber, vai chegar o momento em que simplesmente não vai mais dar pra aguentar, e você vai acabar matando a pessoa que ele trouxer no dia seguinte. Experimentei tocar nele. Zero ainda respirava com força, e estava evitando me olhar diretamente. — Se acalme. — Pedi. — Vai dar tudo certo. Fique bem tranquilo e pare de pensar que a gente está fazendo isso só pra te sacanear. Nós estamos querendo ajudar você. Empurrei-o para que ele se sentasse no chão. Zero sabia que tudo que eu estava dizendo era verdade. Ele sabia muito bem, e estava começando a aceitar. Ajoelhei-me na frente dele, esfregando seus braços. — Está mais calmo? Zero assentiu. — Eu quase te matei outro dia. Por que você pode lidar tão bem com toda essa merda? — Porque eu sou uma ótima pessoa. — Sorri, jogando meu cabelo para um lado, e depois para o outro. — E porque você é meu irmão. É minha obrigação dar meu sangue por você. — Não é, não. E eu não sou seu irmão. — Okay. Mas eu sou a sua, e, portanto, sou eu que escolho o que colocar no código dos irmãos. Ele fez um “pff” com a boca e olhou pra mim com algo que, em alguma outra dimensão, onde se animar fosse um crime hediondo que poderia ser penalizado com a morte, viria a ser quase um sorriso. Esfreguei os braços dele mais um pouco. — Tudo bem? — Perguntei, tentando eu mesma parecer animada, então. — Vamos fazer? Zero me olhou triste, o que quase partiu meu coração. Ele realmente não queria fazer aquilo. — Você merecia um bom irmão. — Falou. — Mas tenho você, e estou bem feliz. — Sorri mais uma vez, encorajando-o. Zero se inclinou pra frente, então, devagar. Ele parecia incerto, como se não soubesse exatamente o que fazer daquela vez. — Tudo bem. — Eu disse. — Vá em frente. Eu vou ficar bem. Zero me puxou para si e, por um tempo, ficou só abraçado comigo. E aí me mordeu. A sensação que tive não foi tão ruim quanto da primeira vez. Embora Zero ainda se sentisse muito mal por tudo aquilo, ele estava calmo e agradecido. Eu esperava ter conseguido fazer com que soubesse que o amava. Então relaxei. Tinha dado tudo certo. Zero também parou de ficar todo tenso. Ele me apertou de uma forma boa contra seu peito, como se não nos víssemos há muito tempo, e puxou meu cabelo pra trás. Esperei que terminasse. Quando acabou, eu ainda estava bem, até. Só um pouco cansada. — Vamos fazer um trato? Quando achar que precisa de mais, você me diz. — Propus. — E em troca? — Ele me perguntou, limpando o sangue que escorria da sua boca. — E em troca o que? — Franzi a testa. — Se é um trato, eu tenho que te dar algo em troca, não tenho? — Ele falou, como se fosse óbvio. Eu ri. — Tá, você não entendeu. — Eu não entendi o que? — Zero quis saber. — Nada. Apenas me diga quando precisar de mais, okay? Touga entrou nessa hora. — Olha só. — Ele falou, bastante impressionado. — Você é boa, mesmo. — Sou, mesmo. — Me levantei. — E aí? Vai me deixar levá-lo pra casa? — Sugiro que você vá indo na frente. Vai ser estranho se os dois voltarem juntos. — Ele explicou. Eu juntei as sobrancelhas. — Não, mesmo, irmão. Touga só riu. — Fica tranquila, garota. Não vou prendê-lo lá de novo. Olhei para Zero. — Pode ir. — Ele falou. — Eu vou daqui a pouco. Inspirei, e então expirei, esfregando os olhos com o indicador e o polegar. — Vocês dois vão, então. E eu fico aqui pra ir depois. Dá na mesma, não dá? — Khaiya... — Zero começou, mas seu mestre passou o braço ao redor do pescoço dele e o puxou pra fora. — Deixa, Zero, ela é filha do pai dela. — Falou. — Fique aqui uns quarenta minutos, e cuide desse negocio aí no seu pescoço. Acho que tem toalhas limpas em algum lugar por aqui, talvez o melhor seja você tomar um banho, mesmo. — Tá. — Assenti. Os dois foram embora e eu esperei, usando meu tempo para fazer o que Touga havia sugerido. Lavei minha blusa também, e vesti-a molhada. Então saí, torcendo para não encontrar ninguém no caminho. Mas encontrei. Aliás, ele me encontrou. Óbvio. — Achei que só Zoldyck e Kuruta estariam fazendo ronda hoje. — Ele me disse. — Por que está aqui fora? Exigi de meus neurônios que fizessem suas sinapses mais depressa. Kaname estava ali, e ia agir como se nada tivesse acontecido na noite passada. E eu devia agir assim também. Ou será que deveria dizer que sua lavagem cerebral não tivera nenhum efeito em mim? Eu o encarei. Se dissesse aquilo, pensei, talvez conseguisse descobrir de novo o que descobrira e esquecera na noite passada. Mas e se, pensei depois, ele me sondar? Kaname certamente não ia sair confessando tudo que vinha me escondendo se eu simplesmente jogasse verde. E, se ele descobrisse que eu estava mentindo sobre ser imune a lavagens cerebrais, apagaria minha mente de novo. E também daria um jeito de descobrir qual tinha sido o meu truque. Ah, droga. Mordi o lábio inferior. Eu tinha saído de casa sem levar o gravador. Se Kaname apagasse minha mente ali, eu não ia ter como lembrar no dia seguinte. Certo, pensei. Fingir que nada acontecera na outra noite era a única opção. — Khaiya? — O quê? — Aonde pretende ir? Pensei mais um minuto. Por que Kaname estava ali? Pensei, pensei. Por acaso? Provavelmente, não. Ele já estava em horário de “aula” e aquele não era um lugar pelo qual tinha que passar para ir para lugar nenhum. Portanto, devia ter sentido o cheiro. É claro que sentira o cheiro. — Está usando uma blusa molhada...? Khaiya... — Eu... — Não queria dizer a ele que dera sangue a Zero. E, bom, eu não precisava. Ele sabia. Não sabia? Kaname estava agora bem perto de mim. Ele ergueu sua mão e ela ia tocar na mordida, que eu havia escondido com um lenço molhado. Eu devia dizer a Kaname que ele sabia o que eu fizera? Ele sabia. Mas eu já tinha dado uma burrada muito grande na noite anterior, mostrando que percebera algo importante. Por isso ele apagara minha mente. Eu devia dizer que dera sangue a Zero? Ou deveria mentir? Não conseguia pensar em nenhuma mentira que fizesse sentido naquela situação. Por que não conseguia pensar em nada? — Você está... Chorando...? Khaiya... — Não... — Falei, e só aí que eu percebi que estava. Eu estava cansada. Com Kaname por perto, eu tinha que pensar um monte, apenas para dar uma simples resposta a uma simples pergunta. Tão cansativo. — Você sentiu o cheiro, — falei bem baixo, por que era aquilo que eu queria dizer — você e todos da turma da noite sentiram. Você sabe por que minha blusa está molhada, e sabe o que tem debaixo do lenço, sem precisar olhar. Por que me testar tanto assim? O quer que eu... Diga? Kaname abaixou sua mão. — Eu queria que você falasse comigo, quando algo... Não estivesse bem. Pra você poder ir e resolver tudo pra mim, certo? Foi o que eu pensei. E me senti mal por ter pensado aquilo. Pressionei os lábios um no outro. Porque, claro, eu estava errada de novo. — Me desculpe. — Sussurrei. — Está tudo bem. Me desculpe... Kaname levantou meu rosto com as duas mãos. Achei que ele fosse me beijar, mas, em vez disso, encostou sua testa na minha, como sempre fazia, e então a beijou. Ele me puxou para abraçá-lo e ficou me segurando. — Você é tão natural quando está com outras pessoas... Eu só queria entender o motivo pelo qual... Se esforça tanto, quando sou eu que estou por perto. Eu me esforço para parecer o que você acha que sou, eu quis dizer. Mas, como sempre, não disse. — Eu também queria entender por que faço isso. — Disse, e por “isso” eu estava dizendo que não entendia por que me esforçava para parecer uma coisa que eu não era. Eu sinceramente não sabia. Porque eu não queria que Kaname apagasse minha mente? Aquilo não mudaria quem eu era. A não ser que ele apagasse tudo, e deixasse a folha em branco de novo. Eu tinha medo que ele fizesse isso? Se não, do que, então? Que ele não gostasse mais de mim se descobrisse que eu não era bobinha e desentendida como fingia ser? Seria isso? Eu precisava tanto assim da aprovação dele? Por quê? Pra quê? O que eu ia fazer com ela? Ou eu tinha medo de mudar, ao descobrir que Kaname, ou outra pessoa, não me aceitaria como eu era? Seria isso? Eu fingia ser quem eu não era, para que eu não me tornasse o que eu fingia ser? Eu só podia sofrer de sérios problemas mentais se aquela fosse a resposta certa. Gostava mais de pensar que me escondia pelo simples prazer de saber mais do que todos achavam que eu sabia, e procurava saber mais pelo mesmo simples motivo. E como saber se eu não era, exatamente, aquilo? Talvez eu só tivesse prazer em enganar as pessoas. Talvez eu fosse alguém que se divertia enganando todo mundo. Que pessoa boa eu era, então. — Kaname, conhece algum bom psiquiatra? Acho que meu caso vai precisar de drogas. Kaname afrouxou seu abraço e passou seus braços por debaixo dos meus. Achei que fosse me pegar no colo, mas ele só me levantou um pouco. — Opa, opa! Que isso, irmão? Okay. Okay. — Bati no ombro dele. — Há-há-há. Tudo bem, pode me pôr no chão agora. Ele se abaixou, devolvendo meus pés ao solo, onde era o lugar deles, mas não quis me soltar ainda. Em vez disso, apoiou um joelho no chão e continuou abraçado à minha cintura. — Okay... — Falei. Kaname não tocava tanto em mim havia muito tempo. — Okay. Mexi no cabelo dele um pouco e esperei que me soltasse. — Hum, eu... Preciso ir, hum. — Falei, como ele não me largava de jeito nenhum. — Não era minha intensão pressioná-la, Khaiya. Eu só estava tentando cuidar de você. Parei de sorrir forçadamente e deixei minhas mãos apoiadas nos seus ombros. Será? Foi tudo em que consegui pensar. — Obrigada. — Eu disse. Sim, eu sei. Mas não consegui dizer nada mais legal. Kaname me soltou, me desejou uma boa noite, e foi embora. E eu voltei pra casa. Capítulo 16 — Pai, eu não consigo achar a minha... Minha... Oh... Perdão. — Falei. Aquele era o problema de a minha casa ser também a diretoria. Eu nunca sabia quando podia aparecer de pijama na sala do meu pai perguntando onde ele tinha enfiado a calça do uniforme. Mas esperava que às duas da manhã não tivesse muito problema. Mas eu erro bastante, também, não sei se já deu pra perceber. — Khaiya, minha querida, venha cá, pode vir, pode vir. — Ele acenou pra mim, todo feliz. — Senhorita Kurenai, essa é minha filha, Khaiya. Khaiya, essa é Maria Kurenai. Maria Kurenai estava vestida com o uniforme branco. Ou seja, ela era do noturno. Mas era tão pequena e bonitinha que eu quis adotá-la no mesmo instante. É, eu tinha esse problema. — É um prazer conhecê-la, senhorita Cross... — Ela falou muito baixinho, como se tivesse medo que eu a ouvisse, ou dissesse que a achava feia. — Ai! — Eu disse. Minha intenção era dizer apenas “ah!”, mas Maria era realmente muito bonitinha. — É um prazer pra mim também. Nossa, mil perdões, eu não sabia que tinha alguém aqui, além do meu pai, se não, não estaria andando pela casa... Assim. Há-há-há. Mil perdões, mesmo. — Não... — Ela disse, abaixando a cabeça, bastante envergonhada. — Você está... Muito bonitinha... Eu ri, meio escandalosamente. — Você é que está, eu estou uma bagunça. — Fiquei dizendo. Maria e eu estávamos prontas para passar a noite elogiando uma à outra eternamente, mas meu pai interveio e disse que ela estaria indo para a “classe” conhecer os outros “alunos”. — Certo, certo. Mas foi um prazer, mesmo! Maria ficou olhando para baixo o tempo todo em que esteve falando comigo, mas, aí, olhou pra mim, e se aproximou toda encolhidinha. Então me abraçou. — Ah! — Dei um gritinho, muito surpresa. Vampiros não estavam autorizados a tocar-nos dentro da Academia. Kaname só me tocava porque, bom, ele era o Kaname. E Aidou me tocava por que, bom, ele era o Aidou. — Certo! — Fiquei rindo. — Tudo bem. Tudo bem? — Olhei para papai, que estava rindo, também, todo bobão. — Tudo bem! Está tudo bem. Abraço, tudo bem, tudo bem abraçar. — Dei uns tapinhas amigos nas costas dela, sem ter certeza do que fazer. Maria me abraçou com mais força do que eu julgaria que ela tinha só de olhar, e, antes de me soltar, afundou seu rosto no meu cabelo. — Você tem um cheiro tão bom... — Disse, bem baixinho ainda. — Há-há-há. Que bom! Quer dizer, obrigada! Eu tomei banho. Quer dizer, você cheira muito bem, também. — Obrigada... Meu pai riu de nós duas e então se aproximou de Maria, apoiando suas mãos nos ombros dela tão paternalmente quanto fazia comigo. — Vou levá-la ao prédio de aulas. — Ele me disse, e então disse a Maria: — Senhorita Kurenai, tudo bem abraçar a Khaiya aqui, mas é proibido tocar ou cheira as aulas do diurno. Khaiya também é uma, então, por favor, não faça de novo, a não ser que ela ache que pode, está bem? — Sim... Sinto muito... Senhor Cross... e Senhorita Cross... E meu pai e eu nos derretemos. Papai foi embora com ela e eu voltei para o meu quarto, ainda sem saber onde estavam minhas calças. Zero decidira que não faria mais patrulhas comigo, então estávamos fazendo em dias diferentes. Àquela noite, ele estava com Kurapika, e eu estava em casa sozinha. Pensei que podia ter chamado Killua para passar a noite lá. Não havia muitas novidades na minha vida até ali. Eu ainda não conseguira descobrir o que havia sido feito daquela menininha, nem o que eu descobrira de importante naquela noite, mas suspeitava fortemente que Kaname pretendia fazer algo em relação aos outros vampiros sangue-puro. Eu só ainda não descobrira o que, com certeza. Às vezes as palavras “matar todos” passavam para dar um olá na minha cabeça, mas eu as chutava de lá e dizia, muito solenemente: Não, Kaname não faria isso. Porque eu era teimosa. E não ficava pensando muito no que eu dissera a ele sobre “existirem outros caminhos”. Quando pensava, largava mão de tudo e decidia pensar naquilo em alguma outra hora. No dia seguinte, fiz Killua ir à aula comigo. Killua nunca fora à escola. Tudo o que aprendera na vida, ele me dissera, aprendera com seu irmão mais velho, Irumi. O que, basicamente, se resumia a assassinar vampiros das formas mais rápidas e eficientes possíveis. E não se deixar ser assassinado. — Mas poxa vida, irmão. — Falei, meio pensativa. — Então acho que você não vai achar minhas aulas muito emocionantes. E ele não achou, mesmo. Nem eu achei. A gente ficou dormindo durante a maior parte delas. — Eu podia ter feito isso em casa. — Ele disse, bocejando. — Podia. — Bocejei também, por culpa dele. — Mas aí... — Bocejei de novo, entrando no ciclo sem fim. — Você não teria o prazer da minha companhia. E a gente ficou lá, só bocejando. — À proposito, quer dormir lá em casa depois de amanhã? Ele me olhou. — Tá falando sério? — Perguntou, franzindo a testa. — Ahn... Sim, eu estou? — Você deve ser maluca. — Eu sou. Mas por que você acha isso? Killua ficou me olhando. — Eu já te disse alguma vez que sou um assassino? — Algumas. — Respondi, dando de ombros. — Eu já te disse alguma vez que não sou seu tipo principal de presa? Killua riu. — Você tem que ter alguma coisa faltando aí dentro. — Disse, e continuou rindo. — Ah! Vai! Por favor! Zero não vai estar lá! Vai ser legaaaal! — Continuei insistindo. Aí teve uma hora que ele me olhou sério e perguntou. — Você tá querendo de verdade que eu vá a sua casa? Revirei os olhos. — Eu to convidando, não to? E então ele não respondeu. — Okay. — Dei umas batidinhas no ombro dele. — Fica a dica: você vai dormir lá em casa depois de amanhã. Sem mais discussão. E ele dormiu, mesmo. Naquela noite, fomos ele e eu patrulhando. Não tivemos problemas, como normalmente não temos, e, quando os vampiros voltaram ao dormitório, Killua foi embora e eu voltei para casa. Mas achei Zero pensando na vida debaixo de uma árvore, e fui até lá. — E aí, Zero safadinho? — Cheguei falando. Zero estava com muita cara de quem está fugindo das obrigações. — Como é que é? — Ele juntou as sobrancelhas pra mim. — Como é que é o que? — Franzi a testa. — O que foi que você disse? — “Como é que é o que”? — Hã? — Hã? — Ah... — Ele desistiu. — Por que é que você faz isso? — Pra te enlouquecer. — Sorri, muito marotamente. Eu ia começar a cantar a música, mas achei melhor não. — Estou vendo. O que você tinha dito? — Que aqui tinha um mero sofá de linho. — Expliquei, muito séria. — Quê? — Quê? — AH! Será que dá pra você parar?! Ele empurrou minha cabeça pra trás e eu soltei uma risada. — Você está bem? — Perguntei, colocando meus braços para trás como uma garota bem comportada. — Estou. Você? — Sim, sou eu. — Hã? Ah. Não comece! Dei outra risada, e então cheguei perto dele para bagunçar seu cabelo. Eu tinha que ficar na ponta dos pés para fazer isso agora. — Você cresceu. — Falei. — Você que encolheu. — Sim, eu adoro encolher... — Senhorita Cross... Olhei para Maria, que tinha aparecido do nada ali perto de nós. Nunca imaginara que levaria um susto tão grande ouvindo a vozinha dela. — Oi! — Falei. — Hum, está tudo bem? Aconteceu alguma coisa? Senhorita Kurenai... Foi então que Zero fez. Ele sacou uma arma de sei lá que lugar e atirou em Maria, sem mais nem menos. Consegui impedir que ele a acertasse, batendo no braço dele pra cima, mas Zero me empurrou para trás e mirou em Maria de novo, que não se movera um centímetro sequer. — PRO CHÃO! — Dei a ordem. E Zero caiu. Vou explicar. Zero tinha essa tatuagem legal no pescoço. Bem, não era uma tatuagem. Papai o convencera a fazer depois que ele bebera meu sangue. Era uma magia que o imobilizava a uma ordem minha. Eu nunca tinha pensado que fosse precisar dela. — Senhorita Kurenai, volte para o dormitório. — Pedi a ela, agachando-me ao lado de Zero. — Eu... — Está tudo bem. Vá. Por favor. Ela assentiu, inclinou-se para nós e saiu, sem dizer mais uma palavra. Sentei-me no chão ao lado de Zero. — Se eu te soltar agora, você irá atrás dela? — Perguntei, antes de mais nada. — É! Eu vou! — Ele respondeu, gritando. — Certo. — Dei umas batidinhas no peito dele. — Então vamos conversar. O que foi aquilo? Zero não me respondeu, só ficou lá, olhando todo puto para direção em que Maria tinha ido. Recostei-me a árvore e esperei. Quando achei que já tinha se passado tempo suficiente, perguntei: — Você não sabe muito bem por que fez, sabe? Ele não respondeu. — Posso soltar você? Ele continuou não me respondendo. — Vou te soltar. — Falei, guardando sua arma comigo. Então, movi minha mão sobre seu peito, sem saber ao certo se estava fazendo direito. Mas Zero se sentou, e eu me parabenizei mais uma vez por ser a garota esperta que eu era. — Por que atirou nela, Zero? — Porque eu quis. — Ele sibilou. — E por que você quis? — Porque sim. Encarei-o por um momento. — Não é resposta. — Finalmente, falei. Fazia muitos anos que eu não dizia a Zero que “porque sim” não era resposta. Mas não consegui nenhuma outra. Acompanhei-o até em casa e deixei-o na porta de seu quarto, com o aviso de que estaria ouvindo no caso de ele decidir dar um passeio durante a noite. Ele me ignorou, batendo a porta. Fui usar o computador do meu pai. Através do computador dele eu conseguia acessar dados da Associação. Mas, é claro, eu não acessava pelo dele, por que o dele era registrado. Acessava pelo meu, e por mais uns cinquenta outros ao redor do mundo. “Maria Kurenai”, procurei. E lá estava. Aquela foi provavelmente a pesquisa mais rápida que eu já tinha feito. Maria Kurenai era descendente de Hiō Shizuka. — Muito fácil. — Falei, nada feliz com aquilo. Capítulo 17 Meu pai estava organizando um baile idiota. O objetivo da coisa não fazia sentido algum para mim. Papai queria que as meninas do diurno convidassem os vampiros do noturno, e as vampiras do noturno convidassem os meninos do diurno. Fez algum sentido pra você? Bom, pensei, quando ele me falou, a parte boa disso tudo é que eu não terei que ir com ninguém. A parte ruim é que ficou muito mais difícil controlar as piradas da turma do dia. Zero, Killua, Kurapika e eu estávamos tendo trabalho dobrado, tudo porque meu pai era um eterno cuca-fresca. Aquela era a primeira tarde em que os planos do baile deixaram de ser boatos e se tornaram oficiais. Então, todas as meninas, e quando digo todas, digo todas, estavam esperando que os “alunos” do noturno passassem por aquele caminho para chegarem ao prédio de “aulas”. — Khaaaaaaiya... Dei um berro. Aidou tinha me abraçado por trás, enquanto eu dava uma bronca numa menina idiota que tentara roubar um lenço que estava escapulindo do bolso de um dos vampiros. Sei lá qual era o nome dele. Eu não sabia o nome de todos. Aquela decisão feliz de Aidou me colocara na linha de fogo de metade das garotas ali presente, e todas elas passaram a me olhar com um ódio profundo e destilado. — Eu te pego, Hanabusa, seu maroto. — Sussurrei pra ele, dando um risinho infeliz. Ele me soltou, levantando suas mãos, desarmado, e saiu dando tchauzinho para todas que nem uma miss. — Você concordou com isso, senhor Kuran? — Perguntei a Kaname, quando ele passou perto de mim. — Não. — Respondeu, bem simplesmente. — Seu pai é maluco. — É, sabemos disso. — Suspirei, dando continuidade ao meu trabalho. Milhares de garotas estavam pedindo a Kaname que fosse ao baile com elas, notei. — Quer saber o que ele está respondendo? — Killua me perguntou, se aproximando de mim sem que eu percebesse. Levei um susto muito grande. — Não? — Fiz um barulho com o nariz. — Fala sério. Killua estudou meu rosto por um momento. — Ele está recusando. — Me contou, com um sorriso muito bonitinho. Eu fiquei querendo apertar suas bochechas. Porque elas eram fofas. Não porque Kaname estava recusando convites de garotas loucas, histéricas e desconhecidas. Pelo que você me toma? — Você consegue ouvir o que ele está dizendo daqui? Tipo, mesmo com todo esse barulho? — Consigo. — Ele falou, como se não fosse grande coisa. — Nossa, acho muita habilidade. — Falei com sinceridade. — Senhorita Cross... Olhei para Maria Kurenai. Ela estava parada atrás de mim, muito mais perto do que eu achava necessário, toda encolhidinha, como sempre, e olhando para baixo. — Oi! Diga, algo aconteceu? — Pedi. Já falei o quão ela era bonitinha? — Eu... Eu... — Pode me dizer. — Sorri encorajadoramente. — Eu... A senhorita Cross... A senhorita Cross... Gostaria de ir comigo... Ao baile? — Hã...? Ela ficou hiper-vermelha, e abaixou ainda mais a cabeça, incapaz de pronunciar uma só palavra a mais. Killua ficou só me olhando. — Há-há-há. — Eu ri. — Você é mesmo muito bonitinha, senhorita Kurenai. — E me agachei, para conseguir olhar seu rosto. — Mas não tem nenhum menininho que você queira convidar? Ela balançou a cabeça negativamente. — Eu... — Falou, desviando o rosto para que eu parasse de olhar para o dela. — Quero ir... Com a senhorita Cross. O que me deixou meio sem saber o que fazer. — Tudo bem. — Falei. Esperei que isso fosse ajudar, mas Maria ultrapassou até mesmo os limites humanos no quesito ruborização. Eu nem sabia como, sendo uma vampira, ela conseguia fazer aquilo. E aí pulou no meu pescoço. Segurei a mão de Killua, que voou, imediatamente, direto para o dela, com aquelas unhas gigantescas. — Está tudo bem, — falei pra ele, muito séria — ela só está me abraçando. Quando recolheu a mão, perdi o equilíbrio que me restava e cai sentada no chão, com Maria ainda pendurada no meu pescoço. — Okay. — Abracei-a também. — Que tal nos levantarmos agora? Maria me soltou, mas ficou com seu rosto muito perto do meu. Sorri pra a garota, me sentindo muito desconfortável. E aí ela me deu uma mordidinha na bochecha, se levantou e correu atrás do resto da turma da noite. Como se nada tivesse acontecido. — Você deixou, mesmo, ela fazer aquilo? — Killua me perguntou. — Eu deixei? — Perguntei, com a voz meio estrangulada. Eu tinha acabado de levar uma mordidinha de uma vampira lolicon. E isso não podia ser sinal de bom agouro. — Então, ela pode? — Aidou perguntou atrás de mim. — Não, — falei, me levantando — ninguém pode. Ela não pode, você não pode, nem eu posso. — Olhei para a multidão de meninas seguindo a turma da noite. — Como elas estão lá e você está aqui? — Sou muito rápido. Elas mal podem acompanhar meus movimentos. — Ele me deu um sorriso enorme. — A propósito, eu disse ao seu cãozinho mal-humorado, e vou dizer a você também: tome cuidado com aquela Maria Kurenai. — Por quê? — Perguntei. — Existe alguma Maria Kurenai com a qual eu não precise tomar cuidado? Afinal, o show tinha que continuar. — Recado dado. — Aidou piscou pra mim. — Cuide desse seu pescoço pequenininho com bastante cuidado. A gente se vê. E foi embora. — Eu vou matar esse cara um dia desses. — Killua falou, enfiando as mãos no bolso. — Vai, né? — Coloquei as minhas mãos nos meus. — Acha que precisará de ajuda? — Nenhuma. — Pena. — O que te deu para deixar aquela menina morder você no rosto? Você é burra?! — Ele então sacudiu as mãos pra mim, inconformado. — Ela não me mordeu, — expliquei — ela me deu uma mordidinha. — Olhei pra Killua. Ele não estava comprando. — Sabe, que nem os gatos. É tipo uma demonstração de carinho. Mas Killua continuou não comprando. — Você é louca! — Ele gritou, bastante bravo. — Eu sei... — Choraminguei. — Não briga comigo! — Como assim?! Me explica! Você vai mesmo ao baile com aquela menina maluca?! Simples assim? Sério? Foi isso que eu entendi? — Eu vou. — Coloquei as costas de uma mão no meu quadril e sorri para Killua de um jeito meio bobo. — Mas, irmão, isso não é nada simples. E ele ficou sem entender. Capítulo 18 Era o dia anterior ao baile. E Zero estava bebendo do meu pescoço de novo. Era a primeira vez que eu dava sangue a ele, desde aquela na casa de madeira. Zero não tinha falado muito comigo depois do nosso primeiro incidente com Maria Kurenai, e, embora eu tivesse me oferecido algumas vezes para firmar o nosso trato, ele resolvera esperar até o último segundo. De novo. Por isso, eu estava bem machucada. Estávamos num banheiro, bem ao lado do salão onde todos os nossos coleguinhas davam os últimos acabamentos, e toques femininos, à decoração do baile. Eu estivera lá também, ajudando Yori a prender rosas nos corrimãos das escadas, quando Zero simplesmente entrara no salão bem loucão, sangrando, e se enfiara no banheiro. Quando fui ver como estava, ele me atacou. Zero surgira de lugar nenhum, talvez do teto ou de algum buraco secreto no chão, e agarrara meus pulsos, como se eu fosse resistir. Não bastando isso, também tinha empurrado minha cabeça com força contra o espelho do banheiro. Eu o ouvira quebrar onde minha testa batera. E aí, só aí, Zero me mordeu. Ele estava sentindo muita raiva daquela vez. Mas não prestei tanta atenção assim aos sentimentos dele. Eu estava lutando contra minha própria tentação de ordenar que ele caísse. Sentia sangue escorrendo de minha testa para o nariz, fazendo cócegas, do nariz para minha boca, e então para o queixo. Meus pulsos também doíam. Zero estava tentando esmagá-los. — Por isso — me esforcei para dizer — pedi que você me avisasse quando precisasse de mais, e não... Zero me olhou com um olhar maligno, deixando seu rosto bem ao lado do meu. Então puxou uma de minhas mãos e me virou pra ele, apenas para continuar bebendo do mesmo lugar. — Esperasse até quando pudesse... — Terminei a frase. Achei que Zero fosse me matar, mas ele não chegou nem perto, parou de beber bem antes do que da primeira vez, também, embora tenha bebido mais do que da segunda. Ele me soltou, então, recuando, e ficou me olhando apavorado. — Eu... — Arfou, respirando com muita força, como fazia sempre que ficava nervoso. — Não cumpri minha parte do trato? — Sugeri, segurando o pulso que parecia estar torcido junto ao meu peito, sentindo muita dor. — Percebi. Puxei-o para colocá-lo no lugar. Segurei o gemido e tentei movê-lo. Movi os dois. Então me levantei e sai do banheiro. — Khaiya, eu... — Zero veio me seguindo. — Não. — Olhei pra ele. — Me deixe. Desdobrei a gola da minha blusa e fui andando até em casa. Meu pai ficou louco quando viu tanto sangue espalhado pelo meu rosto. — Escorreguei no banheiro — expliquei — e bati minha cara no espelho. Ele está lá, quebrado. Tem sangue meu. Pode pedir para alguém ir limpar pra mim? Acho que abri os meus pulsos. Levei uma bronca dele, por ter sido tão descuidada. Nem liguei. Tomei banho, lavei meus ferimentos com água bem corrente, e depois passei todo tipo de pomada para luxações nos pulsos. O que não ajudou em nada, porque os dois continuaram doendo. Quando Zero chegou à noite, depois de sua ronda, não veio falar comigo. Tipo, como sempre. — O que aconteceu? — Perguntei da porta. Zero estava ferido e violento quando me mordera, alguma coisa tinha que ter acontecido. — Não vai me dizer? E não disse, mesmo. O que só podia significar uma coisa: Maria Kurenai. Fui até a cozinha e comi o quanto meu cansaço permitiu, depois voltei para o meu quarto e fiquei descansando lá até dormir. No dia seguinte, comi melhor e descansei bastante. Até a hora do baile, eu estava quase inteira. Kaname tinha me mandado um vestido para usar no evento. Hum, pensei. Nem toquei nele. Ia como par de Maria, e, portanto, com minhas roupas usuais: o uniforme masculino do diurno. Todos os meninos, humanos e vampiros, iam usar seus uniformes. Só as garotas é que iam com roupas de festa. Quando cheguei, praticamente todos já estavam lá. Afinal, todos os convidados moravam nos dormitórios, não tinha como ninguém se atrasar muito. — Então, recusou o vestido que dei a você. — Kaname se curvou para dizer perto do meu ouvindo, chegando do meu lado. Eu estava numa das sacadas, olhando pra noite, bem tranquila. — Sim, afinal, você não concordou com o baile, lembra? Ele sorriu, como se esperasse essa resposta. — É brincadeira. Aconteceu que, pasme você, eu arranjei um par! — É mesmo? — Kaname sorriu mais. — Meus planos não contavam com isso. — Aposto que não. Quais eram seus planos? Ele esperou. E então se inclinou pra mim e disse: — Roubá-la para mim durante a noite. — Suspeitei desde o princípio, meu colorado Chapolin. — Estalei meus dedos no ar. —Por isso não vesti aquele vestido. Não curto essa de ser roubada. — Teria ficado linda dentro dele. — Ele acariciou meu rosto com os nós de seus dedos. — Teria. Mas você me acha linda fora dele também, então o universo mantém seu equilíbrio. Eu vou guardá-lo para usar numa ocasião mais especial. O que acha disso? Você me perdoa assim? — Eu a perdoaria — ele falou, entrelaçando seus dedos nos meus e levantandoos — se me concedesse uma dança. — Hum — dei de ombros — se for apenas uma, acho que meu par pode sobreviver a isso. Um pouco de competição saudável, afinal, não faz mal a ninguém. Kaname pegou minha outra mão e ficamos nos balançando de um lado para o outro, que nem dois autistas esquisitões, sem música nenhuma tocando. — Eu não a tenho visto ultimamente. — Ele comentou. — É. É essa minha vida de dois empregos. Além de evitar catástrofes interespécies diariamente, também tive que organizar tudo isso. — Fiz um gesto amplo, indicando de fato tudo. — Ou você acha que o salão sabe se vestir sozinho? Ser filha do diretor dá trabalho pra caramba. Ih, acabou. — Avisei, parando de balançar com ele. — Meu par chegou, tenho que ir lá. Kaname parou, também, e segurou minhas duas mãos juntas, erguendo-as até seu rosto. Mas, em vez de beijá-las, beijou meus pulsos, tirando a dor que restara neles. — Uau... — Falei, bastante impressionada, imaginando se ele já tinha feito aquilo comigo antes. — Obrigada! Talvez tivesse, mas eu não lembrava direito. Soltei suas mãos e Kaname se recostou na balaustrada. — Não vai me dizer quem é? — Ele pediu, inclinando a cabeça com um belo sorriso. — Eu deixou você espiar. — Pisquei, e sai correndo para a entrada do salão para encontrar Maria Kurenai. Ela estava linda. Se eu tivesse um centésimo da beleza que ela exibia pra todo mundo naquele momento, já me consideraria a gata mais gata do universo. — Caríssima dama, — fiz uma reverência extravagante — seja muito bem vinda. Maria quase explodiu em vermelhidão. Entrelacei nossos dedos, como Kaname fizeram comigo, porque achara aquilo muito charmoso e quisera experimentar o efeito em alguém mais feminina do que eu. Foi bem impressionante. Eu já tinha combinado com Killua e Kurapika que não trabalharia aquela noite, e depois compensaria. Então, nem me preocupei. Dancei com Maria a primeira música. Mostrei a ela todas as gambiarras da decoração que os meninos tentaram esconder das maneiras mais variadas possíveis e fui uma perfeita cavalheira a noite toda. Quando anunciaram a última dança, tirei-a para dançar comigo, uma última vez. — Se divertiu? — Perguntei a ela, com meu melhor sorriso. Maria me olhou daquele seu jeito infantil, cheia de vergonha. — Bom. — Continuei sorrindo. — Como já estamos no final da noite, eu estava imaginado, talvez a senhora queira — sorri diferente, mais séria agora — me dizer o que quer comigo, senhora Hiō. Ela ficou séria. Então voltou a sorrir, com confiança, então, sem se afundar num turbilhão de rubor ou abaixar a cabeça. — Ah. — Ela disse. — Quando descobriu? Não, deixe-me adivinhar. Quando pedi que me trouxesse ao baile? — Quando Zero apontou aquela arma para a cabeça da senhora, na verdade. — Me gabei, toda alegre. — Ora! Meus parabéns! — Muito obrigada. Eu me esforço bastante, sabe. E então? Vou saber pela senhora o motivo de estar aqui, ou terei que adivinhar também? — Tente adivinhar. — Ela sugeriu. — Hum. Não vai me pedir para ajudá-la a matar... Kaname, vai? — Certo, eu estou surpresa. — Ela arregalou os olhos, chocada e satisfeita ao mesmo tempo. — Como soube? — Ah, eu não sabia até agora. Só achei que, ou estaria aqui para matar Zero, ou para matar Kaname. Como sei que já pintou e bordou o quanto quis com Zero e sua família no passado, meu chute de ouro tinha que ser Kaname. — Falei. Eu já tinha aceitado que Kaname queria destruir os outros sangues puros. E estava tentando decidir se devia ou não avisar Shizuka a respeito disso. — Mas... Me explique por que eu a trouxe para o baile, afinal. A dúvida está me matando. — Gosto de bailes. — Ela inclinou a cabeça para o lado, encolhendo os ombros. — Hum. — Pensei. — Acho muito justo. Consegui, mesmo, fazer com que se divertisse? — Muito além do que eu esperava. — Shizuka respondeu, parecendo bastante sincera. — Então, missão cumprida! E o que faremos agora? Ela riu. — Não tenha pressa. Não seria nada delicado interromper uma dança agradável como essa pela metade. — Nossa, sinto muitíssimo. — Falei, levantando minha mão para girar Shizuka. Então, a música acabou. Encolhi meus ombros, sorrindo um sorriso muito amarelo para ela. Ela o retribuiu e começou a me puxar para fora da pista de dança. Fiquei imaginando se estava sendo muito displicente em cautela indo com Shizuka para onde ela me levava. Estava, com certeza. Mas eu daria um jeito quando a situação pedisse. Então, sem problemas. Shizuka me levou para um quarto. O prédio de aulas da turma noturna era muito mais um clube do que qualquer outra coisa. Só alguns anfiteatros lembravam, vagamente, salas de aulas. — Abaixe-se. — Ela me disse. Shizuka tinha se sentado numa espreguiçadeira toda acolchoada e estava querendo que eu me ajoelhasse diante dela. Como eu não contrario gente louca, obedeci prontamente. — Algo mais que deseje? — Perguntei. — Sim. Quero mostrar-lhe meu verdadeiro corpo. — Ela esperou uma reação de surpresa da minha parte, mas não era assim que eu pretendia jogar, então não fingi nenhuma. — Ora, ora. — Ela tocou em minha mandíbula com seu dedo, parecendo cada vez mais satisfeita. — Ichiro, entre. E Ichiro entrou. Ele estava vestindo umas roupas bem extravagantes. E usava uma mascara, apesar de que, mesmo com ela, lembrava Zero em diversos aspectos. A única coisa que me fazia ter certeza de que aquele garoto não era meu irmão adotivo, era o fato de que segurava o corpo adormecido de Shizuka como se fosse seu bem mais precioso. — E aí, Fantasma da Ópera? — Acenei para Ichiro, querendo ouvir sua voz. — Cansou de cantar afinadinho e resolveu tentar um bico como carregador de sanguepuros? Ow, sou grande fã. Ichiro respondeu a provocação, e a reação em seu rosto foi exatamente igual à de Zero. Olá, irmão gêmeo. Cumprimentei mentalmente, dando-lhe um sorriso caloroso. Fico feliz que esteja vivão. — Fique quieta. — Shizuka disse a mim, enquanto Ichiro colocava seu verdadeiro corpo sentado ao lado dela, com muito cuidado. Shizuka aproximou-se do corpo adormecido e, de repente, este abriu os olhos. A casca Maria Kurenai então caiu, inconsciente e vazia, e, se eu não a tivesse segurado, teria se esborrachado de cara no chão. Fiquei meio irritada, mas não disse nada. Shizuka, a verdadeira, deu uma risada gutural e experimentou seu verdadeiro corpo, esticando os braços e movendo-os em seus longos cabelos prateados. — Ela é adorável, — disse a Ichiro, que não respondeu e apenas se afastou — única e muito especial. Khaiya, sabe por que você é uma peça muito especial? Deixei Maria Kurenai deitada no chão e voltei a encarar a sangue-puro. — Sei, sim. — Fiz cara de espertalhona. — A questão é: a senhora sabe usar uma “peça” como eu? Ela se interessou, vendo que, talvez, eu soubesse algo que ela ainda não sabia. E eu vi que, talvez, fosse aquilo mesmo. Nem todos os sangue-puros eram muito excepcionais, afinal. Foi muito fácil enganá-la. Eu até pensei em colocar o diálogo aqui, mas como não representou de fato nenhum desafio intelectual, vou apenas resumir. Percebendo que ela sequer desconfiava do parentesco entre Kaname e mim, insinuei que havia muito mais em minha pessoa que ela podia usar, e deixei-a curiosa quanto a isso. Expliquei então a Shizuka que eu não estava nem um pouco interessada em que ela desse seu sangue a Zero, o que a surpreendeu e deixou-a desconfiada. Porque, claramente, era com essa moeda de troca que ela pretendia fazer negócio. Admito que ficou parecendo meio forçado dizer que eu não ligava a mínima para meu irmão adotivo, mas contornei isso, explicando que meu verdadeiro objetivo era eu mesma beber o sangue dela, assim como o de Kaname e dos outros sangue-puros. Porque, por trás daquela minha carinha de boazinha, eu era verdadeiramente muito comilona. Minha cartada final foi tio Rido. Shizuka fora casada com ele por vários anos (acho que, por isso, ela era meio loucona), e, provavelmente, devia odiá-lo bastante. Então prometi que a levaria até seu corpo adormecido, que eu não apenas sabia onde estava, mas que também já tinha até visto, se me deixasse ajudá-la. Quando terminei, Shizuka me olhava como se fosse o Dr. Frankenstein e, eu, o seu novo monstro bebê. — Aceito sua proposta. — Ela não pensou muito. — Tenho apenas uma condição. Inclinei a cabeça, desconfiando qual seria. — Quero que me diga agora mesmo por que Kaname é tão vulnerável a você. Balancei para os lados, segurando minhas mãos atrás. — Esse é um segredo que só posso revelar um sangue-puro. Shizuka sorriu. Ela já havia entendido. — Saia. — Ordenou a Ichiro. — Vá levar Maria Kurenai para... Algum outro lugar. — E sacudiu a mão, como se os dois fossem uma poeira que pairava no ar perto do seu rosto. Aquilo também me tirou um pouco do sério. — Senhora, eu não... — Ichiro começou a protestar, mas Shizuka gritou com ele e ele se calou, pegou Maria e saiu do quarto. Quando tive certeza de que estávamos sozinhas, voltei-me para Shizuka. — Um segredo. De um sangue-puro pra outro sangue-puro. — Ela falou, quase emocionada. — Então você é a suposta filha mais nova do último casal Kuran. Me encolhi de novo, tentando parecer humilde. — Sim, mas às vezes acho que sou filha do meu tio Rido, nossas personalidades combinam muito mais. — Na verdade, eu estava um pouco surpresa que ela soubesse. Eu achava que minha existência fosse um segredo. Mas, bem, ela fora casada com tio Rido. Talvez os dois se comunicassem quando estivessem planejando matar os sobrinhos. Shizuka abriu os lábios e seus olhos brilharam como prata líquida. — Quero mordê-la... — Disse, interrompendo a si mesma como se tivesse expressado um pensamento muito alto sem querer. — E você irá, mas antes devo beber o sangue do meu querido irmãozinho. Não se esqueça. Shizuka levou seus dedos até a própria garganta e pressionou-os ali, tentando furar a própria pele. Eu a impedi, puxando sua mão e beijando-a. — Ainda sou humana, não posso “beber” seu sangue dessa forma. — Claro. — Ela fechou os olhos. — Por um instante, esqueci-me disso. Peguei a seringa de um estojo que havia trazido comigo e puncionei seu braço. Um líquido vermelho muito vivo foi enchendo o recipiente, à medida que eu puxava o êmbolo, e, quando o preencheu completamente, injetei-o no meu. Shizuka, por alguma razão, ficou me olhando fascinada enquanto eu fazia aquilo. Quando terminei, descartei a agulha dentro de um frasquinho e guardei tudo no estojo de novo. — Certo, manteremos contato. — Falei, toda feliz. E fui indo embora. Acabei concluindo, então, que Shizuka talvez não fosse tão burra, porque, embora eu não tivesse muita certeza de onde tinha errado, assim que me levantei, ela começou a gritar histericamente. Tão histericamente que quase estourou meus tímpanos. Ichiro voltou para o quarto imediatamente, e tentou me cortar ao meio com uma espada que tirou do além. Estendi meu cajado e me defendi. — Sua tola! — Shizuka gritou pra mim, furiosa. — Eu? Tola? Quem foi enrolada pela humana aqui? — Tudo bem, talvez não a coisa mais inteligente que eu pudesse ter dito na minha situação. Mas eu estava bem excitada por meu plano ter dado tão certo, não pude evitar. — Corte o braço dela! — Ela berrou. — Corte o braço dela! Ichiro me atacou de novo e eu esquivei. Ele não era muito rápido, nem muito forte. Eu podia ficar esquivando de duas investidas até que se cansasse, e, então, só precisaria passar por cima dele e chegar à porta. Mas eu não sabia quanto tempo Shizuka levaria para se acostumar totalmente ao seu corpo original. E, quando isso acontecesse, eu seria um frango frito muito frito. Por isso, eu quis sair dali. Dei um jeito de distrair Ichiro e acertei um golpe em sua nuca, fazendo com que caísse inconsciente. — Tchauzinho. — Acenei para Shizuka. Então notei que alguém tinha colocado aquele sorriso impertinente dela de volta no lugar. E eu não gostei. Quando olhei para porta, percebi quem tinha feito aquilo. — Vá embora, Zero! SAIDAQUIAGORA! — Gritei, mas já era tarde. Ele apontara sua arma para a própria cabeça. Shizuka o controlava. Não, não, não, não, NÃO! Chorei. Tentei pensar em algo. Eu podia injetar o sangue nele. Se conseguisse, ela não poderia mais controlá-lo. — Não se aproxime dele. — Ela me avisou. Olhei para Zero, e então para Shizuka. Ela veio na minha direção. — Venha. — Estendeu a mão para mim. — Resigne-se, sofra as consequências por sua falta de prudência, e ainda terei a bondade dar a você a honra de ter sua vida drenada para dentro de mim. Olhei para Zero. E percebi algo muito, muito legal: A trava de segurança ainda estava armada. — Pro chão! — Dei minha ordem mágica, também. E foi a mim que ele obedeceu. Joguei meu cajado para cima de Shizuka, acertando-a no rosto, então me curvei sobre Zero e arranquei a segunda pele falsa, que eu colocara em meu braço para esconder os tubinhos que enchera com o sangue de Shizuka. Eu não sabia exatamente que efeito teria injetar aquele sangue direto nas veias dele, mas estava contando com resultados positivos, então espetei a ponta de um dos tubos no vaso mais visível e o espremi, empurrado o sangue para dentro do Zero. Shizuka berrou estridentemente. Fiz uma careta. Talvez berros ensurdecedores fossem uma de suas habilidades como sangue-pura. Zero me olhou e eu percebi que ele não estava mais sob o controle dela. Então o soltei. — Vamos! — Falei para ele, me levantando e tentando puxá-lo. — Ela está recuperando seus poderes! Depressa! Zero levantou-se comigo e me puxou para si. — Obrigado por ter me dado essa chance. — Disse, com seu rosto encostado no topo da minha cabeça. Eu gritei, e tentei segurar seu braço, mas Zero a atingiu. No ombro, de raspão. Shizuka fugiu e Zero quis ir atrás dela, mas eu me agarrei a ele firmemente, tentando evitar que fosse, sem ordenar que caísse no chão de novo. — Me deixe, Khaiya! Eu vou matar aquela mulher! Não respondi, nem o soltei. Ele olhou pra mim, com todo o sofrimento pelo qual passara durante aqueles anos sem a sua família concentrado em seus olhos. Mas eu continuei a segurá-lo com toda a minha força. Zero então olhou para a porta pela qual Shizuka havia saído. Vi em seu rosto um desejo desesperado e profundo de ir atrás dela, e, por um momento, pensei que eu talvez não fosse mais conseguir impedi-lo. Mas aí ele olhou pra mim de novo. E me abraçou. Tudo bem, pensei, abraçando-o também. Então vi Ichiro se levantando. — Zero! — Tentei empurra-lo, mas ele me segurou e a espada de Ichiro perfurou seu braço. — Seu...! — Zero rosnou, mirando o próprio irmão. Agarrei de novo o seu braço e puxei-o para baixo. — Parem já essa porra, vocês dois! — Gritei. — O que pensa que está fazendo?! Ele é seu irmão! — Rosnei para Ichiro. Zero olhou para ele. — Hã...? — Foi tudo o que conseguiu dizer. Ichiro não se deu ao trabalho de responder. Em vez disso, ele se preparou para nos atacar novamente. Mas, então, desistiu, como se tivesse ouvido algo perturbador, e correu na direção em que Shizuka fora. Fui atrás dele. — Não venha! — Pedi a Zero. Mas é claro que ele veio. Parei, quando percebi que Ichiro tinha parado. Ele caiu de joelhos junto ao corpo de Shizuka, o abraçou, e, então, chorou. Olhei para ela. Estava coberta de sangue, principalmente sobre o peito e à base da garganta. Então ouvi um barulho. Alguém indo embora com pressa. Reconheci o barulho de seus passos e guardei aquilo comigo. Zero chegou também. Ele olhou para cena e então para mim. Segurei sua mão. — Não te pedi pra não vir? Vimos Ichiro fazer algo com o corpo. De alguma forma, fez com virasse cristal, e, então, o quebrou em mil pedaços. — Isso tudo é culpa sua... — Disse. Não tive certeza de se estava falando comigo ou com Zero, mas, como me atacou, talvez fosse comigo. — Solte a arma. — Killua aconselhou, com suas unhas afiadas no pescoço dele. — Você é um Zoldyck, — Ichiro olhou para ele, com sua lâmina ainda apontada em minha direção — sou humano. — Quer apostar pra ver se ligo à mínima? — Killua perguntou, abrindo aquele seu sorriso enorme. Kurapika também estava ali. — Ichiro Kiriyuu, estamos tomando-o sob nossa custódia. — Ele falou. Ichiro soltou uma risada, enquanto ainda chorava. — Estão, não é? Boa sorte com isso. Então empurrou uma janela, e seu corpo se tornou um véu negro turbulento, saindo voando por ela. — Humano? — Killua ficou olhando pra lá. E eu para os fragmentos do corpo de Shizuka. — Você fez isso? — Kurapika perguntou para mim. Nenhum dos três havia visto os ferimentos dela. Apenas Ichiro, eu e, pelo menos, mais duas pessoas tínhamos. — Não, eu fiz. — Disse Zero. — Você acertou um tiro de raspão no ombro. — Esclareci. — Isso não a mataria. — Bom, — Kurapika olhou seriamente para mim — ela era um sangue-puro. Mesmo que tenha sido uma assassina, pertencia à classe mais alta da sociedade dos vampiros. Sua morte com certeza será investigada e os culpados vão ser encontrados e punidos. Nós quatro e aquele garoto fomos as únicas testemunhas oculares, certo? — Ele continuou olhando para mim. Fiz que sim, pois, até onde eu sabia, era bem provável que as outras duas pessoas que sabiam não se declarariam testemunhas. — Então, me diga, o que devo pôr em meu relatório? — Exatamente o que viu. — Falei. — O corpo da sangue-pura em pedaços cristalizados e um humano com poderes muito loucos me acusando pela morte dela. Todos se entreolharam, e, então, Zero começou a discutir. Não interferi e deixei que dissesse o que quisesse. Mas, mais tarde, tentei convencer Kurapika a deixar o relatório como eu havia pedido. — Posso fazer isso. — Respondeu ele. — Eu faria. Mas você sabe que aquele garoto acabará levando toda a culpa, de um jeito ou de outro. A menos que alguém assuma a autoria antes disso, é claro. — Eu vou dar um jeito, se isso acontecer. — Falei com determinação. — Por enquanto, mencione em seus relatos apenas o que você viu. Kurapika assentiu. Ele sabia que as penalizações para humanos eram diferentes das para vampiros ex-humanos, então não ia sacanear a gente. Ele e Killua disseram que eu fosse descansar, então fui pra casa. Não pra descansar, é claro. Mas, em meu caminho, vi Kain. Ele estava indo em direção ao portão da escola. E, com ele, ia uma garotinha. A garotinha olhou para mim e sorriu, dizendo algo a Kain e começando a vir na minha direção. Kain, no entanto, ficou segurando sua mão e não deixou que ela se afastasse. A menina ficou triste, mas se conformou, deu-me um aceno e continuou indo com ele, bem comportadamente. Eu não me lembrava de já tê-la visto, mas não tive que pensar muito para descobrir quem era. Olhei para o outro tubo de sangue que eu guardara. Então eu o abri e deixei o sangue cair no chão. Não ia mais precisar dele. Capítulo 19 Quando um sangue-puro morre, os que continuam vivos ficam mais fortes. Isso acontece, acredito eu, porque, de alguma forma, o poder de cada um deles limita o dos outros. Portanto, a morte de Shizuka foi um fator determinante para ascensão de tio Rido. E talvez também tenha tido certa influência no despertar dos outros quatro, também. Mas chegaremos lá. Por enquanto, falarei sobre como aquela situação me afetava. Quanto mais forte Rido ficava, maior era o poder que exercia sobre mim. Mas já deixei isso claro, certo? Bom, de qualquer forma. Talvez fosse por eu também ser uma sangue-puro. Talvez eu também tivesse ficado, mesmo, mais sensível, e com meus reflexos mais rápidos e hiperativados. Ou, talvez, fosse só impressão minha. De um jeito ou de outro, a sensação de estar sendo observada grudara em mim. Acho que aquela fora a primeira vez. Em que eu perdera para a minha imaginação em um lugar aberto, eu digo. Foi algo sutil. Quase como um devaneio. Eu ouvira alguém chamar por meu nome, e me virei para ver quem era. Mas não tinha ninguém. Fiquei olhando, esperando que quem quer que estivesse fazendo aquilo surgisse detrás de algum arbusto e gritasse “BU!”. Mas não tinha mesmo ninguém. — O que foi? — Killua me perguntou, desconfiado. — Sei lá. Eu ficando louca, acho. — Respondi, ainda esperando ver alguém. — Mais louca, você quer dizer? — Ele sorriu. Sorri de volta. E, então, senti alguém vindo. E aquilo não era só impressão. Corri para a direção de onde vinha aquela sensação. Killua me seguiu. — Você também... Teve uma sensação esquisita? — Perguntei, enquanto corríamos. — Você teve uma? — Ele me perguntou de volta, achando aquilo estranho. Fomos até o local e paramos juntos. Ficamos esperando. — Zero... — Falei, respirando. Ele fez sinal de silêncio. Continuamos esperando. Fui a primeira a me mover. Algo voara em direção a Zero, e poderia tê-lo partido ao meio se eu não tivesse me jogado em cima dele, e nos desviado da linha de trajetória do negócio. Então, um vulto se ergueu, tomando forma humana. — Deixe-me perguntar, — ele sorriu para mim — Zero Kiriyuu, então, é você? — Não, — Zero esclareceu — você tinha acertado na primeira. E então apontou sua arma para ele. Não tentei fazer com que a abaixasse. Aquele homem, ou o que quer que fosse, tinha nos atacado primeiro, e provavelmente atacaria de novo. Killua, sem que nenhum de nós percebesse, se aproximou do intruso e, demonstrando todo o seu nenhum pudor, fincou suas garras nas costas dele, atingindo seu coração. — É proibido atacar humanos dentro da Academia, vampiros. — Ele disse. E o vampiro se desfez. Eu nunca tinha visto um vampiro se desfazer antes. Mas não tive tempo de ficar chocada. Aquele não era o único. Zero me pegou e saltou para longe, evitando outro ataque fatal disferido contra ele. — Kiriyuu Zero — disse outro vulto — pelo assassinato da sangue-pura Hiō Shizuka, segundo o comando da Suprema Corte da sociedade vampírica, o Conselho de Anciões, você está sentenciado à morte. Vários outros vultos se ergueram. Estávamos cercados. — Podem vir. — Zero falou. — Santa merda. — Falei eu. E Killua só ficou sorrindo. Ele tomou a dianteira daquela vez e matou o vampiro mais próximo, sem hesitar. Zero atirou em um, e esse também se fez em pó. Quando outro veio por trás dele, eu o defendi. Mas não matei ninguém naquela merda. — Eu, Khaiya Cross, filha do caçador de vampiros, Kaien Cross, — gritei, antes que os vampiros fizessem o próximo movimento — confesso a autoria do assassinato de Shizuka Hiō, e exijo, recorrendo aos meus direitos como humana, ser julgada como uma não leiga pela Primeira Associação de Caçadores. Falei aquilo tudo direitinho. Fiquei quase orgulhosa de mim mesma. Para ser sincera, eu tinha treinado algumas vezes. Todos pararam. Zero me olhou, com a voz estrangulada em sua garganta. Killua não disse nada. Eu já tinha avisado a ele que ia fazer aquilo. — Neste caso, — um dos vultos se aproximou — Khaiya Cross, filha de Kaien, está presa. A pena para a resistência é a morte. Zero apontou a arma para aquele e atirou, mas dessa vez eu o impedi. — Ela está mentindo! — Ele gritou para todos. — Sou eu quem vocês querem, venham ME pegar! Mas nenhum deles se moveu, então. Como não havia provas suficientes que apontassem definitivamente para mim como o real assassino de Shizuka, era claro como uma tela LCD que escolheriam Zero como bode expiatório. Afinal, alguém tinha que ser punido, e a ele, sem dúvidas, não faltavam motivos. Mas eu tinha os relatórios de Kurapika, e quem sabe se também não o testemunho de Ichiro, contra mim. Era bem possível que os cães do Conselho tivessem recebido ordens prévias para suspender o ataque a Zero caso eu confessasse. — Que chatice. — Killua falou, inclinando a cabeça para frente e colocando as mãos no bolso. Dei um passo em direção ao vampiro que se aproximara de nós, mas Zero me puxou de volta e, sem me dar a chance de impedi-lo daquela vez, puxou o gatilho. Hum, pensei, acho que alguns deles poderiam vir a encarar isso como uma forma de resistência. E não é que eu estava certa? — Sweet... — Killua assoviou, feliz de novo, e se preparou para atacar o vampiro que se empertigara, vindo em minha direção. Foi então que ouvi um barulho muito assustador. Agarrei Killua e o puxei-o pra mim. Bem a tempo. O vampiro que me tinha como alvo teve metade do seu corpo estourado, simples assim, e isso o parou. Né? Achei aquilo horrível. O vampiro continuou lá, de pé, com apenas metade do corpo sobrando. E se ajoelhou, como se aquilo não fosse nada demais. Continuei achando horrível. — Senhor Kuran... — Ele disse. — Peço-lhe humildemente que o senhor e seus honrosos amigos se retirem. — Olhei em volta. Estavam mesmo todos ali. Os nobres, eu quero dizer. — Estamos cumprindo ordens do Conselho... — O que me faz ficar imaginando — Kaname se moveu, interrompendo-o — se não expressei com a clareza necessária o quanto qualquer intervenção dentro dessa Academia, por parte do Conselho de Anciões, seria do meu desagrado. Achei muito estranho ouvi-lo falar daquela maneira. Pra ser verdadeira comigo mesma, tive um pouco de medo dele naquele momento. Mas foi um momento curto. — Senhor Kuran... — O vampiro pela metade tentou argumentar. E então eu ouvi o barulho de novo. Soltei Killua e corri pra frente do meio vampiro. Foi a coisa mais estúpida que já fiz em toda a minha vida. Mas foi a única vez, eu juro. Kaname, não sei como, deteve o próprio ataque, e eu não fui explodida em um milhão de pedaços. Pelo que eu já fiquei bem feliz. — Ele já entendeu! — Gritei para meu irmão. Eu estava furiosa com o estado do corpo daquele vampiro. Tão furiosa que ainda sequer tinha notado o quão próxima estive de minha própria morte. Kaname andou até mim e segurou meu braço com força, sem desviar os olhos do vampiro meio vazio. — Desapareça. — Ordenou ele, mostrando como ser absoluto. O vampiro meio cheio fez outra reverência e, junto a seus companheiros, foi embora. Só então Kaname me olhou. Foi um olhar cheio de desaprovação. Desviei o meu, sentindo-me um pouco envergonhada. Entrar na frente de um ataque como aquele... Eu me sentia como uma idiota. — Tá machucando... — Falei bem baixinho. — E isso não chega nem perto da metade da metade do que você merece. — Solte-a, Kuran. — Zero ameaçou, segurando meu outro braço. — Se alguém for puni-la, esse alguém vai ser o pai dela, e não você. Kaname olhou-o com o mesmo ódio com que tinha olhado para os cães do Conselho. — Não se meta, humano. Fiz um barulho irritado no fundo da minha garganta. Em primeiro lugar, tudo aquilo era culpa dele. Que direito tinha ele de ficar bravo comigo por qualquer motivo que fosse, então? Foi o que pensei. Mas, como sempre, não podia abrir minha boca, então só engoli tudo, calada. Sentindo-me um pouco menos idiota e muito mais irritada, segurei os dedos de Kaname e os desprendi de meu braço. E fui embora, sem dizer uma palavra. — Khaiya! — Zero me alcançou, um pouco depois. — É. Eu assumi a culpa e não há nada que você possa fazer quanto a isso. — Respondi de uma vez, seguindo meu caminho, sem olhar pra ele. Zero segurou meu braço e me puxou, então, segurando o outro e me voltando para ele. — Você — sibilou — sequer tem consciência do que fez?! Cerrei os olhos. — Eu tenho muito mais consciência do que você imagina. Zero me encarou e eu o encarei de volta. Aí ele fez aquela sua cara de dor e perguntou: — Por quê? Fiz uma careta eu mesma. “Por quê?”. “Por quê?”, ele me perguntava. — Porque eu quis. — Respondi, torcendo meus braços e soltando-os. Capítulo 20 Não recebi nenhuma punição. De alguma forma, Kaname conseguiu que eu não voltasse a se atacada pelo Conselho. Mas fiquei proibida de sair da Academia, sob quaisquer circunstâncias. Aceitei isso. Eu aceitava bastante bem bastantes coisas. A partir daqui, não há muito mais para contar. Minhas ilusões foram ficando mais frequentes e, à medida que se passava o tempo, mais violentas. Não demorou muito para que eu ficasse meio pirada. Nem eu achava que era esse tipo de pessoa, mas acabei, mesmo, dando perda total. Comecei então a me isolar. Eu não queria ver mais ninguém. As pessoas que vinham me ver se transformavam em monstros aterrorizantes, bem na minha frente. Embora ficar sozinha também não fosse muito melhor. Perto do final, eu via coisas horríveis surgindo de todos os cantos. Demônios, assombrações, catástrofes, minha mãe morrendo de todas as formas mais criativas possíveis e inimagináveis, rios de sangue escorrendo pelas paredes. Todo tipo de coisa. Eu estava a apenas um pequeno passo de perder completamente a minha cabeça quando Kaname descobriu como acabar com tudo aquilo. Antes de ficar completamente antissocial, eu já tinha percebido que Rido estava andando para todos os lados com o corpo de Shiki. Ele nem tentava mais disfarçar. Apesar de eu já não ter mais nenhuma condição de pensar sobre aquilo, em algum momento eu tinha tomado consciência do fato de que a culpa era toda dele, e que, muito em breve, Rido estaria andando entre nós com seu verdadeiro corpo. Kaname me ajudou quando quase não dava mais tempo. Ele veio ao meu quarto naquela noite, e me pegou no colo. Eu gritei e gritei. Fiz o maior escândalo. Não fazia ideia de quem era aquele, parecia só outro bicho perigoso horroroso, pronto para me devorar. Mas, sem parecer se importar com os meus esforços, ele me segurou e me levou para o lado de fora. Aceitei aquilo também e parei de lutar. Eu ainda estava apavorada, mas achei que aquilo fosse para o melhor. Se ele me matar, eu já estava pensando, quem sabe, talvez esse pesadelo termine. Eu já tinha desistido de lutar havia muito tempo. Não me orgulho nada disso, mas é a pura verdade. Veja você que um plano tão simples como o de tio Rido quase chegara a atingir seu objetivo sem o menor problema. Ele queria me deixar inválida. Me levar a um ponto de loucura a partir do qual não houvesse mais recuperação pra mim, e, assim, me transformar em um peso para Kaname carregar. E, se ele não tivesse descoberto sobre a arma que estava dentro de mim a tempo, teria acontecido exatamente isso. Mas, pensando agora sobre isso, talvez, se eu tivesse me tornado mesmo um vegetal, Kaname fosse, na real, ter menos problemas comigo. É. Tio Rido era idiota. Kaname me explicou a situação. Ele me pediu desculpas por não ter percebido antes e por ter deixado que eu passasse por tudo aquilo, então me disse que, assim que me mordesse, meu corpo rejeitaria a arma, e a arma rejeitaria a transformação, e que, embora isso não fosse me separar dela, tão pouco me transformar numa vampira, a ligação entre nós mudaria, e eu seria capaz de controlá-la, e não mais ela a mim. Não entendi nada do que ele disse na hora. Apenas fiquei esperando que me matasse. Foi só depois que me lembrei da explicação. — Está preparada? — Foi tudo que consegui ouvi-lo dizer. Não respondi. Eu estava vendo pedaços enormes do céu se desprenderem lá de cima, e virem cair todos bem ali por perto. Eu ouvia os estrondos e sentia a terra tremer. Ou talvez estivesse apenas me sentindo tremer, não sei a certo. De qualquer forma, não consegui responder a pergunta do monstro. Então ele me mordeu. Não senti nadinha, apenas continuei olhando para o céu enquanto tudo despencava. Mas, aí, o monstro pressionou seus lábios contra os meus, abrindo minha boca e deixando que um líquido amargo e frio escorresse para dentro dela. E foi aí que veio a dor. Não sei se consigo compará-la a nenhuma dor que dê para imaginar. Digamos que... Foi como um parto. Mas em vez de dar a luz a uma criança quentinha, pequena, redondinha e macia, eu tinha uma arma gigantesca, fria, e cheia de lâminas afiadíssimas tentando sair de toda a extensão do meu corpo. É. Acho que essa é uma analogia válida. Mas tente imaginá-la numa escala ampliada em um bilhão de vezes. Aí estaríamos falando da mesma coisa. Não sei bem como sobrevivi àquilo. Lembro-me de ter tentado me jogar da janela, mas o monstro não me deixou fazer. Quando acordei, fiquei com aquela impressão de ter dormido muito depois de comer demais. Eu me sentia naquele ponto, entre o sonho e a realidade, em que a gente já está acordado, mas ainda não sabe, e, por isso, fica se perguntando como foi parar ali, e tentando se lembrar de onde estava antes. — Khaiya... — Kaname me chamou. Olhei para ele. Achei que não o via havia muito tempo. — Hã...? — Disse, soando bem inteligente. Olhei em volta. Parecia que eu não via nada daquilo havia muito tempo. — Tive um sonho esquisitão. — Falei. — Por que estamos aqui? — Você não se lembra de nada? — Ele perguntou, apoiando meu rosto em sua mão gelada. — Como assim? Então percebi o que ele havia feito. Limpei algo que escorria em minha boca e olhei para aquilo. Era sangue. Toquei em minha garganta. Tinha ali também. — Voltei a ser vampira? — Perguntei, sem pensar muito no que estava dizendo. Meu irmão me olhou com tolerância e paciência, ainda apoiando meu rosto. — Não, Khaiya. Você jamais poderá voltar a ser uma. Parei e pensei. Eu tinha dito “voltei a ser” e não “virei uma”. E Kaname não tinha se surpreendido. Ele sabia que eu sabia? Me perguntei. Não, não tinha como ele saber. Porque não tinha como eu saber. Não, pensei. É claro que tinha como ele saber. Afinal... Eu não devia ser tão boa enganadora assim. Mas talvez ele também estivesse esperando que algumas memórias voltassem quando me mordesse. Testei aquilo, procurando qualquer lembrança que não estivesse lá antes. — Ah... — Sussurrei. Eu tinha visto minha mãe, Jiyuri colocando meu cabelo atrás de minha orelha e mordendo o lóbulo com carinho. Fez cócegas. — Do que se lembrou? — Não sei direito. — Disse eu, sinceramente. — Acho que foi da minha mãe. Ela mordendo minha orelha. Kaname sorriu brevemente. — Consegue lembrar-se de mim? — Perguntou, sério de novo. Vi-o se inclinado para me tirar de algo que parecia uma grade de madeira, então. Mas não tive certeza se aquela era mesmo uma lembrança anterior à minha infância humana. Na verdade, não tive certeza nem de que a pessoa que estava me tirando do cercadinho era ele. Então eu disse: — Você é meu irmão. — E pensei em deixar por aquilo mesmo. Mas, por alguma razão, dizer apenas isso não me deixou nada satisfeita comigo mesma. Eu não fazia ideia do por que me sentia daquela forma, nem de o que tinha mudado. Simplesmente percebi que estava cansada de me esconder. E então fui contando tudo. Disse a ele que sabia que era meu ancestral e que sabia que matara Shizuka. Disse que assumira a culpa pela morte dela naquela noite não só por Zero, mas por ele, também. Contei que sabia sobre a garotinha, e agradeci a ele por ter impedido que ela caísse de classe. Falei que sempre soubera que eu era uma vampira e que sempre soubera sobre o assassinato dos meus pais, e que fora tio Rido o assassino. Sabia que Shiki era meu primo, contei a ele, e que descobrira que Rido podia tomar seu corpo naquela noite, quando vira Kaname beber o sangue de Luka. Contei como eu enganara Shizuka para que me desse seu sangue, mas que pretendia alertá-la quanto a ele, porque desconfiava que tentaria matá-la. Disse que sabia que ele pretendia matar os outros sangues-puros. E continuei contando, até terminar de falar sobre tudo que descobrira e escondera dele durante todos aqueles anos. — Me desculpe... — Terminei pedindo. Mas Kaname não ficou com raiva de mim. Ele me apertou em seu peito, encostando o rosto em minha cabeça, como fazia, e, então, disse, calmamente: — Sou eu quem deve pedir desculpas. — Falou. — Desculpe-me, Khaiya, por não ter percebido. Por não ter visto o quanto você tinha crescido. Balancei a cabeça, passando meus braços ao redor do pescoço dele. — Por que me sinto tão estranha, Kaname? — Perguntei. Ele me pegou no colo de novo e foi entrando comigo de volta para o meu quarto. Então Zero nos encontrou. — Khaiya... — Ele me olhou muito perturbado, encarando todo o sangue em minha blusa. — O que fez com ela, Kuran?! Zero apontou a arma para a cabeça de Kaname, que, sem parecer se preocupar muito, apenas virou um pouco para o lado, me deixando protegida, como se seu medo maior fosse que Zero escorregasse na beirada da proeminência da parede e atirasse em mim em vez de atirar nele. — Ele não me transformou. — Respondi. — Tem uma arma dentro de mim. — Khaiya... Você... — Eu estou bem. — Falei. Lembrava-me claramente agora. Eu tinha passado quase um mês tendo ilusões terríveis, e cada vez mais terríveis a cada dia. Preocupara meu pai, Zero, Killua e Kurapika. — Não vou me transformar. Vou ficar boa. A preocupação no rosto de Zero não se foi. Talvez ele não pudesse acreditar que aquilo tivesse terminado daquele jeito, tão de repente. Para mim, tinha. Na verdade, mal parecia um passado mais real do que um simples pesadelo. Zero não abaixou sua arma. Ele olhava para nós com aquela sua expressão de gato ferido e acuado, cheio de raiva. — Solte-a, Kuran! — Berrou. Kaname me segurou com força. — Quem pensa que é — começou a falar, daquele jeito que me deixava com um pouco de medo de que acabasse sobrando pro meu lado — para sair me dando ordens? Eu senti que seu poder estava vindo, ele ia arrebentar Zero como um balão de ar, e então me apertei em seu pescoço, pedindo que não fizesse. — Ele também é meu irmão. — Sussurrei em seu ouvido. — Me deixe conversar com ele... Por favor... Kaname não disse nada. Então me colocou no chão, sem me soltar ainda. — Consegue ficar de pé? — Perguntou para mim. Assenti. E então ele sumiu, dividindo seu corpo em várias pequenas sombras pretas que saíram voando pela noite. — Você ouviu, não ouviu? — Perguntei a Zero. Ele estava respirando daquele jeito. E não me respondeu. — Quanto você ouviu? — Achei que estivesse delirando... Achei que você estivesse delirando, como das outras vezes...! Mas você... Não... O que disse! Aquilo que disse era... Aquilo de você ser...! Era... — Verdade? Era. Zero continuou respirando. Esperei que me dissesse alguma coisa. Mas ele não disse. Senti cansaço. Mexi em meu cabelo. Ele também estava estranho. — É só isso? Disse tudo o que tinha pra me dizer? — Perguntei, querendo ir me deitar e dormir, no mínimo, uma semana todinha. — Por que nunca me disse aquilo?! — Ele gritou comigo. Não sei por que, mas não fiquei brava. Muito embora aquele fosse justamente o tipo de coisa que me deixava realmente puta. Apenas fiquei pensando a que ponto alguém podia escolher ignorar os próprios erros para apontar os das outras pessoas. Mas não disse isso a ele. — Não é como se fosse algo que eu pudesse simplesmente sair dizendo. — Tentei explicar, me sentindo cada vez mais cansada. — Existem dois ou três probleminhas, sabe, nessa minha... Condição. Por exemplo, o fato de eu continuar sendo completamente humana, mesmo sendo, você sabe, o que sou. As pessoas já se sentem atraídas pelo meu sangue naturalmente, mesmo sem saber a verdade sobre ele. Não haveria vida pra mim depois dessa informação cair nas mãos dos caras errados. Entende? Mas ele não parecia querer. Ficou só me olhando, e percebi que aquilo podia ser ódio. Ódio contra mim. Mas foi o que ele disse em seguida que machucou pra valer. — Quem diabos é você?! Ou talvez tenha sido o jeito como disse aquilo. — Eu ainda sou eu, Zero... — Falei, querendo chorar de verdade. — Sempre fui eu. Sempre vou ser eu... Ele fez um barulho com a língua e apontou sua arma para mim. O que me deixou assustada, sem dúvidas, mas não me fez fazer absolutamente nada. Então ele a abaixou. E foi embora. Eu me sentei na beirada da janela, abraçando meus joelhos. — Me leve embora... — Pedi a Kaname. — Não quero mais ficar aqui... As pequenas sombras voadoras, então, vieram e me envolveram. Quando percebi, já estava em outro lugar. Capítulo 21 Eu queria ver Killua. Queria muito. Mas Kaname me dissera que Shiki havia anunciado publicamente que “Kaname Kuran estava escondendo uma pequena princesinha Kuran”, e que ofereceria uma recompensa inigualável para quem a encontrasse. Quero dizer... Me encontrasse. De forma que: eu estava bem fodida. E, por isso, precisava ficar confinada ao meu quarto. Mas, apesar disso, Killua não parara de falar comigo. Não. Ele se demitira do trabalho de guardião, e, desde então, ficávamos todos os dias, o dia todo, jogando juntos. Quando minha pureza de sangue veio à tona, a primeira coisa que fez foi perguntar se era verdade. “Sim.” Respondi. “E agora? Me odeia também?” “Óbvio.” Ele disse. “Que NÃO!” E então me perguntou se eu também tinha uma arma antivampiros dentro do meu corpo. “Tenho uma, sim.”, “Aposto que você nunca percebeu, hum?”. “Não, mesmo.” Ele respondeu. “Quem fez com você sabia como fazer.”, “Desde quando?”. “Não sabemos.”, “Eu mesma só tive certeza de que ela estava lá quando Kaname me mordeu”. “Mas suspeito que tenha sido culpa do meu tio Rido, aposto que ele fez assim que me tornei humana.”, “Para todos os efeitos, gosto de colocar a culpa nele.”, disse eu. “E você?”, “Quem acha que pode ter sido?”. “Quem colocou em você não importa.”, ele me explicou. “O que você tem que descobrir é: quem a criou, e por que colocaram justamente essa arma dentro de você.” Pensei um pouco. “Vampiros podem fazer armas antivampiros também?”, eu perguntei. “Claro que sim.”, ele respondeu. “Por isso estou dizendo que você tem que descobrir!”. Recostei-me à cadeira. Eu tinha lido em qualquer lugar que armas antivampiros, as verdadeiramente poderosas, continham dentro delas as almas de poderosos caçadores, ou, pelo menos, parte delas. E, se caçadores podiam fazer aquilo, o que impedia que vampiros fizessem também? Disse isso a Killua e perguntei a ele o que sabia a respeito. “Você acha que seu tio colocou a arma em você para prender a alma dele ao seu corpo?”, Killua sugeriu. “É o que estou achando.”, “Faz sentido pra mim.”. E, como Killua não me perguntou por que fazia sentido, ele também devia ter pensado naquilo. “Vai contar ao Kuran?”, me perguntou. “Não sei.”, respondi, com a dúvida martelando minha cabeça de verdade. “O que acha que devo fazer?”. “Eu não faço a menor ideia.”, ele me disse, sinceramente. “No lugar dele, a primeira coisa que eu pensaria em fazer, se descobrisse, seria te matar.”, continuou dizendo, e aquilo era exatamente o que eu estava pensando. “Mas você o conhece melhor do que eu.”, “O que acha que ele vai fazer?”. “Vai pensar em me matar.”, falei, com certeza. “Se vai me matar ou não, daí é outra história.” Killua pensou um pouco, ou foi ao banheiro, porque demorou a me responder. “Temos que tirar você daí, antes que Rido resolva começar a se gabar.” “Eu sei.”, disse. “Eu vou.”, “Vou dar um jeito.”. “Sempre dou um jeito.” “Venha pra minha casa quando sair daí.”, ele ofereceu. “Quero dizer, me avise se conseguir um plano.”, “Vou tentar pensar em alguma coisa, mas se conseguir um plano antes de mim, me avise, e eu vou aí buscar você.”. “Obrigada.”, falei, realmente muito grata. “Preciso ir, Kaname está aqui.” Fechei o jogo e abri milhares de páginas inúteis do meu histórico. Kaname entrou no quarto logo em seguida, e veio sentar-se no chão ao meu lado. Ele puxou meu rosto e deu um beijo demorado na minha testa. — Como está? — Me perguntou. Fiquei, então, imaginando se esse sabia. Se estaria planejando me matar naquele exato momento. — Estou bem. Você está? Está machucado? Eu sinto... cheiro de... sangue. Mas... Não... Não é o seu... É? Hã... Desculpe. — Você sente isso...? — Ele olhou para mim. — Não se preocupe. Está tudo bem. — Me disse, puxando-me para seu colo. — O que estava vendo? — Me perguntou, olhando para tela do meu computador. — Procurando algo que me interessasse, na real. Estava entediada, só. — Entediada, não é? — Ele encostou de novo seu rosto a minha cabeça. — Deve sentir-se solitária aqui o dia todo... Não falei nada, apenas fiquei esperando. Então tive uma ideia. — Irmão, me ajuda a levantar? — Pedi, como se pedisse aquilo normalmente. — Por quê? — Ele me olhou. — Algo errado? — Não. — Me encolhi. — Acho que fiquei sentada em cima das minhas pernas tempo demais, só isso. Tentei me levantar quando ouvi você chegando. — Então tentei de novo, e falhei propositalmente. — Não consigo... — Por que se senta no chão? — Ele suspirou, sorrindo como se explicasse que eu não devia ficar cutucando o nariz. — Porque o sinal é melhor aqui. — Dei um sorriso largo. Kaname passou um braço por debaixo dos meus joelhos, e o outro ao redor dos meus ombros, e me levou pra cama, sentando-se lá comigo. — Melhor agora? — Melhor, sim, obrigada. Então mexi meus dedos dos pés com cuidado, olhando preocupada para eles. — Algo errado? — Kaname me perguntou de novo. — Não, nada errado. Tudo certo. — Falei, abrindo outro largo sorriso. Comecei ali minha nova farsa. Quando Kaname estava fora, eu batia minha cabeça nas coisas, e também os joelhos e cotovelos. E, assim que chegava, Kaname me perguntava o que havia acontecido. — Caí. — Eu explicava, fingindo sentir-me boba. Não tive pressa. Não comecei a reclamar com ele sobre nenhuma dor nas pernas nem nada do gênero. Apenas continuei agindo normalmente, como se não tivesse nenhum problema. Às vezes eu caia na frente dele, e me machucava de verdade. Outras vezes ficava na cama o dia inteiro. E, em outras, pedia à Senrei, uma entre os que Kaname deixara responsável por vigiar a porta, me ajudar a chegar ao banheiro, pedindo que não comentasse aquilo com Kaname. Fiz isso durante dois meses e meio. E, juntamente, pedi a Killua que me desse instruções de como usar minhas lâminas. E fui aprendendo. Eu fazia com que saíssem principalmente das minhas costas. Era bastante doloroso, e não ficava melhor independentemente de quanto fizesse. Pra variar, Kaname não aprovou nada aquela minha atitude, mas eu era teimosa e queria fazer. Então não desisti. Um dia meu irmão entrou no quarto quando Senrei estava me dando uma mão para trocar as ataduras das minhas costas. Eu me encolhi. Estava toda enfaixada, mas era basicamente só aquilo que usava como parte de cima. — Eu pedi pra não entrar. — Resmunguei, abraçando meu peito e abaixando a cabeça, realmente muito envergonhada. — Saia, Senrei. — Ele disse a ela. E ela saiu. — Khaiya, venha aqui. — Kaname disse a mim, recuando até a parede. — Não. Vá embora. — Gemi, deitando meu tronco para frente. — Que droga, Kaname! — Venha até aqui, Khaiya. — E agora ele não estava mais pedindo. Olhei-o, irritada. Realmente irritada, sem fingimento. Kaname estava lá e eu estava seminua de parte de cima. — Não quero. — Falei. — Vá embora! Ele andou até a cama e puxou um dos meus braços, me puxando para fora da cama. Deixei-me cair e Kaname me segurou, para que eu não me estatelasse no chão. Mesmo irritada, eu sabia que teria que seguir meu plano para conseguir sair de lá. Ele me deixou sentada na cama e se agachou na minha frente. Eu me curvei e abracei minhas coxas, sentindo-me envergonhada como nunca estive antes. Comecei a chorar. Apesar de todo meu talento natural para as artes teatrais, fingir choro era algo que eu não conseguia fazer nada bem. Eu estava chorando de verdade. — Khaiya, o que está fazendo? Khaiya. Olhe para mim. Balancei a cabeça, sem me levantar. — Saía daqui... Me deixe em paz... Achei que estivesse passando dos limites. Minha intenção era fazer com que tivesse pena, não que se irritasse. Tentei parar de chorar, mas não consegui. Maldição, pensei, maldição! Estou jogando tudo fora! Então resolvi que era hora de tentar. Se eu não conseguisse naquela hora, não conseguiria em hora nenhuma. — Quero meu pai... Não quero você... — Me interrompi. Não era daquela forma que eu pretendia dizer. Pedi desculpas. Várias vezes. Kaname foi embora e eu continuei pedindo desculpas. Estraguei tudo, disse a mim mesma. Burra, burra, burra... Mas Kaname permitiu que trouxessem meu pai. — Khaiy... — Ele me abraçou. E então olhou para minhas pernas. Senti-me muito mal por mentir sobre aquilo para meu próprio pai. Mas, ou era aquilo, ou eu já podia desistir de tudo ali mesmo. Falei com papai. Não disse a ele nada de especial, apenas contei todos os detalhes da minha vida muito entediante naquele quarto. E, enquanto o fazia, peguei meu computador e abri um arquivo do bloco de notas. “Tenho que sair daqui,”, escrevi, “me ajude”. Meu pai quis que eu contasse a ele o que acontecera. Olhei-o com uma expressão de desespero e balancei minha cabeça. “Me ajude...”, eu escrevi de novo. Ele me abraçou novamente. — Sei que deve ser cansativo para você ficar aqui, fechada e sozinha nesse quarto, mas Kaname faz isso para protegê-la. Sabe disso, não sabe, Khaiya? — Eu sei... — Falei. E então o empurrei. “Mas preciso me afastar dele...”, “Por favor, me ajude!”. E olhei de novo para meu pai. Papai nunca fora muito bom em identificar minhas mentiras, mas ele sabia, no entanto, que, naquele momento, eu estava sendo completamente sincera. E estava disposto a contrariar Kaname por minha causa. Papai segurou meu rosto entre suas mãos e tocou nossos narizes. — Daremos um jeito. — Ele me prometeu, em silêncio, apenas movendo os lábios para que eu os lesse. E então foi embora. Kaname demorou mais para voltar naquela noite. Já estava amanhecendo, na realidade, quando chegou. — Eu a acordei? — Ele me perguntou. Balancei a cabeça. Eu não dormia enquanto ele não chegasse, só depois que ia embora. — Sinto muito por ter dito aquilo daquela forma. — Falei de uma vez. — “Por ter dito daquela forma”? — Ele olhou para mim. Engoli. — Por ter dito? — Corrigi. — Está me perguntando? Kaname ajoelhou-se ao meu lado e me puxou para ele. E aí me mordeu. Segurei os fios de seu cabelo e pensei em puxá-los para longe de mim. Mas não era como se eu não soubesse que ele ia fazer de novo... Só que eu estava esperando um aviso prévio, como da primeira vez. Então esperei, pensando que, talvez, eu fosse precisar daquele sangue ocasionalmente. Mas Kaname não bebeu muito. — O que está planejando, Khaiya? — Ele perguntou, me recostando de volta à cama com cuidado. — Ah... — Claro que você estava tentando ler a minha mente, pensei. Kaname ergueu uma de minhas mãos segurou-a em seu rosto gelado. — Até mesmo suas emoções você mantém sob seu controle tão disciplinadamente. Diga-me o que devo fazer — ele levou a parte de trás de meu pulso até seus lábios, deslizando-os em minha pele exposta — para saber o que está pensando? E então mordeu ali também. Era incrível como as mordidas dele podiam não doer absolutamente nada. — Deve existir um motivo justo para que nossos pensamentos fiquem dentro da cabeça, e não colados na nossa testa. — Falei. — Quer dizer, eu acho. Ele me pegou de novo e tentou me colocar de pé. Fiquei me segurando a seus ombros, mas Kaname segurou minhas mãos e afastou-as. Cai. Ele me amparou e me deixou sentada no chão. Desviei o olhar. Kaname segurou o dele em mim, e ficou me olhando por bastante tempo antes de perguntar: — O que quero fazer com você, Khaiya? Pensei por um instante. Havia muitas maneiras de encarar aquela pergunta. — Provavelmente, o que você quiser. — Decidi, finalmente. Ele continuou me olhando. — Vou mudar a pergunta: — disse — o que teme que eu faça com você? Bom, aquela era outra forma. — Que me peça para ajudá-lo e eu não possa. — Respondi. Kaname dificilmente ia aceitar uma resposta na qual ele ainda não tivesse pensado, e, embora aquela já estivesse próxima o bastante do que eu realmente temia, eu tinha que dar algo a ele. — Ou que você me deixe aqui pra sempre. Tenho medo que você não queira mais voltar. Tenho medo que morra, enquanto fico aqui sem poder saber ou fazer nada... E também que todos que sabem onde estou desapareçam, e não tenha ninguém pra me soltar... Tenho medo de tudo isso. E era verdade. Eu tinha um pouco de medo de cada uma daquelas coisas. — Eu gostaria que houvesse uma forma de acabar com todas as suas inseguranças neste momento, mas ainda não posso deixá-la sair, Khaiya. Ele encostou sua testa a minha e colocou o nó do meu dedo indicador entre seus dentes, sem mordê-lo. — Por enquanto só posso pedir a você que pare de não querer usar suas pernas. Ou acha que não precisará delas novamente? Fiquei esperando que Kaname fosse perguntar se eu queria que ele as arrancasse fora para mim. Mas não perguntou. Apenas deu uma mordidinha em meu dedo. E então voltou a beber sangue do meu pescoço. Eu não conseguia perceber o que ele estava sentindo quando fazia isso, diferente de como acontecia com Zero. Devia haver formas de evitar que o outro visse, pensei. E talvez eu também pudesse fazer. Passei os dedos pelo cabelo de meu irmão. — Não é culpa minha... Na verdade... — Falei. Ele me levou de volta para a cama e continuou bebendo meu sangue. Quando terminou, fez com que eu tomasse o seu mais uma vez. Pensando em tudo isso... Talvez Kaname tivesse, sim, percebido que eu estava indo embora. Capítulo 21 Imaginei que meu pai fosse vir me buscar no dia seguinte. E acertei. O que foi realmente muito bom. Não faço a menor ideia de como ele conseguiu. Mas, afinal, papai já não chegara à presidência da Primeira Associação de Caçadores no passado? Sim, chegara. Eu tinha que confiar nele. E, fica a dica, pra chegar lá, não é o bastante apenas ser bom em politicagem. Ele veio me pegar no colo e me segurei nele. — Obrigada por confiar em mim. — Disse. Meu pai me tirou de lá. De alguma forma, Senrei e todos que deviam estar me vigiando tinham resolvido tirar um ronco. Kaname não ia gostar nada daquilo. Quando saímos do prédio, nos encontramos com ele. Bom, não era bem ele. Devia ser, sei lá, uma parte sua que meu irmão deixava lá para me guardar. — Me põe no chão, pai. — Pedi. — Mas você não...? Olhei pra ele. Meu pai e eu tínhamos muita telepatia, então ele entendeu no ato. E me colocou no chão. Fui até a criatura de Kaname, um grande lobo preto, e a abracei. — Me desculpe por ter mentido tanto pra você, irmão. Mas eu tenho certeza de que você vai entender depois. Não fique bravo comigo, okay? O lobo se dividiu em muitas daquelas pequenas sombras pretas e tentou me envolver com elas, mas eu escapei rapidamente e disparei para bem longe. — Khaiya! — Meu pai gritou, mas eu continuei correndo. Assim como acontecera com Ichiro, que sem a menor dúvida bebera o sangue de Shizuka, a mordida de Kaname, bem como o sangue que me dera, acrescentara muito poder à minha frágil humanidade. Poder que eu havia testado com bastante sutiliza durante o tempo em que estivera enclausurada, e que estava bem ansiosa por liberar. Mas eu era paciente. Então apenas me concentrei em encontrar Killua. Eu o havia avisado, e, apesar de não ter me enviado uma resposta, sabia que ele viria de qualquer jeito. Eu ainda estava na Academia Cross, embora fosse desconhecido, pra mim, o lugar em que Kaname me mantivera. Quando alcancei o dormitório noturno, notei que estava tendo uma guerra por ali. E provavelmente ela já estava acontecendo fazia um tempinho considerável. Fiquei me escondendo. De um lado da batalha, estavam alguns alunos do noturno. Eu os reconhecia. Os que estavam contra eles é que eu não tinha a menor pista de quem poderiam ser. Mas sentia que eram humanos. Humanos recém-transformados, talvez? Tio Rido deve estar aqui por perto, pensei eu com meus botões. Mas e meu irmão? Onde está? E Zero? Fiquei procurando. Havia várias frentes de batalha. Fiquei circulando por entre elas, tentando não ser notada e procurando por humanos. Os alunos do diurno não estavam em nenhum lugar. Certo, pensei. Meu pai e Kaname deviam tê-los transferido. Mas encontrei humanos. Eram humanos comuns e pareciam vir de todas as direções, querendo, de alguma forma, entrar no dormitório da turma do dia, meio que como se estivessem... Idiotizados, sei lá. Tio Rido, eu notei. Ele só podia estar lá. Naquele momento, achei que tinha uma escolha simples a fazer. Eu podia esperar por Killua e fugir bem depressa daquilo. Ou podia ir até lá, e dar um jeito de colocar meu tio de volta no estado soneca. Era uma realmente uma escolha simples. Segui em direção a prédio. E, no momento em que coloquei os pés dentro dele, sua parte de cima foi arrancada. Eu me afastei rapidamente, junto com os outros humanos, que, de repente, recobraram suas consciências. Olhei para cima, escondida atrás de uma árvore. Metade do prédio estava suspensa a vários metros do chão, sendo envolvida e esmigalhada por algo que parecia visgo do diabo com espinhos. E quem estava fazendo aquilo era Zero. — Orra... — Arfei, espiando, bastante impressionada. Tinha visgo do diabo saindo de todo o braço dele. Algo que achei bastante nojento, pra ser totalmente sincera. Zero ergueu seu braço esquisitão e lançou o prédio todo esmigalhado para bem longe. Os humanos correram assustados. E eu me aproveitei da situação confusa para entrar. — Killua... Meu coração quase parou. Achei que ele estivesse morto. Seu corpo estava no ar, todo furado por algo que parecia uma única agulha preta muito afiada que saia do dedo indicador do meu tio. — Que adorável, então minha bela sobrinha realmente resolveu dar-me a honra de uma visita. — Rido olhou pra mim. Ele estava encarando Zero, que tinha subido no topo do que restara do prédio e colocado meu tio em sua mira. — Não preciso mais de você, obrigado por tudo. E aí soltou Killua. Corri até ele. Killua não parecia tão mal quanto achei que estivesse, porque se sentou como se tivesse acabado de tirar um cochilo e limpou a boca, de onde escorria sangue. — Milluka... — Killua me disse. Milluka era outro irmão mais velho seu, e, pelo que me dizia dele, eu não gostaria muito de conhecê-lo. — Ele... Ele... — Tudo bem. — Falei, ajudando-o a levantar. Eu já tinha entendido qual era a situação. E estava com vontade de dar um chute muito grande no traseiro do tal Milluka. Ajudei Killua a sair. Zero e meu tio estavam se tretando muito sério lá dentro e eu tinha medo que alguma coisa o acertasse. Fui voltando, mas Killua segurou meu braço e me olhou com desespero. — Não podemos com esse cara! Temos que fugir! Agora! — Espere aqui! — Pedi, bem consciente de que ele não ia esperar nada, e voltei lá pra dentro. Rido havia desaparecido, ou, pelo menos, sua forma física o fizera. Mas manchas escuras tinham surgido por toda parte, e estavam sugando tudo para dentro delas. Fiquei atenta. Tinha a impressão de que Rido ia pular pra fora de uma daquelas coisas a qualquer momento, e estava tentando prever de qual das três que se aproximaram de mim seria. Tinha que ser da que vinha por trás, disse a mim mesma, e esperei. E eu estava certa. Mas Rido não conseguiu me pegar, porque, no exato momento em que tentou, um ramo de visgo enlaçou meu pé e me levantou bem alto. — ArgH! — Gritei, furiosa e frustrada. — O que pensa que está fazendo, sua retardada?! — Zero gritou pra mim lá de baixo. — Volta logo pra cama daquele cara e fica lá esperando ele ir te lamber! Sim, Zero sabia como ser um completo imbecil. Ele me jogou, então, o que não achei nada legal da parte dele. Afinal, eu tinha sido bastante clara quando lhe dissera que continuava sendo totalmente humana. Felizmente, consegui aterrissar de pé. Achei aquilo muito irado. E fui voltando para o prédio. Algo muito grande e escuro tinha se erguido de lá e parecia gerar estática. Zero tentou atacar aquilo, mas teria dado na mesma se tivesse atacado uma nuvem de fumaça. A coisa ia engoli-lo. Tentei imaginar quanto impulso minhas pernas, que tinham aguentado todo o impacto de uma queda como a que eu acabara de sofrer, podiam gerar. Resolvi testar. Foi um salto muito voador. Agarrei a gola de Zero no meio do caminho, ele pesava tanto quanto uma boneca cheia de espuma. Pousei bem longe do prédio. — Agora ele sabe que posso fazer isso. — Ralhei com Zero. — Parabéns pra você. Saltei de novo. A mancha tinha sido reduzida ao limite do prédio e parecia continuar diminuindo. Vi que era Killua que estava fazendo aquilo. De alguma forma, ele liberava luz e eletricidade de seu corpo, atraindo a estática ao redor da mancha e enfraquecendo-a. Killua havia sido criado por assassinos, para se tornar um assassino. Ele não lutava pelo prazer do desafio e não desafiava quem sabia ser mais forte do que ele. Porque fora assim que ele aprendera. Eu entendia isso nele. Avalie seu inimigo antes de qualquer coisa. Se achar que não pode vencê-lo, afaste-se. Eu imaginava seu irmão dizendo isso a ele. Mas ali estava Killua, enfrentando alguém contra quem, como ele mesmo dissera um pouco antes, nós não tínhamos a menor chance. Fiquei com orgulho. Só isso. A mancha desistiu de tentar se expandir de novo, e então se concentrou toda numa única bola bem redonda. — Vai explodir... — Killua recuou. — VAI! — Gritei, e o agarrei, tirando nós dois dali. E realmente explodiu. Fiquei segurando Killua enquanto o poder da explosão tentava nos jogar para ainda mais longe. Quando terminou, soltei-o e voltei pra lá. — Fique me esperando aqui! — Gritei pra ele, esperando sinceramente que ele o fizesse. Não havia mais prédio algum, só poeira e bagunça. — Quanta empolgação, tio Rido. — Falei, quando as pequenas sujeirinhas mais escuras começaram a se juntar lá na frente. — Sei que soa um pouco impertinente eu dizendo isso, mas... Está fazendo todo esse esforço por mim? Quando seu rosto se formou, ele sorriu. — Ouvi boatos de que você matou sua tia para beber seu sangue, — ele disse — é verdade? Dei de ombros, levantando as palmas de minhas mãos para o ar. — Quem sabe? — Oh, você bebeu, não bebeu? — O sorriso dele aumentou. Seu corpo estava aumentando, e voltando a liberar estática. — Claro que bebeu, ah, você é tão boa! Tão boa, tão como ela! — Ele ficou falando tudo muito rápido. Quase não dava pra entender o que estava dizendo. — Você é tão BOA! Quero devorá-la, eu quero- não, não posso, preciso me controlar, preciso-me-CONTROLAR! E aí pareceu que seu corpo tinha explodido de novo. Mas não foi como da primeira vez. Dessa vez, embora eu visse as coisas voando para fora daquela onda de escuridão e poder, eu estava sendo atraída para o centro dela. Venha- Ordenou-me a voz no ar -Quero-beber-seu-sangue. Fiquei rindo. Porque era realmente engraçado. — Você quer beber meu sangue, e quer que eu vá aí? — Eu ri. — O que mais? Quer que eu dê na sua boca, também? Por que não tenta me pegar? Venha ver se eu sou a presa fácil que você tá imaginando! E ele veio. Todo o seu ser se concentrou atrás de mim, e eu não me movi. Porque era óbvio que tio Rido era aquele tipo de cara. — Jiyuri — ele sussurrou no meu ouvido, passando seus braços por debaixo dos meus e me puxando contra seu peito — a graça da brincadeira é você fugir... Santo Cristo, pensei eu, mas que cara doente. — Irmão, você me enoja. — Falei, imaginando que minha mãe devia dizer exatamente a mesma coisa pra ele. E então fiz o máximo que consegui de lâminas saírem de minhas costas. — Hm... — Ele ronronou. — Eu não esperava que aquele sobrinho ingrato fosse permitir que minha princesinha aprendesse uma técnica tão dolorosa. Está doendo, não está? Ah, é claro que sim... Posso tirar a dor pra você? — Se preocupe mais com a sua... — Rangi. E todos os ramos daquela coisa controlada por Zero passaram por mim e o atingiram. Cai no chão, sentindo os espinhos passarem raspando pelo meu cabelo. Fiquei de joelhos, tentando fazer as lâminas voltarem pra dentro. Não sabia por que não estava conseguindo. Doía muito. Mesmo. Não estou brincando. Continuei abaixada até acabar de ouvir o barulho de coisas raspando e se arrastando em cima e atrás de mim. E aí percebi os sapatos de Zero por perto. Sentei-me sobre meus calcanhares e olhei para trás. Zero tinha construído uma montanha de visgo do diabo bem ali, pertinho do meu pé. Se Rido estiver debaixo disso tudo, pensei, então deve estar bom já. Também percebi por que não conseguira recolher as lâminas, muito embora fossem apenas duas: elas eram enormes. Eram, tipo, gigantescas, mesmo. Duas foices enormes e muito fodásticas. Pareciam asas. — Você não tinha nada que ter se metido nisso. — É...? Esforcei-me mais. Tinha que me livrar delas, não ia dar pra ficar carregando as duas por aí daquele jeito. Gemi. Sem conseguir sustentar o peso do meu tronco, meus braços se dobraram e cai sobre os cotovelos. — Você tem que soltá-las. — Killua segurou meus ombros. — São grandes demais, você não vai conseguir fazer com que voltem. Dei um grito de sofrimento verdadeiro. Eu não fazia e menor ideia de como “soltar” nada. Não entendia o que Killua queria dizer com aquilo. — Se concentra! — Ele mandou, segurando minhas mãos. Eu berrei e, com toda a minha força restante, tentei deixar as foices maiores. Outras lâminas saíram do meu corpo. A dor era de um tipo muito parecido com a que senti quando Kaname me dera seu sangue pela primeira vez. Mas nem de longe tão insuportável. Então continuei me esforçando. Quando as asas caíram, as armas menores voltaram facilmente. Respirei, sentindo-me infinitamente aliviada. E olhei pras foices. Tive que tocá-las. Eram lindas. — Deseje-as de volta. — Killua me disse. — Como assim? — Diga a elas que voltem pra dentro de você. — Ele explicou. Voltem pra dentro de mim, pensei. E elas se desmaterializaram em algo lindo, suave e brilhante. Como um véu formado de microscópicas pérolas. Elas se concentraram em meu peito e senti-me muito melhor. E então sumiram. E daí eu não tinha mais um único arranhão em mim. — Conseguiu. — Killua abriu seu sorrisão pra mim daquele jeito dele. — Uau... — Eu disse. Não imaginava como meu tio Rido podia ter feito algo tão sensacionalmente incrível quanto aquilo. E nem como tinha se deixado destruir por ela. Mas não comentei em voz alta, porque Zero ainda estava lá. Olhei pra ele, que estava me encarando como se tivesse me pegado me prostituindo ou coisa pior. — Killua, eu preciso falar com ele. — Pedi. — Pode me esperar na entrada do colégio? Eu já vou lá. Killua deixou seu sorriso sumir e me olhou todo sério. “Tem certeza de que quer isso?”, dizia seu olhar. Sorri pra ele. E ele foi. Olhei para Zero. — Se você tem algo pra me dizer, diga logo. — Falei. — Não vou ficar esperando o dia todo. Então ele apontou sua arma pra mim de novo. E aquela já era a segunda vez. — Mas aff... — Olhei para direção em que Killua fora, para ter certeza de que ele não tinha visto aquilo. — Acha que não atiraria em você? — É. — Olhei de novo pra ele. — Mais ou menos isso que eu acho, mesmo. Zero pisou no monte de visgo atrás de mim, deixando seu joelho perto da minha cabeça, e segurou meu rosto com sua mão limpa, levantando-o pra ele. — Eu matei Ichiro, — ele me disse — por que não mataria você? Fiquei olhando. Zero não mataria Ichiro. Embora não me falasse muito do irmão mais novo, quando falava, dava pra ver, bem ali, naqueles olhos cinza dele, que o amava muito. Zero jamais o mataria. Mas ele achava tinha. E que a culpa de tê-lo feito não era dele. De quem, então? Pensei. Minha? De Kaname? Do tio Rido? Dos sangues-puros. Óbvio. — Faça como quiser. — Falei, sustentando seu olhar. O ódio dele foi substituído lentamente por dor. E, no final, era tudo o que sobrara. Ele caiu de joelhos na minha frente, com seu braço ainda preso àquela coisa. Então percebi o que era. Era aquela sua arma, que ele carregava sempre. Uma arma antivampiros. Rosa Sangrenta. Ou rosa sanguinária... Sei lá, não vou lembrar. Tentei fazer com que a soltasse. Ela parecia estar fazendo algo com a vida dele. Enfraquecendo-a. — Larga isso. — Pedi. — Zero, larga esse negócio. Apertei seu pulso com força e puxei a arma... Até que ele finalmente a deixou ir. A Rosa Sangrenta, ou sanguinária, transformou-se num ramo igual a todo o resto e juntou-se ao monte, passando a se concentrar apenas na tarefa de drenar o que restava da energia de tio Rido. Olhei por um momento. Era algo horroroso de se ver. Então voltei meu rosto para Zero. Ele estava me olhando. — Pronto, te salvei. De nada. — Eu disse, embora Zero não parecesse nem um pouco agradecido. Zero, então, puxou a gola da minha camisa e abraçou minha cintura. Ele provavelmente não tinha tomado sangue por todo aquele tempo, pois bebeu por mais tempo do que das outras vezes. Claro, embora ele não fosse mais um vampiro propenso a cair para a classe E, Zero ainda era um vampiro. E qualquer vampiro perde o controle quando está com muita sede. Nessa brincadeira, ele quase arrancou parte do meu pescoço. — Chega, Zero. — Disse a ele. Eu ainda tinha força para lidar com ele se precisasse, apesar de todo o sangue que ele tinha tomado. — Não falei sério sobre você poder fazer como quisesse. Não tenho a menor intensão de deixar que me mate aqui. Zero então tirou seus dentes de mim. Mas não deixou que eu me afastasse. — Dentre todas as pessoas no mundo, — ele sussurrou no meu ouvido — por que justo você tinha que ser uma puro-sangue? — Me diz que culpa eu tenho, irmão, — pedi — que, daí, talvez eu responda essa sua pergunta idiota. Então, Zero segurou meu rosto com ambas as suas mãos... E me beijou. Como eu não contava com Kaname me dando sangue na boca como beijo, porque, hum, ele era parente, e, sei lá, porque aquilo não foi um, tipo, um beijo... Zero era o primeiro. E aquilo não estava funcionando nem um pouco pra mim. Fiquei lá, só parada, sentindo o gosto do meu sangue em sua boca, totalmente desconfortável, esperando ele parar. Quando terminou, encostou nossas testas. Como Kaname fazia. Okay, disse a mim mesma, não vou pensar nisso. E então me abraçou de novo. — Puta merda... — Foi o que ele falou. — É. Negócio chato isso aí. — Dei uns tapinhas nas costas dele, sem saber direito o que fazer. — Tudo bem, tudo bem. Eu sempre achei que, hum, isso, hum, seria meio constrangedor. — Ele nunca tinha feito, não é? — Ele? Ele quem? Kaname? Como assim? Não, ele... Não, ele, não. — Puta merda... — Não, tudo bem. — Tentei afastá-lo. — Quer dizer, se você tinha que fazer isso, você tinha que fazer isso. Está tudo bem. Hum, pode me soltar agora? Isso é estranho. — Você vai embora se eu soltar. — Ele disse. — Bem... Sim, mas... Bem. Veja bem... E aí ele me beijou de novo. Tudo bem, pensei, meu primeiro e meu segundo. Tudo bem. Boatos que depois do primeiro não significa nada, mesmo. Tentei fazer o que ele estava fazendo. Aquilo era estranho. — Por minha causa? — Ele olhou pra mim. — Ou por causa dele? Não respondi daquela vez. E Zero voltou a me beijar. Com aquilo, contei três. Três beijos melados e constrangedores... Do lado da montanha do visgo... “Aquilo” ainda não estava funcionando pra mim. Bom, fiquei pensando. Pelo menos eu ia sair de lá com a certeza de que o destino não tinha colocado o homem da minha vida pra ser meu irmão adotivo. Boa, destino, pontinhos para você. — Eu não quero que você vá... — Ahm... — Fiquei olhando pra ele. — Ajudaria se eu dissesse que eu teria uns problemas meio tensos se ficasse? — Me deixe ir com você. — Er... Acho que talvez você não queira fazer isso... Ahm... Eu não... Ahm... — Esfreguei as contas dele. Eu não queria dizer que não gostava dele. Nem que Kaname me perseguiria quando descobrisse que eu tinha fugido, e que talvez fosse tentar me matar. Nem que, provavelmente, teria uma galera querendo meu sangue purinho no meu pé dali por diante. O que, na minha opinião, eram três ótimos motivos para não deixar que ele fosse. — É complicado. — Falei. E ele só continuou lá. Eu já estava ficando preocupada por demorar tanto. Se Kaname aparecesse por ali... Ia ficar feio o negócio. — Você tem razão... E eu quase pulei e comemorei gritando “YES! Eu TENHO razão!”. Brincadeirinha. Eu não ia fazer uma coisa daquelas. Sério. Zero se levantou e eu me levantei também. Tinha que dar logo o fora dali. — Eu vou matá-lo, Khaiya. Vou matar Kaname e todos os outros sangues-puros. Engoli. Mas eu não podia mais ficar lá. — Eu espero sinceramente que você não faça isso, irmão. Digo do fundo do meu coração. — E então fiquei na ponta dos pés e puxei seu rosto para dar um beijo de despedida na bochecha dele. — Mas não posso mais interferir nas decisões que você for tomar. Me desculpe por tudo. Por favor, viva. E se cuide. E andei para longe dele. Não resisti e olhei para trás. Queria saber se ele estava olhando. Não estava. Soltei o ar, aliviada, e corri. Killua estava perto do portão, me esperando, todo tenso. Quando me viu, ficou mais tranquilo, e correu para segurar minha mão. — Eu disse que vinha, não disse? — Sorri para ele. — Mas demorou muito! — Killua ralhou comigo. Baguncei seu cabelo prateado. — Vamos. — Ele foi logo dizendo, me puxando para dentro de um carro da sua família. E eu fui. Mas, antes de ir, dei uma última olhada na escola do meu pai. A criatura de Kaname estava me observando atentamente do portão quando fiz isso. Adeus, eu disse a ele mentalmente. Vou sentir sua falta. E fomos embora. Capítulo 22 Tivemos que mudar um pouco os planos. Como Milluka resolvera virar a casaca e vender Killua e a mim para um sangue puro, e ninguém de sua família se movera um único centímetro para fazer nada quanto aquilo, achamos melhor viajarmos imediatamente. Fomos para Alabama. E depois para a Suíça. Foi entre as viagens que eu criei o Vigiante. Foi bem incrível. E meu pai deu um jeito de me mandar minhas coisas. E seu Token. E o programa de instalação do Client de VPN da Associação. Meu pai era incrível. Quer dizer. É. Ele tá vivão ainda. Nós estávamos decidindo os detalhes finais do nosso plano. Eu tinha começado a trabalhar, e já vinha me correspondendo com Izaya Orihara Satoshi* por salas de bate papo havia um tempo. Eu o escolhera porque ele era um ex-caçador desertor, e um fugitivo, que, portanto, ia pensar uma ou duas vezes antes de me entregar para qualquer um. Então, estava tudo indo muito bem, obrigada. Durante o tempo em que passamos viajando, eu e Killua inventamos um criptograma para nós, e decidimos que só nos comunicaríamos usando-o dali pra frente, e só através de correspondências entre algumas de nossas personagens específicas de jogo. Eu havia feito três contas em três jogos diferentes, assim como ele. Combinamos uma ordem alternada de envios por correio. Pensamos em mandar para qualquer personagem de qualquer personagem aleatoriamente. Ficaria menos óbvio, mas daria muito mais trabalho. Por isso, determinamos a ordem. Foram semanas muito sensacionais. Killua conhecia técnicas de disfarce que ninguém mais no mundo devia conhecer. A gente trocava de identidade mais vezes por dia do que trocávamos de roupa, só pra você ter uma noção! Fomos um casal de velhinhos; ele foi meu avô; eu fui a avó dele; fomos primos; irmãozinhos; parentes distantes; meio irmãozinhos; namoradinhos; só amigos. E et cetera. Até pagamos uns caras para bancar nossos responsáveis e viajar conosco quando precisávamos. Nós fomos fazendo tudo bem aleatoriamente. Mas, assim como nosso dinheiro era finito, aquilo também teve que terminar em algum momento. Mesmo porque, nós tínhamos um objetivo a cumprir, afinal. Eu ia para o Japão. Havia pouquíssimos vampiros por lá, desde a época dos samurais. E nenhum sangue puro. Tinha que ter alguma coisa para eu descobrir. — E você? — Perguntei eu a Killua, enquanto folheava uma revista de quimonos bem bonitos e belos. — Decidiu pra onde quer ir? — Sibéria. — Ele disse. — A maior parte da minha família morava por lá quando começaram a testar fundir armas com humanos. — Hum... Acho digno. — Falei. — Vamos comprar quimonos? Os Zoldyck foram aqueles que, de fato, aperfeiçoaram a técnica. De colocar armas em pessoas, eu quero dizer. Por esse motivo, eu achava que talvez Killua tivesse certa vantagem em nossa aposta. Mas não ligava. Eu ia descobrir antes dele. E aí... Bom. Enfim. Finalmente, tivemos que nos separar. Foi triste. — Sabe mesmo o que tem que fazer, né? — Killua perguntou, pela milionésima vez. — Irmão! Relaxa! É lógico que sei o que fazer! Ele sorriu pra mim. Era claro que estava se preocupando. — Ei! Sério, fica tranquilo. Você me ensinou muito bem, mestre Obi-Wan Kenobi, vou me sair direitinho! Vai dar tudo certo. Ele tinha medo que eu estragasse meu disfarce. Mas eu era boa em disfarçar. Mesmo, mesmo. E ainda tinha toda aquela parada muito louca de eu ter virado uma albina linda de uma hora pra outra. — Não confie em Satoshi. — Ele me avisou, também pela milionésima vez. — Aquele cara com certeza é o tipo de pessoa que tenta se aproveitar de você na primeira chance que tem! Eu sabia. Afinal, eu tinha um pseudoprimo que era mais ou menos assim. — Certo, mamãe. Prometo não beber nada que ele me der. — Pare de ficar tirando com a minha cara! — Ele brigou comigo, todo irritadinho. — Eu to falando sério! — Não! É? Você é tão lindo! Baguncei todo o cabelo dele. E o abracei. Percebi então que nunca tinha abraçado Killua. E que eu não abraçava muito as pessoas. Killua também não devia ser muito abraçador, porque ficou meio sem reação quando fiz aquilo. Só depois, lentamente, foi passando seus braços ao redor do meu tórax. Ele era bem baixinho naquela época. — Obrigada por tudo. — Falei pra ele. — Obrigado. — Corrigi. Eu ia passar a falar no masculino a partir dali. — Por tudo, tudo, tudo! Ele ficou sem dizer nada, e eu beijei seus cabelos prateados. — Seu lindo tão lindo! — Falei uma última vez, e então o soltei. — Você é um lindo, eu já te disse isso? Killua ficou com vergonha. Como sempre. Eu achava uma graça. — Ca- cala a boca... — Ele me disse. Ele era tão lindo... — Eu vou encontrar um jeito — me falou em seguida — de tirá-la de você... Eu prometo. — Eu confio em você. — Sorri. — Totalmente. Ou você achou que eu fosse dizer que ia encontrar uma maneira antes dele? — Vai logo. — Killua desviou o olhar, enrubescendo de novo. — Se não, vai perder o voo. Estalei um beijinho na sua bochecha rosada. — Cresça e fique gatinho. — Disse, o que o deixou todo irritadinho de novo. E eu fui embora, deixando-o resmungando qualquer coisa sobre eu ser só um ano e meio mais velha e ficar me achando. — Ah! Se se encontrar com Kurapika, agradeça a ele por mim! — Gritei. Ele acenou. E, muito resumidamente, foi assim que cheguei à casa dos Sohma. Bem, então, onde estava eu... Ah, sim. Eu tinha acabado de deixar Satoshi saber das minhas lâminas. Um belo erro. Mas, enfim. Acordei na casa dos Sohma na manhã seguinte, sentindo cheiro de queimado. Oh, não! Pensei rapidamente. Estão tentando incendiar a casa! Mas nem estavam. Era só Yuki fazendo arroz na panela de pressão. Muito embora eu tivesse quase certeza de ter visto uma panela elétrica em algum lugar por ali. — Yuukizinha! — Shigure se escondeu atrás de mim, suplicando. Ele tinha trazido Kyou também. — Impeça Yuki de queimar a minha casa! Eu sei que a você ele dará ouvidos! — Yuki, incendiar não... KYOUNÃONÃONÃONÃONÃO! — Eu o alcancei, e tirei a panela das mãos dele. Kyou estava prestes a cometer os dois maiores erros que você pode cometer numa cozinha: ele ia empurrar a válvula de exaustão de vapor da panela e ia fazer isso com ela debaixo da torneira aberta. — O que?! — Kyou gritou comigo, com a maior cara de sono do universo. Apoiei as mãos na cintura, respirando. — Tem... Tem que esperar. — Olhei pra panela, enquanto ela ainda gritava. — Idiota... — Yuki falou, olhando para Kyou. — Como que é?! Você que deixou essa droga queimar! — Eu estava lá fora, seu grande imbecil. Só vim aqui por que a ouvi chiando. Quem colocou no fogo foi Shigure. — Eu só estava tentando ajudar, já que nenhum de vocês quis cozinhar! — Shigure se defendeu. E eles ficaram lá discutindo. — Galera, eu manjo do arroz. — Falei. Mas ninguém me ouviu. — Galera, eu manjo do arroz... — Repeti. — Não, Yuukizinha! Você não devia nem estar usando os braços ainda! Tori disse que não devia fazer força com eles para não abrir os pontos. — Tentei dizer a ele que meus braços já estavam bastante bons, mas Shigure virou-se para os primos e continuou discutindo com eles. — Estão vendo?! Estão satisfeitos?! Se tivessem aceitado me ajudar, a Yuukizinha poderia estar descansando lá em cima agora, e melhorando! — Você não pediu minha ajuda! — Kyou voltou a gritar. — Você me acordou e me trouxe aqui dizendo que a cozinha estava pegando FOGO! — Se me disser como, eu faço o que tiver pra fazer. — Yuki me ofereceu bastante calmo, como se seus primos nem existissem no mesmo mundo que o dele. — E aí você só verifica se está dando certo. — Não, não... — Sacudi as mãos pra eles. — Relaxem vocês... Meus braços e eu damos conta dessa parada, de verdade. Mas aquilo não era nada verdade. Eu nunca tinha feito arroz em toda a minha vida. Mas convenci todos a saírem da cozinha, e encontrei a panela elétrica. Arrá! Disse a mim mesma com muito orgulho. Certo, não pode ser tão difícil. E não era. A própria panela vinha com instruções de como preparar arroz. De verdade, não entendi por que Shigure não a tinha usado. Talvez ele estivesse mesmo pensando em incendiar a casa e colocar a culpa em seus primos. Será que essa casa tem seguro? Pensei. Hum. De qualquer forma, deixei o arroz passar do ponto e ele virou uma meleca. Por isso, usei toda a minha astúcia e sagacidade para transformar aquele negócio em belas omeletes de batata frita. Era tudo o que eu sabia fazer numa cozinha: omeletes de batata e waffles azuis. Não ia conseguir nenhum casamento digno naquele país se continuasse a negligenciar os conhecimentos básicos para ser uma garota daquela forma tão absoluta. Que problemão, não? Mas, depois, acabei descobrindo que Tohru era muito prendada. E resolvi me casar com ela. Mas ela não aceitou. Então, em vez disso, pedi que me ensinasse a cozinhar. Quando terminei de fazer e limpar tudo, notei que só Yuki estava em casa. — Saíram, não sei pra onde foram. — Ele respondeu, quando perguntei dos outros. — De onde você tirou essa Arrozeira? — E aí ficou olhando pra panela, como se nunca tivesse visto nada igual em sua vida. — Eu a conjurei com meus poderes? — Movi meus dedos, semicerrando os olhos. — Não. Estava ali naquele armário. Mas e aí? A gente espera por eles? — Não. — Ele disse, pegando dois dos pratos com omeletes e levando para mesa. — Se eles demorarem demais, comemos a parte deles. Seria desperdício deixar esfriar, certo? — E sorriu pra mim, como que falando muito sério. — Okay. — Dei de ombros. Depois era só fazer mais, se precisasse. Yuki achou minha omelete muito boa, e eu fiquei toda feliz. Adorava quando gostavam da minha comida, porque, afinal, isso não era muito comum. — O que você diria se eu dissesse que só fiz isso pra aproveitar o arroz que eu deixei virar paçoca sem querer? — Resolvi perguntar, depois de ter certeza de que ele não estava elogiando só por educação. — Hum... Que você soube aproveitar o arroz paçoca muito bem? É sério, está ótimo! — Ai! — Disse eu, toda contente. — Que bom! Hum, você foi à aula hoje? Por, tipo assim, eu falto na maior tranquilidade. Mas você foi, não foi? Acabou mais cedo? Ele riu. — Hoje é domingo, Yuuki... — Disse. E riu mais um pouco. — Ah! Domingo! Adoro domingos! — Respondi bem rapidinho. Mas fiquei pensando que eu tinha dito a Satoshi que iria passar lá depois da aula, e ele nem tinha me avisado nada. Bom. Muito bom. — Mas, então, aonde é que você foi? Quer dizer, desculpa. Tem problema eu perguntar onde foi? Se tiver, tudo bem... — Hum... — Ele balançou a cabeça. — Eu estava no jardim, na minha... Hum. No meu lugar. Que é... Secreto. — AH! — Bati minhas mãos, animada. — Tipo uma base secreta?! — Ahm... — Ele apertou os olhos. — Talvez... Não seja exatamente o que você está pensando... — Por quê? É tipo... — Pensei. — Um lugar subterrâneo... Que alguém construiu pra se proteger de furacões? E aí fiquei pensando no que eu faria se tivesse que me proteger de um furacão. Tentaria correr pra bem longe, decidi. — Não chegou nem perto. — Ele sorriu, daquele jeito bonitinho. — Posso levála até lá da próxima vez que eu for, se você quiser, é claro. — Não é subterrânea? — Ergui uma sobrancelha de desconfiança. Só pra ter certeza. — Hum. Não. — Ele ficou me olhando. — Ah, mas, poxa... — Fingi. — Quer dizer! Sua base secreta! Então ela deve ser legal, mesmo assim! Você me leva mesmo? — Mmm. Claro que sim. — Ele sorriu, ainda me olhando. — Você, por acaso, tem medo de lugares subterrâneos...? — Não. — Falei, normalmente. — Por quê? — Cala a sua boca! — Ouvi a voz de Kyou vindo lá de fora. Yuki revirou os olhos. Mas manteve-se em silêncio. — Ei! Ponha-se no seu lugar! Não esqueça que eu sou mais velho que você! Você devia ter mais respeito por mim! — Shigure brigou com ele. Mas nem eu achei aquilo muito convincente. — Sabe onde eu quero que você enfie respeito?!! — Kyou continuou gritando para o primo, entrando em casa. Olhei para Kyou. E, quando ele me viu, trincou os dentes e bufou. E, daí, foi lá pra cima. — Kyou! Não ande de sapatos dentro de casa! — Shigure gritou de volta, parecendo mais irritado com aquilo do que com a falta de respeito. — Nossa! Senhor Shigure, o senhor está de terno! — Falei, abrindo bastante meus braços. Só tinha visto Shigure de quimono. — “Senhor” não. — Ele riu pra mim, mudando de humor rapidamente. — Hum! Que cheiro bom, o que é isso? — Omelete de... Batata. E arroz. — Caramba, cheira muito bem. — Disse, e foi se sentando. E eu me levantei pra buscar um pra ele. — Por que o Kyou ficou bravo? — Perguntei, enquanto ia à cozinha. — Por nada. — Ele sacudiu a mão pra mim, tirando um frasquinho de álcool em gel do bolso e espremendo em suas mãos. — Só porque eu o enganei e o fiz fazer um teste de transferência. — Como assim, enganou? — Perguntei, sentando-me de novo e apoiando meu rosto nas mãos. — Como assim, transferência? — Yuki perguntou por sua vez, fazendo sua voz soar muito maligna. — Kyou vai estudar na mesma escola que vocês!!! — Shigure falou como se aquela fosse sua maior realização. — Ah! — Eu olhei para Yuki. Ele tinha se inclinado pra frente na mesa e apoiado os dedos na própria têmpora. E parecia estar tentando fazer com que Shigure se dissolvesse apenas com o poder do seu olhar. — A culpa não é minha! Não é minha culpa — Shigure foi falando. — Foi uma decisão tomada por Akito. Ah! Yuuki! Tenho uma boa notícia pra você também! — Ele olhou pra mim. — Você pode ficar, e não tem problema ter ficado sabendo do nosso segredo. Você só não pode contar a ninguém sobre ele, porque, bem, pelos motivos obvieis. Tudo bem? — Nossa! Claro que sim! Quer dizer, ninguém vai apagar minha mente, então? — Há-há-há! — Ele ficou rindo. — Quem foi que falou em apagar sua mente? Não, fique tranquila, não vai ter nada disso. O que mais eu tinha pra falar? Hum... Ah, sim. Kyou vai morar conosco a partir de hoje. — A- ah... — Falei, voltando meus olhos de novo para Yuki. Ele não tinha se movido um único centímetro. Só que agora estava com um sorriso muito assustador no canto da boca. — Diga isso de novo. — Ele desafiou Shigure, que, dessa vez, pareceu bastante preocupado. — T- também foi uma ordem de Akito, Yuki. Por favor, não fique me olhando com esses olhos enquanto eu como... ? Yuki pediu licença a mim e se levantou, pegando nossos pratos vazios e levando-os pra cozinha. Depois saiu de casa, sem dizer mais nada. Fiquei imaginando por que Akito faria uma coisa daquelas. Era bem evidente que os dois não se davam nada bem. Será que queria que fizessem as pazes? Me perguntei. Achei difícil. Yuki e Kyou são muito diferentes. Fiquei pensando. Bem, quem era eu pra saber? Talvez fosse, sim, melhor que eles passassem tempo juntos. Vá dizer. Mesmo que não começassem a se amar loucamente, talvez crescessem com a experiência. Afinal, justamente por saber esse tipo de coisa é que eu achava, naquela época, que o tal de Akito devia ser o chefe, e eu a agregada. Ainda assim, fiquei incomodada. Fiz companhia a Shigure enquanto ele terminava de comer, e, depois, subi para procurar Kyou. Ele estava no quarto de Yuki, tampando um buraco enorme no teto com um pedaço de plástico. — Nossa! — Falei. Não tinha percebido aquele buraco lá. Aí que lembrei ter ouvido um barulho um pouco antes de Kyou se materializar na minha frente no dia anterior. — Ah... Kyou pulou da escada e olhou pra mim. Depois, olhou pra baixo e ficou tentando esmagar o rolo de fita adesiva em sua mão. — Eu... Fico puto... — Começou a dizer. — Às vezes... — Tudo bem. — Respondi. — Todo mundo fica. Algumas pessoas têm mais facilidade de se acalmar do que outras, mas isso é algo que a gente... Treina. Certo? Ei, eu vim perguntar: ainda quer fazer aquilo? Lutar comigo, eu digo? — Não. Aquilo. Foi idiota! Pedir pra você lutar comigo, quer dizer. — Ah. — Fiquei olhando. — É? Então por que você pediu? — Por quê! — Ele começou a brigar comigo, e aí tentou se acalmar de novo. — Eu não sei por quê! — Ótimo! Então vamos descobrir! — Segurei o braço dele. Eu o levei para o lugar onde tinha acampado. A terra que desabara parecia ter sido muito remexida e cavada. Anotei mentalmente que perguntaria a Yuki que truque legal ele tinha usado para tirar minhas coisas de lá, e falei pra Kyou: — Certo. Tente me acertar. Eu vou ficar só esquivando. Ele sorriu, já se animando. — Tá! Mas se eu te acertar, não fique chorando! Ele entrou na sua base de... Kung-fu, ou fosse lá qual fosse a arte marcial que tinha se acostumado a praticar. Hum, pensei. Kyou então deu um impulso para me atacar. E eu me encolhi toda, colocando minhas mãos a frente do corpo, pedindo pra ele parar. — Espera aí, calma aí! — Gritei, me protegendo. — Eu estava achando que você fosse fazer um cumprimento primeiro, mas poxa vida! Você não faz as artes marciais aí? Não tem toda a parada de cumprimentar primeiro nas paradas de artes marciais? Ele ficou confuso, e, então, um pouco irritado. Mas fez uma reverencia. E, naquela hora, joguei minhas mãos no chão e, apoiando-me nelas e na perna de trás, usei meu outro pé para enganchar atrás dos seus joelhos. Ele caiu e eu me levantei. — Você disse que só ia esquivar!! — Gritou, todo P da vida, sacudindo o dedo indicador pra mim como uma criança irritada. — Mas você não tentou me acertar. — Informei a ele, bastante séria. E, então, abri-lhe um sorriso, puxando seu braço para que se levantasse. — Eu só estava brincando, Kyou. Mas você entende que nem todo mundo vai estar jogando com as suas regras quando for lutar com você pra valer, né? E bem poucos deles não vão usar um truque sujo para desviar sua atenção e te distrair. — Deles quem?! — Kyou ficou me olhando, como se eu fosse muito maluca. — Ninguém. — Sorri. — Vamos tentar de novo! Tente me acertar, okay? Prometo que vou desviar a partir de agora. Kyou não entrou na base dessa vez, menino esperto, só deu uns pulinhos e veio com chute direto em meu pescoço. Nem me movi. — Po, irmão! Que isso? Você achou que eu fosse chorar com isso? Sou tão menininha assim? — Fiquei rindo. — Você não desviou! — Ele gritou comigo de novo, recolhendo a perna. — Não faz diferença. Você não estava tentando me acertar a sério em primeiro lugar. Seu pé mal encostou em mim. — Tentei explicar a ele. Mas Kyou gritou de novo comigo por eu não ter desviado. E aí avançou, sem mostrar preliminares dessa vez. Eu gostei. E esquivei, embora tivesse certeza de que aquele golpe me acertaria com tanta força quanto o primeiro se não o tivesse feito. Continuei saindo da reta de suas investidas até estar certa de que ele estava começando a se irritar por não conseguir sequer relar em mim uma única vez. Quando julguei estar sendo realmente levada a sério, fiz que ia desviar, como todas as outras vezes, mas, no lugar disso, segurei seu ataque para absorver um pouco o impacto com meu cotovelo e deixei que me atingisse. E, ainda assim, voei bem longe, dando umas cambalhotas no ar perto do chão. Parei quando bati numa árvore. Doeu. — Realmente... — Pensei, um pouquinho alto demais. Aquela não era uma força para usar contra humanos. E eu tinha que descobrir mais sobre ela. — VOCÊ!!! — Kyou já foi gritando, se ajoelhando ao meu lado. — Você tá legal?! — Ainda não fiquei surdo, — falei, sentando-me sobre meus calcanhares — então... Acho que sim. — Eu... Eu não... Não era pra...!!! — Ele tentou explicar, ainda muito alto. Provavelmente, Kyou nunca tinha usado tanta força contra alguém que não pudesse revidar à mesma altura. Imaginei se Yuki e Shigure tinham tanta força. — Tudo bem. — Dei umas batidinhas no ombro dele. — Não quebrei. Foi só um susto. — COMO ASSIM?! Como é que você pode estar bem?! — Kyou... Esperei que ele se acalmasse. E então perguntei: — Você já viu um gato caçando? Ele não entendeu, e juntou as sobrancelhas pra mim, empurrando a cabeça pra trás. — Posso fazer uma pergunta? Você não precisa responder se quiser. — Por... Por que não poderia?! — E aí fez cara de bravo, sentando-se ao meu lado e apoiando os braços nos joelhos. — Você não gosta muito de ser do signo do gato, né? — Por que eu gostaria? — Kyou perguntou pra mim, fechando os punhos e olhando para o chão. — Ele nem faz parte dos signos chineses. O gato não é nada. Não faz parte de nada. Eu tinha razão. Sorri para ele. — Sabia que na Tailândia ele faz, sim? Kyou me olhou, ficou vermelho e aí abaixou a cabeça. Tive que coçá-la pra ele. Achei que fosse brigar comigo por isso, mas Kyou continuou de cabeça baixa. — Você passa tanto tempo odiando o gato que nem pensa nas qualidades que ele tem. — Disse. — Você gosta de artes marciais, não gosta? Você não treina só porque quer bater no Yuki, você gosta. Aposto que começou a treinar antes dele. — Eu comecei! — Ele rangeu. — E ainda assim o veadinho não me deixa vencer... — Mas você sabe por quê? — Propus, esperando que ele não fosse usar o que eu estava pronta pra dizer para ficar arrumando mais brigas com o primo. — Porque! — Kyou então olhou pra mim, levantando o punho fechado. — Porque eu não consigo acertar aquela cara idiota dele com bastante força! — Não. — Sorri. — Você tem força o bastante. E, justamente por colocar tanta força em cada golpe, você fica lento. Você é do signo do gato! Gatos são rápidos e tem os pés macios! Eles esperam para agir apenas no último momento e não denunciam os próprios movimentos antes de executá-los. É claro que não nascem sabendo de tudo isso, mas está codificado no instinto de caça deles. Você também pode aprender isso. Vai ser fácil pra você. Está praticamente correndo no seu sangue. Ele ficou me olhando por um tempo. E então perguntou: — Você pensa mesmo toda essa merda que está dizendo? — Com certeza! — Continuei sorrindo. — Você é maluca. — Todas as pessoas que me conhecem concordam com você. — Falei pra ele. E me levantei, estendendo minha mão para ajudá-lo. — Vamos voltar? Preciso passar na casa de um amigo, mas antes tenho que pegar minhas coisas. — De que signo você é? — Me perguntou, lá do chão mesmo, olhando pra minha mão parada a sua frente. — Coelho. — Falei, pensando um pouco. Eu tinha pesquisado isso aqueles dias, mas estava meio na dúvida. — Acho que coelho. Por quê? — Você me ajuda? A vencer o rato? — Kyou me olhou nos olhos, cheio de determinação e esperança. Cutuquei minha bochecha. — Hum. Não. — Falei. — Desculpa! — Disse então, achando que ele fosse ficar chateado. — Eu não gosto que vocês briguem... — NÃO! — Ele gritou pra mim. — Eu...!! — Não me desculpa...? — Pedi, um pouco aflita. — Me deixa terminar de falar! — Okay... Ele deu um tempo, e daí se levantou. — Eu... Eu... Não devia... Eu não devia ter pedido isso, tá! — Tudo bem! — Levantei minhas mãos. O menino estava numa fase bastante difícil. — Tudo bem? — Perguntei. Kyou assentiu, olhando para outro lado. — Quer... Voltar? Quer ficar? Porque eu, na verdade, preciso ir indo. — Eu vou ficar! — Me disse. — Eu vou... Treinar. Mais um pouco. — Sim, sim. Estou indo, então, depois a gente se fala. Acenei pra ele e fui. Mas antes, me virei e falei: — Na Tailândia, o signo do gato ocupa o lugar do signo do coelho. Kyou olhou pra mim e eu sorri. E aí fui embora mesmo. Capítulo 23 Descobri uma coisa muito curiosa a respeito da família Sohma, assim que recuperei minha chave de acesso à central de dados da Associação: Lá não havia uma única mísera informação a respeito deles. Achei aquilo bastante estranho. Considerando tudo que rodeava aquela família tão singular, parecia óbvio, pra mim, que a Associação fosse se esforçar um pouquinho para saber mais sobre o assunto. Mas não havia nada. Nada. Nadinha mesmo. O que me fez pensar: a família Sohma tem, assim, tanto poder que é capaz até de manter seus segredos longe dos arquivos? Certo, falei pra mim. Eu estava mesmo impressionada. Queria falar com Killua sobre aquilo tudo, mas não podia. Tinha prometido não revelar o segredo, e não revelaria. Mas, mesmo que eu pudesse, Killua não me dera notícias desde que nos separamos. E aquilo estava me deixando muito perturbada. — Hoje é primeiro dia do Outono! Vamos jogar — Tohru tirou um baralho de sua bolsa e o ergueu a altura do próprio rosto — Pobretão? — O que tem a ver ser Outono com jogar Pobretão? — Kyou, que estava sentado atrás de mim, perguntou pra ela, como se achasse muito esquisito pensar em relacionar as duas coisas. Kyou estava em seu segundo dia de aula. Admito que ele não tenha se saído muito bem no primeiro. Por ser um aluno novo, e principalmente, por ser primo de Yuki, todas as garotas o assediaram muito e, quando uma se agarrou ao braço dele, para levá-lo num tour pela escola, ou sei lá o que, ele ficou meio loucão e pulou da janela. Coisa que não teria sido nada demais se nós estivéssemos no primeiro andar. Mas estávamos no terceiro. Fui atrás dele e deixei que brigasse comigo. Kyou não entendia como Yuki pudera escolher estudar num lugar onde tivessem tantas garotas. E estava puto porque, diferente de seu primo, ele achava que não conseguiria lidar com aquilo. — Então, vá embora. — Yuki dissera a ele. Ele aparecera do nada e cruzara os braços sobre o peito, parecendo muito mais que aborrecido. — Se fizer uma idiotice como aquela a cada vez que uma menina, simplesmente, tocar em você, vai começar a arranjar problemas pra mim. — Ele fechou os olhos, irritado, e então nos deu as costas para ir embora. — Como se eu já não tivesse o bastante. — Você só pode ser maluco! — Kyou gritou pra ele, se levantando. — Pra que escolher uma escola mista?! Você tem problema na mente?! — É você — Yuki respondeu, lançando um olhar de esguelha por cima do ombro — que quer seguir a risca toda e qualquer decisão que sai da boca do Akito, não eu. Kyou quis ir atrás dele, mas eu dei um puxãozinho na bainha da sua calça, apenas para que me percebesse ainda ali. Ele me olhou e me perguntou, gritando, o que eu queria. E eu apenas sustentei o seu olhar. Yuki foi embora, e Kyou voltou a sentar-se ao meu lado. — Aquele... — Ele rangeu, e xingou Yuki de nomes muito impróprios. — Ele tem tanta segurança do que tem! Por isso não dá a mínima! — Gritou, e socou o chão. Esperei que se acalmasse. Eu estava começando a entender o negócio ali. Kyou queria fazer “parte”. E Yuki queria dar o fora. Não era nada muito complexo afinal. — Nós não sabemos pelo que ele passou para agir assim, Kyou. — Falei, depois que tive certeza de que já estava ouvindo de novo. — Ou você sabe? Kyou não me respondeu. — Eu dificilmente vejo o lado das outras pessoas quando é uma situação que me envolve. — Esclareci. — Então sou a pessoa que menos tem moral para dizer. Mas tento manter em mente que os outros têm necessidades diferentes das minhas. Geralmente, só consigo ver quando me acalmo, quando o estrago já tá feito. Mas acho importante reconhecer, mesmo que mais tarde. — O que quer dizer? — Ele rosnou pra mim. — Quer que eu vá pedir desculpas pra ele?! — Rosnou mais alto. — Eu não disse isso. — Me levantei, batendo nas calças do meu uniforme para espanar a sujeira. — Vou voltar pra sala. Até depois. E deixei-o sozinho pensando. Kyou não apareceu na aula de novo naquele dia, mas saiu bem cedo no seguinte e, quando Yuki e eu chegamos, ele já estava lá. E se comportou muito bem o dia todo. Fiquei muito orgulhosa. — Não sei! — Tohru respondeu com muita sinceridade. — Mas a gente sempre joga no Outono na nossa sala! — Ah. Então, você joga no Outono porque é assim que todos fazem desde sempre. — Kyou constatou, deixando transparecer que aquilo não o agradava nem um pouco. Hana, que estava fazendo trancinhas no cabelo de Tohru, olhou para Kyou, bem pouco feliz. — Eu quero! — Falei, levantando minha mão para o ar. — Afinal, se é uma tradição é uma tradição. Vamos jogar, Kyou! — Não. Pra que vou jogar essa merda? Chamem a bichinha. Ela vai querer jogar com vocês. — Ele cruzou os braços, empurrando a mesa e equilibrando a cadeira na qual estava sentado apenas nos pés de trás. — Como se a gente realmente quisesse que você jogasse. — Bufou Uotani atrás de mim. Ela também não tinha gostado do jeito que Kyou falara com Tohru. — Que se dane, eu só queria fazer dinheiro fácil contigo, mas já vi você pede arrego, então não vai ter graça nenhuma. Eu nem tenho vontade de ganhar de idiotas que nem você, otário amarelão. Kyou se levantou, praticamente jogando sua carteira pra trás, e socou a mesa. — Bora jogar essa merda então! — Ele gritou. — Há-há-há, sensacional, você é mesmo idiota! Mas, quem perder, vai ter que fazer a limpeza por todo mundo! So-zi-nho! E ele perdeu. Fiquei muito feliz por não ter perdido em seu lugar, sendo bem sincera. Aquela parada de fazer a limpeza era coisa séria. Não tinha esse negócio nas outras escolas em que eu estudei, não. Mas, de qualquer forma, fiquei ainda mais feliz por ele ter aceitado jogar. Kyou não era tão antissocial quanto à primeira vista parecia. Na segunda jogada que fizemos sem estar valendo a aposta, para que pegasse as regras do jogo, ele e Uo já estavam se tratando como velhos adversários de jogo, e não seguravam a língua nem um pouco. Vários colegas nossos se amontoaram quando ficaram sabendo da aposta, e, logo, quase todos já estavam torcendo para Kyou, que parecia estar vencendo. Mas, aí, Hana fez uma jogada muito louca, chamada Antirevolution, que eu não fazia a menor ideia do que fosse, mas que, de alguma forma, levou Kyou a falência e ele virou o Pobretão. Um menino que estava dando vários palpites apoiou o cotovelo na cabeça de Kyou e o zoou um pouquinho. Ele estava enturmado. E pediu revanche. Então dei meu lugar ao menino dos palpites e fui usar meu computador. Procurei notícias de Killua, mas não encontrei nenhuma. Suspirei e fiquei olhando para o pessoal. Senti a falta de Yuki. Ele não estava na sala, notei. Resolvi ir procurá-lo. Quando o encontrei, achei a situação bem constrangedora: uma menina tinha tentado abraçá-lo e ele a impedira reflexivamente, segurando e empurrando a cabeça dela no meio do caminho. — Me- me desculpe... — Pediu a ela, totalmente desconsertado. A menina começou a chorar e eu me aproximei. — Yuki, mil perdões, mas tem um professor querendo falar com o representante de turma lá na nossa sala. — Menti pra ele. — É meio que, tipo, urgente... Ele se desculpou de novo com a menina e foi pra lá. Toquei-a e olhei para seu rosto. — Ahm... Você, ahm... Tem alguma coisa que eu possa fazer...? Por você...? — Tentei perguntar. Não achava que tivesse, mas eu não gostava de ver meninas chorando. — Me falaram que ele faria isso... — Ela foi falando, entre um gaguejo e outro. — Como eu sou burra! Burra! Como se ele fosse aceitar sair comigo... Tirei um lencinho de papel do pacotinho do meu bolso e ofereci a ela. O que mais eu podia fazer? — Obrigada... — Disse a garota, aceitando o lencinho. — Devo estar parecendo uma monga... — Fungou. — Mongas? Que nascem na Mongólia? — Falei, sendo bem nerd, e me agachei para olhar pra ela. — Você está muito bonitinha. Devia me ver quando eu choro. Fico parecendo um tomate mutante todo deformado e melequento. Ela deu uma risadinha meio engasgada e foi apertando o lenço nos olhos vermelhinhos dela. — Quer que a acompanhe a algum lugar? Ela fez que não. Então me levantei. — Tem certeza de que não precisa de nada? E ela acenou de novo que não. — Vai ficar bem? — Perguntei por fim. A menina, então, apertou o lencinho com as duas mãos, sem levantar os olhos. — Você... Eu posso abraçar você? Você deixa? — Claro, pode sim. — Respondi, sem pensar muito. Ela me abraçou. E ficou abraçada comigo bastante tempo. — Tudo bem? — Perguntei. Ela mexeu a cabeça no meu ombro, fazendo que sim, e então se afastou, dando outra risada meio estrangulada. — Não conta isso pra ninguém? Que ele me deu um fora. — Claro, não conto, flor. — Sorri. A garota ficou ainda mais vermelha e saiu correndo. Japoneses ficavam muito vermelhos muito facilmente, fiquei pensando. Voltei pra sala. Todo mundo já estava arrumando as coisas para ir embora e Kyou tinha começado a trazer o material de limpeza pra fora do armário. — Quer que eu ajude? — Perguntei. Estava me sentindo meio mal por ter ficado tão feliz de ele ter perdido, e não eu, que não sabia regra nenhuma. — Não! — Respondeu, todo orgulhoso. — Aposta é aposta, vai cuidar da sua vida! — Okay, boa sorte com tudo aí então. Obrigado por fazer a limpeza! Yuki! — Me virei pra ele, que estava arrumando suas coisas na bolsa, meio desligado. — Você devia jogar com a gente da próxima vez! Boatos que é uma temporada de jogos que vai rolar a estação todinha! — Ahm? — Ele levantou os olhos pra mim. — O que? — Quer jogar Pobretão com a gente da próxima vez? — Ofereci de novo. — Não conheço... — Falou. Então tentou me dar um sorriso. — Depois me ensine as regras? — HÁ-HÁ-HÁ! — Fiquei rindo. — Eu nem sei as regras, como faz! E não sabia mesmo. Ele deu um meio sorriso, sem tentar muito dessa vez, e colocou as alças da mochila nos ombros. — Mas... — Yuki então olhou para Kyou. — Então você foi o Pobretão da rodada? — Vá se foder! — Kyou rebateu, bravo já. — Da próxima vez, você vai jogar e eu vou esfregar a sua derrota nessa sua cara, seu veadinho! — Claro. — Yuki olhou pra porta. — Yuuki, você vai trabalhar hoje? — Hum, vou, sim. — Falei, tendo a impressão de que ele queria conversar. — Que horas você sai? — Perguntou-me então. — Eu não sei muito bem... Fico lá geralmente... Até terminar... — Mas não sabe nenhum horário mais ou menos? — Hum... Às oito? Às oito eu acho que saio. — Sorri pra ele. — E... Você trabalha perto daquele lugar que eu a encontrei da outra vez? Naquela casa da qual você saiu? — Não. — Menti. — Aquela é só a casa deu um amigo meu. Então sugeri a ele um lugar por onde eu passava, explicando que achava melhor que nos encontrássemos lá. Se ele quisesse mesmo ir, é claro. Yuki não ficou questionando, percebendo que eu não queria dar o endereço. Então fui à casa de Satoshi. Satoshi estava sendo estranhamente não problemático comigo desde nosso empate recente. O que, pra mim, significava problema. E vi que estava chegando a hora de descobrir o passo que ele planejava a seguir. Só decidi não fazer nada àquela noite porque achava que Yuki realmente iria me esperar no local que disse a ele na hora marcada. Eu não gostava de fazer as pessoas ficarem me esperando. — Você veio! — Exclamei, quando o vi encostado a balaustrada da ponte, olhando a noite. Ele sorriu. — É... — Disse, e então enrugou o nariz. — Não fico muito feliz com você fazendo aquele caminho pra nossa casa à essa hora. Eu posso vir sempre, é só me avisar. — Ah... — Fiquei toda feliz. — Obrigado! — E estava mesmo. — Eu realmente não me importo de andar sozinho. Mas, se você realmente for ficar mais tranquilo vindo me pegar. Bem. Obrigado! Yuki sorriu de novo, e inclinou a cabeça, sugerindo que fossemos andando. — Me desculpe por hoje na escola. — Encostei as pontas dos meus dedos ao braço dele. — Por ter visto você e aquela menina. Eu não estava espionando nem nada estranho desse tipo. E eu só cheguei na hora que apareci pra vocês, também, não ouvi nada que conversaram. Hum. Me desculpe, mesmo assim. — Hm... — Yuki balançou a cabeça. — Eu ia agradecer a você por isso, na verdade. Você me salvou naquela hora. Eu... É complicado. — É. É complicado, sim. Você quer conversar sobre isso? Quer dizer, tudo bem se não quiser... — Não, eu... — Ele inclinou um pouco a cabeça para o lado. — Eu não... Eu não lido com nenhuma menina daquela maneira... Que você viu. Eu... Tento conversar com elas. É que... Eu não... Fiquei esperando. — Eu vi Kyou jogando com você e os outros, e eu... Tentei imaginar o que poderia tê-lo deixado chateado naquilo. Pensei em alguns motivos, mas não sugeri nenhum e esperei que me dissesse qual era realmente o seu. — Eu costumava viver na residência principal dos Sohma antes de ir morar com Shigure... — Ele começou. — Eu me sentia... Como que... Numa camisa de força. Lá dentro. Eu achava que isso passaria se eu saísse de lá, ou fosse para uma escola que não a que Akito escolhesse. Eu achava que, assim... Se eu estivesse mais longe... Eu não me sentiria... Como... Como... Se estivesse traindo alguém ao tentar me relacionar com pessoas de fora. Mas eu percebi quando vi você e aquela barraca. Eu não mudei nada. Eu não saí da casa dos Sohma, não peguei uma barraca e saí de casa definitivamente como você fez. Eu apenas... — E aí ele sorriu um sorriso triste. — Fui até a varanda e pensei “Ah, agora estou fora”. Mas eu não... Eu não estou. Não mudei absolutamente nada. Não consigo me relacionar com pessoas de fora direito. Continuo a mesma coisa. Quando vejo Kyou se dando tão — Yuki segurou o próprio braço — bem com todo mundo tão facilmente eu... Eu não entendo. Eu não consigo entender por que ele quer tanto fazer parte dos Doze. Eu não... Percebi que Yuki terminara. Achei que ele tinha ido muito bem. — Eu liguei para o meu irmão outro dia. — Disse pra ele. E ele me olhou. — Eu vim pra cá — pensei um pouco antes de seguir — porque ele e eu brigamos. Mas continuo falando com ele. Sorri, me sentindo um pouco boba. — A nossa família é nossa família. Não tem como mudar isso. — Continuei. Aquele tópico tão pouco era simples para mim, mas eu conseguia imaginar, embora muito superficialmente, como Yuki poderia estar se sentindo. — A gente não tem que se dar super-bem com todos eles, assim como não tem que se dar bem com todas as pessoas que a gente conhece. Todas as... Ahm... Todos os grupos, familiares ou não, são formados por pessoas com as quais a gente se identifica e por pessoas com as quais a gente não se identifica muito. Eu não sou da sua família, mas acho que você lida muito bem comigo. Mesmo antes de eu conhecer você e o seu... Hum, negócio... Você foi bom comigo, mesmo que, no início, me mantivesse um pouco à distância. Timidez não separa ninguém de ninguém por muito tempo, Yuki, e não isola ninguém do mundo. Se alguém é tímido, essa pessoa vai demorar um pouco mais para fazer um amigo, mas assim que esse amigo conseguir ver a pessoa linda que a tímida esconde — pensei — será uma amizade verdadeira. Quer dizer... Repassei tudo que tinha dito em minha cabeça, procurando pra ver se tinha dito algo indelicado. Achei que não. E olhei para Yuki. — Você não acha?— Perguntei, me sentindo muito boba. Às vezes acho que eu deveria calar a boca e só deixar as pessoas falarem. Yuki estava me olhando. — Parem de ficar namorando na rua a uma hora dessas! — Disse um cara que passava atrás de dele. — Vão pra um motel! Bêbado, xinguei mentalmente. O cara deu um empurrão em Yuki, que, sem ter tempo de se equilibrar, veio para o meu lado. E puff... Fumaça, fumaça. — Ahm... Desculpe. — Eu disse, sem saber o que fazer. — Yuuki, a culpa é minha. — Ele respondeu, se colocando de pé sobre as duas patinhas. — Não é culpa sua eu ser assim... Perguntei a Yuki se podia carregá-lo no meu bolso, imaginando que ele não se transformaria enquanto estivesse encostado a mim, já que não sabíamos quanto tempo ficaria daquele jeito e não seria nada legal se alguém passasse e o visse voltando a normal. Mas, antes mesmo que eu terminasse de pedir, Yuki voltou a sua forma humana. — Me desculpe, algumas vezes é bem mais rápido... — Ele ficou rindo, envergonhado, vestindo-se enquanto eu contava estrelas no céu. Embora não tivesse nenhuma lá. — Acho que vai chover... — E não deu outra. Foi só eu falar. — Ah, que droga... — Yuki falou. — O que? O que é uma droga? — Fiquei querendo saber. Yuki não parecia estava falando da chuva. Ele me chamou para irmos depressa, se não ficaríamos encharcados. Então corremos pra casa, mas, ao chegarmos lá, Yuki só me deu uma toalha e pareceu se aprontar para sair de novo. — Aonde vai? — Perguntei, enrolando a toalha na minha cabeça. — Eu tenho que... Eu volto logo. Fique aqui, está ventando muito. Mas eu fui. Yuki pegou um martelo, algumas estacas e dois enormes sacos plásticos. Tentei muito imaginar o que ele pretendia fazer com aquele conjunto tão interessante de coisas. Mas eu jamais teria adivinhado que aquilo tudo era para proteger uma horta. Minha cabeça não funcionava para aquele lado. — Essa é...? — Mmm. — Ele sorriu. — Minha base secreta... — Maravilha! — Bati minhas mãos. — Muito bom, muito bom! Certo, operação “defender a base secreta” iniciar! O que é que tem que fazer? Ele me deu uma metade do plástico e contornou a pequena plantação, abaixando-o com cuidado sobre ela. Fiz o mesmo, e fiquei segurando o plástico lá até Yuki prender as pontas do seu lado e vir para o meu. — E agora? — Gritei. O vento parecia mais forte a cada minuto e fazia muito barulho. — Vá pra casa! — Ele respondeu, gritando também. — Obrigado por ter vindo ajudar! — Você vai ficar?! — Vou! — Okay! Eu espero você então! Yuki tentou me dissuadir, mas eu não tinha nada contra vento e não ia sair voando de lá. Por isso, fiquei. Então ele me pediu para me abaixar ao seu lado, e me cobriu com o outro plástico que tinha trazido. Esperamos ali, quietinhos, até a ventania passar. — Sucesso! — Gritei, dando pulinhos quando tiramos o plástico e vimos que estava tudo inteiro. — A base está viva, irmãos! Viva! Somos muito loucos, okay, okay! Yuki ficou rindo. Estávamos os dois ensopados. — Vamos voltar agora? Está tudo bem, não está? Podemos voltar? Eu não quero que você fique doente... — Fui falando, lembrando que senhor Hatori exigia que ele tivesse consultas mensais. — Sim, vamos voltar — ele falou. — Estamos completamente cobertos de lama! — SIM! — Dei mais um pulo, jogando meus braços pra cima. — Completamente! Tem lama em mim até a alma! Mas podemos fazer isso de novo quando tiver outra tempestade?! Sério! Foi muita emoção! Yuki sorriu pra mim. Sorri pra ele também, tirando a inhaca que tinha virado meu cabeço da frente do meu olho. Eu devia estar parecendo um poodle molhado. — Yuuki, — ele me falou, sorrindo tão bonitinho que eu realmente quis abraçálo — quero jogar com vocês da próxima vez. O jogo de cartas. — Pobretão? Claro! Todos vão ficar bem felizes com você jogando! Eu não falei mais nada porque achei que você não tivesse ficado muito interessado. — Eu quero. — Yuki me olhou. — Quero jogar com você. E com seus amigos. Fiquei muito feliz. Eu vinha ficando muito feliz muitas vezes naqueles tempos, não sei se você percebe. — Yuuki... — Ãh? — Ergui minhas sobrancelhas pra ele. — Obrigado. — Yuki me disse. Com aquele sorrisinho tão bonitinho... Fiquei tão feliz que meu rosto ficou todo quente. Capítulo 24 Notícias especiais?! Eu tinha algumas. Bom... Foi anunciado que todos os outros quatro vampiros sangues-puro haviam despertado. Com os senhores Isaya Shoutou, Hanadagi, Ouri e Touma, agora éramos sete, já que eu não contava com meu tio Rido, por ele estar meio morto naquele tempo, sabe como é. Por falar em tio, ele não havia se manifestado de forma perceptível em mim ultimamente. Fiquei sabendo, também, que o Conselho de Anciões fora completamente dizimado, e que meu irmão Kaname era apontado como principal suspeito do massacre. Eu, obviamente, não quis acreditar naquilo, mas acreditei. Se o que meu irmão queria era acabar com a forma com que a sociedade dos vampiros era organizada, riscar o Conselho de Anciões da lista devia fazer parte. Fiquei impressionada comigo por pensar daquela maneira tão fria. Hm... Zero estava se movimentando para alcançar a presidência da Associação. Killua dera sinal de vida e explicara que estava difícil arranjar como falar comigo, mas que ele ainda não descobrira nada relevante e que me mandaria notícias quando pudesse. Ah, a Sibéria. Net Virtua? Pura enganação. E eu ainda não conseguira descobrir o que Satoshi estava tramando, embora tivesse percebido que ele já teria agido, se pudesse. Mas eu ia descobrir. Fora isso, continuei sem encontrar informações sobre a família Sohma dando muita bandeira. Mas confesso que descobri algo tão importante quanto. Não sei se já falei sobre isso, mas penso que não: os primeiros vampiros sanguepuros nasceram todos na mesma época, e todos de pais humanos. Não existe nenhuma explicação que justifique o fato, simplesmente foi algo notado. Meu “irmão” e mais doze crianças nasceram com uma mutação que as tornava, como o termo foi usado na época, mais... Evoluídos. Tipo os X-men. Sacou? Certo, certo. Bom, já crescidinhas, e consideravelmente poderosas, algumas crianças “evoluídas” começaram uma sangrenta batalha, que logo se tornou uma guerra que atingiu o mundo inteiro da época, e perdurou por vários anos. Muitos ex-humanos foram criados para aumentar as tropas. Muitos morreram. E vários estão vivos até hoje, também, e são guardados pela nobreza. Havia, no entanto, registros de que, alguns anos após o início da guerra, o número de vampiros na China foi drasticamente reduzido, até que, finalmente, erradicado. Mas mais alguns anos se passaram, e o número foi subindo de novo, e, exatamente na mesma época, os vampiros desapareceram do Japão. Foi olhando para aquilo tudo que consegui dizer: Hm! É mesmo? Não era preciso ser lá muito gênio para ligar os eventos. Guardei aquela informação valiosa e fiz uma nota mental de compartilhá-la com Killua. Bom, talvez ele até já soubesse. Certo, eram essas as notícias. Aquele dia estava sendo especialmente perturbador para mim. Como não presto atenção às aulas, obviamente mal noto “recados importantes” dados ao final de cada uma delas. Como eu teria então como saber que ia ter um festival escolar? Eu sempre odiei essas palhaçadas. Sempre havia um monte de coisas pra fazer, e geralmente todos me encarregavam de tudo. Era um evento que não acrescentava nada e, ainda assim, contava nota de participação. Coisa chata, isso aí. Yuki me avisara no caminho que aconteceria naquele dia, e não parecera se surpreender que eu não soubesse de nada. — Você não gosta desse tipo de coisa? — Ele me perguntara, sorrindo pra mim. — Ahm... Meu pai era professor. Eu tinha que ajudar lá na escola dele, mesmo quando não estudava no colegial ainda. E tinha que ajudar na minha escola, também. Era uma vida difícil. — Fora explicando. — De verdade... Yuki erguera sua mão para tirar um fio de cabelo que ficara preso em minha boca e, então, me dissera: — Não se preocupe, todos levam o evento muito a sério na nossa sala. Ninguém vai jogar um monte de coisas pra cima de você. E eu fiquei lá, só piscando. Ele tinha tocado no meu cabelo. Fiquei boba. De fato, todos estavam trabalhando muito para deixar tudo pronto. Achei lindo quando vi Kyou todo concentrado, dizendo que um negócio que ele tinha feito tinha ficado meio torto. Àquela altura, todos os nossos colegas já o chamavam de tarado por gatos, por que, certa vez, nossa sala fora totalmente invadida por um bando deles, e todos tinham ido para se aconchegar a Kyou, bem ali, no meio da sala. Foi difícil arranjar uma explicação. QUEM VOCÊ ESTÁ CHAMANDO DE TARADO?! Kyou ficava gritando toda vez. Mas ele já estava bem diferente do que era no nosso primeiro encontro. Kyou ainda se estressava facilmente, mas ele parecia estar adquirindo o hábito de recuperar a calma com rapidez. Eu via que se esforçava bastante. Ele e eu ainda treinávamos perto de casa, mas, a cada dia, a força do sangue de Kaname se esvaía de mim, e eu não podia mais deixá-lo me acertar. O que era um problema, porque Kyou também estava avançando muito naquilo. Bom, voltando ao ponto. Algo me dizia que ele estava começando a gostar de Tohru. Mas ela era bobinha, os dois eram, então eu achava que nenhum deles ia levar o negócio muito pra frente. — Yuuki! Yuki! — Umas garotas enfiaram suas cabeças para dentro de nossa classe, cheias de expectativa. — Os dois podem vir aqui um minutinho?! — Senpai... — Yuki olhou para uma das garotas. Era aquela que eu pegara tentando abraçá-lo, e falhando colossalmente em fazê-lo. Tentei lembrar o que senpai significava. Não consegui. Yuki e eu nos entreolhamos e fomos até o corredor com as duas. — O pessoal da nossa sala quis dar um presente a... Quer dizer, a vocês dois. Nós ficaríamos muito, muito, muuuuuuito felizes se usassem durante o festival! — Disse a menina que Yuki chamara de senpai. Nós dois estávamos com muita cara de ponto de interrogação. — Tã-dãããããn! — Elas cantaram, revelando o que vinham escondendo atrás das costas. Eram dois conjuntos combinando. — Ah! — Falei, tentando não parecer toda animada. — Me desculpem, moças... Ahm... Eu, ahm, adoraria usá-lo. — Fiquei olhando para o vestido. Na verdade, eu não queria muito usar aquilo, não. — Mas eu estou tendo que andar muito lá fora hoje e, se eu fosse de vestido, ia ficar um pouco ruim pra mim porque eu, hum, tenho problemas de pele. E, também, hum, eu ia odiar tropeçar nele e rasgá-lo acidentalmente. — Ri, então, meio sem graça. — Ah, não, não! — Senpai respondeu. — Vocês não entenderam! Esse é pra você. E esse é pra você. Yuki continuou com cara de “ãh?!”. E eu fiquei com cara de “Aaaaaahm...”. Tentei explicar às meninas que aquilo não seria muito apropriado, mas elas continuaram insistindo e insistindo, até que uns meninos da nossa sala perceberam a respeito do que era a discussão e se posicionaram a favor delas. Olhei para Yuki. Não precisa fazer, você sabe, não é? Tentei dizer a ele pelo meu olhar. Mas nossa telepatia ainda não estava muito estabilizada e ele ergueu as sobrancelhas, franzindo a testa. — Você quer fazer isso? — Me perguntou, apenas movendo os lábios. — Você que sabe... — Movi os meus. Ele continuou muito aflito. Mas acabou concordando. Descobri que “senpai” significava que aquelas meninas eram nossas veteranas. Achei Yuki muito bonzinho por ter concordado só porque era o pedido de último ano delas. Ou talvez tenha sido porque quase a escola inteira tinha se amontoado no nosso corredor para apoiar a opinião de que deveríamos fazer. Okay, estou exagerando. Mas, enfim, quando todos os detalhes da decoração de nossa classe estavam terminados, as meninas nos sequestraram e nos fizeram vestir as fantasias. Fui rápida. Vestir-me de menino não era um grande assunto para mim, já que eu só me vestia assim, mas Yuki devia ter tido problemas, porque demorou um tempão. Fiquei parecendo um príncipe muito afeminado. E as meninas colocaram bastante maquiagem em mim, o que só me deixou ainda mais gay. Mas, pelo que eu tinha entendido por lá, o padrão de beleza masculina que elas adotavam era Yuki, que, como já disse, parecia uma menina bonitinha. Então, talvez, pra elas, eu tivesse ficado muito bonitão. E eu tinha um mosquete, irmãos. Quando na nossa vida a gente tem a oportunidade de ter um mosquete? Fiquei seduzindo. Quando Yuki finalmente apareceu, todos o acharam uma gracinha. Ele parecia mesmo uma princesinha pré-adolescente, e, como as roupas ficaram folgadinhas, Yuki devia estar bem confortável lá dentro. Embora suas expressões facial e corporal não concordassem com isso. E eu só olhando. Quando Yuki me percebeu, ficou muito vermelhinho e abaixou o rosto, deixando que seu cabelo o escondesse. Ai... Eu quase disse. Que gracinha... Imaginei que Yuki fosse ficar muito envergonhado se eu fosse até ele e dissesse o que realmente achava. Mas decidir ir, mesmo assim. Aproximei-me dele sorrateiramente, até estar parada ao seu lado. Ele estava envergonhado. Estava tão, tão envergonhado... Ah... — Você é tão bonitinho, eu queria te abraçar agora... — Falei baixinho, enquanto ele olhava na direção oposta. Mas, quando me ouviu dizer, me olhou, absolutamente pasmo. — O- o quê? Yuki foi ficando muito, muito, muito vermelho. Lembrei-me de Maria Kurenai. — Eu falei sobre os bolinhos, que eu teria de colocar para assar agora. — Expliquei, sorrindo muito, então, segurei a mão dele e, com uma reverência exagerada, eu a beijei. — Sua Alteza, se me der licença... Várias meninas da nossa sala sufocaram gritinhos de excitação ao ver aquilo. Fiz uma saída teatral e fui ajudar as meninas da minha sala a assar guiozza. Depois teríamos que fritá-los, também, mas boatos que ficavam melhores se fossem pré-assados. — O que você disse pra ele? — Kyou quis saber, e Uo, atrás dele, me olhou com a mesma pergunta. — Que eu precisava assar bolinhos. — Esclareci. Eles não caíram, e ficaram lá, rindo de mim. — — Ouvi uma voz de criancinha gritar. Voltei-me para ver quem tinha gritado aquela frase estranha, como muitos da nossa sala. E vi uma criancinha linda dependurada do pescoço de Yuki. Eu juraria que era uma menininha, tinha olhos azuis bem grandes, e cabelos loiros lisos e bagunçados em todas as direções. Parecia uma anjinha bebê. Mas, se estava abraçando Yuki, então devia ser menino. — Por que você está vestido como uma garota? — O menininho perguntou a Yuki, parecendo confuso. — Ah, merda. — Kyou cruzou os braços atrás de mim, sem parecer achar realmente que fosse uma merda. — O que é que esse pentelho veio fazer aqui?! — É primo, também? — Chutei. Eu tinha começado a assumir que todos os membros da família Sohma tinham características bem estrangeiras, comparadas as dos japoneses, e, toda vez que via alguém com uns traços diferentes, começava a me perguntar se era um dos Doze. — Você conhece?! — Kyou franziu o cenho pra mim. — Não, estou só perguntando. — Momiji... — Parei para prestar atenção de novo, reconhecendo aquela voz. — Eu disse pra não sair correndo por aí sozinho. Era do senhor Hatori. — — Disse o menininho, soltando Yuki e tirando sua boina da cabeça. Várias garotas tinham se aproximado para olhá-lo mais de perto. Porque, provavelmente, aquela era a criança mais lindinha do mundo. — — Ele disse, inclinando-se para todas elas e segurando o chapeuzinho junto ao peito. — É um grande prazer conhecer vocês! Sou Sohma Momiji, este é Sohma Hatori, somos primos de Yuki e Kyou! Aí fiquei imaginando quantos anos ele poderia ter. — Merda! — E, agora, realmente achando uma. — Hatori veio também! Kyou não ficava muito confortável com Hatori, também, então. Pensei. E notei que Yuki estava, naquele exato momento, conversando com o primo médico, sem parecer lá muito feliz. Tentei adivinhar o que poderia ser, mas não tive moral de me aproximar para descobrir. Kyou foi atazanar o primo bonitinho e eu fiquei olhando para Yuki e Hatori. — Momiji! — Yuki então desviou o olhar para o priminho também, exaltado. Porque ele tinha subido em uma cadeira e tentava empurrar uma lamparina de papel meio torta em cima de uma das barracas. — Eu disse pra você descer daí, pestinha!!! — Kyou gritou, puxando o braço do menino. — Eu estou tentando...! Só...! Colocar, mais um pouquinho... No... Lugar...! Momiji deu uma desequilibrada, enquanto tentava se manter de pé uma cadeira toda empenada, apoiada praticamente apenas em um dos pés. Magicamente, quando ela despencou, o que, obviamente, estava pra fazer, Momiji aterrissou sem o menor problema. Mas rapidamente fingiu cair e machucar o tornozelo. Hum. Pensei. E, quando Kyou deu um soco na cabeça dele, fiquei com muita dor no coração. — Por que é que você não consegue parar quieto?! — Waaaa! — Momiji segurou a própria cabeça, abaixando-a entre os joelhos. — Kyou, não me bate! Por que você é mau comigo?! Sofri. — Queria pra mim... — Arfei. — Queria o que? — Uo levantou uma sobrancelha. — Queria um filho igualzinho ao Momiji... — Continuei sufocando. Uotani riu pra caramba. Kyou arrastou Momiji para a salinha ao lado, na qual estávamos guardando as carteiras da sala, e eu fui pra lá também, para saber se Momiji era um dos Doze. E para impedir que Kyou, aquele horroroso, batesse nele de novo. É lógico. E ele estava justamente tentando. — Kyou! Não! — Segurei a mão dele no ar. — Não bate nele! Como assim! — AH?! Me solta! Esse pirralho tá merecendo porrada! — Ele gritou comigo, se estressando todo. — Ah! — Momiji olhou pra mim, muito animado, como que não dando a mínima para a ameaça de Kyou. — Yuuki?! Você é a Yuuki, não é? Eu vim aqui pra ver você! Mas não consegui achar! Eu não sabia que estaria vestida de príncipe! Você é um príncipe? — Ah! — Falei, olhando para mim mesma. — É verdade! Não, é só um disfarce! Eu sou uma princesa, na verdade! — Quê?! — Kyou ficou olhando pra mim, como se se sentisse traído. — Princesa! — Momiji ficou de pé, num pulo. — De onde você é? Você é estrangeira, não é? Eu sou mestiço! Sou japonês meio alemão! De onde você é?! — Eu? Ah! — Fiquei dizendo, toda boba. — Sou do Canadá! Na verdade, não era. Mas meu pai era, então eu saia dizendo isso por aí. — Ah! Canadá! Ah! Ah! Yuuki! Yuuki! É verdade? Eu vim saber se é verdade! É, não é? Você conhece o segredo, não é? — Ah. — Coloquei minhas mãos aos lados da cintura. — Ah... Sim! Sim, acho que sim! — Wa! — Ele fechou as mãos e apertou os olhos, se encolhendo, todo feliz. — Então posso te abraçar! Opa, pensei. É um deles! E o menino veio vindo pular em cima de mim. Mas Kyou o agarrou pelo cangote da blusa e ficou segurando-o ali. — Não vem com essa, não, seu pervertido anão! Que história é essa de sair abraçando ela assim?! — Mas ela sabe! Não tem problema, então! — QUEMDISSEQUENÃO?! — Kyou se irritou. — Onde você acha que tá?! E você! — Ele apontou o dedo pra mim. — Para de dar trégua pro moleque! E aí Momiji bateu na mão dele. — Não aponta o dedo pra ela! — Irritou-se ele também. — E me solta! Aposto que você pode ficar abraçando a Yuuki sempre, só porque ela é muito bonitinha!!! Eu quero abraçar também! Pará de ser egoísta!!! E eu fiquei lá, me achando muito abraçável. Eu devia ser, afinal, né? Kyou então berrou um “o que foi que disse, moleque” e Momiji escapou de suas mãos, vindo atirar-se em mim, passando seus braços por baixo dos meus, e gritando: — Eu AMO tofu! Não perca a chance de provar um pouco! E fumaaaaça... — Ai! — Dei um gritinho, notando que era um coelho. — Ai, meu Deus, ai, meu Deus! Eu o abracei, me esforçando para não apertá-lo demais. Uns colegas nossos vieram ver o que tinha sido aquela explosão, e, quando me viram abraçando um coelhinho, começaram a fazer um monte de perguntas. Porque pra que, afinal, alguém ia querer cuidar da própria vida? Escondi as roubas de Momiji debaixo do meu manto, muito útil, e fiquei dizendo que não podia deixar minha chinchila em casa porque estávamos pintando a sala. E que, por isso, eu a tinha trazido ali. Expliquei também que a fumaça tinha sido eu deixando o saco de mármore em pó arrebentar no chão e espalhar tudo. Eles riram de mim e me disseram que eu tinha um coelho, e não uma chinchila. E saíram, rindo, me achando bem idiota. Mas não preciso nem dizer quem não notou que não tinha nenhum saco ou mármore espalhado pelo chão, preciso? Kyou soltou a respiração, apavorado. — De onde é que você vem com essas desculpas?! — Ele urrou com um sussurro alto demais. — Baixo tudo da internet! — Sussurrei de volta, e então escondi Momiji debaixo do meu manto e sai correndo para o terraço da escola. Hatori e Kyou vieram atrás de mim, bem rapidinho, enquanto Yuki ficava por lá um pouco mais para desviar a atenção do pessoal. — Seu estúpido...! Idiota! Pirralho... Inconsequente! Retardado! — Kyou foi xingando. Xingou de outros nomes também, mas vamos ficar com esses. — Yuuuukiiii... Me protege... Não deixa Tori e Kyon-Kyon me pegarem, eles estão muito assustadores... — Tudo bem, tudo bem. — Fiquei lá, abraçadinha com o coelhinho. Eu nunca tinha abraçado um coelhinho antes. Foi uma sensação como... Ah! Não dá para explicar... Arranje um coelhinho e vá abraçá-lo! — Tudo bem uma ova! — Kyou gritou comigo. — Pare de ficar defendendo esse moleque! — Mas como? — Nem me alterei. — Momiji — Yuki tinha chegado ao terraço também, e se aproximara de mim para falar com seu primo, que dera um jeito de escalar meu ombro e subir no topo da minha cabeça — seja mais cuidadoso. O que fez agora há pouco poderia ter causado problemas, e não só a nós, mas também à Yuuki, entende? — Pense pelo menos um pouco antes de sair fazendo idiotice. — Senhor Hatori falou, vestindo seu blazer e olhando para o próprio relógio. — Certo, vamos embora. — Não quero! — Momiji enroscou suas patinhas no meu cabelo. — Quero ficar aqui com a Yuuki! Você mal me deixou conversar com ela direitinho! Yuuki? Eu te causei problemas? Você ficou chateada? Eu te deixei chateada comigo? Yuki me olhou, assim como Kyou e senhor Hatori. Senti que aquela era a hora em que eu deveria colaborar com eles para a educação do garoto. Então soltei um gemido e cobri com minhas mãos o meu rosto — Não me olhem assim... Como posso? Ele é lindo! — Heeee! — Momiji riu lá em cima, esfregando seu rostinho macio e peludinho na minha testa. — Se causasse algum problema, iríamos embora, esse foi o acordo. — Hatori o lembrou, sem parecer se estressar muito. — Toooriiii... Por que você é chato? — Momiji ficou chorando. — Ah, quase ia me esquecendo. — Hatori levantou a cabeça, enfiando a mão no bolso da calça. — Yuki, Kyou, digam queijo. Nenhum deles disse “queijo”, mas ambos olharam para Hatori com muita dúvida, que, marotissimamente, rapidamente tirou uma câmera digital do bolso e bateu uma foto. — Vai servir. — Ele conclui, verificando a tela da máquina. — Akito pediu uma foto dos dois juntos. Venha Momiji. Momiji desceu para o meu ombro e apoiou suas patinhas em meu rosto, me encostando seu focinho. — — Ele me disse, e saiu pulando atrás de Hatori. Kyou também foi, exigindo que o deixasse destruir a câmera. — Você tá bem? — Perguntei a Yuki, que parecia mais abatido do que estivera o dia todo. E, daí, ele começou a tentar puxar o casaquinho de rendinha por cima da cabeça. — Como assim, se despindo?! — Gritei, recuando. Yuki desistiu da tentativa pela metade, deixando a blusa toda esquisita, enroscada nos fios do seu cabelo. E então se sentou no chão, empurrando a cabeça por entre os joelhos. — Akito... Vai me ver assim... Naquela foto... Ele... Cocei minha sobrancelha. E fiquei coçando por um tempo. Depois fui me ajoelhar perto de Yuki. — Ele vai entender que foi só uma brincadeira, não é mesmo? — Falei. Estava tentando desenroscar os botões que estavam presos em seu cabelo. — Mas, se isso te preocupa, só precisamos ir e pedir para o senhor Hatori tirar uma foto de você com roupas normais. Ele ficou quieto então, de cabeça baixa, esperando que eu terminasse. — Eu também... — Ele disse, finalmente, mas ainda sem erguer a cabeça. — Não queria que me visse assim... — Quem? Eu? — Apontei pra mim, confusa. — Mas eu me visto de menino o tempo inteiro, poxa vida! Fiquei rindo. Yuki levantou seus olhos por um breve instante e então os abaixou de novo. Continuei rindo. Desvencilhei as fitas que prendiam meu manto e o tirei, vestindo Yuki com ele e arrumando para que chegasse perto do que estava quando as meninas o puseram em mim. — Pronto, parecemos dois principezinhos agora! — Estendi os braços para os lados, e aí comecei a arrumar seu cabelo todo desalinhado. — Yuuki, — ele começou a dizer, tocando meus cotovelos e, depois, segurando minhas mãos — você não se parece nem um pouco com um principezinho... — Ah... — Falei, meio esquisita. — Okay... Posso viver com isso... — Você finge ser, mas você, definitivamente, é como... — E aí Yuki resolveu finalmente me olhar. —... Como uma princesinha... E não pareceu nenhum pouco envergonhado em dizer aquilo. Ele tinha vergonha de ficar vestido como menina na minha frente, mas dizia aquilo na maior inocência. Senti meu rosto quente de novo. — Er... — Fui me levantando. Então fui chamada por interfone para ir à diretoria. Não gostei daquilo muito, não. A única pessoa que poderia estar me chamando de lá seria... Satoshi. Ou...? — Eu preciso ir ver o que é. — Disse a Yuki. — Tudo bem? Ele assentiu, e eu saí correndo. Não fui direto entrando lá, primeiro verifiquei. — Ah... — Notei. Era apenas o senhor Hatori na sala de espera. — Olá... — Ele me disse e, levantando-se, estendeu um papel pra mim. — Sinto muito por tê-la chamado aqui, eu prefiro que Yuki e Kyou não saibam que estamos tendo essa conversa. Senhor Hatori me olhou para ver se eu tinha entendido direitinho o que ele queria dizer. Fiz que sim e peguei o papel que estava me oferecendo. — É o endereço do conjunto residencial da família Sohma. Há assuntos que pretendo discutir com você, então, espero que vá, amanhã, ao meio dia. Assenti. Eu queria mesmo entrar lá. Vinha conversando com Shigure bastante naqueles dias. Nada que desse muito nas vistas, é claro, mas eu me mostrava muito curiosa por todo o mistério de sua família e fazia as perguntas que podia. Shigure soltara, certa vez, muito “casualmente” que a verdadeira história dos Sohma estava registrada em livros antigos que ficavam na biblioteca da residência principal. Shigure bancava o bobão, mas eu tinha certeza de que ele sabia bem mais do que deixava transparecer o tempo todo. Por isso... — — Momiji chegou por trás de mim, colocando suas mãos ao redor da minha cintura e vindo então saltitando até ficar do meu lado. — Eu vou estar lá também, Yuuki! Então, não precisa ficar preocupada com que Hatori tente fazer algo com você, tá bem? Por favor, venha! — Ah! — Sorri pra ele. Tinha levado um susto por Momiji ter vindo de trás, mas então estava tudo bem. — Com você dizendo essas coisas, garoto, aí que ela vai pensar que quero fazer algo. — Hatori tirou um cigarro e começou a fumar ali mesmo. — Ei! Yuuki é uma menina! Ela não pode ficar sozinha com um homem desconhecido! Ela ficaria assustada, né! — Momiji deixou bem claro, vindo esfregar seu nariz em meu rosto de novo. Achara menos estranho quando fizera aquilo em sua forma de coelho, mas, ali, só fiquei preocupada mesmo com a possibilidade de Momiji se transformar, já que estava quase me abraçando de novo. — Vou ficar bem feliz se você estiver lá! — Falei, e olhei para senhor Hatori. — Eu irei, com certeza. Senhor Hatori me encarou por um momento, examinando aquilo, fosse lá o que fosse, nos meus olhos, e então me cumprimentou e saiu, levando Momiji consigo, que me dera um beijinho no rosto antes de ir embora. Capítulo 25 Saí durante a aula para ir até a casa de Hatori no dia seguinte. Eu estava muito feliz com a oportunidade e não queria estragar as coisas. Pensara várias vezes em entrar escondida lá, e dar um jeito de achar a tal biblioteca. Mas não queria fazer aquilo. Não queria nem um pouco. Muito embora eu soubesse que estar dentro da residência e estar dentro da biblioteca fossem coisas completamente diferentes, e eu ainda não tivesse feito nenhum grande plano para convencer a galera a me deixar entrar lá e sair abrindo todos os livros à minha vontade, eu não queria destruir a confiança que os Sohma vinham colocando em mim. Eu estava muito feliz com ela. De verdade. E, por isso, estava sendo tão cautelosa. Não queria invadir. Pesquisava por fora, e tentava deduzir o que eu pudesse sozinha, sem ajuda. Às vezes pensava que, se Shigure e Yuki não tivessem me acolhido, eu já teria entrado e visto o quisesse lá dentro, havia muito tempo. Mas também não gostava muito de pensar assim. — Yuuki! — Momiji me saudou de cima do morro que rodeava a residência. — Que pontual! Venha! Eu vou abrir o portão pra você! — Uau... — Falei. Lá dentro era enorme. Talvez fosse maior do que a Academia Cross, ou, talvez, do que a casa de Killua. Era muito impressionante! — Bem vinda à família Sohma! Venha! — Ele segurou minha mão. — Vou mostrar pra você! Momiji foi me dizendo de quem era cada uma daquelas casas à medida que andávamos. Era tudo muito tradicional. As casas, os jardins e os ornamentos, eu digo. Um lugar realmente fascinante. — Ali — ele apontou — é a casa de Hatori! Andamos bastante, né! Não é grande aqui dentro?! — É, sim! — Disse, bastante animada. — É incrível! — Venha, venha! — Ele foi andando de costas, puxando minha mão e sorrindo pra mim, todo feliz. — Hatori já está esperando você! Quando chegamos, senhor Hatori, de fato, estava esperando bem à porta. — Desculpe-me por fazê-lo esperar. — Pedi, me inclinando pra frente, como parecia ser certo fazer. — Não precisa ficar fazendo tanta cerimônia. Entre. Sente-se. Momiji, pode trazer algo para Yuuki beber? — Momiji foi e voltou trazendo uma coisa que eu não fazia ideia do que fosse, mas que não parecia ruim, então aceitei. Bom, eu ia aceitar de qualquer jeito. Mesmo se fosse graxa borbulhante. Okay, estou exagerando de novo. Momiji, então, me puxou para sentar com ele no sofá e Hatori empurrou sua cadeira com rodinhas para perto de nós, e sentou-se nela. — Yuuki, vou direto ao ponto, — senhor Hatori começou, entrelaçando os próprios dedos no ar a frente de seu peito. Fiquei feliz por encontrar alguém que pretendesse ir ao ponto direto — mesmo dentro da família Sohma, o número de pessoas que sabem o segredo dos Doze signos é bastante limitado. Uma estranha — ele sinalizou pra mim, algo que achei pouco necessário — que tivesse descoberto o segredo, teria tido sua mente apagada imediatamente. É o que sempre fazemos, e o que sempre fizemos, com todos os que estão do “lado de fora”. No entanto, Akito permitiu que suas memórias fossem mantidas, e também que vivesse com Shigure... Aí ele parou. Momiji segurou minha mão e começou a desenhar formas nela com uma esferográfica. Fiquei olhando um tempo, tentando saber se era algo importante, mas pareciam formas aleatórias, então o deixei desenhando e voltei minha atenção ao senhor Hatori. — Mas o senhor não concorda com a decisão do senhor Akito. — Sugeri. — Quer que escolha ter minha mente apagada. E quer que eu saia da família. Momiji parou de desenhar e olhou pra mim, então, mas, como eu estava encarando Hatori, não pude ver com que olhar o pequeno primo me olhara. — Exatamente. — Hatori respondeu, sem alterar em nada sua expressão. — Eu... Posso perguntar por quê? Senhor Hatori se manteve em silêncio por outro longo momento, e então se inclinou para frente, apoiando os braços nos joelhos. — Akito espera que você... Faça... Algo pra nós. Algo que não julgo que uma menina como você tenha capacidade, ou mesmo idade, suficiente pra fazer. — Embora Akito julgue que sim. — Respondi rapidamente. Eu ainda teria que descobrir o que era aquele “algo”. Mas primeiro precisava saber se Hatori sabia o que o algo era. Porque eu tinha minhas desconfianças de que não. — A família Sohma não é tão feliz quanto parece pra você, Yuuki. — Ele falou. — O que você considera ser “engraçadinho” é uma maldição. Momiji está amaldiçoado, assim como Yuki, Kyou, e Shigure. Assim como eu. Akito planeja usar você, de alguma forma. Mas eu não confio nos parâmetros que usa na escolha. Por isso, acredito que deixá-la entrar seja um erro. Acho que deveria deixar essa família, Yuuki, se não quiser se arrepender. Pensei naquilo. Akito planejava me usar, ele disse. De alguma forma. Fiquei pensando no quanto os próprios membros amaldiçoados sabiam sobre a maldição. Eu vinha pensando muito nela ultimamente. Afinal. Pra que maldição? Por que crianças tinham que nascer amaldiçoadas? Quando se dera início? Ou o que fora aquilo, antes de se tornar uma maldição? E, se não fora nada, por que motivo teria a maldição sido lançada sobre, ou adquirida por, aquela família especificamente? Eu ficava pensando muito em tudo isso. Achava que, se o aparecimento dos sangues-puros tivesse alguma coisa a ver com o surgimento da maldição, o desaparecimento deles também poderia significar... ... Bom. Imaginei se Hatori sabia as respostas para as minhas pergunta. Imaginei se Momiji sabia. Ou se Shigure sabia. Mas achei que não. — O olho esquerdo de Hatori é quase cego, Yuuki... — Momiji me falou, ainda segurando minha mão e mexendo nela. E aí começou a me contar que Hatori estivera noivo, dois anos antes, de sua assistente. Kana era o nome dela. E, ele me disse, mesmo descobrindo que Hatori era um dos Doze, ela não quis deixá-lo. Eles pretendiam se casar de verdade, fizeram planos e tudo mais, e então, quando os pormenores já estavam decididos, Hatori e Kana foram pedir a benção de Akito. Foi ali que comecei a ficar meio puta com o tal de chefe da família. Quer dizer, o senhor Hatori tinha ido lá pedir a benção dele para seu casamento. Okay. Que porra de motivo poderia ter aparecido no meio da conversa que justificasse jogar um vaso em qualquer um?! Como assim, irmão? Nada a ver! E ficava melhor ainda, porque, não só Akito deixou o senhor Hatori quase cego, como também jogou a culpa na coitada da noiva dele! Quer dizer. Como assim? Dá pra você entender? Momiji terminou a história. Pelo que me disse, a noiva do senhor Hatori entrou em depressão depois do incidente. E, óbvio, muito altruistamente, Akito sugeriu que o melhor para ela seria que senhor Hatori apagasse sua mente. Disse que ela ia querer esquecer. Óbvio. E ele obedeceu. Simples assim, deixando que Kana fosse embora, com a memória completamente em branco em relação a ele. Fiquei chocada, cara. Mas não disse nada. Claramente, Momiji, bem como senhor Hatori e todos da família, respeitava muito aquele indivíduo. Não acho nada educado sair dizendo mal de ninguém, e muito menos de alguém que a pessoa respeita. — Embora eu não entenda o pensamento de Akito, eu entendo o do Hatori, Yuuki... — Momiji continuou dizendo, ainda segurando minha mão entre as suas duas pequenas. — Ele não quer que aconteça com você o que aconteceu com a senhorita Kana. Eu também não quero... Fiquei olhando para a carinha triste dele. E, então, voltei meu olhar para Hatori. — Se o senhor me der permissão para escolher, eu pretendo manter minhas memórias. Sinto muito se fui insensível ou indelicado em relação à condição da sua família. Não foi a minha intensão em momento algum. Eu sou muito agradecido por ter conhecido o senhor e sua família, e não quero me esquecer de nenhum de vocês. Não quero me esquecer de nada. Eu não sei o que, exatamente, o senhor Akito quer de mim, mas, se houver alguma relação com quebrar a maldição, eu pretendo fazer tudo que estiver ao meu alcance. Embora... Eu não saiba o quão longo, ou curto, esse alcance possa ser... Engoli. Hatori voltou a procurar e examinar “aquilo” dentro da minha alma, através da abertura dos meus olhos. E eu esperava sinceramente que ele estivesse encontrando o que queria. — Yuuki, — Momiji puxou minha blusa para me chamar a atenção — você também gostou de ter me conhecido? Ter me conhecido também deixou você feliz? — Sou a pessoa mais feliz do mundo, principalmente, por ter conhecido Momiji! — Acrescentei, sorrindo para ele, e então voltando a olhar para Hatori. E, nesse momento, Momiji deu seu gritinho de criancinha e me abraçou, coisa que parecia estar querendo fazer desde que cheguei lá. Peguei-o como coelhinho no colo e voltei meus olhos mais uma vez para senhor Hatori. — Não apague minha mente, — pedi — por favor. — Yuukizinha! — Shigure me saudou, e foi entrando. — Senhor Shigure! — Saudei de volta. — O que faz aqui? Achei que estivesse tendo aula hoje! — Eu também achei que estivesse! — Falei, muito surpresa. — Uau, como vim parar aqui?! — Shi!!! — Momiji acenou pra ele com sua patinha tão fofinha. — Por que está aqui você?! Veio visitar o Akito?! — Não, meu sexto sentido me disse que Yuukizinha poderia estar em apuros! — Shigure respondeu, sendo bem dramático. — Vim resgatá-la! — Antes que eu me esqueça, — Hatori foi se levantando — isso é seu. Ele tinha tirado aquela câmera do dia anterior de seu bolso, de novo, e colocado no topo da minha cabeça. — Ah! — Fiquei bem feliz. — Ganhei uma câmera?! Por que ganhei uma câmera? Hatori continuou me olhando, bastante sério. — Não concordamos que eu a daria a você se viesse aqui hoje? — Ele tentou me lembrar. — Aaaah... — Pensei. Aquilo pareceu justo pra mim, então peguei a câmera e apaguei a única foto que tinha dentro dela. — Não, não foi esse o combinado. Não posso aceitá-la. E a estendi de volta. — Desculpe. — Fique com ela. — Okay! — Aceitei. Afinal... Não podia contrariá-lo duas vezes num intervalo de quinze segundos, não é mesmo? Shigure ficou lá com Hatori e Momiji resolveu me acompanhar até a escola. Mas, em vez disse, levou-me para dar uma volta e nós ficamos o resto da tarde comprando doces. Só seguimos para minha escola quando faltavam, sei lá, uns quarenta minutos para a aula acabar. — Momiji? Virei-me para ver quem era, mas percebi que Momiji não se virou também. Não imediatamente. Antes disso, fez uma cara de “oh-oh... mymistake”. Aí viramos os dois para olhar quem o havia chamado. Era uma moça. Uma moça linda. E uma garotinha. Fiquei pensando em como as duas lembravam Momiji. Será que são parentes? Me perguntei. — Momiji, o que faz aqui a essa hora? Não deveria estar na escola? Momiji coçou a própria cabeça, muito encabulado, como se tivesse sido pego com a boca na botija. — Deveria, sim... Mas chamei minha amiga para almoçar comigo e agora estou acompanhando-a até a escola dela. — Almoço, Momiji? — A moça consultou seu relógio, achando muito estranho. Olhei para ele e imaginei se eu deveria dizer alguma coisa para livrá-lo daquela situação. Mas Momiji não parecia querer mentir pra moça. Poderia, mas não mentira. Então, pensei, não ia querer que eu mentisse em seu lugar. — Sim, mas a culpa foi minha! — Ele riu, abaixando a cabeça. — Eu quis levála para comprar doces depois, e acabamos demorando. Ah, por falar nisso, que falta de educação a minha! Senhora Nakao, essa é minha amiga Yuuki. Yuuki, essa é a senhora Sohma Nakao. E aquela é Sohma Momo, a filhinha dela! — É um prazer conhecê-las. — Fiz reverência. Senhora Nakao inclinou um pouco a cabeça para mim e Momo ficou me olhando com seus olhões azuis enormes. — Terei que contar ao seu pai, Momiji... — A moça falou. Mas percebi que ela não estava dizendo que ia fazer aquilo porque queria sacanear o Momiji. Era mais como... Seu pai e eu vamos ter que conversar sobre isso para decidir qual será o seu castigo. Ela era a mãe, decidi. Mas não disse nada. Momiji assentiu e abaixou a cabeça. Abaixei a minha também. — Tenha uma boa tarde, senhora Nakao. Tenha uma boa tarde, senhorinha Momo! — Boa tarde, Momiji. Yuuki. Ela sorriu. Foi um sorriso muito bonito. Desejei a elas uma boa tarde também, e as duas entraram no prédio para o qual estavam indo antes de nos encontrar. — — Ele disse, rindo, muito envergonhado. — Meu pai vai ficar bravo por isso... — Por você ter faltado à aula, ou... — Pensei em dizer. Mas não disse. — Você percebeu? — Ele piscou algumas vezes pra mim. Pisquei pra ele algumas vezes também. — É... Que... Você se parece muito com ela. — Pisquei mais algumas vezes. Momiji pareceu muito feliz por eu ter dito aquilo. — A mamãe não me conhece. — Disse então, ainda mantendo o sorriso no rosto. Pelo que fiquei muito impressionada. Como ele consegue? Fiquei imaginando. — Ela acha que sou filho de outra pessoa. De outra mãe, eu quero dizer. — Momiji me olhou. — Não moro com ela e papai. — Akito... — Fiquei com o coração na mão. — Mandou que... Apagassem... A... — Não. — Ele sorriu outra vez. — Não, ele jamais faria uma coisa dessas. Aí, lembrando a história da senhorita Kana, eu entendi. — Eu imagino que deve ter sido muito difícil pra ela... — Momiji foi dizendo, olhando para o prédio no qual as duas tinham entrado. — Você se casa com a pessoa que ama... Tem um filhinho com ela, fruto desse amor... E, quando o abraça, pela primeira vez, ele se transforma em um animalzinho esquisito e feio... — Então ele olhou pra mim. — Fico imaginando que isso deva ser algo muito desesperador... Para uma mãe... Ela escolheu esquecer, eu quis chorar. Eu quis chorar e continuei querendo chorar. Abracei Momiji, com as lágrimas se equilibrando muito em meus olhos. Mas segurei o choro. Não queria que ele me visse chorando. — Mesmo que doa muito, — sussurrei para o coelhinho — mesmo que, de alguma forma, no futuro, algo aconteça, e eu sofra muito... Eu não vou querer esquecer vocês... Nunca... Nunca... Eu não vou esquecer vocês... Foi ali que eu decidi. Ah, e a propósito: eu olhei antes, sim, pra ver se tinha alguém passando por perto que pudesse ter visto, tá? Caramba. Sério, pelo que você me toma?! Capítulo 26 — Então! — Falei, toda animada, me puxando para cima do balcão da cozinha num impulso e me sentando lá, com perninhas de índio. — Quer começar a me dizer? Ah, ãh, o nó ficou muito apertado? Você tá com uma cara esquisita... Posso afrouxar um pouco se quiser... Satoshi estava mesmo com uma cara engraçada. Bom, eu também teria ficado em seu lugar. Mas, na minha opinião, a culpa era toda dele. Por ter achado que eu não fosse tentar conferir sua correspondência em nenhum momento, eu digo. Whatanoob. Ei, não é só porque eu acredito em e-mail com todo o meu coração que eu ache que as outras pessoas deveriam seguir a minha crença. Satoshi murmurou qualquer coisa e eu achei que talvez fosse bom deixá-lo beber um pouco de água. Eu tinha dado Rohypnol a ele, embora quisesse muito ter descoberto o que era o tal negócio que Harley dera a Jeff em Hardy Candy. Tentei ler o rótulo do frasquinho. Tentei mesmo. Mas era impossível, David Slade provavelmente fez a filmagem daquele ângulo justamente para que nós, que temos tendências fortes a usar drogas nos outros, não pudéssemos nos sentir tão tentados a procurá-la nos armários de todos os médicos que conhecêssemos, e roubá-la, para drogar o primeiro pervertido azarado que cruzasse nosso caminho. E não era como se alguém fosse escrever uma nota com o nome do negócio, por exemplo, na IMDb. Por isso, muito decepcionada, levei Rohypnol, mesmo. Foi tão frustrante... Eu poderia ter reproduzido tão bem aquela cena! — Oh, não, leve o tempo que quiser! — Falei pra ele, apesar de não fazer a menor ideia de o que tinha murmurado depois. — Eu espero. Sentei-me de novo no balcão. Satoshi vinha trocando correspondências com Touma, que, caso você não se lembre, era um sangue-puro. Pelo jeito, Satoshi resolvera, mesmo, fazer fofoca sobre mim. Tivemos uma conversa muito construtiva, nós dois. Foi um longo dia. Mas descobri coisas muito legais, e, também, confirmei minha teoria de que puros-sangues não podiam entrar no Japão. No entanto, pelo o que eu entendi, Aeroporto Internacional era considerado território livre. Fiz uma nota mental daquilo pra mais tarde. — Bem, o que faremos agora? Quer dizer, eu poderia te soltar, mas não gosto de pensar na ideia de que você poderia avisar o senhor Touma. Vai que ele tem um plano B e um outro capanga escondidos debaixo da manga! Ei, ele tem algum outro capanga, além de você? Satoshi sorriu. Ele me adorava. — Vai que tem... — Me disse. O que não foi muito esclarecedor. — Assim você não me ajuda. — Tentei explicar a ele. Mas Satoshi era um perdedor difícil. Acabamos decidindo que seria melhor pra mim se eu não o soltasse. Bom, tudo bem. Eu decidi, e Satoshi limitou-se a fingir que, independentemente do que fizesse, eu estaria agindo exatamente de acordo com o que ele esperava de mim. Muito esperto da parte dele. — Bom, então vou indo. — Falei, pulando do balcão. — Volto amanhã pra cuidar de você. Precisa de alguma coisa antes de eu ir? — Sim, querida, — ele me deu um enorme sorriso — de um beijo de despedida. — É, irmão. — Coloquei minha mochila nas costas. — Aí complica. E fui embora. Capítulo 26 “Mas você acha que qualquer uma serve?”, perguntei a Killua. “Acho que talvez tenhamos que encontrar uma específica. Ou uma mais poderosa, pelo menos.” Como Killua não conseguia parar loggado em nenhum jogo, criei um Client de VPN e mandei pra ele. E fiquei impressionada por ele ter conseguido baixá-lo em apenas oito horas. Sibéria maldita. Client de VPN, ou Client de Criptografia, é um programa que, por exemplo, permite que duas pessoas conversem e, mesmo que a conversa fosse interceptada, a não ser que a pessoa que interceptou tenha as chaves de criptografia, ou as descubra na base de ficar-tentando-até-dar, ela não poderia ser codificada. A Associação de Caçadores tinha um negócio assim, não sei se já falei. Se meu pai não tivesse me mandado o Token e o Client, seria bem mais difícil ficar entrando no banco de dados de lá. Mas enfim. Killua tinha descoberto algo bem legal lá na maldita Sibéria! Ele descobriu alguns relatos antigos que falavam sobre as primeiras experiências feitas com armas antivampiros e humanos. Nos registros havia um caso em que uma arma fora colocada no corpo de uma criança e ela morrera instantaneamente. Após a morte dela, foi descoberto que a arma fora feita a partir de uma alma vampírica. Aquilo virou um tabu e, desde lá, ninguém voltou a experimentar colocar armas criadas por vampiros dentro de crianças humanas. Killua me contou isso e nós ficamos pensando a respeito. Muitas crianças morriam quando tinham seus corpos unidos a armas, aquilo era totalmente normal. Ficamos pensando por que aquele caso fora destacado. A arma ter origem vampírica não devia ser o fator determinante para que a menina tivesse morrido. Afinal, eu estava viva. É claro, eu ter sobrevivido poderia vir simplesmente do fato de ter nascido uma vampira. Não havia exatamente uma maneira de confirmar isso. Killua não encontrou nenhum outro caso como aquele, e, embora essa negligência quanto a ignorância fosse uma discrepância, se pensássemos que o que estava sendo feito ali, naquele tempo, fosse, justamente, para clarear os pontos cegos do método, tivemos que levar em consideração que não fazia, mesmo, muito sentido usar um objeto vampírico para impedir que uma pessoa se transformasse. Para bem ou para mal, como eu acabei de dizer, a coisa virou tabu, e não havia nada que pudéssemos fazer quanto a isso. Mas ficamos imaginando. Se a menina tivesse tido uma morte semelhante às das outras crianças que morriam ao terem seus corpos rejeitados pelas armas, ninguém teria se dado ao trabalho de investigar o acontecimento a fundo, e, dessa forma, não teria sido descoberto que tipo de arma fora aquela. Então pensamos. Talvez a menina já tivesse uma arma dentro dela. Uma arma com alma de caçador. Nós achávamos que a menina poderia ter morrido, não por rejeição, mas, sim, por alguma espécie de conflito entre as duas almas dentro dela. Sim, eu sei, Killua e eu tomávamos umas linhas de pensamento muito loucas quando pensávamos juntos. Mas ele falara com seu pai, e também com o avô, e ambos concordaram que aquela parecia ser uma hipótese muito válida. Então continuamos trabalhando nela. O que teria acontecido se a menina fosse forte o bastante para resistir ao conflito? As armas alcançariam a harmonia com ela e uma com a outra? Achávamos que não. Achávamos que uma delas acabaria destruindo a outra, ou subjugando-a de alguma maneira. Por isso estávamos discutindo. “Bom, uma mais poderosa, com certeza, tem que ser.” Ele concordou comigo. “Não quero nem imaginar o que aconteceria com você se seu tio destruísse a arma que colocássemos para destruí-lo. Mas o que você quer dizer com ‘específica’?” “Então,” comecei a dizer, “eu não tenho certeza ainda.”. “Tem a ver aquele ‘assunto’ sobre o qual você não pode falar comigo?”, Killua sugeriu. Eu tinha explicado a ele que jurara não falar sobre certo “assunto”. Porque, afinal, eu prometera a Shigure que não diria nada a ninguém sobre o segredo dos Sohma, não é mesmo? E Killua era tranquilo nesse negócio. A família dele também era toda cheia de segredos que ele não podia me contar. “Pois é.” Falei. Eu vinha sondando Shigure com mais frequência naqueles últimos dias. Ele não me dizia nada muito importante, apenas o suficiente para me instigar. Eu tinha certeza de que ele sabia o que eu queria que me dissesse, mas Shigure era tão bom em manipulação quanto... Quanto... Bom. Quanto certas pessoas com as quais eu estava acostumada a lidar. Eu via que ele estava me fazendo dançar, mas tinha esperança de que, se continuasse dançando como deveria, acabaria conquistando confiança suficiente para conseguir umas migalhas. E, como a gente sabe, seguir migalhas às vezes nos leva ao bolo. E, outras vezes, nos leva ao prato sujo. Anyway. Shigure acabou chegando, mesmo, à conclusão de que eu merecia sua confiança, e não foi nem começando a me dar migalhas, ele derrubou o bolo todo bem na minha frente. Shigure era escritor, não me lembro de ter mencionado. Bem, não importa. O que importa é que ele me deu pra ler uma pilha enorme de livros que tinha escrito. Eram todos de poemas históricos e não demorei muito para perceber que Shigure, na verdade, fizera uma epopeia gigantesca, ou seja lá como se chama esse tipo de leitura, baseada na história da própria família, e, comparando alguns trechos de seus contos com fatos reais, encontrados em livros normais que era possível comprar ou encomendar em qualquer livraria comum, cheguei a o que eu acreditava ser a real sequência de acontecimentos que trouxeram a família Sohma da China até o Japão. Vou resumir. Na época em que houvera a guerra entre os vampiros de sangue puro, o rei da China, cujo nome não nos interessa, e, por isso, eu não lembro, incumbiu seu Conselho de Monges de arranjar uma forma de defender o povo da calamidade na qual aquela guerra estava se transformando. O Conselho era formado por trinta e um monges shaolin. Bom. Os monges tomaram a decisão de forjar uma espada capaz de acabar com a suposta fonte do mal, ou seja, os vampiros sangues-puros, que eles haviam descoberto serem os únicos capazes de gerar outros vampiros. Então, doze monges foram escolhidos para guardar a espada e encontrar aquele que seria o homem capaz de manejá-la, e os outros dezenove concentraram suas almas, a tal ponto, que a carne se tornara trivial, e eles puderam transferi-las para o metal. Cada um dos Doze Monges restantes concentrou sua alma também, e cada um deles alcançou todas as virtudes de um dos Doze sábios animais do zodíaco chinês. Todos chegaram a um nível de comunhão tão forte com aqueles animais que, como diziam os contos, tornaram-se capazes de manipular os próprios corpos para se transformarem neles. E aí, uma vez que estavam prontos Os Doze Monges e a arma, a busca pelo guerreiro começou. Os livros de Shigure relatam a saga minuciosamente, mas vou apenas contar o básico: eles testaram um monte de candidatos e nenhum valeu o esforço. Só depois de treze anos, um guerreiro passou em todos os testes e recebeu a honra de poder fazer o treinamento no monastério e alcançar o espírito do gato, que, apesar de não ser um dos Doze oficiais no zodíaco chinês, fazia parte do grupo de animais sábios em outras culturas, e, portanto, foi considerado uma consciência importante. O guerreiro, então, se tornou um Monge e rapidamente alcançou o mesmo patamar dos Doze. Os treze treinaram um exército e, com o Gato portando a espada dos dezenove monges à frente, expulsaram os vampiros do país. Certo, um mar de rosas até aí. Mas, depois disso, os treze monges passaram a ser adorados como deuses. O que deixou o rei bastante puto com a vida, porque, afinal, era ele que mandava na parada e não queria compartilhar sua suposta, e muito duvidosa, divindade com mais ninguém. Então, muito marotamente, ordenou que sua única filha seduzisse o poderoso guerreiro. Ela obedeceu e tentou o gato, mas o gato a recusou, pois jurara viver em castidade para o resto de seus dias. A princesa, porém, insistiu e o tentou de novo. E de novo, e de novo, e de novo. Ela tentou o gato treze vezes, e ele a recusou em doze. No entanto, na décima terceira... Já sabe, né? Por tê-la violado, o rei amaldiçoou o guerreiro, os outros doze monges, e, inclusive, a própria filha. O que, pra mim, não fez o menor sentido, até eu ler num outro lugar que, na China, era uma vergonha para um rei que seu único herdeiro fosse uma mulher. Mas enfim. A maldição que recaiu sobre os monges tinha qualquer relação com o contato com o sexo oposto, acho que com o objetivo de estimularem-nos a levar mais a sério o negócio todo de manter a castidade. E também proibia que se afastassem da princesa, ou que a desobedecessem. Além de amaldiçoá-los, o rei expulsou todos também, e proibiu qualquer um deles, e qualquer pessoa que tivesse o mesmo sangue, caso houvesse outros, hum, deslizes, de voltar pra lá. E, assim, os Monges perderam o controle de seus signos e foram acorrentados à menina, a qual, como parte da maldição, foi acometida com uma enfermidade incurável. Ela, a princesa, eu digo, deve ter ficado, sei lá, um pouco indignada com aquela história de ter sobrado maldição para o lado dela também, porque roubou a Espada do mosteiro e levou-a para o exílio. Enfim. Para protegê-la, e tentar encontrar a cura para sua enfermidade, os Monges a acompanharam até o Japão, mas a princesa morreu logo depois de dar a luz a uma menina, que nasceu doente e foi protegida pelos treze Monges, até que também morreu, dando a luz a sua filha. E assim por diante. Todas as descendentes da princesa nasceram meninas doentes e deram à luz meninas doentes. Os monges amaldiçoados romperam seus votos de castidade, não sei bem como (deve dar pra fazer sem ter que abraçar... não sei!), e formaram um clã. O nome do clã não foi Sohma desde o princípio, mas eu só consegui lê-lo quando ele já tinha sido comprimido a Souma, e, depois, a Sohma. O rei idiota que amaldiçoou os monges e a princesa sofreu um golpe de estado e foi morto, sem conseguir deixar outros herdeiros, e seu reino foi usurpado por um mané qualquer lá, sobre quem eu não me interessei em saber muito mais. Em resumo, e, quando digo isso, quero dizer bem resumidamente, mesmo, essa é a história da família Sohma. Muito legal, né? Eles protegeram o Japão e as descendentes da princesa até a minha geração, sem admitir que vampiros de puro sangue entrassem no país. Minha presença ali, então, fiquei pensando, violava algo que eu não podia nem imaginar. E eu não sabia exatamente o que eles queriam que eu fizesse. Só sabia que eu talvez fosse precisar daquela espada. Ah, e, bem, só pra esclarecer, os livros de história que comprei não diziam muito além de ter havido certa “pandemia” na época, e que os “monges do rei”, aos quais foi confiada a tarefa de “se livrar da praga”, tiveram que “meditar e rezar” muito e por muitos anos até que a população, “naturalmente”, adquirisse “imunidade” contra a doença. E, claro, a parte do “meditar e rezar” veio num quadradinho de curiosidades e foi colocada lá precisamente entre aspas para dar um Q de sarcasmo divertido à nota. Em alguns também encontrei que eles haviam sido expulsos por terem se autointitulado deuses, mas nada muito a mais. “Você não está pensando em roubar um museu, está?” Killua me perguntou então. “Não, não, que roubar um museu, garoto, tá louco?!”, fiquei rindo. “Porque, se estiver, espera eu chegar aí, porque você não vai fazer isso direito sozinha!”. “Você vem?!”, perguntei, toda animada. “Você vem? Você vem?! Quando você vem?!!!” “Não, por enquanto.”, ele respondeu. “Broxei...”, falei. “NOJO”, ele respondeu em seguida. “Quando vem?”, perguntei de novo. “Quero tentar confirmar algumas coisas primeiro.”, “Você sabe que nada nos garante que o que vai acontecer com você será diferente do que aconteceu àquela menina, não sabe?”, “Mesmo se nós encontrarmos sua arma ‘especifica’, nada garante que você vá sobreviver se a colocarmos em você.”, “E você é velha.”. “Valeu pelo ‘velha’,”, fui escrevendo, “e pela confiança.”. “Você sabe o que eu quis dizer.”. “Certo.”, coloquei. “Bem, que outras opções eu tenho?”. Ele pensou. “Quero que meu pai e meu avô façam.”, disse. “A fusão, eu quis dizer. Se formos mesmo fazer, terão que ser eles dois.”. “Por mim, se você acha que tudo bem pedir pra eles, tudo bem, também.”, respondi. “Eles vão fazer,”, Killua me tranquilizou, “confie em mim.”. “Eu confio, já disse isso a você.”. “Você vai dar um jeito de conseguir a arma ‘especifica’ agora, não vai?”, me perguntou. “Como vai fazer? Vai me esperar? Me espere.” “Na verdade,”, pensei, “algo me diz que estou para ganhá-la.”. “Como assim?”, ele quis saber. “Não se preocupe. Vou dar um jeito.”. “Ah, claro. Vai dar um jeito.”, e aí colocou uma daquelas carinhas “¬¬”. Achei o máximo. Killua nunca fazia carinhas de bate papo, só eu. Fiquei rindo. Achei o máximo. “Preocupado em perder a aposta?”, provoquei. “Claro, minha maior preocupação.”. “Você é lindo!”, ri de novo. “Tenho que ir, minha aula acabou.”. E coloquei: “E não fique se preocupando, eu sei me virar.”. Aí fechei meu computador e fui atrás das outras meninas da minha sala. Capítulo 27 Yuki e eu estávamos cuidando da plantaçãozinha dele. Eu achava muito divertido mexer na terra, não sabia por que nunca tinha pensado em fazer aquilo antes. — Quando acha que elas vão começar a dar moranguinhos?! — Perguntei a ele. Yuki comprara mudinhas de morangueiras, e eu fiquei toda feliz, afinal, ele me dissera que as tinha comprado porque imaginara que eu fosse gostar. Não é de ficar toda feliz?! — Acho que, se nós cuidarmos direito delas, já no próximo inverno. — Ele sorriu pra mim. — Kya! — Bati minhas mãos, que nem uma retardada. — Morangos, morangos! Quero logo inverno! Ele ficou sorrindo pra mim, como se eu fosse uma criancinha a quem dera um cachorrinho de aniversário. O que me fez pensar em meu irmão. O que me fez querer não ter pensado em meu irmão. E aí o estômago de Yuki roncou tão alto que eu ouvi. Olhei pra ele. — Me desculpe. — Pediu, e apertou os olhos e os lábios, sem graça. — Não, relaxa. — Me levantei. — Eu vou indo pra casa fazer almoço então, a não ser que você precise de mais alguma coisa... — Não... Aqui já está praticamente tudo terminado. Mas, se você quiser esperar um pouquinho, eu vou com você, e te ajudo... — Não, imagine! — Balancei a mão pra ele. — Eu estou ficando boa nesse negócio de almoço, deixa comigo! E estava mesmo! Tohru era uma ótima professora, e eu a monopolizava em todas as nossas aulas de culinária em educação doméstica. Por isso, fui pra casa, pensando em qual das minhas novas habilidades gastronômicas usar. E, aí, encontrei um quimono no chão. — Hm...? — Levantei o quimono. E dei um berro. Levei um tombo sensacional quando, de lá, saiu uma cobra. Eu não teria berrado, mas se uma cobra te ataca e se enrola na sua canela, a primeira coisa que você pensa não é “ah, deve ser dos Doze Signos Chineses!”. Mas, como ela não me picou, percebi logo. — Yuuki! — Yuki veio correndo até mim. — Está tudo bem?! — Mmm... — Tentei segurar a cobra. Eu não tinha certeza de o que, exatamente, ela estava fazendo, mas parecia querer realmente ficar se enrolando em mim. — Yuuki... O que... Ãh...? Olhei pra ele. Yuki estava com seus olhos fixos na cobra enrolada agora em meu pulso. Parecia surpreso. — Não é, hum, da sua família...? — Perguntei, prestes a começar a chacoalhar meu braço com toda a violência e a gritar como uma garotinha. Ele não respondeu à minha pergunta, apenas puxou a cobra das minhas mãos e foi andando pra casa, todo duro. Fui atrás, sem entender muito. Aí me lembrei de recolher o quimono no chão. E voltei a seguir Yuki. — Vamos arrancar a pele dele e jogá-lo numa fogueira. — Yuki disse a Shigure, daquele jeito maligno que usava para falar com o primo sobre Kyou, praticamente esfregando a cobra no nariz dele. — Ayame...? — Shigure franziu o cenho, empurrando os óculos para a ponte do nariz. — Vamos arrancar a pele dele e jogá-lo numa fogueira. — Yuki repetiu. Shigure o acalmou e levou a cobra para seu escritório, onde a deixou dormindo. — Você... Tá legal? — Perguntei a Yuki, quando ele veio se sentar à mesa comigo. Yuki assentiu com a cabeça, mas não parecia estar sendo lá muito sincero. — O que aquele maluco tá fazendo aqui, afinal? — Kyou perguntou. Ele tinha vindo ver qual era a crise. — Foi o Shigure que chamou? Yuki olhou para Shigure muito malignamente. — Não, eu? Pff, claro que não! Por que eu faria isso? — Shigure ficou lá fazendo a careta que a gente faz quando está mentindo, mas, na realidade, não se importa muito em deixar que as pessoas saibam disso. — Me diga, — Yuki sorriu pra ele — por que você faria? Ouvimos aquela explosão familiar e muita fumaça veio lá do escritório. — Claramente...!!! — Soou uma voz lá de dentro. — Porque eu estava à beira da morte!!! Um homem empurrou a porta para o lado e eu quase soltei um assovio. Mas achei que seria pouco elegante fazer algo assim. Ayame era a versão adulta de Yuki. — Por que outro motivo eu cometeria a indelicadeza de me enroscar às canelas de uma dama?! Olá, todo mundo, e Yuki!!! Como está, meu pequeno irmão?! — Aaah... — Falei. Tudo esclarecido. — Eu quero saber por que está aqui, — Yuki olhou para ele de esguelha — não por que resolveu assediar a senhorita Saeyuri bem na minha frente. Isso você pode deixar pra explicar para os policiais que vêm prender você. Pisquei algumas vezes e tentei descobrir por que razão ele tinha se referido a mim como “senhorita Saeyuri”. — O que foi que ele fez com você?! — Kyou virou sua cabeça laranja pra mim, com toda a sua força. — Nada. — Pisquei de novo. — Ah! Kyonkichi! Você também está aqui! — Ayame o notou, bastante surpreso. — Não me chama desse jeito!!! — Kyou se levantou, gritando. — Que merda você veio fazer aqui, afinal?!! — Shigure! Há quanto tempo não o vejo! — Ayame ergueu sua mão para Shigure. — NÃOMEIGNORA!!! — Kyou continuou gritando. — Há quanto tempo não vejo você, Ayame! — Shigure o saudou da mesma forma. Fiquei achando a cena engraçada. Até os dois começarem a dizer coisas bem sugestivas e homossexuais um para o outro. Aí fiquei achando a cena estranha. — A propósito! Você veio conhecer a Yuuki, não é mesmo?! — Shigure o foi lembrando. — Yuuki, esse é Sohma Ayame! — Hey! — Acenei pra ele, com um sorriso um pouco forçado. — É um prazer, ah, hum... Sou Yuuki... Mas você já sabe disse... Há-há-há. — O prazer é todo meu, Yuuki... — Ele fez uma reverência toda exagerada, jogando uma mão para o lado, como eu havia feito no festival escolar para Yuki vestido de princesa. — Sou Ayame, o irmão mais velho de Yuki. — Ah, certo! O senhor é... — Eu não sabia o que dizer. — Uma pessoa com um cabelo muito grande... Bonito! Eu quis dizer bonito! Me senti muito idiota. Ayame olhou para mim, impressionado. E abriu um enorme sorriso. — Os boatos que ouvi são todos verdadeiros!!! — Disse. — Yuuki, você é mesmo com uma princesa! Uma flor rara atolada nessa casa cheia de sujeira e homens fedorentos! Posso levá-la para minha casa comigo?! Você se sentiria muito mais confortável lá, eu garanto! — Yuuki não está disponível para locação. — Shigure explicou a ele, tirando sua mão de dentro do próprio quimono por um momento. — E nós não a estamos emprestando também. — Sorriu. — Você. Pare de chamá-la pelo primeiro nome. — Yuki rosnou para o irmão, enquanto Kyou gritava “o que quer dizer com ‘locação’?!!” para Shigure. Estava voltando a ficar engraçado. Mas eu ainda me sentia muito idiota. — Claro, claro. Yuuki, — Ayame sentou-se à mesa na minha frente — quero uma xicara de chá, traga-me uma. Eu me levantei para pegar e Yuki e Kyou se levantaram para gritar com Ayame que ele deveria me tratar com mais respeito, enquanto esse ainda me perguntava a que horas o almoço ficaria pronto. — Como vocês são estressados... — Ele comentou. — Tudo bem, eu entendi! Yuuki... Aí pegou minha mão e saiu me puxando. — Venha, vou levá-la para almoçar! — Mas hein? — Eu quis saber. Kyou e Yuki pareceram prontos para pular em cima de Ayame e socá-lo até a morte, mas, de alguma forma, Shigure os impediu. Não sei como foi, porque acabei não ficando pra ver. Ayame me levou a sua pastelaria (de crepes) preferida e foi me contando histórias muito divertidas de como ele conseguira convencer seus professores a deixá-lo ter seu cabelo grande desde a época do ensino fundamental até o fim do colegial. Ele inventava muitas histórias marotas que esclarecessem a perda que seria para o mundo se seu magnifico cabelo fosse tocado. Eu ria muito. Mas ficava me perguntando por que não me contava histórias sobre Yuki. Não que estivesse esperando que o fizesse, eu só achei que... Ayame fosse o tipo de pessoa que... Gosta de contar... Coisas vergonhosas sobre o irmãozinho mais novo... Tá, cala a boca. — Peça o que quiser! — Ayame me disse. — É totalmente por minha conta! — Não! — Balancei minhas mãos pra ele. — Não, não, não, não! Está tudo bem, pode deixar que eu pago! Ayame olhou pra mim como se fosse debater o tópico, mas, em vez disso, levantou meu queixo e aproximou seu rosto demais do meu. Quase tive um infarto. Já falei que Ayame parecia uma versão mais velha de Yuki? — Está recusando um presente meu? — Ele me perguntou, muito sério. — Não, de forma alguma! — Sorri, com meu rosto esquentando muito. — Ótimo! — Disse, e sorriu de volta, então pediu dois crepes de quatro queijos para nós. — É o melhor! Fiquei dedilhando a bancada. Eu não sabia muito bem o que ele podia querer comigo. Decidi continuar esperando, então. — Fico muito feliz que Yuki tenha arranjado uma namora lindinha como você. — Ele me disse, apoiando seu rosto na mão e o braço na bancada para ficar me admirando. — Eu estava bastante preocupado que ele fosse ficar deprimido depois de ter encontrado Akito na escola. Foi, na verdade, por isso que vim vê-lo, — ele riu — não foi bem pra ver você, há-há-há! Apesar de você ser uma gracinha! Ah, bem, isso. Akito tinha vindo à nossa escola outro dia. Foi logo depois de o senhor Shigure ter me deixado saber sobre a história família, e fiquei com a estranha impressão de que Akito havia vindo dar uma “última checada” em mim. Eu sabia lá por que. Foi um encontro muito constrangedor, em diversos aspectos. Primeiro, assim que olhei pra “ele”, percebi que era uma mulher. Embora fosse uma mulher bastante... Bem. Eu sempre tivera a impressão de que devia ser um homem... Enfim. Akito não parecia muito mais velho do que eu. Eu achara que devia ter, sei lá, dezessete anos, dezenove no máximo. — É um prazer... Conhecer... — Me curvei pra ele quando Akito se aproximou de mim, sem saber exatamente como devia trata-lo. Akito se inclinou pra mim também, não para me cumprimentar, mas porque era bem mais alto do que eu e estava tentando ver meu rosto. — Como você é educada! — Me disse, sorrindo. Ele parecia muito com Yuki também. Até o cabelo era cortado para ser parecido, embora a cor fosse diferente. — E bonitinha! Me disseram que era bonitinha, mas não achei que fosse tanto! — Ah... Não... Eu não sou... Ah... — Que gracinha, você ficou vermelha! — Ele continuou falando. — Eu a vi de longe noutro dia, quando veio à residência, mas fiquei com vergonha de ir dizer olá. Me desculpe. E aí riu. Então é assim, eu me disse, olhando para ele. E resolvi continuar fazendo aquele papel. — Não, por favor, não se desculpe! Akito ficou me olhando e sorrindo pra mim. — Como sou bobo. — Disse, e então fiquei sabendo como ele preferia ser tratado. — Certo, vou me apresentar agora, há-há-há. Sou Sohma Akito, chefe da família Sohma. É um prazer conhecê-la, senhorita Saeyuri. — Não, não, é um prazer meu conhecê-lo! — Curvei-me de novo. — Akito! Yuki havia vindo. E olhava para Akito muito espantado, e, também, um pouco irritado. Oh-oh, pensei. — Yuki! — Akito sorriu pra ele, passando por mim e indo em sua direção. — Que saudades! Há tanto tempo que você não vem me ver! — O que faz aqui?! O que disse a Yuuki?! — Yuki perguntou, agora realmente meio louco da vida. — Nada. — Akito voltou-se para mim. — Estávamos apenas nos apresentando. Não estávamos nós apresentando, senhorita Saeyuri? Assenti, e então voltei meus olhos para Yuki. Qual é o problema? Tentei perguntar a ele com minha telepatia. Mas Yuki parecia realmente perturbado. E ficou ainda mais quando Akito inclinou-se para ele e sussurrou qualquer coisa em seu ouvido, tocando seu rosto com os dedos muito brancos e longos. Fui até lá. — Sinto muito, senhor Akito. — Sorri para ele, segurando o braço de Yuki. — Yuki veio me buscar porque temos uma reunião agora com o corpo estudantil. Vai ser um pouco feio se nos atrasarmos. — É mesmo? — Akito me olhou, com o mesmo sorriso com o qual estava dizendo o que quer fosse que estivesse dizendo a Yuki momentos antes. Até eu fiquei um pouco assustada debaixo daquele olhar. — Não sabia que Yuki fazia parte do corpo estudantil. — Eu também não sabia que eu fazia. — Abri os braços, muito humilde, mentindo feito louca. — Mas essas coisas acontecem antes mesmo que a gente perceba! — Se é assim, — ele disse, muito calmo, voltando os olhos para Yuki — deveriam ir, não quero que se atrasem por minha causa. — O senhor é muito compreensivo. — Cumprimentei-o mais uma vez. — Foi um prazer conhecê-lo, senhor. Akito, então, inclinou a cabeça pra mim e nos deu as costas. E eu saí puxando Yuki para o outro lado. Quando entramos num corredor vazio do nosso prédio, ele me deu um puxão com força. E me abraçou. Foi a primeira vez que me abraçou de propósito. — Não somos namorados... Há-há... — Tentei explicar a Ayame. Mas ele não me deu nenhuma atenção e continuou falando. Pelo que me disse, Yuki e ele eram pouco próximos, porque, além da diferença de idade, Yuki fora uma criança doente, e sempre ficava isolado dos outros. Mas, logo depois, me confessou que dizia aquilo a todos, mas que a verdade era que ele nunca se preocupara nada com a existência do irmão quando era mais jovem. Que via o drama de Yuki com Akito, que o maltratava muito, como um espectador passivo, e não achava que tinha que fazer nada a respeito. — Achei que, — Ayame apoiou os dedos em sua têmpora, dando um sorriso triste muito parecido ao do irmão — se conseguisse consolá-lo dessa vez, eu poderia aproximar-me de novo dele. Acho que fui um pouco egoísta... E simplista, e infantil... Pensando dessa forma... E, agora, — ele riu — fico me sentindo assim, por ter pensado em me aproveitar da dor dele para poder me reconciliar com a minha consciência. Você deve me achar uma pessoa muito ruim. Fiquei pensando. — Eu acho — inclinei minha cabeça, ainda pensando — que... Depois de tantos anos, reconhecer que você fez algo errado, e se mover para consertar esse erro, são coisas muito maduras. Acho que, se o desejo de se aproximar dele “apareceu” depois de tanto tempo, você nunca deve ter sido tão indiferente a ele quanto diz. — Olhei-o. — Só não tinha a maturidade suficiente para lidar com a situação naquela época, e, a partir do momento em que você a adquiriu, é perfeitamente possível que os dois fiquem próximos de novo. Tudo fica diferente se você admite que errou. Estava pensando de novo em meus irmãos. Pensei em como eu poderia fazer as coisas voltarem ao que eram. E me senti muito boba por ter pensado naquilo. Então notei que Ayame estava me olhando. E aí percebi que não tinha discordado dele quanto a tudo que dissera sobre ser “egoísta, simplista e infantil”, e fiquei lá, me arrependendo mais uma vez por não ter deixado minha boca fechada quando tive a chance. Engoli. E continuei olhando, esperando que não interpretasse minhas palavras daquela forma. Seu sorriso mudou, e ele me olhou como Yuki fizera àquela manhã quando eu ficara animada por causa dos morangos. Fiquei muito aliviada. — Yuki tem muita sorte por ter uma namorada linda como você. — Ele me disse. E eu voltei a ficar superquente e a dedilhar o balcão. — Há-há-há! — Fiquei rindo. — Yuki não é meu namorado, há-há-há-há-há! E continuei rindo. Ayame me levou de volta pra casa. Ele ficou três dias, e só foi embora quando Yuki aceitou visitar a sua loja. ... — Oh... Então era isso... — Pisquei várias vezes. Eu tinha me oferecido para acompanhá-lo à loja de seu irmão, já que ele não parecia muito confortável em aparecer lá sozinho. Como Ayame estendera seu convite a mim, não achei que fosse ter problema. A propósito, ele havia nos dito que vendia “romances”... Como no mundo Yuki e eu poderíamos adivinhar que “romances” significavam aquilo...? — Yuuki, foi um erro termos vindo, talvez seja melhor irmos embora agora! — Ele foi falando, muito, muito envergonhado. — Okay! — Falei, tão envergonhada quanto ele. Era uma loja que vendia fantasias... Eróticas... Para moças... Ou talvez para moços que gostariam de ter nascido moças... Tentamos escapar, mas fomos capturados. Kuramae Mine, a ajudante de Ayame, nos avistou e nos arrastou para dentro. Você não imaginaria que uma moça tão delicada, vestida com uniforme de empregada, poderia ter tanta força... Quando chegamos lá, Ayame mal nos cumprimentou e já começou a encher nossos ouvidos com coisas que, sinceramente, nem Yuki, nem eu, queríamos saber. Não vou dizer a você o que ele disse... Não foi legal... E aí teve uma hora que Mine e Ayame começaram a discutir o tópico “que vestido ficaria melhor na Yuuki”. Comigo ali. Ouvindo tudo. — Podemos correr no três? — Yuki sugeriu. — Podemos correr agora? — Pedi, mas já era tarde. Uma vez que ela e o senhor Ayame tinham concordado que eu ficaria muito melhor com “aquilo”, não restavam mais esperanças para mim. Mine agarrou meu braço e me arrastou para o vestiário. — O que é “aquilo”?!!! — Yuki exigiu que dissessem a ele, e foi a última vez que ouvi sua voz antes de ser trancada no vestiário com uma Mine compulsiva. — Pron-ti-nho! — Mine me soltou, sorrindo muito. Hesitei, temendo o que ela faria a seguir. — Fique tranquila! Eu não vou morder você! — Ela me tranquilizou. Admito que foi um grande alívio ouvir aquilo... E então Mine olhou pela fechadura da porta. — Veja, Yuuki, veja! Ela puxou minha mão e deixou que eu olhasse pela fechadura também. — Agora eles poderão conversar um pouco sozinhos! — Disse pra mim, toda feliz. Aaaaah, pensei, sorrindo. Vi Ayame puxar Yuki para se sentar com ele num sofá de veludo no vestíbulo, e então me levantei. — Mas não vamos ficar aqui ouvindo a conversa deles, vamos? — Perguntei, olhando para ela. — Não vamos, não! — Ela disse, segurando meu pulso. — Vamos experimentar roupas em você! — Que?! Vamos?! Achei que fosse só uma desculpa!!! Tenho mesmo que experimentar “aquilo”? — Tem, sim! E tive mesmo. Infelizmente, não havia nenhum “aquilo” muito específico e Mine me obrigou a experimentar cento e cinquenta e sete fantasias diferentes. Mas, felizmente, descobri que lá eles não vendiam apenas fantasias eróticas, e as roupas que tive que vestir eram perfeitamente decentes. — Certo! É essa! Vamos, vamos! Vamos lá mostrar aos dois! — O que?! O que, como assim?! Mostrar o que?! Não vou sair daqui desse jeito, me deixa trocar de roupa primeiro! Mas aquela não era bem uma opção que eu tinha, e a senhorita Mine me arrastou até o lado de fora do vestiário de volta. — Excelente! — Ayame se levantou, batendo as palmas das mãos. — Você tinha toda a razão, Mine! Yuuki fica bem melhor vestida como uma criancinha! Combinou perfeitamente com ela! — Sim, sim! Quando olho pra ela assim penso em... Ursinhos de pelúcia, xicaras de chá de maçã, cobertores, algodão doce, poemas, e... Mine continuou dizendo um monte de besteiras e eu continuei querendo voltar correndo para o vestiário para tirar aquilo. Mal tive coragem de olhar para Yuki. Mine me forçou, ainda por cima, a sentar-me ao lado dele, e, então, ela e Ayame foram ver sei lá o que atrás da loja. Yuki ficou olhando pra mim. Dei algumas olhadas pra ele também, de vez em quando, esperando que ele também estivesse envergonhado. Mas não estava mais. Era só eu. — Obrigado por ter vindo até aqui comigo, Yuuki. — Ele disse. — E obrigado pelo que disse a ele, o que quer que tenha sido. — Ahm... Hm, é. Eu. É. Não. Hm. Ahm. Sem problemas... — Fiquei dizendo, olhando para minhas mãos. Eu queria minhas luvas de volta. E o resto de minhas roupas também. — Você está, mesmo, muito bonitinha... Espiei-o pelos cantos dos olhos. Yuki não estava me zoando. Estava me olhando com aquele sorriso lá. — Não diz isso... — Pedi, puxando minhas pernas e enterrando meu rosto em todo aquele tecido da saia do vestido. — Não se esconda... — Ele pediu, então, vindo colocar algumas mexas do meu cabelo atrás da minha orelha. — Você viu, Mine?! Yuki quis, nesse exato momento! Você pegou tudo?! Está tudo gravado?!! — Tudo gravado, senhor! — Mine falou. Ela estava com filmadora apontada pra mim. E eu preferiria se aquela máquina atirasse projéteis de chumbo... Yuki ficou muito bravo e se levantou para brigar com o irmão, que pegara a câmera e começara a ver e rever a gravação. Ayame, depois de perder para Yuki, pegou seu telefone e ligou para Hatori, e aí começou a contar a história de um jeito completamente diferente, como se Yuki e eu tivéssemos tido um encontro romântico e coisas do gênero. E eu fiquei lá, seguindo Yuki com meus olhos por cima dos joelhos, imaginando por que, por um momento, eu tinha pensado em beijá-lo. Capítulo 28 Eu tinha acabado de sair da casa de Satoshi. Já o havia soltado fazia bastante tempo, desde que Kaname assassinara Touma, o sangue-puro com quem Satoshi mantivera contato sobre mim, e nós estávamos lidando um com o outro muito naturalmente bem desde então. É claro que eu sabia que Satoshi agiria de novo quando ficasse entediado, mas eu me sentiria mal se o mantivesse preso por mais de um dia. — Senhor Hatori, oi! — Saudei-o. Nós havíamos nos encontrado por acaso. Eu não o via desde que fora a sua casa. — O que faz sozinha aqui, tão tarde? — Me perguntou ele, bastante sério. — Só vadeando. — Sorri. — E o senhor? Veio fazer uma visita médica a alguém por aqui? — Não, eu estou... — Ele me olhou. — Vadeando. Também. — Nossa. — Pisquei. — Sério, mesmo? Não esperava nenhum pouco aquilo dele. Hatori continuou me olhando. — Como está Momiji?! — Perguntei então. — Bem. — Ah! Ótimo! Isso é... Realmente. Foi bom te ver, vou indo! Me virei para ir embora. Eu não achava que tinha muito o que conversar com Hatori e aquilo não era algo que eu tentava mudar. Mas, ao olhar para minha frente, vi tio Rido de inclinado para me morder. Soltei um berro e recuei, torci meu tornozelo e caí. Hatori me pegou, aí se transformou e eu caí de qualquer jeito. Quando vi, percebi que tinha se transformado num cavalo marinho. — SANTOCRISTO! — Gritei, olhando em volta. — Água! Cadê?! Quando recobrou a consciência, Hatori pediu que eu o tirasse daquela pia e que o levasse para fora. Eu tinha entrado em um restaurante e pedido para usar o banheiro, por isso estávamos ali. Coloquei-o enrolado em seu casaco em cima de um banco, e me sentei ao seu lado. — Eu não sei o que dizer... — Falei, juntando as sobrancelhas, nervosa comigo mesma. — Eu sinto tanto... Sinto muito mesmo por isso. — Não precisa. E aí ele voltou ao normal. Fiquei olhando pra outro lado enquanto se vestia. Quando terminou, sentou-se ao meu lado. — Por que você gritou? Balancei a cabeça. — Eu torci o pé. — Isso foi depois de você gritar. — Ele me lembrou. — Deixe-me ver. — Não, tudo bem... Hatori então apoiou seus cotovelos nos joelhos e me olhou. — Por que você gritou? — Repetiu a pergunta. — Eu... — Engoli, fechando minhas mãos. — Achei que tinha visto algo. Eu não tenho dormido muito bem ultimamente. — Sorri pra ele. — Desculpe-me por ser estabanado, e por causar problemas a você. Hatori continuou olhando. — O que você viu? — Insistiu. — Algo que me definitivamente me assustou. — Respondi, inflexível. Ele parou de insistir depois disso e recostou-se ao banco. — Sua reação foi igual à de uma pessoa que conheci. — Me disse. Olhei para seu rosto, então, finalmente. E ele me olhou de novo. — O que acontece quando a neve derrete? — Perguntou de repente. Tive a impressão muito esquisita de que aquele era um Hatori tentando me animar. Ela vira agua, pensei, mas Hatori parecia estar fazendo uma pergunta mais profunda. Só que eu não era nada profunda, então respondi a primeira segunda coisa que me veio à cabeça: — Não podemos mais fazer guerras de bolas de neve? Ele sorriu. Notei que aquela fora a primeira vez que eu o vira fazer aquilo. — Veja você. — Me disse, voltando a olhar a noite. — Essa também é uma resposta. — Mas não era nela que você estava pensando. — Supus. — Vem a primavera. — Hatori me falou a sua. Pensei nela. — Ah, é... Bom, eu não poderia ter respondido isso. Não sei a sequência das estações, veja bem... — É mesmo? Ele voltou a me olhar mais uma vez, ainda sorrindo. Tive certeza de que estava pensando em Kana. Hatori me acompanhou até onde Yuki sempre me esperava e então foi embora. Resolvi repassar sua pergunta para ele. — Nossos amigos bonecos de neve viram meleca? — Yuki riu, e eu também. — Me desculpe, não sei o que acontece. — É isso aí que você disse, mesmo. — Ri mais. E fomos para casa. Capítulo 29 — Caralho, cadê aquele rato idiota que não chega nunca?!! — Kyou rosnou. Deu uma cotovelada nas costelas dele pelo palavrão. — Que é?! Levantei uma sobrancelha. Tohru estava conosco. Eu a havia chamado, e as outras também, para sair conosco, porque queria apresentá-las a Momiji e Hatsuharu. Hatsuharu também era um dos Doze. Ele era o touro. Ou boi. Ou vaca... E era um menino bem tranquilo. Eu o conhecera quando vinha para escola uns dias antes. Ele estava totalmente perdido e levei-o comigo já que, pelo que entendi, estávamos indo para o mesmo lugar. Yuki não estava comigo, pois fora mais cedo, como Kyou, naquele dia (sim, impressionante, mas, de fato, ele preferia que Kyou tivesse ido depois). Yuki fora indicado para o cargo de presidência do corpo estudantil pelo presidente que ocupava o cargo naquele ano, e aceitara participar das eleições. Pelo que entendi, aceitar aquela proposta ia totalmente contra sua vontade. E, por isso mesmo, é que estava aceitando. Achei uma decisão interessante, e não falei nada sobre achar que ele deveria fazer o que quisesse. De qualquer forma, levei Hatsuharu até a escola, e ele ficou na porta, esperando o dia todo até o fim do período. E, quando Kyou e eu saímos para ir pra casa, ele tentou bater em Kyou. Pensei em me meter, mas vi que era só um desafiozinho bobo de meninos, e fiquei esperando. Yuki chegou também e ficou esperando comigo. E os dois não terminavam com aquilo nunca. — Acha melhor irmos para casa e esperarmos por eles lá? — Perguntei, porque Yuki não parecia muito bem. E não estava, mesmo. Tinha febre e acabou tendo uma crise de bronquite ali mesmo. Eu o escondi e ele acabou se transformando, acho que por cansaço. Só assim aqueles dois pararam de brigar. Haru me abraçou e se transformou também, então me disse que subisse em seu dorso e que ficasse segurando Yuki comigo. Apesar de tudo, achei a situação meio gozada. Kyou disse que nós fossemos e déssemos um jeito no “rato frescurento”, e nós fomos. Descobri que Haru era um sujeito com variações de humor muito contrastantes. Fim do encontro. Bom. Uo e Hana não puderam vir conosco, mas Tohru não trabalhava naquele dia e queria muito conhecer Momiji, porque não o havia visto no dia do festival na escola. Então, estávamos os quatro esperando Yuki terminar sua reunião com o presidente do corpo estudantil. Em um momento, Tohru tivera que atender a uma ligação de sua mãe e se afastara um pouco de nós. Não achei muito engraçado quando comecei a ouvir alguns garotos do último ano falando que ela era bonitinha e parecia ser o tipo de garota idiota que cai na primeira cantada porque não sabe dizer “não”. Eu estava pronta para socar a cara deles quando Kyou se aproximou de Tohru e deu um soco na parede acima da cabeça dela. Ele olhou para os otários que tinham dito aquilo e os dois foram saindo de fininho. — Você viu? — Puxei a manga da blusa de Momiji, e fiquei puxando de novo e de novo. — Você viu? Você viu? Me diz que viu! — Eu vi! Eu vi, eu vi! Eu vi! Haru, você viu?! — Não. O que eu deveria ter visto? — Ele abaixou os headphones, bem tranquilo. — Ah... — Suspirei, enquanto Kyou brigava com Tohru por ficar dando bobeira por aí. Ela pediu desculpas e fez uma cara de concentração muito engraçada, olhando para o nada. Tive que rir. Momiji também ficou olhando, com cara de satisfeito. — Ele cresceu... — Disse então, segurando os dedos de minha mão. — Eu nem tinha percebido. Sorri também, enquanto os dois voltavam. — Né? — Comentei, e abaixei meu rosto quando Momiji veio esfregar o dele nele. Yuki chegou um pouco depois disso e saímos todos juntos. Capítulo 30 — Acho que já está parando... — Yuki sorriu, estendendo sua mão para sentir a chuva. Nós tínhamos saído juntos para fazer as compras semanais. Começara a chover quando terminamos de fazê-las e pensamos em voltar. Porque, afinal, é sempre quando você pretende andar do lado de fora que a chuva começa a cair. Como só Yuki tinha trazido um guarda-chuva, e eu queria guardá-lo da chuva com ele, e ele a mim, decidimos esperar que passasse um pouco. — Ei! Vão escolher o presidente do corpo estudantil essa semana, não vão?! — Lembrei. Eu havia procurado saber, pois queria torcer pra ele. — Nervoso? — Impressionantemente, sim. — Ele me olhou, não parecendo nada nervoso. — E, impressionantemente, quero ser escolhido. Eu ri. — Vai ser! — Esfreguei seu braço. — Todos da escola vão votar em você! E aí foi ele que riu. — Que foi? — Eu quis saber. — Os alunos não votam, Yuuki. — Ele riu mais um pouco. — São os professores que escolhem. — Ah! — Falei. Okay, talvez eu não tivesse procurado saber muito. — Está vendo só? Todas as chances escolhendo só você! Eu estivera ocupando bastante do meu tempo e da minha mente em controlar Ártemis, pois as imagens criadas por Rido estavam ficando mais frequentes de novo, e eu tinha que suprimi-las. Fora isso, Killua me fizera prometer que eu ia esperá-lo antes de dar mais passos em direção à espada. Prometi que ia, mas, mesmo se não tivesse, eu não conseguia encontrá-la de qualquer maneira, e não queria invadir as casas da residência principal a sua procura. Ainda. — Ow... — Apertei os olhos. — Aquele não é o Haru? — Yuki... — Haru parou e olhou para nós. — O que faz aí, na chuva? — É você quem está na chuva. — Yuki explicou a ele. Fui até Haru e o escondi embaixo da sombrinha. — Você está todo molhado. — Notei, e aí reparei que ele estava carregando alguém. — Ué... Haru descobriu a cabecinha dela para que eu a visse. Era um filhotinho de tigre. — GATINHO! — Guinchei, quase sem fazer som nenhum sair da minha garganta. Yuki me olhou de lado e deu um pequeno sorriso, então colocou seus olhos em Haru. — É um tigre, Yuuki, — ele me disse — essa é Sohma Kisa, nossa prima. — Como ela é linda! — Falei, e cometi o erro de tentar tocar nela. Kisa me mordeu. Fiquei rindo. Doeu bastante, não parecia um gatinho me mordendo, mesmo. — Kisa! — Yuki a reprendeu, e ela soltou minha mão. — Mas-poxa-vida, galera, quanto sangue! Quanto sangue! — Olhei, tentando limpar na minha roupa. Fomos para a casa de Shigure e Haru fez um curativo em mim com um montão de algodão e esparadrapo. E, enquanto isso, Yuki ficara conversando com sua prima, tentando convencê-la de que ela me devia desculpas. — Tudo bem... — Eu ficava repetindo. — Tudo bem, tudo bem. Não tem problema... — Não, não está tudo bem! — Yuki franziu a testa para Kisa. — Kisa, se desculpe agora mesmo! — Deixe, Yuki, ela não está falando. — Haru explicou, ainda enrolando minha mão. — Como é? — Yuki voltou-se para ele. — Ela parou quando entrou no ginásio. Foi de repente. Kisa parou de falar, e também de querer comer... E também de ir à escola. — Ele olhou para ela, que estava encolhidinha em um cantinho, virada para a parede. — E, aí, ela não voltou mais pra casa. A mãe dela me ligou, por isso fui procurá-la. Yuki ouviu isso e cruzou os dedos sobre a mesa. — Sabe o que aconteceu? — Perguntou a Haru. — Você sabe como isso começou, por que ela ficou assim? — Bullying. — Haru disse, e Kisa se moveu e o mordeu. — Ei, isso dói, — ele falou, juntando as sobrancelhas, parecendo um pouco bravo — por que está descontando em mim? “Não se meta”, é isso que tem pra me dizer? Faz ideia de quão preocupados você nos deixou com essa sua pirraça? Faz ideia de como seus pais ficaram desesperados quando você sumiu? Kisa fez um gemido de tigre filhote, soltando seu braço, e aí correu pra fora de casa. Haru olhou para o próprio ferimento e começou a limpá-lo. Yuki o ajudou e eu fui atrás de Kisa, preocupada. Ouvi Yuki se exaltar com Shigure antes que eu tivesse me afastado o bastante para não ser mais capaz de ouvir, mas continuei seguindo Kisa, que corria likethewind. Ainda estava chovendo, então tentei não ficar distante para não perdê-la. Quando parou, parei perto dela e me agachei. Não disse nada, apenas fiquei ali ao seu lado, agachada. Mesmo assim, Kisa se cansou de mim, e, então, se virou, mordendo de novo minha mão machucada. Ela ficou me encarando e eu fiquei olhando para ela. — Tudo bem. — Falei. — Está tudo bem. Estendi minha outra mão para tocar em sua cabeça. Ela não fugiu, mas apertou os olhos e mordeu com mais força. — Tudo bem, não está machucando. — Falei, e acariciei sua cabecinha. Kisa não soltou, e continuou apertando os dentes ali. — Eu ouvi Shigure ligando para sua mãe quando chegamos em casa. Pelo que entendi, ela estava indo buscar você lá. — Contei a ela. — Ela parecia bastante preocupada com você. Não quer ir vê-la? Não quer ir mostrar a ela que você está bem? Kisa apertou seus dentes em minha mão com mais força ainda e seus olhos também, com mais e mais força. Eu sentia suor escorrendo da minha testa junto com a chuva. Estava mentindo descaradamente sobre não estar me machucando. Passei minha mão por baixo da barriguinha dela e puxei-a com cuidado para o meu colo. — Ela, com certeza, ama muito você. Ela, Hatsuharu, Shigure e Yuki gostam de você muito. Eles todos se preocupam. Eles gostam de como você é, e nada que você, ou qualquer outra pessoa, diga ou faça vai mudar a opinião deles. Você é importante porque é. Eles não precisam de outro motivo... Imagino que os dentes dela devessem estar quase atravessando minha mão e entrando em oclusão, quando Kisa se transformou de novo em humana. Ela pegou meu pulso e encostou sua testa na mão machucada, chorando muito, em silêncio. Tirei meu casaco e a cobri com ele. Ficou enorme em seu corpinho pequeno. Então eu a peguei no colo e levei-a de volta. Quando chegamos, sua mãe já estava lá. Mas Yuki tinha sumido. — Achei que tivesse ido atrás de você. — Haru disse pra mim. — Não vi. Fiquei olhando a mãe chorosa de Kisa suplicando à filha que não fizesse aquilo de novo, abraçando-a e dando-lhe vários beijos. Mas, no final, por alguma razão que não entendi muito bem, ela e Shigure conversaram e concordaram em deixar que Kisa ficasse lá conosco por um tempo. Bom, acabei reparando depois, a senhora mãe da Kisa parecia muito cansada e deprimida por tudo aquilo. Dei banho em Kisa, e coloquei minhas roupas nela. E depois ela me ajudou a arrumar um colchão ao lado da cama que Shigure comprara pra mim. Fiquei com ela lá. Kisa não me soltou e acabou adormecendo em meu colo. — Dormiu? — Yuki sussurrou pra mim, entrando e vindo sentar-se ao meu lado. Assenti, muito feliz que estivesse de volta. Ele me sorriu aquele seu sorriso e alisou os cabelinhos de Kisa, que eu me dera o trabalho de bagunçar desde o momento em que ela deitara em meu colo. — Me disseram que ela não quis que você saísse do lado dela. Não está cansada? Balancei minha cabeça. — Nem um pouco. Yuki sorriu novamente — Não é legal... Kisa...? — Ele sussurrou pra ela. Fui perguntar “o que? O que é legal?”, mas, antes que eu o fizesse, Yuki inclinou a cabeça e deitou-a em meu ombro. — Só um pouquinho, — ele pediu — posso ficar assim também? Sorri e encostei minha cabeça à sua. Yuki foi embora quando ficou mais tarde e eu resolvi colocar Kisa para dormir na cama. Guardei seu colchonete e a enrolei direitinho nas cobertas. Kisa ficou alguns dias, e eu faltei à escola para ficar com ela. Yuki e Shigure não aprovaram muito o que eu estava fazendo, e, no quarto dia em que eu ia faltar, conversaram comigo e me fizeram concordar que pararia com aquilo. Fiquei com muita dor no coração quando Kisa me abraçou para dar “tchau” antes que eu fosse para escola. Olhei para Yuki, suplicando. Ele inclinou a cabeça. — Okay... — Abracei-a com bastante força. — Eu te amo, sua pequena! Venho vê-la no almoço, está bem...? E, no final dos períodos, Momiji e Haru vieram conosco a casa de Shigure. Momiji estavam claramente preocupado, então segurei sua mão e encostei meu nariz em seu rostinho. — A mãe dela tem me ligado. — Eu disse a ele. — Ela pergunta por Kisa todos os dias, e me diz como cuidar dela. Ela se preocupa. — Ah...! — Ele encostou seu nariz ao meu, muito aliviado. Quando chegamos, Kisa veio se aconchegar a mim, me apertando bem forte. Haru entregou a ela um bilhetinho que dissera ser da orientadora de sua classe. Sentei-me com ela na varanda e deixei que lesse no meu colo. Haru, então, pegou, leu, e passou para Yuki. — “Senhorita Sohma, — ele citou — como está?”, “Já se sente bem o bastante para voltar à escola?”, “Todos da turma esperam pelo seu retorno”. “Gostaria de falar comigo sobre como melhorar seu relacionamento com os colegas quando voltar?”, “Poderíamos encontrar, juntas, uma maneira.”, “E, mais importante, a senhorita já voltou a gostar de si mesma?”, “Uma vez que tiver descoberto todas as suas próprias qualidades, uma vez que tivesse parado de não gostar delas, então, as outras pessoas não passariam a gostar mais de você?”. Yuki abaixou o papel e olhou pra Kisa. — “Gostar de si mesmo”... Eu também... Costumava não saber como fazer isso... Aconcheguei Kisa nos meus braços um pouco mais. — Mas... A senhorita Kisa pode tentar ver pelos nossos olhos... — Encostei minha testa no topo da cabeça dela. — Você vê? Todos nós gostamos muito de “você mesma”. Kisa começou a chorar e a soluçar. Foi a primeira vez que ouvi sua vozinha. Aos poucos, ela foi nos deixando voltar a ouvi-la. E, então, finalmente, decidiu voltar à escola. Todos fomos levá-la até lá. — Vai dar tudo certo. — Alinhei os cabelinhos cor de cobre dela. — Tudo bem? Ela balançou a cabeça positivamente, sem desenterrá-la de minha cintura e sem me soltar. Ficamos ali o tempo necessário. Quando ela quis, me soltou e então abraçou seus primos. Fiquei bastante impressionada por eles não terem se transformado. Mas ninguém soube me responder por quê. E, aí, ela foi. — Está se divertindo? Você parece feliz, de alguma forma. — Tio Rido passou seus braços ao redor do meu tórax, pressionando os lábios gelados em meu pescoço. Não respondi e procurei não mudar minha postura. Era minha culpa não ter tomado cuidado para impedir aquilo de acontecer. — Diga-me, Jiyuri, qual deles... Você mais ama? Quero ter o prazer de tirar a vida deste bem na sua frente... Engoli e me senti muito dura. E sentia realmente como se Rido estivesse furando meu pescoço com suas presas. Momiji então veio entrelaçar os dedos de nossas mãos. — Está tudo bem? — Ele me perguntou, preocupado. Tentei sorrir. — Sim, vamos voltar? Capítulo 31 Eu sempre achara que, se um deles fosse descobrir, esse seria Kyou. Não por sua sagaz eficácia, ou por seus afiados sentidos de percepção. Mas porque ele nunca se acostumara comigo sendo uma garota, e às vezes esquecia-se de bater à porta. Na casa de Shigure, aquele era um problema que eu resolvia facilmente com a tranca, mas, nas fontes termais da família Sohma, o esquema de trancas e portas era um pouquinho diferente. E ali estava Kyou, olhando para minhas costas cheias de marcas e feridas quase abertas, sem ter percebido ainda o que significava aquilo. Abaixei minha blusa de novo. — Estou me trocando agora, Kyou. — Sorri pra ele, sentindo-me muito estranha. — Okay. — Ele olhou pra mim, realmente. — Okay... — E saiu. Respirei. Aquela era minha vida ficando mais complexa... Momiji quis me levar para um retiro, que, por acaso, também fazia parte das propriedades de sua família, para retribuir o fato de eu ter comprado chocolates pra todo mundo. Tinha uma história, assim, de que, no dia se São Valentim, você dava chocolate pra galera. Eu sabia que era no dia quatorze. Mas, depois de distribuir alguns chocolates, descobri que tinha errado o mês da parada, e acabei dando chocolate pra todo mundo de boba. Bem, o que eu ia fazer com todos eles? Guardá-los até quatorze de fevereiro do ano seguinte? Não, né? Por isso, Momiji, Kisa, Yuki, Kyou e eu estávamos nas fontes termais dos Sohma. E Kyou tinha acabado de descobrir que minhas costas eram meio detonadas. Suave. Coloquei um quimono. Momiji tinha sugerido que tomássemos banho nas fontes antes do jantar. Juntos. Eu nem me liguei. Pra mim, Momiji era um bebê lindinho. Mas Kyou quase o espancou por isso, e só assim fiquei sabendo que Momiji tinha quatorze anos também, e era apenas alguns meses mais jovem do que eu. Fiquei chocada. Momiji ficou chorando e dizendo que queria, que queria, e que queria tomar banho comigo. Eu estava pronta para propor que entrássemos com roupas de banho, se era o caso, mas, então, Yuki pousou a mão na cabeça do primo e disse: — Momiji, não fique pedindo essas coisas à Yuuki. Não a trouxemos aqui para fazê-la sentir-se desconfortável, ou trouxemos? Momiji o olhou pensativo, então sorriu. — Não. Tudo bem... Eu entendi. — E aí olhou pra mim. — Mas vamos dormir juntos! Né?! — Claro! — Sorri pra ele. Yuki e Kyou não ficaram muito felizes. Os meninos foram para as fontes termais dos meninos e Kisa e eu fomos para as das meninas. Fiquei de quimono, pelos motivos obvieis, e apenas deixei meus pés dentro d’água. Brinquei com ela, sem entrar muito para o fundo e fiquei ouvindo Momiji ficar pulando e fazendo bagunça do outro lado, até Yuki e Kyou o obrigarem a parar quieto. — Vocês são chatos! Quero ir para o lado da Yuuki! Yuuki! A água está muito quente do seu lado?! — VOCÊ TEM ALGUM PROBLEMA, PERVERTIDO ANÃO?! — Kyou brigou com ele. — AAaaa.... aaAAAh! Mas elas estão se divertindo do lado de lá! Aí realmente propus que ele e Kisa colocassem roupas de banho e fossemos para a fonte mista. Como não havia outras pessoas hospedadas ali naquela época, não teve nenhum problema. Yuki e Kyou não quiseram vir, então os deixamos lá. Momiji insistiu um pouquinho no início para que eu entrasse também, mas eu disse para ele que não podia. E ele entendeu. O dia só não pôde ser mais divertido porque Kyou ficou me olhando a todo tempo, como se esperasse que eu fosse começar a criar chagas ali, na frente de todo mundo, a qualquer momento. Não fiz isso, veja bem. Mas, quando todos já estavam dormindo, foi ao quarto de Kyou e o chamei para dar uma volta. Saímos da propriedade e seguimos para bem longe, em silêncio. Quando julguei estarmos seguros tirei meu casaco e o dobrei. — Pode segurar para mim? — Perguntei. Ele o pegou. — Eu... Não posso pedir que lide muito bem com o que vou fazer agora, mas, por favor, mantenha em segredo. Eu já vinha querendo tentar de novo fazia algum tempo. Libertei as asas e elas se abriram com um som metálico. Caí no chão. Sem o sangue de Kaname, a dor era quase insuportável. Já aguentei coisa pior, disse a mim mesma, e continuei tentando. Quando terminei, as duas enormes foices estavam aos meus lados e eu as segurava. Voltem, mandei. E me senti renovada de novo. Levantei meus olhos para Kyou. Ele estava bastante surpreso. Mas não achei que me olhasse como se eu fosse uma aberração. — O que... — Ele me perguntou. — O que elas... São...? — Um tipo especial de arma. — Disse. Eu estava cansada, mas era um cansaço bom. Como se eu tivesse dormido mais do que devia. — E... Como foram parar em você? — Meu tio colocou. Não sei bem exatamente como são todos os “procedimentos a seguir”. — Sorri. Kyou veio até mim e cobriu minhas costas ensanguentadas com meu casaco. — E- está doendo? — Ele ainda estava um pouco impressionado. Balancei a cabeça. — Não mais. Ele assentiu e segurou minha mão. E aí foi me levando de volta para as fontes termais. Entrei nelas com Kisa e Momiji na tarde seguinte, antes de irmos embora. Foi divertido. Capítulo 32 — Como representantes do príncipe Yuki, como as representantes do Príncipe, — ouvi a voz de uma das meninas malucas dizer, e aquilo me acordou — devemos protegê-lo com nossas próprias mãos! Proteger sua pureza, e seu puro coração! Levantei minha cabeça um pouquinho mais e apoiei meu nariz em meus dedos entrelaçados. Eu achava que a aula tinha acabado e dissera aos meus amigos para irem antes de mim, que eu ficaria e descansaria um pouco até dar o meu “horário”. — Primeira regra! Não roubarás os objetos pessoais do Príncipe! — A menina que citava as regras bateu na lousa negra com um pointer, parecendo muito séria. — Primeira regra: não roubarás os objetos pessoais do Príncipe. — As que estavam sentadas lá na frente repetiram. — Segunda regra! Não invadirás a casa do Príncipe! E as gurias repetiram. — Terceira regra! Para falar com o Príncipe, não deverás estar desacompanhada! Levarás ao menos duas companheiras consigo! Fiquei ouvindo toda aquela merda até dar o meu horário. Elas tinham muitas regras. — Longa vida ao Príncipe! — A líder levantou ambas as mãos, e as outras imitaram seu gesto. Imitei também, pois o achei muito engraçado. Aí me levantei e fui indo pra porta dos fundos. — Ei! Você! — A líder gritou comigo. — Como entrou?! Desde quando está aí?! — Ah, eu estava desde o início. Eu acho. — Pensei. — Apresente-se devidamente! Ou você é uma espiã?! — Ah, sou um espião, sem dúvidas. — Inclinei-me para elas, reverenciando. — Obrigado por derramar tanta cultura monárquica sobre mim, foi uma aula muito construtiva. Tenham uma ótima tarde. Ela ficou gritando comigo e exigindo que eu voltasse lá e respondesse suas perguntas, mas eu sumi e não deixei que suas capangas me encontrassem. Aí fui indo para casa de Satoshi. No caminho, me deparei com uma bota voadora. — Ei, moça! — Um menininho me chamou a atenção. — Minha bota, eu deixei cair! Pegue pra mim? A minha bota... — Ele sacudiu o dedo para ela. Doze signos chineses, pensei. Ele tinha todos os traços que o destacavam, só podia ser. Peguei a bota e entreguei a ele. O menino sorriu. — Sua idiota! — Disse, ainda sorrindo aquele sorrisinho inocente de criança feliz. — Não acredito que pegou, mesmo! Você não tem nenhuma dignidade, ou o que?! Se eu pedisse pra você se atirar na frente de um ônibus, você se atiraria, mesmo?! Se eu pedisse para me dar seus rins, você me daria mesmo?! Pessoas como você são tão retardadas! Sua mãe nunca lhe disse para não cair na conversa de estranhos?! Eu ri. Esse deve ser Sohma Hiro, pensei. Kisa e Momiji já haviam falado sobre ele para mim. — Do que está rindo?! — Ele ficou todo irritadinho. — Tá vendo alguma placa de “risos” em algum lugar?! — Prazer em conhecê-lo, Hiro. Sou Saeyuri Yuuki. — Eu sei quem você é! — Hiro pulou da mureta na qual estava sentado, pousando sobre seu pé calçado. — E quem foi que disse que meu nome é Hiro?! E, se fosse, quem teria te dado liberdade para se referir a mim por meu primeiro nome?! Cara, ainda não acredito que fui tão idiota a ponto de vir, mesmo, conhecer uma garota tão desagradável. E por que é que você se veste de menino?! Você é lésbica por acaso?! Fiquei rindo. — Para de rir! — Ele gritou comigo, tirando sua bota da minha mão e calçandoa. — Nossa, como você é estúpida! — Certo, certo. Tenho que ir, menino Hiro. Foi bom te conhecer. Fui indo, mas o menino segurou a manga da minha blusa e a puxou, furioso. — Você tem problema?! Eu vim aqui pra te ver e você não vai nem me levar para algum lugar, ou me pagar alguma coisa pra comer?! Você não tem o mínimo de educação?! Pensei um pouco. E lembrei que tinha um saquinho de marshmellows recheados com geleia de uva em minha mochila. Tirei-o de lá e entreguei-o ao menino Hiro. Como ainda estava fechado, achei que ele não fosse ver nenhum problema. — Doces? Doces?! — Pelo visto, eu estava errada. De novo. — Você vai me dar doces?! O que tem na sua cabeça?! Acha que vou aceitar doces de alguém que mal conheço?! Eu não confio em você! E se você tiver envenenado isso?! E se estiver planejando me sequestrar e me vender pra escravidão?! O que mais tem aí dentro?! Uma arma?! Uma bomba?! Me dá, deixa eu ver a sua bolsa! Achei aquilo muito bonitinho e levantei minha mochila bem alto, para que ele não a pegasse. Mas o menino Hiro pulava alto também, então tive que desviá-la do caminho dele. Fiquei brincando daquilo até o garoto desistir, aí coloquei as alças de novo em meus ombros e me curvei pra ele. — Você é uma gracinha, menino Hiro. — Falei, bagunçando seu cabelinho castanho e cacheado. Ele me xingou por isso. — Mas preciso ir trabalhar. Se aparecer aqui amanhã depois da aula, levo você pra passear se quiser. Empurrei o pacotinho pra ele. — Fique com eles. — Ofereci. — Pode verificar, ainda está lacrado. Hiro pareceu pasmo e frustrado, como se tivesse falhado em sua tarefa. Acho que o plano era me deixar irritada ou algo do gênero. Mas ele era tão lindinho, como lidar? Fiz bagunça em seu cabelo de novo, enquanto ele ainda arfava. Ele me xingou de novo. — Kisa disse que você era muito bonzinho com ela. — Falei. — Seu bonitinho. — Quem você está chamando de bonitinho?! — Você. — Sorri. — Como você é abusada! Eu não te dei intimidade pra isso! — Por que não fazemos assim: — Agachei-me para olhá-lo. — Traga-a com você amanhã, e eu os levo para onde quiserem ir. — Para onde quisermos ir?! Vai deixar duas crianças escolherem aonde ir?! Que tipo de responsável você é?! E se pedirmos para ir pra um bordel?! E se pedirmos para entrar num esgoto?! E se quisermos nos unir a uma gangue que trafica armas e drogas?! Vai nos levar onde quisermos ir, me-- ?! — Nesse caso, — interrompi-o — engano vocês dois e os levo para um parque. Fechou? Ele ficou mais irritado, e muito vermelho. — Então, vai nos enganar?! Então, você engana crianças?! É isso?! — Exatamente. Fiquei sorrindo. Ele desistiu e disse que não valia a pena discutir com alguém tão ridículo. E aí foi embora. Liguei para Kisa à noite e pedi a sua mãe que a deixasse vir, e que levasse Hiro. Prometi que eu cuidaria de ambos durante a tarde. — Kisa, gatinha! — Eu a abracei, quando ela veio apertar seus bracinhos em volta de mim no dia seguinte. — Menino Hiro! Me esperaram muito? — Esperamos! — Ele falou, irritadíssimo. — Estamos aqui, cansados de esperar! Você não ter a menor consideração pelas pessoas, mesmo, né?! Kyou tinha vindo comigo e ficou todo puto com o menino, mas dei uns tapinhas no ombro dele e disse-lhe que voltasse pra casa. — Já decidiram para onde vamos? — Perguntei a ele, me ajoelhando para abraçar Kisa direito. — O que está dizendo?! Você não consegue nem decidir isso sozinha?!!! Você não tem nenhuma opinião sobre nada, não?! Como pode existir no mundo uma pessoa tão sem personalidade?! — Poc. — Falei pra ele. Eu tinha dado uma batidinha no topo de sua cabeça com o lado da minha mão. O menino Hiro ficou mesmo surpreso. — Kisa, pra onde quer ir? — Perguntei. — Eu... — Ela juntou as mãozinhas, piscando, toda bonitinha. — Gosto de parques... — COMOPODESERTÃOLINDA??? — Gani, apertando-a e tentando não machucá-la. Acho que ali descobri por que o menino Hiro não gostava muito de mim. Achei muito engraçado. Como eu não conhecia nenhum parque, deixei que Kisa nos levasse ao seu preferido. Claro, Hiro me criticou por não conhecer nenhum. Mas eu estava feliz que ele estivesse ali. Hiro era mesmo muito bonzinho com Kisa, e ela ficava toda alegrinha com ele lá. — Ul! Um vendedor ambulante de crepes! — Bati palmas. E olhei para os dois — Quer um, Kisa? — Hiro perguntou à pequena, com aquela carinha bonitinha que fazia quando falava com ela. Ela assentiu. — De chocolate, pra mim. — Hiro me deixou saber. — Okay! Kisa, de que você quer? — Eu, ah... Gosto de... Morango, mas... — Pode ser do que quiser. — Sorri pra ela. — Gosto de... Também... Chocolate. Com banana... — Quer dois? — Sugeri. — Ah... Eu... — Quer que peça para misturarem os dois sabores? Ela assentiu, feliz. — Certo. — Me agachei. — Agora, me digam vocês. — E inclinei-me para eles, como se fosse contar um grande segredo. — Querem que os crepes sejam azuis? Os dois ficaram muito impressionados, mas o menino Hiro rapidamente assumiu sua posição de totalmente cético e desviou o olhar. — Você está mentindo, não existem crepes azuis! Não ouça, Kisa, ela está tentando enganar você! Pisquei para Kisa. — Você quer? — Perguntei de novo. Ela assentiu, bastante ansiosa. — Me esperem aqui, então, eu já venho. Quando cheguei lá, pedi para o moço do crepe usar meu corante em nossos crepes. Percebi Hiro vindo por trás de mim e virei-me para ele quando saquei que ia tentar quebrar meus joelhos. — Menino Hiro! — Como vai fazer os crepes azuis? — Ele quis saber, semicerrando os olhos pra mim. — Com magia! — Movi meus dedos. Ele não parou de me olhar daquele jeito, então pedi ao moço que me devolvesse o frasquinho de corante e entreguei a Hiro. — Pode ficar com ele se quiser. — Disse eu. — Por que eu ia querer esse negócio?! — Ele sibilou pra mim. — Para deixar sua vida mais azul! — Abri os braços, olhando para Kisa de vez em quando, que ficara sozinha sentada num banco lá atrás, cuidado da bolsa de Hiro e da sua própria. Hiro guardou no bolso o corante em gel e ficou de braços cruzados, esperando comigo. — Como uma garota idiota como você consegue e eu não? — Ele quis saber, me dando uma olhada. — É tudo com corante azul, irmãozinho. — Expliquei. — Ãh? — Ãh? — Rebati. — Você é idiota? — É o que me dizem. — Sorri. Ele ficou quietinho de novo, meditando dentro daquela cabecinha cacheada dele. — Você pode mesmo salvar todo mundo? Você é tão boa assim que pode acabar com os problemas de todo mundo? Pensei sobre aquilo e olhei pra ele. O menino Hiro estava me encarando com muita seriedade. — Eu gostaria disso, sim, irmãozinho. Adoraria, mesmo, poder dizer que sou capaz de salvar todo mundo, mas acho que seria muita arrogância minha dizer algo desse ti— Se fosse você no meu lugar, — ele me interrompeu, com a voz um pouco trêmula, olhando para baixo — você não teria feito melhor do que eu, tá?! Você não... Você... Shigure havia me contado o que acontecera entre os dois quando Kisa tivera aqueles problemas na escola. Hiro dissera a Akito que gostava muito de Kisa. E, como Akito era maluco, ele julgara necessário castigar a menina por isso. Nunca fiquei tão puta em toda minha vida. A partir dali, durante um tempo, Hiro pensara que, se se afastasse um pouco de Kisa, Akito não bateria nela de novo. Foi uma infeliz coincidência que esse ocorrido e o Bullying tivessem acontecido na mesma época. Imagino que deva ter sido bastante triste para pequena Kisa. Eu quis matar Akito, aquele filho de uma... Mãe. Okay, parei com isso. — Provavelmente, não teria mesmo. — Falei. Eu não fazia a menor ideia do que faria no lugar do pequeno Hiro. — Mas isso não importa mais, não é? — Sorri. — O que importa é que você está cuidando dela agora, certo? Ele me olhou. E aí voltou a fazer aquela cara de bravo. — Eu pedi pra me dar sua opinião?! Quem disse que eu queria saber o que você achava?! — Hum. Aposto um crepe que não foi você... — Inclinei a cabeça pra ele. Hiro ficou muito bravo, e olhou para o outro lado. Mas, quando o moço do crepe nos entregou os crepes azuis, ele segurou meu braço e me disse, ainda todo irritadinho. — Eu vou pagar por eles! — Hum. — Pensei. — E se fizermos assim: eu te dou um dinheiro que é, tipo, especificamente destinado à compra de crepes azuis, já que, afinal, como você vai pagar, eu não vou precisar mais dele, e você o guarda para próxima vez que for sair para comprar crepes com Kisa, com seu novo frasco mágico de corante azul, o que acha? Ele ficou me olhando. — Tá achando que eu sou bobo, é?! — Me perguntou. — Não! — Fiquei rindo. Hiro pagou os três crepes e levou para Kisa o dela. Ela ficou encantada com a cor. E Hiro disse a ela que descobrira como eu os fizera serem assim, e disse que, na próxima vez, faria o troque ele mesmo para que visse. Ele era mesmo uma gracinha. Capítulo 33 — Ah, que se dane, também. — Fiquei rindo. Tinha começando a chover muito e nenhum de nós tinha trazido um guarda-chuva daquela vez. — Vamos rapidinho, a gente vai acabar se molhando de qualquer jeito! Segurei as mãos dos dois e puxei-os para atravessarmos a rua. Estava chovendo pingos enormes e eles faziam cócegas. — Kyoooou! Vamos! — Fui para trás dele e comecei a empurrá-lo. Ele estava meio doidão e parecia que ia desmaiar. — Deixe que vá na velocidade dele, Yuuki, Kyou fica assim em dias de chuva. — Yuki disse pra mim. Não pude deixar de reparar que parecia estar dizendo que devíamos deixá-lo para trás. Mas achei legal da parte dele que tivesse dito tão polidamente. — Hm! Simples assim? Eu o abracei. Kyou brigou comigo um pouquinho, mas ele parecia bastante mal, até pra isso. Só ali reparei que nunca o tinha visto acordado num dia de chuva. Nós abrigamos rapidinho, e, assim que colocamos os pés dentro de casa, parou de chover. É bem impressionante, não é? Levei Kyou para o quarto dele e deixei-o dormindo lá. — Yuuki, Yuki! — Shigure saiu de seu escritório. — Vocês dois não querem dar uma volta? Aproveitem que a chuva deu um tempo. Deem uma saidinha. — Por que está nos expulsando de casa? — Yuki olhou para ele, bastante sério. — Por que eu ia querer fazer isso? — Shigure riu, apoiando os punhos nos lados do quadril. — Por que, né? — Seu primo continuou querendo saber, erguendo as sobrancelhas para ele. — Podemos ir à base secreta! — Sugeri, toda feliz. — Ela tem sido bem regada, deve estar com um monte de matinho. Yuki sorriu pra mim e depois deu outra olhada desconfiada para Shigure. Então saímos. De fato, a plantação estava toda cheia de mato. Ficamos capinando. Yuki estava agindo como se quisesse me dizer alguma coisa. Como sempre, fiquei esperando. E ele também. Então, por bastante tempo, ficamos os dois só capinando, bem quietos. — Yuuki... — Ele começou. Tive a impressão, pelo tom que usou, que podia adivinhar sobre o que ele gostaria de falar. Sentei-me sobre meus calcanhares e o olhei, parando de mexer na terra. — Sim? — Eu sei que... Não gosta de falar sobre isso, mas... Eu quero que saiba que, se estiver com algum problema, pode me dizer. Eu... Gostaria de poder ajudá-la... Com o que quer que fosse... E a culpa daquilo era, como sempre, do meu tio Rido. — Ele já percebeu. — Falou o próprio, inclinando-se para sussurrar ao meu ouvido. — O que acha que ele vai fazer agora? Se tudo que descobriu sobre a família dele estiver certo, o garoto deve estar tendo um seríssimo conflito interno nesse exato momento. Mas aposto que, como o menino responsável que é, ele vai optar por cumprir suas obrigações com o clã e eliminar a sangue-pura que está na frente dele. O que seria um problema complicado pra você, não é mesmo? Disse a ele. — Seria. Para nós dois. Por isso que acho que nós devíamos matar esse garoto aqui mesmo. Não existe “nós”. Nunca existiu nenhum “nós”. — Yuuki... — Eu tenho agido tão estranho assim ultimamente? — Sorri para ele, encabulada. Yuki veio para perto de mim e ajoelhou-se ao meu lado. — Eu só estou preocupado... Então segurou meu braço e arregaçou a manga que o cobria. — Eu... Gostaria de saber... Como isso pode acontecer com você, bem debaixo do meu nariz? Engoli, puxando meu braço de volta. Pensei em mostrar a ele, mas Rido começou a fazer aquilo. Era seu novo jeito de se divertir. De alguma forma, meu tio conseguia fazer surgir um barulho muito alto em minha cabeça. Trinquei os dentes e cerrei meus punhos, abaixando a cabeça para esperar que passasse. — Yuuki... Yuuki? — Yuki estava tentando falar comigo, enquanto Rido gritava e exigia que eu o matasse. Eu achava muito infantil dele fazer aquilo. Suportei. Suportei e continuei suportando, até sentir como se minha cabeça fosse explodir. Eu quis libertar as lâminas. Quis colocar todas pra fora e, assim, fazer parar, mas tio Rido as estava segurando. O barulho acabou parando, depois de um tempo. Mas minha cabeça demorou um pouco para voltar pro lugar. — Yuki... Olhei para ele. Estava parado com suas patinhas apoiadas em meus joelhos, em sua forma de rato. Eu o peguei em minhas mãos e o levantei, para tocar minha testa em seu rostinho. — Sou mesmo uma pessoa terrível, não sou...? Deixaram que eu soubesse seus segredos, e eu não conto os meus... Yuki tocou meu nariz com suas patinhas de ratinho, olhando pra mim com aqueles olhões. — Não quero que diga seus segredos pra mim... — Ele esclareceu. — Apenas me avise se achar que posso ajudar... Assenti, segurando-o com cuidado. Coloquei-o no chão e me afastei um pouquinho. Ele se transformou e se vestiu. — Eu estaria com muito medo agora, — disse a ele — se estivesse sozinho. Se não tivessem me acolhido na família de vocês. Mas vocês me abrigaram. — Sorri. — Como eu poderia pedir mais alguma coisa? Yuki estava se levantando, mas parou, no meio do caminho, e voltou a se apoiar em seu joelho. E ficou me olhando. Aí eu que me levantei, e dei um beijinho em sua bochecha. — Obrigado. — Falei, e continuei sorrindo. Yuki se transformou em um ratinho de novo quando fiz isso, e eu o levei para casa. Vimos Kyou sentado à mesa com uma pessoa, ao chegarmos lá. E ele parecia muito feliz. — Mestre Kazuma... — Disse Yuki, do meu bolso. Mestre Kazuma fora quem treinara Yuki, Kyou, Hatsuharu, Rin e Kagura. E também quem adotara Kyou depois da morte dos pais dele. E era isso tudo o que eu sabia a seu respeito até ali. Capítulo 34 Kyou se fechou e saiu da sala assim que entrei com Yuki. Imaginei se devíamos ir embora, mas Yuki também queria conversar com o senhor Kazuma. Achei Sohma Kazuma era uma pessoa agradável. Ele conversou comigo, também, e quis saber sobre mim. Por nossa primeira conversa, não pude saber o quão familiarizado aos assuntos em que eu estava interessada ele era. Mas descobri um pouco depois. Tive que ir à casa de Satoshi aquela noite, e, quando voltei, estava chovendo. Percebi que Kazuma estava conversando sozinho com Kyou do lado de fora. Kyou parecia muito cansado de novo, prestes a desmaiar. Mas resolvi não me intrometer, embora fosse difícil não notar que o senhor mestre não tirara os olhos de mim desde o momento em que eu me pusera em sua vista. Então olhei. Eles estavam discutindo. Seriamente. Senti como se Kazuma estivesse tentando me dizer, naquele momento: “não se mova”. E eu não me movi. E, aí, sem que eu percebesse exatamente o que senhor Kazuma tinha feito, Kyou se transformou. Mas não em um gato. — NÃO OLHE PRA MIM!!! — Ele gritou com muito ódio, quando percebeu que eu estava lá. E sumiu no meio da floresta, me deixando sozinha com Kazuma. Percebi então o que seu mestre tinha feito. Eu nunca tinha me perguntado o porquê até aquele momento, mas Kyou sempre usara uma pulseira de contas pretas e brancas no braço esquerdo. E ali estava ela, na mão do senhor Kazuma. Fui até ele e a peguei. Eu estava cansada de tentar entender, sozinha, os motivos que as pessoas tinham para fazer certas coisas. Então perguntei a ele. Mas senhor Kazuma não me respondeu, e eu corri atrás de Kyou. Encontrei-o a beira de um rio. Ambos corremos muito até ali. — Kyou... — Chamei. Ele se virou pra mim, muito agressivo, e recuou. — NÃO CHEGUE PERTO DE MIM! — Rugiu. — Não consegue ver?! Por que você veio?! Vá embora! — Por quê? Por quem você acha que vim até aqui? Segurei sua pulseira onde ele pudesse ver, e então a deixei cair. — Você não precisa se esconder de mim, eu não ligo para como você se parece. Continua sendo você. — MENTIROSA! — Kyou bradou seu braço em minha direção e, como eu havia me aproximado demais, as unhas dele fizeram grandes rasgos em um dos meus ombros. — Sai de perto de MIM! Você está com nojo! Você quer vomitar! Todos tem nojo! Saia da minha frente!!! Ele fez que ia correr de novo, mas eu agarrei-me ao seu braço quando ele o atirou em mim de novo, antes de tentar fugir. Kyou, então, ficou me sacudindo, como se eu fosse uma meleca grudada em seu dedo, mas eu me segurei, e não tinha a menor intensão de soltar. Quando desistiu de me sacudir, Kyou fincou as unhas de sua outra mão em meu peito e tentou me empurrar. — Eu não penso isso! — Chorei. Não ia conseguir segurá-lo por muito mais tempo. — Eu não sinto nojo de você! Eu não tenho vontade de vomitar! Eu não quero deixar você sozinho... E não quero voltar pra casa sem você... Eu não quero ficar sozinho... Não vá embora... Volte comigo... — Fiquei pedindo. — Vamos pra casa... Então parou de chover. E foi a primeira vez que abençoei aquela decisão do tempo. O braço de Kyou voltou a ser humano e eu continuei abraçada a ele. — Me deixa ser um pouquinho egoísta agora... Só um pouquinho... Volte comigo pra casa... Por favor... Fiquei chorando, ouvindo tio Rido rir da minha cara. Tentei não pensar no porquê de tudo ter que ser sempre tão difícil. E continuei chorando. — Está tudo bem... — Ele disse. — Ser só um pouquinho egoísta... De vez em quando... E então me puxou para abraçá-lo. Kyou demorou a se tornar um gato daquela vez, mas aconteceu, como sempre acontecia. Eu o abracei junto ao meu colo, apertando meus olhos com força. — Obrigado... — Eu disse. — Obrigado, obrigado... Ouvi-o pedir desculpas, bem baixinho. Aí fiquei rindo. Estava tudo bem. Eu me levantei e andei até sua pulseira. — Quer que eu pegue? — Perguntei. Kyou fincou suas unhas em minha blusa, sem me machucar, parecendo pensar a respeito. Então me olhou e assentiu, desviando o olhar. — Tudo bem, — eu toquei meu rosto nele — está tudo bem. Peguei-a e nos levei de volta para casa. Senhor Kazuma estava nos esperando, exatamente onde estivera quando saímos correndo. Sorri para ele, envergonhada. E pedi desculpas. Mas o senhor mestre apenas balançou a cabeça e nos convidou para entrarmos juntos. Capítulo 35 — Eles não sabem, não é mesmo? — Perguntei ao senhor Kazuma. Eu o acompanhara até à estação, bem cedo, pois queria conversar com ele sozinha. Kazuma sabia, certamente. Ele sabia sobre os aspectos da maldição que Shigure me mostrara. E ele sabia quem sabia. — Rin, Kagura, Ritsu, Kureno e Shigure sabem. — Resolveu dizer, depois de me examinar em silêncio por um longo momento. — Os outros, não. Assenti. Eu nunca vira Rin, Kagura, Ritsu ou Kureno, mas sabia que Kagura trabalhava com um nome falso na Associação de Caçadores e que Rin era sua aprendiz. E que Ritsu e Kureno faziam o mesmo, mas eram parceiros. Até aí, foi só comparação de fotografias. Eu duvidava que qualquer um dos quatro tivesse assumido compromisso verdadeiro com a Associação. Imaginava que só estavam lá dentro por que era conveniente, mas sairiam facilmente se quisessem. — Eu não queria que nenhum deles soubesse, Yuuki. — Kazuma falou, com sua voz calma e triste. — Se dependesse de mim, somente, todos viveriam vidas normais. Como crianças normais, com preocupações de crianças normais. Eu nunca quis nada disso para nenhum deles. Assenti. — Eu conheço esse pensamento, senhor. — Olhei-o. — Não aprovo. — Mas o respeita, e respeita minha família e as decisões tomadas dentro dela. — Ele notou. — Se não teria dito a eles. — Eu não sei mais o que devo fazer daqui por diante. — Fui sincera. — Estive esperando que algo acontecesse, mas continuo esperando. O senhor Akito me quer para quebrar a maldição, e eu acredito que posso... Ajudar a quebrá-la. Mas... Preciso que me deem... Fiquei olhando. Senhor Kazuma examinou meu rosto com ainda mais atenção. Seu olhar parecia carregar toda a tristeza do universo. Ele o desviou. — Você é tão jovem. Assim como eles. Por que, sendo tão jovens, todos vocês... — Senhor... — Trinquei meus dentes, sentindo-me um pouco nervosa. Eu pretendia dizer algo sobre pessoas jovens, mas resolvi não dizer. — Me diz o que tenho que fazer? Eu preciso dela. — Você irá a Akito. Assenti. — Devo esperar que me chame, não é? — Sim. Mas ele a chamará logo. Ele já a teria chamado. — Eu não posso mais esperar... — Falei, me sentindo aflita. — Ele a chamará hoje. Fechei meus punhos e olhei para baixo. — Tudo bem... Senhor Kazuma pousou sua mão em minha cabeça e deixou uma pequena fita de papel ali. Então se foi. Peguei a fita e li o que estava escrito nela. Bom, pensei. Eu estava mesmo pensando em uma maneira de confirmar aquela teoria. Não ia mais precisar. Capítulo 36 Ouri e Hanadagi também estavam mortos. Ouri era noivo de Sara Shirabuki, então, não havia grandes mistérios para ninguém de quem o havia assassinado, embora a informação oficial fosse que ele se suicidara. Bem, até aí, meus pais também “se suicidaram”. Hanadagi, no entanto, podia ter sido morto por qualquer um dos dois. Se Sara tivesse feito, ela e meu irmão estariam empatados em poder. Então, o próximo alvo era eu. Eu sabia que, ao menos, Sara não se moveria em direção a Isaya Shoutou sem antes ter mais um coração de sangue-puro. Meu irmão, bom, eu já não fazia ideia do que planejava. E Zero se tornara presidente da Associação. Sabe-se lá como. Porque ele era foda. Killua estava vindo para o Japão. Eu o avisara que o esperaria, assim que descobrisse como conseguir a espada. Eu não sabia que ia faltar nessa promessa. Então, não era como se eu tivesse mentido. Akito realmente me chamou naquele dia, e eu fui vê-lo. Foi estranho. Ele quis que eu fosse vê-lo sozinho, então Shigure, Yuki e Hatori ficaram esperando do lado de fora do quarto. E Kyou do lado de fora da residência principal. Ele não podia entrar nela. E, dos quatro, somente Shigure sabia por que eu estava lá. E Hatori desconfiava de qual fosse o tópico, é claro. Foi uma situação, no mínimo, constrangedora. Akito ficou horas comigo naquele quarto, me ignorando, andando de um lado para o outro, como se eu não estivesse lá. Então, quando eu já não sentia mais nada abaixo dos meus joelhos, ele me perguntou: — Sabe por que está aqui? Não levantei minha cabeça. — Para ser avaliado. — Respondi. — Não quero mais ouvi-la falando no masculino. — Akito me deixou saber, ainda com bastante calma. — Fale como uma garota. — Sim, senhor. Akito andou até mim e se agachou a minha frente. Então empurrou minha cabeça para olhá-lo. — O que vai receber se passar em minha avaliação? — Uma tarefa. — Qual tarefa? — A que o senhor me der. Eu me esforçara muito durante toda a manhã e a tarde para me livrar da voz de Rido, mas, ainda assim, podia ouvir suas risadas guturais atrás de minha nuca. — Diga-me. — Akito sorriu, satisfeito até ali. — Que parâmetros eu pretendo usar para avaliá-la? — Não sei, senhor. — Não? — Akito tirou sua mão do meu rosto e esfregou os dedos uns nos outros, como se quisesse se livrar das partículas de sujeira que pegara em mim. — Por que não sabe? Andei achando que você tivesse respostas para todas as perguntas... Abaixei de novo minha cabeça. Eu nunca esperara que alguém fosse realmente me entregar a espada embrulhada pra presente, mas, ali, não fazia, mesmo, a menor ideia de o que fazer. — E se — Akito se levantou, voltando a andar pelo quarto — eu resolvesse avaliá-la com uma pergunta. Você a responderia com sinceridade? Ou mentiria? Você poderia mentir tão bem a ponto de me fazer acreditar em uma palavra vinda da sua boca? Caso sua resposta sincera não fosse aquilo que eu quisesse ouvir? Você mentiria nesse caso, não? O que acha que eu faria ao perceber a mentira? Merda, pensei. E esperei que fizesse sua pergunta. — Como você me vê, Yuuki? — Ele a fez, finalmente. Merda, merda. Fiquei amaldiçoando aquela merda em silêncio. Não havia nada que eu pudesse dizer. Trinquei os dentes. Tio Rido estava fazendo um estardalhaço. — Eu não lhe dei a opção de não responder, Yuuki. Akito veio até mim de novo, e parou a minha frente. Pelo peso de seus passos, percebi que já estava irritado. — Por que ainda está aqui se não vai responder à minha pergunta?! — Akito agarrou meu cabelo e o puxou. — Se não obedece as minhas ordens mais simples, o que a faz pensar que servirá ao meu propósito?! E então empurrou minha cabeça, batendo-a no chão com a força que tinha. Que, embora não fosse muita, foi suficiente para fazer doer. Lutei com muita determinação contra todos os meus instintos de derrubá-lo e imobilizá-lo no chão naquela hora, forçando-me a ter sempre em mente que qualquer coisa que fizesse a ele poderia repercutir na maneira como Akito tratava sua família. Eu também pensava bastante nele como uma pessoa doente, e que bater em pessoas doentes não era algo bonito de se fazer. Mas digo, foi complicado. — Eu quero que saia da minha família! Você não tem utilidade nenhuma. Não tem pra mim, e não tem para nenhum deles. Não sei o que me deu na cabeça para pensar que uma pirralha poderia quebrar a maldição! Você não serve! Você não é nada! Não é nada para nenhum deles! Você acha que pode roubá-los de mim? Acha que amam você? — Ele falou com uma voz que deixava claro o quão engraçado era aquilo pra ele. — Você não faz ideia do que me dizem de você... — Então se aproximou do meu rosto, pondo uma mão entre sua boca e meu ouvido, e sussurrou pra mim. — Dizem que você é nojenta! É! Seus preciosos Shigure, Yuki, Kyou, todos eles. Até Hatori e Momiji me dizem que odeiam você. Que você é uma inútil, uma sugadora, um estorvo. Todos me dizem que te acham feia e burra. Todos eles te odeiam, Yuuki, você só não percebe isso porque é idiota demais para notar qualquer coisa que passe a um palmo do seu nariz, mas todos eles dizem coisas horríveis de você. Nenhum deles gosta de você de verdade. Eles querem que eu a mande embora, todos eles! E por que eu não mando, Yuuki? Eu tenho algum motivo para não mandar? Kyou nunca te disse nada disso, eu pensei, tentando olhar para os olhos dele pelos cantos dos meus, Kyou nunca te diz nada, você não fala com ele, porque ele não faz parte dos seus preciosos Signos Chineses. Bem ali, notei de onde Kyou tinha tirado a ideia de que deviam achá-lo nojento. Akito, aquele maldito. Continuei calada e ouvi o que tinha para me dizer. Ele parecia especialmente preocupado com a possibilidade de que eu lhe tirasse Yuki. Akito me disse que era deus, e que Yuki sempre fora o primeiro que viera a ele. Disse que Yuki sempre estivera pronto para correr até ele antes de todos, e que sempre estaria, independente do quanto eu enchesse a cabeça dele com ideias rebeldes. Eu quis rir. Ih, filhona, fiquei querendo dizer, te contaram a história errada. A própria cabeça da família sabia apenas a lenda. Que coisa. Fiquei imaginando se eu estava procurando a espada no lugar certo. Bom, Kazuma sugerira que sim... Então devia ser. Permaneci quieta. Mas devia ter previsto que aquilo era apenas um beco sem saída. Akito não ficaria contente com nada que eu lhe desse. Ele não queria saber minha opinião, e não queria também que eu tivesse me submetido a seus maus tratos. Bom, talvez ele quisesse algo. Talvez ele só quisesse que eu demonstrasse algum sofrimento. Akito gostava de causar sofrimento às pessoas a sua volta, assim como eu costumava gostar de enganar as a minha, percebi. Era fácil de entender. Por isso, não fiquei surpresa quando Akito me empurrou contra o chão e me prendeu, colocando um dos seus joelhos em meu peito e deixando todo o peso do seu corpo sobre ele. Eu teria gritado, mas Akito estava apertando minha garganta com muito mais força do que eu achava que tinha. Segurei seus pulsos e tentei afastá-los de mim, mas ele se debatia e me dava joelhadas, o que doía bastante. Imagino que, se Akito não tivesse começado a gritar, provavelmente eu teria conseguido tirá-lo de cima de mim, mas não posso dizer com certeza. Ele tirou força de lugares desconhecidos e eu tinha tido que me esforçar bastante para não ser sufocada até que Yuki, Shigure e Hatori entrassem no quarto e o tirassem de cima de mim. Yuki veio até mim e me ajudou a sentar. — Você está bem? — Ele me perguntou, muito preocupado. — Yuuki? Assenti brevemente, embora não me sentisse nada bem. Meus seios estavam extremamente doloridos e eu tinha a impressão de que minha traqueia tinha ficado meio amassada. Concentrei-me em recuperar o fôlego enquanto ouvia Akito me xingar e exigir que o soltassem. Quando todos nos acalmamos um pouco, eles o obedeceram. Akito esbofeteou cada um dos dois no rosto e, então, se voltou para mim. Eu o encarei. Ele parecia ter sofrido um ataque muito mais do que eu: respirava com dificuldade, tossia e se encolhia de forma muito defensiva. Ele recuou, gritou com Shigure e Hatori para que se afastassem dele e recuou mais. Quando percebi o que estava fazendo, já era tarde: Akito agarrara um vaso de porcelana e o jogara na minha direção. Os três gritaram “não!” e Hatori e Shigure tentaram segurá-lo, mas o vaso já estava lançado. Se Yuki não estivesse ao meu lado, bastava que tivesse ficado parada e o projetil voador mal relaria na minha orelha, mas Yuki estava ali e ia ser atingido pela mira ruim do chefe da sua família. Então eu empurrei Yuki, e tentei desviar o vaso com meu braço. Consegui fazê-lo, o vaso estourou em vários pedaços ao atingir as lâminas do meu braço e Yuki saiu ileso. Infelizmente, pra mim, como sempre, um caco do vaso atingiu meu olho direito. Lamentável. Logo, começou a doer. Bastante até. Então comecei a rir, tentando disfarçar que estava chorando, e aí chorei de verdade, rindo junto o tempo todo. A partir daí, já não ligava mais pra merda nenhuma mesmo. — Estou começando a achar que existe uma emoção extraespecial em atirar coisas na minha cara. — Fui falando, entre umas risadas e os soluços. Eu não conseguia abrir um dos olhos e estava com muito medo de que acontecesse comigo o mesmo que acontecera com Hatori. Eles me tiraram de lá, porque, aparentemente, ter começado a rir não foi a minha ideia mais brilhante do dia. Eu tinha deixado Akito ainda mais furioso e ele estava tendo um ataque de sei lá o que. Hatori ficou para cuidar dele e, depois, me levou para sua clínica e começou a avaliar os estragos. Ele me deu algum anestésico legal e logo eu já estava bem tranquila na minha própria vila. — Eu também vou perder meu olho, não vou? — Perguntei a certa altura, me vendo nas nuvens. Hatori estava costurando um corte que ia da sobrancelha até a maçã do meu rosto e eu não estava sentindo nada. Esperei que respondesse, mas Hatori continuou lá, só costurando. — Isso é um sim, não é? — Murmurei. — Mas, pelo menos, ele vai ficar bonitinho e anatômico que nem o seu? Ou ele vai murchar e virar uma ameixa seca? — Fiz uma careta. — Eu não quero que meu olho murche, ia ficar muito nojento. — Seu olho não vai murchar, Yuuki. — Ele disse muito sério. — Pare de se mexer. — Mas eu não estou me mexendo. — Está, sim. — Okay. — Concordei. Talvez eu estivesse, mesmo. Eu tinha começado a ouvir uma música bastante divertida na minha cabeça e sentia vontade de dançar com ela. — Irmão, eu não faço ideia do que você me deu, mas está positivamente aprovado pelo comitê da dor. Sério, não estou sentindo nem a minha língua direito. Eu devo estar falando muito engraçado. Ele continuou calado, e eu me esforcei pra não começar a dançar na cadeira de novo. — Sabe, se eu parar de enxergar com esse olho, nós vamos ficar parecendo gêmeos. — Akito tem vinte e quatro anos, Yuuki. — Hatori me falou, calmamente, fingindo não me ouvir. — Ele provavelmente seria preso se você o denunciasse. Nossa, fiquei pensando, vinte e quatro? Quantos! — É, provavelmente. Mas me explica de novo por que a gente tem que ficar tratando a Akito como se ela fosse um cara. Ela é uma menina, mas poxa vida. Hatori esperou em silêncio que eu pensasse direito sobre o que ele tinha dito. Eu lutei contra o efeito da droga e tentei formular uma resposta que mostrasse mais ou menos o que eu queria dizer. — Você, e vocês todos, não querem que eu denuncie. Hatori não me respondeu. Eu já tinha entendido que aquilo significava que ele concordava. Se discordasse, ele diria. — E eu não quero denunciar também! — O que era totalmente verdade naquele momento, mas isso era devido aos efeitos das drogas. Enquanto era só dor, pensei em coisas bem horríveis pra fazer com Akito, mas eu não era idiota a ponto de não perceber que ninguém da família Sohma o queria mal, apesar de tudo. — Tá vendo? Você não quer que eu denuncie, eu não quero denunciar! É muita sintonia. Conexão, irmão, conexão. Aposto que somos, mesmo, gêmeos separados na infância. — Então, a despeito do fato de que Hatori tinha uma tesoura e uma agulha de sutura em cada uma das mãos, eu segurei o braço dele, me inclinando pra frente para falar. — Mas, sério, irmão, eu não to nem aí! Se rolar outra rodada dessas suas pílulas marotas espertas, deixo a senhorita Akito jogar até um carro na minha cara se ela quiser. — Isso não é engraçado, Yuuki. — Eu sei! Mas acho que é porque você tem que estar drogado pra entender a piada. — Eu ri. — Ai, ai, há-há-há-há-há, vida difícil! Quando parei de me mexer, ele cortou o fio de sutura. Shigure, Yuki e Kyou me levaram de volta pra casa, e Hatori prometeu que iria depois, e que ficaria indo me visitar para ver o ferimento. O que achei uma droga, porque eu pretendia cicatrizá-lo com Ártemis enquanto o efeito do analgésico ainda estivesse me mantendo entorpecida. Ora, bem, o que eu não fazia para manter uma promessa? Kisa e Momiji foram me ver e ficaram comigo, descansando. Os dois estavam muito tristes pelo que havia acontecido, obviamente, mas tentei explicar a eles que eu não sentia dor nenhuma. O que? Não, é claro que eu não falei que era por causa de drogas. Ambos dormiram no meu colo e eu os deixei lá na minha cama. Quando saí ouvi, do corredor mesmo, que Hatori chegara e estava lá embaixo, discutindo com seus primos. Nem quando eu era mais marota eu aprovava esse negócio de ouvir conversas alheias: pesquisava por mim mesma e odiava saber qualquer coisa pela boca dos outros. Mas... Sentei-me no topo da escada, encostada na parede do corredor, e fiquei ouvindo. Eles estavam falando sobre apagar minha mente. Primeiro, Shigure foi contra, mas assim que Hatori esclareceu que aquelas eram as ordens de Akito, ele saiu da discussão. O único que bateu o pé até o final foi Kyou. E Yuki não se pronunciou em momento algum, ficou apenas sentado num canto, pensando, totalmente fechado. — TÁ! Apaga a mente dela! E aí depois o que?! Vai largar a menina debaixo de uma ponte?! — Kyou ficou gritando, todo irritado. — Ela não tem família nenhuma aqui! Se apagar todo o tempo em que ela esteve com a gente, ela vai ficar totalmente confusa! Vai se achar sozinha num país que nem é o dela! — É claro que não faremos assim. — Hatori explicou, inflexível. — Vamos mandá-la de volta. Hum, pensei. Isso não é bom. — COMO ASSIM MANDAR DE VOLTA?! Pra quem?! Ela não é um pacote com a encomenda errada!!! Pra onde vão mandar e-!! Foi aí que percebi que Kisa estava ouvindo tudo. Ela começou a chorar muito e se atirou no meu pescoço. Peguei-a no colo e sentei-me com ela alguns degraus abaixo, onde todos pudessem me ver. Fora Kisa, que ficou chorando, todos ficamos em silêncio por alguns momentos. — Precisa ser feito hoje? — Perguntei. E olhei para Hatori. — Ou eu posso ter pelo menos a noite para organizar algumas coisas? — Não precisa ser hoje. — Ele me disse. Assenti. Kyou ficou claramente muito puto. Ele devia estar esperando que eu fosse me revoltar e brigar pelas minhas memórias, e não aceitar que as apagassem tão passivamente. Olhei para ele, mas Kyou não entendeu meu olhar e destruiu a porta, saindo para a noite. Levantei-me e levei Kisa de volta para minha cama, Momiji ainda estava dormindo lá. Ela demorou muito para adormecer de novo, mas acabou indo. Desci as escadas e fui para a varanda. Já estava bem tarde e Shigure devia ter se recolhido havia algum tempo. Kyou devia estar lá fora ainda. E Yuki estava descendo as escadas e vindo sentar-se comigo. — Eu... — Ele começou a dizer. — Posso saber para onde vão... Mandar você? — Também não sei. — Eu ri. — Eu tomei bastante cuidado para não trazer comigo pistas que apontassem para o lugar de onde vim, então, espero que me mandem para o lugar errado. Olhei pra ele, um pouco envergonhada. — Me desculpe. — Pedi. Yuki fez um silêncio longo. E então disse: — Eu não entendo por que você pede tantas desculpas. Você é a única... Vítima aqui... — Hum... — Enruguei o nariz. Doeu, então parei. — Acho que eu vou ter que perder mais do que um olho para virar uma vítima... Ele abaixou a cabeça, deixando o cabelo esconder seu rosto. Seus braços tremiam, e os punhos estavam fechados. — Se... — Pensei na noiva de Hatori. — Se você... Vocês... Concordarem que me esquecer, e me fazer esquecer, será o melhor pra todos, então eu não farei nada. O que eu disse quando conversamos sobre isso da primeira vez, ainda é o que eu pretendo. Eu não vou me colocar contra uma decisão sua, ou da sua família, se isso for prejudicar vocês. — Olhei pra ele. — Se quiserem que eu desapareça, eu não aparecerei de novo. Se quiserem que eu esqueça vocês, eu não vou tentar me lembrar de ninguém. Se quiserem me esquecer, vou respeitar essa decisão. Percebi que ele começou a chorar em silêncio, e sufocar o choro. Esperei que decidisse. Eu já tinha tracejado alguns caminhos e ia, realmente, considerar a vontade de todos na escolha de qual deles seguiria a partir dali. Porque eu me importava. Mesmo. Continuei esperando. Yuki, então, voltou-se para mim, ainda de cabeça baixa, sentando-se sobre os calcanhares. — Eu não quero... — Ele disse, com a voz estrangulada, estendendo a mão para alcançar a minha. — Não quero que se esqueça de mim... Não quero que se esqueça de nenhum de nós... Nenhum de nós quer que você se esqueça... E se inclinou para frente, apoiando sua cabeça em meus joelhos. — Por favor, não se esqueça de nós... Consegui sorrir. Aquilo também doeu, mas continuei sorrindo. Beijei os cabelos de Yuki e fiquei com meu rosto ali por um momento, sentindo seu cheiro. — Sendo assim, vou me lembrar. — Prometi pra ele. Yuki apertou minha mão com mais força. Provavelmente não acreditava que eu poderia. Mas ele queria. Queria acreditar que eu ia lembrar. Ergui-me e fiquei mexendo em seus cabelos. Eu me sentia bastante aliviada, embora não tivesse muita certeza do por quê. Yuki acabou se deitando e dormindo ali mesmo. Eu o transformei e levei-o para sua cama. Ele nem acordou, o que achei bem engraçado. Capítulo 37 Akito quis que fosse feito na frente dele. Devia estar achando que alguém fosse aprontar alguma marotice para que eu escapasse do negócio se não estivesse monitorando os procedimentos com seus próprios olhos. Não fiz nenhuma objeção. Não sei se já disse isso antes, mas prefiro não contrariar gente louca. Talvez eu já tenha dito, sim... De qualquer forma. Não sei bem como foi que Hatori fez, mas eu desmaiei. Só que devo ter acordado antes do esperado, porque, quando abri os olhos, tinha um cara desconhecido me pegando no colo e um monte de gente desconhecida me olhando com cara de “ah-droga”. E eu fiquei olhando pra eles com cara de putaquepariufuisequestradavãoroubarmeusrins. Aí levei uma injeção e fui acordar num quarto de hotel. Não foi nada difícil perceber que alguém tinha feito ovos mexidos com meu cérebro, e, quando olhei para meu computador, percebi que ele tinha sido estuprado. Embora não conseguisse ter certeza do que haviam tirado dele, além de sua santa virgindade, é claro, porque não me lembrava do que deveria estar lá, eu tinha certeza de que alguém havia fuçado. Felizmente, eu havia me precavido contra isso. Tinha deixado várias coisas desnecessárias sobre os Sohma em pastas e arquivos bem visíveis. Fotos e coisas inúteis do tipo, justamente para serem apagadas. Therealshit estava bem escondidinha nos níveis mais profundos da minha lixeira. Descobri também que tinha escondido um chip dentro de um cortezinho no meu tornozelo, para o caso de trocarem, ou roubarem, meu computador, já que eles não conseguiriam formatá-lo. Na lixeira encontrei vários arquivos de texto enumerados, um nomeado por “ESTEPRIMEIRO”, e vários arquivos de áudio. Abri o arquivo de texto. Eu tinha imaginado que a hipnose de Hatori seria algo parecido com o que Kaname fizera comigo várias vezes, mas, na verdade, foi bem diferente. Algumas coisas foram voltando à medida que eu lia o texto, não tudo, porque, afinal, era só um tutorial com instruções que eu tinha deixado para seguir a partir dali. Ouvi alguns dos áudios, apenas os que o tutorial permitia, me perguntando por que havia me proibido de ouvir uns determinados lá até que conseguisse a espada. Liguei a TV. Ainda estou no Japão, constatei, largando o controle em cima da cama. Tentei abrir a porta, só por curiosidade. Estava fechada. Óbvio. Fiz um escandalozinho básico, para quem quer que a estivesse guardando, e saí pela janela, levando minha mochila. Sempre. Era um prédio bem alto perto do aeroporto internacional, e eu estava num dos últimos andares. O que não era nenhum problema pra mim. — Você vai cair. — Tio Rido me avisou. Levei um susto muito grande ao vê-lo lá, mas logo lembrei. — Bom, — disse a ele, após ter me recuperado — então talvez você queira me desejar boa sorte. Coloquei as serrilhas pra fora e desci. Não fiquei chorando quando cheguei lá em baixo, e dei um jeito de sumir bem rapidinho, enrolando meus braços em panos limpos. Fiquei escondida até a noite e continuei escondida por bastante tempo, até ficar bem tarde. Killua já estava no Japão, e me contara que descobrira um jeito de aumentar minhas chances de sobrevivência durante a fusão. Eu sabia sobre aquilo porque estava nos arquivos. Eu queria ir vê-lo, mas não podia, então pedi que me encontrasse no dia seguinte. Ele não ficou nada feliz com aquilo. Acontece. Fui primeiro à casa de Shigure. Porque estava no tutorial. Mas também porque eu queria. Afinal, eu lembrava. E foi isso o que escrevi no recado que deixei para Yuki. Fui, então, para a Residência Principal. Me senti muito louca por estar indo invadir o quarto de uma mulher sobre a qual o tutorial não dizia quase nada, mas não hesitei. Eu tinha muita confiança na pessoa que o tinha escrito. Ao chegar lá, vi Akito, e lembrei-me do que fizera ao meu olho. Mas foi só isso. Aproximei-me dela, e ela acordou. — Não vim fazer nada. — Eu a tranquilizei. Pela cara que fez, por um momento pensei que achasse que eu tinha voltado do além para assombrá-la. Akito fez que ia gritar, então subi em sua cama e segurei sua boca. — Escuta, você tem que me dar a espada! — Sussurrei pra ela, tentando mantêla calada enquanto ela lutava comigo. — Você não tem muito tempo, tem que confiar em mim! Eu posso quebrar a maldição... Akito parou de lutar quando eu disse. Seus olhos se voltaram para mim, carregando muito ódio e apenas uma pergunta. — Eu sei — respondi — que está grávida. E sei o que vai acontecer se essa criança nascer antes que a maldição seja quebrada. Você não vai encontrar outra pessoa em tão pouco tempo. Eu sei o que tenho que fazer. Akito desviou o olhar, tremendo de raiva nos meus braços. Esperei que se acalmasse. — Precisa confiar em mim. Ela me olhou nos olhos de novo, ainda um pouco contrariada. Lembrei-me de Hatori, procurando “algo” dentro deles. A diferença, é que Hatori parecia sempre encontrar. Akito, por outro lado, não achou o que estava procurando. E, de alguma forma, isso foi o suficiente. Seu rosto se suavizou um pouco e ela ergueu sua mão para tocar em minha testa. Quando o fez, o quarto sumiu. Eu me levantei, procurando ao meu redor qualquer coisa que se destacasse em todo aquele branco. Achei que estivesse completamente sozinha. — Khaiya? Khaiya! O que você está olhando? Voltei-me para o dono da voz. — Eu conheço você? — Ergui minhas sobrancelhas para o garoto. Ele ficou muito vermelho e franziu a testa. — Ela está dizendo que ainda está brava com você, seu otário! — Disse o outro garoto perto de nós, e então jogou algo parecido com uma fruta no rosto do que estava a minha frente. A fruta se espatifou na cara dele e explodiu em um monte de gosma roxa, que acabou vindo espirrar em mim também. Nós dois olhamos para o que tinha atirado. — Ah... — Ele olhou pra mim. Seu nome era Gillian, mas eu não sabia como sabia isso. Bom, não, na verdade, eu sempre soubera. O que eu não sabia era o que estava dando em mim pra eu esquecer as coisas daquele jeito. — Khaiya, eu não... Me desculpe... — Disse ele, realmente arrependido por ter me acertado. — Tudo bem, Gil, relaxa. É só... — Passei a mão naquilo, tentando tirar de mim. — Gosma roxa, pow, o que diabos é isso, afinal?! Nenhum dos dois me respondeu. O outro menino, Elliot, eu lembrara, tinha partido pra cima de Gil e estava brigando com ele, por ter me sujado. — Aff... — Revirei os olhos. Estava cansada de ficar vendo aqueles dois brigarem por qualquer motivo. — Ah... Peguei um lhimoe no chão. Era aquela fruta da gosma. Nós estávamos debaixo de uma árvore cheia delas. Dei alguns passos pra trás e mirei. Eu era muito boa naquele negócio de mira, porque acertei bem na testa de Gil. Os dois viraram pra mim, com gosma escorrendo de seus rostos. Ri tanto que meus pulmões começaram a dar aquelas fisgadas. — Vocês precisavam ter visto a cara que fizeram! — Fui falando. El deu um empurram em seu irmão e foi lavar o rosto no rio. — Estressadinho. — Gil murmurou, vindo me trazer um cantil para que eu lavasse o meu. — Obrigada! — Disse, toda feliz. — Vamos logo! — El urrou pra nós, subindo em sua montaria. Era um bicho entranho, parecido com um cachorro cinza grande, mas com pernas bem mais grossas e uma cauda bifurcada, como a de um golfinho. Golfinho? Cachorro? Parei pra pensar. De onde tirei isso? Eu não sabia o que era um golfinho. Nem o que era um cachorro. Mas sabia que a montaria de El chamava-se Dargo e era um tereobus. Olhei para Gil com um meio sorriso. Ele ergueu as sobrancelhas para mim duas vezes e foi me empurrando. Fomos até nossas montarias. A minha chamava-se Cheska e era lilás. Gil ajudou-me a montar nela e então subiu no seu. O dele chamava-se, tentei lembrar, Zumarie. — Assim não vamos encontrar o Espelho nunca! — El gritou pra nós, lá da frente. — Fica a dica: — gritei em resposta, colocando minhas mãos aos lados da boca — você não é o líder dessa quest! Ele não deu a mínima pra mim e saiu galopando. — Sério, seu irmão está cada vez mais insuportável! Gil deu um riso gutural. — Meu irmão, não é? Se é assim, — sorriu pra mim, com aquele seu sorriso tobrincando-mas-na-verdade-to-falando-sério — desmanche o noivado e se case comigo. Fiz um barulho do fundo da minha garganta e olhei torto pra ele. — Tá louco?! — Sibilei. Gil deu de ombros e me deixou pra trás também, indo alcançar seu irmão. Apertei meus olhos para aqueles dois. Que história estranha, fiquei pensando. Fiquei andando na velocidade que Cheska tinha animo para usar. Não gostava que El e Gil os forçassem a correr durante o dia, já que nossas montarias eram noturnas. Depois de alguns minutos, El voltou para o meu lado e foi Gil que ficou lá na frente. Esperei que me dissesse seu problema, mas ele não disse, nem mostrou sinais de que diria num futuro próximo. Suspirei. — Se não vai conversar comigo, não precisa ficar se forçando a continuar aqui do meu lado. Não é como se eu fosse fugir, sabe? El me olhou como se eu tivesse dito algo absurdo. — Você quer conversar? — Me perguntou, franzindo o cenho. — Ãh, sim? El ficou de novo muito vermelho e virou o rosto. Nós não conversamos. Como nunca conversávamos sobre nada. Quando escureceu, deixei que Cheska corresse. Ela era bem mais rápida do que os machos e logo alcancei e passei Gil. Corremos toda a noite e, então, assim que começou a clarear, paramos. Estávamos num bosque bem aberto e montamos acampamento ali mesmo. Eu não tinha o menor sono, mas El anunciou que dormiria e me puxou para dar-lhe um beijo. — Ow, ow, ow! — Falei, desviando. Gil nos lançou um breve olhar, mas, rapidamente, volto-o para outra direção. Elliot ficou um pouco aborrecido. — Qual é o problema agora?! — Me perguntou. Como se ficar me agarrando bem na frente do irmão não tivesse nada demais. Eu me irritei com sua falta de sensitividade e soltei um urro de frustração. E saí andando. El não veio atrás de mim e eu nem liguei. Queria ficar sozinha. Andei por mais tempo do que me pareceu. Só parei quando percebi que a floresta já estava densa demais e que, se continuasse seguindo adiante, me perderia. Pensei em voltar. Mas não queria. Queria continuar um pouco mais. E foi o que fiz. Eu sempre fazia o que queria. Foi ficando cada vez mais escuro, muito embora o sol não pudesse ter baixado ainda. Então, muito de repente, entrei numa clareira cheia de luz. A luz vem de baixo? Notei, bastante impressionada. Eu o havia encontrado. O Espelho. Entrei nele. Era uma fonte que jorrava um líquido muito reluzente. Andei até o centro do Espelho e me curvei em frente à fonte. Havia um bebê ali. Sentei-me sobre meus calcanhares e fiquei olhando. O bebê é a fonte, pensei. Queria tocá-lo, pegá-lo e cuidar dele eu mesma, mas ele parecia feliz ali. — Você conseguiu. — Disse Gil, segurando minha mão. — Encontrou o Espelho. — Ãh? — Olhei para ele. — Ah... Sim. — Voltei a olhar para o bebê. — É lindo... — Sim... — Ele se inclinou pra olhar para o meu rosto. — Vamos, pegue-o, ele não vai ficar aí pra sempre. Você deve pegá-lo. — Quê? — Estranhei. Parecia muito óbvio para mim que não era aquilo que eu devia fazer. — Tem que pegá-lo, ou vai desaparecer. — Gil me explicou. Abaixei meus olhos de novo para a criancinha. Ela riu, esticando os braços pra mim, toda fofinha. — Não vou tirá-lo daí, Gil. — Decidi. — Você precisa. Foi pra isso que viemos aqui. Não foi...? Khaiya...? — Gillian. — Encarei-o. — Não vou fazer isso. Gil se espantou comigo. E aquilo pareceu deixá-lo um pouco atravessado. — E como pretende derrotar seu irmão, então? Aí fui eu quem ficou surpresa. Gil tinha dito derrotar. Mas era claro que queria ter dito matar. — Eu não pretendo. — Esclareci. Gil fez um barulho irritado vir do fundo de sua garganta e se levantou. — Então é isso? Vai simplesmente decidir esquecer tudo que ele fez a você? Vai perdoá-lo, depois de tudo que ele te fez passar? Fiquei olhando para ele. O bebê soltou uma risadinha gostosa e então dormiu, desaparecendo. A floresta voltou a ser escura e eu me levantei. — “Gillian”, — olhei pra ele, juntando minhas sobrancelhas — eu nunca falo sobre o que meu irmão me “fez”. Gillian sustentou meu olhar por um momento. Então sorriu. E a floresta desapareceu. — Yuki?! — Quase caí pra trás. Gillian tinha virado um menino igualzinho a Yuki. Ele riu. — Não. Meu nome é Shú. — O rato? — Supus. — Sim. — Shú sorriu. — E o que foi isso? Tipo, um jogo dos sete erros? — Tipo. Sim. Algo do gênero. Como percebeu? — Hum. Acho que você forçou um pouco a barra com o lance todo de “irmão”. Quer dizer. Eu, saindo numa busca com dois “irmãos”, para encontrar um meio de derrotar o meu “irmão”. Noiva de um “irmão” e tendo o outro “irmão” apaixonado por mim... Sei lá. Achei tudo meio errado demais... Shú continuou sorrindo. E então sumiu. Vi-me no alto de uma colina. Olhei em volta. Eu estava em cima de uma cidade. Bom. Nós estávamos. Haru estava lá também. Ele estava sentado na grama, ouvindo música com headphones bem grandes e pré-históricos, olhando para a cidade com a maior cara de paisagem. Sentei-me ao seu lado e fiquei olhando também. — Qual é seu nome? — Perguntei a ele. — Niú. E o seu? Khaiya? — Ele me olhou. — Ou Yuuki? Pensei um pouco. — Acho que tanto faz. São só nomes. — Hum... — Ele pensou também. — Acho que tem razão. — Concluiu, e continuou olhando pra frente. Passamos o dia todo ali, olhando para aquela cidade. Havia uma corrente constante de ar subindo dela para nós, e eu me sentia muito bem só de ficar ali, pegando aquele vento. Quando o sol se pôs atrás dos prédios mais distantes, Niú colocou seus headphones na minha cabeça e deu dois tapinhas nas minhas costas. Então ele também sumiu e quem apareceu em seu lugar foi Kisa. — Levante-se. — Ela me disse duramente. — Levante-se! Tentei obedecê-la, mas não pude. Minhas pernas estavam destruídas. Comecei a dizer a ela que deveria ir à frente, que eu a alcançaria depois, mas Kisa não quis me ouvir. Ela pegou meu braço e passou ao redor de seu pescoço. Disse a ela que não fizesse aquilo, mas Kisa era extremamente forte e foi me carregando. Ela atravessou um pântano comigo, praticamente me carregando sozinha. Ajudei como pude, mas fui um completo estorvo pra ela, mesmo assim. Quando terminamos de atravessar, Kisa me ajudou a sentar e foi embora, seguindo seu caminho. — Você deve pedir ajuda se precisar. — Foi me dizendo, dura, enquanto se afastava. — As pessoas não vão ajudar você sempre, se você não pedir. — Qual é o seu nome?! — Gritei, quando ela já estava meio longe. Quase me esquecera de perguntar. Não a ouvi responder. Mas pesquisei na internet depois. Era Hú. — Consegue se levantar? — Momiji se curvara para mim, me olhando cheio de preocupação. — Consigo. — Sorri pra ele. E, de fato, eu consegui. Momiji ficou feliz por confirmar que eu estava bem e segurou minha mão. — Vem comigo? — Pediu, olhando-me com seus olhões azuis. — Claro! Para onde vamos? — Vou levar você até o dragão. — Ah... Quem é o dragão? Quer dizer... Com quem ele se parece? Momiji riu. — Você deve achá-lo parecido com o senhor Hatori. Bom, isso se me achar parecido com o menino Momiji. — Você parece, sim! — Sorri pra ele. Minhas recordações de Momiji voltaram no momento em que vi aquele menino. — Sabe se ele está bem? — Sei que ele sente sua falta. — O menino parecido com Momiji me disse, sorrindo. — Pretende voltar para eles depois de conseguir o que veio buscar? — Ah. Sobre isso... — Pensei. — O que eu vim buscar, mesmo? — Ri. — Não lembro mais. Ele riu também. — Tudo bem. Mas tente lembrar antes de chegar ao Gato. Pronto! Nós chegamos! Olhei em volta. — O dragão está aqui? — Perguntei. — Sim. Ele não pensou em nada, então vai lutar com você. Mas não precisa ficar com medo, viu? Ele me disse que não vai machucá-la. Só se esforce para poder vencer. Está bem? — Okay. O menino me deu um último sorriso e se foi. Hatori apareceu. E, sem me dizer nada, conjurou em um grande dragão. Que me atacou. Desejei ter Ártemis, e estava prestes a libertá-la, quando uma de suas lâminas surgiu em minhas mãos. Legal, pensei, um pouco antes de sair correndo. Lidar com o dragão não foi muito fácil, mesmo que eu só estivesse fugindo. De alguma forma, ele controlava toda a vida vegetal ao nosso redor. Se não tomava cuidado, uma raiz enrolava-se no meu tornozelo e tentava me derrubar. Fui para um lugar mais aberto e esperei pelo Dragão. Ele era como uma grande cobra. Praticamente um basilisco. Quando me encontrou, preparou-se para me dar o bote de cima. Não me movi até o último segundo e, quando as presas da fera estavam a apenas alguns centímetros de mim, saltei para trás. Com isso, ela bateu o focinho na terra e eu o escalei, subindo para sua cabeça, e, então, ela me ergueu bem alto, movendo-se a minha procura. Vou morrer se cair daqui, concluí, fincando a ponta da foice no couro do pescoço do Dragão. Ele se debateu por causa do que fiz e tive que me segurar para não ser jogada longe. Quando percebeu que era eu que estava ali em cima, o Dragão tentou enterrar a cabeça de novo no chão. Eu corri pelo seu corpo, percorrendo todo ele até a cauda, arrastando Ártemis comigo. Saltei para o chão e olhei para trás, esperando ver o efeito que poderia ter surtido da minha maluquice. A enorme serpente estava se contorcendo em agonia. Sua pele parecia estar caindo. — Tá brincando comigo. — Sibilei, e saí correndo, porque percebi que só conseguira fazer aquilo trocar sua couraça. Mas não fui muito longe. As raízes no chão me atacaram de verdade daquela vez, tirando primeiro a foice da minha mão e então imobilizando todos os meus membros. Tentei me libertar, e continuei tentando até que a enorme serpente viesse. Eu não podia vê-la, pois estava às minhas costas, mas percebi que deixou algo no chão perto de mim. Era Hatori. Ele deu a volta e parou na minha frente. Fui solta e caí de joelhos, respirando. — Eu... — Ofeguei. — Perdi... Né...? Ele se agachou onde estava e olhou meu rosto. — Não. — Disse. — Você foi muito bem. E desapareceu. Fiquei de pé. Não apareci em outro cenário. Continuei naquele nada todo branco. Ayame estava lá também. Ele fez aquela sua reverência exagerada e sorriu pra mim. — Não preparei nada também. — Me deixou saber. — Você e eu somos bem parecidos, qualquer coisa que eu bolasse seria muito fácil. Por isso vou deixar que passe. Então fez um gesto amplo, como se realmente quisesse que eu seguisse em frente. Pensei. Talvez eu devesse passar sem dar-lhe as costas. Afinal, Ayame era a cobra. Pensei um pouco mais. Bom, conclui, ele me deixou passar, não deixou? — Muito obrigada. — Disse-lhe, inclinando-me para ele. E passei. O branco infinito se transformou em uma sala de aula. Olhei ao meu redor, procurando Ayame, mas não encontrei. Quem encontrei foi Rin. Eu nunca a tinha visto pessoalmente, mas a reconheci, por já ter visto fotos suas. Ela sufocou uma risadinha e fez sinal pra eu me abaixar. Percebi que eu estava de pé no meio de uma classe, bem durante uma aula. O professor me encarou e perguntou se eu estava com algum problema. Pedi desculpas e me sentei. Rin ficou segurando o riso e estendeu a mão para meu caderno. “Você tá muito esquisita!”, escreveu. “O que é que você tem?!!”. “Eu sou esquisita.”, respondi. “Muito mais esquisita!”, ela retrucou, quando leu o que eu tinha escrito. Então o professor brotou do nosso lado e viu o que estávamos fazendo. E tivemos que ir ambas ter uma conversa com o diretor. Ficamos bastante tempo lá, cada uma tentando convencê-lo de que a outra não tinha culpa. No final, fomos juntas para a detenção. Cumprimos a detenção perseverantemente e saímos da escola bastante tarde por isso. Eu a acompanhei até sua casa, porque ela era muito novinha e bonitinha, e tinha um monte de garotos suspeitos no caminho da escola até lá à noite. Quando chegamos, ela me deu um abraço e um beijo no rosto. — Até amanhã! — Disse. E então tudo desapareceu. — Não deviam ter sobrado tantas peças... — Hiro falou ao meu lado, frustrado. — Podemos desmontar e montar de novo. — Sugeri, olhando para o carrinho que tínhamos acabado de terminar de montar. Hiro testou o controle remoto. O carrinho funcionava perfeitamente. — Vamos desmontar. — Falou. Desmontamos e montamos de novo várias vezes, e a mesma quantidade de peças sempre sobrava. — Será que não veio nenhuma a mais? — Vieram algumas a mais propositalmente. — Ele foi me dizendo, batendo o cabo da chave em sua testa várias vezes. — Mas não era para terem sobrado todas essas. — Certo. — Falei, puxando o manual de instruções pra mim. — Vamos de novo então. Verifiquei passo a passo se estávamos fazendo e usando tudo certo. Estávamos, e ia sobrar exatamente a mesma quantidade de peças que tinham sobrado das outras vezes. Então, escondi uma, sem que o menino percebesse. — Viu! — Me disse ele, todo feliz. — Eu disse que estávamos esquecendo alguma coisa! Sorri pra ele e fiquei sentada, olhando-o brincar com seu novo carrinho de controle remoto. Então o menino desapareceu e Ritsu ficou em seu lugar. E ficou sorrindo pra mim. — Sabe quem sou? — Me perguntou. — O macaco. Mas não sei o nome em chinês. — Deixei logo claro. Ele me olhou pensativo. — Você decorou a ordem dos signos? — Sugeriu então. — Não. Mas eu já vi Ritsu e os outros em fotos. Bom, alguns também conheci pessoalmente. Aliás, quem me falou de Ritsu foi a mãe dele. Mães falam um monte de coisa, né? Sabe como é. — Ah... — Ele sorriu. — Então acho que não adianta muito fazer as perguntas que eu estava pensando em fazer. Então, deixe-me perguntar, já sabe por que está aqui? — Não... Mas eu vim buscar alguma coisa, não vim? — Não faz ideia do que seja? — Nenhuma, confesso. Me diz: se eu não descobrir antes de chegar ao Gato, ele não vai me dar, tipo assim? — Não sei. — Ele riu. — “Confesso”. E sumiu. Kureno apareceu. Ele era o Galo. — Não vou deixar que consiga o que veio buscar se não descobrir o que é, Khaiya. — Me alertou, muito sério. — Por que não? — Eu quis saber. — Se você não souber o que é, como saberá quando vir? Não te preocupa a possibilidade de passar direto pelo que quer que seja sem perceber? Pensei. — Não. — Cheguei à conclusão. — Tenho certeza de que, quando colocar meus olhos no negócio, vou saber. — Como pode ter certeza? — É assim que a minha memória tem lidado comigo ultimamente. — Respondi. — Ela me deixa saber das coisas assim que as vejo. — Como veio parar aqui se não sabia o que vinha procurar? — Kureno exigiu mais uma vez, perdendo um pouco a paciência. — Eu sabia. — Retruquei. — Esqueci quando cheguei. — Se você sabia, então lembre. Eu tentei. Tentei de verdade. — Nem consigo. — Desisti. Kureno suspirou. — Lembra a menos o porquê de estar procurando o que está procurando? — Ah. — Lembrei quando ele perguntou. — Estou procurando pelos meus amigos, e por mim também. — Bem, então. — Ele olhou para seus pés, pondo as mãos nos bolsos. Então se foi. E veio Shigure. — O que está achando dos meus companheiros? — Me perguntou com um sorriso. Sorri também. — Estou gostando de todos eles até agora. — Respondi, sendo muito sincera. — É mesmo? — Continuou sorrindo. — Quantos já foram? Contei. — Dez companheiros seus. — Mostrei a ele os dedos que tinha contado. — Onze signos contando com o senhor. — Certo. — Assentiu. — E quem falta? — O gato... — Tentei lembrar. — E... Repassei todos. Sabia que estava esquecendo alguém... Ou mais de uma pessoa, mas... — Não consegue se lembrar nem de quantos são? — Doze e o Gato. — Falei, antes mesmo de notar que havia lembrado. — Quem falta é... Hm... Shigure esperou, sorrindo pra mim pacientemente. — O javali! — Falei, assim que lembrei, muito contente comigo. Kagura apareceu na minha frente. Ela segurou minhas mãos, sorrindo pra mim como se fossemos muito amigas. — O que veio buscar? — Me pediu que dissesse. Fiquei rindo. — Galera, eu não me lembro... — Falei, rindo ainda. — Vou lembrar quando vir. — Você lembrou que eu era a décima segunda! — Ela contou aquilo ao meu favor. — Você vai lembrar pelo que veio! Vamos, vamos! Tente, tente! Inclinei minha cabeça para o lado, olhando para ela. Kagura parecia ter certeza de que estava certa. Resolvi acreditar nela e tentei, confiante que encontraria a resposta lá dentro, em algum lugar. Vi uma foice, e pensei em dizer que estava ali por ela. Mas não era. A foice era do que eu queria me livrar. Pensei mais um pouco. — Eu quero... — Comecei a falar. Falar ajudava. — Algo que me ajude a tirar algo de mim... — O que quer tirar de você? — Uma arma. — E do que precisa? — De uma arma. — Que arma? — Ela sorriu, vendo a resposta aparecer nos meus olhos. — Uma espada! — Quis gritar, sentindo uma excitação imensa transbordando do meu peito. Ela inclinou a cabeça para o lado e sorriu tanto que seus olhos pareceram dois tracinhos cheios de cílios por um momento. Kagura sumiu e eu vi a espada lá longe, flutuando acima do chão. Fui pegá-la. Ao me aproximar, percebi que ela não estava flutuando. Era Kyou que a segurava ali. — Vai me dar? — Perguntei, esperançosa. Kyou sorriu, estendendo-a para mim. Eu a segurei. E voltei para o quarto de Akito. Cambaleei pra trás. O chão era um pouco diferente ali. Notei que ainda segurava a espada, e que Akito me olhava sem acreditar. Sorri para ele. Não. Sorri pra ela. — Muito obrigada. — Disse, reverenciando. E fui embora. Capítulo 38 Abracei Killua com força. — Senti sua falta... — Falei baixinho. Ele me abraçou também, envergonhado, como da outra vez. — Sua idiota... Eu disse pra você me esperar... — Eu ia. Mas você me conhece. Beijei seus cabelos e olhei pra ele. — E aí? Vai me falar como é aquela parada lá? Ele sorriu. — Vai aumentar suas chances de lutar ao lado da arma que você escolher. Meu pai vai te explicar melhor, ele está esperando a gente. Killua me explicou que acabara descobrindo que, na verdade, foram realizados, sim, experimentos em que colocavam armas de origens diferentes nas mesmas crianças, mas que, como isso não trazia nenhum benefício adicional as que sobreviviam, as pesquisas foram deixadas de lado. Foi um alívio saber que existia uma chance de eu sobreviver. Embora não curtisse aquela história de usar crianças como cobaias nem um pouco. Íamos para a Sibéria. Killua me contou que seu pai e seu avô já estavam lá com tudo pronto para fazermos. Ele me disse que eu ia conseguir. Sorri para ele. Nós nos preparamos para começar todo o processo de trocas de identidades de novo. E eu li, e ouvi, todos os arquivos que encontrara na lixeira, sabe, antes de ter ido buscar a espada. Ah, e mostrei-a a Killua, que ficou bastante impressionado. Afinal, ela era mesmo muito impressionante. Nós compramos uma Bazzuka revestida de nylon com estampa camuflada para carregá-la, e saímos andando com ela para todo lado, como dois mestres em sobrevivência em ilhas desérticas. Tio Rido estava bem louco, mas não era como se ele pudesse fazer muito além de me atormentar por isso. E eu estava aguentando bem, até. Vou me livrar dele em breve, eu dizia. Porque não sabia que não seria tão em breve quanto eu gostaria. Mas descobri logo... Porque, infelizmente, lembrar e esquecer são coisas complicadas, e eu estava deixando de lembrar algo bem importante. Bem. Finalmente, chegou o dia de viajarmos, e fomos para o Aeroporto Internacional, lugar que, não sei se você não lembra comigo, vampiros de sangue puro podiam frequentar livremente. Bom, então, eu não me lembrava. E daí que veio a merda. Ao colocar meus pés lá dentro, as criaturas de Kaname vieram e começaram um turbilhão ao meu redor. Eu gritei, percebendo meu erro, e tentei jogar a espada para Killua. Não consegui. Killua sumiu, e o aeroporto também. E, então, eu estava num quarto. E não estava mais com a espada. Fechei minhas mãos, pra ter certeza de que ela não estava mesmo lá. Não estava. — Não, não... — Quis chorar, agarrando meus cabelos e puxando-os para baixo. — Não... Não... Comecei a soluçar e a andar pelo quarto. Burra, burra, fiquei me xingando. Como pôde ser tão burra?! Parei numa parede e me encostei a ela. Continuei chorando. Rido ficou lá, rindo de mim. Chorei. Não sei ao certo quanto tempo se passou até que os passos de meu irmão o aproximaram de mim. — Yuuki — ele disse, e eu mal reparei que Kaname não devia chamar-me assim — foi o nome que Jiyuri escolhera para você. Você sabia? Balancei minha cabeça. Embora quisesse muito, na época em que Killua e eu tínhamos começado a escolher um novo nome por minuto, guardá-lo para quando pudesse usá-lo por bastante tempo, eu não sabia que era por isso que gostava dele. Se soubesse, provavelmente escolheria outro. O que importava? Era mesmo só um nome. — Foi assim que você me achou? — Eu quis saber, para saber o quanto teria que me arrepender daquilo. — Não. — Ele disse, mas não me senti nada melhor. Kaname deslizou sua mão para meu pescoço, e empurrou minha mandíbula com seu polegar. Eu não queria olhá-lo, mas entendia que era inútil colocar minha vontade contra a sua. Meu irmão, então, se curvou para deixar nossos rostos frente a frente e me olhou por um momento. — O que faria, em meu lugar, — começou a me perguntar, calmo demais — para castigar uma criança que estivesse tentando educar? Apertei meus olhos e meus lábios, sacudindo a cabeça. Eu não sabia. Mas não achava que era uma criança, nem que devia ser educada. Talvez por eu pensar assim, Kaname me achasse uma. E talvez eu fosse. Meu irmão me mordeu, e não impediu de doesse, nem que eu visse seus pensamentos. Não sei como descrevê-los. Kaname me mostrou o que estava sentindo e o que sentira naqueles meses em que eu estivera longe. E viu também os meus, o que o aborreceu ainda mais. Comecei a chorar de verdade, de novo. Eu queria abraçá-lo, dizer que estava tudo bem, que eu estava bem e nada aconteceria comigo, e também queria que parasse de fazer aquilo, porque estava me machucando pra valer. Acabei soltando meus cabelos e tentando abraçá-lo, mas Kaname não permitiu. Ele segurou meus pulsos, e afastou-os. Fiquei chorando até ele ter terminado. Só aí me deixou abraçá-lo. — Por que está chorando? — Me perguntou, abraçando-me também. — Acha que fui duro com você? Mostrei-lhe apenas o que fez, nada mais. Fiz que não. — Não posso ficar... — Disse a ele. Kaname apenas me segurou, em silêncio. Apertei meus braços ao redor de seu pescoço com mais força, sem saber o que fazer. Não conseguia figurar nada pra dizer que me tirasse dali. Não tinha planos. E não ter planos era uma coisa bem chata. — Não sou um passarinho, Kaname. Também não sou sua boneca. — Falei, soltando-o e me apoiando de volta na parede. — Não ser adulto não quer dizer que eu seja uma criança que não pensa... — Não. — Kaname limpou as lágrimas que ainda escorriam pelo meu rosto com as pontas dos seus dedos, inclinando-se de novo para mim. Achei que fosse beber mais sangue meu, mas não foi isso o que ele fez. E como posso expressar o que senti naquele momento... Bom. Senti o mesmo que sentira quando... Zero... Ah, você sabe. Eu sabia um pouco sobre aquela tendência dentro da minha família. Sabia que meus pais e tio Rido eram irmãozinhos, e, tipo, não irmãozinhos adotados, nem mesmo meio irmãozinhos... Irmãozinhos de pai e mãe, mesmo. Assim como meus avós. E os pais e avós deles. De fato, minha família descendia de uma cadeia de incestos que começou com Kaname e sua irmã. Ambos haviam nascido com a mutação. Eu entendia. Afinal, qual eram as chances...? Kaname e sua irmã tiveram filhinhos, e os filhinhos deles tiveram filhinhos com seus irmãos... E assim por diante, e assim por diante, e assim por diante. Foi desse modo que a família Kuran tornou-se a família de sangues-puros mais pura da face da terra. Achou disgusting, né? Bom, eu não achei, quando fiquei sabendo, porque era criança e não sabia que essas coisas davam um tilti louco no bagulho. Mas, mesmo que isso fosse comum e, praticamente, uma tradição entre os Kuran, é claro que eu não queria Kaname criando sentimentos daqueles por mim. Quer dizer. Reflita comigo: Kaname era... Ele era... Reflita. Meu tataravô (e seja lá quantos tatara tenhamos que enfiar aí no meio). Né? Daí, assim. Eu fiquei lá. Achei que, considerando as circunstâncias, não tinha exatamente o direito de pará-lo, apesar de ser, tipo, a minha cara bem ali. Então Kaname encostou nossas testas. Fiquei pensando. — Toda vez que você fazia isso, então, na verdade, você estava querendo... Me... Ahm... — Perguntei, sentindo meu rosto um pouco quente entre as mãos dele. Me ocorreu então que, quando eu era bem pequena, meus pais achavam bonitinho que eu cumprimentasse Kaname com um selinho. Olhei pra ele. Aquilo era tão estranho. Havia poucos minutos, eu estava pronta para ir para Sibéria, fazer algo que estava planejando havia meses, e agora estava ali, com meu irmão, de quem eu já tinha conseguido escapar uma vez... E com certeza não ia conseguir repetir a proeza. Bom, pelo menos, eu estava mais calma. E estava pensando, o que era uma coisa muito boa. — Eu não posso ser... Ahm... Eu... Não posso... Ser isso. — Disse a ele, empurrando-lhe as mãos com cautela. Mas Kaname então segurou as minhas, por um momento, sem ter certeza do que queria fazer com elas. — Khaiya, eu a manterei aqui, mesmo que não me permita tocá-la novamente. Mesmo que me odeie por isso, eu não a perderei. De novo. — Ele levou minhas mãos para seu rosto, e tocou sua pele fria com elas. — Para mim, é suficiente tê-la comigo. Eu a quero aqui, Khaiya, onde sei que posso mantê-la segura. — Você não pode manter um humano seguro. — Expliquei. — Humanos nunca estão seguros de nada. Eu posso morrer daqui a uns, sei lá, quinze segundos, tá ligado? Eu posso escorregar, tipo, no banheiro, e bater a cabeça na quina da porta... Meu irmão me olhou, aborrecido, me desafiando a dizer que eu achava mesmo que deixaria algo idiota daquele gênero acontecer. Me encolhi. — Ou posso morrer a cinquenta anos daqui. Não importa. Eu não sou uma vampira. Você não vai me manter viva pra sempre... Kaname continuou me deixando sob seu olhar duro e repreensivo, e então, soltando minhas mãos, apoiou as suas à parede e empurrou sua testa contra minha outra vez, ainda me olhando daquele jeito. — Está dizendo que, por ser humana, a morte parece apelativa para você? Por quê...? Você não está apenas sendo pouco incoerente... Por que motivo nem ao menos tenta fugir dela? Como os outros da sua espécie... — Daria no mesmo que tentar fugir... — Pensei em não completar aquela frase. Mas acabei resolvendo dizer, sim. — De você. Kaname me olhou por mais um momento, então fechou seus olhos, inspirando e expirando pesadamente, e abriu-os de novo. — Se a morte é o que você deseja, — ele inclinou o rosto, para me beijar de novo — prefiro matá-la com minhas próprias mãos. Ou deixar que me mate. Não gostei do que disse e afastei meu rosto daquela vez, indo bater meu nariz em seu braço. Esqueci-me de que estava ali. Não estava vendo muito bem aquele lado por causa do meu olho cego. Sim, também não estava prestando muita atenção. Acontece. Caolhos se esquecem, não há nada a fazer sobre isso. Enruguei meu nariz e me segurei para não coçá-lo, mas Kaname já havia percebido. Ele segurou meu rosto e afastou os fios de meu cabelo do meu olho. Eu o tinha cicatrizado bem, depois de sair dos cuidados de Hatori, usando Ártemis. Mas, talvez, não tão bem quanto eu imaginava. Meu irmão ficou claramente muito puto com aquilo. Afinal, quem não fica quando empresta o livro preferido e ele volta todo arrebentado? Sério, fiquei pensando nisso naquela hora. — Você devia ter ficado quieta, obedientemente, sob os cuidados daquela família. — Disse, falando muito baixo e devagar. — E não se metido nos problemas deles. Puxei o cabelo de novo pra cima do olho e desviei meu olhar. — Você quer acabar com todos os sangues-puros, não é isso? — Perguntei a ele. — O que vai fazer comigo, então? Mesmo que consiga pegar Shoutou e Shirabuki, mesmo que transforme a si mesmo em um humano, meu tio continuará aqui comigo. Você certamente pensou bastante sobre isso antes de decidir que não me deixaria fazer como eu quisesse para me livrar dele. — Olhei-o de novo. — O que decidiu? Me manter viva e destruí-lo parcialmente toda vez que ele renascer? Vai me deixar aqui até que eu me conforme e entre na sua zona de conforto? Vai esperar que eu morra bem velhinha antes de acabar com isso? Espera que eu concorde com esse plano? Porque eu não concordo. Rido não me deixa mais sozinha... Nem por um único minuto. Ele fica sempre ali. — Olhei para meu tio. — Me dizendo coisas. Tocando em mim. Me olhando o tempo todo. Eu não fui até o Japão para meter meu nariz na vida de ninguém, fui por mim mesma. Mas me meti, o que posso fazer? Eu me meto, é isso que faço sempre, não é? O que você esperava de mim? Kaname se ergueu, ficando totalmente reto. — Eu esperava — ele disse — que escolhesse ficar ao meu lado. Que me dissesse que estava com medo, e que me pedisse ajuda. Não que fugisse, para tentar resolver todos os seus problemas por si mesma. Kaname se afastou e foi até a porta do quarto. Ele me disse que ela ficaria aberta, que a casa era minha, e que eu podia andar por toda ela à vontade. Mas que não sairia. Cerrei os punhos e assenti. Não ia ganhar nada discutindo mais com ele naquele dia. Capítulo 39 Kaname estava sentado no chão, ao lado da minha cama. E eu tinha me ajoelhado de frente pra ele, com meus braços cruzados em cima de sua cabeça, e meu rosto apoiado neles. No começo, eu tinha que me controlar bastante para não começar a agir como criança quando ele estava por lá. Eu não sei bem. Era hábito. Quando Kaname chegava perto de mim, eu sentia como se devesse começar a ser bobona. Mas não queria me valer mais dessa tática. E nem achava que fosse funcionar. Ainda assim, era complicado. Porque, em parte, eu gostaria que as coisas voltassem a ser como antes. Mas também achava que querer aquilo era extremamente ridículo e infantil. E, principalmente, queria que Kaname me deixasse ter aquela espada de volta, e me deixasse ir. Então eu pedia a ele. — Não vou devolvê-la, Khaiya. — Meu irmão dizia. — Pare de me pedir isso. — Vou parar, assim que me devolver. E aí Kaname me abraçava com mais força, como se tivesse medo que, se não me segurasse direito, eu acabasse me teletransportando para outro lugar. — Eu estou ficando sem tempo. — Falei então. Kaname me prendera lá havia uns meses já. — Não está, não. — Eu disse a ela para confiar em mim... — Só posso dizer que essa foi uma grande irresponsabilidade da sua parte. Suspirei. — Tio Rido vai dar voltar algum dia. — Deitei minha cabeça na dele de novo. — E ele fica me dizendo que vai matar os meus amigos... E eu não... — Khaiya, o corpo de Rido não vai se recuperar antes que você tenha completado oitenta anos. E, mesmo que acontecesse, dessa vez, nós o estaríamos vigiando. Ele não chegaria nem perto de você ou dos seus amigos. Você não tem que ouvir o que ele diz. Kaname me afastou um pouco e puxou meu rosto para beijá-lo. Então Aidou entrou no quarto. E saiu, ao ver o que meu irmão estava fazendo. — Entre. — Kaname autorizou, levantando-se e me fazendo sentar na cama. Hanabusa tinha virado, meio que, a minha babá. Algo que eu achava bastante engraçado. Mas não engraçado, tipo, de dar risada. — Eu, é, ahm, sinto muito... — Disse, todo desconsertado. Aidou era uma figura. — Mas, ahm, meu pai está aqui... — Descerei em um minuto. — Kaname respondeu, com uma de suas mãos em meu rosto. Aidou obedeceu, pedindo licença e fechando a porta do quarto. — Desça comigo. — Me disse, ajoelhando-se no chão e beijando meu olho cego. — Pra quê? — Segurei suas mãos, fechando e apertando o olho que ele beijara. — Me faça companhia. — Kaname, eu sei o que você está tentando fazer. O que absolutamente não significa que eu concorde. Ele me olhou. E eu desviei o olhar. — Nem todas as fórmulas exigem um coração de sangue-puro. — Falei, mostrando como eu estava ligada naquele assunto. — E em nenhum lugar dizia que apenas um vampiro podia ser transformado de uma vez. Você não tem que... Hum. Matar todos eles... Sabe. Kaname se levantou, sem dar a mínima atenção para o que eu tinha acabado de dizer. — Descanse. Eu virei buscá-la mais tarde. Pedi a Luka que viesse ajudar você. Enruguei o nariz. Luka não ia muito com a minha cara, não sei se você consegue imaginar por quê. Mas, bem. Eu pensava que, pra ela, devia ser bem pior vir me ajudar do que era, pra mim, ser ajudada por ela. Ninguém me dizia nada, não, obviamente, mas eu não era cega... Bom, não totalmente, e nem uma idiota, a ponto de achar que um vampiro sangue-puro adulto beberia sangue apenas e exclusivamente de uma garotinha de quatorze aninhos e ela conseguiria viver numa boa dessa forma. Mesmo que eu já estivesse quase chegando aos quinze. Então, ficava na minha. The-Lady’s-choice-and-a-Gentleman’s-agreement era coisa deles e aquilo não tinha nada a ver comigo. Luka vinha porque eu tinha que estar, no mínimo, parecendo gente, para ser apresentada à “sociedade”. Pois não, eu era uma debutante! Zoeira. Kaname ia mostrar oficialmente para todos que eu não era um boato, e deixar bem claro que quem mexesse comigo ia se dar muito mal, porque, pelo que acabei sabendo, nossa casa estava sofrendo ataques ocasionais, já que alguns tinham resolvido espalhar que eu estava lá dentro, e outros queriam saber se era verdade. Basicamente, era isso. Enquanto eu estava preocupada com meus amigos, e com o perigo verdadeiro de Akito morrer ao ter sua bebê dali a uns meses, meu irmão ficava me fazendo ir a eventos sem a menor necessidade. Era a vida. Mas, como sempre, eu ia arranjar um jeito de me aproveitar dela. Luka chegou com Kain no começo da tarde, e ficou por várias horas me embrulhando pra presente. Quando terminou, fiquei bastante impressionada. — To gata. — Falei, olhando pra mim. E eu estava mesmo. Mas mal podia ficar de pé em cima daqueles negócios. Luka, que tinha terminado comigo tudo que tivera permissão de fazer, desceu, e meu irmão subiu logo depois. — Eu não to muito gata? — Perguntei a ele, e tentei andar. Não fui muito bem sucedida e me sentei na cama, repreendendo-me por ter começado a fazer criancice. Kaname veio até onde eu estava e curvou-se para arrumar minhas sandálias. Aparentemente, eu tinha prendido o troço errado. — Veja se está melhor agora. — Me disse. Fiquei de pé. — Tá. — Menti. E me sentei de novo. — Mas a gente não pode levar outro par para o caso de eu... hum... Perder esse? — Como você pretende “perder” suas sandálias, Khaiya? — Ele ficou me olhando. — Ah, sabe-se lá. A cinderela consegue, não? Eu sou boa em perder as paradas, acredite-me. Kaname continuou me olhando. E então soltou um suspiro. — Por isso pedi a você que praticasse quando pudesse. — E eu pratiquei! — Me defendi, abaixando-me para pegar o par que eu tinha destruído e chutado pra debaixo da cama. — Viu? Prática! E eu realmente tinha. Eu ficava o dia todo praticamente praticando. Quase não os tirava dos meus pés. Só pra descer escadas. E, bom, para andar. Quando sentava, colocava de novo, e ficava sentada com eles, cheia de elegância. E me achava muito correta em fazê-lo. Afinal, quando finalmente tentei andar com eles, quebrei os saltos. Vê o meu ponto? — Agora consigo ficar — contei nos dedos — três minutos de pé com eles. São três — mostrei a ele — minutos inteirinhos a mais do que conseguia antes. Isso tudo devido a muito trabalho duro. Muita perseverança. E muito trabalho duro. Acho que mereço pelo menos um nove pelo esforço... Tá, parei. Eu tinha feito de novo. Alisei os tiotês do vestido e sentei-me na cama outra vez, comportadamente. Estava preparada para ir com os saltos assassinos e ficar com eles até não ter mais pés, se Kaname quisesse, mas ele pensou um pouco na minha situação e me disse que eu podia escolher outros que achasse mais confortáveis para levar e trocar lá, se eu precisasse. Levei sapatos sociais, mas acabei não podendo usá-las, por que Luka me fez o grande favor de sumir com eles. Não curti. Mas só fui descobrir aquilo depois. No meio tempo, tive que me preocupar com lidar com Kaname e meu tio no mesmo carro. Assim como John Nash, também precisei aprender a conviver em harmonia com minha esquizofrenia e a ignorar o imaginário. Mas não era nada simples. Usar fones de ouvido ajudava bastante. Sim, também não sei bem como, só sei que eu colocava o som no maior volume e ficava numa boa, fingindo que ele não estava lá, mas isso, bem, também não o impedia de vir mexer comigo. O que era uma droga. E ia ser uma droga ainda maior, já que eu não podia ficar com fones lá no negócio para o qual estávamos indo, e muito menos ouvir música com volume alto. Então fiquei só lá, toda dura. Não queria chegar mais para perto de Kaname, mas também não estava achando muito legal ali daquele lado, com meu tio se esfregando em minha constrangidíssima pessoa. — É tão difícil? — Kaname me perguntou, soltando uma respiração pesada, e, aí, me puxou pra ele. — Não teria que ser. — Respondi, me encolhendo entre seus braços. Mas eu não pedia a espada mais de uma vez por dia, por isso, parei por ali. Kaname, então, começou a me explicar que eu não ia achar o evento para o qual estávamos indo nada divertido, mas que não tinha que me preocupar, porque ninguém tocaria em mim nem nada do gênero. Lembrei-me de Yuki e de suas stalkers malucas, e fiquei pensando se os outros convidados teriam recebido instruções de como deveriam agir comigo por perto. “Primeiro,”, fiquei pensando, “não tentarás matar a princesa Kuran.”. “Segundo, não deverás tentar sequestrar a princesa Kuran, ou afastá-la de seu irmão, em hipótese alguma.”. “Terceiro, não tentarás cortar mechas do cabelo, ou as pontas dos dedos, da princesa Kuran, nem guardá-las como souvenirs.” Argh, pensei então, um pouco enjoada. E olhei para as pontas dos meus dedos. — Acha que alguém ia tentar cortar meus dedos para levar pra casa de recordação? — Perguntei a meu irmão, imaginando se devia me preocupar com aquela possibilidade. — Não, Khaiya. Ninguém vai machucar você. Acreditei nele, e, naquele exato momento, meus dedos sumiram. No fundo, eu sabia que aquilo era só meu tio brincando comigo de novo, mas levei um susto mesmo assim e sacudi minhas mãos, angustiada. Kaname as segurou e percebi que meus dedos estavam lá, onde sempre estiveram. Rido ficou dando risada. A culpa é sua, disse a mim mesma, por ficar pensando essas coisas idiotas. Meu irmão, então, entrelaçou os dedos de suas mãos aos das minhas. — Eu sinto muito... — Me disse, encostando seu rosto em meu cabelo. — Não precisa. — Respondi, convencendo a mim mesma a não pedir. Mas, bom, acabei pedindo. — Me dê a espada e ficamos quites. E, daquela vez, ele me ignorou. Por isso eu não ficava insistindo o tempo todo. Eu preferia que me dissesse “não” do que não me respondesse. De verdade, eu ficava bem pouco feliz quando Kaname ignorava o que eu dizia daquele jeito. Então o deixei quieto. Quis me afastar e me encostar ao outro lado do carro, mas não achei que fosse a coisa mais adulta a fazer por ali. E fiquei detestando o fato de continuar querendo fazer a coisa não adulta. — Eu não me importo que beba meu sangue, Kaname. Mas você não vai beber agora, vai? — Eu o lembrei, um pouco irritada ainda. — Então, será que dá pra parar? Kaname tinha deixado seu rosto descer até o meu pescoço, e ficara com ele bem ali. — Isso é bem errado... — Me mexi, agora realmente tentando me desvencilhar dele. — O que há de errado nisso? — Ele me perguntou, puxando meu rosto e pressionando o seu contra a minha mandíbula. — Bom, é meio que... Sabe, irmão, chama-se crime, em alguns países, você sabe como é. Quer dizer, não sei se é contra a lei sair com os nossos ancestrais, mas, com certeza, sair com os nossos irmãos é... — “Contra a lei”. Lei de quem? — Ahm... Dos humanos, mas, hm, eu sou uma, então, é, Ah... Ele tinha me mordido. Não pra valer, não saiu sangue nem nada, mas Kaname me mordera. — Kaname, vai ser, meio que um... Problema, tipo, se você beber meu sangue antes do... Negócio... Parei de ficar falando e me mexendo e comecei a me perguntar por que eu o deixava fazer aquilo. Não consegui uma resposta sozinha, então perguntei a ele. E ele riu, soltando ar pelo nariz. — Posso soltá-la, se preferir. — Eu prefiro. Kaname tirou, então, suas mãos de mim, mas eu não cheguei pro outro lado. — Só deixo a dica: eu vou conseguir fazer essa merda. — Deixei bem claro. Kaname não curtia muito que eu dissesse “merda”, e algumas outras palavras que eu usava uma vez ou outra. — Não importa o quanto você tente ferrar a minha vida. Mas ele não me repreendeu, apenas apoiou seu rosto na própria mão e ficou ali, me olhando. — É o que acha que estou fazendo? Tentando “ferrar” a sua vi— Não. — Respondi bem rápido, já arrependida. Fiquei querendo pedir desculpas, mas, em vez disso, olhei pra fora da janela. E continuei olhando pra lá até o carro parar. — Desculpa. — Pedi bem baixinho, quando Kaname veio me tirar do carro. Ele alinhou meu cabelo e se inclinou para beijar minha cabeça, mas desistiu disso, e me conduziu pra dentro de salão. Tinha janelas. Dei graças por isso. Kaname foi me apresentando às pessoas e eu fiquei o tempo todo pendurada no braço dele. Os saltos já estavam me matando. Mas fui aguentando de qualquer jeito. De modo geral, achei que Kaname tinha feito muita propaganda negativa do negócio. Não é lá tão ruim, fiquei pensando. Até alguém me oferecer uma taça cheia de... Algo que cheirava muito a sangue. Kaname ergueu sua mão, recusando em meu lugar, enquanto eu me segurava pra não vomitar ali mesmo. Ele se inclinou para me dizer depois que aquele sangue fora doado por humanos voluntariamente, e eu tentei imaginar quantas pessoas estavam deixando de receber suas transfusões por causa daquela parada. — E o banheiro, cadê? — Eu quis saber. Estava começando a sentir cheiro de sangue em todos os lugares, e aquilo estava me embrulhando um pouco. — Está se sentindo mal? Não é nada que você possa aguentar um pouco mais? — Meu irmão me perguntou. — Eu vou mandá-la de volta para casa logo, espere mais um pouco. Me mexi, um pouco ansiosa. Eu, de fato, estava meio mal, mas também tinha algo que queria fazer, e, pra isso, precisava dar uma enrolada em Kaname e sair de perto dele um pouquinho. Queria falar com Zero. Sim, meu irmão adotivo, ele estava lá. Eu estava contando muito com uma oportunidade como aquela. Membros da Associação sempre eram enviados para supervisionar reuniões daquela natureza, principalmente se tinham humanos metidos na história. Eu, humana, lembram? Certo. De qualquer forma, a possibilidade de que ele tivesse se recusado a ir, ou, vá saber, de que Kaname o tivesse proibido de ir, me preocupara enquanto eu não o vira. Assim que o avistei, quis correr e dar um abraço de urso bebê nele. Mas não pude. Não rolava essa história de eu sair correndo de saltos. — Não sei. — Olhei. — Mas imagino que me deixar ir possa, bom, vir evitar um acidente. — Senhor Kuran. Senhorita Kuran. Voltei-me para quem tinha vindo falar conosco. Era Sara Shirabuki, a sangue-pura que estava apostando corrida com Kaname, para ver quem alcançava o maior número de vampiros puro-sangue derrubados num menor período de tempo. Meu irmão nos apresentou. Tive que segurar um pouco a respiração quando ela se inclinou para me cumprimentar. De todos que tinham se aproximado de mim, Sara era a que mais soltava aquele cheiro. Eu não sabia por que estava me sentindo tão incomodada com ele. Geralmente, eu não ficava. — Sua irmã parece um pouco pálida. Está passando mal? Senhorita Kuran? — Eu? Não... Eu, er... Agradeço a preocupação, senhorita Shirabuki... — Olhei de novo para meu irmão. Agora eu realmente preciso ir... Tentei dizer a ele, subindo as sobrancelhas. — Deve estar se sentindo muito assustada, não? Pobrezinha. Senhor Kuran, francamente, me recuso a acreditar que teve motivos justos para trazer a pequena a esse evento. Ela parece se sentir totalmente inadequada. Claramente não se sente confortável aqui. Posso acompanhá-la, se quiser. — Sara me ofereceu. — Posso levá-la para tomar um pouco de ar. Coitadinha... Deve estar sufocada. Nenhum de nós se deu ao trabalho de levar aquela conversa a sério. Nem Sara, na real. Só fiquei meio irritada por ter sido chamada de pobrezinha, assustada, pequena, totalmente inadequada, e coitadinha sufocada em menos de trinta segundos. — Seria uma grande gentileza sua. — Kaname respondeu, e me mandou com Senrei. Uma galera foi me abordando no meio do caminho, embora não tivessem muitos metros entre nós e o banheiro. Meu irmão me avisara que tentariam falar comigo sobre meus pais. E foi bem isso, era só sobre eles que todos vinham puxar conversa. Eu não tinha certeza se faziam isso para mexer com uma suposta ferida que eu, sei lá, pudesse, hum, talvez, ter... Ou se só queriam falar e não desenterravam nenhum assunto melhor na hora que chamavam minha atenção. De uma forma ou de outra, eu não sabia quase nada sobre meus pais, e o que me diziam a respeito deles não me sensibilizava nem um pouco. De verdade, eu não tinha trauma nenhum com aquilo. A não ser, é claro, que eu estivesse numa sala sem janelas. Mas, sem janelas, eu faria drama até se alguém me dissesse ter perdido uma borracha. Bem. Fui avançando como pude até esbarrar em Kaito. — Você! Por aqui... — Disse, muito surpresa, e ainda com certa pressa de chegar ao banheiro. — Olá, prima. Há quanto tempo. Kaito e eu não erámos exatamente primos. Na verdade, ele era primo de Zero, então, meu primo só por consequência. Eu meio que pagava pau pra ele quando era mais nova. Veja, porque Kaito era bem o tipo de primo mais velho muito maneiro que todo mundo tem pelo menos um. Eu o achava incrível porque ele sempre trazia coisas iradas para mostrar a Zero e a mim. E, principalmente, porque me pegava no colo. Afinal, a gente sempre admira o cara mais velho que pega a gente no colo quando é criança. Quem diz que não, que atire em mim a primeira pedra. A proposito, Kaname não me pegava no colo. Mas! Mesmo com Kaito me pegando no colo, aprendi rapidinho que ele não era alguém em quem se devia confiar muito. Acho que já cheguei a tocar no assunto, mas não tenho certeza: Satoshi lembrava meu pseudoprimo no quesito tentar-se-aproveitar-das-pessoas. A diferença era que Kaito era bom nisso. Portanto, logo que esbarrei nele, fiquei desconfiada. — Você chegou a ver o Zero? Acho que ele esteve procurando por você. — Kaito foi me dizendo. Hum, flagrei. Porque duvidava que Zero fosse querer que o primo insinuasse pra mim que ele queria me ver. — Não vi, não vi! — Menti, e comecei a olhar em volta, fingindo procurá-lo em meio à multidão. — Cadê ele, cadê? Senrei segurou meu braço. — Tenho que ir. — Falei então. Kaito sorriu pra mim e me deu um abraço, que foi encarado como muita petulância por todos que se deram o trabalho de olhar. Ou seja, todos. — Foi bom te ver. — Dei uns tapinhas nas costas dele, tentando fazer com que me soltasse. — Dê uma olhada por ele por aí. Zero vai ficar muito feliz de encontrar você de novo. — Ah, claro que vai. Todos ficam felizes de me encontrar de novo, é impressionante. Então Senrei o empurrou pra longe de mim. Kaito fez aquela cara dele, levantando as mãos. E eu percebi o motivo pelo qual me abraçara. — A gente se vê. — Acenei, cobrindo meu pescoço com a mão e indo direto para o banheiro, desviando dos vampiros que pareciam querer vir puxar o meu saco. Examinei o estrago no espelho. Kaname me aconselhara a cobrir as cicatrizes feitas por Ártemis e Zero, e a deixar apenas as mordidas dele à mostra. Foi o que fiz. Também não queria ninguém de lá sabendo sobre a arma antivampiros que eu tinha em meu corpo. E, bem, aquela de esconder as mordidas de Zero... Bem. Era muito simples: resumidamente, embora meu irmão não tivesse usado essas palavras, deixar que todos vissem apenas as mordidas dele em meu pescoço servia pra dizer que eu já tinha um dono definitivo, e que ninguém mais podia ficar pensando em meter as presas em mim. Não era superdivertido? Enfim. Kaito dera um jeito de arruinar a segunda pele que eu colocara em meu pescoço, e ali estavam as mordidas de Zero. De verdade, achei muito conveniente. Estava pensando em fazer aquilo eu mesma, mas ficaria parecendo bem mais autêntico, uma vez que outra pessoa tivesse feito. Kaito, sempre sendo maroto. — Ah, bem... — Falei. — Nós podemos, hum... Pedir ao Hanabusa para me emprestar o casaco dele. Ou ao Kain. Ou ao... — Pensei em Shiki, mas aí pensei melhor. — Ou ao Hanabusa. — Não saia daqui. — Senrei disse, e fechou a porta. Quando voltou trazendo um paletó, dei um selo a ela. Tinha aprendido sobre selos na biblioteca da minha nova casa. Não é legal o que você pode aprender com livros quando tiram a sua internet? Foi então que, comigo prestes a fazer algo que poderia muito bem ter me dado alguns problemas, uma coincidência muito impressionante aconteceu: alguém, em algum lugar daquele prédio, derramou sangue puro. A princípio, achei que pudesse ter sido Sara, mas eu sabia que Isaya Shoutou também estaria lá, então considerei que o sangue fosse dele, já que fora o único que ainda não se mostrara. Respirei, tranquei a porta e fui correndo bem rapidinho entupir uma pia. Me senti bastante mal por achar que aquele novo cheiro no ar caia, pra mim, como uma luva, mas decidi que deixar a chance passar seria praticamente um crime, quase tão grave quanto o de tentar assassinar um sangue-puro, então tirei uma lâmina do meu pulso e deixei bastante sangue escorrer pra dentro daquela pia. Quando achei que já era o suficiente, fiz a faca voltar, cicatrizando o ferimento. Eu já tinha aprendido que podia fazer aquilo com qualquer lâmina que tirasse do meu corpo, não só com as foices. Foi uma puta descoberta. Então lavei e sequei o braço muito bem, despi o vestido, e vesti o paletó. Eu tinha vindo com calças por baixo. Sim, marotissimamente. Não eram calças de terno, na verdade, eram de pijama. Mas feitas para parecerem de terno. A vantagem era que eram bem mais finas e, por isso, não dava pra notá-las por baixo do vestido. Muita ilusão de ótica, não? Fiquei louca quando o alfaiate disse que podia fazer. Pois é, amigo. Assistir How I Met Your Mother também pode te acrescentar alguma coisa. Desprendi o aplique e desalinhei um pouco meu cabelo, tirando toda aquela mousse. Todos do salão deviam estar sentindo o cheiro da poça de sangue que eu tinha deixado na pia, inclusive meu irmão, mas (!) a verdadeira beleza do negócio era que, na realidade, ninguém podia agir como se tivesse percebido. Nem o meu. Nem o de Isaya. Então, meus únicos problemas foram os sapatos. Se Luka não tivesse dado sumiço no par extra que eu tinha levado, seria bem mais simples. Mas, saí descansa, mesmo. Dei um selo para o outro cara que Kaname tinha deixado nos seguindo quando ele veio na minha direção. Talvez quisesse saber por que eu, um garotinho de aparência afeminada e deliciosa, tinha saído do banheiro feminino onde estava sua alteza Khaiya, mas não cheguei a perguntar. E peguei seus sapatos. Ficaram enormes em mim. Depois disso, me afastei e expliquei a um caçador que encontrei que a princesinha Kuran tinha tido um pequeno acidente no banheiro e que tinha trancado a porta, pedindo que não deixasse ninguém se aproximar de lá. Aí esbarrei com Kaito de novo. Não era culpa minha. Ele ficava vindo pelo meu lado cego. — Agora, sim, parece você. — Sorriu, segurando meus braços. — Cala a boca. — Sorri de volta. — Eu fiquei muito gata naquele vestido, tá? E, você, sua raposa, vê se sossega esse rabo. Meu plano é muito mais descolado que o seu. Kaito me olhou desafiadoramente por um momento. E, então, disse: — Okay... Não parece mais você. E aí me levou até onde estava Zero. Meu pai e alguns outros caçadores também estavam lá, tentando contê-lo. Ele tinha ficando meio loucão com o cheiro, e perdera o controle. Quando me viu, livrou-se rapidamente dos caras que o seguravam e avançou direto contra mim. Saí da reta. Zero não me atacara com toda potência da velocidade que ele devia ter, e isso ficou claro pra todo mundo, então apenas continuei desviando, até que o contivessem de novo. Me doeu um pouco vê-lo ser acorrentando e tentei adivinhar quando tinha sido sua última, hum, digamos, “refeição”. Mas meu pai me segurou quando tentei me aproximar mais. — Você não pode ficar aqui... Jovem. — Disse. Ele tinha percebido que era eu, mas, provavelmente, fora o único, e, embora estivesse justificadamente furioso por eu ter ido até lá, não queria revelar aos outros minha identidade. Olhei-o por um momento. Estava muito feliz por poder vê-lo. Mas, em vez disso, falei: — Achei que o senhor tivesse se aposentando, senhor Cross. — E estendi minha mão para Zero. Que me mordeu. E ninguém conseguiu fazê-lo desistir disso. Não deixei que batessem nele para forçá-lo a soltá-la. Como o cheiro do sangue de Isaya estava bem mais forte, deixei que Zero bebesse o meu. Não demorou muito. Quando ele recobrou a consciência, soltou minha mão, e eu a cicatrizei discretamente. — O que faz aqui?! — Ele rosnou, emputecido. — Vim festar! Porque eu adoro festas. Adoro festar! — Falei, pronta pra começar a cantar que na festa ia ter espaguete (espaguete!). Então sorri e baguncei o cabelo dele. — Estou brincando! Vim pra ver você, né! Baguncei o cabelo de Zero um pouco mais, porque só eu podia fazer aquilo, e sentia muita falta. — Você está bem? — Não! — Ele fez um barulho exasperado, dando um impulso com a cabeça para trás, pra que eu parasse de tocá-lo. — Que...! Caralho!! Por que você veio?! E, aí, falou muitas outras palavras grandes. Mas, bem, essas eu não uso, então não vou colocar aqui. — É muito bom te ver também. Dei umas batidinhas nas costelas dele. Eu tinha colocado um bilhete em seu bolso, e ninguém ali pareceu ter percebido. Porque eu tinha um ótimo futuro como batedora de carteiras, sabe com é. — Khaiya. — Meu irmão me chamou. Olhei pra ele e sorri com toda a minha inocência juvenil, então me levantei e o acompanhei até o lado de fora. Mas, antes de sair, passei por Kaito. — Porque eu o conheço melhor do que você. — Expliquei a ele. No entanto, tinha que concordar com meu pseudoprimo sobre uma coisa: adicionar minha morte à confusão daquela noite deixaria a festa bem mais emocionante. Kaname me mandou pra casa, sem me deixar ver o que tinha acontecido com Isaya, mas acabei sabendo, depois, que fora assassinado, e que alguém fizera parecer suicídio. Que original, fiquei achando. Mas, é claro, aquilo podia perfeitamente ser verdade. E tudo o que eu sabia era que não tinha sido culpa de Kaname, mas, sendo sincera, não tinha muita certeza de que Shirabuki era culpada, também. Como me lembro de já ter dito, duvidava que ela fosse atrás dele sem pelo menos mais um coração. Além disso... Bom. Fazer algo assim no meu baile de debutante... Era meio complicado. Tinha que ter disposição. De qualquer forma, eu contava com a possibilidade de estar errada, e, se estivesse, meu irmão precisaria do meu se quisesse equiparar poderes com ela. E, sim, eu já tinha tentado convencê-lo a pegá-lo, também. E, sim, eu tentava de tudo, reflita. Kaname voltara pra casa bem depois de mim. Eu estava deitada no sofá da sala quando chegou, e não me movi do meu lugar quando veio sentar-se ao meu lado. Só tirei os fones e fiquei olhando. — Vai fritar meu cérebro agora? — Eu quis saber. — O que você acha? Encolhi meus ombros. — Acho que você não devia fazer isso. Acho que eu não devia me dar punição nenhuma, na real. — É mesmo? — É, com certeza. Eu senti a — e, nessa hora, me esforcei para não desenhar aspas no ar — morte do senhor Shoutou, como todo mundo da festa, e me aproveitei da situação como podia para conseguir o que queria. Fui quase uma legítima vampira a noite toda, sério, mesmo. — Achei que tivesse me dito que era humana. Pensei. — Achei que você estivesse querendo que eu agisse como uma vampira. — E rebati. Kaname, então, inclinou-se sobre mim, afundando seus dedos nas almofadas que eu tinha juntado atrás da minha cabeça. — Khaiya, quando permite que outra pessoa beba seu sangue, como acha que me sinto? — Ele me perguntou, mas, de verdade, não fiquei pensando numa resposta para dar a ele. Em vez disso, tentei imaginar como Luka se sentia quando ele bebia o sangue dela, pensando em beber o meu. E aí tentei imaginar como me sentiria se Yuki fosse um vampiro e bebesse meu sangue, por não querer se descontrolar e acabar matando, sei lá, uma de suas perseguidoras profissionais por quem ele tivesse adquirido uma quedinha, mas meu cérebro buggava quando eu o colocava para resolver problemas daquele gênero, então apenas arrastei discretamente a mão que Zero mordera naquela noite para debaixo de uma das almofadas e fiquei olhando o rosto do meu irmão. — Nós não podemos ter sentimentos nobres como vocês, humanos, têm. — Ele me disse, puxando a mão que eu escondera, e começando a avaliar minha mais nova cicatriz. — Mesmo o que sinto por você não passa de uma infinidade de sentimentos cheios de egoísmo. Vampiros se alimentam de humanos. Minha existência só pode, e simplesmente vai, sugar a sua. Eu compreendo o quão terrível seja para você, e vejo seu sofrimento. No entanto, mesmo isso não gera em mim a mínima intensão de deixá-la ir, ou de devolver a espada a você. Fiquei olhando. — Com você falando, parece até que os humanos são todos uns santos que saem pela vida só derramando um monte de nobreza em cima de todo mundo. — Falei, abrindo minha mão contra a dele. Kaname tinha mãos enormes. — Então você tem sentimentos egoístas, okay, isso não é maneiro, mas fazer o que? Eu também tenho. Todo mundo tem. — Você sabe — continuei — por que eu fugi de você daquela vez, não sabe? Eu achei que você fosse tentar me matar, tipo, de verdade. Eu poderia muito bem dizer que fiz por não querer te deixar na posição de escolher entre me manter viva e destruir meu tio, ou, então, dizer que fugi para enfrentá-lo eu mesma, e tudo mais, mas, de verdade, eu não tentei conversar com você, eu nem pensei direito em você, e, veja, tive bastante tempo pra fazer isso. Mas, não. Só saí tirando minhas conclusões e dei o fora, porque achava que precisava salvar meu couro. Se tivesse pensado, com certeza teria chegado à resposta certa. — Não tem como a gente não sentir os nossos, tipo assim, “sentimentos egoístas”. A gente sente, e pronto, fim. O que dá pra fazer é não deixar que esses sentimentos nos façam ter atitudes egoístas. Aí, sim. Ow, os vampiros são tão egoístas quanto às pessoas que não são vampiras. Eu sou tão egoísta quanto você. Duvido que você só tenha sentimentos egoístas. Duvido que você pense o tempo todo “ah, não, vou prender a Khaiya aqui porque, hum, daí vou poder beber o sangue dela a hora que eu quiser”, ou, “ah, não, então vou ficar quatorze anos cuidando dela, até ela ficar maiorzinha e aí eu poder morder a hora que eu quiser”, porque, irmão, se foi isso mesmo que você pensou, sério, no mínimo eu acho que você mereceria uma medalha de honra ao mérito pela paciência, porque, irmão, sério mesmo, quatorze anos é coisa pra cacete. E, também, aposto que, antes de a gente ter descoberto a Ártemis, você nem ia beber meu sangue em primeiro lugar. Aposto que você jurou solenemente lá no íntimo, pra você mesmo, que não me transformaria nunca numa vampira. Você acha que eu não percebia? Altas vezes você esteve já a, tipo, isso aqui de me morder quando eu era pequena. Eu lembro, tá? Mas, não, você só me mordeu quando teve certeza de que não me transformaria, e, se me lembro bem, foi pra eu não virar uma pirada total. E aí dei um peteleco entre os olhos dele. — Então vê se para com esse negócio, falou? Kaname piscou, como se tivesse caído algo no olho dele, então fechou os dois e os apertou com força. Quando abriu de novo, eles já estavam com aquele brilho engraçado. Antes, eu achava que os olhos brilhantes significavam que ele estava com sede, mas percebera com o tempo que Kaname nunca me mordia quando eles ficavam daquele jeito. Então assumi que fosse aquele o seu sinal para me dizer que o que vinha era perigoso. Fiquei pensando se devia só ficar ali quietinha, ou então... — Dar o fora? — Sugeri, indecisa. — Não. — Ele me disse, apertando os olhos de novo e desviando o rosto. — Okay. Entrelacei os dedos de minhas mãos em cima das minhas costelas e esperei. Kaname apertou as almofadas ao meu redor e eu tentei imaginar o que teria acontecido com minha mão se ele ainda a estivesse segurando. E aí comecei a pensar no por que parecia ser bem mais difícil, pra ele, ficar perto de mim com os olhos daquele jeito desde que começara a beber meu sangue. A melhor analogia que consegui, por hora, foi a de encontrar um sonho recheado de brigadeiro pela metade na lixeira. Sim, porque eu era um sonho recheado de brigadeiro, okay, obrigada. Analogias com comida são sempre as melhores. Kaname ficou parado ali um tempão, olhando para o meu pescoço. Quando se moveu, achei que fosse se afastar, mas ele se inclinou pra mim um pouco mais e ficou mais um tempão parado, então com sua respiração bem próxima a minha pele. — Okay, camaleão. — Fechei os olhos. — Eu vou tirar um cochilo aqui então. Vê se se decide aí. E franzi a testa. Kaname tinha me lambido. Sério, ele tinha me lambido. Achei bem bizarro. E continuei achando. Mas, no final, meu irmão me apertou contra ele e acabou mesmo me mordendo. Não senti nada de diferente. Ele tentou ler a minha mente, como fazia sempre, mas não deixei, assim como ele normalmente não me deixava ler a sua. Eu estava pegando a manha do negócio. Quando terminou, deitou a cabeça no meu ombro e ficou deitado ali. Algo que também fiquei achando meio esquisito. Deixei-o ficar daquele jeito um tempo, mas Kaname era bem pesado e meu peito estava ficando dolorido. — Hum... Okay aí? — Perguntei, mexendo em seu cabelo e torcendo pra ele se levantar. Ele esperou um pouco mais, e, então, inspirou em meu cabelo. — Eu gostaria que você percebesse o fato de existirem coisas pelas quais não vale a pena lutar. Independentemente do quanto tente, isso sempre terminará levando-a a nada. — Me explicou, lentamente, como se aquilo fosse algo que dificilmente entraria na minha cabeça. E era mesmo. — Okay. — Fiquei irritada. — Primeiro, whatafuck, de onde diabos veio isso? E, segundo, quando eu estiver educando a minha criança. Você. Nem. Pense. Em tentar dizer algo assim pra ela! Kaname se ergueu e ficou me olhando, então segurou de novo a mão que Zero tinha mordido. Seus olhos tinham voltado ao normal já. — Meu medo, Yuuki, é um dia vê-la se jogar em uma causa perdida, e sacrificar sua vida nessa tentativa. Eu já mostrei isso a você. — Você me chamou de Yuuki. — Deixei a nota. Kaname mordeu minha mão e, naquele momento, vi a morte de sua irmã verdadeira, a minha ancestral. Não entendi direito como aconteceu, mas soube que meu irmão não pudera fazer nada para salvá-la. E que, se o mesmo acontecesse comigo, aquilo o destruiria. Concentrei-me por um instante para me livrar das imagens que ele tentava me mostrar, e segurei seu rosto. — Eu não me jogo em causas perdidas, irmão. — Esclareci. — Minhas causas são todas supervencedoras desde o momento em que resolvo torná-las minhas. Truestory. Kaname, então, soltou minha mão e voltou a repousar sua cabeça em meu ombro, mas, dessa vez, ficou segurando seu peso para não deixá-lo todo em cima de mim. Sendo assim, pensei, e suspirei, entrelaçando meus dedos ao cabelo dele. Capítulo 40 — Eu não vou esperar mais, irmão. — Disse a ele. — Vou usar outra qualquer se não me devolver a minha. — E o olhei. — Só fique avisado que isso pode diminuir um pouco as minhas chances de sucesso. Kaname me lançou um olhar por cima do ombro e saiu, fechando a porta atrás dele. Fui para a biblioteca. Ninguém me devolvera meu computador, então ainda não havia muito mais que eu pudesse fazer, além de ficar lendo um livro após o outro. O que me foi bastante útil, na verdade. Muitas vezes, eu dormia por lá mesmo. Quando acontecia, Kaname me levava de volta pra cama. E, de vez em quando, não era raro, eu não encontrava o livro que estava lendo, ao procurá-lo no dia seguinte. Chama-se inquisição, galera. Era muito popular na época em que meu irmão adormecera em sua primeira voltinha pelo nosso mundo. Brincadeira. Kaname viveu bem antes disso. E o que fazia era só censura, mesmo, inquisição é outra coisa. De qualquer forma, não importava. Eu precisava ver as fórmulas apenas uma vez para “lembrar-me” delas. Não que eu tivesse memória fotográfica ou coisa assim. Não era nada disso. Bem. Eu estava pronta. Sabia que a probabilidade de dar tudo errado era gigante, mas estava desesperada para poder tentar. No dia seguinte, acordei com a voz do meu irmão vindo da sala. Então me levantei, cheia de preguiça. Eram umas cinco horas da manhã, ainda, e eu tinha ido dormir às três. Mas fui vê-lo mesmo assim. — Você vai sair? — Perguntei, tentando afastar o sono dos meus olhos. Kaname libertou uma daquelas criaturinhas voadoras de sua mão, e ela sumiu, espremendo-se pela fresta da porta. — Eu a acordei? — Me perguntou, subindo as escadas até onde eu estava. — Mmm. — Murmurei, assentindo e esfregando os olhos. Kaname, então pôs sua mão sobre a que eu estava usando para me apoiar ao corrimão e se inclinou para me dar um beijo. Segurei o resto dele, usando todos os reflexos dos quais eu dispunha àquela hora da madrugada. — Não, não. E ele ficou me olhando. Cocei minha sobrancelha, incomodada. Então dei um beijo na testa dele. — Volte para cama. — Disse pra mim, e puxou meu pescoço. Dei umas batidinhas nos ombros dele e fui tentando me afastar até ele soltar meu rosto. Aí pedi a espada de novo. Ele negou, como sempre, e beijou minha testa também. E foi embora, me aconselhando mais uma vez a voltar a dormir. Dei de ombros, deixando registrado que, por falta de pedir, não tinha sido. Aidou ainda estava acordado. Ele não gostava muito do meu ciclo circadiano dessincronizado, porque, diferente de mim, que sentia sono o tempo todo e, portanto, podia dormir a hora que quisesse, ele tinha sono apenas durante o dia. Eu admirava seu esforço de tentar me acompanhar. — Agora já acordei. — Falei, sendo bastante sincera. Ele vinha tentando descansar durante a noite para poder ficar acordado comigo de dia, já que era isso que eu vinha fazendo nas últimas semanas, mas, uma vez que eu bagunçasse meu horário, eu bagunçaria o dele muito mais. — Desculpe... — Pedi. Daí Aidou ficou me olhando com aquela cara de ai-você-que-só-complica-aminha-vida. — Quer comer alguma coisa? — Perguntei. — Não, — ele deu de ombros — mas se você for, vou com você. Sorri. Kaname ordenara a Aidou, e a todos que trabalhavam na casa, que não aceitassem nada que eu tentasse oferecer. Por causa do lance dos selos e tal. Mas eu fazia dango, cara. Quem é que desconfiaria de dango? Não é? Bom, Hanabusa desconfiara, no começo, mas eu sempre fazia e, como ele não me via botar nenhuma mandinga no meio dos bolinhos, comia numa boa. Então, enquanto ele ficava lá comendo, esmaguei um no meu prato até transformá-lo em uma panquecazinha, e comecei a desenhar nele com um palitinho. — Hanabusa, olha. — Pedi, empurrando o prato pra ele. — O quê? Hanabusa franziu o cenho e alcançou o prato. E, no mesmo instante em que o tocou, ficou congelado. Abaixei o braço dele e deixei-o sentado no sofá, com o prato no colo. Também fechei seus olhos. Sabia lá eu se ele podia ter um problema se ficasse muito tempo de olhos abertos, não é? Afastei as coisas do chão e deixei bastante espaço livre. Os empregados eram todos humanos, então ainda estavam dormindo, e não poderiam entrar na sala quando acordassem, porque eu tinha travado todas as trancas. Então fui começando. Fiz com os talheres da cozinha. Demorou um tempinho, mas, como não tinha nada mais afiado por lá, e eu, também, não queria chamar a atenção de ninguém do lado de fora com o cheiro do meu sangue, tive que me conformar. Mesmo porque, se usasse minhas próprias lâminas, acabaria sujando o desenho de sangue, e também não podia fazer isso antes de terminá-lo. Fiquei talhando o chão por bastante tempo. Quando terminei, subi para meu quarto. Pensei em colocar o vestido que Kaname me dera no dia do baile da escola, mas achei que fazer aquilo seria teatral demais e escolhi outro vestido qualquer. Kaname comprava muitos vestidos pra mim. Fora meus pijamas, eu praticamente só tinha vestidos. Por isso, quase nunca tirava os pijamas. Escolhi um bem fresquinho e desci de novo. Bom, pensei, tudo certo. Peguei um palitinho e fiz uma modificação no bolinho de Aidou. Ele abriu os olhos e eu fui para o centro do círculo menor. Hanabusa tentou se mexer, mas não conseguiu, então correu os olhos ao redor da sala, sem entender. — Eu dormi e tivemos um terremoto? O que aconteceu com o chão? Não consigo mexer meus... Por que não consigo me mexer...?! — É um selo. — Apontei para o bolinho em seu colo. — Eu juro que sinto muito. E juro também que não vou deixar meu irmão culpar você por isso, viu? — Que? Como assim? Do que está... — Ele ainda não estava entendendo, mas Hanabusa não era nenhum idiota, e, quando olhou de novo para os três círculos ao meu redor, percebeu qual era a situação. E ficou apavorado. — Você... Você não... Khaiya...! — Olha, — falei, com bastante calma — eu preciso que você me escute. Quando Kaname chegar, não terei como falar. Ele provavelmente vai saber o que fazer, mas, como eu não tinha exatamente como perguntar pra confirmar, vamos partir do princípio que ele não sabe de nada, certo? Bom, preciso que você dê algumas instruções a ele por mim. — Então apontei para o círculo menor, no qual eu estava sentada. — Essa figura é uma fórmula usada para a criação de armas antivampiros. Como eu não tenho treinamento necessário pra fazer uma sozinha, é ela que vai fazer o procedimento de Desprendimento e Transferência. Nisso, uma pequena parte da minha alma será transferida para dentro dessa faca. — Mostrei o talher a ele. — Esse outro círculo aqui conecta o círculo de Criação com o círculo de Fundição. O de Fundição é esse mais de fora. Ele, o de Conexão, eu digo, serve para evitar que alguém, como, por exemplo, o meu irmão, tente parar o processo no meio. Uma vez que eu comece a Criação, terei que ir até finalizar a Fundição, é essa a Regra. — Coloquei a faca dentro do círculo menor. — Assim que eu tiver terminado a Criação, vou empurrar a arma antivampiros para o círculo de Fundição. Nesse tempo, meu sangue estará percorrendo o círculo de Conexão, — sinalizei as talhas que havia feito no chão — e é aí que Kaname deve trocar a faca pela espada. Quer dizer, se ele quiser. — O que acontece se ele não quiser? — Hanabusa quis saber. Ele parecia estar com bastante medo que aquilo fosse terminar com Kaname arrancando sua cabeça. — Bom. Daí eu vou ter uma faca de manteiga ao meu dispor para todos os momentos, pelo resto da minha vida! — Abri um sorrisão, levantando meu polegar positivamente. — E isso... É... Ruim... Não é? — Ele apertou os olhos, tentando realizar o negócio em sua mente. — Pra ser bem sincera, eu não faço a menor ideia. — Falei e dei de ombros. — Eu meio que espero que a arma do meu tio Rejeite a faca. Mas, sei lá, como a faca vai ter a minha própria alma, talvez não aconteça nada... Eu não sei bem. Não tinha nada sobre isso nos livros que eu li, sabe como é... Ei, você está tentando se mexer? Quer que eu pegue alguma coisa pra você? Você não quer, ahm, ir ao banheiro... Quer...? — Khaiya, me solte! Você ficou louca?! Isso vai matar você! Deixe-me... Me solte! Tire esse troço de mim! — Não dá, não... — Juntei as mãos, pedindo desculpas. — Não posso mais sair daqui... — Menti. Na verdade, eu podia sair, mas era mais fácil dizer que não. Aidou ficou brigando comigo como um adulto muito responsável por bastante tempo. Nem parecia ele. E eu nem dei atenção. Quando se acalmou e percebeu que eu não ia voltar atrás, parou de tentar me dissuadir. — Como você se lembrou de todos esses desenhos? — Ele ficou olhando. — Kaname fez com que eu me livrasse deles quando descobriu que você os tinha... — Ah... — Sorri de novo. — Isso? Então, irmão. Você tem que entender: é muita habilidade. Afinal, venhamos e convenhamos, eu sou a única herdeira da inteligência de uma família milenar que vem gerando gente sagaz há muito tempo! — Como assim, única herdeira...? — Ele franziu a testa. — Ah... — Pisquei. Kaname não tinha contado a ele? Me perguntei. — Está falando do meu irmão? Não, ele não puxou o lado inteligente da família... Aidou semicerrou os olhos pra mim, irritado. Porque quem não tem sangue puro não curte muito que ninguém fique zoando os sangues-puros, assim, na maior tranquilidade. Não sei bem como funciona o negócio. Bom, acabei explicando a Aidou que meu tio já fizera tudo aquilo antes de mim, e que, por isso, eu “lembrava” como fazer, mesmo tendo apenas visto tudo meio por cima. Ter parte de sua alma dentro de mim, como já disse, afinal, tinha suas vantagens, e como eu começara a ter maior controle sobre Ártemis desde a primeira mordida de Kaname, as memórias de meu tio também se tornaram mais acessíveis. Então expliquei a Aidou que pedira a Zero que entregasse um bilhete a Killua, e que, por ele, conseguira os livros que meu irmão tinha confiscado. Olhei para a entrada. — Ele chegou. — Avisei Aidou. — Lembra-se de tudo que eu disse, né? Hanabusa assentiu, parecendo ainda muito nervoso. Quando meu irmão abriu a porta, fiz dezenas de lâminas saírem do meu corpo e me ajoelhei, sentando-me sobre os calcanhares. Deixei as costas das minhas mãos apoiadas ao chão, e o sangue foi escorrendo, ensopando todo o meu vestido. Quando as fórmulas foram ativadas, comecei a ouvir aquele barulho. Achou que eu não fosse fazer, né? Provoquei meu tio. Ele se irritou, e fez o barulho aumentar. Achei que minha cabeça fosse explodir daquele jeito. Mas tentei manter-me focada. Empurrei a faca para o terceiro círculo e esperei. Pareceu uma espera eterna. Meu irmão, então, ajoelhou-se a minha frente e trocou o talher pela espada. Sorri pra ele. Mas Kaname apenas me encarou. Achei que teria sido legal da parte dele sorrir. Não que fosse fazer diferença. Capítulo 41 Achei que teria que lidar com meu tio de novo. Mas ele não estava lá. Quem estava lá era Ártemis, as duas foices. Elas estavam cruzadas em uma posição muito ornamental, e eu não sabia exatamente o que fazer, então desembainhei a espada e esperei por algo, recuando o suficiente. E algo realmente aconteceu. Uma bolinha preta surgiu abaixo das duas lâminas e se estendeu até ter o formato e tamanho de uma garota. Ela parecia uma sombra, e tudo que eu podia distinguir de seu rosto eram os olhos e o seu sorriso enorme. Essa deve ser Ártemis, pensei. E ela segurou as duas foices e partiu pra cima de mim. Nós lutamos. Não demorei muito para perceber que não estava tentando seriamente me acertar e pensei em quanto dela realmente era a alma de Rido. Então embainhei a espada de novo e saí correndo. Eu não fazia a menor ideia de que lugar era aquele, mas, por mais que corrêssemos, não chegávamos a nenhum lugar. Era tudo muito igual. Ártemis veio atrás, e se aproximou de mim rapidamente. Fiquei imaginando se podia transformar a espada em outras armas. Afinal, eu fazia todo tipo de lâmina sair de mim quando controlava Ártemis. Pensei em correntes, com pêndulos, como as de Kurapika. Ah, eu já disse que Kurapika controlava correntes? Bem. Ele controlava correntes. Embora correntes não sejam lâminas, minha espada se transformou em dezenove delas, e eu mandei todas para cima da garota, e separei-a de suas foices. Ergui as três bem no alto, mas, de alguma forma, a menina sumiu e suas foices se transformaram cada uma em um pássaro prateado, escapando das correntes. Aquilo tudo me fez querer saber o quanto era possível fazer naquela dimensão. Tentei desejar que minhas pernas se tornassem alavancas de impulso e saltei em direção a uma das aves. Voei alguns quilômetros, cara. Okay, exagerei. Quis a espada de volta e lá estava ela, em minhas mãos, então golpeei a ave, fincando a ponta da lâmina bem no meio dela. Caímos. Pousei perfeitamente, deixando que as alavancas absorvessem todo o impacto, e procurei pelo outro pássaro, que caiu bem perto de mim no momento seguinte, estatelando-se no chão e dividindo-se em milhares de penas de metal. O que estava espetado na ponta da espada fez o mesmo, e as penas voaram todas na mesma direção, formando uma nova e bela ave. Correntes, pensei, jogando-as contra ela. Uma conseguiu envolver seu pescoço, mas ela escapou das outras e levantou voo. E me atirou bem longe. Levantei-me. Apesar da queda, não me sentia nada machucada, ou cansada. E percebi, assim, que não venceria Ártemis cansando-a ou machucando-a. O pássaro subiu bastante e então mergulhou em minha direção. Recuei um pouco e esperei. Esperei até o último segundo, até que o bico da ave estivesse quase em mim, como fizera quando enfrentara o Dragão. Então pedi um machado e acertei-o com tudo bem na cabeça do animal. Mas o efeito foi o mesmo. O pássaro se fragmentou em várias penas e cada uma virou um passarinho. Todos então voaram para longe e formaram outro bicho, que poderia ser qualquer coisa. Mas, como sou nerd, chamo aquilo de quimera. O corpo tinha as dimensões de o de um rinoceronte, mas as patas pareciam de um felino, o rabo era escamoso e enorme, como de uma anaconda, e a cabeça parecia ser de um touro, mas tinha pelo menos um bilhão de chifres a mais que um. E era totalmente prateado, o negócio. Fiquei de boca aberta. Será que posso conjurar um dragão? Perguntei à espada, lembrando-me de Hatori. Mas, como nada aconteceu, tomei aquilo como um não. A quimera avançou pra mim, correndo loucamente e abaixando a cabeça para me furar com aquele monte de chifres afiados. Avancei para ela também e me joguei no chão, escorregando por entre seus pés, e torcendo para que o bicho não percebesse e me pisoteasse. Quis fitas. E então meu machado se partiu em dezenove delas, bem lindas, afiadíssimas e de prata. Fiz com que se enrolassem nos pés da quimera, e, antes que ela se transformasse em outra coisa qualquer, envolvessem-na completamente, imobilizando-a. A fera caiu e tentou se transformar, mas não conseguiu libertar a si mesma com isso. Suspirei. Não machuquem a garota, pedi, e as fitas começaram a esmagar a criatura, que brilhou e começou a fazer aquele barulho horroroso cada vez mais alto. Mas parou. E, no final, tudo que sobrou foi uma garotinha. Não mais uma sombra, uma menina, de verdade. Desejei as fitas de volta e elas vieram para dentro de mim. A garota caiu de joelhos no chão, tremendo de frio. — Quem é você? — Perguntou pra mim, quando me abaixei para ajudá-la. — Sou Yuuki Kuran. — Falei. — Mas pode me chamar de Khaiya também, se quiser. Ela ficou me olhando por um tempo, batendo os dentes. E então sorriu. — Você é uma Kuran? Nossa, se mata. — Eu tento sempre. — Eu ri. — É mais difícil do que parece. E seu nome, qual é? — Não tenho. — Ah... É...? Bom. — Pensei. — Tem uma galera te chamando de Ártemis por aí. Você curte esse nome? — Não? — Ela me olhou estranho, como se eu tivesse dito a ela para comer uma formiga ou algo do gênero. — Hm... Bem... Então como gostaria que chamasse você? — Cara, — ela falou, sem pensar nenhum pouco a respeito — na sinceridade, não quero ninguém mais me chamando, não. — Disse, sorrindo. E então deu duas batidinhas entre minhas sobrancelhas, uma com o dedo médio e outra com seu polegar. E eu voltei para casa. Olhei em volta. Ainda estava na sala. Luka, Kain e Aidou estavam lá. E tio Rido não estava mais. Vibrei, excitada. — Kaname, cadê? — Perguntei a Luka, toda animada. Ela estava me olhando como se eu fosse um fantasma, assim como os outros. — Ele está... — Kain apontou para as escadas, me olhando com aquela cara de grandão bobão. Subi correndo. Kaname estava em meu quarto, deitado na minha cama. Achei que estivesse dormindo, porque não se levantou quando cheguei. Então fui até lá, e deitei-me ao seu lado, aconchegando-me debaixo do braço dele. — Eu consegui... — Sussurrei, quase sem conseguir me conter e começar a pular ali na cama. — Conseguiu. — Ele concordou, sorrindo, sem abrir os olhos. Kaname pegou alguns fios do meu cabelo e deixou-os cair em meu rosto. — Ei, abre os olhos, olha pra mim! — Sorri, puxando sua blusa. Tinha a impressão que meu irmão achava que estava sonhando comigo. Kaname, então, os abriu e abaixou-os na minha direção. — Eu consegui! — Repeti pra ele, que não pareceu surpreso, só continuou sorrindo. Contei-lhe como foi tudo. — Eu estou tão, tão, tão, tão feliz... — Gani, me encolhendo e me mexendo, e enterrei meu rosto na blusa dele. — Ah! Eu consegui, eu consegui! Perguntei a ele como pareceu daquele lado, se eu tinha entrando em um transe malucou ou algo do tipo, ou se tinha só desmaiado. — Não, — me respondeu, ainda mexendo em meu cabelo — você desapareceu. — Desapareci? Como eu desapareci? — Desapareceu. De repente, não estava mais lá. — Ah... Fiquei de bruços e me apoiei em meus cotovelos. — Por quanto tempo? — Perguntei. — Quatro dias. — Uau... Não pareceram quatro dias pra mim. Embora eu não tenha... Nenhuma recordação de impressão de tempo de lá. Inclinei-me sobre o rosto de Kaname e mordi a ponte do seu nariz. E, assim que o fiz, fiquei pensando que talvez não devesse ter feito. Afinal... Bem. Ele ficou me olhando. — Mas eu consegui. — Falei, uma última vez, e me sentei. Kaname estendeu sua mão para continuar tocando em meu cabelo. — E o que fará agora? Fiquei um pouco surpresa com que estivesse me perguntando aquilo. Mas também feliz. Mais feliz. — Vou transformar Shirabuki em uma humana! — Respondi, e acredito ter parecido bem ingênua dizendo aquilo. — E nada que eu fizer impedirá você, não é isso? Arrastei-me para mais perto de Kaname e deixei que deitasse sua cabeça em minhas pernas. Então me inclinei para pressionar minha testa contra a dele. — Você é irmão, sabe disso, né? — Perguntei. Kaname não disse nada, apenas fechou os olhos e deslizou os nós dos seus dedos em meu rosto. — E que eu te amo muito, muito, muito, assim. Né? — Disse eu então, e fiz bastante bagunça no cabelo dele. — Eu sei. — Ele respondeu, e abriu os olhos. Kaname ficou me olhando por um tempo e depois perguntou como eu pretendia transformar Shirabuki em humana. Expliquei a ele. — Quanto tempo tem para quebrar a maldição? — Me perguntou, então, quando terminei a explicação. — Até Akito ter a bebê... Bem, todas nascem de sete meses, então... — Calculei. —Tenho um mês e bem pouquinho. Talvez, um mês e meio, no máximo. — Então, espere duas semanas por mim. — Pediu. — Faça o que pretende fazer até lá, mas espere que eu esteja com você para ir até Sara. Sorri muito. E abracei a cabeça dele. — Claro que sim... Capítulo 42 Eu me sentia meio que... Like-a-voyeur... Mas... Queria saber como estavam todos. E tinha um tempo até o horário que Shigure me havia dito para aparecer lá. Nada tinha mudado muito. Afinal, a maldição ainda não estava desfeita. Mas Momiji e Haru tinham entrado no Ensino Médio, e estavam estudando na mesma escola que Kyou e Yuki. Yuki de fato se tornara presidente do corpo estudantil. E Kyou e Tohru pareciam estar namorando... Bom, mais ou menos. Eu tinha, naquele tempo, saído à procura dos quatro Sohma caçadores. E já tinha encontrado Kureno, Ritsu e Kagura. Esperava ter encontrado Rin também, quando fui procurar por Kagura, mas elas tinham seguido caminhos separados. Por isso, falei com Shigure, e ele prometera me arranjar uma oportunidade de falar com ela. Antes de ir, fui até o colégio de Kisa. Ela e Hiro estavam almoçando juntos, e deixei que me vissem. Por um momento, os dois pareceram se perguntar o que deviam fazer. Provavelmente tinham ficando sabendo que minha mente havia sido apaga, e não tinham certeza se deviam mostrar que me conheciam. Fui até eles, então. E aí Kisa se levantou. Ela correu pra mim e me abraçou. Hiro também veio, mas ele não me abraçou, não. — Como se lembrou da gente? — Ele exigiu saber. — Já te disse, eu tenho poderes mágicos. Hiro semicerrou os olhos pra mim e eu sorri ele. — Os outros... Você... Já falo com os outros...? — Kisa levantou seu rostinho pra mim. Segurei as mãozinhas dela e sentei-me de joelhos. — Eu vou falar com eles, mas não por enquanto. — Fiquei sorrindo. — Tem algo que quero fazer primeiro. Vocês podem guardar segredo pra mim? — Fazer o que? Está pedindo pra gente mentir por você? Por que faríamos isso? — Hiro ficou me perguntando do jeito dele. — Porque eu estou preparando uma grande surpresa pra todo mundo! — Falei pra ele, usando aquela voz que a gente usa pra falar com crianças, o que o deixou emburrado. — E só quero aparecer pra eles quando ela estiver pronta! Abracei Kisa mais um pouco e beijei-a no rosto. — E por que veio ver a gente então? — Hiro perguntou, no final. — Estava com saudades! — Dei um gritinho, e soltei Kisa. — E porque eu ouvi dizer que vocês dois são ótimos guardadores de segredo! Kisa assentiu, toda feliz. E Hiro fez cara de tá-tanto-faz. Deixei que terminassem de almoçar e fui para casa de Shigure. A casa estava toda aberta, reparei ao chegar. Fiquei me perguntando se tinha alguém lá dentro. — Olá...? — Perguntei, enfiando minha cabeça pra dentro. — Ahm... E lá estava ela. Foi meio constrangedor. Rin me olhou, muito perplexa. Ela estava inclinada para Shigure, como se fosse beijá-lo, algo que achei bem esquisito, já que, até onde eu sabia, ela era mais nova do que eu. E, antes mesmo que Shigure terminasse de me dizer olá, com aquela sua cara de quem nem tá ligando para o que pensam dele, Rin tinha avançado para mim com uma faca, que tirou de não sei onde. Saí da reta e empurrei seu quadril, do lado da perna que ela estava usando como apoio. Ela perdeu e recuperou seu equilíbrio rapidamente, e tentou me atacar de novo. — Não destruam a minha casa... — Shigure ficou chorando. Consegui pegar a faca dela e a derrubei. Então, antes que Rin se levantasse, libertei a espada e deixei sua ponta rente ao nariz dela. Não que eu tivesse a intenção de usá-la, só imaginei que Rin fosse querer ver. E eu provavelmente estava certa. Rin ficou imóvel, por um tempo, olhando para espada e para mim. E aí ficou bem puta. — Vocês deram a espada pra ELA?! — Gritou para Shigure. — Ela é uma sangue-pura!!! E vocês deram a espada pra ela?! Então Rin apertou seus dedos ao redor da lâmina com força, fazendo com que sangrassem. Volte, pensei. Se puxasse a espada da mão dela, provavelmente cortaria seus dedos fora. — Sim, Yuuki é uma sangue-pura. O que tem isso? — Shigure se levantou, apoiando o lado do seu braço à parede, sorrindo para nós. — Ela é tão humana quanto você. A garota então se curvou pra frente e começou a tossir. Ela cuspiu sangue, e eu quis ajudá-la. Mas achei melhor não. — Eu vou matar você! — Ela me disse, tirando outra faca de não sei onde. Ah. Percebi. Fiz como ela e segurei a lâmina com minha mão. Eu estava de luvas, como sempre, mas sangrou mesmo assim. — Está vendo? — Perguntei. Armas antivampiros ferem humanos, igual a armas normais, mas, contra vampiros, o efeito é bem potencializado. Rin continuou me encarando, furiosa. Suas mãos tremiam segurando a faca. Então ela a soltou e caiu no chão de novo. Apoiei um joelho no chão e ofereci a sua arma de volta pra garota, e essa se desmaterializou, indo cicatrizar os ferimentos dos dedos de Rin. — Vim pedir sua ajuda... — Falei, tentando olhar seu rosto. — Você aceitaria me ajudar...? — Eu nunca — Rin falou, erguendo seus olhos cheios de ódio para mim — ajudaria uma vampira. — Entendi. Levantei-me e cumprimentei Shigure. — Me desculpe pelo incômodo. — Pedi. — Eu sinto muito. E fui embora. Capítulo 43 Eu não conseguira encontrar-me com Kaname. Ninguém sabia onde ele estava. Nem Aidou, nem Luka, nem Kain, nem Shiki, nem Rima. Bom, talvez Senrei soubesse, mas eu não tinha tempo de procurar pelos dois. A filha de Akito nasceria logo. Shiki, então, mordeu o próprio dedo e seu sangue escorreu dali. E se transformou em milhares de agulhas, que voaram na maior velocidade e foram atingir as vampiras que vieram pra cima de mim. Estávamos na Academia Cross. Sara Shirabuki culpara meu irmão pela morte de todos os sangues-puros que ela matara, então se refugiara na escola, requisitando a proteção da Associação e usando como argumento que temia por sua vida. Nós íamos ter certo trabalhinho para entrar... Ao redor de todo o terreno, foram libertados uns montes de vampiros nível E, e eles nos atacavam como zumbis famintos superpoderosos. Por trás deles, estavam os Nobres, controlando-os. Eu não tinha bem certeza de o que estaria protegendo Shirabuki mais de perto, mas certamente teríamos que lidar com caçadores. Meu pai estava lá. O que era uma merda. Sobre Zero eu não sabia. Também não conseguira encontrá-lo. Luka e Kain ficaram para lidar com a barreira de nível E, e o resto de nós entrou. Eu levava duas foices, que tinha mandado fazer para serem replicas bem fieis de Ártemis, e não mostrei minha espada para ninguém dali. Alcançamos o prédio de aulas do noturno, os três Sohma, Killua, Aidou e eu. Os outros tinham ficado para nos deixar passar. Ali encontramos Touga, Kaito, e outros caçadores. — Volte pra casa, garotinha. — Touga me disse, apontando aquele seu rifle enorme na minha direção. — Você escolheu um péssimo momento para fazer seu movimento. Corri em direção a ele e Touga atirou em mim. Desviei e comecei a golpeá-lo, enquanto Killua partia para cima de Kaito e os outros cuidavam do resto dos caçadores. Fui separando o mestre de Zero do seu grupo, empurrando-o para trás do prédio, onde ele não poderia ser visto ou ouvido. Quando já tinha segurança disso, perguntei-lhe onde estava Sara. E ele ficou rindo. Touga era superior a mim em todos os sentidos, embora parecesse um mendigo velho e acabado. Ele só ainda não tinha acabado comigo porque, um, eu era humana, e, dois, ele estava me testando. — Vá pra casa! — Mandou. — Você não vai enfrentar Shirabuki com apenas isso! Urrei, frustrada. E então lancei as foices contra ele. Touga desviou e voltou a olhar pra mim, com uma cara “oqueéquefoiisso?”. Decidi mostrar-lhe a espada. — Me diga onde ela está. — Pedi, guardando-a de novo. — Você não vai conseguir matar aquele mulher, mesmo com isso aí. — Ele me avisou. — Okay. Onde ela está? Touga me examinou por um momento. — Ah, foda-se. — Disse, e pegou um cigarro. — Ela está naquele lugar que seu pai e Kaname Kuran esconderam você quando Rido Kuran despertou. Saí correndo. Passei por onde Killua pudesse me ver e ele me seguiu. Os outros ficaram. Capítulo 44 Bom. Eu suspeitava que nós não encontraríamos Shirabuki sozinha que nem um Boss de andar. Mas eu não esperava que tivesse tanta gente com ela. Além de Ichijou e meu pai, tinha pelo menos umas trinta garotas ali naquele quarto, todas ex-humanas. — Hm... — Falei. — Merda. — Killua completou. Olhei para ele e pedi-lhe em silêncio que fizesse mesmo assim. Ele fechou os olhos, e abriu-os de novo, confiando em mim. Pensei que, talvez, houvesse um jeito de fazer com as garotas ali. Mas meu pai teria que sair. — Sara Shirabuki, — disse eu, pronta para começar a distraí-la — vim aqui matar você. Sim, era pra ser bem dramático. Ambos, meu pai e Ichijou, começaram a tentar me dizer algo, mas eu parti pra cima de Sara sem dar-lhes atenção. Ela nem se moveu. Em vez disso, fez com que as garotas me bloqueassem. Eu não pude fazer muito contra elas. Estavam sendo controladas e eu não ia ferilas, então apenas fui desviando para chegar a Sara. É claro que, comigo falando assim, parece fácil. Não foi. Eram quase três dúzias de gurias tentando me pegar. Isso fora meu pai, que veio me parar também. Infelizmente, nossa sintonia telepática tinha ficado meio fraca por causa do tempo em que estivemos longe, e eu não conseguia fazê-lo perceber o que eu realmente estava tentando fazer. Enquanto isso, Killua estava desenhando a fórmula no chão. Killua conhecia uma técnica muito legal que ele chamava de Eco de Ritmo. Não sei por que a chamava assim. Mas isso não importa. Com ela, Killua criava a ilusão de que havia vários dele andando ao redor de uma circunferência. É claro que Ichijou ficou preparado para deter algum ataque repentino vindo de Killua, mas essa não era sua intenção em momento algum. Quando Killua me deu o sinal de que havia terminado, ataquei meu pai diretamente. Eu queria deixá-lo inconsciente, ou, pelo menos, jogá-lo para fora daquele quarto. Mas isso também não era tão fácil assim. Então, todos nós sentimos. Kaname estava ali. Só aí Sara se moveu, como se a oportunidade que estava esperando tivesse chegado. A coisa toda ficou um pouco confusa nesse ponto. Vários ramos da Rosa Sangrenta, ou sanguinária, invadiram o cômodo, estourando as janelas como se elas fossem feitas de açúcar, e começaram a agarrar as ex-humanas e a tirá-las de lá tão rápido que mal pude ver. Ichijou, Killua e meu pai também foram pegos, e, num instante, estávamos apenas Sara e eu lá dentro, sozinhas. Ela estava confusa, e eu também, mas, quando vi paredes vermelhas de luz se erguendo por toda parte, e reconheci alguns dos símbolos que estavam formando, entendi o que Kaname estava tentando fazer. Avancei para Shirabuki com as foices, e elas derreteram em minhas mãos antes mesmo que eu me aproximasse. Então, e só então, libertei a espada. Não consegui causar nenhum dano colossal a Sara ao atingi-la, mas um pequeno corte era o suficiente. Capítulo 45 — Você é Isaya Shoutou? — Perguntei ao moço do meu lado. Ele assentiu, sorrindo para mim. — E você é Khaiya Kuran. É um prazer conhecê-la. — Ah... É... Eu sabia que você estava vi-... Quer dizer, também é um prazer conhecer o senhor. Por acaso o senhor sabe onde a gente tá? Não havia nada ao nosso redor. Nada. Apenas aquela claridade infinita, como da vez em que fui conseguir a espada. Fiquei pensando que aquilo também lembrava um pouco o local em que enfrentara Ártemis. Todas essas coisas que tem a ver com selos, e fórmulas, e essas paradas aí, devem trazer a gente pra cá, imaginei. — Você já não esteve aqui antes? — Senhor Shoutou me perguntou. — Ah, se o senhor diz, então acho que estive, sim. — Confirmei. — Mas onde é, exatamente, aqui? — Em lugar nenhum. “Aqui” é apenas uma fresta que é aberta quando é necessário cumprir, ou negociar, condições de algumas espécies de transação. Por exemplo, para conseguir sua espada, você teve que vir aqui “pagar” por ela. Entendeu? — Ah... — Fiquei piscando, achando aquilo tudo bem sinistro. — E por que estamos aqui agora? — Porque Sara não aceitou os termos da “transação”. — Isaya explicou. Ele sorria para mim como se fosse meu avô ou algo do gênero. Muito embora eu não tivesse muitos parâmetros de comparação para ter certeza. — Que termos? — Franzi a testa. — Nós não estávamos só tentando transformála em uma humana? Ela não concordou com o que? Com ser humana? — Exatamente. — Ah, tá. — Pensei. — É. Talvez seja justo ela poder fazer isso... A propósito, cadê ela? E onde é que tá o meu irmão? — Não estão aqui perto. — Ele disse bem rápido, e continuou sorrindo aquele seu sorriso de velhinho. Ergui uma sobrancelha. — Ah, bem. Eu notei isso. Comecei então a pensar que Kaname poderia ter pedido a Isaya para me manter longe dos dois e sugeri isso. Isaya continuou sorrindo, sem me dizer nada. — Isso é um sim, né? — Dei um meio sorriso, apoiando a guarda da espada em meu ombro. — Hm... — Ele murmurou, sem me dar nenhuma pista de nada. Aquele velhinho maroto. Olhei em volta. De fato, eles não deviam estar nada perto, mas tentei senti-los mesmo assim. O problema todo parecia vir de Isaya. Ele estava me envolvendo com alguma coisa que tornava difícil perceber qualquer outra presença além da dele. Mas me concentrei. E acabei encontrando. — Se eu for pra lá, — apontei — você vai fazer o que comigo? Shoutou, no entanto, continuou jogando sua cartada do silêncio, para o caso de eu ter apenas dado um palpite de sorte. Mas eu não tinha, então segui para a direção que apontara. Não tentei sair logo correndo pra lá. Mesmo que isso me desse uma vantagem em distância, não achava que ganharia do velhinho na apelação. Na verdade, estava só tentando fazê-lo voltar a falar para convencê-lo a barganhar comigo. Ele me acompanhou por algum tempo, talvez esperando que eu desistisse, e tentou confundir minha percepção, mas eu apenas tive que me assegurar de continuar andando em linha reta. — Muito bem, Khaiya, — Isaya finalmente me disse — você não pode mais avançar daqui. Olhei para ele. — Sara vai me sentir se eu continuar mais um pouquinho? — Certamente. — Hm. Como vamos fazer, então? Eu tenho toda a intenção de, sabe como é, ir ajudar meu irmão. — Ele pareceu bem claro ao dizer que não queria a sua ajuda. — Bom. — Voltei-me para Isaya. — Engraçado, por alguma razão, isso só me faz querer mais ir até lá e... Ele não me deu tempo nem de terminar. Saltei para o alto, num impulso para me livrar do chão, que tinha acabado de tentar me engolir de uma forma bem bizarra. Achei incrível. Até o chão podia ser manipulado por lá. Isaya fez uma muralha se estender até o infinito para cima e para os dois lados, demarcando o limite de até onde eu podia ir. E ergueu as sobrancelhas pra mim. — Okay. — Sorri, aceitando. Se ele podia fazer aquilo, eu podia correr ao longo de uma parede totalmente vertical. E foi o que fiz. Corri o mais rápido que pude, tentando alcançar a beirada, que continuava subindo e subindo. Obstáculos foram brotando na minha frente e eu fui tentando desviar deles como conseguia. Aquilo não estava dando certo, concluí logo, e então experimentei abrir um buraco na muralha. E realmente fiz, mas, quando tentei passar, ele se fechou ao meu redor como uma boca feita de maria-mole e eu fui cuspida de volta. Tentei frear no ar, lançando correntes no chão para me ancorar, mas ainda fui bem afastada da barreira. Corri de volta, dessa vez em direção a Isaya. Tentei atacá-lo. E continuei atacando por algum tempo, mesmo depois de ter outra ideia. Tentei discretamente manipular a parede, como ele havia feito com o chão, e, quando senti segurança, e concluí que Shoutou já achava que eu estava começando a me conformar, fiz com que o chão se abrisse e formasse um túnel que passasse por baixo da muralha bem atrás de mim. Mandei as correntes e elas me puxaram pra lá. A barreira, então, se desmanchou como uma cortina de água, e Shoutou me segurou, partindo de lá bem depressa. Ele corria muito mais rápido do que eu, mas Shirabuki já tinha me percebido e estava vindo. Abracei o pescoço de Isaya e fiquei olhando para as criaturas que brotaram no chão atrás de nós. Pareciam patinadores feitos de gelo, mas corriam que nem o PapaLéguas do desenho. Achei muito engraçado. Shoutou ia destruindo-os à medida que nos alcançavam, mas como eles só estavam lá para nos atrasar, cumpriram bem seu objetivo. Então, Isaya parou. Dois homens tinham nos passado e estavam parados na nossa frente. Fiquei pensando no quanto eles tiveram que ser rápidos para fazer aquilo. Eu os reconheci. Um era o ex-noivo-e-futuro-esposo de Sara, Ouri. E o outro era Hanadagi. Não entendi como era possível. Até onde eu sabia, os dois deviam estar bem falecidos. Mas não tive tempo de perguntar. Isaya fez com que o chão formasse uma bolha ao meu redor e me levasse para o infinito e além. Em um instante, eu não via mais nada. Aquela bola subia bem rapidinho. Algumas criaturas muito parecidas com enguias gigantes começaram a tentar comer a minha bolha e ela foi rachando. Quando estava prestes a estourar, esperei que o peixe voador tentasse de novo, e, assim que se aproximou, desembainhei a espada e parti sua cabeça ao meio. A coisa ficou desorientada e eu pulei em cima dela. Outra enguia veio me atacar e eu me segurei ao seu focinho. As restantes, então, vieram na direção da que eu estava segurando e eu me soltei. Pensei em asas, mas aí cheguei à conclusão que não saberia o que fazer com elas, e, em vez de pedir um par, fiz com que uma plataforma se erguesse do chão para me pegar no ar. Fiquei de pé e transformei minha espada nas dezenove fitas. Então fiz as enguias em pedacinhos. Voltei para o chão. Demorei certo tempo para perceber que uma mulher e um menino haviam se juntado à festa, já que eles e os outros mal paravam para serem olhados. A mulher devia ser Shizuka e, como pareciam estar do nosso lado, o menino só podia ser Touma. Deixei-os e fui para onde estavam Kaname e Sara. Eles pareciam duas montanhas combatendo. Era algo bem interessante de se ver. Ambos mudavam de formas enormes para outras formas enormes completamente diferentes, gerando explosões de ar e fogo. Pensei no que faria quando os alcançasse, mas, quando cheguei razoavelmente perto, uma mão enorme surgiu do chão abaixo dos meus pés e foi me levando pra longe. — Mas. Que. MERDA! — Sibilei, com meus dentes trincados. Aquilo tinha que ser coisa do meu irmão. Fiquei de pé e estendi minhas mãos, segurando as fitas, então fiz com que as envolvessem, e também meus braços, e aí todo o meu corpo. Foi a única vez em que realmente senti como se aquela arma fizesse parte do meu corpo. Desenrolei-me e deixei-me voar da enorme mão de volta para o chão, e então fui serpenteando de volta para onde estava Sara. Eu a envolvi e tentei fazer com ela o que fizera com Ártemis. Foi um pouco mais difícil. Bem, de fato, foi muito mais difícil. Meu irmão me mandou soltá-la, mas eu não obedeci. Apertei as fitas ao seu redor com toda força e tentei conter seu poder. Sara convocou Ouri e Hanadagi de volta para seu corpo e ele ficou muito mais forte, mas continuei apertando. Kaname também chamou Shizuka e Touma, repetindo para mim que eu deveria soltá-la. Continuei ignorando sua ordem e apertando. A força não era minha, mas me obedecia, e eu sentia como se pudesse aguentar um pouco mais. E aguentei. Eu a comprimi o máximo que pude, e meu irmão estendeu o poder dele ao meu redor, pronto para me pegar quando eu não aguentasse mais. Mas eu, antes de chegar a esse ponto, soltei Sara e voltei para o chão. Então me juntei abaixo dela, e fiz-me erguer como uma grande agulha, atravessando Sara antes que ela expandisse sua presença novamente. Kaname tomou meu lugar e voltou a contê-la, enquanto eu saia por cima e voava para longe dali. Passei por Isaya e o peguei, levando-o comigo. Fui para o mais longe possível, o mais rápido possível, até mal mais conseguir senti-los. E, ainda assim, quando os dois vampiros sangues-puros alcançaram o máximo de suas forças, a explosão foi tão violenta que nos atingiu como se tivesse explodido na nossa cara. Enrolei-me então em torno de Isaya, para protegê-lo, e também fiz muralhas crescerem entre aqueles dois e nós. Quando terminou, senti-me bastante destruída. Tentei me levantar e vi Sara de joelhos no chão, tremendo e chorando. Perguntei-me como ela tinha nos alcançado tão rápido, e só então percebi que tinha voltado para o quarto. Procurei por Isaya e Kaname. Eles não estavam lá, e eu também não conseguia mais senti-los. — Deu certo... — Falei, frouxamente. Sara ergueu as mãos e ficou olhando para elas. Estavam desaparecendo. Assim como a espada. Assim como, pensei, Kaname estaria. Porque era isso que acontecia a vampiros que já haviam vivido mais do que o tempo que humanos podiam, ao serem transformados. Larguei Sara e a espada lá no chão e corri para o lado de fora. Quando os encontrei, Isaya não passava de um fantasma. Mas meu irmão estava todo lá. Atirei-me nele e afundei meu rosto em seu casaco. — Você vai ficar?! — Gritei, transbordando com uma alegria infinita. — Como? Como?! Quer dizer! Vai ficar, não vai?! Me diga que vai! Kaname me abraçou também e beijou o topo da minha cabeça. Shoutou nos deu adeus e deixou-nos sozinhos. E eu fiquei esperando de meu irmão uma resposta. — Você não vai ficar... — Concluí infeliz. — Seu tio me despertou nesse corpo, Khaiya. — Ele me lembrou, apertando-me com mais força. Era, definitivamente, uma despedida. — Já passou da hora de você ter seu irmão mais velho de volta. — Mas... — Olhei-o. E enterrei meu rosto de novo. — Okay, calma, nada de ir indo embora ainda. Kaname ficou lá comigo por mais um pouco, e então tentou me afastar. — NããããããonãonãonãoNÃO! — Rangi, segurando-o com força. — Pode esperar! — Khaiya. Você sabia que isso ia acontecer. — Tá, mas a culpa é sua! Foi você que me deu falsas esperanças no último segundo, agora espera. Ele beijou de novo os meus cabelos e segurou meu rosto. Confesso que fiquei feliz por Kaname apenas encostar nossas testas e não tornar aquele último momento meio constrangedor pra mim. Ele me segurou a certa distância. E então se foi. Meu irmão caiu e eu tentei segurá-lo, mas ele era grande e pesado, e eu era pequena e fraquinha, por isso, caímos os dois no chão. — Khaiya... — Ele me disse, segurando a própria cabeça, que devia ter batido na queda, e apoiou-se nos cotovelos, erguendo o tronco. — Por que você... Está em cima de mim...? — Irmão! — Gritei, sem me conter em exagerar na empolgação. — Você se lembra do meu nome! E me reconhece! Que sensacional! Achei que fosse vir com... Com... Eu digo... Ele ficou me olhando. — Você bebeu? — Me perguntou, erguendo uma sobrancelha. — Não. Mas tomei umas pílulas loucas um tempo atrás. Mas acho que já passou o efeito... Quer dizer, espero que tenha passado... Saí de cima dele. Eu estava sinceramente esperando que meu irmão fosse voltar com a cabeça que tinha quando nosso tio acordou Kaname no corpo dele. Ou seja, achava que ele fosse virar um bebê grande. Mas não sei bem como foi que Kaname fez. Meu irmão tinha a maturidade correta para a sua idade e a maior parte das memórias de nosso ancestral. O que certamente facilitou as coisas e me poupou de várias explicações. Então lembrei que tinha que procurar papai, Killua e Zero. Porque, afinal, Zero tinha estado lá. Mas eu não o encontrei. Só fui vê-lo de novo, hum... Bom, muitos anos depois. Capítulo 46 Fiquei esperando na porta do colégio. Momiji foi quem me viu primeiro. Ele correu e se jogou em cima de mim, todo bonitinho. E não se transformou. Eu quase chorei. Embora eu já... Bem, soubesse. Porque, afinal, Ritsu e Kureno estavam lá perto quando a maldição se quebrou. Mas foi diferente. Abracei Momiji com toda a força. Haru veio logo em seguida. Ele sorriu pra mim, bem tranquilo, e bagunçou meu cabelo. Kyou, Tohru, Uo e Hana vieram com ele. Todos tiveram que ir e só Momiji ficou esperando comigo por mais um tempinho, mas seus pais e sua irmãzinha vieram buscá-lo e ele foi com eles. Fiquei feliz. Ela tinha se lembrado dele. Continuei esperando. Até que, finalmente, Yuki saiu do prédio com seu amigo Kakero, o pai do exagero, que me apresentou depois. Capítulo 47 — Kana, esse é meu amigo, Sohma Hatori. — Falei, apresentando-o. — Tori, essa é Sohma Kana. Ela é médica também! Não é incrível?! Vocês dois são médicos e têm o mesmo sobrenome! Ei! Vejam que coisa, lembrei que tenho que ir! Os dois ficaram me olhando, boquiabertos. Tentei fugir, mas Kana segurou meu braço e sussurrou no meu ouvido, toda nervosa. — Você ficou louca, Yuuki?! Vai me deixar sozinha com um cara que nem conheço?! — Você vai viver. — Sorri pra ela. — Ah! Pergunte a ele o que acontece quando a neve derrete! To indo nessa... Escapei e, antes de me afastar, pisquei para Hatori com meu olho cego. Ele ficou me olhando com aquela cara de o-que-foi-que-você-fez?! Eu ri. Sabia que ele ia me agradecer depois. Ele ia. Capítulo 48 — Mas eu quero ir morar lá. — Falei, jogando todo o meu peso nas costas do meu irmão. — Khaiya... — Me chama de Yuuki. — Pedi, pela milionésima vez. Kaname alcançou a gola da minha blusa e me puxou pra frente, tentando me fazer cair no sofá ao seu lado, mas nem de longe a força dele, como humano, se comparava a força que tinha como nosso vampiro ancestral. Então me agarrei ao seu pescoço e fique ali, fazendo pirraça. Achei estranho lidar com o Kaname irmão no início, por ele me conhecer perfeitamente, e eu, por outro lado, não fazer a menor ideia de quem ele era, mas, com o tempo, acabei descobrindo que meu verdadeiro irmão era um sujeito muito de boa, e que nós podíamos nos dar muito bem. O único problema era que ele também não me deixava voltar a morar no Japão. Eu procurava ver a situação do ângulo dele. Naturalmente, Kaname acreditava exercer, como guardião e irmão mais velho, certa autoridade sobre mim, e eu tentava não confrontá-lo quanto a isso. Porque, afinal, ele era meu guardião, e meu irmão mais velho. Mas, pra mim, o Kaname irmão era mais como um novo amigo, que eu considerava pra caramba, e com o qual fora morar naquele momento. — Me deixa voltar pro Japão... — Pedi, quando nós dois sossegamos. — Por favor? — Yuuki, — ele começou, me olhando sério — você pode ir visitá-los quando quiser, mas nós já conversamos sobre i... — Ninguém vai me seguir pra lá, Kaname. — Retruquei, segurando o ombro dele. — Você é a rainha da colmeia. Eu sou só a abeiabebê. De alguma forma, mesmo sendo transformado em humano, Kaname continuara podendo exercer influência sobre os outros vampiros e, por isso, achava que eu também podia. Eu, no entanto, tinha certeza de que ele estava errado. Se pudesse mesmo usar minha influência, já teria descoberto uma maneira. Bem, encurtando a história, quanto a ser o senhor todo soberano de pé no topo da pirâmide que representava a sociedade noturna, as coisas não complicaram muito para o lado do meu irmão. O Kaname ancestral já tinha deixado tudo perfeitamente preparado para que as coisas funcionassem daquela forma, e nada estava saindo dos trilhos. O grande dilema, no final, era só que ele acreditava que eu fosse uma potestade pública tão importante quanto ele, e que, se não estivéssemos juntos, acabaríamos dividindo a “pirâmide”. Por vezes eu pensara em pedir-lhe que ambos nos mudássemos para o Japão, mas geralmente desistia rápido da ideia, porque, se fizéssemos isso, aí, sim, uma multidão de súditos seguiria meu irmão pra lá. Eu não achava que algo assim fosse ser nada legal. Afinal, uma decisão como aquela podia causar uma grande catástrofe ambiental no delicado ecossistema vampireless de lá. E nós não queríamos isto. — É melhor você parar com isso. — Kaname me avisou. Eu estava mordendo seu pescoço. Porque era divertido. — Mas, nossa, olha como estou com medo... No que eu falei, meu irmão me deu um puxão com força e, aí, conseguiu realmente me derrubar. Fiquei rindo. Eu gostava de não ter que me preocupar com o que fazia quando estava com ele. Era quase como... Ter um irmão, sei lá. — Sabe que eu só peço pra te fazer ir se acostumando com a ideia, certo? — Conferi, puxando as bochechas dele pra fora e mexendo com elas. — Eu vou pro Japão. Eu vou pro Japão. Já se acostumou? Quer que eu continue? — E se eu não me acostumar, — ele segurou minhas mãos — mesmo assim, você irá? Eu não quero que vá. Não vá. Não há nada que eu possa fazer para convencêla a ficar? — Ai, ai... — Gemi baixinho, e o abracei. Às vezes eu tinha vontade de adotar o irmão Kaname também... — Eu vou vir sempre, prometo! Vai ver, vai ser como se o Japão fosse aqui do lado! — Senhor Kuran... — Amelie, a senhorinha que substituíra Aidou como governanta da casa, veio chamá-lo. — O carro do senhor Ichijou acaba de chegar... Devo pedir que o deixem entrar? — Sim, Amelie, por favor. — Meu irmão sorriu pra ela, saindo de cima de mim e seguindo-a para fora do seu quarto. Antes de sumir no corredor, Kaname piscou os olhos pra mim. — Salvo pelo gongo. — Me disse, ainda sorrindo. — Salvo nada, irmão. — Sorri de volta, esticando minhas pernas e puxando o computador pra cima delas. Senhor Ichijou era, na verdade, Asato Ichijou, o avô do nosso Ichijou amigo. Ele era um vampiro velho e muito pouco confiável que sempre praticara seu profissionalíssimo puxa-saquismo com o Kaname ancestral, mas que estivera ao lado tanto de Rido quanto de Sara quando esses dois se posicionaram contra ele. Ah, bem... Embora o Ichijou neto amigo tivesse ficado com Sara nos últimos dias dela, aquilo não fora sua culpa. Ela meio que o havia sequestrado. Ele e o avô não eram nada parecidos, acredite. Desci mais tarde, para cumprimentá-lo, mas enrolei o quanto podia lá em cima antes disso. Eu tinha ido à casa do meu pai naquele último final de semana e acabara encontrando uns vídeos bem legais guardados em fita, – sim, em fita, sabe-se lá por quê – por isso, estava digitalizando tudo. Descobri um vídeo muito lindinho de Kaname comigo. Fiquei impressionada por ter achado a gravação em áudio também. Eu tinha seis anos e já andava com gravadores de som. Sério, eu era um bebê muito genial. — HUUUMM! — Meu eu de seis anos tentou empurrar a cabeça do irmãoancestral, parecendo se esforçar bastante. Eu tinha sincronizado o áudio ao vídeo, e estava assistindo. — Sai! Kaname! Tá dando formiguinha na minha perna! Kaname ergueu a cabeça um pouquinho e o eu criança descruzou as pernas e tirou-as de debaixo dela. O corpo do meu irmão estava com quatorze anos ali. Ele ser tão novinho parecia... Sei lá. Meio errado. — Você tá dormindo? — Eu perguntei, me inclinando por cima do rosto dele e puxando suas pálpebras para verificar se os olhos dele ainda estavam lá. — Estou. — Respondeu, me olhando com muito sono. — Não tá, não! Fiquei cutucando seu rosto para fazê-lo reagir, mas Kaname apenas continuou bancando o morto. — Vou fazer um sanduíche pra ele... Não, pai, me dá! Eu vou fazer! — Falei, balançando as mãos para o pote de sei lá o que que meu pai pegara. E, quando fui em direção a papai, meu irmão ergueu seu braço e me puxou para ficar deitada com ele. — Não estou com fome. — Disse então, simplesmente, em resposta aos meus protestos por ter me prendido ali. — Tá, sim! — Avisei. — Seu olho tá com aquela cor esquisita... — Mmm. — Ele murmurou, sem se mexer muito. Fiquei lá quietinha então. Um tempo depois, meu pai disse qualquer coisa e deixou a câmera no chão, ligada. Me levantei para olhar na direção dele e fiquei só olhando um pouco. E aí me inclinei para o pescoço do meu irmão. Imagino que eu o tivesse mordido. Desde aquela época, já era divertido. — Já chega, Khaiya. — Meu irmão me repreendeu um pouquinho depois. Então comecei a pedir que me mordesse. Fui muito convincente pra uma criança de seis anos. Digo, muito, mesmo. Fiquei me perguntando se Rido tinha me possuído ou algo do gênero. Sabe-se lá. Vai que ele podia fazer isso. — Pode deixar, eu vou esconder. Não vou deixar o papai ver. — Falei no final, esticando minha mão para tocar as presas dele. Kaname segurou minha mão pequena e beijou-a a palma, erguendo-se o bastante para ficar sentado, então, ele me pegou e percebi que tinha me feito dormir. A câmera desligou logo em seguida, e fiquei tentando ouvir alguma coisa. Mas não ouvi nada. O áudio só voltou algum tempo depois, quando, pelo que me pareceu, meu pai estava me levando pra casa. Dei de ombros e deixei aquilo de lado. Provavelmente tinha a ver com Rido e eu já estava por aqui de querer saber dele. Assim sendo, fui cumprimentar Asato. Eu achava engraçado o jeito que o velho me olhava. Tinha a impressão de que estava sempre pensando numa maneira de se livrar de mim, porque eu poderia vir a ser um problema. Por isso, para falar com ele, eu esperava até que estivesse prestes a ir embora e então segurava o braço do meu irmão, e me escondia atrás dele. — B- boa noite... Se... Senhor... Ichi... Ichi... — Eu dizia, fingindo ter muito medo. E enfiava meu rosto no casaco de Kaname. — Boa noite, senhorita Kuran. Senhor Kuran. — Respondia ele, e aí ia embora. — Por que você faz isso? — Meu irmão quis saber. Eu tinha percebido que o Kaname irmão sorria igualzinho aos sorrisos das fotos do nosso pai, Haruka. — Porque o senhor Ichijou é muito assustador? — Ah, é? Ele ficou sorrindo pra mim, e eu fiquei olhando. — Acho que isso é pra você. — Me disse, e me entregou uma carta. — Mas ué... Franzi a testa, olhando para o remetente. — Mas ué... E continuei olhando. Capítulo 49 — Uh! Uh! Olha lá ele! — Gritei, excitada, dando pulinhos. Quando Yuki passou pela catraca, corri e pulei em cima dele. Ele me segurou, inclinou-se pra mim, e encostou o rosto em meu cabelo. Yuki tinha crescido pra caramba naquele último ano e no segundo semestre do anterior. Quando o conheci, era só uns cinco ou seis centímetros mais baixa do que ele, e agora mal batia em seus ombros. Maldito estirão de crescimento. — Bem vindo! — Falei, estalando um beijinho em seu rosto. — Fez boa viagem? Comeu direitinho? Você comeu a comida do avião, né? Eu adoro comida de avião! Você tá bem? Teve dor de cabeça? Você nunca tinha viajado de avião antes, né? Deu pra ver bastante lá de cima? Não estava nublado, estava? Yuki beijou minha testa e sussurrou alguma coisa pra mim. Não entendi, mas fingi que tinha e saí puxando-o até onde meu irmão estava. Apresentei os dois. Confirmei apenas pela carta que me enviara alguns dias antes que Yuki realmente sabia bem mais sobre mim do que teria algum dia contado a ele. Yuki era muito paciente. Sério mesmo. Nós estávamos namorando havia quase um ano e ele nunca pedira que eu dissesse nada a meu respeito Embora eu não achasse que isso devesse ser considerado normal, não questionava, e não contava nada, mesmo. Por isso, fiquei bastante surpresa quando recebi sua carta. Porque descobrir o meu endereço não era um negócio simples de se fazer, na real. — Quem mais tá sabendo agora? — Perguntei bem mais tarde. Yuki planejara se hospedar num hotel, mas eu o obrigara a cancelar a reserva e ficar lá em casa. — Hm... Só Kisa e Hiro não sabem, Yuuki. Eu acho. — Ele pensou um pouquinho. Enruguei o nariz. O primeiro que eu percebera ter descoberto fora Kyou. Hatori meio que sempre soubera. Mais ou menos. Ayame também. Fiquei muito impressionada ao notar isso. E, aí, Momiji e Haru. Embora eu não tivesse certeza se eles foram descobrindo nessa ordem, fui reparando aos poucos. Sobre Yuki, eu não fazia a menor ideia. Desconfiava que ele soubesse desde bem antes de eu conseguir a espada. — Eu queria ter contado a vocês... — Olhei pra ele. — Mas você não ficou... Chateado... Ficou? Hum... Muito...? — Hm... O que você diria se eu dissesse que sim? Pisquei algumas vezes. — Me desculpa? Ele sorriu. — Não. — Disse, e puxou meu rosto. — Tem certeza de que não me desculpa? — Perguntei então, quando me soltou. — Não, não. Eu pensei melhor. Desculpo você, sim. Fiquei com ele ali mais um pouquinho e então o mandei descansar. Ele ia ficar com os horários meio confusos por um tempo. Yuki me beijou de novo e eu saí de lá. E aí topei meu irmão. Fiquei um tempo olhando pra ele e resolvi chegar mais perto. — Tudo bem? — Perguntei, bagunçando todo o seu cabelo. Kaname fechou os olhos e abaixou a cabeça para que eu continuasse mexendo no cabelo dele. Quando parei, ele me olhou por um instante, beijou minha cabeça e foi saindo. Capítulo 50 — Supletivo à distância? — Yuki me perguntou, encontrando um folheto na minha gaveta. — É. Vou fazer um no ano que vem. Quer dizer, nesse ano. — Tem certeza? Você ainda tem dezesseis... Olhei pra ele. — Mas eu não gosto de escola. — Respondi simplesmente. — Se for voltar pra lá agora vou ter que fazer o colegial todo de novo. — Mas você só fez o primeiro ano... — Exatamente! E eu não vou fazer de novo, tá louco? Eu tinha percebido na época em que o Kaname ancestral me mantivera dentro de casa que adorava não ir à escola. E não quis me desfazer daquela nova sensação. Meu pai não ligou. Nem o Kaname irmão. Era perfeitamente comum que adolescentes largassem a escola para tornarem-se caçadores e eu, por outro lado, estava fazendo aquilo por um motivo muito mais nobre: Ser designer de games. Killua e eu descobrimos que tínhamos muitas boas ideias para jogos. Ele ia fazer supletivo comigo. Mostrei a Yuki nossos projetos. Ele ficou fingindo interesse, mas estava bem disperso. — Foco, Yuki, foco, foco! — Sacudi o braço dele. — O que é que você tem? Yuki sorriu pra mim, e aí olhou pra porta do meu quarto. Olhei também. Não tinha nada lá. — Que foi? — Insisti, achando Yuki muito estranho. Nisso, ele abaixou os olhos para o teclado do meu computador, ainda sorrindo. Tinha um envelope lá, reparei. Não o tinha visto colocando-o... Sabe como é. O olho cego. — Que isso? — Peguei o envelope. — É pra mim? É meu? — Abra. — Sugeriu, passando os braços ao redor da minha cintura e enterrando o rosto em meu cabelo. Obedeci. E meu olhar bateu direto no nome da nossa universidade estadual. — Você... Você não... Você não! — Arfei, olhando pra ele, quase tendo um treco. — Arrá... Me joguei para o seu lado e caímos os dois no chão. — Você não fez isso! — Falei, ainda sem acreditar. — Tem certeza? Porque acho que a minha carta de aprovação discorda um pouco de você. Fiquei gritando um tempo, toda feliz. — Quando te mandaram isso?! — Peguei o envelope, procurando alguma data. — Te mandaram hoje?! Pô! Te mandaram faz tempo! — Soquei as costelas dele. — E você só me conta agora?! — “E você, nhe-nhe-nhe, só me conta agora”. — Ele ficou me zoando e puxou meus braços para que eu fosse beijá-lo. Cruzei-os em seu peito e deitei meu rosto em cima deles, olhando. — Eu já te disse hoje que você é um garoto muito maroto? — Não. Mas já me deserdou duas vezes. — É? Não foi de coração. Juro solenemente. Yuki sorriu e nos girou, apoiou os cotovelos no chão ao lado da minha cabeça e se inclinando para me beijar de novo. Cutuquei as bochechas dele. — Você vai ser o universitário gato mais gato de todos os tempos. Pronto, falei. E ele me beijou outra vez.