Publicação Mensal N.º 003 » Janeir o de 2014 Editor: Helder Martins Corpo Redactorial: Aldino Muianga, João Schwalbach, Pedro Utui e Cátia Fernandes Editorial Da Passagem do Ano a um olhar para o Futuro!... O O ano de 2013 terminou e cada um festejou o seu fim e o início do Novo Ano como achou mais conveniente, mas todos irmanados pelo mesmo voto, de que 2014 seja melhor que o ano transacto. No nosso Editorial de Dezembro já fizemos um balanço preliminar do que foi realizado pela AMEAM e pôde constatar-se que, apesar de muitas dificuldades, se fez muito, se tivermos em consideração que somos uma instituição jovem, em processo de consolidação. Contudo, nem tudo o que tínhamos previsto realizar foi realizado e transita como prioridade para 2014. Há pois, agora, que olhar para o futuro com determinação, para enfrentar as tarefas que nos esperam! A consolidação, reforço e organização interna da nossa Associação e a sua expansão e divulgação devem continuar na lista das nossas prioridades. O nosso Boletim tem estado a sair mensalmente, nos últimos dias de cada mês e vai continuar. Tudo faremos para a melhoria da sua qualidade e por uma mais eficaz, mais extensa e mais rápida distribuição! Os nossos esforços para envolver um maior número dos nossos membros na sua elaboração vão continuar e ser intensificados. Aqui fica mais um apelo à participação de todos! Por Helder MARTINS Não conseguimos fazer colocar no ar a nossa página da Net, até final de 2013, mas todas as nossas energias se vão intensificar para que isso venha a suceder a breve trecho! Todos nos começamos a preparar para realizar com êxito um novo Acto Cultural, Artístico e Literário em 28 de Fevereiro próximo. Depois do sucesso do que foi realizado em Julho de 2013, é de prever que todos os Membros da AMEAM se sintam agora mais motivados para participarem condignamente de modo a que tenhamos um novo e mais grandioso sucesso. A celebração do nosso primeiro aniversário, em 25/04/2014, com importantes actividades Culturais, Artísticas e Literárias é outro dos nossos grandes projectos em que, estou certo, todos os membros da AMEAM se vão, desde já, engajar com um grande comprometimento. Esta deverá ser uma oportunidade única de celebrarmos a nossa existência e de mostrarmos a vitalidade da nossa Associação. Espero que com o empenho de todos os nossos Membros e com a colaboração de muitos dos Amigos que já granjeámos, vamos ter grande sucesso! Outras actividades constantes dos grandes eixos do Plano de acção para 2014 (já aprovados) devem também do- minar as nossas atenções e os nossos esforços: Finalização rápida do Plano Estratégico para 2014/16; Desenvolvimento de parcerias com Universidades, Centros Culturais, Associações Culturais e com outras Instituições moçambicanas e internacionais; Criação dum lobby nacional e internacional para a Candidatura do nosso Mia Couto para o Prémio Nobel da Literatura; Realização dum amplo movimento para o recrutamento de novos Membros, das diversas categorias, incluindo Membros Correspondentes Estrangeiros; Desenvolvimento de iniciativas que venham a permitir a participação duma grande delegação da AMEAM ao 9º Congresso da UMEAL, a realizar no Recife em Outubro de 2014. Conto com o apoio de todos! Estou certo do empenhamento de todos na realização das tarefas que nos esperam! A todos, Votos dum 2014 Próspero e Pacífico! “Não sou racista e detesto o racismo. Odeio a prática da discriminação racial em todas as suas formas. Odeio a doutrinação sistemática das crianças com o preconceito da cor.” Nelson Mandela “Sempre defendi o ideal duma sociedade livre e democrática, onde todas as pessoas vivem juntas em harmonia e oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e alcançar. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para dar a minha vida.” Nelson Mandela Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique 1 BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 Destaques Mia Couto Destacado pela Imprensa moçambicana O «Notícias», o mais popular jornal diário moçambicano e de maior tiragem, considerou o nosso Membro Associado, Mia Couto, como «um destaque incontornável na arena cultural ao longo de 2013». «O País», o jornal diário publicado na capital moçambicana e mais lido entre a classe intelectual, também destacou o nosso Mia, como o «rosto da cultura moçambicana, em 2013». Embora o Mia não tenha publicado nenhum título novo este ano, as razões em que se fundamentam estes jornais são muito idênticas: em 2013 Mia Couto venceu, como oportunamente o Boletim da AMEAM noticiou, 2 dos mais importantes prémios literários que um escritor pode almejar, nomeadamente, o Prémio Camões, que é o maior galardão literário da língua portuguesa, e o Prémio Internacional Neustadt, atribuído pela Universidade de Oklahoma, nos EUA e considerado por muitos como o «Nobel Americano». Os jornais sublinham que isso faz dele «a vedeta do ano 2013». Os referidos periódicos destacam que Mia é o escritor moçambicano mais internacionalizado pelo número de países em que as suas obras foram publicadas e pelo número de línguas em que foi traduzido e realçam que isso «serviu como mais um despertar para a literatura do nosso país». Referem também que na decisão do júri do Prémio Camões pesou «a vasta obra ficcional caracterizada pela inovação estilística e a profunda humanidade das suas estórias». Em relação ao Prémio Internacional Neustadt os referidos diários destacam o facto de pela 1ª vez o prémio ter sido atribuído a um escritor de língua portu- guesa e de ter sido uma das raras vezes que foi atribuído a um escritor de língua não inglesa. (Por H. Martins, com informação colhida do «Notícias-31/12/13» e do «O País-1/01/14». Foto de J. Schwalbach) “Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos”. Nelson Mandela Notícias Terceiro aniversário da morte de Malangatana F oi a 5 de Janeiro de 2011, que o grande mestre das Artes moçambicanas, Malangatana Valente Ngwenya, perdeu a vida, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos (Portugal). Malangatana tornou-se célebre pela sua pintura, tendo-se tornado uma referência e um exemplo no mundo das Artes, não só em Moçambique, mas em muitos outros países, à escala planetária. O Mestre perdeu a vida, mas a sua obra é imortal. Os seus quadros estão expostos em museus de grande nomeada, bem como em coleções privadas, nos 4 cantos do mundo. A sua obra fez com que o nome de Moçambique fosse reconhecido e respeitado, no mundo das Artes, ao nível mundial. Para além 2 Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique » BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 » da pintura a óleo e a tinta da China, Malangatana celebrizou-se pela pintura de murais e fez cerâmica e escultura com metal. A sua última obra, «A italiana», foi a pintura duma viatura (ver foto). Para além disso, foi poeta (tendo publicado poesia em 1996 e 2004), declamador, cantor, actor e dançarino. Estudou e exercitou-se em pintura, primeiro em Moçambique e depois em Portugal e na Suíça. A sua primeira exposição de pintura foi, na então, Lourenço Marques, em 1961. A partir dessa altura iniciou uma das mais brilhantes carreiras artísticas de projecção internacional, tendo ganho inúmeros prémios internacionais. Foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte e do Centro de Estudos Culturais (actual Escola Nacional de Artes Visuais) e um dos grandes dinamizadores do Núcleo de Arte. Em Moçambique, foi agraciado, com a «Medalha Nachingwea» e com a «Ordem Eduardo Mondlane do 1º Grau», pela sua contribuição para a Cultura moçambicana, tendo sido considerado o grande Embaixador da Cultura moçambicana. Em 1995, foi agraciado, em Portugal, com o Grau de «Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique». Em 1997, a UNESCO nomeou-o: «Artista pela Paz». Participou em vários projectos da UNICEF em favor das crianças. Recebeu condecorações em muitos outros países, nomeadamente, em França, onde lhe foi atribuída a condecoração de «Comendador das Artes e Letras». Em 2007 recebeu o título de «Doutor Honoris Causa» da Universidade «A Politécnica» de Maputo e em 2010, o da Universidade de Évora. Em 2006 criou, na sua terra natal, Matalana, a sua própria Fundação: a «Fundação Malangatana». Foi combatente da Luta de Libertação Nacional na clandestinidade, o que lhe valeu ter sido preso 2 vezes pela famigerada PIDE (a polícia política da ditadura colonial fascista de Salazar). Depois da Independência Nacional, foi, em momentos diferentes, deputado do Parlamento moçambicano, deputado municipal e Vereador para a Cultura do Município de Maputo. Foi um dos criadores, em Moçambique, do «Movimento para a Paz».(H. Martins com informações colhidas nos jornais: O País, Notícias e Savana e fotos extraídas da InterNet por Helder Brito Martins – Neto) “Tanto o oprimido como o opressor são roubados da sua humanidade.” Nelson Mandela Mia Couto lançou novo livro em Portugal E m Dezembro passado o nosso Membro Associado, o reputado escritor Mia Couto, lançou em Lisboa mais um livro: «Menino no Sapatinho», baseado num conto publicado, em 2001, na obra: «Na Berma de Nenhuma Estrada», mas totalmente reescrito e ilustrado por Danuta Wojciechowska. Embora tenha o estilo de um livro para crianças, é de facto um livro para todas as idades, que «joga com um imaginário mitológico cristão e de uma tradição animista e encerra uma crítica à sociedade de consumo», como afirmou no lançamento da obra a professora de Literatura, Artes e Culturas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Profª. Dra. Inocência Mata. (H. Martins com informação do Semanário Savana e foto fornecida por Patrícia SILVA) “A violência do governo só pode fazer uma coisa: gerar a contra violência.” Nelson Mandela Felicitações à AMEAM C om a larga distribuição do nosso Boletim (que mesmo assim queremos melhorar), em Moçambique e pelos 4 cantos do mundo, onde há quem fale português, temos recebido inúmeras felicitações, das mais variadas pessoas, nomeadamente, médicos, outros profissionais de Saúde, estudantes de Ciências da Saúde, artistas, escritores, dirigentes culturais, dirigentes de instituições nossas congéneres e outras com interesses culturais em outros países, intelectuais das diversas áreas, personalidades governamentais, diplomatas e simples cidadãos interessados em receber o nosso Boletim. Os que nos felicitaram invocaram a excelente apresentação gráfica do Boletim e o seu rico conteúdo. Por gostarem do Boletim e se sentirem vocacionados para as Artes, as Letras e a Cultura, alguns médicos decidiram inscrever-se como membros efectivos da AMEAM e temos inscrições também para «Membros Correspondentes Estrangeiros». Como é facilmente compreensível, não nos é possível transcrever todas essas felicitações, mas, pela sua importância, transcrevemos aqui as que nos foram endereçadas por SExa. o Ministro da Saúde de Moçambique, Dr. Alexandre MANGUELE: «Muito obrigado por me ter enviado este Novo Número do Boletim da AMEAM. Acho muito interessante e creio que ajudará os médicos a se interessarem cada vez mais por assuntos culturais». Na impossibilidade de agradecer, a cada um, individualmente, em nome da AMEAM, o Corpo Redactorial do Boletim agradece, a todos, essas felicitações. (H. Martins). Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique 3 BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 Crónica da Música Joseph Leopold Auenbrugger Músico Criador do Método Revolucionário de Examinar os Pacientes através da Percussão das Cavidades O austríaco Auenbrugger, memorável personagem do universo médico, mudou completamente o modo de detectar as doenças que acometem as cavidades orgânicas. Até ao século XVIII, os principais meios diagnósticos disponíveis consistiam em ouvir adequadamente a história do paciente, inspecioná-lo, contar a frequência respiratória e o pulso. Aferir a temperatura ainda era algo novo e não constava no exame padrão recomendado pelos professores da época. Estetoscópio? Nem pensar, ainda não existia (seria inventado por Laennec décadas mais tarde). Se uma determinada cavidade do corpo, a caixa torácica, por exemplo, fosse acometida por uma doença qualquer e houvesse um derrame pleural, os médicos não tinham outra forma de detectar a lesão senão no exame pós-morte, a autópsia. Com o mal longe dos olhos e das mãos dos médicos os danos eram inexoráveis. Aí aparece a inventividade do nosso personagem: o médico e flautista Joseph Leopold Auenbrugger, filho do dono duma estalagem, aprendeu com o pai a avaliar a quantidade de vinho de uma barrica pela percussão. Quando se formou em medicina, teve a ideia de adaptar tal procedimento ao exame do doente. Ele foi o criador de um novo e revolucionário modo de examinar os pacientes: a percussão das cavidades orgânicas. Sendo músico, ele estava familiarizado com coisas como ressonância, timbre, altura do som, o que lhe ajudou muito em seus estudos sobre o novo método. 4 Em condições normais as vibrações produzidas pela percussão do tórax são abafadas devido à grande diferença acústica observada entre a parede torácica e o parênquima pulmonar. Se, como ocorre no pneumotórax, existe ar entre a parede torácica e o parênquima pulmonar, a diferença acústica se acentua ainda mais e o abafamento do som se torna mais pronunciado. O resultado é um som de maior amplitude e duração, francamente musical, descrito sempre como “timpânico”, em referência ao tímpano, instrumento musical presente em qualquer orquestra sinfônica da actualidade. Se o tecido pulmonar é preenchido por líquido ou algo sólido, a dita diferença acústica é minimizada e o som produzido se torna de baixa amplitude e curta duração, descrito usualmente como “surdo”. cussivo na prática clínica e divulgou a tradução em francês do trabalho de Auenbrugger, é que a importância do invento foi definitivamente estabelecida. (Pedro Utui com informação colhida do Blogue:medicineisart.blogspot.com) Foi em 1761, que o famoso médico publicou o seu Inventum Novum ex Percussione Thoracis Humani, obra escrita em latim, em que apresentou o revolucionário meio de investigação das cavidades orgânicas. Ao apresentar sua obra à comunidade científica, Auenbrugger escreveu: O Sol fugiu, a brisa suave levou o perfume do dia e os pássaros regressaram aos seus ninhos. E escureceu. As luzes acenderam-se na cidade e no escuro de uma cabana rural uma vida irradiou felicidade. E a noite cerrou. Só canta o murmúrio do silêncio e no escuro quarto de uma cabana rural um gemido ecoou. E a vela apagou-se. Tornou-se tudo negro como breu e no escuro chão do quarto de uma cabana rural o amor floresceu. E a madrugada acordou! Um sorriso de carinho do novo dia pairou no ar e quando a mulher chorou, o homem suavemente a beijou. E de novo o sol voltou. «Apresento ao leitor um novo método para detecção de doenças, descoberto por mim. Consiste na percussão do tórax e na avaliação das condições internas da cavidade de acordo com a ressonância do som assim produzido. Minhas descobertas não foram antes confiadas ao papel por causa de um incontrolável impulso ou pelo desejo de teorizar. Sete anos de observação tornaram o assunto claro para mim, o suficiente para que me sinta em condições de publicá-lo. Sei que encontrarei oposição às minhas opiniões. A inveja e a acusação, o ódio e a calúnia sempre foram o ónus daqueles que iluminaram a arte ou a ciência com suas descobertas». De facto, somente 46 anos depois, quando o clínico francês Jean Nicolas Corvisart, médico pessoal de Napoleão Bonaparte, introduziu o método per- Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique » Novidade Por: Carla CARRILHO BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 Contar Clinicando Introdução N a generalidade o profissional de Saúde sempre acalentou o sonho de registar as suas experiências com os pacientes; porém, numa perspectiva que se situasse fora do território formal das unidades sanitárias. Aquelas experiências para-clínicas acumuladas seriam – e é assim que nós desejamos que elas sejam – o fio condutor da relação médico/paciente para Por Aldino Muianga o lado humano e social, porque cremos que, por detrás de cada história existe sempre outra história. E é nessas outras histórias onde muitas vezes achamos o bálsamo que no sub-consciente desanuvia os dramas do quotidiano, onde se desintrincam os novelos da psicologia dos pacientes e fazem-nos perceber quão complexa pode ser a natureza humana ou quanta grandeza se oculta numa palavra, ou ainda em Apenas uma amostra K arói é o distrito mais populoso da província zimbabweana de Mashonaland West e faz fronteira com a Zâmbia na região do Chirundo, a caminho das Quedas de Água da Victória, mais conhecidas por "Vic Falls". A estrada principal que corta a sede da vila de Karói é muito movimentada, graças ao tráfego de turistas a caminho ou de regresso das "Vic Falls". Camiões de grande tonelagem adicionam colorido, ruido e agitação, nas suas viagens de ida e volta para a costa, para os portos de Moçambique. Esta região é essencialmente agrícola. Vastas extensões de terra cobrem-se de plantações dos farmeiros. A produção nos campos e a criação de gado são as actividades que ocupam a maioria da população local. Dir-se-ia que as autoridades haviam privilegiado esta região com os direitos de uma reserva de conservação de várias espécies animais. A caça era uma actividade rigorosamente controlada, daí que abundavam espécimes que eram verdadeiras raridades. Era comum ver a interceptar o tráfego, a atravessar vagarosamente as vias, animais que desfilavam a sua opulência, como macacos gigantes que assaltavam incautos viajantes, lagartos gigantes a exibir a garrifice das suas cores, serpentes de várias espécies como: jibóias, cobras mambas e aves exóticas cujos nomes desconheço. gestos simples como aqueles que vão discorrer ao longo das narrativas nesta coluna. Contar Clinicando constitui uma digressão ao outro lado dos enfermos, espaço onde ele ou ela se redescobre e reencontra, e onde o profissional de saúde reconquista a sua dimensão de ser social. Assim sendo, vamos então contar clinicando. Por Aldino Muianga Foi no Hospital Distrital desta vila que tive a experiência inédita que passo a contar. Os compêndios de Medicina Tropical haviam-nos ensinado que em regiões daquele cariz, onde abundam variedades de animais que se não conformam com a “invasão” dos seus territórios pelo Homem, é frequente registarem-se casos de incidentes, como mordeduras ou outro tipo de ataques, inflingidos durante as confrontações. Nesta região em particular, a população de répteis, particularmente de serpentes, era deveras alarmante. Não passava uma semana sem que ocorressem dois ou três casos graves ou fatais de mordeduras de cobras, ou de assaltos por hienas e outros depredadores ou picadas por insectos com severas reacções anafilácticas. Pois, a literatura médica aconselha a que se pergunte a qualquer paciente, vítima de ataque por esses animais, se foi capaz de identificar o mesmo e, se possível, trazer uma amostra à presença do prático para uma identificação positiva. Estava de piquete durante aquele fim-de-semana e transportava comigo um rádio-transmissor, comumente designado bip para responder às chamadas de urgência. No fim daquela tarde de sábado o bip emitiu um sinal ao qual respondi prontamente. «Temos uma urgência no Banco de Socorros» foi a mensagem que recebi. De imediato dirigi-me às Urgências. «Temos ali na sala de observação um paciente que foi vítima de uma mordedura de cobra» informou a enfermeira de serviço naquele Departamento. O paciente era um homem de meiaidade, robusto como poucos, de cabelo desgrenhado. Apresentava-se de tronco e os braços descobertos onde de imediato detectei muitas escoriações. Tinha um facies ansioso, embora respirasse sem sinais dalguma perturbação respiratória. Acompanhavam-no a família e o patrão (deduzo que era farmeiro), e nenhum destes mostrava alguma disposição de abandoná-lo ali. «O que sucedeu?» assim iniciei a recolha da história clínica. «Fui atacado por uma jibóia» o paciente conseguiu assim articular a fala. Deitei-lhe um olhar de admiração por ter sobrevivido ao ataque, muitas vezes fatal, por aquela espécie de réptil. Ele relatou a luta empolgante com essa serpente gigantesca que o surpreendeu na espessura das matas. Durante a confrontação envolveram-se numa batalha de morte em que ele, utilizando a faca de mato que sempre trazia consigo, desferiu inúmeros golpes, até conseguir fragilizá-la nas tentaivas de constrição e, finalmente, matá-la. Vieram-me à memória as instruções dos compêndios: na medida do possível, as vítimas sobreviventes aos ataques por cobras devem trazer uma amostra da mesma, ou pelo menos a Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique 5 » BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 » cabeça, para uma identificação positiva pelo médico. A razão para esta recomendação era que as mordeduras de cobras produzem diferentes complicações que variam segundo a natureza dos venenos injectados. E os haviam: os citotóxicos, os neurotóxicos e os hemotóxicos. A identificação do tipo de serpente poder-se-ia fazer com base nas caracterísicas da cabeça do animal, o que facilitaria a selecção da terapêutica a instituir. Colocou a mesma sobre o tampo da secretária, descontraidamente. Aquela era acanhotada, rugosa de escamas multicores e da boca espreitavam as pontas bifurcadas da língua. Eu nunca vira uma jibóia a tão curta distância, muito menos uma decapitada. «Tem a certeza de que era uma jibóia?» perguntei, céptico. Da amostra, em particular, salientavavam-se uns olhos frios e esverdeados, paralisados, a infundir um terror medonho como nunca experimentei em toda a minha vida. Parecia ainda alentada, que se mexia. «Sim, vi. Era mesmo uma jibóia» disse o paciente com muita segurança. Combinou a afirmação ao gesto de abaixar-se e retirar algo de um saco de plástico que depusera no chão. «Aqui está a cabeça!» O que se seguiu depois foi o início da minha outra estória: um arrepio arrefeceu-me a espinha. Senti-me catapultado num pulo vigoroso sobre a cadeira como se tivesse levado uma agulhada no traseiro e, em menos tem- po que levou dizer um ai!, pus-me fora do consultório às corridas, a arfar cheio de pânico e palpitações. Depois de restabelecidas a calma e a compostura, cumprimos com as rotinas de tratamento, eu sempre com um olhar esguelhado para o saco de plástico do paciente – não fosse o Diabo tecê-las e dali emergir a parte restante do réptil! «Da próxima vez que for mordido, faça-me o grande favor de não trazer esse tipo de bicho para este hospital» foi o meu último conselho ao paciente, com algum embargo na voz. Aprendi e conclui que: uma coisa é o que livros prescrevem, mas outra é a realidade vivida no dia-a-dia da prática clínica. E cobras? Só vistas em filmes ou em livros! “A prioridade é sermos honestos connosco. Nunca poderemos ter um impacto na sociedade se não nos mudarmos primeiro. Os grandes pacificadores são todos gente de grande integridade e honestidade mas, também, de humildade.” Nelson Mandela «Quem é Quem?» Entrevista com: Ana CHARLES – Membro efectivo da AMEAM Nome, onde nasceu e como cresceu? Chamo-me Ana Francisco Charles, nasci na Vila de Manica, a 8 de Agosto de 1966. Cresci muito feliz, numa família de 10 irmãos, 5 meninas e 5 rapazes, dos quais sou a mais velha e a querida do pai (já falecido). Como foi o seu percurso escolar/académico? Fui sempre bem-sucedida, tendo estado sempre no quadro de honra na escola primária e secundária e nunca tendo reprovado ou feito exame. Sempre dispensada dos exames com médias de 14 a 16. Na Universidade, pelo facto de ter tido a minha filha no 1º ano da Faculdade e de forma inesperada, tive que anular a minha matrícula para cuidar dela. Depois disso, só repeti o exame de Pediatria e Medicina Interna. Em 2003 tendo ganho uma bolsa de estudos para fazer Mestrado de Saúde Pública (Promoção da Saúde), na Universidade de Queensland (Austrália), tive que fazer o curso de inglês com a nota máxima de 7 em 3 meses para um curso que era de 6 meses. E nas cadeiras do Mestrado passei com uma média de 5 onde a média máxima é 7. A minha tese de Mestrado foi (conjuntamente com outros trabalhos da Universidade) publicada no Departamento de Saúde de Queensland (Austrália). Em 2012 fiz o exame de Especialidade em Saúde Publica (Promoção para a Saúde) no qual fui bem-sucedida. A opção pela Medicina nasceu desde cedo ou foi uma opção tardia? A opção pela Medicina nasceu muito cedo, creio que desde os quatro anos quando o meu falecido pai, que era enfermeiro em Sussudenga (na altura localidade de Vila Pery, hoje Chimoio), me levava, logo pela manhã, ao Posto de Saúde local e me punha sentada no parapeito da janela de onde eu assistia maravilhada vê-lo atender os doentes. Não me lembro nunca de ter sentido um mal-estar quando via o meu pai a suturar feridas, pelo contrário, queria ajudar! Sempre gostei de ajudar o próximo. O que gosta de fazer nos tempos livres? Ginásio, dançar, ler, escrever, criar coisas novas. Porque acha que os médicos devem ter actividade cultural? Para manter a sua saúde mental e melhorar as suas habilidades e para enfrentar o stress a que a profissão obriga. “Sonho com uma África em paz consigo mesma” Nelson Mandela 6 Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique » BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014 Porque achou que devia aderir à AMEAM? Para que voltasse a despertar em mim o gosto pela escrita que estava adormecido. Durante a escola secundaria na cidade da Beira (Samora Machel) publiquei algumas poesias do Diário da Beira. Depois do Mestrado e enquanto Chefe do Departamento da Saúde Ambiental no Ministério da Saúde, publiquei alguns artigos sobre a Saúde Ambiental no Jornal Noticias. Os artigos estavam virados á educação da população para o conhecimento das causas das doenças ambientais e seus métodos de prevenção. Tenho ainda vários pedaços de crónicas da vida real escritas em vários momentos da minha vida que ainda não foram compilados e acredito que, com o incentivo da AMEAM, não só o farei, como também encontrarei uma melhor orientação para o meu estilo de escrita. Como reagiu à sua premiação este ano? O prémio para o Alumini Internacional do ano de 2013, pela Universidade de Queensland, onde fiz o Mes- trado em Saúde Publica em 2005, foi um marco na minha vida profissional que ainda não é tão longa assim (17 anos), mas já com muitos momentos de conquistas e alegrias. A entrega do prémio decorreu num ambiente de autêntica gala e «glamour», contando com a presença do corpo académico e senadores. Na noite fomos premiadas: 15 pessoas em diferentes categorias. Para além de constituir uma grande responsabilidade individual, o prémio significa uma aquisição impar uma vez que fui seleccionada entre mais de 500 antigos estudantes da Universidade de Queensland. Sou a 1ª Africana e, para mais Mulher, a quem a Universidade atribui o prémio. O mesmo já foi atribuído a asiáticos e a latino-americanos, mas nunca a um africano. Este prémio é atribuído a pessoas que se destacam nas suas áreas de formação e trabalho depois que regressam aos seus países. No meu regresso do Mestrado tive a sorte de contar com uma gama de óptimos profissionais que viram em mim um potencial para realizar trabalhos de qualidade. A essas pessoas, para além dos meus colegas e da minha família que sempre me compreenderam e apoiaram incondicionalmente, vai o mérito por este prémio. Esses profissionais são: o Prof. Doutor Martinho do Carmo Dgedge, Prof. Helder Martins, Prof. Ivo Garrido, Dr. Mouzinho Saíde, Dra. Rosa Marlene e a Dra. Esmeralda Karageanes. Um agradecimento especial ao meu companheiro, Silva Mulambo, que sempre me incentiva a seguir em frente em busca da concretização dos meus sonhos. O que gostaria que ainda se soubesse sobre si? Que sou uma pessoa que gosta de explorar para além do limite. Para si como foi o ano de 2013? E um desejo para 2014... Para mim o ano 2013 foi um ano Luz! E o meu maior desejo para 2014 é PAZ! (Entrevista conduzida por Cátia Fernandes e revista por H. Martins. Foto fornecida pela própria) Foto do Mês Foto de Iolanda S. da S. Santos “O Pulmão da Malhangalene” » “A morte é algo inevitável. Quando um homem fez o que considera ser seu dever para com o seu povo e seu país, pode descansar em paz. Acredito tê-lo feito e é por isso que dormirei por toda a eternidade.” Nelson Mandela Ficha técnica AMEAM - Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique Associação autorizada por despacho Ministerial de 27 de Março de 2013, publicado no Boletim da República nº 44, III Série, de 31 de Maio de 2013. Legalmente constituída a 25 de Abril de 2013. Registada (Registo Definitivo) na Conservatória do Registo das Entidades Legais de Maputo, em 28/05/13, com o nº 100392615. NUIT nº 700127036 Sede Provisória, na Sede da Associação Médica de Moçambique, na: Av. Salvador Allende, 560, 1º andar, em Maputo. E-mail: [email protected] Boletim maquetizado com o patrocínio da EloGráfico – Rua Kwame Nkrumah, 1591, 1º Maputo Tel: 21417333 e 21418600, E-mail: [email protected] Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique 7