Publicação Mensal
N.º 003 » Janeir o de 2014
Editor: Helder Martins  Corpo Redactorial: Aldino Muianga, João Schwalbach, Pedro Utui e Cátia Fernandes
Editorial
Da Passagem do Ano a um olhar para o Futuro!...
O
O
ano de 2013 terminou e cada
um festejou o seu fim e o início do Novo Ano como achou
mais conveniente, mas todos
irmanados pelo mesmo voto, de que
2014 seja melhor que o ano transacto.
No nosso Editorial de Dezembro
já fizemos um balanço preliminar do
que foi realizado pela AMEAM e pôde
constatar-se que, apesar de muitas dificuldades, se fez muito, se tivermos em
consideração que somos uma instituição jovem, em processo de consolidação. Contudo, nem tudo o que tínhamos
previsto realizar foi realizado e transita
como prioridade para 2014.
Há pois, agora, que olhar para o
futuro com determinação, para enfrentar as tarefas que nos esperam!
A consolidação, reforço e organização interna da nossa Associação e a
sua expansão e divulgação devem continuar na lista das nossas prioridades.
O nosso Boletim tem estado a sair
mensalmente, nos últimos dias de cada
mês e vai continuar. Tudo faremos para
a melhoria da sua qualidade e por uma
mais eficaz, mais extensa e mais rápida
distribuição! Os nossos esforços para
envolver um maior número dos nossos
membros na sua elaboração vão continuar e ser intensificados. Aqui fica mais
um apelo à participação de todos!
Por Helder MARTINS
Não conseguimos fazer colocar no
ar a nossa página da Net, até final de
2013, mas todas as nossas energias se
vão intensificar para que isso venha a
suceder a breve trecho!
Todos nos começamos a preparar
para realizar com êxito um novo Acto
Cultural, Artístico e Literário em 28 de
Fevereiro próximo. Depois do sucesso
do que foi realizado em Julho de 2013,
é de prever que todos os Membros da
AMEAM se sintam agora mais motivados para participarem condignamente
de modo a que tenhamos um novo e
mais grandioso sucesso.
A celebração do nosso primeiro
aniversário, em 25/04/2014, com importantes actividades Culturais, Artísticas
e Literárias é outro dos nossos grandes
projectos em que, estou certo, todos
os membros da AMEAM se vão, desde
já, engajar com um grande comprometimento. Esta deverá ser uma oportunidade única de celebrarmos a nossa
existência e de mostrarmos a vitalidade
da nossa Associação. Espero que com
o empenho de todos os nossos Membros e com a colaboração de muitos
dos Amigos que já granjeámos, vamos
ter grande sucesso!
Outras actividades constantes dos
grandes eixos do Plano de acção para
2014 (já aprovados) devem também do-
minar as nossas atenções e os nossos
esforços:
„„ Finalização rápida do Plano Estratégico para 2014/16;
„„ Desenvolvimento de parcerias
com Universidades, Centros Culturais, Associações Culturais e com
outras Instituições moçambicanas
e internacionais;
„„ Criação dum lobby nacional e internacional para a Candidatura do
nosso Mia Couto para o Prémio
Nobel da Literatura;
„„ Realização dum amplo movimento para o recrutamento de novos
Membros, das diversas categorias,
incluindo Membros Correspondentes Estrangeiros;
„„ Desenvolvimento de iniciativas
que venham a permitir a participação duma grande delegação da
AMEAM ao 9º Congresso da UMEAL, a realizar no Recife em Outubro de 2014.
Conto com o apoio de todos! Estou
certo do empenhamento de todos na realização das tarefas que nos esperam!
A todos, Votos dum 2014 Próspero e Pacífico!
“Não sou racista e detesto o racismo. Odeio a prática da discriminação racial em todas as suas formas.
Odeio a doutrinação sistemática das crianças com o preconceito da cor.” Nelson Mandela
“Sempre defendi o ideal duma sociedade livre e democrática, onde todas as pessoas vivem juntas em
harmonia e oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e alcançar. Mas se for necessário, é
um ideal pelo qual estou preparado para dar a minha vida.” Nelson Mandela
Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
1
BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
Destaques
Mia Couto Destacado pela Imprensa moçambicana
O
«Notícias», o mais popular jornal
diário moçambicano e de maior tiragem, considerou o nosso Membro Associado, Mia Couto, como
«um destaque incontornável na
arena cultural ao longo de 2013».
«O País», o jornal diário publicado
na capital moçambicana e mais lido
entre a classe intelectual, também destacou o nosso Mia, como o «rosto da
cultura moçambicana, em 2013».
Embora o Mia não tenha publicado
nenhum título novo este ano, as razões
em que se fundamentam estes jornais
são muito idênticas: em 2013 Mia Couto venceu, como oportunamente o Boletim da AMEAM noticiou, 2 dos mais
importantes prémios literários que um
escritor pode almejar, nomeadamente,
o Prémio Camões, que é o maior galardão literário da língua portuguesa,
e o Prémio Internacional Neustadt,
atribuído pela Universidade de Oklahoma, nos EUA e considerado por muitos
como o «Nobel Americano». Os jornais
sublinham que isso faz dele «a vedeta
do ano 2013».
Os referidos periódicos destacam
que Mia é o escritor moçambicano
mais internacionalizado pelo número
de países em que as suas obras foram
publicadas e pelo número de línguas
em que foi traduzido e realçam que
isso «serviu como mais um despertar
para a literatura do nosso país». Referem também que na decisão do júri do
Prémio Camões pesou «a vasta obra
ficcional caracterizada pela inovação
estilística e a profunda humanidade das
suas estórias».
Em relação ao Prémio Internacional
Neustadt os referidos diários destacam
o facto de pela 1ª vez o prémio ter sido
atribuído a um escritor de língua portu-
guesa e de ter sido uma das raras vezes
que foi atribuído a um escritor de língua não inglesa. (Por H. Martins, com informação colhida do «Notícias-31/12/13»
e do «O País-1/01/14». Foto de J. Schwalbach)
“Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão e compreenderão que foram feitos
para viverem como irmãos”. Nelson Mandela
Notícias
Terceiro aniversário da morte de Malangatana
F
oi a 5 de Janeiro de 2011, que o
grande mestre das Artes moçambicanas, Malangatana Valente
Ngwenya, perdeu a vida, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos
(Portugal). Malangatana tornou-se
célebre pela sua pintura, tendo-se tornado uma referência e um exemplo no
mundo das Artes, não só em Moçambique, mas em muitos outros países, à
escala planetária.
O Mestre perdeu a vida, mas a sua
obra é imortal. Os seus quadros estão
expostos em museus de grande nomeada, bem como em coleções privadas,
nos 4 cantos do mundo. A sua obra fez
com que o nome de Moçambique fosse
reconhecido e respeitado, no mundo
das Artes, ao nível mundial. Para além
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Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
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BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
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da pintura a óleo e a tinta da China,
Malangatana celebrizou-se pela pintura de murais e fez cerâmica e escultura com metal. A sua última obra, «A
italiana», foi a pintura duma viatura (ver
foto). Para além disso, foi poeta (tendo
publicado poesia em 1996 e 2004),
declamador, cantor, actor e dançarino.
Estudou e exercitou-se em pintura,
primeiro em Moçambique e depois em
Portugal e na Suíça. A sua primeira exposição de pintura foi, na então, Lourenço Marques, em 1961. A partir dessa
altura iniciou uma das mais brilhantes carreiras artísticas de projecção
internacional, tendo ganho inúmeros
prémios internacionais. Foi um dos
criadores do Museu Nacional de Arte e
do Centro de Estudos Culturais (actual
Escola Nacional de Artes Visuais) e um
dos grandes dinamizadores do Núcleo
de Arte. Em Moçambique, foi agraciado, com a «Medalha Nachingwea» e
com a «Ordem Eduardo Mondlane do
1º Grau», pela sua contribuição para
a Cultura moçambicana, tendo sido
considerado o grande Embaixador da
Cultura moçambicana. Em 1995, foi
agraciado, em Portugal, com o Grau
de «Grande Oficial da Ordem do Infante
Dom Henrique». Em 1997, a UNESCO
nomeou-o: «Artista pela Paz». Participou em vários projectos da UNICEF em
favor das crianças. Recebeu condecorações em muitos outros países, nomeadamente, em França, onde lhe foi
atribuída a condecoração de «Comendador das Artes e Letras». Em 2007 recebeu o título de «Doutor Honoris Causa»
da Universidade «A Politécnica» de
Maputo e em 2010, o da Universidade
de Évora. Em 2006 criou, na sua terra
natal, Matalana, a sua própria Fundação: a «Fundação Malangatana».
Foi combatente da Luta de Libertação Nacional na clandestinidade, o que
lhe valeu ter sido preso 2 vezes pela
famigerada PIDE (a polícia política da
ditadura colonial fascista de Salazar).
Depois da Independência Nacional, foi,
em momentos diferentes, deputado do
Parlamento moçambicano, deputado
municipal e Vereador para a Cultura
do Município de Maputo. Foi um dos
criadores, em Moçambique, do «Movimento para a Paz».(H. Martins com informações colhidas nos jornais: O País,
Notícias e Savana e fotos extraídas da
InterNet por Helder Brito Martins – Neto)
“Tanto o oprimido como o opressor são roubados da sua humanidade.”
Nelson Mandela
Mia Couto lançou novo livro
em Portugal
E
m Dezembro passado o nosso
Membro Associado, o reputado
escritor Mia Couto, lançou em Lisboa mais um livro: «Menino no Sapatinho», baseado num conto publicado, em 2001, na obra: «Na Berma
de Nenhuma Estrada», mas totalmente
reescrito e ilustrado por Danuta Wojciechowska. Embora tenha o estilo de
um livro para crianças, é de facto um
livro para todas as idades, que «joga
com um imaginário mitológico cristão e
de uma tradição animista e encerra uma
crítica à sociedade de consumo», como
afirmou no lançamento da obra a professora de Literatura, Artes e Culturas,
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Profª. Dra. Inocência
Mata. (H. Martins com informação do
Semanário Savana e foto fornecida por Patrícia SILVA)
“A violência do governo só pode fazer uma coisa:
gerar a contra violência.” Nelson Mandela
Felicitações
à AMEAM
C
om a larga distribuição do nosso Boletim (que mesmo assim queremos melhorar), em
Moçambique e pelos 4 cantos
do mundo, onde há quem fale
português, temos recebido inúmeras felicitações, das mais variadas
pessoas, nomeadamente, médicos,
outros profissionais de Saúde, estudantes de Ciências da Saúde, artistas, escritores, dirigentes culturais,
dirigentes de instituições nossas
congéneres e outras com interesses
culturais em outros países, intelectuais das diversas áreas, personalidades governamentais, diplomatas
e simples cidadãos interessados em
receber o nosso Boletim. Os que nos
felicitaram invocaram a excelente
apresentação gráfica do Boletim e o
seu rico conteúdo. Por gostarem do
Boletim e se sentirem vocacionados
para as Artes, as Letras e a Cultura,
alguns médicos decidiram inscrever-se como membros efectivos da
AMEAM e temos inscrições também
para «Membros Correspondentes
Estrangeiros».
Como é facilmente compreensível, não nos é possível transcrever
todas essas felicitações, mas, pela
sua importância, transcrevemos
aqui as que nos foram endereçadas
por SExa. o Ministro da Saúde de
Moçambique, Dr. Alexandre MANGUELE: «Muito obrigado por me ter
enviado este Novo Número do Boletim da AMEAM. Acho muito interessante e creio que ajudará os médicos
a se interessarem cada vez mais por
assuntos culturais».
Na impossibilidade de agradecer, a cada um, individualmente, em
nome da AMEAM, o Corpo Redactorial do Boletim agradece, a todos,
essas felicitações. (H. Martins).
Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
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BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
Crónica da Música
Joseph Leopold Auenbrugger
Músico Criador do Método Revolucionário de Examinar os Pacientes
através da Percussão das Cavidades
O
austríaco Auenbrugger, memorável personagem do universo
médico, mudou completamente o
modo de detectar as doenças que
acometem as cavidades orgânicas. Até ao século XVIII, os principais
meios diagnósticos disponíveis consistiam em ouvir adequadamente a história do paciente, inspecioná-lo, contar a
frequência respiratória e o pulso. Aferir
a temperatura ainda era algo novo e
não constava no exame padrão recomendado pelos professores da época.
Estetoscópio? Nem pensar, ainda não
existia (seria inventado por Laennec décadas mais tarde). Se uma determinada
cavidade do corpo, a caixa torácica, por
exemplo, fosse acometida por uma doença qualquer e houvesse um derrame
pleural, os médicos não tinham outra
forma de detectar a lesão senão no exame pós-morte, a autópsia. Com o mal
longe dos olhos e das mãos dos médicos os danos eram inexoráveis.
Aí aparece a inventividade do nosso personagem: o médico e flautista
Joseph Leopold Auenbrugger, filho do
dono duma estalagem, aprendeu com
o pai a avaliar a quantidade de vinho de
uma barrica pela percussão. Quando
se formou em medicina, teve a ideia
de adaptar tal procedimento ao exame
do doente. Ele foi o criador de um novo
e revolucionário modo de examinar os
pacientes: a percussão das cavidades
orgânicas. Sendo músico, ele estava
familiarizado com coisas como ressonância, timbre, altura do som, o
que lhe ajudou muito em seus estudos sobre o novo método.
4
Em condições normais as vibrações
produzidas pela percussão do tórax
são abafadas devido à grande diferença acústica observada entre a parede
torácica e o parênquima pulmonar. Se,
como ocorre no pneumotórax, existe ar
entre a parede torácica e o parênquima pulmonar, a diferença acústica se
acentua ainda mais e o abafamento do
som se torna mais pronunciado. O resultado é um som de maior amplitude
e duração, francamente musical, descrito sempre como “timpânico”, em referência ao tímpano, instrumento musical presente em qualquer orquestra
sinfônica da actualidade. Se o tecido
pulmonar é preenchido por líquido ou
algo sólido, a dita diferença acústica é
minimizada e o som produzido se torna de baixa amplitude e curta duração,
descrito usualmente como “surdo”.
cussivo na prática clínica e divulgou
a tradução em francês do trabalho de
Auenbrugger, é que a importância do
invento foi definitivamente estabelecida. (Pedro Utui com informação colhida do Blogue:medicineisart.blogspot.com)
Foi em 1761, que o famoso médico publicou o seu Inventum Novum
ex Percussione Thoracis Humani, obra
escrita em latim, em que apresentou
o revolucionário meio de investigação
das cavidades orgânicas. Ao apresentar sua obra à comunidade científica,
Auenbrugger escreveu:
O Sol fugiu,
a brisa suave levou o perfume do dia
e os pássaros regressaram aos seus
ninhos.
E escureceu.
As luzes acenderam-se na cidade
e no escuro de uma cabana rural
uma vida irradiou felicidade.
E a noite cerrou.
Só canta o murmúrio do silêncio
e no escuro quarto de uma cabana
rural
um gemido ecoou.
E a vela apagou-se.
Tornou-se tudo negro como breu
e no escuro chão do quarto de uma
cabana rural
o amor floresceu.
E a madrugada acordou!
Um sorriso de carinho do novo dia pairou no ar
e quando a mulher chorou,
o homem suavemente a beijou.
E de novo o sol voltou.
«Apresento ao leitor um novo método para detecção de doenças, descoberto por mim. Consiste na percussão do
tórax e na avaliação das condições internas da cavidade de acordo com a ressonância do som assim produzido. Minhas
descobertas não foram antes confiadas
ao papel por causa de um incontrolável
impulso ou pelo desejo de teorizar. Sete
anos de observação tornaram o assunto claro para mim, o suficiente para que
me sinta em condições de publicá-lo. Sei
que encontrarei oposição às minhas opiniões. A inveja e a acusação, o ódio e a
calúnia sempre foram o ónus daqueles
que iluminaram a arte ou a ciência com
suas descobertas».
De facto, somente 46 anos depois,
quando o clínico francês Jean Nicolas
Corvisart, médico pessoal de Napoleão
Bonaparte, introduziu o método per-
Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
»
Novidade
Por: Carla CARRILHO
BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
Contar Clinicando
Introdução
N
a generalidade o profissional de
Saúde sempre acalentou o sonho
de registar as suas experiências
com os pacientes; porém, numa
perspectiva que se situasse fora
do território formal das unidades sanitárias.
Aquelas experiências para-clínicas
acumuladas seriam – e é assim que nós
desejamos que elas sejam – o fio condutor da relação médico/paciente para
Por Aldino Muianga
o lado humano e social, porque cremos
que, por detrás de cada história existe
sempre outra história. E é nessas outras histórias onde muitas vezes achamos o bálsamo que no sub-consciente
desanuvia os dramas do quotidiano,
onde se desintrincam os novelos da
psicologia dos pacientes e fazem-nos
perceber quão complexa pode ser a
natureza humana ou quanta grandeza
se oculta numa palavra, ou ainda em
Apenas uma amostra
K
arói é o distrito mais populoso
da província zimbabweana de
Mashonaland West e faz fronteira
com a Zâmbia na região do Chirundo, a caminho das Quedas de
Água da Victória, mais conhecidas por
"Vic Falls".
A estrada principal que corta a sede
da vila de Karói é muito movimentada,
graças ao tráfego de turistas a caminho ou de regresso das "Vic Falls". Camiões de grande tonelagem adicionam
colorido, ruido e agitação, nas suas viagens de ida e volta para a costa, para
os portos de Moçambique.
Esta região é essencialmente agrícola. Vastas extensões de terra cobrem-se de plantações dos farmeiros.
A produção nos campos e a criação de
gado são as actividades que ocupam a
maioria da população local.
Dir-se-ia que as autoridades haviam privilegiado esta região com os
direitos de uma reserva de conservação de várias espécies animais. A
caça era uma actividade rigorosamente controlada, daí que abundavam espécimes que eram verdadeiras
raridades. Era comum ver a interceptar o tráfego, a atravessar vagarosamente as vias, animais que desfilavam a sua opulência, como macacos
gigantes que assaltavam incautos
viajantes, lagartos gigantes a exibir a
garrifice das suas cores, serpentes de
várias espécies como: jibóias, cobras
mambas e aves exóticas cujos nomes
desconheço.
gestos simples como aqueles que vão
discorrer ao longo das narrativas nesta
coluna.
Contar Clinicando constitui uma
digressão ao outro lado dos enfermos,
espaço onde ele ou ela se redescobre
e reencontra, e onde o profissional de
saúde reconquista a sua dimensão de
ser social.
Assim sendo, vamos então contar
clinicando.
Por Aldino Muianga
Foi no Hospital Distrital desta vila
que tive a experiência inédita que passo a contar.
Os compêndios de Medicina Tropical haviam-nos ensinado que em
regiões daquele cariz, onde abundam
variedades de animais que se não
conformam com a “invasão” dos seus
territórios pelo Homem, é frequente
registarem-se casos de incidentes,
como mordeduras ou outro tipo de ataques, inflingidos durante as confrontações. Nesta região em particular, a
população de répteis, particularmente
de serpentes, era deveras alarmante.
Não passava uma semana sem que
ocorressem dois ou três casos graves
ou fatais de mordeduras de cobras, ou
de assaltos por hienas e outros depredadores ou picadas por insectos com
severas reacções anafilácticas.
Pois, a literatura médica aconselha
a que se pergunte a qualquer paciente,
vítima de ataque por esses animais, se
foi capaz de identificar o mesmo e, se
possível, trazer uma amostra à presença do prático para uma identificação
positiva.
Estava de piquete durante aquele
fim-de-semana e transportava comigo
um rádio-transmissor, comumente designado bip para responder às chamadas de urgência.
No fim daquela tarde de sábado o
bip emitiu um sinal ao qual respondi
prontamente.
«Temos uma urgência no Banco de
Socorros» foi a mensagem que recebi.
De imediato dirigi-me às Urgências.
«Temos ali na sala de observação
um paciente que foi vítima de uma mordedura de cobra» informou a enfermeira de serviço naquele Departamento.
O paciente era um homem de meiaidade, robusto como poucos, de cabelo
desgrenhado. Apresentava-se de tronco e os braços descobertos onde de
imediato detectei muitas escoriações.
Tinha um facies ansioso, embora respirasse sem sinais dalguma perturbação
respiratória. Acompanhavam-no a família e o patrão (deduzo que era farmeiro), e nenhum destes mostrava alguma
disposição de abandoná-lo ali.
«O que sucedeu?» assim iniciei a recolha da história clínica.
«Fui atacado por uma jibóia» o paciente conseguiu assim articular a fala.
Deitei-lhe um olhar de admiração
por ter sobrevivido ao ataque, muitas
vezes fatal, por aquela espécie de réptil.
Ele relatou a luta empolgante com
essa serpente gigantesca que o surpreendeu na espessura das matas. Durante a confrontação envolveram-se numa
batalha de morte em que ele, utilizando a faca de mato que sempre trazia
consigo, desferiu inúmeros golpes, até
conseguir fragilizá-la nas tentaivas de
constrição e, finalmente, matá-la.
Vieram-me à memória as instruções dos compêndios: “na medida do
possível, as vítimas sobreviventes aos
ataques por cobras devem trazer uma
amostra da mesma, ou pelo menos a
Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
5
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BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
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cabeça, para uma identificação positiva
pelo médico”. A razão para esta recomendação era que as mordeduras de
cobras produzem diferentes complicações que variam segundo a natureza
dos venenos injectados. E os haviam:
os citotóxicos, os neurotóxicos e os hemotóxicos. A identificação do tipo de
serpente poder-se-ia fazer com base
nas caracterísicas da cabeça do animal, o que facilitaria a selecção da terapêutica a instituir.
Colocou a mesma sobre o tampo da
secretária, descontraidamente. Aquela
era acanhotada, rugosa de escamas
multicores e da boca espreitavam as
pontas bifurcadas da língua.
Eu nunca vira uma jibóia a tão curta
distância, muito menos uma decapitada.
«Tem a certeza de que era uma jibóia?» perguntei, céptico.
Da amostra, em particular, salientavavam-se uns olhos frios e esverdeados, paralisados, a infundir um terror
medonho como nunca experimentei
em toda a minha vida. Parecia ainda
alentada, que se mexia.
«Sim, vi. Era mesmo uma jibóia»
disse o paciente com muita segurança. Combinou a afirmação ao gesto de
abaixar-se e retirar algo de um saco de
plástico que depusera no chão. «Aqui
está a cabeça!»
O que se seguiu depois foi o início
da minha outra estória: um arrepio
arrefeceu-me a espinha. Senti-me catapultado num pulo vigoroso sobre a
cadeira como se tivesse levado uma
agulhada no traseiro e, em menos tem-
po que levou dizer um ai!, pus-me fora
do consultório às corridas, a arfar cheio
de pânico e palpitações.
Depois de restabelecidas a calma e
a compostura, cumprimos com as rotinas de tratamento, eu sempre com um
olhar esguelhado para o saco de plástico do paciente – não fosse o Diabo
tecê-las e dali emergir a parte restante
do réptil!
«Da próxima vez que for mordido, faça-me o grande favor de não trazer esse
tipo de bicho para este hospital» foi o
meu último conselho ao paciente, com
algum embargo na voz.
Aprendi e conclui que: uma coisa é
o que livros prescrevem, mas outra é a
realidade vivida no dia-a-dia da prática
clínica. E cobras? Só vistas em filmes
ou em livros!
“A prioridade é sermos honestos connosco. Nunca poderemos ter um impacto na sociedade se não nos
mudarmos primeiro. Os grandes pacificadores são todos gente de grande integridade e honestidade mas,
também, de humildade.” Nelson Mandela
«Quem é Quem?»
Entrevista com:
Ana CHARLES – Membro efectivo da AMEAM
Nome, onde nasceu e como cresceu?
Chamo-me Ana Francisco Charles,
nasci na Vila de Manica, a 8 de Agosto
de 1966. Cresci muito feliz, numa família de 10 irmãos, 5 meninas e 5 rapazes,
dos quais sou a mais velha e a querida
do pai (já falecido).
Como foi o seu percurso escolar/académico?
Fui sempre bem-sucedida, tendo
estado sempre no quadro de honra na
escola primária e secundária e nunca
tendo reprovado ou feito exame. Sempre dispensada dos exames com médias de 14 a 16. Na Universidade, pelo
facto de ter tido a minha filha no 1º ano
da Faculdade e de forma inesperada,
tive que anular a minha matrícula para
cuidar dela. Depois disso, só repeti o
exame de Pediatria e Medicina Interna. Em 2003 tendo ganho uma bolsa de
estudos para fazer Mestrado de Saúde
Pública (Promoção da Saúde), na Universidade de Queensland (Austrália),
tive que fazer o curso de inglês com
a nota máxima de 7 em 3 meses para
um curso que era de 6 meses. E nas
cadeiras do Mestrado passei com uma
média de 5 onde a média máxima é 7. A
minha tese de Mestrado foi (conjuntamente com outros trabalhos da Universidade) publicada no Departamento de
Saúde de Queensland (Austrália). Em
2012 fiz o exame de Especialidade em
Saúde Publica (Promoção para a Saúde) no qual fui bem-sucedida.
A opção pela Medicina nasceu desde cedo ou foi
uma opção tardia?
A opção pela Medicina nasceu muito cedo, creio que desde os quatro anos
quando o meu falecido pai, que era
enfermeiro em Sussudenga (na altura
localidade de Vila Pery, hoje Chimoio),
me levava, logo pela manhã, ao Posto
de Saúde local e me punha sentada no
parapeito da janela de onde eu assistia
maravilhada vê-lo atender os doentes.
Não me lembro nunca de ter sentido
um mal-estar quando via o meu pai a
suturar feridas, pelo contrário, queria
ajudar! Sempre gostei de ajudar o próximo.
O que gosta de fazer nos tempos livres?
Ginásio, dançar, ler, escrever, criar
coisas novas.
Porque acha que os médicos devem ter
actividade cultural?
Para manter a sua saúde mental e
melhorar as suas habilidades e para
enfrentar o stress a que a profissão
obriga.
“Sonho com uma África em paz consigo mesma” Nelson Mandela
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Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
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BOLETIM DA AMEAM • Nº 003 » Janeiro de 2014
Porque achou que devia aderir à AMEAM?
Para que voltasse a despertar
em mim o gosto pela escrita que
estava adormecido. Durante a escola
secundaria na cidade da Beira (Samora
Machel) publiquei algumas poesias do
Diário da Beira. Depois do Mestrado
e enquanto Chefe do Departamento
da Saúde Ambiental no Ministério da
Saúde, publiquei alguns artigos sobre
a Saúde Ambiental no Jornal Noticias.
Os artigos estavam virados á educação
da população para o conhecimento
das causas das doenças ambientais
e seus métodos de prevenção. Tenho
ainda vários “pedaços” de crónicas da
vida real escritas em vários momentos
da minha vida que ainda não foram
compilados e acredito que, com o
incentivo da AMEAM, não só o farei,
como também encontrarei uma melhor
orientação para o meu estilo de escrita.
Como reagiu à sua premiação este ano?
O prémio para o Alumini Internacional do ano de 2013, pela Universidade de Queensland, onde fiz o Mes-
trado em Saúde Publica em 2005, foi
um marco na minha vida profissional
que ainda não é tão longa assim (17
anos), mas já com muitos momentos
de conquistas e alegrias. A entrega
do prémio decorreu num ambiente de
autêntica gala e «glamour», contando
com a presença do corpo académico e
senadores. Na noite fomos premiadas:
15 pessoas em diferentes categorias.
Para além de constituir uma grande
responsabilidade individual, o prémio
significa uma aquisição impar uma
vez que fui seleccionada entre mais de
500 antigos estudantes da Universidade de Queensland. Sou a 1ª Africana e,
para mais Mulher, a quem a Universidade atribui o prémio. O mesmo já foi
atribuído a asiáticos e a latino-americanos, mas nunca a um africano. Este
prémio é atribuído a pessoas que se
destacam nas suas áreas de formação
e trabalho depois que regressam aos
seus países.
No meu regresso do Mestrado tive
a sorte de contar com uma gama de
óptimos profissionais que viram em
mim um potencial para realizar trabalhos de qualidade. A essas pessoas,
para além dos meus colegas e da minha família que sempre me compreenderam e apoiaram incondicionalmente, vai o mérito por este prémio.
Esses profissionais são: o Prof. Doutor Martinho do Carmo Dgedge, Prof.
Helder Martins, Prof. Ivo Garrido, Dr.
Mouzinho Saíde, Dra. Rosa Marlene
e a Dra. Esmeralda Karageanes. Um
agradecimento especial ao meu companheiro, Silva Mulambo, que sempre me incentiva a seguir em frente
em busca da concretização dos meus
sonhos.
O que gostaria que ainda se soubesse sobre si?
Que sou uma pessoa que gosta de
explorar para além do limite.
Para si como foi o ano de 2013? E um desejo
para 2014...
Para mim o ano 2013 foi um ano
Luz! E o meu maior desejo para 2014 é
PAZ! (Entrevista conduzida por Cátia
Fernandes e revista por H. Martins.
Foto fornecida pela própria)
Foto do Mês
Foto de Iolanda S. da S. Santos
“O Pulmão da Malhangalene”
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“A morte é algo inevitável. Quando um homem fez o que considera ser seu dever para com o seu povo e seu país,
pode descansar em paz. Acredito tê-lo feito e é por isso que dormirei por toda a eternidade.” Nelson Mandela
Ficha técnica
AMEAM - Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
Associação autorizada por despacho Ministerial de 27 de Março de 2013, publicado no Boletim da República nº 44, III Série, de 31 de Maio de 2013. Legalmente
constituída a 25 de Abril de 2013. Registada (Registo Definitivo) na Conservatória do Registo das Entidades Legais de Maputo, em 28/05/13, com o nº 100392615.
NUIT nº 700127036
Sede Provisória, na Sede da Associação Médica de Moçambique, na: Av. Salvador Allende, 560, 1º andar, em Maputo. E-mail: [email protected]
Boletim maquetizado com o patrocínio da EloGráfico – Rua Kwame Nkrumah, 1591, 1º Maputo Tel: 21417333 e 21418600, E-mail: [email protected]
Associação de Médicos Escritores e Artistas de Moçambique
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Boletim da AMEAM nº 003