FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR
DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS
LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO
UMA LEITURA NA DIFERENÇA
PORTO VELHO
2013
DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS
LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO
UMA LEITURA NA DIFERENÇA
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Estudos Literários do Departamento de Línguas
Vernáculas da UNIR como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profª. Dra. Heloisa Helena Siqueira
Correia
PORTO VELHO
2013
FICHA CATALOGRÁ FICA
BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES
S2373l
Santos, Deivis Nascimento dos
Literatura e devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença / Deivis Nascimento
dos Santos. Porto Velho, Rondônia, 2013.
80f.
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Fundação Universidade Federal
de Rondônia / UNIR.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heloisa Helena Siqueira Correia
1. Literatura 2. Contos de Murilo Rubião 3. Devir - diferença I. Correia, Heloisa
Helena Siqueira II. Título.
CDU: 82-34
Bibliotecária Responsável: Ozelina Saldanha CRB11/947
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos da minha família,
especificamente: Rosalina e Layne (mãe e
irmã); Alzira e Álef Duran (esposa e filho). A
minha orientadora Dra. Heloisa Helena Siqueira
Correia e a todos os professores e amigos do
curso de Mestrado em Estudos Literários UNIR. Aos NEFELIBATAS (nosso grupo de
amigos da graduação em letras). Aos falecidos
Gentil Carvalho dos Santos (pai), Zenir de
Morais (padrasto amigo) e Maria do
Nascimento Maia de Oliveira (avó) in
memoriam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço toda a ajuda e compreensão de meus familiares durante o
mestrado. A paciência e atenção dos professores do curso (Wani Sampaio, Ana
Felipini, Cynthia Barra, Heloisa Helena, Rubens Vaz e Milena Magalhães) bem como
por sua competência profissional e amigavelmente compartilhada. À turma do
mestrado pelo companheirismo e mútuas ajudas. À professora Marisa Martins Gama
Khalil, por participar mais uma vez de uma importante fase da minha vida.
“Experimentem, nunca interpretem [...] de fragmento em
fragmento se constrói uma experimentação viva onde a
interpretação começa a fundir, onde já não há percepção
nem saber, segredo nem adivinhações [...] apenas uma
luz crua.”
Gilles Deleuze
“Nessa hora os homens compreenderão que mesmo à
margem da vida, ainda vivo, porque minha existência se
transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra
para exclusiva ternura dos meus olhos.”
O Pirotécnico Zacarias (Murilo Rubião)
RESUMO
Investiga-se uma suposta articulação e produção da Diferença realizada pelo
procedimento literário que tem como produto um Devir, sob a sugestão teóricofilosófica de Gilles Deleuze, e em grande parte, com este e Felix Guattari; toma-se
por objeto determinados procedimentos literários presentes nos textos de Murilo
Rubião, especificamente nos contos Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem
do Boné Cinzento. Evidenciar o Devir literário exige uma operação de leitura que se
torna incompatível com os procedimentos da representação – entendida, sob tutela
dos teóricos escolhidos, como processo de mediação que submete os eventos
literários à identidade, à oposição, à analogia, à semelhança. O signo literário não
pode ser abordado a partir de reverberações de um núcleo transcendente formal,
que preveem as possíveis cadeias de expressões que serão suas representantes
dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos, metafóricos,
simbólicos e de projeções. Deve-se evidenciar quando a literatura articula um plano
de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido. E neste intuito,
exige-se uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de
tropos, simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração
próprias, estétitico-intensiva direta que escapam, mesmo em sua p roximidade, à
dimensão retórica (conotações). Propõe-se uma leitura que acompanha os
procedimentos literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram
os elementos narrativos em sua disposição interna; que acompanhe ainda o que
acontece com discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em pleno
funcionamento no plano de composição dos textos, não como designados pelo texto
– o que se entende aqui como representação. É preciso tomar o texto literário como
uma realidade completa em si, que de ve ser visitada, explorada; em que todos os
efeitos são vivências afetivas e perceptivas. Ainda como tarefa desta dissertação,
deve se expôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto
Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstra-se o que se produz em
concordâncias e em divergências. A noção de Devir acionada, enquanto produção
de descontinuidades, Diferença, que resiste aos centros formadores de significados,
sugere, do lugar em que se move, uma predisposição teórica que o enxergue, com
ferramentas próprias, aptas a contribuir com um novo olhar para com a literatura, e
para a abordagem dos textos de Murilo Rubião.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Devir, Contos de Murilo Rubião, Diferença em
Gilles Deleuze e Guattari.
RESUMEN
Con el fin de investigar una supuesta articulación y producción de la Diferencia
hecha por el procedimiento literario que tiene el producto de un Devenir, bajo la
sugerencia teórico-filosófico de Gilles Deleuze, y en gran medida con este y Félix
Guattari, tomando como objeto procedimientos literarios de Murilo Rubião
específicamente cuentos Teleco El conejito , Los Dragones y El hombre del bonete
gris. La evidencia literaria para convertirse en convocatorias de una operación de
lectura que se hace incompatible con los procedimientos de representación entendida , bajo la tutela del teórico elegido , ya que el proceso de mediación que
presenta eventos literarios a la identidad , la oposición , la analogía , la similitud .
Signo
literario
no
puede
ser
abordado
desde
un
núcleo
trascendente
reverberaciones formales , que predicen las posibles cadenas de expresiones que
serán sus niveles representantes denominación más simple para dispositivos
analógicos , proyecciones metafóricas y simbólicas. Debería ser evidente en la
literatura cuando se articula un plan de la composición, de la inmanencia , que se
convierte en dueño de su sentido . Y en este orden , se requiere una predisposición
a la lectura que no cruza las referencias de los tropos , simbolismo o proyecciones
síntesis , porque la Devenir tiene una duración propia realidad y escapar , incluso en
su proximidad, la dimensión retórica. Proponemos una lectura que acompaña a los
procedimientos literarios , tomando nota de las dimensiones que crean los efectos,
que generan los elementos narrativos en su disposición interna . Observe lo que
sucede con el habla (ideas y prácticas) de nuestro mundo externo en pleno
funcionamiento en la composición del plan de los textos, y no como significante
abstracto que designa algo externo - lo que se entiende aquí como una
representación . Tienes que tomarlo como una realidad en sí misma completa, que
debe ser visitado, explorado, donde todos los efectos son experiencias afectivas y
perceptivas . Expone tales lectura a codo con los demás (especialmente Roberto
Schwartz , en La poética del Oroboro ) y se demuestra que se produce
concordancias y divergencias. La idea de Devenir a ser lanzado,
mientras se
produce discontinuidades , Diferencia , que se resiste a los centros de formación de
significados estables, sugiere, en el lugar donde se mueve, un sesgo teórico verlo,
con herramientas propias , capaces de aportar una nueva mirada a la literatura, y de
acercarse a los textos de Murilo Rubião .
PALABRAS CLAVE : Literatura y Devenir, Cuentos de Murilo Rubião , Diferencia de
Gilles Deleuze y Guattari .
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................01
1. DEVIR: DIFERENÇA.......................................................................................06
1.1 Pensando em diferença.............................................................................07
1.2 Literatura faz a diferença...........................................................................10
1.3 O impessoal: força personífuga.................................................................12
1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário..................................................15
2. CRÍTICA EM DEVIR: ler a diferença...............................................................18
2.1 Teorias: enlaces e distâncias....................................................................19
2.2 Um modus operandi em Devir...................................................................25
2.2.1 As minorias. Língua menor. Alguns regimes de Signos..................26
2.2.2 Dos planos transcendente e imanente. Plano
escritural..........................................................................................28
2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades,
mapas..............................................................................................31
2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas........33
2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devirexpressivo........................................................................................35
3. RUBIÃO EM DEVIR.........................................................................................41
3.1 Teleco o coelhinho.....................................................................................44
3.2 Simples Dragões .......................................................................................54
3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O homem do Boné Cinzento).......67
3.4
4. CONCLUSÕES................................................................................................76
5. BIBLIOGRAFIA................................................................................................78
INTRODUÇÃO
“[...] ser uma coisa é não ser passível de interpretação”
Fernando Pessoa
Reconhecendo que os signos literários podem ser tomados e produzidos em
diversas perspectivas, este trabalho objetiva investigar a articulação e produção de
um Devir atingido pelo procedimento literário que se concretiza como uma Diferença
na sugestão de Gilles Deleuze, em grande parte, e deste com Felix Guattari – em
conexão com outras confirmações argumentativas de outros autores pertinentes aos
pressupostos que nos fundamenta. Compondo ainda o objetivo principal, a
investigação especifica-se um pouco mais, ao sugerir a produção desse Devir, nos
contos do escritor brasileiro Murilo Rubião.
O Devir literário, enquanto realidade própria e articulador de diferença, sugere
uma operação de leitura que se torna incompatível com os procedimentos da
representação – entendida, sob tutela dos teóricos escolhidos, como processo de
mediação que submete os eventos literários à identidade, oposição, analogia e
semelhança; e entre ambas as perspectivas trava-se uma fecunda discussão.
A princípio, surge da indagação de como é possível criar novos conteúdos e
expressões ao pensamento que não estejam presos a reverberações de um núcleo
transcendente formal que preveem (com naturezas, universais, sujeitos, objetos,
propriedades
etc.) as
possíveis
cadeias
de expressões
que
serão
suas
representantes dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos,
metafóricos, simbólicos e de projeções. Portanto, inicia-se numa busca filosófica.
Mas esse início é, na realidade, o meio. A saída encontrada foi a conexão, o
encontro inevitável, com a não-filosofia, ou seja, os outros modos de retirar o
pensamento de sua imobilidade e que não estão necessariamente subalternos às
representações clássicas e estruturantes do pensar: atitudes imediatas que forçam
uma
reorganização
intempestiva
de
compreensão
e
ação: os
momentos
revolucionários, as guerras, as sociedades secretas, as artes, enfim, a literatura; que
forçam uma fuga e a necessidade de alianças e máquinas a-significantes em relação
às vigências; configurações semióticas que cessam a circulação refratária da
interpretação – entendida como extração de sentidos, os sentidos por trás da
máscara; que vão desde as antigas moral da história e exegese, às metáforas e
1
alegorias funcionando como um espelho sempre do universo humanista; às vezes
com invertidos papéis, mas sempre sobre o mesmo arquétipo. (Deleuze costuma
dizer que representação e interpretação formam o casal do déspota e o padre . Ou
seja, são partes complementares de um dispositivo: um produz as propriedades, o
modelo; o outro detém o saber de extração, na produção em massa de enunciados,
deste sentido primeiro; e pode reconhecer e autorizar o que o pode substituir em
manutenção, em sua representação. Tomei a liberdade de chamar esse conjunto de
codec – emprestado da nossa tecnologia de informática, software de codificação e
decodificação1).
Mesmo partindo de uma aventura filosófica, essa perspectiva não deve
submeter o texto literário como suporte de conteúdos para uma visão filosófica. Ao
contrário, aposta na sua singularidade mais radical de expressão por intensidades,
quando produz diferenças irreversíveis, falhas intransponíveis que traem as
remissões, designações, denotações e conotações apoiadas em precedências para
funcionarem; que em seu plano faz nascer o que não existe, ao invés de apenas
representar o que já está dado. É neste ponto que é excesso, relação com o fora.
Mas é justamente aqui que atinge uma dimensão ética por excelência, pois é
abertura de novas possibilidades de vida, opondo-se ao âmbito ético-moral que já
predispõe os condutos. Trava-se então uma guerrilha contra os dualismos no seio
da própria linguagem: contra significados formados e reverberações representantes.
A linguagem literária deve ser projétil e não projeção: é uma realidade própria em
resposta ao real e não apenas o fantasma ou “algo que está por outro”; é a
positividade do simulacro, gerando um duplo não semelhante que passa a ser um
excesso em relação ao modelo; abolição da noção de original e derivado, bem como
a relação de semelhança que ignora o que se passa na diferença, tornando esta
apenas oposição conceitual, legitimando apenas o que se procede por identidade.
1
Este parêntese é um intervalo descontraído. CoDec é o acrônimo de
Codificador/Decodificador. Eles são programas que codificam e decodificam arquivos de
mídia, favorecendo compactação para armazenagem e descompactação para visualização.
Tal alusão a um dispositivo de mídia é devido ao funcionamento da representação como
mediação. Acesso em 20/11/2013: http://www.tecmundo.com.br/gravacao-de-disco/1989-oque-sao-codecs-.htm
2
Temos consequências, portanto, no modo de considerar a linguagem: devese reconhecer que os agenciamentos coletivos são coextensivos à sua própria
origem e estão coagindo desde a menor articulação fonética à frase, aos discursos
ordenadores; reconhecer que a língua não é essencialmente informativa, nem para
que se acredite nela, mas para ser obedecida. O agenciamento literário deve
desestabilizar essas significâncias através de um uso intensivo, reatraindo o saber
para o sabor, fazendo Apolo abalar-se à sombra de Dionísio; diminuindo a
ofuscação e denunciando com o próprio corpo as arbitrariedades dos “naturais”, dos
próprios e propriedades, sujeitos individuais com pensamentos e interioridades a
expressar e objetos a se conhecer ou classificar. A literatura deve articular um plano
de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido; experiência para
além da prescrição do possível. Resgata-se tudo ao pé da letra, caminhando sobre o
absoluto de um sentido, um devir que se dá como sentido. E nesse sentido exige-se
uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de tropos,
simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração próprias,
diretamente estético-intensiva que escapam, mesmo em sua proximidade, à
dimensão retórica (conotações).
Dessa forma propõe-se uma leitura que acompanha os procedimentos
literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram os elementos
narrativos em sua disposição interna; mas também observa o que acontece com
discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em seu plano de composição
– discursos em pleno funcionamento, não representados. Na perspectiva em que se
espera Devir evocado, as observações não podem encarar o simulacro do texto
como abstração-significado que, no fundo, se “referiria” a algo de exterior. É preciso
tomá-lo como uma realidade completa em si, que deve ser visitada, explorada; em
que todos os efeitos são vivências afetivas e perceptivas: entrar no conto, em seus
cenários, como nós entramos em algum corredor obscuro, ou ambiente ensolarado;
se tal ambiente nos lembra outro em que já passamos, se já vimos essa pessoa em
algum lugar, que seja ao mesmo modo quando, do lado de fora, vemos algo que nos
lembra outro, mas ambos reais e com suas diferenças. Assim não se interpretará,
mas se descreverá (com todos os perigos que isto oferece como testemunho). Se
enquanto leitor despreocupado apenas se experimenta, enquanto compromisso
3
acadêmico se deve colar ao experimento nossos critérios expostos e se realizar o
relato.
Teremos que predispor o olhar para as anomalias, as a-significâncias e seus
afectos, projéteis que minam as instituições e corpos constituídos (os sujeitos, as
famílias, os Estados, os objetos, propriedades e classificações circulantes etc.);
principalmente, em nossa atualidade, contra um dos centros significantes que mais
tem emitido despotismos: o Homem: discurso despótico que recobre e se apropria,
conta a “História” das coisas. Mas os devires-minorias, animais, vegetais, minerais,
moleculares, cósmicos, nos testemunharão a sentir nessa “História” tão somente sua
autobiografia.
Predisposto esse olhar para Diferenças autênticas (pensadas em si mesmas),
o direcionaremos aos contos de Murilo Rubião. Deste, foram selecionados três que
dispõem de uma boa variedade possível de devires por atuarem em diferentes
elementos narrativos ao mesmo tempo: Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O
Homem do Boné Cinzento. Vejamos o quanto a escritura de Rubião é rica para além
do representável, em articulação de diferenças, sobre as quais os discursos
interpretantes têm de fazer recortes, exclusões ou recuperações delicadamente
forçadas sobre sua matéria indócil. Encaremos os signos como acontecimentos,
como presença de forças, seres de linguagem que só designam a si mesmos, mas
que, ao contrário de serem intransitivos ao mundo, são passagens a se fazer;
intensidades, no entanto respostas diretas àquilo que as provocam na circularidade
do mundo. É neste Devir que iremos, proposto por Deleuze, por Guattari, por
elementos de outros pensadores de quem se apropria componentes (Nietzsche,
Blanchot, Foucault, Derrida, Lyotard, Schwartz) e principalmente pelos escritores, os
criadores de Devir e dentre os quais, principalmente, Murilo Rubião. Enfim, o que
mais motivou esta dissertação não é a pretensiosa busca por um tema ou um
recorte ainda não tratado, mas o fascínio e inquietude que essa perspectiva de
leitura provoca, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como irrevogáveis
pela constante prática (incluo aqui o autor da dissertação, que se sentiu muito
contrariado nos primeiros contatos com essas ideias). Não se espera, aqui, discutir
até os limites essa revisão que acompanha tal perspectiva; mas sim, contribuir com
4
um esclarecimento mínimo que situe a discussão e uma possível operação de
leitura.
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1. Devir: Diferença
[...] olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos
para a lua [...] Procurei com os melhores argumentos, desviar-lhe a
atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade de minhas palavras,
tentei puxá-la pelos braços. Também não adiantou. Seu corpo era
pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo.
Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à
murada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele
seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a
conteria.
Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a
lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui
buscá-la. (RUBIÃO, 2010, p. 32)
O rosto grave, olhar fixo, uma minúscula estrela cintila seu apelo talvez
menos por seu brilho do que pela treva que a envolve e a torna quase indiscernível
de si. Minúscula estrela anônima, justamente ao lado de uma tão midiática figura, já
violada por decalques que tomam a frente do olho e nos comunica o que não vemos:
a Lua. Com certeza, se o personagem fosse buscar a lua, nós teríamos
imediatamente muito mais coisas a dizer, comunicadas há tempos por todas as
projeções, simbologias, metáforas e analogias: a demonstração de amor à amada,
ou mesmo projeções de um desejo inominável por recalque, atraindo o lobisomem
como personificação da copulação macho-fêmea etc. No entanto, com um toque
feminino, Bárbara não indica a “pop-star”, mas uma minúscula estrela que, no texto,
não oferece amplas margens para sinônimo ou epíteto, pois é olhada e contemplada
apenas como uma minúscula estrela quase invisível ao lado da lua. A redundância é
necessária, pois, evento
repentino
sem interpretante, celebra
o
pequeno
esquecimento e alegria nervosa, pois grave é o rosto, de um olho que atingiu sua
plenitude de simplesmente “ver” uma estrela despida de discurso, e que, por isso,
oferece-se e oferece um instante de puro querer, sonho de bebê, com apenas
palpitações indiscerníveis se de prazer ou agonia; um devir irresistível no qual, os
mais resistentes, ou melhor, reacionários – todos nós ao primeiro impacto – talvez
ainda tentem perguntar: por que a estrelinha minúscula? (pergunta que almeja
resgatar algum discurso que nos salve do caos, da catástrofe). Ficamos instalados
na diferença, suspensos ao tempo-espaço homo faber, e por isso, contemporâneos
a uma vida em plenitude, olhando-nos “ao vivo”. Pelo desfecho desse conto nos
lançamos nesta investigação da expressão/pensamento na diferença através do
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Devir que o agenciamento literário de Murilo Rubião pode sugerir. Vejamos, a
princípio, tendências contemporâneas a que a leitura de certo agenciamento em
Devir (conjunto discursivo) na obra muriliana pode se conectar.
Há estrelas que não vemos nos espaços escuros mas que, de acordo com
astrofísica, estão lá; se não as vemos é porque sua luz, devido à velocíssima
expansão, não chega a nossos olhos. Com este exemplo para chegar a uma
definição de “contemporâneo”, em Giorgio Agamben já vamos encontrando
conexões:
Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e
não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo [...] ser pontual
num compromisso ao qual se pode apenas faltar [...] o nosso tempo
[...] não pode em nenhum caso nos alcançar [...] o compromisso que
está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente
no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro
deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade.
(AGAMBEN, 2009, p. 65)
Urgência e intempestividade: cessar as transcendências, desapropriar
núcleos que prescrevem os sentidos próprios, os sistemas abstratos restritos a
facções da cultura, da língua e do saber; que se impõe como matrizes e agenciam
os demais usos como arquivo, tradição, projeções, conotações, contingências de
uso popular, licença poética etc. “É-nos odioso tudo o que simplesmente nos instrui
sem
aumentar
ou
imediatamente
vivificar
nossa
atividade
–
diz
Goethe”(NIETZSCHE, 2003, p. 5). É preciso, em nossa época “atuar de maneira
intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em
favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, 2003, p. 7). “Em meio à menor como em
meio à maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: o
poder-esquecer ou, dito de maneira mais erudita, a faculdade de sentir ahistoricamente durante a sua duração”. (NIETZSCHE, 2003, p. 9).
1.1 Pensando em Diferença
O que é o pensamento? Em que medida é possível dar ao pensamento novos
modos de expressão? Em Deleuze se põe de modo incessante essas questões. O
que vemos levantar-se em correspondência é que erudição, acúmulo, arquivo,
memória, paráfrase não pensam. O pensamento não preexiste ao signo, não há
7
ideia abstraída das linguagens, esperando uma forma linguística para se exteriorizar.
Pensamento e o assalto do signo são únicos. Tal perspecti va propõe uma nova
imagem do pensamento, ou melhor, um pensamento sem imagem, capaz de
instaurar novos ângulos e percepções sobre a realidade, liberando outras
possibilidades de ver, ouvir, dizer. É aí que se propõe o diálogo com a linguagem
artística como problema fundamental, como linha de fuga em face das armadilhas
impostas por toda representação clássica do pensamento; o proceder da arte deve
atingir uma libertação do pensamento dos modelos cristalizados da representação,
que subordinou a diferença à identidade, favorecendo o processo de recognição, isto
é, de adesão ao pensar comum.
Deleuze discute as bases da imagem dogmática do pensamento em que o
pensamento possui formalmente o verdadeiro – o inatismo da idéia, o a priori dos
conceitos, o bom senso universalmente compartilhado; em que somos desviados do
pensamento por forças estranhas ao pensamento – o corpo, paixões, interesses
sensíveis – que nos levariam ao erro; em que para pensarmos verdadeiramente
precisamos apenas de um método. A reversão dessa imagem deve ser a tarefa da
filosofia; para ele Nietzsche o fez (MACHADO, 2009, p. 34).
A relação entre criação de conceitos e tradição filosófica, como a faz Deleuze,
consiste na apropriação do processo de pensamento de determinados filósofos
como condição de seu modo singular de filosofar que é a tentativa de construir um
espaço diferente do representado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel; fazendo
emergir a arbitrariedade e minando a força de pressupostos em se que acredita
estar fundada a filosofia, uma determinada imagem do pensamento. Projeta a
criação de conceitos que torne possível um novo pensamento, ou que tornem o
pensamento de novo possível, sem imagem, extemporâneo ou intempestivo na
acepção nietzscheana:
[...] conceitos que não são eternos nem históricos, mas
extemporâneos e inatuais [...] considerando o extemporâneo mais
profundo que o tempo e a eternidade. Mil Platôs identifica o
geográfico ao extemporâneo, procurando dar um sentido à oposição
da geografia à história (MACHADO, 2009, p. 25)
Para se tornar possível o pensamento autônomo – não autômato – tem-se
como tarefa subverter o platonismo dualista propagado. E é justamente privilegiando
8
uma potência abominável ao platonismo: o duplo sem semelhança, a cópia maléfica.
No entanto, torna-se inútil apenas restituir os direitos da aparência, conferindo-lhe
sentido por proximidade a formas essenciais. É preciso que essa dessemelhança
atinja uma positividade capaz de abolir a necessidade preexistente, sobrecodificada,
potência primeira não mais recalcada pela ideia, tornando-se a própria coisa. Não se
trata somente de virar o simulacro contra o modelo, mas abolir a “noção” de original
e derivado, modelo e cópia, a relação de semelhança que ignora o que se passa na
diferença legitimando como saber apenas o que configura identidade:
[...] subverter a filosofia da representação significa afirmar os direitos
dos simulacros reconhecendo neles uma potência positiva, dionisíaca,
capaz de destruir as categorias de original e de cópia. Há em Platão
uma relação de força entre modelo e simulacro, no sentido que a ideia
é pensada como uma potência capaz de excluir, barrar, rejeitar as
cópias sem fundamento [...] pois, se no platonismo a ideia é a coisa,
na subversão do platonismo cada coisa é elevada ao estado de
simulacro [...] valorizar o simulacro ao interpretar Platão é, para ele,
uma das maneiras de formular o projeto geral de pensar a diferença
nela mesma, sem permanecer no elemento de uma diferença já
mediatizada pela representação, isto é, submetida à identidade, à
oposição, à analogia, à semelhança. (MACHADO, 2009, p. 48-49)
Badiou reconhece em Deleuze essa investida contra os núcleos de irradiação
analógica e nos confirma a real necessidade de se aliar, constituir máquina, com
agenciamentos que deslocam o instituído bem como do seu “direito” à propriedade:
[...] no fundo, a filosofia só pode resistir ao mundo tal como é se
souber discernir as experiências que são heterogêneas à lei deste
mundo: as experiências políticas radicais, as invenções da ciência, as
criações da arte, os encontros do desejo e do amor [...] daquilo que
tem a estatura de um evento para o pensamento [...] Há filósofos que
trabalham, de maneira muito diversificada, na invenção de tais
quadros conceituais. Vou citar como exemplos Gilles Deleuze na
França, ou Stanley Cavell, nos Estados Unidos [...] Que a filosofia seja
uma filosofia daquilo que eu chamaria de singularidade universal. Quer
dizer: daquilo que é, a cada vez, absolutamente singular, como um
poema, um teorema, uma paixão, uma revolução; e ontudo, para o
pensamento, absolutamente universal (BADIOU, 1994, p. 17-18).
É nessa aliança que surge uma procura na obra de arte e, em nosso caso
particular, na literatura, de uma instância de forças plenamente capazes de construir
verdades intensivas, de no seu finito plano engendrar infinitos, de fazer o
pensamento se empolgar e atuar livremente, discorrendo sobre sua superfície
9
expressiva que encerra todo conteúdo, ser e gramática, que se encontram
desterritorializados dos solos despóticos.
1.2 Literatura faz a Diferença
Literatura entra com essa cópia imperfeita, porém positiva, com essa potência
de desconfigurar o estabelecido em seu plano de composição. Na filosofia de
Deleuze compõe, como o diz Machado (2009, p. 29), seu procedimento de colagem
em que, ao privilegiar os pensamentos que diferem, utiliza dos procedimentos
literários para produzir seu discurso diferencial. Toma a literatura como intercessora
do pensamento, valorizando-a como processo autônomo e singular capaz de retirar
o pensamento de seu estupor e atuar sobre a(s) realidade(s). Para este pensador a
arte não é um suporte para um discurso filosófico subjacente, mas uma força
pensante capaz de revirar os modelos do pensar sedimentados e impostos por
representações clássicas. Dessa forma, faz interferir no percurso do pensamento
humano não só a linhagem da história da filosofia – em que escolhe principalmente
certos filósofos da diferença não tão classicamente difundidos – mas também o que
chama de não-filosofia ( as artes, a literatura no caso).
Poder-se-ia, neste aspecto de sua filosofia – se assim ainda se pode chamar
um pensamento que se quer nômade – tentar objetar que a literatura está de modo
servil a determinada filosofia. Entretanto, é o inverso: o que ele quer na linguagem
artística, literária, é sua potência singular que reverte os sentidos e, por isso, o
pensamento; arrastando-o para “fora”, a um ponto original de possibilidades.
Portanto, convoca, invoca a literatura em sua integridade física e espiritual, do jeito
que ela é: abolição do centro gravitacional do “é”: “[...] a experiência própria da
criação. E se pensar é criar, é porque faz nascer o que ainda não existe, em vez de
simplesmente representar o que já está dado” (LEVY, 2011, p. 128). Não viola,
portanto, com seu proveito tirado, a liberdade literária em nome de uma filosofia.
Esta é que faz uma concessão essencial, pensando em termos clássicos, pois se
conecta à não-filosofia e subsiste em seu plano. Deleuze distingue inclusive o modo
próprio de pensamento concernente às artes, à literatura, do modo propriamente
filosófico. Vemos em O que é a Filosofia? (2010) que, enquanto esta atua com
10
conceitos (concept), aquelas atuam a partir de um composto de sensações:
perceptos e afectos:
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do
estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais
sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são
atravessados por eles [...] O artista cria blocos de perceptos e de
afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve manter-se
de pé sozinho [...] O percepto é a paisagem anterior ao homem, na
ausência do homem [...] Os afectos são precisamente esses devires
não humanos do homem, como os perceptos [...] são as paisagens
não humanas da natureza [...] só a vida cria tais zonas em que
turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-la e penetrá-la em sua
empresa de cocriação [...] é preciso que o artista crie os
procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos, necessários a uma
empresa tão grande que recria por toda parte os pântanos primitivos
da vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193-194-199-200-205)
Alain Badiou, em Para uma nova teoria do sujeito (1994), faz uma discussão
sumária, porém precisa, sobre algumas tendências capitais de considerações sobre
a arte, principalmente na relação com a filosofia, que vem nos apoiar aqui. Distingue,
desde Platão, as tendências postas aqui em resumo:
didática: aparência e charme a uma verdade prescrita de fora, didática sensível com
objetivo educativo de uma verdade que a filosofia, ou os centros de saberes como
religião ou política, detêm por “exce lência” – vemos aqui a base mais simples da
leitura alegórica, metafórica, simbólica, representativa.
romântica: somente a arte é corpo real do verdadeiro, “encarnação” , livra-nos da
esterilidade do conceito – tal supremacia, glória, a arranca da sua vivência direta
com os mortais, da sua participação.
clássica: Aristóteles esquiva-se da crítica platônica de que arte, mesmo para
utilidade educativa, seria incapaz de verdade pois mimética, aparência; e a articula à
“catarse”, transferência das “paixões” para a aparência artística, função terapêutica,
tratamento das afecções da alma.
Com relação às abordagens, diz Badiou:
O que caracteriza o nosso século neste seu final é, a meu modo de
ver, que ele não introduz nenhuma nova tendência.
Quais são, no século, os pensamentos mais fortes? [...] em matéria de
arte o marxismo é didático, a psicanálise é clássica e a hermenêutica
heideggeriana é romântica [...] objetivo de Brecht era criar uma
“sociedade de amigos da dialética”, e o teatro era, em muitos
aspectos, o meio para atingir tal sociedade [...] Heidegger expõe um
entrelaçamento entre o dizer do poeta e o pensar do pensador, a
11
vantagem fica, no entanto com o poeta. Pois o pensador é apenas o
anúncio da virada [...] elucidação retroativa da historicidade do ser. Ao
passo que o poeta, no que lhe concerne, efetua na carne da língua, a
guarda do ser, daquilo que Heidegger chama de o Aberto.
A psicanálise, enfim, é aristotélica, absolutamente clássica [...] ensaios
de Freud sobre a pintura [...] Lacan sobre teatro ou poesia [...] A obra
de arte faz desvanecer, em sua forma, a cintilação indizível do objeto
perdido [...] provoca uma transferência porque exibe um objeto que é
causa do desejo. (BADIOU, 1994, p. 23-24).
Indicando a saturação dessas três tendências Badiou indica um quarto laço,
em que, pelo exposto anteriormente, insisto em situar Gilles Deleuze, Guatari, bem
como os outros que retomam em discurso direto ou indireto livre.
A própria arte é um processo de verdade. O que quer dizer que a arte
é um pensamento cujas obras (e não o efeito) são o real. E esse
pensamento ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras
verdades, quer sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que
quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à
filosofia.
O problema se encontra então na singularidade da arte. (BADIOU,
1994, p. 25)
1.3 O impessoal: força personífuga
O humanismo administra-“nos”(?) lições. De mil maneiras
frequentemente incompatíveis entre si. Bem fundadas (Apel) e não
fundadas (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas
(Searle), psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas
franceses). Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos
um valor seguro que não necessita ser interrogado. Que tem
inclusivamente autoridade para suspender, interditar a interrogação, a
suspeição, o pensamento que tudo corrói (LYOTARD, 1997, p.9)
Cada nome desses citados entre os humanistas fica de responsabilidade de
Lyotard o motivo de aí estarem. O que me interessa é esse questionamento do
homem enquanto um valor seguro. A entidade “homem”, essa corporeidade
autoinstituída se deu o direito de ser a medida de todas as coisas, como animal
racional, animal comunicante, com sua nomeação é “sujeito” que subjuga os
“objetos” nomeados. No entanto, ele tem se posto em crise enquanto entidade
absoluta; o que primeiro enfraqueceu foi a voz toda poderosa que lhe outorgou
discernimento e o poder de nomear, portanto, dominar. Dominar não só sobre os
outros seres, mas intra-espécie, capaz de fazer predominar nas propagações
discursivas o homem macho, ocidental, branco etc., entidades majoritárias que
também são postos em dissolução pelos Devires.
12
Vários acontecimentos vêm minando as transcendências – sistemas ideais,
que preexistem aos fatos. A voz divina enfraqueceu e nos apegamos ao cogito,
“sujeito” por si pensante, mas ainda senhor e nomeador. Mas outros abalos
epistêmicos se fizeram e de algum modo nos assalta os confins do homem e como
veremos mais à frente, com atestado também de Derrida, é na linguagem, na
escritura, que isto tem se configurado. “Ao passar as fronteiras ou os fins do homem,
chego ao animal: o animal em si, o animal em mim e o animal em falta de si -mesmo
[...] Há muito tempo pode se dizer que o animal nos olha? Que animal? O outro”
(Derrida, 2011, p.15). Esta obra de Derrida tem por título O Animal que logo Sou:
como não vermos, já no título, uma referencia crítica ao cogito: “penso logo sou?”.
Sobre a questão específica do animal, trataremos mais adiante nas leituras
envolvendo o Devir-animal. Fiquemos por ora com a presença desse “Outro” que
nos olha nos atrai aos confins. Adiantemos ainda que esses liames , além dos
animais não falantes, são, enfim, moleculares, do biológico ao cósmico, e que de
algum modo se instalam como agenciamentos nos dispositivos de escritura, eventos
incorpóreos que atuam sobre as corporeidades constituídas como conteúdos,
alterando, no âmago dos discursos, as coisas.
A vergonha de ser homem: haverá razão melhor para escrever? [...] A
literatura começa com a morte do porco-espinho, Segundo Lawrence,
ou com a morte da toupeira, segundo Kafka [...] escreve-se para os
bezerros que morrem, dizia Moritz. A língua tem de alcançar desvios
femininos, animais, moleculares, e todo devir é um desvio mortal.
(DELEUZE, 1997,11-12)
Vejamos então em que se apoiam esses dispositivos de modo mais geral,
principiando pela neutralização do “sujeito” e aparatos discursivos que o acompanha
para, logo mais, nos situarmos nas abordagens singulares nos contos de Murilo
Rubião e especificarmos operacionalidades que configuram uma semiótica do devir.
Deleuze e Guattari concebem o plano de composição literária, os perceptos e
afectos, não mais como percepções e sentimentos de um sujeito individuado;
concebe uma linguagem que faz ruir a comunicação e abole não só os objetos
referenciais, mas o sujeito comunicante. Destitui a linguagem literária de seu poder
de dizer “eu”, neutralizando a soberania do sujeito em prol de um agenciamento que
individualiza por intensidades e afectos não subjetivos; a literatura diz respeito a
uma terceira pessoa ou à potência de um impessoal.
13
As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à
enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós
uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o „neutro‟
de Blanchot). (DELEUZE, 1997, p. 13)
Não é generalidade ou uma individualidade:
[...] é singularidade no nível mais elevado, momento em que os
personagens são arrastados para um indefinido considerado como
um devir potente demais para eles [...] singularidade individual
definida por afetos, potências, intensidades, que, às vezes, utilizando
um termo do filósofo medieval Duns Scot, ele chama de
“hecceidade”. (MACHADO, 2009, p. 210)
Essa potência impessoal faz da linguagem literária única passagem, no
entanto passagem, não finalidade em si. Nega a consideração de que a literatura faz
sua linguagem voltar-se intransitivamente sobre si mesma, comentando-se somente
a si própria. Isto é apontado por Foucault como um equívoco em seu texto O
pensamento do Exterior (2006). A linguagem literária é privilegiada por ser o único
caminho, mas o que se almeja enfim é o que se atinge no seu limiar de tensão, o
impensável no pensamento, a experiência do fora, o espaço-tempo da diferença.
O que há de “impossível” na linguagem e que, por conseguinte, lhe
pertence tanto mais estreitamente: seu fora. [...] O procedimento
impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele
devasta as designações, as significações, as traduções, mas para
que a linguagem afronte enfim, do outro lado de seu limite, as figuras
de uma vida desconhecida. (DELEUZE, 1997, p. 33)
linguagem sempre em relação com o de-fora, não pode ser separada
de um elemento não linguístico, mesmo se não há entre os dois uma
relação de representação. Por mais indispensáveis que sejam os
procedimentos de linguagem, são apenas condição, e devem se
articular com um processo vital capaz de produzir visões e audições
[...] criando novas possibilidades vitais, novas formas de existência
[...] uma vida constituída por forças informais, intensidade,
singularidade, virtualidade. (MACHADO, 2009, p. 210-211)
Desse modo na escritura o escritor entrevê e entremostra os interstícios, os
desvios da linguagem com um objetivo crítico e clínico: tornar sensíveis forças
invisíveis e inaudíveis oferecendo em perceptos e afectos, em seu plano de
composição, linhas de fuga; fazendo fugir as percepções e afeições cristalizadas em
matrizes que as tornam nada mais do que representações. Nas palavras de Deleuze
(1988, p.92)
14
O fora concerne à força: se a força está sempre em relação com
outras forças, as forças remetem necessariamente a um fora
irredutível, que não tem nem mesmo uma forma, feito de distâncias
impossíveis de serem decompostas, através das quais uma força age
sobre outra ou é agida por uma outra.
A noção de força está em conexão compositiva com o pensamento de
Nietzsche, forças capazes de “arrebatar” a linguagem tornando-a a-histórica. O que
não pode ser confundido com “recorte estrutural” de neutralizar exterioridades.
Trata-se de suspender no instante da diferença as agências que fundam, difundem e
se autorizam a policiar o que dever ser “necessário”. Afirma-nos PELBART (2009, p.
107-109).
As forças constituem o Fora nas suas diferenças, o Fora é a diferença
entre as forças, a diferença é o Fora das forças; longe de ser um jogo
de palavras, essas permutações são o próprio Jogo que Nietzsche nos
ensinou [...] É nesse sentido que uma nova relação da escrita com o
Fora suscita um novo pensamento. Pois pensar para Nietzsche,
Blanchot, Foucault, Deleuze e tantos outros não é uma faculdade, mas
abertura em relação com o Fora.
Enfim, é perceptível que se desemboca na questão da alteridade. Esse
“outro” está bem além do outro indivíduo, do próximo. É o outro do mundo, todas as
suas possibilidades virtuais presentes nas intensidades, no estranho; o insensível na
sensação, o impensável no pensamento.
Como palavra do Outro, como ser da linguagem, como plano de
imanência, como relação com o fora, a literatura aparece
verdadeiramente como uma experiência, pois, como afirma Blanchot,
„somente há experiência no sentido estrito onde algo de radicalmente
outro está em jogo. E eis a resposta inesperada: a experiência radical
não empírica não é de maneira alguma de um Ser transcendente, mas
a presença „imediata‟ ou a presença como fora‟. Deleuze, Foucault e
Blanchot buscam na arte a possibilidade de outra forma de experiência
que não se baseie no domínio da representação, mas no domínio do
sensível (LEVY, 2011, p. 128)
1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário
O pensamento da Diferença tem uma dimensão Crítica e Clínica que está
conectada diretamente com imagem Nietzschiana da medicina cultural. Pensadores
diferencias – dentre os quais os artistas são privilegiados – são médicos da cultura:
“alguém que analisa a doença ou os sintomas do homem e do mundo e avalia suas
15
possibilidades de cura” (MACHADO, 2009, p. 218). A linguagem desterritorializante,
o momento de crítica, abre, a partir da a-significância, novas possibilidades de vida,
aos “pensamentos fechados uma corrente de ar fresco ” – verso de um poema de
Bob Dylan citado em Diálogos (DELEUZE; PARNET,1998, p. 13). Esta é a dimensão
Clínica, recuperação da saúde mental que só se consegue no limite da palavra
louca, num devir-louco da linguagem. É justamente por isso que a imanência
solicitada à literatura não é intransitiva é, antes, intransigente. Se desinstala a noção
de objetos e sujeitos comunicantes, é para denunciar a arbitrariedade tornada
Natural sob certos despotismos e os centros exógenos de subjetivação e apreensão
do mundo. Atinge-se, enfim, numa linha de fuga criativa, uma abertura ética por
excelência, um espaço-tempo originário de conceber e sentir.
O plano de imanência em Deleuze não é a pseudo-imanência do recorte
estrutural, separação em significante e significado, ou sistema ideal abstraído de
processos culturais em andamento. Pelo contrário, faz guerrilha com esses
dualismos. No plano de imanência expressão e conteúdo estão em defasagens e
tensões apenas para que se construa e se funde um novo plano de pensamento e
liberdade, mas são indissociáveis: o agenciamento coletivo é coextensivo ao ponto
originário de expressão; se esta protesta é para rasurar seu conteúdo territorializado;
para fazer nascer uma coletividade-conteúdo virtual, implicando nesta um povo por
vir. Em tal perspectiva a literatura contorna o âmbito da estética enquanto apenas
processo de formalização que expõe o processo literário apenas como desempenho
habilidoso de significantes ou uma forma parabólica de redizer o mundo; caminho
pelo qual a reputação da literatura para a sociedade em vários momentos é levada
ao dissabor de uma especialidade teórica por determinados estruturalismos.
Por sua trajetória teórica, da experiência estrutural a abordagens discursivas
mais amplas, nada como um Todorov para nos falar:
Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médio aprendem o
dogma segundo o qual a literatura não tem relações com o restante do
mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra em si
[...] Permanece o fato de que a tendência que se recusa a ver na
literatura um discurso sobre o mundo ocupa uma posição dominante
no ambiente universitário (TODOROV, 2009, p. 39-40).
Já percebemos que essa vertente de estruturalismo vem sendo bastante
repensada e vemos reerguer-se um grande número de abordagens das relações da
16
literatura com a história, a sociedade etc. No entanto ainda como linguagem
representante, refratável aos fatos, projeções da realidade; e não observada até aos
limites como uma realidade, como uma experiência, articulação de diferença
irrecuperável fora de seu plano.
Literatura aqui não é projeto, menos ainda projeção, é projétil na realidade.
Tanto quanto à ciência, à filosofia, à política, à linguagem artística pode ser
reivindicado seu espaço enquanto atitude com o mundo. No entanto, essa atitude do
pensar literário é a partir de seu modo singular e insubstituível, ou seja, não como
um conjunto de recursos formais a que podem se acomodar ideias filosóficas,
determinada teoria ou ideologia; mas como um ser completo em que seu raciocínio é
seu próprio corpo de sentido. Não se recorre à literatura como uma fonte documental
ou objeto, mas entregando-se a seu processo e potencialidades do saber estéticointensivo, ou como em Barthes: saber-sabor (2001, p. 21). Contra toda a moralidade
classista, castradora, a literatura deve sugerir um povo que falta, abertura ética em
que “A sintaxe é conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a
vida nas coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12).
17
2. CRÍTICA EM DEVIR: LENDO A DIFERENÇA
A noção devir atravessa todas as camadas da atividade humana e seus usos
por Deleuze e Guattari não são restritos à literatura. É uma abordagem do mundo e
todas as modalidades de estruturação da diferença , colocando esta última como
positividade. No entanto, ao intervir na literatura, é inevitável que se instale na
discussão teórica das abordagens e contribua com aproximações e certas adesões,
ou com críticas, a leituras já consolidadas ou bem divulgadas, enfim, na construção
de uma perspectiva de leitura. O que mais interessa a esta dissertação é inquietude
que essa perspectiva gera, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como
irrevogáveis pela constante prática: a de que a linguagem e, extensivamente,
literatura, pressupõe dócil e amplamente representação e interpretação.
Este é um momento oportuno para precisarmos teoricamente a noção de
representação a que nossa perspectiva de leitura se opõe. Pelo que nos expõe
Deleuze, os elementos recorrentes da representação se configuram pelo menos em
quatro aspectos principais
identidade na forma do conceito indeterminado, analogia na relação
entre conceitos determináveis últimos, a oposição na relação das
determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto
determinado. [...] os quatro liames da mediação. Diz-se que a
diferença é “mediatizada” na medida em se chega submetê-la à
quádrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da
semelhança. A partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal),
propõe-se “salvar” a diferença, representando-a, e para representá-la,
relacioná-la às exigência do conceito em geral [...] A diferença deve
sair de sua caverna e deixar de ser um monstro (DELEUZE, 2006, 57)
A mediação e suas muitas formas é o que sintetiza a representação. O Devir, a
instauração da diferença, vai sempre se indispor à mediação.
A mediação não implica apenas a alienação dos seus elementos face
ao seu enquadramento; permite modulá-lo. E quanto mais “rico” for o
termo mediato, ou seja, ele próprio mediatizado, mais numerosas são
as modificações possíveis, mais flexível o seu enquadramento, mais
flutuante o nível de trocas entre o seus elementos, mais permissivo o
seu relacionamento. (LYOTARD, 1997, p.14)
É preciso pensar a diferença e a produção a diferença em si, positivada, como
excedente criador. Teremos signos que se recusam ao regime significante, catástrofe na
circularidade, abrindo um processo imediato, sem interpretantes a perambular na
enciclopédia e nas árvores, uma ordem dinâmica
18
[...] na ordem dinâmica , já não há conceito representativo nem figura
representada num espaço preexistente. Há uma idéia e um puro
dinamismo criador de espaço correspondente. (DELEUZE, 2006, 45)
A diferença só deixa, com efeito, de ser um conceito reflexivo e só
reencontra um conceito efetivamente real na medida em que designa
catástrofes: sejam rupturas de continuidade nas séries das
semelhanças, sejam falhas instransponíveis entre estruturas análogas
(DELEUZE, 2006, 65)
2.1 Teorias: enlaces e distâncias
Em contraposição à imitação, à reprodução, tal Devir encontra-se com a
problemática da mímesis em que, no sentido platônico, a arte – imitação da
imitação, principalmente as de má imitação – deve ser excluída da república. E é
tomando positivamente esse simulacro em dessemelhança que se faz guerrilha
crítica contra dualismos – centros abstratos de sentido próprio e periferias
representantes – na perspectiva do devir literário. É na valorização dessa cópia
defeituosa que surge uma silhueta de linguagem que não aceita mais simplesmente
representar ou comunicar em acontecimentos como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud
em que as palavras “Deixaram de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser
utensílio” (PAZ, 1996, p. 48); uso da palavra fora da necessidade (VALÉRY, 1999, p.
178); e
se
impulsionaram
também
muitos
aspectos
das
movimentações
vanguardistas, antropofagias culturais, futurismos etc. Benjamin já nos expos uma
mudança cultural profunda em que as narrativas se empobreceram de experiências
a serem contadas, transmitidas, e se dão apenas à experiência pobre da própria
possibilidade de narrar, dá-se o próprio corpo narrativo como experiência, numa
tentativa de reconstrução de uma nova forma de narratividade sintética. Referindose a Proust:
[...] trabalho de construção empreendido justamente por aqueles que
reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na
sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a
privacidade da experiência vivida individual (Erlebnis) (BENJAMIN,
1994, p. 10)
A crise que se passa aí é a do texto que está se tornando corpo e não apenas
fantasma que representa os corpos; a superfície literária passa a ser experiência em
19
sua materialidade, comportando potências e afectos que agem no mundo:
realidades em plural agindo sobre “a realidade” – refutando, repudiando no mínimo,
esse singular definido que pronuncia despoticamente seu caráter soberano. “Essa
navegação [...] acontece de fato [...] Quando a narrativa se torna romance, longe de
parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração”
(BLANCHOT, 2005, p. 07). O devir, em uma perspectiva de leitura, compõe-se com
esses aspectos da “experiência literária”.
Vimos e veremos por vários momentos que o procedimento literário compõe
uma máquina de guerra, faz conexões anômalas para provocar traumas nas
estruturas fixas e reverberantes, abrindo linhas de fuga. Apesar de expressões
diferenciadas, é perceptível que neste “devir” reconhece-se, participa-se, apropria-se
da preocupação com a estrutura literária transgressiva, intransigente que vemos se
manifestar em muitos textos, teorias e críticas. A potência transgressiva está na
base de alguns termos utilizados por Deleuze e Guattari nas abordagens literárias
como língua menor, intensiva, a-significante (não representativa), tendo como efeito
uma desterritorialização.
Ainda, muitas outras focalizações de teoria e crítica literárias atuam sem
grandes problemas com os tropos linguísticos, linguagem figurada, equilibrada na
dualidade conotação/denotação; arquétipos psicanalistas, alegorias sociológicas etc.
– todos teoricamente bem construídos com suas positividades legítimas de
pesquisa, por vezes com fortes tendências ideológicas. Nesse âmbito, o Devir em
Deleuze é bem mais radical: não admite o sentido metafórico, simbólico, alegórico,
arquetípico como componentes do Devir. Sua potência desapropriante não admite
ser conotação, copiloto de sentidos “próprios”, ser inquilino em um território
preestabelecido. Pretende-se literal. Se tal linguagem faz guerrilha contra
transcendências, revoga sobrecódigos, portanto não pode haver sentido próprio que
preceda o atual do devir literário.
Não se compreende isto partindo da dicotomia langue/parole, em que há um
sistema ideal e uma realização sempre imprecisa deste. É preciso fugir de tal plano:
o sistema linguístico abstraído da fala, do uso pragmático, negligencia algo que lhe é
coextensivo e essencial na sua efetivação real que são os agenciamentos coletivos
de enunciação, a base produtora e propagadora dos “sentidos próprios”, das
20
denotações. Compreendendo que os significados constituídos não são “naturais”,
mas produzidos por vigências de um território, veremos então que o agenciamento
literário, como desapropriação semiótica, provoca com a sua fala, e imanente a ela,
insurreição e o surgimento, de uma nova língua; um uso “menor” autoprodutor de
seu sistema abstrato, para sabores anômalos, na corda bamba dos limiares, alaridos
e rumores:
[...] É uma mapa de intensidades. É um conjunto de estados, todos
diferentes uns dos outros, implantados no homem no momento em
que este procura uma saída. É uma linha de fuga criativa que só
significa o que ela é. (DELUZE; GUATTARI, 2002, p. 69)
Mesmo nos seus textos filosóficos, utiliza termos que o senso redundante nos
conduz apressadamente a interceptá-los como metáforas. Ao falar, por exemplo, de
ideias, utiliza termos como buracos negros num muro branco configurando um rosto,
nos esclarece:
Não é óbvio, o rosto da amada, o rosto de chefe, a rostificação do
corpo físico e social... Eis uma multiplicidade, com pelo menos três
dimensões, astronômica, estética, política. Em nenhum dos casos
fazemos uso metafórico, não dizemos: são “como” buraco negros em
astronomia, é “como” uma tela branca em pintura. Nós nos servimos
de termos desterritorializados, ou seja, arrancados de seu domínio,
para reterritorializá-lo em outra noção, “o rosto” a “rostidade” como
função social [...] falamos literalmente (DELEUZE; PARNET, 1998, p.
26)
“Suponhamos que ler Deleuze seja ouvir, mesmo que por intermitências, o apelo do
„literal‟”, afirma François Zourabichvili na introdução de seu Vocabulário de Deleuze
(2009, p. 10) e é com palavras quase bruscas que encontramos na obra de Deleuze
em elucidação do inseto de Kafka:
O devir-animal nada tem de metafórico. Nenhum simbolismo,
nenhuma alegoria. Também não é o resultado de uma culpa ou de
uma maldição, o efeito de culpabilidade. Como dizia Melville a
propósito do devir-baleia do capitão Achab, é um „panorama‟ e não
um “evangelho” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 69)
Deleuze é muito rigoroso em suas afirmações concernentes à linguística e
filosofia da linguagem; em toda a sua obra há investigações minuciosas sobre a
linguagem e dos centros de poder que irradia. Um sentido próprio – piloto, principal?
21
– denotativo; e outros conotativos – copiloto, não principal? – supõe uma máquina
binária, outro dualismo e:
Não é verdade que a máquina binária só existe por razões de
comodidade. Dizem que “a base 2” é a mais fácil. Mas, na verdade, a
máquina binária é uma peça importante dos aparelhos de poder [...]
se a própria linguística procede por dicotomias (cf. as arvores de
Chomsky onde uma máquina binária trabalha o interior da
linguagem) se a informática procede por sucessão de escolhas
duais, não é tão inocente como se poderia crer. Talvez seja porque a
informação é um mito e a linguagem não é essencialmente
informativa [...] não é feita para que se acredite nela, mas ser
obedecida. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 32)
Tais palavras são de Claire Parnet, neste livro Diálogos que escreve com Deleuze.
Propõem como unidade mínima linguística não os fonemas e vocábulos; mas um
agenciamento coletivo. Portanto que determinado sentido de um vocábulo seja o
“próprio” não é uma necessidade, apenas considera-se a partir de um determinante
solo de forças. Em uma língua menor, tensionada para os limites, o sentido próprio é
a resultante de forças: o devir, o tempo da diferença, sempre sentido flutuante,
nunca significado precedente. Neste sentido o devir é literal, pois as palavras foram
enxertadas e soam uma estranheza como propriedade, deve fazer fugir e perder de
vista a matrix, viver intensamente em seu plano de composição.
Podemos aproximar outros exemplos de perspecti vas que se sugerem a
literalidade como problema essencial. Em Introdução à Literatura Fantástica (2010),
Todorov sugere de que modo uma leitura alegórica pode ser um perigo ao
fantástico. É possível aproximarmos esse fato ao que ocorre com o Devir que
também não se dispõe à leitura alegórica. Assim como a literalidade do devir é
desencadeada em seu plano de composição, esse perigo alegórico indicado por
Todorov se oferece em detrimento do nível de consideração: “[...] não sobre a
natureza dos acontecimentos, mas sobre a do próprio texto que os evoca”
(TODOROV, 2010, p. 66).
Todorov nos expõe exemplos em que a evidência ou não, pelos próprios
textos, da presença da alegoria é que define o efeito do fantástico (implicando
portanto, se cabe ou não leitura alegórica). Há alguns declaradamente alegóricos
onde o nível de sentido literal tem pouca importância, as inverossimilhanças não
desconcertam, pois o foco está no sentido alegórico representado – como em uma
22
catacrese em que nem se percebe que há duas falas. Há outros que dividem a
atenção evidenciando que o sentido deve ser o alegórico, mas que se dê certa
importância à película literal, mesmo que desbotada para deixar ver o sentido
alegorizado; neste caso, o plano literal não pode ser ignorado por completo, mas
não tem soberania; o sentido alegórico é indireto, mas claramente indicado: “[...]
temos aí um exemplo em que o fantástico se acha ausente não por faltar a primeira
condição (hesitação entre o estranho e o maravilhoso) mas pela falta da terceira: ele
é morto pela alegoria, e uma alegoria que se manifesta indiretamente.” (TODOROV,
2010, p. 75). Em indicações que coagem a um mínimo de alegoria “o fantástico
encontra-se com isso bem enfraquecido” (TODOROV, 2010, p. 76). Já no exemplo
de Willian Wilson de Poe, um homem é perseguido por seu duplo e como desfecho o
mata em um duelo. Há ainda, indicações de alegoria, na fala do duplo à beira da
morte:
Tu venceste, e eu sucumbo. Mas de hoje em diante estás também
morto, - morto par o mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim
tu existias – e vê em minha morte, vê por esta imagem que é a tua,
como assassinastes radicalmente a ti próprio.” Essas palavras
parecem explicitar plenamente a alegoria; contudo, permanecem
significativas e pertinentes ao nível literal. Não se pode dizer que se
trate de uma pura alegoria; estamos antes em face de uma hesitação
do leitor. (TODOROV, 2010, p. 79)
Se observarmos a consideração de níveis feitas por Todorov, por ter havido a
fala do próprio duplo, este tem existência literal no plano da obra; se houver
indicação alegórica é sobre a morte de Willian Wilson original. Mas enfim: “É preciso
insistir no fato de que não se pode falar de alegoria a menos que dela se encontre
indicações explícitas no interior do texto” (TODOROV, 2010, p. 81).
Pelo que vemos, é essa permissão ou não no interior do texto, no nível de sua
diegese, que vai autorizar ou não a alegoria, que vai manter ou não o fantástico. Da
mesma forma, onde um texto se deixar ou mesmo agir para manter-se alegórico –
ao menos pelo que nos tem dito os pensadores em quem se baseia esta dissertação
– não produzirá Devir. É possível perceber, nessa hesitação essencial do fantástico
sugerida por Todorov, uma espaço-temporalidade em que os significados ficam
suspensos, e o que hesita é toda a racionalidade precedente capaz de explicar;
instaurando uma catástrofe semiótica em relação ao explicável, porém produtora de
23
efeitos outros de sentido. Mostrando-nos, isto, mais uma perspectiva que leva em
conta o excesso incontrolável produzido, e que não se deverá dissolvê -lo em
irrealidade a menos que a obra, no seu plano interno, já o faça; caso contrário,
haverá completa violação. Sem confundir a leitura do Devir como o Fantástico em
Todorov, podemos vê-la como uma aliada para este aspecto de levar em
consideração antes de tudo o nível interno do texto para decidirmos se é literal ou
não “[...] o sentido literal não se perde. A prova disso é que a hesitação fantástica se
mantém (e sabe-se que esta se situa ao nível do sentido literal).” (TODOROV, 2010,
p. 75). Este teórico sugere então que nos instantes de fantástico, neste tempo da
hesitação, produz-se um efeito de sentido que só pode ser experimentado nessa
exata condição plasmada pela obra, sem remissão substitutiva na economia das
trocas (semelhanças e equivalências).
Convocamos, ainda sobre essa literalidade essencial, o testemunho de
Blanchot. Em O Livro por Vir (2005), no subtítulo Ao pé da letra, discorrendo sobre o
texto bíblico e questões envolvendo interpretação e, mesmo, tradução, nos
interroga: “Em que medida podemos acolher essa linguagem? ”. É-nos muito
conveniente a sua resposta, pois sintetiza a problemática das transcendências
impostas a leituras contra as quais a noção de devir investe; e, ainda, nos ajuda,
desde já, a problematizar os modos de remissão aos textos bíblicos que veremos na
leitura sugerida por Schwartz de Murilo Rubião.
Se ela é de natureza retórica, é porque sua origem é moral, ligada à
obrigação implícita, mesmo para os incréus, de acreditar que a
espiritualidade cristã, o idealismo platônico e todo o simbolismo de que
nossa literatura poética está impregnada, nos dão direito de posse e
de interpretação sobre essa fala, que teria alcançado sua plena
realização, não nela mesma, mas no advento de uma boa nova. Se, o
que os profetas anunciam é, afinal, a cultura cristã, então é
perfeitamente legítimo que os leiamos a partir de nossas delicadezas e
de nossas seguranças, sendo a principal, a de que a verdade está
doravante sedentária e bem estabelecida.
A leitura simbólica é provavelmente o pior modo de ler um texto
literário. Cada vez que somos incomodados por uma palavra mais
forte, dizemos: é um símbolo. Esse muro que é a Bíblia se tornou,
assim, uma suave transparência em que se colorem de melancolia as
pequenas fadigas da alma. [...] Entretanto, se as palavras proféticas
chegassem até nós, o que elas nos fariam sentir é que não contêm
nem alegoria nem símbolo, mas que, pela força concreta do vocábulo,
elas desnudam as coisas. (BLANCHOT, 2005, p. 121-122.)
24
Essa literalidade essencial sugere a alforria da palavra enquanto um ser, uma
realidade com potências e temporalidades que lhe são próprias e plenamente
capazes de alterar o curso das coisas; um acontecimento por excelência a tudo
aquilo que cruzar o seu caminho. Veremos nisto que toda indicação do texto – e
seus seres de linguagem – como ilustração, representação, realidade segunda, são
vetados para nossa proposta de leitura. Esta deve localizar os agenciamentos de
significação territoriais e tão logo os procedimentos que os arrastam, desfiguram,
propõem algo de radicalmente Outro. Deve interpor a nós os afectos, essas “forças
concretas dos vocábulos”, num arranjo tal que atravessam as coisas travestidas por
outrem e as devolvem nuas, como Derrida perante o gato em O animal que logo Sou
(2011); como a Esfinge cala-se à leitura de Blanchot, “sem segredo, para além da
qual não há nada senão o deserto que ela porta em si mesma e transporta em nós”
(2005, p. 130). Perguntamos, em discurso indireto livre, com a voz de Blanchot: O
que nos diz isto? “Que é necessário tomar tudo ao pé da letra; que estamos sempre
entregues ao absoluto de um sentido, da mesma maneira que estamos entregues ao
absoluto da fome, do sofrimento físico e de nosso corpo de necessidade”
(BLANCHOT, 2005, p. 123).
2.2 Modus Operandi em Devir
“[...] pode o pensamento de Gilles Deleuze fornecer-nos subsídios suficientes
para uma leitura crítica do texto poético?” (MALUF, 2011, p. 21). Não encontrei
muitos trabalhos que especificam ou no mínimo discutem a possibilidade de
aspectos metódicos mínimos a operações como a noção de devir em literatura. Em
verdade esta noção é se afirma repulsiva a um discurso do método, mas não pode
abster-se de critérios. Que pudesse mesmo ajudar um texto científico nos moldes de
dissertação, encontrei apenas as considerações de Ana Costa Maluf. Embora meu
objeto não seja em verso, algumas questões levantadas a partir de sua leitura
poética de Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, não deixam de provocar
ressonâncias sobre o presente trabalho.
Justamente por não ter um modus operandi com precisas definições, seja por
ser um pensamento ainda não assentado comodamente em estudos literários, seja
por que o próprio pensamento não permite fixidez metodológica. Há tão somente
25
vetores conceituais e os riscos de as leituras reconstituírem “ainda que em nome de
uma suposta „diferença‟ a mesma operação de uma antiga imagem do pensamento
em que a teoria funciona como um modelo transcendente a ser aplicado em uma
cópia” (MALUF, 2011, p. 22). É neste ponto que é preciso não só reconhecer como
afirmar em positividade que este trabalho se propõe a ler sobre o campo da
diferença, indicar potências informais, desconstituição dos sujeitos e objetos
constituídos; no entanto, sob as normas e técnicas acadêmicas, tendo o
compromisso conjetural, investigativo e explicativo; nenhuma pretensão de invalidar
teorias e ideias, mas pôr em discussão os aspectos criticados ou reafirmados ao se
acionar, como operação de leitura, o Devir sugerido.
Como seria uma análise dos contos de Murilo Rubião sob tal sugestão de
Devir? Pode tal pensamento fornecer subsídios para esse fim? Por isso faz parte, de
modo expansivo, a exposição de pressupostos, bem como utilização do conceito
realizada na literatura.
[...] tentativa de experimentar um certo modo de operar com a filosofia
da diferença [...] um certo modus operandi desse pensamento [...]
Dou-me conta ao final, enfim, que toda esta leitura só se torna possível
a partir do conceito de Devir que atravessa a filosofia de Deleuze. E
ainda mais que certas concepções espaço-temporais são
imcompatíveis [...] uma espécie de leitura “intempestiva” [...] com
vistas a fabular procedimentos de escrita, encontrando ressonâncias
poéticas e filosóficas que não se submetem à antiga ideia de filiação,
influência, contextos históricos ou regionais [...] Não se trata, assim, de
se descartar os fatos históricos, a memória voluntária, os estados de
coisas passados, o tempo cronológico, mas antes, de fazer com que
eles estejam em função deste outro tempo, que poderíamos chamar
de devir, tempo do futuro, acontecimento, ou tempo da diferença [...] e
as distâncias mesmas deixam de ser extensivas, empíricas, atuais,
para se tornarem intensivas: forças diferenciais atuando virtualmente
sobre os corpos (MALUF, 2011, p. 22-25).
É chegado então momento de falarmos sobre o Devir diretamente como uma
operação, uma vez já bem discutidas as generalidades que o envolvem enquanto
posicionamento no mundo dos discursos. Apresentemos, portanto, um conjunto de
critérios e termos que são indissociáveis e cooperam em sua efetivação.
2.2.1 As minorias. Língua menor.
Teremos como vetor discursivo de Devir a aproximação, atração, por
coletividades bárbaras, não dominantes. O devir é sempre uma resistência de
26
minoria, uma guerrilha. Minoria aqui não é quantitativa, mas no sentido de uma zona
que não é plenamente constituída ou aceita em geral, que não tem significação
difundida, matricial.
Todo devir é um devir minoritário. É porque homem é maioria
qualitativa, modelo de identidade, entidade molar, forma de
expressão dominante, que não há devir-homem. Devir é se
desterritorializar em relação ao modelo [...] isso significa trair
potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida –
o que exige ser criador [...] isto significa que escrever é um processo,
uma linha de fuga: tornar-se diferente do que se é, como também
pensava Foucault.” (MACHADO, 2009, p. 213)
É neste sentido que se aproxima da feminilidade, da criança, de outros povos
não ocidentais; mais ainda, do animal, dos outros reinos biológicos, minerais,
moleculares. E não é para recuperar as semelhanças com o homem, ou simples
oposições a ele que nos manteriam no mesmo plano de consideração. Mas para
compor com essa “outridade” uma linha expressiva anômala, dispositivo de escritura,
para outras visões e audições que não estejam prescritas pelas forças gramaticais,
oficiais, naturais, universais.
Como modo integral de atuação, o que concorre para desencadear devires
perpassa todos os níveis possíveis da linguagem, e se os separarmos é somente
para compreensão analítica. Assim, há agenciamentos semióticos que podem incidir
sobre todos os níveis da língua – dos fonéticos aos grandes discursos organizadores
– mas, de uns a outros, é de sintaxe que estamos falando. Se cada
microagenciamento na língua, a exemplo, o “Blablabel” no procedimento de Wolfson
(DELEUZE, 1997, p. 18) contribui para desestabilizar até as visões de mundo, tudo
é, imanentemente, si ntaxe. O problema de escrever encontra-se em realizar um uso
menor da língua, em atingir uma língua estrangeira dentro da própria língua, levar a
língua a delirar, “como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do
universo” (DELEUZE, 1997, p. 9). E esse delírio age em todos esses níveis e tem
ênfases diversas, dependendo do que está em agenciamento de devir. Portanto, na
língua
menor
da
literatura,
encontramos
agramaticalidades
na
pronúncia,
constituição de vocábulos, na conexão lógica, nos fundamentos semânticos, no
discurso e sintaxe narrativa, nos macrodiscursos ideológicos; todos juntos, ou um ou
outro, dependendo da investida do plano de composição, do que se põe como
“problema” literário. E se falaremos de como, por exemplo, Rubião cria outros
27
tempos, outra sensibilidade, outros enfrentamentos políticos, outra semântica; é de
sua sintaxe, de sua língua menor que estaremos falando também.
Desse modo, quando abordamos os contos é para observar como se
estrutura a linguagem que faz fugir ao extemporâneo, ao inumano, no tempo
suspenso da diferença, irreconhecível à imagem matricial. A língua não é tida como
um sistema homogêneo, composto de invariantes estruturais; há várias línguas
numa mesma língua, com as quais o escritor poderá forjar a sua ao desequilibrar a
língua padrão, dominante, desestabilizar as formações linguísticas canônicas
através de um uso menor que a tensiona para os limites fazendo-a deixar de ser
representativa:
Opor um uso puramente intensivo da língua a qualquer utilização
simbólica ou mesmo significativa ou simplesmente significante [...]
abandona-se o sentido, será subentendido (DELEUZE; GUATARI,
2002, p. 43-45)
Fundamentalmente o que interessa Deleuze na questão da
linguagem literária é o estilo como uma nova sintaxe que possibilita
que o escritor produza um devir-outro da língua, um “delírio” [...] o
modo como o escritor decompõe, desarticula, desorganiza, sua
língua materna para inventar uma nova língua [...] novas potências
sintáticas, gramaticais – seria melhor ainda dizer assintáticas,
agramaticais – que lhe dê um uso intensivo, oposto ao uso
significativo ou significante [...] uma linha de fuga que revela e põe
em questão os mecanismos de dominação da língua através de uma
língua originária inumana ou sobre-humana que devasta as
referências, mina os pressupostos que permitem à linguagem
designar as coisas a partir de um sistema de convenções lógicas ou
gramaticais, funcionando neste sentido como agramatical [...] uma
língua intensiva, afetiva, vibrátil. (MACHADO, 2009, p. 207-209)
2.2.2 Dos planos: transcendente e imanente. Plano escritural.
Um plano é a base que sustém uma concepção de universo e sua expansão
funcional, significativa, conectiva. Deleuze distingue um plano transcendente e o
plano imante e neste inclui o plano de escritura.
O Plano transcendente organiza -se por um princípio oculto, que apenas se
pode inferir pelo que dá em sincronia ou diacronia; plano de organização (estrutural)
e/ou genético (desenvolvimento evolutivo); desenvolve formas e formação de
28
sujeitos: “Estrutura oculta necessária às formas, significantes secretos necessário
aos sujeitos [...] Só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele
dá (n+1)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54). O plano de transcendência é
teleológico, analógico:
seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja
porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar
no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da
linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos [...]
Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência,
analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.). A árvore
está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54)
Um Plano de vida, música ou escrita, será igual se estiver em função das
formas que desenvolve e dos sujeitos que forma; ele é para essas formas e esses
sujeitos. Quando comentarmos o plano de leitura representativo de certas sínteses
de leitura de Schwartz a respeito dos contos de Rubião, por exemplo, é deste plano
que estaremos falando.
Em mobilização
contra
a
fixidez do
plano
de
transcendência,
há
acontecimentos que extrapolam e saltam de plano, migram para coordenadas
informais, que são estrutura e conteúdo indiscerníveis e que se autoconstroem. É o
plano de imanência, de composição: não há formas ou desenvolvimento destas,
nem sujeitos ou formação destes; nem estrutura nem gênese: apenas movimento e
repouso, elementos não formados, moléculas e partículas de toda a espécie,
hecceidades, afectos, composições de potências, individuações sem sujeito que
constituem agenciamentos coletivos. É um plano de natureza nua, não a Natureza
como palavra de ordem de classificação estatal. Este plano não distingue o natural
do artificial; por mais que cresça em dimensões nada perde em plenitude, não tem
dimensões suplementares àquilo que passa por ele, plano de proliferação, de
povoamento, de contágio por involução-devires.
É com essas potências da imanência que se compõe o plano de escritura,
sempre em direção do informe, projeto e produto indissociáveis, seu devir é sua
lógica.
Nathalie Sarraute propõe, por sua vez, uma clara distinção de dois
planos de escritura: um plano transcendente que organiza e
desenvolve formas (gêneros, temas, motivos), que consigna e faz
evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos); e um
29
plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria
anônima, faz com que elas se comuniquem através do “envoltório” das
formas e dos sujeitos [...] afectos flutuantes, de tal modo que o próprio
plano é percebido ao mesmo tempo que ele nos faz perceber o
imperceptível (microplano, plano molecular). (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 56)
Também separamos estes planos por necessidade explicativa. Mas eles não
cessam de se interporem. Os devires, de modos variáveis, sucumbem às forças
molares e se reterritorializam para novamente afrontarem um devir irresistível. O
plano de composição, de escritura, só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel.
Os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões
daquilo que ele desenvolve a cada vez; não paramos de passar de um ao outro, por
graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois; não paramos de reconstituir
um no outro, ou de deixar extrair do outro. É justamente por isso que as leituras
representativas se dão ao lado, oferecendo riscos; como também são insuficientes
pois negligenciam os devires, os recobrem, os evitam sob vários disfarces e
mecanismos culturais de contenção como licenças poéticas, ou modos simbólicos
de regulação e recuperação.
[...] o plano de organização ou desenvolvimento cobre efetivamente
aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os
órgãos e as funções são “estratos” ou relações entre estratos. Ao
contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou
composição, implica uma desestratificação de toda a Natureza,
inclusive pelos meios os mais artificiais [...] Mais ainda, o plano de
consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que
o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à
superfície, aos devires que o compõem. (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 61)
É uma grande lição prática de uma leitura pronta a perceber os dois planos, o
modo como Deleuze e Guattari (1997, p. 62) demonstram a respeito de Em busca
do Tempo Perdido uma defasagem que ocorre entre o personagem, que tem suas
considerações em um plano transcendente, de organização; e o narrador, que
transpassa as coisas com afectos móveis, devires. O personagem Swann, não para
de pensar em termos de sujeito, formas e correspondências: uma mentira é uma
forma cujo conteúdo deve ser descoberto e vira um policial amador. Enquanto que
para o narrador uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo, é emissão de
30
partículas dos olhos que valem por si, o ciúme não é o mesmo quando se passa de
Swann ao narrador.
2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades, mapas.
Nos livros em que Deleuze, ou este e Guattari, explanam sobre o Devir, uma
das afirmações que se repetem é a de que não é a transformação de um ser em
outro que é Devir, mas é uma intersecção de afectos, verdadeira aliança 2, contato a
partir de compostos de sensação, seres de sensação (DELEUZE;GUATTARI, 1992,
p. 207). Justamente, por ter a dimensão de um “ser” é que não pode se dá na
imaginação, sonho, fantasia, metáfora, representação, nem imitação; é real. O devir
não produz outra coisa senão ele próprio.
Mas de que realidade se trata se, por exemplo, o devir-animal não consiste
em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que homem não se torna
realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa? “É uma
falsa alternativa o que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o próprio
devir, o bloco de devir e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). Se um homem se tornasse de fato um animal,
um vegetal, uma molécula, seria a passagem de uma entidade molar a outra; de um
ser constituído a outro. Mas o Devir é quando um “eu” fascina-se pelo ser “Outro”,
pelas potências de que o Outro é capaz diante do mundo (o que nos fascina em um
cavalo ao vento, no rugido de um leão, Brás Cubas em um minicapítulo só para
formigas?); entrelaça-se a esses afectos compondo, na duração própria dessa
conexão afectiva, no tempo desse fascínio, uma entidade. Mas esta não se torna
uma entre as coisas individuais, as substâncias; mas uma modulação intensiva,
distensão de afectos de um a outro em latitude, uma terceira individualidade:
hecceidade. Essa zona intermediária é onde percorre o Devir (devir-cavalo, devirleão, devir-formiga, devir-fogo, devir-dragões); ela não se dá no tempo cronológico,
psicológico, representativo, nem no espaço físico; por isso uma realidade própria ao
devir: “ideia bergsoniana de uma coexistência de „durações‟ muito diferentes,
2
Do Latim, Alien: o estranho, o outro.
31
superiores ou inferiores à „nossa‟, e todas comunicantes.” (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 18).
Dizemos que o Devir é uma singularidade-acontecimento, e se tem forma é
acidental. Distintas das formas essenciais, sujeitos ou objetos, as formas acidentais
são suscetíveis de mais e de menos: gradientes que compõem uma terceira
individualidade que não se confunde com a do sujeito ou objeto; um grau de branco,
um grau de animalidade, graus de extensão em latitude constituída por outras
individuações componíveis. “Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade,
que se compõe com outros graus, outras intensidades para forma r um outro
indivíduo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38). O sujeito (o leitor implícito, no
mínimo; personagens, lugares, instituições) participa mais ou menos da forma
acidental, mas esses graus de participação implicam modulações na forma,
vibrações que não se permitem mais propriedades do sujeito, tornando-se um ser
próprio,
individuação
intensiva
por
usucapião
imediato,
propriedades
desterritorializadas em um composto de sensação.
Os “corpos constituídos” (o homem/mulher, o tempo, a família, a sociedade, a
personalidade, o país, a pedra, o animal), entidades molares, correspondem a uma
longitude. Os devires são os desencadeamentos de hecceidades, intensidades em
atravessamentos, em latitudes e transversalidades, borrando as demarcações.
Assim vamos já começando a entender o uso do termo mapa:
[...] latitudes “disformemente disformes”, velocidades, lentidões e graus
de toda espécie, correspondendo a um corpo ou a um conjunto de
corpos tomados como longitude: uma cartografia. Em suma, entre as
formas substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há
somente todo um exercício de transportes locais demoníacos3, mas
um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos,
acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes
daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem. (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 38)
É assim que esses devires distendem o tempo da narrativa e as
corporeidades constituídas (lugares, personagens, instituições) atraindo-os a zonas
de indiscernibilidade, de abertura, criando agenciamentos intensivos, perceptos e
3
Veremos por que a expressão “demoníaco” no item específico sobre o devir-animal.
32
afectos, espectro plástico de mundos em alteridade: “É Ahab que tem as percepções
do mar, mas só as tem porque entrou numa relação com Moby Dick que o faz tornarse-baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais:
Oceano” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 200).
2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas.
Observamos até aqui que o Devir, a partir de gradientes intensivos, implica
uma desterritorialização de entidades constituídas – formas substanciais, sujeitos
determinados. Sempre que se fala de entidades molares é dessas formações
constituídas, sujeitos e objetos, que está se falando. Ao contrário, o molecular
remete às multiplicidades, propriedades fragmentárias, sempre em vias de se
conectar com outras multiplicidades para compor anomalias, diferenças.
Dir-se-ia que, das duas direções da física, a direção molar que se volta
para os grandes números e para os fenômenos de multidão, e a
direção molecular, que, ao contrário, embrenha-se nas singularidades,
nas interações e nas ligações à distância ou de ordens diferentes [...]
macrofísica [...] na outra orientação, a da microfísica, a das moléculas
que já não obedecem às leis estatísticas; ondas e corpúsculos, fluxos
e objetos parciais que já não são tributários dos grandes números,
linhas de fuga infinitesimais em vez de perspectivas de grandes
conjuntos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 369).
Deve-se, neste item, apenas esclarecer o uso destes termos molar e
molecular porque são constantemente mencionados nas citações. No entanto, não
se pretende aprofundar suas especificidades pois, na análise que se pretende, já
temos termos suficientes e que podem neste caso permanecerem como sinônimos,
afim de não tornarmos uma leitura inicial, de cunho dissertativo, que estamos
fazendo no âmbito do Devir, com uma complexidade por demais labiríntica. É que
estes termos estão diretamente ligados com a problemática do desejo, e podemos
nos esquivar ao menos, de discussões muito específicas que são travadas com a
psicanálise. Mas, de alguma generalidade devemos participar. Todo devir é
molecular, e nos confirma Machado (2009, p. 213): “Devir mulher é a produção de
uma mulher molecular [...] é o enlace de duas sensações sem semelhança que cria
uma zona de vizinhança, de indistinção, de indeterminação ou de indiscernibilidade
entre elas.” As intensidades que afetam as entidades molares são liberação de
partículas, troca fragmentária de propriedades da qual o único produto é a
33
defasagem das formas constituídas em devir. Na plenitude do devir não se produz
outra entidade molar.
Na composição de propriedades fragmentárias montam-se as máquinas
desejantes: máquinas de guerra, máquinas de escrita, enfim, agenciamentos
maquínicos. Desejante é a força que impele em direção à diferença. Um maquinário
é quando partes desconstituídas se acoplam em blocos e compõem potencialidades
outras. Um devir-animal é uma máquina que pode ser de guerra, como o inseto de
Kafka que com o seu “piar” foge das significâncias, ou fica imperceptível na
escuridão
do
quarto,
ou
repugnante
às
utilidades
burocráticas,
vivendo
molecularmente uma matilha e não a família estatal. Se estamos quase sempre em
referência a dois termos em devir é por facilidade explicativa. No entanto, os
acoplamentos são rizomáticos; conforme as velocidades e lentidões que se deparam
nos meios, promovem-se alianças.
Alianças são o meio de propagação. Não há filiação, mas contágio, simbiose,
pois não dependem de semelhanças, herança de caracteres, árvore genealógica; é
rizosfera: “vasto domínio das simbioses que colocam em jogo seres de escalas e
reinos completamente diferentes, sem qualquer filiação possível [...] evolução entre
heterogêneos: „involução‟; „o devir é involutivo‟, a involução é criadora [...] bloco que
corre seguindo sua própria linha, „entre‟ os termos postos em jogo, e sob as relações
assinaláveis” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 19). E involução jamais é retrocesso,
são caminhos não assistidos por formas determinantes. Essa informe aliança
desterritorializa as figuras arbóreas, ordenadas por filiações e semelhanças. Aliança
com a qual Cortazar “coloca em questão as dicotomias identitárias e estanques da
humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu como um
devir entre multiplicidades” (CERNICCHIARO, 2011). Enfim, as multiplicidades não
são as multidões molares, estatísticas: população estatal, espécies animais,
vegetais ou minerais como classificação. As multiplicidades vão, nas minorias
humanas, em direção ao anonimato, sem sujeitos constituídos, e a partir daí um
animal nos põe em matilhas, em direção a parasitas, em direção a moléculas,
átomos, o fervilhar do cosmo, ao imperceptível.
[...] em ambos os casos o investimento é coletivo [...] Mas os dois
tipos de investimentos distinguem-se radicalmente, conforme um
incida sobre as estruturas molares que subordinam as moléculas a si
34
[...] o outro, ao contrário incide sobre as multiplicidades moleculares
que subordinam a si os fenômenos estruturais de multidão. Um é
investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto
nas formações coloniais de conjunto gregário, que reprime e recalca o
desejo das pessoas; o outro é investimento de grupo sujeito nas
multiplicidades transversais portadoras do desejo como fenômeno
molecular. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 370)
2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devir-expressivo.
Observemos primeiramente a constituição deste vocábulo composto Deviranimal. O devir é uma força ativa que atrai e desestabiliza uma entidade molar, um
ser constituído. Portanto o segundo termo que compõe o vocábulo será sempre o
componente responsável por tal desestabilização. Neste caso específico, o animal.
No entanto, não é o animal molar (o objeto referente de um vocábulo) que vinga no
devir, apenas seus afectos são tomados em um devir-expressivo. Ou seja, o afecto
animal torna-se a escritura, escreve-se com esse afecto, é um animal de
intensidades que contagia o poder de designação da língua, fazendo com que tudo
que essa língua toque tenha o gosto do animal. Captura as potências perceptivas do
animal em um percepto escritural que, ao nos fazer ler-viver-animal, desinstala as
subjetividades
e
objetividades
que
trazemos
–
enquanto
leitor, enquanto
personagem representante dos quadros políticos humanos, enquanto linguagem de
comunicação.
A meu ver é nesse devir-expressivo das forças minoritárias que deve se situar
a grande importância desse conceito de Devir para os estudos em literatura : é a
linguagem encarcerada compondo saídas com um rato que passa pelas frestas, com
a planta penetrando nas paredes a se nutrir do que parecia o fim da jornada.
Lembremos A Rosa do Povo (2003) de Drummond em que “Uma flor ainda
desbotada ilude a polícia [...] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e
o ódio”. Ou, Claro Enigma (2012), quando “um boi vê os homens”. Ou, ainda, como
veremos logo mais em Murilo Rubião, a angústia que toma conta do personagem
narrador de Teleco o coelhinho quando este pretende transformar-se em homem,
como se isto fosse acabar com a vivacidade fecunda “de um coelhinho cinzento e
meigo, que costumava se transformar em outros animais”. O devir-expressivo é o
devir-outro do animal, das moléculas. Já supracitamos que no circuito de devires
35
não há devir-homem das forças minoritárias. Se há um devir-mar do humano, ao mar
também se impõe um devir, mas em música, em pintura, em escritura: aonde anda a
onda? Já se/nos perguntava Manoel Bandeira e lemos-sentimos que a onda anda na
silhueta sonora e rítmica desses versos. Enfim, no plano escritural, é quando a
escritura convoca os afectos inumanos em sua composição que nos põe em Devir,
“[...] do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais
como das subjetivações pessoais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 51)
Lembrança de um feiticeiro
“[...]enquanto Freud explica as coisas
o diabo fica dando toque”
Raul Seixas .
Podemos distinguir, ante o animal, pelos menos três formas básicas de
agenciamento. O animal molar subtraído pela família, se ntimental, de estima: meu
gato, meu cachorro etc.; onde é regressão, contemplação narcísica, visados pela
psicanálise como projeções de papai, mamãe, irmãozinho . O animal molar
interceptado pelo Estado, pelos grandes sistemas de classificação: de caracteres,
atributos, gêneros – tais como os grandes mitos divinos os tratam extraindo séries
ou estruturas, arquétipos ou modelos. E, enfim, os animais demoníacos, de alianças
moleculares: passagem às matilhas e afectos inumanos, multiplicidade, população.
É preciso ainda evidenciar que nenhum animal, a priori, pertence a esses tipos; é o
agenciamento discursivo, o plano de consistência que irá definir, “Haverá sempre a
possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como
um animal familiar [...] noutro extremo [...] tratado ao modo da matilha e da
proliferação, que convém a nós feiticeiros.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 22)
Antes de nos mostrar como o devir-animal percorre a máquina de escrita,
Deleuze e Guattari nos exemplificam os meios que propiciam um agenciamento
animal como aliança entre multiplicidades em que a literatura envolve-se, de algum
modo, pela potência transgressiva de que participa na modernidade. Dizem-nos que
são com os feiticeiros, nas sociedades de caça, de guerra, secretas, de crime, que
se fazem os contos, narrativas, enunciados de devir:
acarretam toda espécie de devires-animais que não se enunciam no
mito e ainda menos no totemismo. Dumézil mostrou como tais devires
36
pertenciam essencialmente ao homem de guerra, mas à medida que
era exterior às famílias e aos Estados, à medida que conturbava as
filiações e classificações (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 24)
Resgata-nos rapidamente o problema da feitiçaria na Idade Média, pois os
feiticeiros sempre estiveram em posição anômala, nas fronteiras dos campos ou
bosques, assombrando as fronteiras, nas bordas ou entre vilarejos; “[...] o importante
é sua afinidade com a aliança [...] O feiticeiro está numa relação de aliança com o
demônio como potência do anômalo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 28). Assim
eram vistos sob as considerações teológicas. Estas distinguiam duas maldições
sobre a sexualidade: processo de filiação em que se transmite o pecado original; e
as potências de alianças inspirando uniões ilícitas, amores abomináveis, que
impedem a procriação, “[...] e visto que o demônio, não tendo ele próprio o poder de
procriar, deve passar por meios indiretos (assim, ser o súcubo fêmea de um homem
para tornar-se o íncubo macho de uma mulher à qual ele transmite o sêmen do
primeiro)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Assim a aliança guarda uma
potência contagiosa; patcto-epidemia na feitiçaria Kachin, apontado por Leach
segundo Deleuze e Guattari: “a influência maléfica é supostamente transmitida pelo
alimento que a mulher prepara” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Por isso a
expressão pacto demoníaco junto a devir-animal, ou mesmo às outras alianças.
E o que tem de importante nisso para a literatura é a borda afrontada por essa
aliança à medida que abre uma linha de fuga expressiva para fora das significâncias
de famílias e Estados; à medida que perturba as subjetivações, objetividades, as
filiações e classificações que agenciam a linguagem sob um imposto a priori. E aqui
nos aproximamos à figura do Outsider de Lovecraft “a Coisa, que chega e
transborda, linear e
no
entanto
múltipla, „inquieta, fervilhante, marulhosa,
espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 27). Deveremos sempre perceber o Anômalo,
Outsider, que surge como condição de aliança necessária ao Devir, é um encontro
de força irresistível, e pode desencadear muitos devires, mantendo aberta a
passagem, contágio, entre multiplicidades que pode ir cada vez mais longe, por
exemplo, do animal às suas micropercepções do som, da terra, do inimigo etc. A
linha de atração pode até tornar-se linha de abolição levando ao aniquilamento,
distensão molecular completa, como Achab precisava morrer em Moby Dick; ou,
37
como veremos em Rubião, O homem do Boné Cinzento incendiar-se e o
personagem que o observa, que o tem por anômalo, encolher a ponto de virar uma
minúscula bolinha preta. Em Castañeda “[...] os afectos de um devir-cachorro, por
exemplo, são substituídos por aqueles de um devir-molecular, micropercepções da
água, do ar, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 32)
A lógica é simbiótica, por compatibilidades ou consistências alógicas, síntese
disjuntiva, cósmica, agenciados em um meio e todo esse conjunto tomado em um
devir-expressivo, tornando-se materialidade semiótica da escritura-realidade; não há
uma ordem necessária para essas passagens. No entanto, há certo critério. Pareceme que em todo Devir, se não na proximidade direta de uma mulher ou criança,
estão implícitas uma feminilidade e uma infância que dão vazão à borda, a deixar os
animais, os vegetais, enfim, todo o marulho molecular, contar-nos, uma outra
história. O Devir-mulher e o Devir-criança têm o particular poder de introdução aos
devires, de desestabilização do discurso vigente, pois historicamente ainda
predominantemente masculino e adulto; onde até a mulher e criança como
entidades molares, em oposição a homem, e com suas funções estatais e familiares,
tem que devir-mulher-criança. Por isso, não é a feiticeira que contém um devirmulher, mas a feitiçaria: agenciamento de uma sensibilidade capaz de alianças
despreocupadas ou não pré-ocupadas. Assim vemos as princesas que conversam
com os animais, ou a aliança demoníaca de Eva que arrasta Adão ao desestabilizar
a palavra de Ordem, e as Sherazades; vemos as inúmeras crianças das narrativas e
poemas que nos abrem para universos magníficos em Exupéry, Carrol, Manoel de
Barros, Nietzsche, Guimarães Rosa; há sempre crianças e mulheres em momentos
decisivos dos contos de Rubião.
Voltemo-nos, enfim, para concluir direcionamentos para a operação com o
Devir. A aliança ou pacto são formas de expressão para uma infecção ou epidemia
como forma de conteúdo: em aliança com esse anômalo atinge-se a borda em devir,
contamina-se com o estranho. O devir é essa anomalia singular, significativa e real
como conteúdo. Fato que o afastará de ser uma remissão metafórica ou simbólica
que são integrados a vigências semióticas circulares. O Devir poderia até ser
engendrado devido a uma aliança anômala durante a construção de alguma
metáfora , mas o devir seria uma mais valia de código, um ser à parte da função
38
associativa, situação em que um deve sobrepujar o outro dependendo do
agenciamento contínuo; pois devir não é aliquid stat pro alíquo, algo que está por
outro, não tem a dimensão de um representante ) 4. Para o nosso modus operandi
com os devires “[...] mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir
estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em
aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.
25). Assim, é possível divisar na citação a seguir essas formas de tomar o animal;
primeiro volume de Mil Platôs, na sessão “Um só ou vários lobos?”, comentando
uma análise de Freud sobre o Lobo e os Sete cabritinhos, se afirma:
[...] decidiu-se desde o início que os animais podiam servir apenas
para representar um coito entre pais, ou, ao contrário, para serem
representados por um tal coito. Manifestamente, Freud ignora tudo
sobre a fascinação exercida pelos lobos, do que significa o apelo
mudo dos lobos, o apelo por devir-lobo. (DELEUZE; GUATTARI1995,
p. 54)
Como operação de leitura, essa mesma afirmação a respeito dos animais
também se fará para outros elementos, de tentarmos não decidir seus sentidos
previamente; ao menos tendo em vista que seus decalques subjetivos, estatais,
familiares, sociais estarão em desconstrução e não como síntese de leitura.
Estaremos utilizando esses termos explicitados e discutidos neste item “Modus
Operandi em Devir”. Para isso, seguiremos procedimentos parecidos com o sugerido
por Ana Costa Maluf, ao atuar nessa perspectiva, de uma leitura que surge de fato
no encontro, “[...] no encontro-leitura, o crítico forçado pelo encontro [...] com as
forças presente nele” (MALUF, 2011, p. 26).
Distanciando-se de uma interpretação, que toma o texto como representação;
propomos uma experimentação, tomando a literatura como acontecimento.
Trocaremos a pergunta o que isto quer dizer? por o que se passa aqui?, ou ainda,
como se alteram os corpos na implicância de tal ser? No lugar de encontrar sentidos
4
Umberto Eco em Semiótica e Filosofia da Linguagem (1991): p. 63, fala sobre a expressão
latina citada para a relação remissiva; na p. 191, a par de muitas definições de metáfora,
conclui que ela funciona sobre um tecido cultural, universo de conteúdo já organizados em
redes de interpretantes que decidem (semioticamente) da semelhança e da dessemelhança
das propriedades; e na p. 203, a partir de outros autores, como a ordem do simbólico está
fundada na lei, e ainda está como substituição de algo.
39
representados, far-se-á cartografia, navegaremos em notação de um mapa intensivo
do texto: como este dispõe os corpos plenamente constituídos – substâncias e
instituições em longitude –; e as intensidades – agenciamentos, alianças,
procedimentos desterritorializantes – que atravessam, modulam em latitude e
transversalidade, a um ser Outro. Enfim, tentar indicar e discutir como o texto realiza
uma crítica performática – ou as faz não existir – de formas essenciais ou
substanciais, de imagens pré-fixadas sobre a sensibilidade e o pensamento em jogo.
40
3. RUBIÃO EM DEVIR
É preciso manifestar desde o início, devido ao exposto até então, que a leitura
que aqui vai se configurando se põe em um plano distinto dos lugares em que se
assentam as leituras, enquanto representação sobre a obra de Murilo Rubião.
Portanto, de algum modo, não há oposição propriamente dita, mas uma interposição
em que as bases são outras. Pretendo situar a discussão dessa interposição
principalmente junto ao mais icônico trabalho interpretativo de Rubião, a saber, A
Poética do Uroboro (1981) de Jorge Schwartz, utilizando-o como exemplo entre as
leituras com evocações representativas. Considero-o uma brilhante varredura
elucidativa e, realmente, um empreendimento de amplitude e intimidade cuidadosa
que nos proporciona um pleno contato com a obra do escritor mineiro. Longe de
criticá-la em sentido negativo, pretendo expor os diferentes resultados, caminhos e –
na medida possível –, pressupostos, em justaposição. Ao sintetizar considerações,
concluir leituras e sentidos, a análise de Schwartz equilibra-se sobre a figura da
representação
através
dos
arranjos
arquetípicos,
mitológicos,
simbólicos,
metafóricos, subtextos, abrindo uma dualogia e até uma figura teleológica de um
desenvolvimento da obra em geral, o que nos evoca a descrição, por Lyotard, de
uma Metafísica do desenvolvimento que “[...] Assimila os acasos, memoriza o seu
valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento.
(LYOTARD, 1997, p.14), tornando a escritura uma projeção holográfica de sentidos
fundados alhures e representes. Assim, a grande criação de um escritor seria a de
conseguir representar tudo isso muito bem, esse nosso universo humano, com
remissões sutis, intertextos, máscaras. Ainda assim, a cobertura que faz da obra
muriliana é de uma abrangência tão precisa que há considerações de certos
aspectos que, a meu ver, atingem perfeitamente esse outro plano de leitura da não
representação, que não pude deixar de aproximá-lo ao âmbito do devir literário com
leve intuito, apenas colateral, de demonstrar sintomas dessa leitura
não
representativa se mostrando em outros lugares – esses elementos de que me
aproprio estarão indicados nos momentos oportunos durante a leitura nos contos.
Concentremo-nos, por hora, nessas sínteses operacionais na representação.
Esta é tão evidenciada que é justamente no outdoor do livro, a quarta capa em que
encontramos enunciado:
41
Jorge Schwartz desvenda nos contos uma narrativa fundada nas
epígrafes que ilustram cada um dos textos. Elas constituem
fragmentos bíblicos que condensam, de modo sintético e metafórico,
os significados profundos da obra [...] Seja como questionamento ou
como denúncia, a linguagem do fantástico não se limita no texto de
Murilo Rubião a uma experiência lúdica de leitura. Ela serve, para o
autor, de metáfora mascaradora de outros textos – o cristão, o social e
o existencialista – sobre os quais
repousa a obra.
(SCHWARTZ,1981, quarta capa, grifo meu)
Observemos esses “significados profundos” da obra já erigidos na Bíblia;
observemos ainda a preocupação em ressaltar que essa linguagem do fantástico
não se limita à experiência lúdica de leitura, “Ela serve”, devido à ênfase sugerida
implicitamente, para algo mais importante que é justamente essa potência
representativa que sempre supõe uma verdade anteriormente bem fundada. A
superfície da escritura em si, portadora por excelência da experiência lúdica é
implicitamente dita como limitante, numa quase futilidade talvez, se não se permitir
ter certa transparência em direção a esses sentidos ulteriores “subtextos encobertos
pela linguagem do extraordinário: o subtexto cristão, o subtexto social e o subtexto
existencial” (SCHWARTZ, 1981, p. 2). Ainda nessas proximidades afirma-se que se
está “Analisando o fantástico como sistema metafórico global (SCHWARTZ, 1981, p.
2)”. Diante disto, reconvoquemos o que já expusemos de Todorov anteriormente, no
assunto de uma literalidade essencial, de que o fantástico teria como condição o
nível literal e que intermitências alegóricas o enfraquecem ou mesmo o destroem.
Disto, Schwartz expressa perfeita clareza como vemos no capítulo 3 em que discorre
sobre O universo Fantástico: “Fundamentado num universo empírico, sobrevive
apenas na dimensão da escritura, tornando-se paradoxal pela sua capacidade de
nomear aquilo que é e não é ao mesmo tempo.” (SCHWARTZ, 1981, p. 55).
Nessas
imediações
nos
interpõe
uma
série
de
problemáticas
da
verossimilhança, pois a avaliação de um fantástico teria como ponto de referência o
repertório normativo do leitor. Para isso explicar recorre-se à distinção de Roland
Barthes de verossimilhança referencial (que tem um referente) e verossimilhança
discursiva (que tem apenas referência) que, se forem analisados do ponto de vista
do efeito de leitura, constituem uma igualdade. Parece que retornamos à distinção
platônica que identificava uma útil e outra maléfica; temos um confronto de um signo
42
serviente a uma realidade primeira e um signo com referência autoconstruída, sem
transcendência (maléfico, inútil ao mundo de fora), e é aqui que reside o fantástico.
Nesta questão, o que se relaciona com a perspectiva de leitura a que esta
dissertação se propõe não é apenas reconhecer que é nesse nível literal (literatura
como exploração e experiência) que reside um potente efeito de sentido, mas na
positivação dessa literalidade essencial, ou valorização dessa cópia imperfeita,
duplo que tem a potência de ser indócil à semelhança apresentando outra realidade,
sendo articulação de sua Diferença, de um Devir. A superfície, a experiência lúdica
da leitura, é que implode essas estruturas profundas, despóticas e coercivas e que
têm horror a potências que realizam, num mesmo movimento, seu efeito de sentido,
sua estrutura abstrata e sua realidade absoluta - que tem sua espessura na História,
seu efeito positivo e não representativo. Concorda-se que há questionamento e
denúncia, e nem poderia faltar, mas não no fundo, ou sobrecodificado. Os
personagens e procedimentos, os afectos, reagem diretamente sobre esse cristão,
esse social, esse existencial que oferecemos à turba da leitura.
Com certeza esse efeito do “fantástico” se passa com sujeitos plenamente
constituídos (o leitor, por vezes ainda com personagens, arrastando -os de suas
certezas). A meu ver Schwartz brilhantemente detecta em Rubião aspectos que
poderiam muito bem participar deste plano de leitura como, por exemplo, quando
indica momentos em que se chega ao absurdo em forma pura (SCHWARTZ, 1981,
p. 23); o que é um instante de devir próximo ao que Deleuze, em A lógica do Sentido
(DELEUZE, 2011, p. 77), sugere nos paradoxos de Alice, non sens, no tempo do
insensato. Mas para além destes aspectos, o que deverá diferir, portanto, o plano de
leitura a partir da noção de Devir e o representativo – este sob os parâmetros até
então expostos – é não ter os sujeitos ou objetos constituídos – expectativas do
leitor, configurações de mundo exterior, sujeitos, enciclopédia – como medida, ou
partida, da significação; mas como alvo, ou indiferença, das forças informais, que as
porão em devir e à deriva.
Como também já expomos, teremos uma aventura humana diferente; não
como homem animal autobiográfico que afirma contar a história do mundo quando é
tão somente a sua história, como nos diz Derrida (2011) em O Animal que logo sou.
Diante disto os (an?)tropos perdem força, não teremos sistemas metafóricos nem
43
personificação como produção de Devir, mas a forças personífuga. Se ainda há
figura, não tem a ver com retórica mas com uma figura imediatamente estética. Isto
não é anulação do humano, mas uma guerrilha contra o Humano tornado instituição,
portanto, centro propagador silencioso de significantes que impõem seu sentido
como modelo abstrato universal, os sentidos próprios, os próprios do homem [...]
denegação. Ela instituiu o próprio do homem, a relação consigo de uma humanidade
antes de mais nada preocupada com seu próprio, ciumenta em relação a ele.
(DERRIDA, 2011, p. 34); deslizaremos sobre linhas de fuga traçando novas
possibilidades, abertura originária para humanos por vir, ou tão somente, por virtual.
3.1 Teleco o Coelhinho
Três coisas me são difíceis de entender, e uma
quarta eu a ignoro completamente: o caminho da
águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o
caminho da nau no meio do mar, e o caminho do
homem na sua mocidade. (Provérbios, XXX, 18
e 19)
Rubião, 2010, p. 52
Em “Provérbios”, na Bíblia, capítulo 30, há uma estrutura expressiva numérica
com o número “dois” e, mais esporadicamente, com o “quatro”.
Mas, em
predominância, tal como um quarto ponto extrapola o plano matemático, erigido em
um tripé, há ainda uma estrutura bem destacada, como estribilho, na qual se
estrutura a epígrafe, em que três coisas atingem um ponto culminante e uma quarta
rompe completamente. Em tal expressão, o que nos afronta é uma força excessiva,
misteriosa, que interrompe a circularidade da estrutura, deixando como uma ferida
aberta, um quarto ponto que nos encaminha ao contínuo aberto. Isto ainda é só a
sugestão intensiva no plano de expressão.
Tentemos, para início, distinguir um conteúdo: diz-se da dificuldade de
entender o caminho da águia no ar, o da cobra sobre a pedra, o da nau no meio do
mar e, devido a sugestão expressiva, pior ainda, o caminho do homem na mocidade.
Mas algo na própria formação de conteúdo também sugere o incontido e aberto: o
ar, mar e a pedra não têm raias como guia e se rebelam contra a conceituação de
“caminho”; assim, erige um paradoxo que converge a fo rça expressiva e a de
44
conteúdo em um sentido indiscernível, fazendo-nos perceber a mocidade como o
caminho sem caminho, o “aberto” como guia. No texto bíblico, de sapiência e
escolha, é um instante de enorme perigo para a maturidade ou para o governante.
Portanto, é o instante-pré-escolha, mas já em movimento, contendo a futuridade e
todos os passados que ocorrerão em detrimento das escolhas potenciais; de algum
modo, todas as potências estão em ato; ou, o único ato possível nesse instante é
caminhar sobre potências em aberto.
Sob esta leitura, tal é a atuação desta epígrafe: pôr-nos desde o início em
presença e leitura deste aberto, ponto conduzindo para fora do plano e da previsão –
é em continuidade desta atração ao ilimitado que encontraremos o narradorpersonagem ante o mar no início do conto. Quem quer matar, na cozinha, como um
“quadro possível”, escolhe a faca e não a cozinha inteira; ou até a cozinha inteira,
como um serial Killer, mas a recortando da função como parte da casa, e a fazendo
compor um abatedouro. Um recorte torna-se uma totalidade quando é interceptado
como componente para uma nova máquina. Uma epígrafe pode ser utilizada de
várias maneiras: tema, subordinação remissiva de significado etc. depende do
agenciamento que se move. Mas neste caso, recortou-se um elemento inquieto de
texto para compor uma nova máquina expressiva com o que há nessa parte. Não é
mais metonímico – parte pelo todo – mas, a parte como um todo. Se formos ao
próprio texto bíblico, veremos que há um sentido à parte do significado mais geral: é
inevitável um fascínio estético por esse conjunto “ave-ar, serpente-pedra, nau-mar”
que nos faz devir ventos, perspicácia e intempestividades como sentidos; faz com
que “homem-mocidade”, posto no fim, no ponto de desestabilização, reformule-se
em um devir-louco do caminho sem caminho; escolhas e futuros por vir, já
caminhando; pulsão em duas direções ao mesmo tempo; ato feito de potências: “[...]
que não se detêm nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se
ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado [...] na simultaneidade de uma
matéria indócil” (DELEUZE, 2011, p. 1). Tudo isto conectado, mas também rebelde,
ao conteúdo de perigo e negatividade a que se deve tomar cuidado, sugeridos como
significação mais ampla no texto bíblico.
Não é o texto cristão, como significação, que é recuperado; mas as potências
expressivas da águia no ar, da serpente na pedra, da nau no mar que são
45
interceptadas a fazer atravessar um homem reinscrito, por essas expressividades,
numa intensidade significativa desconhecida que extrapola os planos, excesso
“significante” sobre um vazio significado: defasagem provocada: é aqui que o
espectro plástico da linguagem sugere sentidos virtualmente vivenciados mas não
significados, pois são estranhos à enciclopédia da cultura enquanto conhecido,
sendo a articulação de sua diferença: “[...] sejam quais forem as totalizações
operadas pelo conhecimento, elas permanecem assintóticas à totalidade virtual da
língua ou da linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 51).
A narrativa de Teleco o Coelhinho.
“- Moço me dá um cigarro?” Pede-se, interrompendo o “aberto” intensivo da
epígrafe, recupera-se a dinâmica urbana e faz fracassar o “mar” sob este
aborrecimento; o narrador-personagem encontra-se ante o mar, absorvido com
“ridículas lembranças”. É Já um confronto entre os diferentes planos de escritura:
plano
transcendente
que
consigna
e
faz
evoluir
sujeitos
(personagens,
temperamentos, sentimentos) e o plano, por hora do “mar”, que libera as partículas
de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do envoltório
das formas e dos sujeitos; e é interrompendo estes afectos flutuantes que o
incômodo pedido lateja.
- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente,
que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me,
disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto.
Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar
delicadamente. (RUBIÃO, 2010, p. 52)
O Estado psicológico do personagem-narrador está abalado e é tomado em impulso
violento. Por algo como o susto-fascínio de Alice quando o coelho vê as horas, ou
quando cai na toca sem fundo, este estado de sujeito é radicalmente interrompido
pela presença do coelhinho cinzento a interpelar delicadamente. O jeito polido de
dizer as coisas o comoveu, deu-lhe cigarro e afastou para dar visão ao oceano, já
conversavam como velhos amigos, o coelhinho lhe contava acontecimentos
extraordinários e aventuras. Enquanto pedido por um cigarro, sem a figura do
coelho, a urbanidade e a mendicância assumem o sujeito do pedido, interrompendo
46
o “mar” que o consolava; aborrece e o resgata ao estado civil, e para tentar paz,
ameaça com a polícia. Mas, ao deparar-se com o coelhinho cinzento, tudo se torna
meigo e extraordinário, recupera-se e se intensificam os afectos flutuantes: o mar e
um coelhinho delicado, fantástico, de aventuras tamanhas.
Indaga ao coelho onde mora. Este afirma não ter morada certa, habitualmente
a rua. Reparando seus olhos mansos e tristes, convida-o a residir com ele. O coelho,
desconfiado se não gostasse de carne de coelho, transforma-se em girafa e mais à
noite seria cobra ou pombo: “[...] não lhe importará a companhia de alguém tão
instável?” (RUBIÃO, 2010, p. 53). Foram morar juntos.
No começo só alegrias e tensões mínimas, Teleco ajuda idosos e alegra
crianças, é um mundo reaberto para o personagem-narrador. Primeiro atrito grave:
discussão com a cunhada sobre negócios de família; mal humor e agravamento
devido à cena que encontra:
De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam -se
uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal
talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal
ordinário.
- O que deseja a senhora com esse horrendo animal? – perguntei
aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.
- Eu sou o Teleco – antecipou-se, dando uma risadinha.
Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pelos ralos, a
denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o
travesso coelhinho. (RUBIÃO, 2010, p. 55)
Os rituais que recuperam as figuras institucionais interrompem a corrente de
afectos flutuantes, de leveza e liberdade. Os animais, nessas instâncias não o
encantam mais. Teleco, sob a forma de canguru, e agora Barbosa, daí em diante,
seria
“apenas
homem”;
o
canguru
força
um
humano
como
função;
independentemente de suas características físicas, será homem: usa roupas,
óculos, tem uma mulher. Todo esse funcionamento faz fracassar o plano de devir
em que o personagem-narrador o encontra: “cretinice de Teleco em afirmar-se
homem” (RUBIÃO, 2010, p. 55). Tinha até a esperança de que fosse mais um
gracejo, mas que não encontra mais teleco, apenas Barbosa. A complicação culmina
na expulsão deste “filho de um rato” (RUBIÃO, 2010, p. 56). O animal agora não é
mais prodígio, é recapturado pela linguagem comum de um irracional animal; há um
ceticismo na possibilidade de se empregar, dar um trabalho, a um canguru. O animal
47
sofre, em grande parte, reterriotorialização personificado sob as instâncias
medíocres, um canguru que o comove pelo choro. Na verdade, o personagemnarrador ainda se comove com Barbosa por este ter o domínio sobre os sentimentos
de Tereza. É uma comoção extrínseca.
Barbosa segue tomado por personificação, possui hábitos horríveis, cuspir no
chão, vaidade ao espelho, não tomar banho, usa objetos pessoais e íntimos do
anfitrião, maneira ruidosa de comer, anedotas sem graça, lisonjas exageradas,
“homem” repugnante aos olhos do personagem-narrador. Sua figura física também
repugna. Só a repentina atração por Tereza ainda o fazia suportar Barbosa. Tereza
diz-se convicta de que este é um homem. O Canguru aproveita-se do interesse do
anfitrião por Tereza e ainda zomba com firmeza, aproveitar-se de sua hospitalidade.
O personagem-narrador implora para que volte a ser coelho: “Voltar a ser coelho?
Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala. – Falo de um coelhinho cinzento e
meigo, que costumava se transformar em outros animais.” (RUBIÃO, 2010, p.57).
O amor por Tereza, pouca esperança de ser correspondido, pedido de
casamento. Ela responde que “Ele vale muito mais” – Barbosa. As palavras de
recusa de Tereza convenceram-no de que ela tencionava explorar de modo suspeito
as habilidades de Teleco. A partir de então, passa a atitudes agressivas ante os dois
juntos. O Canguru o evitava devido a seu comportamento. Chega ao cúmulo de
revolta ante Tereza e Barbosa dançando tango. Agarra o canguru pela gola, com
violência ao espelho: “É ou não é um animal?” (RUBIÃO, 2010, p. 57).
- Não, sou um homem! – E soluçava esperneando, transido de medo
pela fúria que via nos meus olhos.
À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:
- Não sou um homem, querida? Fala com ele.
- Sim, amor, você é um homem.
Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na
voz deles. Eu decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei
a boca. Em seguida enxotei-os.
Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:
- Farei de Barbosa um home importante, seu porcaria!
(RUBIÃO, 2010, p. 58).
Não mais os vira. Tinha notícia de um mágico de sucesso chamado Barbosa,
acreditou ser mera coincidência. Esvai-se a paixão por Tereza e volta o interesse
por selos em horas disponíveis. Uma noite salta um cachorro à janela.
48
Sou Teleco, seu amigo – afirmou com uma voz excessivamente
trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.
- E ela? Perguntei com simulada displicência.
- Tereza... – sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um
pavão.
- Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi horrível... –
prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.
Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:
- O uniforme... muito branco... cinco cordas... amanhã serei homem...
– as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco
se metamorfoseava em outros animais. ( RUBIÃO, 2010, p. 58)
Tosse nervosa. Fraca a princípio, avultava com mutações de bichos maiores.
Tentava exprimir-se em períodos curtos e confusos. Contínuas transformações. O
personagem-narrador suplica por calma e que parasse. “Não posso – tartamudeava,
sob a pele de um lagarto.” Alguns dias e o mesmo caos e metamorfoses.
Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e
diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre
combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então,
escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato,
ficavam enormes na face de um hipopótamo.
Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a
ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirandome de encontro à parede.
Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia,
trissava.
Por fim, já menos intraquilo, limitava as suas transformações a
pequenos animais, até que fixou na forma de um carneirinho, a balir
tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre,
transpirava.
Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se
aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao
acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No
meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO,
2010, p. 58)
Teleco decide ser homem, o que é repugnado pelo personagem-narrador.
Este desenvolve uma paixão por Tereza formando um triângulo amoroso, Teleco,
agora o canguru Barbosa com formalidades de homem, torna-se um inquilino
abusado. Acaba-se, por vez, por suplantar todo o extraordinário teleco, recuperando
as passionalidades, convivências conturbadas, ser um grande homem social (como
Tereza diz que fará de Barbosa). O enredo linear que se presta em partes ou se
recupera mais facilmente por representações sociais se detém aqui. O que ocorrerá
como desfecho é tão somente da outra história. Mas esta, o plano de devir, reluta
em meio a esta reterritorialização que ocorre a partir da volta para casa.
49
A contrassignificação, o elemento paradoxal e as séries significante e significada.
Teleco é uma desterritorialização absoluta na configuração semiótica do
conto; quem é recapturado é o canguru Barbosa concorrendo à função de homem.
Nos espaços onde Teleco realmente figura, a linguagem está sempre nos limites, no
extraordinário, tendo como sentido irrefratável ou irrefletível, as intensidades que
suscita. Vemos isto na abertura e no desfecho com melhor nitidez. Teleco é excesso
e criador de excessos exprimíveis e não significados. É o elemento apenas de
linguagem, irremissível e com significado apenas virtual sugerido por seu corpo
significante. Todo o triângulo amoroso e sentimentos (ciúme, disputa etc.) se
prestam a representação de quadros vividos com significados já bem circulados
antes mesmo de estarem no conto. Com o advento de Teleco, esses quadros
encontram uma vazão anômala, incapaz de lhes fornecer explicação (predicados
instituídos); este personagem passa a ser a condição única do que se vive e se
sabe. Desse modo, os conflitos do triângulo amoroso não se fixam no motivo
“Tereza”; há um Teleco que foi perdido nos riscos de ser um humano funcional,
bifurcando o que impulsiona o desespero ante o quadro passional-conjugal – o
quadro simplesmente passional-conjugal é rompido. Como se esse instante narrativo
nos dissesse que nem só de pão vive o homem, mas de toda virtualidade capaz de
nos renovar; reiteremos ainda a epígrafe e o quarto ponto que extrapola os planos.
Ademais, o que é Teleco? O que é um coelhinho cinza que se transforma em outros
animais? E por que “é” um coelhinho cinza, se pode ser outros animais de qualquer
cor, de todas as cores juntas, e até espécies que não existem? Se não há predicado
previsto para esse sujeito, se não há uma resposta prontamente significada, é
porque é
tão somente
um conjunto intensivo de abertura e passagem,
multiplicidades sob um nome, potências em ato, uma esfera do Aleph.
[...] no mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas
mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave
que as possuía todas e de espécie inteiramente desconhecida ou de
raça já extinta.
- Não existe pássaro assim!
- Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais
conhecidos. (RUBIÃO, 2010, p. 54)
50
Como vemos nesta citação, Teleco consegue até mesmo desdobrar sua
contrassignificância. Ele próprio, sendo um excesso significante sob a falta de um
significado, designando apenas a si; faz com que suas transformações não sejam
limitadas a cópias de seres existentes, mas ainda a seres sem classificação, figuras
sem designação. Neste ponto as metamorfoses de Teleco atingem o excesso no
plano da expressão, abrindo uma falta no plano do conteúdo: se não é factual tal
pássaro, sua metamorfose não é imitação, mas sim criação, encerrando em si o
sentido. Teleco, como elemento paradoxal, articulador da diferença, circula através
das séries heterogêneas da linguagem:
[...] tem como propriedade o fato de estar sempre deslocado com
relação a si mesmo, „fora de seu próprio lugar‟, de sua própria
identidade, de sua própria semelhança, de seu próprio equilíbrio. Ele
aparece em uma série como um excesso, mas com a condição de
aparecer ao mesmo tempo na outra como uma falta [...] ocupante sem
casa. Determina como “significante” a série em que aparece como
excesso, como “significada” aquela em que aparece em correlação
como falta. (DELEUZE, 2011, p. 54)
Se o elemento paradoxal se impõe como a condição de sentido da narrativa e faz
prevalecer seu sentido irrefratável, é para configurar um regime assignificante de
signos, em pré ou contrassignificância, autoprodutor, não passível docilmente de
interpretação, mas de atividade ou experiência a ser descrita:
[...] pré-significante [...] que conservam formas expressivas próprias ao
próprio conteúdo, assim formas de corporeidade, de gestualidade, de
ritmo, de dança, de rito, coexistem no heterogêneo com a forma vocal
[...] contra-significante [...] procedendo a arranjos mais do que a totais,
a distribuições mais do que a coleções, operando por corte, transição,
migração e acumulação mais do que por combinação de unidades, um
tal tipo de signo parece pertencer à semiótica de uma máquina de
guerra nômade, dirigida por sua vez contra o aparelho de estado
(DELEUZE,GUATTARI, 2011, p. 71-73)
A personífuga
Sob estas mesmas condições, criação e excesso, é que se configura a
“criança encardida, sem dentes. Morta.” ao fim do conto. Mas um pouco antes,
vejamos como um conjunto intensivo perturba o repouso e põe tudo em fluxo-refluxo
até a vazão para esse excesso. Durante todo o processo, os animais fizeram sua
51
parte na guerrilha, carregavam para si as responsabilidades de sentido irrefratável
em devires-animais,
imediatamente
reconduzindo
os
próprios
do
homem,
desapropriando-os, ao devir-cósmico da capacidade mágica de Teleco de conter
potencialmente todas as moléculas animais até mesmo os excessivos, inexistentes
na natureza catalogada.
Os devires sofrem ainda retração ante o canguru-homem em Barbosa,
personificado, reterritorializando tudo em volta e o próprio narrador-personagem na
circularidade das instituições. Mas, quando menos se espera, no salto de um
cachorro, todo um espasmo esquizofrênico pulula, contrai-se e estende-se,
momento em que as dimensões de grandeza ou pequenez perdem suas bases ante
a velocidade das mudanças; são percebidas e medidas intuitivamente pela lágrima,
pelo enfrentamento da boca e o alimento que se tornam incompatíveis com as
frenéticas metamorfoses. Agoniza -se e goniza-se, cria-se: a criança tal como se
apresenta, se é insucesso, é do ponto de vista do plano transcendente, de
formalização estável e circularidade significativa, de compatibilidade entre expressão
e conteúdo. Mas é a conquista difícil, sofrida, elemento vencedor que se fez fora do
plano humano instituído; e, se projeta um humano, é outro completamente por vir,
ilegível, incompatível, irreconhecível, não recuperável integralmente por símbolos,
nem oferecendo propriedades equacionadas na troca das economias metafóricas,
não desceu das árvores, signo desfigurado, encardido, sem dentes.
Quero retomar aqui um esquema de Schwartz, a respeito da epígrafe do
conto, que estende a circularidade significativa e recupera uma estrutura mítica.
(SCHWARTZ, 1976, p. 14-15)
Atribui-se ao homem na sua mocidade a metáfora fogo, completando os
quatro elementos do universo mítico e sugerindo “a procura” como um fazer
universal, na medida em que todos os elementos componentes do universo tornamse sujeitos da ação. (SCHWARTZ, 1976, p. 14-15). Problematizando o homem na
geração dos que buscam: homem, insensatos, cavalos, águia, cobra, nau, o põe
52
justamente na vizinhança estranha do inumano molecular. Mas não é que o homem
catalise em si os outros elementos do universo – como se sugere. Antes, provoca
uma vazão para que o universo o catalise. Além do mais, na zona desses
elementos, o universo é de um caráter pré-significante, anônimo, sem deuses
individuados ou hierarquias, some nte elemento e força; o que também não se presta
a representações definidas, mas apenas a atividades, velocidades e lentidões,
aglomerações e retrações, involuções como sentido, caminhos não assistidos por
formas determinantes. Essa informe aliança desterritorializa as figuras “arbóreas”,
ordenadas por filiações e semelhanças. Coloca em questão dicotomias identitárias e
estanques da humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu
como um devir entre multiplicidades. Portanto, a partir deste mesmo “modelo mítico”,
não se concorda aqui com a síntese:
Teleco, na ânsia de achar uma linguagem identificadora com o seu
mundo circundante, assume as mais diversas formas: a última delas, a
humana (criança morta) – símbolo de seu inútil e derradeiro esforço.
As metamorfoses de Teleco se configuram então como uma
verdadeira sintaxe espacial rotativa – símbolo da sua procura de
identificação com o ser humano. Este processo de contextualização,
como desejo de identidade com o espaço exterior [...] (SCHWARTZ,
1997, p. 42)
Não há em Teleco essa impotência de identificação com a forma humana, deveria
ser potente o suficiente para isso, transformava-se no que nem existia. Nem é
incapaz de identidade com o espaço exterior: era mágico, já fazia parte do cosmos.
O que há é a humanidade como problema, aprisionamento dos fluxos libertos.
Portador destes, Teleco não suportou os conter sob uma forma identitária fixa, de
linguagem circular, a casca do homem civilizado. Teleco talvez tenha se perdido,
nos caminhos de suas transformações no labirinto complexo humano, pensando
aqui em uma sugestão de Lyotard, de dois inumanos: o fundo inumano onde tudo é
potencialidade e renovação, onde temos uma dívida com a infância; e o civilizado,
do desenvolvimento, que eu me tentaria a chamar de desumano: [...] que mais resta
de “político” que não seja a resistência a esse inumano? E que mais resta, para opor
resistência, que a dívida que toda alma contraiu com a indeterminação miserável da
sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o outro inumano?
(LYOTARD, 1997, p.15). E, num limite intensivo entre as forças personífuga e
53
personípeta, satura-se em um ser que é ato com todas as suas potências
implicadas; é este elemento imediatamente expressivo, casa vazia de significado,
que põe a vibrar, que cria, esse sentido da forma sempre insuficiente ou despótica,
sempre em busca – neste ponto concordando com Schwartz – do disforme,
desfigurado, encardido, sem dentes.
3.2
Simples Dragões
“Fui irmão de Dragões e companheiro de avestruzes.
(Jó, xxx, 29)”
(RUBIÃO, 2010, p.47)
Em Os Dragões, onde se localiza e como se constrói o excesso significativo,
contrassignificante, a-significante; instantes em que o simulacro rompe o modelo e
passa a propor uma singularidade imediata como sentido? Neste conto não é tão
simples, pois há tramas muito próximas que se interpõem em jogo de forças: o plano
transcendente – representativo, em que as instituições significantes forçam a sua
circularidade, erigindo interpretantes e interpretados, universo já decidido alhures –;
e o imanente – linha de fuga que cria eventos embaçados de tal forma que não se
deixa refratar, sugerindo-se como única coisa a ser vista, ser do qual não se pode
extrair nada sem multilar, mas apenas participar do fluxo de seus afectos, coexistir
em seu mundo, experimentar. Se nos rendêssemos apressadamente ao primeiro,
poderíamos abrir uma cadeia infinita de associações representativas – assimilação
totalitária da diferença, tornando o texto uma sentinela guardando e portando o
codec – e negligenciaríamos alguma criação singular.
Vamos à narrativa, acompanhando o personagem-narrador. “Os primeiros
dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos
costumes” (RUBIÃO, 2010, p. 47). Poucos os compreenderam, foram a lvo de muitas
suposições sobre seu país e raça de origem. O vigário (o velho gramático) afirma
que apesar da docilidade, eram enviados do demônio, por isso não permite ao
personagem-narrador, suposto professor, educá-los; e ordena que sejam encerrados
numa casa velha, exorcismada e isolada; nega-lhes a qualidade de dragões: “coisa
asiática de importação europeia” (RUBIÃO, 2010, p. 47).
54
Um leitor de jornal falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se,
mencionando mulas sem cabeça e lobisomens. Já as crianças, “Apenas as crianças,
que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos
companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.” A
polêmica cansa e evitavam o assunto. Logo mais voltam ao assunto com o pretexto
de “aproveitamento dos dragões na tração de veículos” (RUBIÃO, 2010, p. 47), mas
houve decepção na partilha dos animais devido ao número em relação aos
pretendentes.
O padre interfere novamente e “os dragões receberiam nomes na pia batismal
e seriam alfabetizados.” (RUBIÃO, 2010, p. 48) Narrador-personagem irrita-se: “São
dragões! Não precisam de nome nem de batismo!” (RUBIÃO, 2010, p. 48), perplexo,
o reverendo abriu mão do batismo e o personagem-narrador resigna-se à exigência
de nomes. Subtraídos ao abandono são entregues ao personagem-narrador, em seu
exercício de magistério, para serem educados. Contraíram moléstias, diversos
faleceram. “Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos” (RUBIÃO, 2010,
p. 48), os mais bem dotados em astúcia, fugiam e se embriagavam.
O Dono do bar se divertia e até dava bebida grátis, a princípio; logo mais,
enfadado negava-lhes o álcool. Para se satisfazerem os dragões viram-se forçados
a furtos. O personagem-narrador “acreditava na possibilidade de reeducá-los”
(RUBIÃO, 2010, p. 48); com a amizade do delegado sempre os retirava da cadeia
(roubo, embriaguez, desordem). “Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia
a maior parte de tempo indagando pelo passado deles, família e métodos
pedagógicos seguidos em sua terra natal.” (RUBIÃO, 2010, p. 48). Vieram jovens e
tinham lembranças confusas “inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício,
logo após a escalada da primeira montanha.” (RUBIÃO, 2010, p. 48-49).
Ainda havia o mau humor devido às noites mal dormidas e ressacas
alcoólicas. Continua-se o exercício do magistério, e a ausência de filhos contribuiu
para que o mestre “lhes dispensasse uma resistência paternal. Do mesmo modo,
certa candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a
outros discípulos”. Odorico, o dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades,
alvoroçado por saias “principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas.
As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo
55
para viver com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49) O personagem-narrador, tenta destruir a
“ligação pecaminosa”, sem conseguir combater “[...] uma resistência surda,
impenetrável [...] palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel
e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava”. (RUBIÃO,
2010, p. 49). Junto à mulher o dragão Odorico é encontrado morto, rumores de tiro
fortuito e erro de caçador, mas o olhar do marido abandonado pode desmentir a
versão.
O carinho é transferido para o último dos dragões, recuperado e afastado da
bebida. “Nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência [...]
aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as
compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança . Carregava-os nas
costas, dava cambalhotas” (RUBIÃO, 2010, p. 49). O professor encontra sua “[...]
mulher preocupada: João acabara de
vomitar fogo.
Também apreensivo,
compreendi que ele atingira a maioridade” (RUBIÃO, 2010, p. 50) O fato fez crescer
a simpatia que dragão João tinha entre moças e rapazes. Agora demorava-se pouco
em casa, sempre em grupo cobrado a alegrar soprando fogo, cheio de vaidade, toda
festa solicitava sua presença, mesmo as religiosas.
“Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município”
(RUBIÃO, 2010, p. 50), vem um circo com eventos extraordinários e um homem que
engolia brasas. Jovens interrompem o ilusionista e anunciam que têm coisa melhor.
Sob a réplica desafiante do circo João desce e vomita fogo. Recebe e recusa
propostas para trabalhar no circo “[...] dificilmente algo substituiria o prestígio de que
desfrutava na localidade. “Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito
municipal” (RUBIÃO, 2010, p. 50).
Várias são as versões sobre a fuga de João, dentre elas, amores por uma
trapezista – talvez estratégia do circo para seduzi-lo –; e também se iniciara em
jogos e retomara o vício da bebida; ao fim, o narrador-personagem-mestre: “Seja
qual for a razão, depois disso muitos dragões tem passado pelas nossas es tradas.
“E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que
permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas,
encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos” (RUBIÃO,
2010, p. 51)
56
Em “Os Dragões”, num volume quantitativo, poderíamos dizer que o plano
representativo-humano predomina: temos todo um cenário com sujeitos da variada
atividade humana: o padre, o professor, o delegado, a esposa, as crianças, a
educação, a igreja, o entretenime nto (circo), a cidade e toda a civilidade. E o que
fazer com a trama que treme a contrapelo: abrupto aparecimento de Dragões de um
modo “a-histórico desprovido de contexto” (SCHWARTZ, 1981, p. 39) e a
insalubridade, a apatia e o sumiço ao ser inscrito nessa ambiência humana.Temos
uma problemática da alteridade, justamente onde os devires se acendem.
Mas a alteridade também não cessa de ser subjugada, arquivada e
redistribuída – e é intrinsecamente na linguagem que isto se dá – na economia de
equivalências e semelhanças, onde a diferença é subordinada à identidade;
teríamos como representações, por exemplo, (alteridades recapturadas) as
contrastantes
civilizações
(bipolaridades
ou multipolaridades
da
geopolítica,
colonizador-colonizado), o marketing estético e as demasiado morais “belezas
interiores” (belas e feras, feio por fora, bonito por dentro), os mitos dos contrários, o
patinho feio (lido como desenvolvimento da feiúra em beleza) etc. Mas não teríamos
ainda uma alteridade radical, fora dessa apropriação global-capitalista das
diferenças que as devolve como produto e consumo, agenciando os sujeitos, e as
subjetividades, no momento mesmo em que falam, veem ou ouvem . Tal alteridade,
ficando mais distante ainda de escapar a um fundo mais imperceptível e implacável,
poderoso centro irradiador, aquela autoridade dada por Deus a Adão, o eixo
humanístico de classificação “[...] esse homem da gleba, criado como réplica de
Deus [...] recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve para
obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, em verdade, seu poder
de domar”. (DERRIDA, 2011, p. 35); ou mesmo em recapturação tropológica, em
codecs metafóricos, alegóricos, realizando com esses dragões o que Derrida temia
fazer ao gato:
[...] a reapropriação antropomórfica teria começado, uma
domesticação mesmo poderia já estar em ação se eu cedesse à
minha própria melancolia; se me engajasse, para escutá-lo em mim, a
sobreinterpretar o que o gato poderia assim, à sua maneira, dizer-me,
[...] sugerir ou simplesmente significar em uma linguagem de traços
mudos, isto é, sem uma só palavra [...] desejo assim confessado de
escapar à alternativa da projeção apropriante e da interrupção cortante
57
[...] não estou disposto a interpretá-lo ou a senti-lo em negativo
(DERRIDA, 2011, p. 40)
Mas há um Devir-Dragões a fender intervalos fatais nessas circularidades, a
interromper – atrevendo-se a criar – a base humanística semio-despótica com a
emissão de um signo excessivo: dragões fora do catálogo, que por mais que se
tente identificá-los, acabam traindo a tradição dos dragões mitológicos, bem como
fazendo vacilar, com certos afectos, a estabilidade das instituições que os
cooptaram por vários momentos e, ao final, deixam os humanos por ver apenas sua
partículas desejantes seguirem afetadas com os dragões.
Em inversão a um conhecido colonialismo, no conto, os homens da cidade
não vão ativamente até a alteridade (os dragões); esta é que chega de surpresa,
pondo-nos (o narrador e o leitor implícito que implica a nós do lado de fora, deixando
tudo em coexistência) em situação de passividade e um mal-estar sobre o que
concordo tranquilamente com o que diz Schwartz: “A necessidade de justificar
racionalmente a origem dos Dragões torna-se um imperativo, já que a sociedade
nega a condição de indivíduo ao ser a-histórico desprovido de contexto social”
(SCHWARTZ, 1981, p. 39). Esta passividade e mal estar inicial, esse ataquesurpresa de uma a-historicidade repentina é o primeiro golpe do devir que se
configura, é o delirante encontro com o anômalo-dragão, elemento de fronteira que
faz Deleuze sempre lembrar de Lovecraft com o Outsider, coisa que transborda. É
justamente na borda da cidade que se passam os instantes decisivos do DevirDragões – como nas bordas do conto, início e desfecho.
O anômalo está sempre na fronteira, sobre a borda de uma banda ou
de uma multiplicidade; ele faz parte dela, mas a faz passar para outra
multiplicidade, ele a faz devir, traçar uma linha-entre. É também o
“outsider”: Moby Dick, ou então a Coisa, a Entidade de Lovecraft,
terror. (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 56)
Mas como o disse Schwartz, a necessidade de racionalizar é imperativa, essa
“vocação para extrair o indeterminado dando-lhe forma, e que desta acção não pode
deixar de sair triunfante” (LYOTARD, 1997, p. 12). E a partir daí, temos o embate
entre devir ou ficar. O primeiro contra-golpe a essa Coisa intempestiva é o do
vigário, velho gramático, afirmando serem enviados do demônio e não permitindo a
sua educação; segue-se então o processo cadastral: o leitor de jornal que falava em
58
monstros antediluvianos; o povo benzendo-se, abrindo seu arquivo com mulas sem
cabeça e lobisomens. “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os
nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões.
Entretanto, elas não foram ouvidas.” Logo mais, dedicaremos bastante ouvido para
elas; fiquemos com as outras considerações.
As considerações do vigário, a do leitor de jornais com uma fraca formação, e
a do povo com seu ato de benzer-se, corroboram a vestir o dragão com a figura
demoníaca. Deleuze e Guattari põem os estranhos devires como pactos
demoníacos. Afirmo que ironicamente, pois não recuperam aí a figura mitológica do
demônio, mas o fato de que assim eram identificados pela doutrina religiosa, devido
à aliança herege que se realiza – o feiticeiro, as bruxas, com os animais, os
vegetais, com os elementos químico-físicos etc. –, ou seja, traem a palavra de
Ordem; compõem novos sentidos não subalternos ao centro de verdades das
catedrais e castelos. Nestes lugares, dessa formam, localizam-se forçosamente o
elemento estranho em uma origem de registro, detendo, portanto, os protocolos
autorizados de julgamento (padre/déspota, codec).
Logo depois, vem a apreensão dos dragões pela utilidade possível, pela
economia e técnica: animais domésticos e de trabalho, aproveitamento dos dragões
na tração de veículos – com insucesso devido ter poucos dragões para muitos
pretendentes.
Por fim, decide o vigário, a apreensão mais grave do estranho:
“receberiam nome na pia batismal e seriam alfabetizados” (RUBIÃO, 2010, p. 48). O
narrador-personagem-mestre irrita-se: “São dragões! Não precisam de nome nem de
batismo!” (RUBIÃO, 2010, 48). Reação de um espírito já fascinado com a alteridade
do dragão e que resiste a algo que faça cessar esse devir. Perplexo, o reverendo
abriu mão do batismo; o outro, cede à exigência de nomes. Segue-se então a trama
da nomeação, educação e participação social: “Segundo os homens (integrados e
representativos da sociedade) os dragões não podem subsistir no meio social sem a
palavra. Justifica-se então a necessidade de atribuir-lhes nomes e sua posterior
alfabetização” (SCHWARTZ, 1976, p. 39). Ainda na leitura de Os Dragões já
mencionamos esse domínio a partir da nomeação, desígnio de Adão por Deus, junto
à citação de Derrida. Este, como no questionamento com o gato, ainda tem muito a
nos dizer sobre essa dominação:
59
é como se o gato lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer
uma só palavra, o relato terrível da gênese. Quem nasceu primeiro
antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito
tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O
sujeito? Quem continua muito tempo sendo o déspota? (DERRIDA,
2011, p. 39)
Os dragões participam da sociedade, bebidas, namoros, travessuras fora da
lei; agora com identidade, cadastrada sua pessoa física; e estão sendo alfabetizados
pelo mestre que não descola de sua fascinante presença – o nome fora aplicado,
mas o batismo fora impedido, mantendo a ligação “demoníaca”. O narradorpersonagem-mestre encontra os olhos dos dragões de um modo delirante “certa
candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a outros
discípulos” (RUBIÃO, 2010, p. 49) Encontro este perigoso, pois é um dos instantes
em que a instituição e a traição da fixidez duelam mortalmente. Um ou outro: “teatro
de ressentimento e culpabilidade. [...] Em seu rosto e em seus olhos sempre se vê
seu segredo” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 60), e o devir é ne utralizado, o Outro é
subjetivado, contido, com toda a carga da humanidade de pecados e culpas. Ou
então
Por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo
inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo qualquer lógica
está ausente... O olho liberado de si, não revela nem ilumina mais, ele
corre ao longo da linha do horizonte, viajante eterno e privado de
informações (Henri Miller. Tropique du crpricorne. Chêne, p.177 in:
DELEUZE/PARNET, p. 59)
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito
“animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o ahumano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir
da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim
pelo nome que ele acredita se dar. E tudo pode me ocorrer, eu sou
como uma criança pronta para o apocalipse, eu sou o próprio
apocalipse, ou seja, o último e o primeiro evento do fim, o
desvelamento e o veredito. Eu sou o apocalipse, eu me identifico a ele
correndo-lhe atrás [...] atrás de toda a sua zoologia. (DERRIDA, 2011,
p. 31)
E então é o devir-dragões que continua a agir, mesmo com toda forma de contenção
realizada, como um presságio indeterminado de liberdade.
60
Quando sugere-se a composição “mestre-personagem-narrador”, é para
tentar registrar um delírio no discurso narrativa deste conto, que é a bifurcação do
personagem que ora é personagem-mestre e suas ações estão enquadradas no
quadro social de colonização da alteridade-dragão; ora é narrador-personagem, com
um discurso anti-mestre, contra sua funcionalidade, este que não participou dos préjulgamentos no início sobre os dragões e que ouviu as crianças em sua voz frágil e
sem vez, fascinado pela singularidade dragonácea (interessante termo cunhado por
Schwartz (2010, p.39) para referir a alteridade dos dragões não inferida da
significação dos humanos da cidade). Mas mesmo esse narrador fascinado, mesmo
raramente, ainda sucumbe por instantes ao mestre, e o deixa afirmar que Odorico, o
dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades, alvoroçado por saias
“principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres
achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver
com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49). Esse instante narrativo, ele mesmo, é imbuído de
hierarquia familiar, “irmão mais velho”; de violência à alteridade naturalizando
comportamentos adquiridos, “vagabundagem inata” 5; o mestre ainda tenta destruir o
que testemunha como relação pecaminosa de Odorico com a mulher de outrem. O
narrador não encontra mais os olhos do dragão que direcionam em sorrisos para a
mulher. E neste ponto, junto com o narrador, perdemos de vista o devir -dragões que
vemos completamente afogado na circularidade social – ainda assim, com infrações
penais. Odorico é encontrado morto, de tiro, sugestivamente passional.
O carinho do mestre é direcionado para o último dragão, que é recuperado de
vícios sociais e dedica-se aos estudos. Aqui ocorre uma trama familiar e uma nova
complicação com o devir. Segue o narrador a respeito do dragão João, sugerindo
que nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência, “[...]
aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as
compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança. Carregava -os nas
costas, dava cambalhotas (RUBIÃO, 2010, p. 49). O devir mostra sinal de vida. Ao
mesmo tempo em que é inscrito na instituição familiar, ainda porta uma vazão
anômala, demoníaca; a anomalia ocupa hereticamente, e positivamente, o lugar do
5
Neste fato, até revemos, por exemplo, a fofoca preconceituosa que se faz no Brasil sobre a
preguiça “inata” do indígena.
61
filho, o lugar da descendência. A árvore é desviada, trai a raiz, cria um vínculo
lateral, rizomático, conjunção disjuntiva, proliferação sem filiação. O mestre tem
esposa, mas não filhos; ouve as crianças e é o único a testemunhar a
indeterminação insistente dos dragões. As dragonidades se agravam e a esposa
alerta que João cuspira fogo. Narra -se que sua maioridade chegara e a reapreensão
dos atributos dragonáceos se opera novamente, a simpatia entre as moças e
rapazes aumentam a se ver, nesse fogo, entretenimento e pirotecnia, showman,
mesmo nas festas religiosas. Inscrevem-no no jogo das disputas ao abrir um desafio
entre seu atributo dragonáceo – traduzido, abduzido em artifício, ilusionismo,
“costumeira proeza de vomitar fogo” – e o ilusionista do circo. O circo gostaria de
contratá-lo, mas houve recusa, nada superaria seu prestígio e até planejava futuros
– o que poria totalmente abaixo sua preciosa a-historicidade –, ser prefeito.
Mas, silenciosamente, uma linha de fuga. Ninguém sabia do desaparecimento
de João, e tal como veio, restava m apenas vagas conjeturas; vagava por rumores.
Fugiu novamente para sua a-historicidade, carregando consigo, levando -os até à
borda da cidade, o narrador-personagem fascinado que traiu definitivamente o
mestre. “Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro,
mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro.
Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 53);
conjuntamente com as crianças, os alunos, a insistirem que os dragões
permaneçam sem receber resposta. Nessa estrada, na borda e além, talvez não
haja palavras, nem linguagem capaz de chamados, apelos ou frases, nem de
respostas. Somente aquele fundo obscuro em que aquelas crianças e o
personagem-narrador, com os quais somos arrastados , puderam experimentar e
permanecerem afetados por dragonidades singulares irreversíveis – não as
catalogadas –, onde uma mesma força inumana originária compreende dragões e
humanidades.
Da experimentação e da interpretação
Diferentemente do que ocorreu em relação a Teleco, o coelhinho, com Os
Dragões houve uma maior conjugação com a leitura realizada por Roberto Schwartz.
A trama da crítica ao humano é bem desenvolvida pelo crítico e na descrição bruta
62
deste aspecto quase não acrescento. No entanto, nas sínteses e conclusões, na
cauterização afirmativa da leitura, ainda é preciso diferenciar. Apesar de indicar
muito bem como os humanos eram totalitários em sua supremacia discursiva sobre
a alteridade dos dragões, certas considerações suas, do lado externo também o são
– sob a perspectiva de leitura em contra-representação desta dissertação – ao
realizar uma genealogia da origem dos dragões, da tradição mitológica que devem
participar, aferindo com isso significados ao conto.
A ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que
sejam eliminados os atributos “dragonáceos” [...] A crítica à sociedade
e ao homem é levada até as últimas conseqüências, através de uma
inversão nos valores convencionais atribuídos ao dragão. [...] no nível
conotativo [...] assim como a serpente, que, à diferença do dragão,
possui referente concreto-real, a tradição literária ocidental
convencionou o dragão como símbolo do mal (SCHWARTZ, 1981, p.
39/40)
Pretendo argumentar, aqui, que esses dragões criados por Murilo Rubião, são
signos excessivos, escapam à enciclopédia dos dragões e que mesmo uma inversão
simbólica não os contém, pois não os tira do eixo do bem e do mal. Os dragões de
Rubião são plasmados em um percepto bem diferente dos dragões mitológicos, sem
tonalidade épica nem de combate. Em que se parecem com os dragões de
“Hércules, Sigurd, São Miguel, São Jorge” (SCHWARTZ, 1981, p. 40) no eixo do
bem e do mal? Neste conto, se não estão sendo “o mal” também não são “o bem”
moralmente construído pelas doutrinas onde essa tradição simbólica do dragão se
formou. Estes dragões são justamente a suspensão dessas alternativas sobre o
mesmo eixo, em prol de pluralidades indeterminadas. A apropriação humana e
social criticada no conto deve atingir a noção de “bem” como constructo seu. Dessa
forma experimentamos os afectos desses dragões de um modo totalmente outro dos
dragões mitológicos; eles traem também a árvore de seus ancestrais. O que se
percebe neles no contexto do conto, é ainda o que se nos apresenta para o mundo
de cá, tal como afirma Schwartz neste trecho.
O Dragão surge como elemento “puro”, sem contexto nem história, e
instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade. [...] Os
meninos assim como os Dragões, vêm ao mundo desprovidos de um
repertório preconceitual, e não apenas sua origem mas o percurso dos
dois dentro da sociedade é análogo [...] por isso as crianças são as
únicas que conseguem perceber os Dragões do modo que eles são:
“simples dragões” (SCHWARTZ, 1981, p. 40)
63
É somente agora que quero relacionar a epígrafe, uma vez que é sugestivamente tomada
como remissão, como alusão a um texto anterior, como quem dá continuidade em
representações e participa de uma metafísica do desenvolvimento. Diferentemente de aludir,
de confirmar informações; o que Rubião conseguiu realizar com a obsessão das epígrafes é
que são um furo, uma vazão entre as realidades implicadas nos textos, por onde passam
corpos e potências de lá para cá e daqui para lá; é um roubo de forças, como um gato de
energia elétrica. Neste caso específico, se apropria apenas do corpo-dragão e sua potência
muda, imediata e sem comentários, presença de dragão. Não fez questão de corroborar sua
carga simbólica no contexto bíblico e, ainda, devido à vazão contrária, o ironiza.
Há uma imanência ao corpo-dragão, que somente por raríssimas traduções seriam
possíveis o seu recorte para epígrafe; ou então Rubião tenha arriscado versões do latim.
Devido às interpretações na circularidade dos significados reciprocamente substituíveis, em
pelo menos quatro versões não encontro os dragões, mas chacais; e no lugar da ave citada,
umas “avestruzes”, outras “corujas”. Em Jó, 30, 29 temos:
a) Tornei-me irmão dos chacais, companheiro das corujas 6.
b) “Irmão me fiz dos chacais, e companheiro dos avestruzes” 7.
c) “tornei-me irmão dos chacais e companheiro das corujas” (HItcook, 2005,
p.573)
d) “sou irmão dos chacais e companheiro de avestruzes” (A Bíblia Sagrada,
1980, p.553)
e) “frater fui draconum et socius strutionum”. Acompanhada de uma tradução em
Inglês, na qual se mantêm os dragões e fica-se com as corujas (I am a
brother to dragons, and a companion to owls.) 8
No contexto bíblico, Jó assim se expressa devido não estar mais aos cuidados do
Pai, estando em penúria, sendo desprezado por todos, inclusive pessoas
desprezíveis; é banido do convívio social, de modo que tenha tido somente animais
asquerosos como companhia. Se na tradução o chacal é autorizado ao lugar de
dragões é porque o que importa é generalidade simbólica de “mal”, asqueroso; e o
6
http://www.bibliaon.com/jo_30/
acesso em 18/11/2013
7
http://biblia.gospelmais.com.br/jo_30/ acesso em 18/11/2013
8
http://latinitas.org/biblia/iob.pdf acesso em 18/12/2013
64
que importa é falar de algo mal em oposição um bem (estar sob os cuidados e
aceitação de Deus).
Em Rubião esse contexto não se conecta. O título de seu conto é o critério, o
que interessa é apenas o corpo-dragão que será todo recriado em se u conto – caso
contrário, chacais caberiam também –, não é tomado como asqueroso nem figura do
mal, nem de submundo – a não ser pelo discurso criticado no conto. É mesmo
instância de fascínio, paira indiferentemente ulterior ao bem e ao mal, com toda a
simpatia infantil. A coruja ou o avestruz nada integram. E como encaixar a figura de
Jó se, para esse, os animais estão em negativo, no submundo da bruta miséria
humana da irracionalidade, aliança impura de sua condição deplorável. Fora da dócil
integração remissiva, há mesmo uma salutar traição: “Sempre há traição em uma
linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu
futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem
futuro. Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p.
53). É um drible na historialidade:
Quanto à história, à historicidade, em verdade à historialidade [...]
pertencem precisamente a esta autodefinição, a esta autoapreensão, a
esta autossituação do homem e do Dasein humano em relação ao
vivente e à vida animal, a esta autobiografia do homem que pretendo
questionar hoje [...] todas essas palavras, e em particular a história,
pertencem de maneira constitutiva à linguagem, aos interesses e aos
enganos desta autobiografia (DERRIDA, 2011, p. 49/50)
Enfim, uma última consideração sobre o trato representativo de os dragões.
Bildungsroman às avessas, pois o caminho da aprendizagem conduz o
discípulo à sua perdição, dissociando-o totalmente do meio ao qual ele
deve inicialmente se integrar. A sociedade funciona assim como
elemento contaminador e propagador do mal. Participar dela equivale
à condenação de deixar-se contagiar pelo ser humano. A opção de
permanecer fora da cidade é tão inexistente quanto os próprios
dragões – serve apenas como artifício ficcional de uma opção
inverossímil. A “entrada da cidade” é o limite entre o céu e o inferno,
entre o paraíso e o mundo terrenal. Nem os homens podem transpô-la,
nem os dragões se atrevem a voltar, sob pena de que a maldição da
existência recaia sobre eles, ao repetir o percurso irreversível de Adão
e Eva. Não há uma segunda vinda para os dragões: São eles símbolos
de uma possibilidade para a qual o homem se volta, numa tentativa
frustrada de recuperar o passado. “Fui irmão de dragões”, diz a
epígrafe do conto – e não é casual a similaridade estabelecida: roto o
65
elo que liga o homem ao dragão, rompe-se a possibilidade de
salvação do primeiro. Os dragões passam então a subsistir na cultura
humana como reminiscência e como vontade; permanece o homem
lutando nas portas da cidade, lutando entre o devaneio do passado e o
gesto incalculável do futuro. O tempo que lhes resta é o presente da
condenação: “postados na entrada da cidade”, batalham aqueles que
não conseguem esquecer o lembrete de Dante: Lasciate ogni
speranza voi che entrate. (SCHWARTZ, 1981, p. 41)
Há talvez o reverso de um “Romance de Formação”, romance de deformação, talvez
melhor, performação, e sugestão aberta a extrapolar princípios do humanismo; mas
bem fora do jogo de perdição e salvação. 9 Como os dragões podem não existir após
todo o transtorno que causaram? Que tem de celestial e infernal, no que acabamos
de passar? Que há de Adão e Eva, a não ser a supremacia do nome? Como o
desejo agenciado aos dragões é de salvação? Os dragões são santos? Sim, os
dragões subsistem como desejo; não como lembrança, mas como contágio: para
sempre haverá aquelas singulares dragonidades naquele homem que deu ouvidos
ao testemunho das crianças, que é tomado em um Devir-criança que o conectou aos
dragões10; que deu ouvidos ao mistério irrefratável para nós de que sejam simples
dragões, algo que nos contamina do simples, em longas filas, para bem longe do
“assim na terra”, com o que há de simbólico por baixo, e de “como no céu”.
Realmente há algo de condenação na cidade, da permanência, do mesmo,
pela significância, protocolos – mais ao modo da colônia penal de Kafka –; mas não
há santidade ou salvação com os dragões, o que seria a outra ponta da mesma
doutrina. Há desvio, recomeço, amnésia criadora, arquitetada heresia da inocência
tornada escritura: “meio de orientação para conduzir uma experimentação que
ultrapassa nossas capacidades de prever [...] Experimentem, nunca interpretem.
Programem, nunca fantasiem” (DELUZE/PARNET, 1998, p. 61).
9
“Bildungsroman é um tipo de romance que se caracteriza pela formação do
protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de
síntese entre práxis e contemplação”. Consideração sobre o romance de formação a
partir do artigo de Flavio Quintale Neto (Doutorando em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela USP e professor dos cursos de Letras e Filosofia da Universidade
Metodista de São Paulo): Para uma interpretação do conceito de Bildungsroman (2005).
10
Se transporta alguém de longe, lembro-me de Heráclito e sua preferência a estar com as
crianças e não nas assembléias.
66
3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O Homem do Boné Cinzento)
Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em
minha casa, e florescente no meu palácio.
(Daniel, VI, 1).
(RUBIÃO, 2010, 151)
“O culpado foi o homem do boné cinzento. Antes da sua vinda, a nossa rua
era o trecho mais sossegado da cidade.” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Corria tudo em
ordem na residência e na vizinhança do narrador Roderico e seu irmão Artur até a
chegada de um rico celibatário, Anatólio – de quem cobria a cabeça um boné xadrez
preto e branco, com dentes escuros e um cachimbo curvo. Este último, de hábitos
estranhos, deixava a todos perplexos, nunca era visto saindo de casa. Artur
desenvolveu uma forte obsessão em acompanhar a rotina do velho estranho e
sentia uma eufórica alegria em vê-lo: “Olha, Roderico, ele está mais magro do que
ontem!”. Roderico se agastava e achava um aborrecimento a obsessão de
acompanhar a vida do velho e seu definhamento. Seu irmão descobre o nome do
ancião e sua irritação responde: “fosse Nabucodosor!” (RUBIÃO, 2010, p. 152). Uma
bonita moça adentra a casa do estranho para logo mais não dar mais nem sinal de
permanência.Três meses mais tarde, a moça surge para partir do casarão. Anatólio,
à visão de Artur, continua emagrecendo. A confiança que o narrador Roderico em
seus nervos e discernimentos decrescia instaurando uma ansiedade, segundo este,
não tanto pelo velho, mas por seu irmão de quem se lhe afundavam os olhos; e para
lhe provar que não havia anormalidades passa a vigiar também o homem do boné
cinzento. Percebe que sua magreza realmente fascina e lhe indica um fato: o
homem está ficando transparente. Roderico agora assusta-se, através do corpo se
via objetos e o ambiente, o coração dependurado na maçaneta da porta. Artur
também emagrecia mas Roderico ainda não dava importância: Anatólio era sua
única preocupação agora, que de tão magro só tinha perfil. No dia seguinte, o
homem sem mais o que emagrecer, reduz o crânio e o boné folga sobre os olhos, o
vento dobra seu corpo sobre si, num espasmo lança um jato de fogo que varre a rua
– Artur excitado, Roderico atemorizado –, ao fim escorre-lhe
uma baba
incandescente e o incendeia; resta somente a cabeça, coberta pelo boné. Artur
afirma que é como previra, sua voz gradativamente afina e se distancia, o corpo
67
diminui a centímetros, Roderico o sustém nas mãos, com a ponta dos dedos, logo
Artur se transforma em uma bolinha negra a rolar em sua mão.
Dos planos
Há um delírio impressionante como efeito no discurso narrativo que
testemunhará a princípio, duas tramas, para logo mais mesclá-las em um turbilhão
único. Temos o narrador-personagem, Roderico. Mas devido, tão frequentemente,
seu irmão Artur manifestar-se em discurso direto, dá a impressão – e já basta para
ser um fato narrativo – de haver um narrador extra que nos mostraria a história de
dois irmãos em que um, Roderico, narra a trama de Artur acompanhando o velho
celibatário; e ao mesmo tempo deixa o próprio Artur narrar diretamente sua história
sobre o velho celibatário.
Isto ocorre porque cada um tem um discurso apartado, fundado em bases
perceptivas muito diferentes, travando duas histórias em que retomaremos – como
em Teleco e os Dragões – a apropriação e os dribles entre o plano transcendente,
aqui, manifestado pelo equilíbrio sempre seguro dos fenômenos sob as deduções
lógicas de Roderico; e o plano de Devir, perturbações, fascínios e euforias, nas
percepções e testemunhos de Artur siderados pela vazão anômala do Homem do
Boné Cinzento. Veremos o plano de Artur desestabilizar insistentemente o de
Roderico até ao ponto em que a trama da lógica e da normalidade previsível,
dedutível, ordinária, devém em um fluxo único a testemunhar os extraordinários de
que ainda trataremos com mais detalhes.
“A nossa intranqüilidade começou na madrugada em que fomos despertados
por desusado movimento de caminhões” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Esse evento marca
apenas a chegada dos objetos pessoais de alguém. Veja-se que mesmo esse
“nosso” não é comum entre os dois ao início, pois para Roderico é a inquietação
absurda de seu irmão; para este, é já o evento sideral do velho celibatário. Segue-se
a narrativa de Roderico:
Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico
celibatário, que passaria a residir ali. Achei leviana a informação. Além
de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo
aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa
varanda do edifício, permitia suposições menos verossímeis.
68
Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum
estabelecimento comercial. (RUBIÃO, 2010, p. 151)
Toda sua análise é dedutiva, num tom de certeza quase debochante. Já a
exagerada sensibilidade de seu irmão nos testemunha algo menos tranqüilo, casa
tremendo, e o revezar do branco e cinzento no céu, “Pontos brancos, pontos
cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos
e saltitantes” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Primeira traição à sua “mania de contradição”
(RUBIÃO, 2010, p. 151), chegava o novo vizinho, olhos fundos e corpo esquelético e
cobrindo-lhe a cabeça, um boné tal qual céu descrito pelo irmão. [...] ao invés da
atitude
zombeteira
que
assumi
ante
aquela
figura
completamente transtornado. (RUBIÃO, 2010, p. 151).
grotesca, Artur
ficou
Enquanto seu Artur lhe
contava as coisas de um modo totalmente estranho, percebendo vibraçõe, frases
surrealistas, homem que trouxe os quadradinhos e que desapareceria, Roderico
conjeturava dentro dos padrões lógicos, homem que sem se separar do boné
possivelmente escondia uma calvície adiantada.
Artur em euforia, a repetir-lhe [...] que o homenzinho continuava definhando. –
Impossível! – eu retrucava – o diabo do magrela não tem mais como emagrecer! - e
pois está emagrecendo! (RUBIÃO, 2010, p. 152). Novamente Roderico segue seu
testemunho sensato sobre os fatos, seu irmão em gradativo non sens:
entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando:
- Chama-se Anatólio! Respondi irritado, refreando a custo um
palavrão: chamasse Nabucodonosor! (RUBIÃO, 2010, p. 152)
Aparecimento de uma moça e entra na casa do velho, para outra
inquietação de Artur.
- Ora, que importância tem uma jovem residir com um velho
celibatário? (RUBIÃO, 2010, p. 153)
Três meses para a saída da moça, “Sozinha como viera, carregou as malas
consigo”. (RUBIÃO, 2010, p. 153). O velho continua emagrecendo no discurso de
Artur. Chega-se então a um momento decisivo; se o celibatário fascina e afeta até
mesmo fisicamente Artur, este começa a despertar em Roderico um mal-estar,
insegurança quanto aos fenômenos que para este até então estavam bem
registrados pelas recorrências. Algo salta para fora do plano, algo invade o plano,
cisma:
Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos
decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto
69
pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano,
cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos.
Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a
vigiar o nosso enigmático vizinho. (RUBIÃO, 2010, p. 153)
A partir daqui, não vemos mais o velho e os fenômenos de Artur filtrados pelas
resoluções lógicas de Roderico. Tal mundo previsível se desfaz, os fluxos e planos
agora são únicos e o Roderico-narrador acompanha, comunga, colado e
passivamente o que se segue. Vemos sucumbir toda a lógica ordenada de seu
discurso, e sua percepção passa ser um dueto com a de Artur – levando consigo o
leitor implícito – com partículas de nós aqui de fora – da desconfiança assegurada
pela lógica à sensibilidade direta dos fatos extraordinários.
Dos Anômalos e dos Devires
Se o homem que trouxe os quadradinhos no céu a na cabeça, foi desde o
início o anômalo de Artur, a anomalia do comportamento deste o desterritorializou e
o conectou às forças cinza e branca, da magreza, dos olhos fundos, das
trepidações:
Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a
atenção para um detalhe:
- Ele está ficando transparente.
Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que
estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com
intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta
da porta, cerrada somente de um dos lados.
Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio
tornara-se minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam
rapidamente enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo (RUBIÃO,
2010, p. 151)
Todo o discurso narrativo é insano, sussurrante, eufórico. Lógicas ainda tentam
levantar-se “nada mais tendo a emagrecer”; para logo serem afogadas: “seu crânio
havia diminuído” (RUBIÃO, 2010, p. 154). Chega-se então ao final como descrito no enredo
sobrescrito. Espasmo de fogo do velho, voz gradativamente afinando de Artur; baba
incandescente, incêndio, e somente a cabeça coberta pelo boné e o triunfo dos
quadradinhos; “Não falei, não falei”, dizendo Artur antes de se tornar uma bolinha negra.
...
70
“O culpado foi O homem do Boné Cinzento. Antes da sua vinda nossa rua era o trecho mais
sossegado da cidade”.
Do Narrador extra e o Aion. Devir-tempo (Roderico-depois-de-tudo conta a história
de um Roderico que virá a passar por tudo para ser o Roderico-depois-de-tudo que
conta a história...)
Tal narrador extra, mencionado bem mais acima, é o próprio Roderico depois
de tudo, como indica a frase introdutória que implica, antes de tudo, que a voz vem
de depois de tudo; ciente de que o culpado de tudo que ocorreu/ocorre/ocorrerá
foi/é/será o homem do boné cinzento. Ou seja, o Roderico que está com seu irmão,
passa por sua trama, sucumbe à de Artur, ao final, está apto a ser o narrador do
início do conto, que tem onisciência e conhece os detalhes e o culpado de tudo o
que ocorrerá.
Tal frase no início, cria um percepto, aquela impressão de se ter um terceiro
olhar, pouco mais acima, mais conhecedor que o Roderico que ainda vai passar pela
história e Artur; provoca uma vertigem temporal, pirando Cronos, quebrando o
relógio, estonteando a capacidade psicológica de suster um tempo; fazendo emergir
o fundo não estriado do tempo, aquém de ter um início meio e fim, “o instante
pervertendo o presente em futuro e passado insistentes, „impiedosa linha reta do
Aion‟”. (PELBART, 2010: 71)
Devir-luz, cor e fogo. Devir-elementos: distensão cósmica, dilatação e contração.
O discurso, testemunho, de Artur contém uma sintaxe delirante que como diz
Manoel de Barros, voa fora da asa. Afora toda a euforia, que forma de se
comunicar!: é gaguejante mas promissora, sussurrante de presságio, é sempre
descentrada porém intensa. E, em suas designações dos fenômenos, a sua
semântica principal são as cores. As cores contem o sentido do que ele diz e o
destino dos fatos, Artur é tomado num devir-cor e esta cor num devir-linguagem. A
sua versão da história está em xadrez: pontos brancos, pontos cinzentos,
quadrinhos perfeitos de duas cores; pronto, anunciara aquele que trouxe os
71
quadrinhos e desaparecerá – o desaparecimento não é um dos limites das cores? –;
anunciara aquele que ficou transparente, incendiou-se, show pirotécnico de cores a
nos narrar a sua, literalmente, brilhante versão dos fenômenos. Falando em
pirotécnico, interessante compartilhar aqui outro devir-cor da escritura e sentido
realizado por Rubião, em O Pirotécnico Zacarias, que já na epígrafe convoca a luz
do meio-dia e a estrela D‟Alva do livro de Jó. Neste conto o Branco é um dos
maiores sentidos e, quando um sol brilhando como nunca, diz-se: “os homens
compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque minha existência
se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura
dos meus olhos”. (RUBIÃO, 2010, p. 20) Seu destino, Artur, foi uma bolinha preta.
Há conjuntamente o Devir-cósmico, a distensão entre os anômalos de ligação
mais sideral. Convulsivamente são reclamados pelo cosmo, esse inumano nos
contém em potência, são distendidos ao sólido limite, a bolinha preta; polarizado na
outra
ponta
pelo
éter,
vapor e
transparência
absolutos; conectados
por
incandescência, aquecimento e combustão – experimentamos aí, talvez, um espanto
como o dos pensadores originários percorrendo pelos elementos cósmicos e
devires.
Da experimentação e da interpretação
É importante relacionar ainda, como nos outros contos, considerações de
Roberto Schwartz e, através do comentário deste, de Davi Arriguci, sobre uma
questão que atinge o Homem do Boné Cinzento: a questão da hipérbole.
Este sistema de adjunção “A hipérbole não parece ter limite
determinável” afirma J. Dubois, em sua Retórica geral (p.189), o que
vem confirmar a intimidade da relação forma/conteúdo, ou seja: a
hipérbole como forma de expressão formaliza o conteúdo do conto,
havendo um imbricamento entre o nível retórico e o seu
correspondente semântico. “O discurso ficcional também se coaduna
com o princípio de construção do edifício: o conto (...) permanece
ironicamente aberto para um contar inacabável: enquanto o edifício
ganhara altura”, observa Davi Arriguci, no seu artigo introdutório ao
OPZ11, mostrando a superposição do narrar ao fato narrado. As
progressões nos contos de Murilo Rubião revelam-se processos
incontroláveis, que fogem à vontade dos sujeitos da ação.
(SCHWRTZ, 1981, p. 71)
11
Abreviatura técnica em SCHWARTZ, 1981, para O Pirotécnico Zacarias.
72
Na perspectiva desta dissertação, do Devir sob considerações teóricofilosóficas já expostas em capítulo apropriado, o signo é um movimento único de
escritura-realidade, essa coadunação do discurso ficcional com os objetos e a
realidade designada por ele se opera imediatamente; pelo co ntrário, não se vê a
possibilidade de uma escritura de devir crer na dualidade forma/contéudo. Não
lemos como hipérbole, pois esta noção parece sugerir uma defasagem e separação
entre conteúdo (como realidade em si) e forma (como fantasma de realidade a vagar
com sua imagem); por isso a alcunha de “exagero”: pois deve haver um designado
fixo, e uma expressão que distende sua imagem ou a reduz, ficando uma
manipulação retórica e não real. Acolhemos sim, com toda a alegria de um achado
importante, quando se fala em dilatação ou contração, que movimentam toda a física
da realidade em questão “uma nomenclatura tipo hipérbole por dilatação e hipérbole
por contração, respectivamente” (SCHWARTZ, 1981, p. 71); ou “processos
incontroláveis que fogem à vontade dos sujeitos”, como na citação, pois no universo
ulterior e imanente desses contos em questão, são eventos literalmente reais.
Observemos:
A forma hiperbólica pode-se apresentar invertida (tapinosis) como é o
caso de “O homem do Boné Cinzento” EXM, que relata o gradativo
desaparecimento de Anatólio e Artur. O Fantástico não se limita ao
movimento físico regressivo, mas também se manifesta por descrições
de caráter marcadamente surrealista:
Via-se através do corpo de Anat ólio, objetos que estavam no interior
da casa. Vasos de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O
coração parecia estar dependurado na maçanet a da porta, cerrada
somente de um dos lados. (p.123)
(SCHWARTZ, 1981, p. 72)
Sim a construção é infinita em conjunto indiscernível de sua narrativa e não é por
hipérbole, efeito retórico, é por dilatação intensiva da realidade criada. Nesta citação,
nada é hipérbole a não ser que nós sejamos os modelos. Não há surrealismo para
os personagens, pois estes estão literalmente, no seu nível, sendo distendidos,
sumindo, incendiando, transparecendo. Deveremos sempre ler/julgar os mundos de
linguagem tendo o nosso como designação última? O nosso como medida?
Entendendo o que nos ultrapassa ou nos encolhe, apenas “como um modo de dizer”
sobre nós? Dessa forma não há Devir, não há terras não exploradas, não há
experimentação real de mundos e sensibilidades, pois, como quem acorda e diz “foi
73
só um sonho”, também diremos, “foi só um modo de dizer”. A hipérbole espera
interpretação, a retirada da máscara para se ver o designado (ilusão de que o nosso
rosto não seja simulacros outros). O Devir, as figuras diretamente estéticointensivas, dilatação, contração, exigem experimentação; e que não se tome dessa
forma: [...] dilatação/contração, montagem/desmontagem, força centrífuga/centrípeta
definem-se como expressões hiperbólicas e geradoras de uma temática fantástica.
(SCHWARTZ, 1981, p. 73)
Sobre a epígrafe, insisto em dizer que, Rubião opera por recorte mais do que
por desenvolvimento e remissão. É interessante q ue o texto bíblico retomado
envolva sonhos e interpretações. Nabucodonosor é retirado de seu sossego devido
a sonhos que o perturbam, com imagens um tanto desconexas e, portanto precisa
de um intérprete; recorre a Daniel, já douto neste assunto. Daniel explicou que a
árvore representava a grandeza do reino babilônio, o próprio Nabucodonosor, que
dominava com orgulho e arrogância. Por um tempo determinado o rei seria retirado
dentre os homens, viveria entre o gado do campo, molhado pelo orvalho do céu, e
comeria a erva do campo até reconhecer que o Altíssimo tem domínio sobre o reino
dos homens.
O que o conto retoma disto? Digo que a cena da perturbação a partir de um
evento estranho, imagético. E, pela leitura que já se expôs, o que ele mantém é esse
jogo de euforia, intensidades e cores. Sim, no conto há algo bem Alto que tem
domínio sobre os homens, que captura sua linguagem e sua matéria: o cosmo que
os distendeu e os reclamou ao sólido e ao éter; ao sólido – conectados por olhos,
luz, cores e fogo – ao éter. A experiência de quando o reino dos quadrinhos, dos
cinzas e branco, tem domínio sobre os homens. Pelo buraco de minhoca12 da
epígrafe, é como se o texto preferisse e transportasse somente superfície do sonho
em sua expressão bruta, literal.
12
São pontes, na teoria da relatividade geral, que permitem ligar duas regiões muito
afastadas do espaço-tempo. http://www.portaldoastronomo.org/cronica.php?id=25 Acesso
em 20/11/2013.
74
75
4 Conclusões
A investigação de supostas articulação e produção de uma diferença
(realizada pelo procedimento literário, sob a sugestão de Gilles Deleuze, às vezes
só, e em grande parte com este e Felix Guattari) e que tem como produto um Devir,
um acontecimento que toma e modifica o sentido da existência do que nele se
envolve; e isto, ainda, realizado pelo procedimento de Murilo Rubião nos contos
Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem do Boné Cinzento foi uma experiência
angustiante – devido ser uma perspectiva com muito poucas discussões e
esclarecimentos no tocante à literatura, como uma operação de leitura afora as
análises dos pensadores em questão, e talvez inédita com o escritor mineiro; mas,
foi fascinante ao mobilizar revisão e discussão de saberes capitais aos estudos
literários para que se entenda o seu lugar e sua atuação. Desde o início, não faz
parte dos objetivos discutir até os limites essa revisão que acompanha tal
perspectiva – a que caberia sozinho um trabalho investigativo –; mas apenas
contribuir com um esclarecimento mínimo que situe a discussão e realizar uma
possível operação de leitura com os contos mencionados nesta conclusão.
Quanto à metodologia, talvez não se possa dizer que se tenha organizado um
método; mas podemos dizer que uma operação criteriosa se realizou, obedecendo
aos caminhos propostos. Pode-se dizer, ao final, que o Devir, em si, não se tornou
um operador de leitura nem pode tornar-se talvez; mas entendendo seu
funcionamento como diferença positiva, como recusa de mediações representativas
para seu plano de composição, pôde-se sugerir uma predisposição teórica para o
contemplar com sucessos esperados que foram as análises realizadas dos contos; e
que foi possível pôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto
Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstrar o que se produziu em
concordâncias e em divergências.
Isto contribuiu, de modo geral, para a
mobilização produtiva dos saberes para com a literatura; e, especificamente, para
somar na afirmação – como a de Anita Costa Maluf devidamente citada – de que a
noção de Devir aqui acionada, não suportando, em si, tornar-se método sem sua
abolição, ao menos provoca o surgimento de um predisposição teórica que o
enxergue, com ferramentas próprias, aptas a um novo olhar para com a literatura.
76
Ainda, outra grande contribuição aos Estudos Literários, reside na reflexão
sobre o Devir-expressivo apontado por Deleuze/Guattari: se um corpo constituído
(uma personalidade, um evento, uma coisa) é tensionado em devir-outro, esse outro
também é comovido em devir. No caso da literatura, se o escritor, e seus universos
virtuais, são afrontados por devires estranhos (animais, vegetais, cósmicos...), ele
que já é tomado pela escritura, só pode sustentar essa afronta irresistível –
acontecimento que toma em si o sentido da existência do que nele se envolve –
dando-lhe escritura; ou seja, essa coisa torna-se escritura. O que não é o mesmo
que dizer escrever sobre isso; este isso – seus afetos, suas potências – sendo o
corpo da escritura. Manoel Bandeira – exemplo rápido para uma conclusão – não
escreve sobre a onda, como assunto. Aonde anda a onda? Seus afectos
(movimentos, ritmos, dobras, zoadas) tornaram-se escritura. A contribuição está em
favorecer que se perceba a possibilidade de um processo semiótico como esse, sem
a dimensão da imitação, devires que talvez sejam responsáveis por grande parte
das escrituras, daqueles que escrevem para não morrer, propagando seus devires,
bibliotecas inteiras de devires.
Posso somar a estas conclusões, que Murilo Rubião nos guarda, e aguarda –
pois pretendo mantê-lo em estudos – muito mais surpresas nesta perspectiva de
Devir. Mas, percebi também, que ele tem um perfil bem complexo para tal análise,
pois mantém os dois planos – o representativo e o de Devir – em proximidade
estonteante de modo que concluo também que é uma singularidade sua, nos dois
primeiros contos analisados, tal proximidade provocante; há uma luta de ironia
melancólica, sussurrante, entre os dois planos – diferenciando-se assim, por
exemplo, do mar e vento loucos, de sideração sanguinária de Achab e Moby Dick,
tão citados por Deleuze.
77
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Literatura e devir em Murilo Rubião