FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO UMA LEITURA NA DIFERENÇA PORTO VELHO 2013 DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO UMA LEITURA NA DIFERENÇA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos Literários do Departamento de Línguas Vernáculas da UNIR como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª. Dra. Heloisa Helena Siqueira Correia PORTO VELHO 2013 FICHA CATALOGRÁ FICA BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES S2373l Santos, Deivis Nascimento dos Literatura e devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença / Deivis Nascimento dos Santos. Porto Velho, Rondônia, 2013. 80f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Fundação Universidade Federal de Rondônia / UNIR. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heloisa Helena Siqueira Correia 1. Literatura 2. Contos de Murilo Rubião 3. Devir - diferença I. Correia, Heloisa Helena Siqueira II. Título. CDU: 82-34 Bibliotecária Responsável: Ozelina Saldanha CRB11/947 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a todos da minha família, especificamente: Rosalina e Layne (mãe e irmã); Alzira e Álef Duran (esposa e filho). A minha orientadora Dra. Heloisa Helena Siqueira Correia e a todos os professores e amigos do curso de Mestrado em Estudos Literários UNIR. Aos NEFELIBATAS (nosso grupo de amigos da graduação em letras). Aos falecidos Gentil Carvalho dos Santos (pai), Zenir de Morais (padrasto amigo) e Maria do Nascimento Maia de Oliveira (avó) in memoriam. AGRADECIMENTOS Agradeço toda a ajuda e compreensão de meus familiares durante o mestrado. A paciência e atenção dos professores do curso (Wani Sampaio, Ana Felipini, Cynthia Barra, Heloisa Helena, Rubens Vaz e Milena Magalhães) bem como por sua competência profissional e amigavelmente compartilhada. À turma do mestrado pelo companheirismo e mútuas ajudas. À professora Marisa Martins Gama Khalil, por participar mais uma vez de uma importante fase da minha vida. “Experimentem, nunca interpretem [...] de fragmento em fragmento se constrói uma experimentação viva onde a interpretação começa a fundir, onde já não há percepção nem saber, segredo nem adivinhações [...] apenas uma luz crua.” Gilles Deleuze “Nessa hora os homens compreenderão que mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos.” O Pirotécnico Zacarias (Murilo Rubião) RESUMO Investiga-se uma suposta articulação e produção da Diferença realizada pelo procedimento literário que tem como produto um Devir, sob a sugestão teóricofilosófica de Gilles Deleuze, e em grande parte, com este e Felix Guattari; toma-se por objeto determinados procedimentos literários presentes nos textos de Murilo Rubião, especificamente nos contos Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem do Boné Cinzento. Evidenciar o Devir literário exige uma operação de leitura que se torna incompatível com os procedimentos da representação – entendida, sob tutela dos teóricos escolhidos, como processo de mediação que submete os eventos literários à identidade, à oposição, à analogia, à semelhança. O signo literário não pode ser abordado a partir de reverberações de um núcleo transcendente formal, que preveem as possíveis cadeias de expressões que serão suas representantes dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos, metafóricos, simbólicos e de projeções. Deve-se evidenciar quando a literatura articula um plano de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido. E neste intuito, exige-se uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de tropos, simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração próprias, estétitico-intensiva direta que escapam, mesmo em sua p roximidade, à dimensão retórica (conotações). Propõe-se uma leitura que acompanha os procedimentos literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram os elementos narrativos em sua disposição interna; que acompanhe ainda o que acontece com discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em pleno funcionamento no plano de composição dos textos, não como designados pelo texto – o que se entende aqui como representação. É preciso tomar o texto literário como uma realidade completa em si, que de ve ser visitada, explorada; em que todos os efeitos são vivências afetivas e perceptivas. Ainda como tarefa desta dissertação, deve se expôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstra-se o que se produz em concordâncias e em divergências. A noção de Devir acionada, enquanto produção de descontinuidades, Diferença, que resiste aos centros formadores de significados, sugere, do lugar em que se move, uma predisposição teórica que o enxergue, com ferramentas próprias, aptas a contribuir com um novo olhar para com a literatura, e para a abordagem dos textos de Murilo Rubião. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Devir, Contos de Murilo Rubião, Diferença em Gilles Deleuze e Guattari. RESUMEN Con el fin de investigar una supuesta articulación y producción de la Diferencia hecha por el procedimiento literario que tiene el producto de un Devenir, bajo la sugerencia teórico-filosófico de Gilles Deleuze, y en gran medida con este y Félix Guattari, tomando como objeto procedimientos literarios de Murilo Rubião específicamente cuentos Teleco El conejito , Los Dragones y El hombre del bonete gris. La evidencia literaria para convertirse en convocatorias de una operación de lectura que se hace incompatible con los procedimientos de representación entendida , bajo la tutela del teórico elegido , ya que el proceso de mediación que presenta eventos literarios a la identidad , la oposición , la analogía , la similitud . Signo literario no puede ser abordado desde un núcleo trascendente reverberaciones formales , que predicen las posibles cadenas de expresiones que serán sus niveles representantes denominación más simple para dispositivos analógicos , proyecciones metafóricas y simbólicas. Debería ser evidente en la literatura cuando se articula un plan de la composición, de la inmanencia , que se convierte en dueño de su sentido . Y en este orden , se requiere una predisposición a la lectura que no cruza las referencias de los tropos , simbolismo o proyecciones síntesis , porque la Devenir tiene una duración propia realidad y escapar , incluso en su proximidad, la dimensión retórica. Proponemos una lectura que acompaña a los procedimientos literarios , tomando nota de las dimensiones que crean los efectos, que generan los elementos narrativos en su disposición interna . Observe lo que sucede con el habla (ideas y prácticas) de nuestro mundo externo en pleno funcionamiento en la composición del plan de los textos, y no como significante abstracto que designa algo externo - lo que se entiende aquí como una representación . Tienes que tomarlo como una realidad en sí misma completa, que debe ser visitado, explorado, donde todos los efectos son experiencias afectivas y perceptivas . Expone tales lectura a codo con los demás (especialmente Roberto Schwartz , en La poética del Oroboro ) y se demuestra que se produce concordancias y divergencias. La idea de Devenir a ser lanzado, mientras se produce discontinuidades , Diferencia , que se resiste a los centros de formación de significados estables, sugiere, en el lugar donde se mueve, un sesgo teórico verlo, con herramientas propias , capaces de aportar una nueva mirada a la literatura, y de acercarse a los textos de Murilo Rubião . PALABRAS CLAVE : Literatura y Devenir, Cuentos de Murilo Rubião , Diferencia de Gilles Deleuze y Guattari . SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................01 1. DEVIR: DIFERENÇA.......................................................................................06 1.1 Pensando em diferença.............................................................................07 1.2 Literatura faz a diferença...........................................................................10 1.3 O impessoal: força personífuga.................................................................12 1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário..................................................15 2. CRÍTICA EM DEVIR: ler a diferença...............................................................18 2.1 Teorias: enlaces e distâncias....................................................................19 2.2 Um modus operandi em Devir...................................................................25 2.2.1 As minorias. Língua menor. Alguns regimes de Signos..................26 2.2.2 Dos planos transcendente e imanente. Plano escritural..........................................................................................28 2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades, mapas..............................................................................................31 2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas........33 2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devirexpressivo........................................................................................35 3. RUBIÃO EM DEVIR.........................................................................................41 3.1 Teleco o coelhinho.....................................................................................44 3.2 Simples Dragões .......................................................................................54 3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O homem do Boné Cinzento).......67 3.4 4. CONCLUSÕES................................................................................................76 5. BIBLIOGRAFIA................................................................................................78 INTRODUÇÃO “[...] ser uma coisa é não ser passível de interpretação” Fernando Pessoa Reconhecendo que os signos literários podem ser tomados e produzidos em diversas perspectivas, este trabalho objetiva investigar a articulação e produção de um Devir atingido pelo procedimento literário que se concretiza como uma Diferença na sugestão de Gilles Deleuze, em grande parte, e deste com Felix Guattari – em conexão com outras confirmações argumentativas de outros autores pertinentes aos pressupostos que nos fundamenta. Compondo ainda o objetivo principal, a investigação especifica-se um pouco mais, ao sugerir a produção desse Devir, nos contos do escritor brasileiro Murilo Rubião. O Devir literário, enquanto realidade própria e articulador de diferença, sugere uma operação de leitura que se torna incompatível com os procedimentos da representação – entendida, sob tutela dos teóricos escolhidos, como processo de mediação que submete os eventos literários à identidade, oposição, analogia e semelhança; e entre ambas as perspectivas trava-se uma fecunda discussão. A princípio, surge da indagação de como é possível criar novos conteúdos e expressões ao pensamento que não estejam presos a reverberações de um núcleo transcendente formal que preveem (com naturezas, universais, sujeitos, objetos, propriedades etc.) as possíveis cadeias de expressões que serão suas representantes dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos, metafóricos, simbólicos e de projeções. Portanto, inicia-se numa busca filosófica. Mas esse início é, na realidade, o meio. A saída encontrada foi a conexão, o encontro inevitável, com a não-filosofia, ou seja, os outros modos de retirar o pensamento de sua imobilidade e que não estão necessariamente subalternos às representações clássicas e estruturantes do pensar: atitudes imediatas que forçam uma reorganização intempestiva de compreensão e ação: os momentos revolucionários, as guerras, as sociedades secretas, as artes, enfim, a literatura; que forçam uma fuga e a necessidade de alianças e máquinas a-significantes em relação às vigências; configurações semióticas que cessam a circulação refratária da interpretação – entendida como extração de sentidos, os sentidos por trás da máscara; que vão desde as antigas moral da história e exegese, às metáforas e 1 alegorias funcionando como um espelho sempre do universo humanista; às vezes com invertidos papéis, mas sempre sobre o mesmo arquétipo. (Deleuze costuma dizer que representação e interpretação formam o casal do déspota e o padre . Ou seja, são partes complementares de um dispositivo: um produz as propriedades, o modelo; o outro detém o saber de extração, na produção em massa de enunciados, deste sentido primeiro; e pode reconhecer e autorizar o que o pode substituir em manutenção, em sua representação. Tomei a liberdade de chamar esse conjunto de codec – emprestado da nossa tecnologia de informática, software de codificação e decodificação1). Mesmo partindo de uma aventura filosófica, essa perspectiva não deve submeter o texto literário como suporte de conteúdos para uma visão filosófica. Ao contrário, aposta na sua singularidade mais radical de expressão por intensidades, quando produz diferenças irreversíveis, falhas intransponíveis que traem as remissões, designações, denotações e conotações apoiadas em precedências para funcionarem; que em seu plano faz nascer o que não existe, ao invés de apenas representar o que já está dado. É neste ponto que é excesso, relação com o fora. Mas é justamente aqui que atinge uma dimensão ética por excelência, pois é abertura de novas possibilidades de vida, opondo-se ao âmbito ético-moral que já predispõe os condutos. Trava-se então uma guerrilha contra os dualismos no seio da própria linguagem: contra significados formados e reverberações representantes. A linguagem literária deve ser projétil e não projeção: é uma realidade própria em resposta ao real e não apenas o fantasma ou “algo que está por outro”; é a positividade do simulacro, gerando um duplo não semelhante que passa a ser um excesso em relação ao modelo; abolição da noção de original e derivado, bem como a relação de semelhança que ignora o que se passa na diferença, tornando esta apenas oposição conceitual, legitimando apenas o que se procede por identidade. 1 Este parêntese é um intervalo descontraído. CoDec é o acrônimo de Codificador/Decodificador. Eles são programas que codificam e decodificam arquivos de mídia, favorecendo compactação para armazenagem e descompactação para visualização. Tal alusão a um dispositivo de mídia é devido ao funcionamento da representação como mediação. Acesso em 20/11/2013: http://www.tecmundo.com.br/gravacao-de-disco/1989-oque-sao-codecs-.htm 2 Temos consequências, portanto, no modo de considerar a linguagem: devese reconhecer que os agenciamentos coletivos são coextensivos à sua própria origem e estão coagindo desde a menor articulação fonética à frase, aos discursos ordenadores; reconhecer que a língua não é essencialmente informativa, nem para que se acredite nela, mas para ser obedecida. O agenciamento literário deve desestabilizar essas significâncias através de um uso intensivo, reatraindo o saber para o sabor, fazendo Apolo abalar-se à sombra de Dionísio; diminuindo a ofuscação e denunciando com o próprio corpo as arbitrariedades dos “naturais”, dos próprios e propriedades, sujeitos individuais com pensamentos e interioridades a expressar e objetos a se conhecer ou classificar. A literatura deve articular um plano de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido; experiência para além da prescrição do possível. Resgata-se tudo ao pé da letra, caminhando sobre o absoluto de um sentido, um devir que se dá como sentido. E nesse sentido exige-se uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de tropos, simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração próprias, diretamente estético-intensiva que escapam, mesmo em sua proximidade, à dimensão retórica (conotações). Dessa forma propõe-se uma leitura que acompanha os procedimentos literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram os elementos narrativos em sua disposição interna; mas também observa o que acontece com discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em seu plano de composição – discursos em pleno funcionamento, não representados. Na perspectiva em que se espera Devir evocado, as observações não podem encarar o simulacro do texto como abstração-significado que, no fundo, se “referiria” a algo de exterior. É preciso tomá-lo como uma realidade completa em si, que deve ser visitada, explorada; em que todos os efeitos são vivências afetivas e perceptivas: entrar no conto, em seus cenários, como nós entramos em algum corredor obscuro, ou ambiente ensolarado; se tal ambiente nos lembra outro em que já passamos, se já vimos essa pessoa em algum lugar, que seja ao mesmo modo quando, do lado de fora, vemos algo que nos lembra outro, mas ambos reais e com suas diferenças. Assim não se interpretará, mas se descreverá (com todos os perigos que isto oferece como testemunho). Se enquanto leitor despreocupado apenas se experimenta, enquanto compromisso 3 acadêmico se deve colar ao experimento nossos critérios expostos e se realizar o relato. Teremos que predispor o olhar para as anomalias, as a-significâncias e seus afectos, projéteis que minam as instituições e corpos constituídos (os sujeitos, as famílias, os Estados, os objetos, propriedades e classificações circulantes etc.); principalmente, em nossa atualidade, contra um dos centros significantes que mais tem emitido despotismos: o Homem: discurso despótico que recobre e se apropria, conta a “História” das coisas. Mas os devires-minorias, animais, vegetais, minerais, moleculares, cósmicos, nos testemunharão a sentir nessa “História” tão somente sua autobiografia. Predisposto esse olhar para Diferenças autênticas (pensadas em si mesmas), o direcionaremos aos contos de Murilo Rubião. Deste, foram selecionados três que dispõem de uma boa variedade possível de devires por atuarem em diferentes elementos narrativos ao mesmo tempo: Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem do Boné Cinzento. Vejamos o quanto a escritura de Rubião é rica para além do representável, em articulação de diferenças, sobre as quais os discursos interpretantes têm de fazer recortes, exclusões ou recuperações delicadamente forçadas sobre sua matéria indócil. Encaremos os signos como acontecimentos, como presença de forças, seres de linguagem que só designam a si mesmos, mas que, ao contrário de serem intransitivos ao mundo, são passagens a se fazer; intensidades, no entanto respostas diretas àquilo que as provocam na circularidade do mundo. É neste Devir que iremos, proposto por Deleuze, por Guattari, por elementos de outros pensadores de quem se apropria componentes (Nietzsche, Blanchot, Foucault, Derrida, Lyotard, Schwartz) e principalmente pelos escritores, os criadores de Devir e dentre os quais, principalmente, Murilo Rubião. Enfim, o que mais motivou esta dissertação não é a pretensiosa busca por um tema ou um recorte ainda não tratado, mas o fascínio e inquietude que essa perspectiva de leitura provoca, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como irrevogáveis pela constante prática (incluo aqui o autor da dissertação, que se sentiu muito contrariado nos primeiros contatos com essas ideias). Não se espera, aqui, discutir até os limites essa revisão que acompanha tal perspectiva; mas sim, contribuir com 4 um esclarecimento mínimo que situe a discussão e uma possível operação de leitura. 5 1. Devir: Diferença [...] olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua [...] Procurei com os melhores argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade de minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços. Também não adiantou. Seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo. Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à murada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria. Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la. (RUBIÃO, 2010, p. 32) O rosto grave, olhar fixo, uma minúscula estrela cintila seu apelo talvez menos por seu brilho do que pela treva que a envolve e a torna quase indiscernível de si. Minúscula estrela anônima, justamente ao lado de uma tão midiática figura, já violada por decalques que tomam a frente do olho e nos comunica o que não vemos: a Lua. Com certeza, se o personagem fosse buscar a lua, nós teríamos imediatamente muito mais coisas a dizer, comunicadas há tempos por todas as projeções, simbologias, metáforas e analogias: a demonstração de amor à amada, ou mesmo projeções de um desejo inominável por recalque, atraindo o lobisomem como personificação da copulação macho-fêmea etc. No entanto, com um toque feminino, Bárbara não indica a “pop-star”, mas uma minúscula estrela que, no texto, não oferece amplas margens para sinônimo ou epíteto, pois é olhada e contemplada apenas como uma minúscula estrela quase invisível ao lado da lua. A redundância é necessária, pois, evento repentino sem interpretante, celebra o pequeno esquecimento e alegria nervosa, pois grave é o rosto, de um olho que atingiu sua plenitude de simplesmente “ver” uma estrela despida de discurso, e que, por isso, oferece-se e oferece um instante de puro querer, sonho de bebê, com apenas palpitações indiscerníveis se de prazer ou agonia; um devir irresistível no qual, os mais resistentes, ou melhor, reacionários – todos nós ao primeiro impacto – talvez ainda tentem perguntar: por que a estrelinha minúscula? (pergunta que almeja resgatar algum discurso que nos salve do caos, da catástrofe). Ficamos instalados na diferença, suspensos ao tempo-espaço homo faber, e por isso, contemporâneos a uma vida em plenitude, olhando-nos “ao vivo”. Pelo desfecho desse conto nos lançamos nesta investigação da expressão/pensamento na diferença através do 6 Devir que o agenciamento literário de Murilo Rubião pode sugerir. Vejamos, a princípio, tendências contemporâneas a que a leitura de certo agenciamento em Devir (conjunto discursivo) na obra muriliana pode se conectar. Há estrelas que não vemos nos espaços escuros mas que, de acordo com astrofísica, estão lá; se não as vemos é porque sua luz, devido à velocíssima expansão, não chega a nossos olhos. Com este exemplo para chegar a uma definição de “contemporâneo”, em Giorgio Agamben já vamos encontrando conexões: Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo [...] ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar [...] o nosso tempo [...] não pode em nenhum caso nos alcançar [...] o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade. (AGAMBEN, 2009, p. 65) Urgência e intempestividade: cessar as transcendências, desapropriar núcleos que prescrevem os sentidos próprios, os sistemas abstratos restritos a facções da cultura, da língua e do saber; que se impõe como matrizes e agenciam os demais usos como arquivo, tradição, projeções, conotações, contingências de uso popular, licença poética etc. “É-nos odioso tudo o que simplesmente nos instrui sem aumentar ou imediatamente vivificar nossa atividade – diz Goethe”(NIETZSCHE, 2003, p. 5). É preciso, em nossa época “atuar de maneira intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, 2003, p. 7). “Em meio à menor como em meio à maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: o poder-esquecer ou, dito de maneira mais erudita, a faculdade de sentir ahistoricamente durante a sua duração”. (NIETZSCHE, 2003, p. 9). 1.1 Pensando em Diferença O que é o pensamento? Em que medida é possível dar ao pensamento novos modos de expressão? Em Deleuze se põe de modo incessante essas questões. O que vemos levantar-se em correspondência é que erudição, acúmulo, arquivo, memória, paráfrase não pensam. O pensamento não preexiste ao signo, não há 7 ideia abstraída das linguagens, esperando uma forma linguística para se exteriorizar. Pensamento e o assalto do signo são únicos. Tal perspecti va propõe uma nova imagem do pensamento, ou melhor, um pensamento sem imagem, capaz de instaurar novos ângulos e percepções sobre a realidade, liberando outras possibilidades de ver, ouvir, dizer. É aí que se propõe o diálogo com a linguagem artística como problema fundamental, como linha de fuga em face das armadilhas impostas por toda representação clássica do pensamento; o proceder da arte deve atingir uma libertação do pensamento dos modelos cristalizados da representação, que subordinou a diferença à identidade, favorecendo o processo de recognição, isto é, de adesão ao pensar comum. Deleuze discute as bases da imagem dogmática do pensamento em que o pensamento possui formalmente o verdadeiro – o inatismo da idéia, o a priori dos conceitos, o bom senso universalmente compartilhado; em que somos desviados do pensamento por forças estranhas ao pensamento – o corpo, paixões, interesses sensíveis – que nos levariam ao erro; em que para pensarmos verdadeiramente precisamos apenas de um método. A reversão dessa imagem deve ser a tarefa da filosofia; para ele Nietzsche o fez (MACHADO, 2009, p. 34). A relação entre criação de conceitos e tradição filosófica, como a faz Deleuze, consiste na apropriação do processo de pensamento de determinados filósofos como condição de seu modo singular de filosofar que é a tentativa de construir um espaço diferente do representado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel; fazendo emergir a arbitrariedade e minando a força de pressupostos em se que acredita estar fundada a filosofia, uma determinada imagem do pensamento. Projeta a criação de conceitos que torne possível um novo pensamento, ou que tornem o pensamento de novo possível, sem imagem, extemporâneo ou intempestivo na acepção nietzscheana: [...] conceitos que não são eternos nem históricos, mas extemporâneos e inatuais [...] considerando o extemporâneo mais profundo que o tempo e a eternidade. Mil Platôs identifica o geográfico ao extemporâneo, procurando dar um sentido à oposição da geografia à história (MACHADO, 2009, p. 25) Para se tornar possível o pensamento autônomo – não autômato – tem-se como tarefa subverter o platonismo dualista propagado. E é justamente privilegiando 8 uma potência abominável ao platonismo: o duplo sem semelhança, a cópia maléfica. No entanto, torna-se inútil apenas restituir os direitos da aparência, conferindo-lhe sentido por proximidade a formas essenciais. É preciso que essa dessemelhança atinja uma positividade capaz de abolir a necessidade preexistente, sobrecodificada, potência primeira não mais recalcada pela ideia, tornando-se a própria coisa. Não se trata somente de virar o simulacro contra o modelo, mas abolir a “noção” de original e derivado, modelo e cópia, a relação de semelhança que ignora o que se passa na diferença legitimando como saber apenas o que configura identidade: [...] subverter a filosofia da representação significa afirmar os direitos dos simulacros reconhecendo neles uma potência positiva, dionisíaca, capaz de destruir as categorias de original e de cópia. Há em Platão uma relação de força entre modelo e simulacro, no sentido que a ideia é pensada como uma potência capaz de excluir, barrar, rejeitar as cópias sem fundamento [...] pois, se no platonismo a ideia é a coisa, na subversão do platonismo cada coisa é elevada ao estado de simulacro [...] valorizar o simulacro ao interpretar Platão é, para ele, uma das maneiras de formular o projeto geral de pensar a diferença nela mesma, sem permanecer no elemento de uma diferença já mediatizada pela representação, isto é, submetida à identidade, à oposição, à analogia, à semelhança. (MACHADO, 2009, p. 48-49) Badiou reconhece em Deleuze essa investida contra os núcleos de irradiação analógica e nos confirma a real necessidade de se aliar, constituir máquina, com agenciamentos que deslocam o instituído bem como do seu “direito” à propriedade: [...] no fundo, a filosofia só pode resistir ao mundo tal como é se souber discernir as experiências que são heterogêneas à lei deste mundo: as experiências políticas radicais, as invenções da ciência, as criações da arte, os encontros do desejo e do amor [...] daquilo que tem a estatura de um evento para o pensamento [...] Há filósofos que trabalham, de maneira muito diversificada, na invenção de tais quadros conceituais. Vou citar como exemplos Gilles Deleuze na França, ou Stanley Cavell, nos Estados Unidos [...] Que a filosofia seja uma filosofia daquilo que eu chamaria de singularidade universal. Quer dizer: daquilo que é, a cada vez, absolutamente singular, como um poema, um teorema, uma paixão, uma revolução; e ontudo, para o pensamento, absolutamente universal (BADIOU, 1994, p. 17-18). É nessa aliança que surge uma procura na obra de arte e, em nosso caso particular, na literatura, de uma instância de forças plenamente capazes de construir verdades intensivas, de no seu finito plano engendrar infinitos, de fazer o pensamento se empolgar e atuar livremente, discorrendo sobre sua superfície 9 expressiva que encerra todo conteúdo, ser e gramática, que se encontram desterritorializados dos solos despóticos. 1.2 Literatura faz a Diferença Literatura entra com essa cópia imperfeita, porém positiva, com essa potência de desconfigurar o estabelecido em seu plano de composição. Na filosofia de Deleuze compõe, como o diz Machado (2009, p. 29), seu procedimento de colagem em que, ao privilegiar os pensamentos que diferem, utiliza dos procedimentos literários para produzir seu discurso diferencial. Toma a literatura como intercessora do pensamento, valorizando-a como processo autônomo e singular capaz de retirar o pensamento de seu estupor e atuar sobre a(s) realidade(s). Para este pensador a arte não é um suporte para um discurso filosófico subjacente, mas uma força pensante capaz de revirar os modelos do pensar sedimentados e impostos por representações clássicas. Dessa forma, faz interferir no percurso do pensamento humano não só a linhagem da história da filosofia – em que escolhe principalmente certos filósofos da diferença não tão classicamente difundidos – mas também o que chama de não-filosofia ( as artes, a literatura no caso). Poder-se-ia, neste aspecto de sua filosofia – se assim ainda se pode chamar um pensamento que se quer nômade – tentar objetar que a literatura está de modo servil a determinada filosofia. Entretanto, é o inverso: o que ele quer na linguagem artística, literária, é sua potência singular que reverte os sentidos e, por isso, o pensamento; arrastando-o para “fora”, a um ponto original de possibilidades. Portanto, convoca, invoca a literatura em sua integridade física e espiritual, do jeito que ela é: abolição do centro gravitacional do “é”: “[...] a experiência própria da criação. E se pensar é criar, é porque faz nascer o que ainda não existe, em vez de simplesmente representar o que já está dado” (LEVY, 2011, p. 128). Não viola, portanto, com seu proveito tirado, a liberdade literária em nome de uma filosofia. Esta é que faz uma concessão essencial, pensando em termos clássicos, pois se conecta à não-filosofia e subsiste em seu plano. Deleuze distingue inclusive o modo próprio de pensamento concernente às artes, à literatura, do modo propriamente filosófico. Vemos em O que é a Filosofia? (2010) que, enquanto esta atua com 10 conceitos (concept), aquelas atuam a partir de um composto de sensações: perceptos e afectos: Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles [...] O artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve manter-se de pé sozinho [...] O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem [...] Os afectos são precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos [...] são as paisagens não humanas da natureza [...] só a vida cria tais zonas em que turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-la e penetrá-la em sua empresa de cocriação [...] é preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos, necessários a uma empresa tão grande que recria por toda parte os pântanos primitivos da vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193-194-199-200-205) Alain Badiou, em Para uma nova teoria do sujeito (1994), faz uma discussão sumária, porém precisa, sobre algumas tendências capitais de considerações sobre a arte, principalmente na relação com a filosofia, que vem nos apoiar aqui. Distingue, desde Platão, as tendências postas aqui em resumo: didática: aparência e charme a uma verdade prescrita de fora, didática sensível com objetivo educativo de uma verdade que a filosofia, ou os centros de saberes como religião ou política, detêm por “exce lência” – vemos aqui a base mais simples da leitura alegórica, metafórica, simbólica, representativa. romântica: somente a arte é corpo real do verdadeiro, “encarnação” , livra-nos da esterilidade do conceito – tal supremacia, glória, a arranca da sua vivência direta com os mortais, da sua participação. clássica: Aristóteles esquiva-se da crítica platônica de que arte, mesmo para utilidade educativa, seria incapaz de verdade pois mimética, aparência; e a articula à “catarse”, transferência das “paixões” para a aparência artística, função terapêutica, tratamento das afecções da alma. Com relação às abordagens, diz Badiou: O que caracteriza o nosso século neste seu final é, a meu modo de ver, que ele não introduz nenhuma nova tendência. Quais são, no século, os pensamentos mais fortes? [...] em matéria de arte o marxismo é didático, a psicanálise é clássica e a hermenêutica heideggeriana é romântica [...] objetivo de Brecht era criar uma “sociedade de amigos da dialética”, e o teatro era, em muitos aspectos, o meio para atingir tal sociedade [...] Heidegger expõe um entrelaçamento entre o dizer do poeta e o pensar do pensador, a 11 vantagem fica, no entanto com o poeta. Pois o pensador é apenas o anúncio da virada [...] elucidação retroativa da historicidade do ser. Ao passo que o poeta, no que lhe concerne, efetua na carne da língua, a guarda do ser, daquilo que Heidegger chama de o Aberto. A psicanálise, enfim, é aristotélica, absolutamente clássica [...] ensaios de Freud sobre a pintura [...] Lacan sobre teatro ou poesia [...] A obra de arte faz desvanecer, em sua forma, a cintilação indizível do objeto perdido [...] provoca uma transferência porque exibe um objeto que é causa do desejo. (BADIOU, 1994, p. 23-24). Indicando a saturação dessas três tendências Badiou indica um quarto laço, em que, pelo exposto anteriormente, insisto em situar Gilles Deleuze, Guatari, bem como os outros que retomam em discurso direto ou indireto livre. A própria arte é um processo de verdade. O que quer dizer que a arte é um pensamento cujas obras (e não o efeito) são o real. E esse pensamento ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, quer sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à filosofia. O problema se encontra então na singularidade da arte. (BADIOU, 1994, p. 25) 1.3 O impessoal: força personífuga O humanismo administra-“nos”(?) lições. De mil maneiras frequentemente incompatíveis entre si. Bem fundadas (Apel) e não fundadas (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas (Searle), psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas franceses). Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos um valor seguro que não necessita ser interrogado. Que tem inclusivamente autoridade para suspender, interditar a interrogação, a suspeição, o pensamento que tudo corrói (LYOTARD, 1997, p.9) Cada nome desses citados entre os humanistas fica de responsabilidade de Lyotard o motivo de aí estarem. O que me interessa é esse questionamento do homem enquanto um valor seguro. A entidade “homem”, essa corporeidade autoinstituída se deu o direito de ser a medida de todas as coisas, como animal racional, animal comunicante, com sua nomeação é “sujeito” que subjuga os “objetos” nomeados. No entanto, ele tem se posto em crise enquanto entidade absoluta; o que primeiro enfraqueceu foi a voz toda poderosa que lhe outorgou discernimento e o poder de nomear, portanto, dominar. Dominar não só sobre os outros seres, mas intra-espécie, capaz de fazer predominar nas propagações discursivas o homem macho, ocidental, branco etc., entidades majoritárias que também são postos em dissolução pelos Devires. 12 Vários acontecimentos vêm minando as transcendências – sistemas ideais, que preexistem aos fatos. A voz divina enfraqueceu e nos apegamos ao cogito, “sujeito” por si pensante, mas ainda senhor e nomeador. Mas outros abalos epistêmicos se fizeram e de algum modo nos assalta os confins do homem e como veremos mais à frente, com atestado também de Derrida, é na linguagem, na escritura, que isto tem se configurado. “Ao passar as fronteiras ou os fins do homem, chego ao animal: o animal em si, o animal em mim e o animal em falta de si -mesmo [...] Há muito tempo pode se dizer que o animal nos olha? Que animal? O outro” (Derrida, 2011, p.15). Esta obra de Derrida tem por título O Animal que logo Sou: como não vermos, já no título, uma referencia crítica ao cogito: “penso logo sou?”. Sobre a questão específica do animal, trataremos mais adiante nas leituras envolvendo o Devir-animal. Fiquemos por ora com a presença desse “Outro” que nos olha nos atrai aos confins. Adiantemos ainda que esses liames , além dos animais não falantes, são, enfim, moleculares, do biológico ao cósmico, e que de algum modo se instalam como agenciamentos nos dispositivos de escritura, eventos incorpóreos que atuam sobre as corporeidades constituídas como conteúdos, alterando, no âmago dos discursos, as coisas. A vergonha de ser homem: haverá razão melhor para escrever? [...] A literatura começa com a morte do porco-espinho, Segundo Lawrence, ou com a morte da toupeira, segundo Kafka [...] escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz. A língua tem de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo devir é um desvio mortal. (DELEUZE, 1997,11-12) Vejamos então em que se apoiam esses dispositivos de modo mais geral, principiando pela neutralização do “sujeito” e aparatos discursivos que o acompanha para, logo mais, nos situarmos nas abordagens singulares nos contos de Murilo Rubião e especificarmos operacionalidades que configuram uma semiótica do devir. Deleuze e Guattari concebem o plano de composição literária, os perceptos e afectos, não mais como percepções e sentimentos de um sujeito individuado; concebe uma linguagem que faz ruir a comunicação e abole não só os objetos referenciais, mas o sujeito comunicante. Destitui a linguagem literária de seu poder de dizer “eu”, neutralizando a soberania do sujeito em prol de um agenciamento que individualiza por intensidades e afectos não subjetivos; a literatura diz respeito a uma terceira pessoa ou à potência de um impessoal. 13 As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o „neutro‟ de Blanchot). (DELEUZE, 1997, p. 13) Não é generalidade ou uma individualidade: [...] é singularidade no nível mais elevado, momento em que os personagens são arrastados para um indefinido considerado como um devir potente demais para eles [...] singularidade individual definida por afetos, potências, intensidades, que, às vezes, utilizando um termo do filósofo medieval Duns Scot, ele chama de “hecceidade”. (MACHADO, 2009, p. 210) Essa potência impessoal faz da linguagem literária única passagem, no entanto passagem, não finalidade em si. Nega a consideração de que a literatura faz sua linguagem voltar-se intransitivamente sobre si mesma, comentando-se somente a si própria. Isto é apontado por Foucault como um equívoco em seu texto O pensamento do Exterior (2006). A linguagem literária é privilegiada por ser o único caminho, mas o que se almeja enfim é o que se atinge no seu limiar de tensão, o impensável no pensamento, a experiência do fora, o espaço-tempo da diferença. O que há de “impossível” na linguagem e que, por conseguinte, lhe pertence tanto mais estreitamente: seu fora. [...] O procedimento impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele devasta as designações, as significações, as traduções, mas para que a linguagem afronte enfim, do outro lado de seu limite, as figuras de uma vida desconhecida. (DELEUZE, 1997, p. 33) linguagem sempre em relação com o de-fora, não pode ser separada de um elemento não linguístico, mesmo se não há entre os dois uma relação de representação. Por mais indispensáveis que sejam os procedimentos de linguagem, são apenas condição, e devem se articular com um processo vital capaz de produzir visões e audições [...] criando novas possibilidades vitais, novas formas de existência [...] uma vida constituída por forças informais, intensidade, singularidade, virtualidade. (MACHADO, 2009, p. 210-211) Desse modo na escritura o escritor entrevê e entremostra os interstícios, os desvios da linguagem com um objetivo crítico e clínico: tornar sensíveis forças invisíveis e inaudíveis oferecendo em perceptos e afectos, em seu plano de composição, linhas de fuga; fazendo fugir as percepções e afeições cristalizadas em matrizes que as tornam nada mais do que representações. Nas palavras de Deleuze (1988, p.92) 14 O fora concerne à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as forças remetem necessariamente a um fora irredutível, que não tem nem mesmo uma forma, feito de distâncias impossíveis de serem decompostas, através das quais uma força age sobre outra ou é agida por uma outra. A noção de força está em conexão compositiva com o pensamento de Nietzsche, forças capazes de “arrebatar” a linguagem tornando-a a-histórica. O que não pode ser confundido com “recorte estrutural” de neutralizar exterioridades. Trata-se de suspender no instante da diferença as agências que fundam, difundem e se autorizam a policiar o que dever ser “necessário”. Afirma-nos PELBART (2009, p. 107-109). As forças constituem o Fora nas suas diferenças, o Fora é a diferença entre as forças, a diferença é o Fora das forças; longe de ser um jogo de palavras, essas permutações são o próprio Jogo que Nietzsche nos ensinou [...] É nesse sentido que uma nova relação da escrita com o Fora suscita um novo pensamento. Pois pensar para Nietzsche, Blanchot, Foucault, Deleuze e tantos outros não é uma faculdade, mas abertura em relação com o Fora. Enfim, é perceptível que se desemboca na questão da alteridade. Esse “outro” está bem além do outro indivíduo, do próximo. É o outro do mundo, todas as suas possibilidades virtuais presentes nas intensidades, no estranho; o insensível na sensação, o impensável no pensamento. Como palavra do Outro, como ser da linguagem, como plano de imanência, como relação com o fora, a literatura aparece verdadeiramente como uma experiência, pois, como afirma Blanchot, „somente há experiência no sentido estrito onde algo de radicalmente outro está em jogo. E eis a resposta inesperada: a experiência radical não empírica não é de maneira alguma de um Ser transcendente, mas a presença „imediata‟ ou a presença como fora‟. Deleuze, Foucault e Blanchot buscam na arte a possibilidade de outra forma de experiência que não se baseie no domínio da representação, mas no domínio do sensível (LEVY, 2011, p. 128) 1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário O pensamento da Diferença tem uma dimensão Crítica e Clínica que está conectada diretamente com imagem Nietzschiana da medicina cultural. Pensadores diferencias – dentre os quais os artistas são privilegiados – são médicos da cultura: “alguém que analisa a doença ou os sintomas do homem e do mundo e avalia suas 15 possibilidades de cura” (MACHADO, 2009, p. 218). A linguagem desterritorializante, o momento de crítica, abre, a partir da a-significância, novas possibilidades de vida, aos “pensamentos fechados uma corrente de ar fresco ” – verso de um poema de Bob Dylan citado em Diálogos (DELEUZE; PARNET,1998, p. 13). Esta é a dimensão Clínica, recuperação da saúde mental que só se consegue no limite da palavra louca, num devir-louco da linguagem. É justamente por isso que a imanência solicitada à literatura não é intransitiva é, antes, intransigente. Se desinstala a noção de objetos e sujeitos comunicantes, é para denunciar a arbitrariedade tornada Natural sob certos despotismos e os centros exógenos de subjetivação e apreensão do mundo. Atinge-se, enfim, numa linha de fuga criativa, uma abertura ética por excelência, um espaço-tempo originário de conceber e sentir. O plano de imanência em Deleuze não é a pseudo-imanência do recorte estrutural, separação em significante e significado, ou sistema ideal abstraído de processos culturais em andamento. Pelo contrário, faz guerrilha com esses dualismos. No plano de imanência expressão e conteúdo estão em defasagens e tensões apenas para que se construa e se funde um novo plano de pensamento e liberdade, mas são indissociáveis: o agenciamento coletivo é coextensivo ao ponto originário de expressão; se esta protesta é para rasurar seu conteúdo territorializado; para fazer nascer uma coletividade-conteúdo virtual, implicando nesta um povo por vir. Em tal perspectiva a literatura contorna o âmbito da estética enquanto apenas processo de formalização que expõe o processo literário apenas como desempenho habilidoso de significantes ou uma forma parabólica de redizer o mundo; caminho pelo qual a reputação da literatura para a sociedade em vários momentos é levada ao dissabor de uma especialidade teórica por determinados estruturalismos. Por sua trajetória teórica, da experiência estrutural a abordagens discursivas mais amplas, nada como um Todorov para nos falar: Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relações com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra em si [...] Permanece o fato de que a tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo ocupa uma posição dominante no ambiente universitário (TODOROV, 2009, p. 39-40). Já percebemos que essa vertente de estruturalismo vem sendo bastante repensada e vemos reerguer-se um grande número de abordagens das relações da 16 literatura com a história, a sociedade etc. No entanto ainda como linguagem representante, refratável aos fatos, projeções da realidade; e não observada até aos limites como uma realidade, como uma experiência, articulação de diferença irrecuperável fora de seu plano. Literatura aqui não é projeto, menos ainda projeção, é projétil na realidade. Tanto quanto à ciência, à filosofia, à política, à linguagem artística pode ser reivindicado seu espaço enquanto atitude com o mundo. No entanto, essa atitude do pensar literário é a partir de seu modo singular e insubstituível, ou seja, não como um conjunto de recursos formais a que podem se acomodar ideias filosóficas, determinada teoria ou ideologia; mas como um ser completo em que seu raciocínio é seu próprio corpo de sentido. Não se recorre à literatura como uma fonte documental ou objeto, mas entregando-se a seu processo e potencialidades do saber estéticointensivo, ou como em Barthes: saber-sabor (2001, p. 21). Contra toda a moralidade classista, castradora, a literatura deve sugerir um povo que falta, abertura ética em que “A sintaxe é conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12). 17 2. CRÍTICA EM DEVIR: LENDO A DIFERENÇA A noção devir atravessa todas as camadas da atividade humana e seus usos por Deleuze e Guattari não são restritos à literatura. É uma abordagem do mundo e todas as modalidades de estruturação da diferença , colocando esta última como positividade. No entanto, ao intervir na literatura, é inevitável que se instale na discussão teórica das abordagens e contribua com aproximações e certas adesões, ou com críticas, a leituras já consolidadas ou bem divulgadas, enfim, na construção de uma perspectiva de leitura. O que mais interessa a esta dissertação é inquietude que essa perspectiva gera, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como irrevogáveis pela constante prática: a de que a linguagem e, extensivamente, literatura, pressupõe dócil e amplamente representação e interpretação. Este é um momento oportuno para precisarmos teoricamente a noção de representação a que nossa perspectiva de leitura se opõe. Pelo que nos expõe Deleuze, os elementos recorrentes da representação se configuram pelo menos em quatro aspectos principais identidade na forma do conceito indeterminado, analogia na relação entre conceitos determináveis últimos, a oposição na relação das determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto determinado. [...] os quatro liames da mediação. Diz-se que a diferença é “mediatizada” na medida em se chega submetê-la à quádrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da semelhança. A partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal), propõe-se “salvar” a diferença, representando-a, e para representá-la, relacioná-la às exigência do conceito em geral [...] A diferença deve sair de sua caverna e deixar de ser um monstro (DELEUZE, 2006, 57) A mediação e suas muitas formas é o que sintetiza a representação. O Devir, a instauração da diferença, vai sempre se indispor à mediação. A mediação não implica apenas a alienação dos seus elementos face ao seu enquadramento; permite modulá-lo. E quanto mais “rico” for o termo mediato, ou seja, ele próprio mediatizado, mais numerosas são as modificações possíveis, mais flexível o seu enquadramento, mais flutuante o nível de trocas entre o seus elementos, mais permissivo o seu relacionamento. (LYOTARD, 1997, p.14) É preciso pensar a diferença e a produção a diferença em si, positivada, como excedente criador. Teremos signos que se recusam ao regime significante, catástrofe na circularidade, abrindo um processo imediato, sem interpretantes a perambular na enciclopédia e nas árvores, uma ordem dinâmica 18 [...] na ordem dinâmica , já não há conceito representativo nem figura representada num espaço preexistente. Há uma idéia e um puro dinamismo criador de espaço correspondente. (DELEUZE, 2006, 45) A diferença só deixa, com efeito, de ser um conceito reflexivo e só reencontra um conceito efetivamente real na medida em que designa catástrofes: sejam rupturas de continuidade nas séries das semelhanças, sejam falhas instransponíveis entre estruturas análogas (DELEUZE, 2006, 65) 2.1 Teorias: enlaces e distâncias Em contraposição à imitação, à reprodução, tal Devir encontra-se com a problemática da mímesis em que, no sentido platônico, a arte – imitação da imitação, principalmente as de má imitação – deve ser excluída da república. E é tomando positivamente esse simulacro em dessemelhança que se faz guerrilha crítica contra dualismos – centros abstratos de sentido próprio e periferias representantes – na perspectiva do devir literário. É na valorização dessa cópia defeituosa que surge uma silhueta de linguagem que não aceita mais simplesmente representar ou comunicar em acontecimentos como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud em que as palavras “Deixaram de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser utensílio” (PAZ, 1996, p. 48); uso da palavra fora da necessidade (VALÉRY, 1999, p. 178); e se impulsionaram também muitos aspectos das movimentações vanguardistas, antropofagias culturais, futurismos etc. Benjamin já nos expos uma mudança cultural profunda em que as narrativas se empobreceram de experiências a serem contadas, transmitidas, e se dão apenas à experiência pobre da própria possibilidade de narrar, dá-se o próprio corpo narrativo como experiência, numa tentativa de reconstrução de uma nova forma de narratividade sintética. Referindose a Proust: [...] trabalho de construção empreendido justamente por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privacidade da experiência vivida individual (Erlebnis) (BENJAMIN, 1994, p. 10) A crise que se passa aí é a do texto que está se tornando corpo e não apenas fantasma que representa os corpos; a superfície literária passa a ser experiência em 19 sua materialidade, comportando potências e afectos que agem no mundo: realidades em plural agindo sobre “a realidade” – refutando, repudiando no mínimo, esse singular definido que pronuncia despoticamente seu caráter soberano. “Essa navegação [...] acontece de fato [...] Quando a narrativa se torna romance, longe de parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração” (BLANCHOT, 2005, p. 07). O devir, em uma perspectiva de leitura, compõe-se com esses aspectos da “experiência literária”. Vimos e veremos por vários momentos que o procedimento literário compõe uma máquina de guerra, faz conexões anômalas para provocar traumas nas estruturas fixas e reverberantes, abrindo linhas de fuga. Apesar de expressões diferenciadas, é perceptível que neste “devir” reconhece-se, participa-se, apropria-se da preocupação com a estrutura literária transgressiva, intransigente que vemos se manifestar em muitos textos, teorias e críticas. A potência transgressiva está na base de alguns termos utilizados por Deleuze e Guattari nas abordagens literárias como língua menor, intensiva, a-significante (não representativa), tendo como efeito uma desterritorialização. Ainda, muitas outras focalizações de teoria e crítica literárias atuam sem grandes problemas com os tropos linguísticos, linguagem figurada, equilibrada na dualidade conotação/denotação; arquétipos psicanalistas, alegorias sociológicas etc. – todos teoricamente bem construídos com suas positividades legítimas de pesquisa, por vezes com fortes tendências ideológicas. Nesse âmbito, o Devir em Deleuze é bem mais radical: não admite o sentido metafórico, simbólico, alegórico, arquetípico como componentes do Devir. Sua potência desapropriante não admite ser conotação, copiloto de sentidos “próprios”, ser inquilino em um território preestabelecido. Pretende-se literal. Se tal linguagem faz guerrilha contra transcendências, revoga sobrecódigos, portanto não pode haver sentido próprio que preceda o atual do devir literário. Não se compreende isto partindo da dicotomia langue/parole, em que há um sistema ideal e uma realização sempre imprecisa deste. É preciso fugir de tal plano: o sistema linguístico abstraído da fala, do uso pragmático, negligencia algo que lhe é coextensivo e essencial na sua efetivação real que são os agenciamentos coletivos de enunciação, a base produtora e propagadora dos “sentidos próprios”, das 20 denotações. Compreendendo que os significados constituídos não são “naturais”, mas produzidos por vigências de um território, veremos então que o agenciamento literário, como desapropriação semiótica, provoca com a sua fala, e imanente a ela, insurreição e o surgimento, de uma nova língua; um uso “menor” autoprodutor de seu sistema abstrato, para sabores anômalos, na corda bamba dos limiares, alaridos e rumores: [...] É uma mapa de intensidades. É um conjunto de estados, todos diferentes uns dos outros, implantados no homem no momento em que este procura uma saída. É uma linha de fuga criativa que só significa o que ela é. (DELUZE; GUATTARI, 2002, p. 69) Mesmo nos seus textos filosóficos, utiliza termos que o senso redundante nos conduz apressadamente a interceptá-los como metáforas. Ao falar, por exemplo, de ideias, utiliza termos como buracos negros num muro branco configurando um rosto, nos esclarece: Não é óbvio, o rosto da amada, o rosto de chefe, a rostificação do corpo físico e social... Eis uma multiplicidade, com pelo menos três dimensões, astronômica, estética, política. Em nenhum dos casos fazemos uso metafórico, não dizemos: são “como” buraco negros em astronomia, é “como” uma tela branca em pintura. Nós nos servimos de termos desterritorializados, ou seja, arrancados de seu domínio, para reterritorializá-lo em outra noção, “o rosto” a “rostidade” como função social [...] falamos literalmente (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 26) “Suponhamos que ler Deleuze seja ouvir, mesmo que por intermitências, o apelo do „literal‟”, afirma François Zourabichvili na introdução de seu Vocabulário de Deleuze (2009, p. 10) e é com palavras quase bruscas que encontramos na obra de Deleuze em elucidação do inseto de Kafka: O devir-animal nada tem de metafórico. Nenhum simbolismo, nenhuma alegoria. Também não é o resultado de uma culpa ou de uma maldição, o efeito de culpabilidade. Como dizia Melville a propósito do devir-baleia do capitão Achab, é um „panorama‟ e não um “evangelho” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 69) Deleuze é muito rigoroso em suas afirmações concernentes à linguística e filosofia da linguagem; em toda a sua obra há investigações minuciosas sobre a linguagem e dos centros de poder que irradia. Um sentido próprio – piloto, principal? 21 – denotativo; e outros conotativos – copiloto, não principal? – supõe uma máquina binária, outro dualismo e: Não é verdade que a máquina binária só existe por razões de comodidade. Dizem que “a base 2” é a mais fácil. Mas, na verdade, a máquina binária é uma peça importante dos aparelhos de poder [...] se a própria linguística procede por dicotomias (cf. as arvores de Chomsky onde uma máquina binária trabalha o interior da linguagem) se a informática procede por sucessão de escolhas duais, não é tão inocente como se poderia crer. Talvez seja porque a informação é um mito e a linguagem não é essencialmente informativa [...] não é feita para que se acredite nela, mas ser obedecida. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 32) Tais palavras são de Claire Parnet, neste livro Diálogos que escreve com Deleuze. Propõem como unidade mínima linguística não os fonemas e vocábulos; mas um agenciamento coletivo. Portanto que determinado sentido de um vocábulo seja o “próprio” não é uma necessidade, apenas considera-se a partir de um determinante solo de forças. Em uma língua menor, tensionada para os limites, o sentido próprio é a resultante de forças: o devir, o tempo da diferença, sempre sentido flutuante, nunca significado precedente. Neste sentido o devir é literal, pois as palavras foram enxertadas e soam uma estranheza como propriedade, deve fazer fugir e perder de vista a matrix, viver intensamente em seu plano de composição. Podemos aproximar outros exemplos de perspecti vas que se sugerem a literalidade como problema essencial. Em Introdução à Literatura Fantástica (2010), Todorov sugere de que modo uma leitura alegórica pode ser um perigo ao fantástico. É possível aproximarmos esse fato ao que ocorre com o Devir que também não se dispõe à leitura alegórica. Assim como a literalidade do devir é desencadeada em seu plano de composição, esse perigo alegórico indicado por Todorov se oferece em detrimento do nível de consideração: “[...] não sobre a natureza dos acontecimentos, mas sobre a do próprio texto que os evoca” (TODOROV, 2010, p. 66). Todorov nos expõe exemplos em que a evidência ou não, pelos próprios textos, da presença da alegoria é que define o efeito do fantástico (implicando portanto, se cabe ou não leitura alegórica). Há alguns declaradamente alegóricos onde o nível de sentido literal tem pouca importância, as inverossimilhanças não desconcertam, pois o foco está no sentido alegórico representado – como em uma 22 catacrese em que nem se percebe que há duas falas. Há outros que dividem a atenção evidenciando que o sentido deve ser o alegórico, mas que se dê certa importância à película literal, mesmo que desbotada para deixar ver o sentido alegorizado; neste caso, o plano literal não pode ser ignorado por completo, mas não tem soberania; o sentido alegórico é indireto, mas claramente indicado: “[...] temos aí um exemplo em que o fantástico se acha ausente não por faltar a primeira condição (hesitação entre o estranho e o maravilhoso) mas pela falta da terceira: ele é morto pela alegoria, e uma alegoria que se manifesta indiretamente.” (TODOROV, 2010, p. 75). Em indicações que coagem a um mínimo de alegoria “o fantástico encontra-se com isso bem enfraquecido” (TODOROV, 2010, p. 76). Já no exemplo de Willian Wilson de Poe, um homem é perseguido por seu duplo e como desfecho o mata em um duelo. Há ainda, indicações de alegoria, na fala do duplo à beira da morte: Tu venceste, e eu sucumbo. Mas de hoje em diante estás também morto, - morto par o mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias – e vê em minha morte, vê por esta imagem que é a tua, como assassinastes radicalmente a ti próprio.” Essas palavras parecem explicitar plenamente a alegoria; contudo, permanecem significativas e pertinentes ao nível literal. Não se pode dizer que se trate de uma pura alegoria; estamos antes em face de uma hesitação do leitor. (TODOROV, 2010, p. 79) Se observarmos a consideração de níveis feitas por Todorov, por ter havido a fala do próprio duplo, este tem existência literal no plano da obra; se houver indicação alegórica é sobre a morte de Willian Wilson original. Mas enfim: “É preciso insistir no fato de que não se pode falar de alegoria a menos que dela se encontre indicações explícitas no interior do texto” (TODOROV, 2010, p. 81). Pelo que vemos, é essa permissão ou não no interior do texto, no nível de sua diegese, que vai autorizar ou não a alegoria, que vai manter ou não o fantástico. Da mesma forma, onde um texto se deixar ou mesmo agir para manter-se alegórico – ao menos pelo que nos tem dito os pensadores em quem se baseia esta dissertação – não produzirá Devir. É possível perceber, nessa hesitação essencial do fantástico sugerida por Todorov, uma espaço-temporalidade em que os significados ficam suspensos, e o que hesita é toda a racionalidade precedente capaz de explicar; instaurando uma catástrofe semiótica em relação ao explicável, porém produtora de 23 efeitos outros de sentido. Mostrando-nos, isto, mais uma perspectiva que leva em conta o excesso incontrolável produzido, e que não se deverá dissolvê -lo em irrealidade a menos que a obra, no seu plano interno, já o faça; caso contrário, haverá completa violação. Sem confundir a leitura do Devir como o Fantástico em Todorov, podemos vê-la como uma aliada para este aspecto de levar em consideração antes de tudo o nível interno do texto para decidirmos se é literal ou não “[...] o sentido literal não se perde. A prova disso é que a hesitação fantástica se mantém (e sabe-se que esta se situa ao nível do sentido literal).” (TODOROV, 2010, p. 75). Este teórico sugere então que nos instantes de fantástico, neste tempo da hesitação, produz-se um efeito de sentido que só pode ser experimentado nessa exata condição plasmada pela obra, sem remissão substitutiva na economia das trocas (semelhanças e equivalências). Convocamos, ainda sobre essa literalidade essencial, o testemunho de Blanchot. Em O Livro por Vir (2005), no subtítulo Ao pé da letra, discorrendo sobre o texto bíblico e questões envolvendo interpretação e, mesmo, tradução, nos interroga: “Em que medida podemos acolher essa linguagem? ”. É-nos muito conveniente a sua resposta, pois sintetiza a problemática das transcendências impostas a leituras contra as quais a noção de devir investe; e, ainda, nos ajuda, desde já, a problematizar os modos de remissão aos textos bíblicos que veremos na leitura sugerida por Schwartz de Murilo Rubião. Se ela é de natureza retórica, é porque sua origem é moral, ligada à obrigação implícita, mesmo para os incréus, de acreditar que a espiritualidade cristã, o idealismo platônico e todo o simbolismo de que nossa literatura poética está impregnada, nos dão direito de posse e de interpretação sobre essa fala, que teria alcançado sua plena realização, não nela mesma, mas no advento de uma boa nova. Se, o que os profetas anunciam é, afinal, a cultura cristã, então é perfeitamente legítimo que os leiamos a partir de nossas delicadezas e de nossas seguranças, sendo a principal, a de que a verdade está doravante sedentária e bem estabelecida. A leitura simbólica é provavelmente o pior modo de ler um texto literário. Cada vez que somos incomodados por uma palavra mais forte, dizemos: é um símbolo. Esse muro que é a Bíblia se tornou, assim, uma suave transparência em que se colorem de melancolia as pequenas fadigas da alma. [...] Entretanto, se as palavras proféticas chegassem até nós, o que elas nos fariam sentir é que não contêm nem alegoria nem símbolo, mas que, pela força concreta do vocábulo, elas desnudam as coisas. (BLANCHOT, 2005, p. 121-122.) 24 Essa literalidade essencial sugere a alforria da palavra enquanto um ser, uma realidade com potências e temporalidades que lhe são próprias e plenamente capazes de alterar o curso das coisas; um acontecimento por excelência a tudo aquilo que cruzar o seu caminho. Veremos nisto que toda indicação do texto – e seus seres de linguagem – como ilustração, representação, realidade segunda, são vetados para nossa proposta de leitura. Esta deve localizar os agenciamentos de significação territoriais e tão logo os procedimentos que os arrastam, desfiguram, propõem algo de radicalmente Outro. Deve interpor a nós os afectos, essas “forças concretas dos vocábulos”, num arranjo tal que atravessam as coisas travestidas por outrem e as devolvem nuas, como Derrida perante o gato em O animal que logo Sou (2011); como a Esfinge cala-se à leitura de Blanchot, “sem segredo, para além da qual não há nada senão o deserto que ela porta em si mesma e transporta em nós” (2005, p. 130). Perguntamos, em discurso indireto livre, com a voz de Blanchot: O que nos diz isto? “Que é necessário tomar tudo ao pé da letra; que estamos sempre entregues ao absoluto de um sentido, da mesma maneira que estamos entregues ao absoluto da fome, do sofrimento físico e de nosso corpo de necessidade” (BLANCHOT, 2005, p. 123). 2.2 Modus Operandi em Devir “[...] pode o pensamento de Gilles Deleuze fornecer-nos subsídios suficientes para uma leitura crítica do texto poético?” (MALUF, 2011, p. 21). Não encontrei muitos trabalhos que especificam ou no mínimo discutem a possibilidade de aspectos metódicos mínimos a operações como a noção de devir em literatura. Em verdade esta noção é se afirma repulsiva a um discurso do método, mas não pode abster-se de critérios. Que pudesse mesmo ajudar um texto científico nos moldes de dissertação, encontrei apenas as considerações de Ana Costa Maluf. Embora meu objeto não seja em verso, algumas questões levantadas a partir de sua leitura poética de Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, não deixam de provocar ressonâncias sobre o presente trabalho. Justamente por não ter um modus operandi com precisas definições, seja por ser um pensamento ainda não assentado comodamente em estudos literários, seja por que o próprio pensamento não permite fixidez metodológica. Há tão somente 25 vetores conceituais e os riscos de as leituras reconstituírem “ainda que em nome de uma suposta „diferença‟ a mesma operação de uma antiga imagem do pensamento em que a teoria funciona como um modelo transcendente a ser aplicado em uma cópia” (MALUF, 2011, p. 22). É neste ponto que é preciso não só reconhecer como afirmar em positividade que este trabalho se propõe a ler sobre o campo da diferença, indicar potências informais, desconstituição dos sujeitos e objetos constituídos; no entanto, sob as normas e técnicas acadêmicas, tendo o compromisso conjetural, investigativo e explicativo; nenhuma pretensão de invalidar teorias e ideias, mas pôr em discussão os aspectos criticados ou reafirmados ao se acionar, como operação de leitura, o Devir sugerido. Como seria uma análise dos contos de Murilo Rubião sob tal sugestão de Devir? Pode tal pensamento fornecer subsídios para esse fim? Por isso faz parte, de modo expansivo, a exposição de pressupostos, bem como utilização do conceito realizada na literatura. [...] tentativa de experimentar um certo modo de operar com a filosofia da diferença [...] um certo modus operandi desse pensamento [...] Dou-me conta ao final, enfim, que toda esta leitura só se torna possível a partir do conceito de Devir que atravessa a filosofia de Deleuze. E ainda mais que certas concepções espaço-temporais são imcompatíveis [...] uma espécie de leitura “intempestiva” [...] com vistas a fabular procedimentos de escrita, encontrando ressonâncias poéticas e filosóficas que não se submetem à antiga ideia de filiação, influência, contextos históricos ou regionais [...] Não se trata, assim, de se descartar os fatos históricos, a memória voluntária, os estados de coisas passados, o tempo cronológico, mas antes, de fazer com que eles estejam em função deste outro tempo, que poderíamos chamar de devir, tempo do futuro, acontecimento, ou tempo da diferença [...] e as distâncias mesmas deixam de ser extensivas, empíricas, atuais, para se tornarem intensivas: forças diferenciais atuando virtualmente sobre os corpos (MALUF, 2011, p. 22-25). É chegado então momento de falarmos sobre o Devir diretamente como uma operação, uma vez já bem discutidas as generalidades que o envolvem enquanto posicionamento no mundo dos discursos. Apresentemos, portanto, um conjunto de critérios e termos que são indissociáveis e cooperam em sua efetivação. 2.2.1 As minorias. Língua menor. Teremos como vetor discursivo de Devir a aproximação, atração, por coletividades bárbaras, não dominantes. O devir é sempre uma resistência de 26 minoria, uma guerrilha. Minoria aqui não é quantitativa, mas no sentido de uma zona que não é plenamente constituída ou aceita em geral, que não tem significação difundida, matricial. Todo devir é um devir minoritário. É porque homem é maioria qualitativa, modelo de identidade, entidade molar, forma de expressão dominante, que não há devir-homem. Devir é se desterritorializar em relação ao modelo [...] isso significa trair potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida – o que exige ser criador [...] isto significa que escrever é um processo, uma linha de fuga: tornar-se diferente do que se é, como também pensava Foucault.” (MACHADO, 2009, p. 213) É neste sentido que se aproxima da feminilidade, da criança, de outros povos não ocidentais; mais ainda, do animal, dos outros reinos biológicos, minerais, moleculares. E não é para recuperar as semelhanças com o homem, ou simples oposições a ele que nos manteriam no mesmo plano de consideração. Mas para compor com essa “outridade” uma linha expressiva anômala, dispositivo de escritura, para outras visões e audições que não estejam prescritas pelas forças gramaticais, oficiais, naturais, universais. Como modo integral de atuação, o que concorre para desencadear devires perpassa todos os níveis possíveis da linguagem, e se os separarmos é somente para compreensão analítica. Assim, há agenciamentos semióticos que podem incidir sobre todos os níveis da língua – dos fonéticos aos grandes discursos organizadores – mas, de uns a outros, é de sintaxe que estamos falando. Se cada microagenciamento na língua, a exemplo, o “Blablabel” no procedimento de Wolfson (DELEUZE, 1997, p. 18) contribui para desestabilizar até as visões de mundo, tudo é, imanentemente, si ntaxe. O problema de escrever encontra-se em realizar um uso menor da língua, em atingir uma língua estrangeira dentro da própria língua, levar a língua a delirar, “como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo” (DELEUZE, 1997, p. 9). E esse delírio age em todos esses níveis e tem ênfases diversas, dependendo do que está em agenciamento de devir. Portanto, na língua menor da literatura, encontramos agramaticalidades na pronúncia, constituição de vocábulos, na conexão lógica, nos fundamentos semânticos, no discurso e sintaxe narrativa, nos macrodiscursos ideológicos; todos juntos, ou um ou outro, dependendo da investida do plano de composição, do que se põe como “problema” literário. E se falaremos de como, por exemplo, Rubião cria outros 27 tempos, outra sensibilidade, outros enfrentamentos políticos, outra semântica; é de sua sintaxe, de sua língua menor que estaremos falando também. Desse modo, quando abordamos os contos é para observar como se estrutura a linguagem que faz fugir ao extemporâneo, ao inumano, no tempo suspenso da diferença, irreconhecível à imagem matricial. A língua não é tida como um sistema homogêneo, composto de invariantes estruturais; há várias línguas numa mesma língua, com as quais o escritor poderá forjar a sua ao desequilibrar a língua padrão, dominante, desestabilizar as formações linguísticas canônicas através de um uso menor que a tensiona para os limites fazendo-a deixar de ser representativa: Opor um uso puramente intensivo da língua a qualquer utilização simbólica ou mesmo significativa ou simplesmente significante [...] abandona-se o sentido, será subentendido (DELEUZE; GUATARI, 2002, p. 43-45) Fundamentalmente o que interessa Deleuze na questão da linguagem literária é o estilo como uma nova sintaxe que possibilita que o escritor produza um devir-outro da língua, um “delírio” [...] o modo como o escritor decompõe, desarticula, desorganiza, sua língua materna para inventar uma nova língua [...] novas potências sintáticas, gramaticais – seria melhor ainda dizer assintáticas, agramaticais – que lhe dê um uso intensivo, oposto ao uso significativo ou significante [...] uma linha de fuga que revela e põe em questão os mecanismos de dominação da língua através de uma língua originária inumana ou sobre-humana que devasta as referências, mina os pressupostos que permitem à linguagem designar as coisas a partir de um sistema de convenções lógicas ou gramaticais, funcionando neste sentido como agramatical [...] uma língua intensiva, afetiva, vibrátil. (MACHADO, 2009, p. 207-209) 2.2.2 Dos planos: transcendente e imanente. Plano escritural. Um plano é a base que sustém uma concepção de universo e sua expansão funcional, significativa, conectiva. Deleuze distingue um plano transcendente e o plano imante e neste inclui o plano de escritura. O Plano transcendente organiza -se por um princípio oculto, que apenas se pode inferir pelo que dá em sincronia ou diacronia; plano de organização (estrutural) e/ou genético (desenvolvimento evolutivo); desenvolve formas e formação de 28 sujeitos: “Estrutura oculta necessária às formas, significantes secretos necessário aos sujeitos [...] Só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele dá (n+1)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54). O plano de transcendência é teleológico, analógico: seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos [...] Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência, analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.). A árvore está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54) Um Plano de vida, música ou escrita, será igual se estiver em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma; ele é para essas formas e esses sujeitos. Quando comentarmos o plano de leitura representativo de certas sínteses de leitura de Schwartz a respeito dos contos de Rubião, por exemplo, é deste plano que estaremos falando. Em mobilização contra a fixidez do plano de transcendência, há acontecimentos que extrapolam e saltam de plano, migram para coordenadas informais, que são estrutura e conteúdo indiscerníveis e que se autoconstroem. É o plano de imanência, de composição: não há formas ou desenvolvimento destas, nem sujeitos ou formação destes; nem estrutura nem gênese: apenas movimento e repouso, elementos não formados, moléculas e partículas de toda a espécie, hecceidades, afectos, composições de potências, individuações sem sujeito que constituem agenciamentos coletivos. É um plano de natureza nua, não a Natureza como palavra de ordem de classificação estatal. Este plano não distingue o natural do artificial; por mais que cresça em dimensões nada perde em plenitude, não tem dimensões suplementares àquilo que passa por ele, plano de proliferação, de povoamento, de contágio por involução-devires. É com essas potências da imanência que se compõe o plano de escritura, sempre em direção do informe, projeto e produto indissociáveis, seu devir é sua lógica. Nathalie Sarraute propõe, por sua vez, uma clara distinção de dois planos de escritura: um plano transcendente que organiza e desenvolve formas (gêneros, temas, motivos), que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos); e um 29 plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do “envoltório” das formas e dos sujeitos [...] afectos flutuantes, de tal modo que o próprio plano é percebido ao mesmo tempo que ele nos faz perceber o imperceptível (microplano, plano molecular). (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 56) Também separamos estes planos por necessidade explicativa. Mas eles não cessam de se interporem. Os devires, de modos variáveis, sucumbem às forças molares e se reterritorializam para novamente afrontarem um devir irresistível. O plano de composição, de escritura, só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel. Os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões daquilo que ele desenvolve a cada vez; não paramos de passar de um ao outro, por graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois; não paramos de reconstituir um no outro, ou de deixar extrair do outro. É justamente por isso que as leituras representativas se dão ao lado, oferecendo riscos; como também são insuficientes pois negligenciam os devires, os recobrem, os evitam sob vários disfarces e mecanismos culturais de contenção como licenças poéticas, ou modos simbólicos de regulação e recuperação. [...] o plano de organização ou desenvolvimento cobre efetivamente aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os órgãos e as funções são “estratos” ou relações entre estratos. Ao contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou composição, implica uma desestratificação de toda a Natureza, inclusive pelos meios os mais artificiais [...] Mais ainda, o plano de consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 61) É uma grande lição prática de uma leitura pronta a perceber os dois planos, o modo como Deleuze e Guattari (1997, p. 62) demonstram a respeito de Em busca do Tempo Perdido uma defasagem que ocorre entre o personagem, que tem suas considerações em um plano transcendente, de organização; e o narrador, que transpassa as coisas com afectos móveis, devires. O personagem Swann, não para de pensar em termos de sujeito, formas e correspondências: uma mentira é uma forma cujo conteúdo deve ser descoberto e vira um policial amador. Enquanto que para o narrador uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo, é emissão de 30 partículas dos olhos que valem por si, o ciúme não é o mesmo quando se passa de Swann ao narrador. 2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades, mapas. Nos livros em que Deleuze, ou este e Guattari, explanam sobre o Devir, uma das afirmações que se repetem é a de que não é a transformação de um ser em outro que é Devir, mas é uma intersecção de afectos, verdadeira aliança 2, contato a partir de compostos de sensação, seres de sensação (DELEUZE;GUATTARI, 1992, p. 207). Justamente, por ter a dimensão de um “ser” é que não pode se dá na imaginação, sonho, fantasia, metáfora, representação, nem imitação; é real. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. Mas de que realidade se trata se, por exemplo, o devir-animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que homem não se torna realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa? “É uma falsa alternativa o que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). Se um homem se tornasse de fato um animal, um vegetal, uma molécula, seria a passagem de uma entidade molar a outra; de um ser constituído a outro. Mas o Devir é quando um “eu” fascina-se pelo ser “Outro”, pelas potências de que o Outro é capaz diante do mundo (o que nos fascina em um cavalo ao vento, no rugido de um leão, Brás Cubas em um minicapítulo só para formigas?); entrelaça-se a esses afectos compondo, na duração própria dessa conexão afectiva, no tempo desse fascínio, uma entidade. Mas esta não se torna uma entre as coisas individuais, as substâncias; mas uma modulação intensiva, distensão de afectos de um a outro em latitude, uma terceira individualidade: hecceidade. Essa zona intermediária é onde percorre o Devir (devir-cavalo, devirleão, devir-formiga, devir-fogo, devir-dragões); ela não se dá no tempo cronológico, psicológico, representativo, nem no espaço físico; por isso uma realidade própria ao devir: “ideia bergsoniana de uma coexistência de „durações‟ muito diferentes, 2 Do Latim, Alien: o estranho, o outro. 31 superiores ou inferiores à „nossa‟, e todas comunicantes.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). Dizemos que o Devir é uma singularidade-acontecimento, e se tem forma é acidental. Distintas das formas essenciais, sujeitos ou objetos, as formas acidentais são suscetíveis de mais e de menos: gradientes que compõem uma terceira individualidade que não se confunde com a do sujeito ou objeto; um grau de branco, um grau de animalidade, graus de extensão em latitude constituída por outras individuações componíveis. “Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade, que se compõe com outros graus, outras intensidades para forma r um outro indivíduo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38). O sujeito (o leitor implícito, no mínimo; personagens, lugares, instituições) participa mais ou menos da forma acidental, mas esses graus de participação implicam modulações na forma, vibrações que não se permitem mais propriedades do sujeito, tornando-se um ser próprio, individuação intensiva por usucapião imediato, propriedades desterritorializadas em um composto de sensação. Os “corpos constituídos” (o homem/mulher, o tempo, a família, a sociedade, a personalidade, o país, a pedra, o animal), entidades molares, correspondem a uma longitude. Os devires são os desencadeamentos de hecceidades, intensidades em atravessamentos, em latitudes e transversalidades, borrando as demarcações. Assim vamos já começando a entender o uso do termo mapa: [...] latitudes “disformemente disformes”, velocidades, lentidões e graus de toda espécie, correspondendo a um corpo ou a um conjunto de corpos tomados como longitude: uma cartografia. Em suma, entre as formas substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há somente todo um exercício de transportes locais demoníacos3, mas um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos, acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38) É assim que esses devires distendem o tempo da narrativa e as corporeidades constituídas (lugares, personagens, instituições) atraindo-os a zonas de indiscernibilidade, de abertura, criando agenciamentos intensivos, perceptos e 3 Veremos por que a expressão “demoníaco” no item específico sobre o devir-animal. 32 afectos, espectro plástico de mundos em alteridade: “É Ahab que tem as percepções do mar, mas só as tem porque entrou numa relação com Moby Dick que o faz tornarse-baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais: Oceano” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 200). 2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas. Observamos até aqui que o Devir, a partir de gradientes intensivos, implica uma desterritorialização de entidades constituídas – formas substanciais, sujeitos determinados. Sempre que se fala de entidades molares é dessas formações constituídas, sujeitos e objetos, que está se falando. Ao contrário, o molecular remete às multiplicidades, propriedades fragmentárias, sempre em vias de se conectar com outras multiplicidades para compor anomalias, diferenças. Dir-se-ia que, das duas direções da física, a direção molar que se volta para os grandes números e para os fenômenos de multidão, e a direção molecular, que, ao contrário, embrenha-se nas singularidades, nas interações e nas ligações à distância ou de ordens diferentes [...] macrofísica [...] na outra orientação, a da microfísica, a das moléculas que já não obedecem às leis estatísticas; ondas e corpúsculos, fluxos e objetos parciais que já não são tributários dos grandes números, linhas de fuga infinitesimais em vez de perspectivas de grandes conjuntos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 369). Deve-se, neste item, apenas esclarecer o uso destes termos molar e molecular porque são constantemente mencionados nas citações. No entanto, não se pretende aprofundar suas especificidades pois, na análise que se pretende, já temos termos suficientes e que podem neste caso permanecerem como sinônimos, afim de não tornarmos uma leitura inicial, de cunho dissertativo, que estamos fazendo no âmbito do Devir, com uma complexidade por demais labiríntica. É que estes termos estão diretamente ligados com a problemática do desejo, e podemos nos esquivar ao menos, de discussões muito específicas que são travadas com a psicanálise. Mas, de alguma generalidade devemos participar. Todo devir é molecular, e nos confirma Machado (2009, p. 213): “Devir mulher é a produção de uma mulher molecular [...] é o enlace de duas sensações sem semelhança que cria uma zona de vizinhança, de indistinção, de indeterminação ou de indiscernibilidade entre elas.” As intensidades que afetam as entidades molares são liberação de partículas, troca fragmentária de propriedades da qual o único produto é a 33 defasagem das formas constituídas em devir. Na plenitude do devir não se produz outra entidade molar. Na composição de propriedades fragmentárias montam-se as máquinas desejantes: máquinas de guerra, máquinas de escrita, enfim, agenciamentos maquínicos. Desejante é a força que impele em direção à diferença. Um maquinário é quando partes desconstituídas se acoplam em blocos e compõem potencialidades outras. Um devir-animal é uma máquina que pode ser de guerra, como o inseto de Kafka que com o seu “piar” foge das significâncias, ou fica imperceptível na escuridão do quarto, ou repugnante às utilidades burocráticas, vivendo molecularmente uma matilha e não a família estatal. Se estamos quase sempre em referência a dois termos em devir é por facilidade explicativa. No entanto, os acoplamentos são rizomáticos; conforme as velocidades e lentidões que se deparam nos meios, promovem-se alianças. Alianças são o meio de propagação. Não há filiação, mas contágio, simbiose, pois não dependem de semelhanças, herança de caracteres, árvore genealógica; é rizosfera: “vasto domínio das simbioses que colocam em jogo seres de escalas e reinos completamente diferentes, sem qualquer filiação possível [...] evolução entre heterogêneos: „involução‟; „o devir é involutivo‟, a involução é criadora [...] bloco que corre seguindo sua própria linha, „entre‟ os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 19). E involução jamais é retrocesso, são caminhos não assistidos por formas determinantes. Essa informe aliança desterritorializa as figuras arbóreas, ordenadas por filiações e semelhanças. Aliança com a qual Cortazar “coloca em questão as dicotomias identitárias e estanques da humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu como um devir entre multiplicidades” (CERNICCHIARO, 2011). Enfim, as multiplicidades não são as multidões molares, estatísticas: população estatal, espécies animais, vegetais ou minerais como classificação. As multiplicidades vão, nas minorias humanas, em direção ao anonimato, sem sujeitos constituídos, e a partir daí um animal nos põe em matilhas, em direção a parasitas, em direção a moléculas, átomos, o fervilhar do cosmo, ao imperceptível. [...] em ambos os casos o investimento é coletivo [...] Mas os dois tipos de investimentos distinguem-se radicalmente, conforme um incida sobre as estruturas molares que subordinam as moléculas a si 34 [...] o outro, ao contrário incide sobre as multiplicidades moleculares que subordinam a si os fenômenos estruturais de multidão. Um é investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto nas formações coloniais de conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é investimento de grupo sujeito nas multiplicidades transversais portadoras do desejo como fenômeno molecular. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 370) 2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devir-expressivo. Observemos primeiramente a constituição deste vocábulo composto Deviranimal. O devir é uma força ativa que atrai e desestabiliza uma entidade molar, um ser constituído. Portanto o segundo termo que compõe o vocábulo será sempre o componente responsável por tal desestabilização. Neste caso específico, o animal. No entanto, não é o animal molar (o objeto referente de um vocábulo) que vinga no devir, apenas seus afectos são tomados em um devir-expressivo. Ou seja, o afecto animal torna-se a escritura, escreve-se com esse afecto, é um animal de intensidades que contagia o poder de designação da língua, fazendo com que tudo que essa língua toque tenha o gosto do animal. Captura as potências perceptivas do animal em um percepto escritural que, ao nos fazer ler-viver-animal, desinstala as subjetividades e objetividades que trazemos – enquanto leitor, enquanto personagem representante dos quadros políticos humanos, enquanto linguagem de comunicação. A meu ver é nesse devir-expressivo das forças minoritárias que deve se situar a grande importância desse conceito de Devir para os estudos em literatura : é a linguagem encarcerada compondo saídas com um rato que passa pelas frestas, com a planta penetrando nas paredes a se nutrir do que parecia o fim da jornada. Lembremos A Rosa do Povo (2003) de Drummond em que “Uma flor ainda desbotada ilude a polícia [...] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Ou, Claro Enigma (2012), quando “um boi vê os homens”. Ou, ainda, como veremos logo mais em Murilo Rubião, a angústia que toma conta do personagem narrador de Teleco o coelhinho quando este pretende transformar-se em homem, como se isto fosse acabar com a vivacidade fecunda “de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais”. O devir-expressivo é o devir-outro do animal, das moléculas. Já supracitamos que no circuito de devires 35 não há devir-homem das forças minoritárias. Se há um devir-mar do humano, ao mar também se impõe um devir, mas em música, em pintura, em escritura: aonde anda a onda? Já se/nos perguntava Manoel Bandeira e lemos-sentimos que a onda anda na silhueta sonora e rítmica desses versos. Enfim, no plano escritural, é quando a escritura convoca os afectos inumanos em sua composição que nos põe em Devir, “[...] do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais como das subjetivações pessoais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 51) Lembrança de um feiticeiro “[...]enquanto Freud explica as coisas o diabo fica dando toque” Raul Seixas . Podemos distinguir, ante o animal, pelos menos três formas básicas de agenciamento. O animal molar subtraído pela família, se ntimental, de estima: meu gato, meu cachorro etc.; onde é regressão, contemplação narcísica, visados pela psicanálise como projeções de papai, mamãe, irmãozinho . O animal molar interceptado pelo Estado, pelos grandes sistemas de classificação: de caracteres, atributos, gêneros – tais como os grandes mitos divinos os tratam extraindo séries ou estruturas, arquétipos ou modelos. E, enfim, os animais demoníacos, de alianças moleculares: passagem às matilhas e afectos inumanos, multiplicidade, população. É preciso ainda evidenciar que nenhum animal, a priori, pertence a esses tipos; é o agenciamento discursivo, o plano de consistência que irá definir, “Haverá sempre a possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como um animal familiar [...] noutro extremo [...] tratado ao modo da matilha e da proliferação, que convém a nós feiticeiros.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 22) Antes de nos mostrar como o devir-animal percorre a máquina de escrita, Deleuze e Guattari nos exemplificam os meios que propiciam um agenciamento animal como aliança entre multiplicidades em que a literatura envolve-se, de algum modo, pela potência transgressiva de que participa na modernidade. Dizem-nos que são com os feiticeiros, nas sociedades de caça, de guerra, secretas, de crime, que se fazem os contos, narrativas, enunciados de devir: acarretam toda espécie de devires-animais que não se enunciam no mito e ainda menos no totemismo. Dumézil mostrou como tais devires 36 pertenciam essencialmente ao homem de guerra, mas à medida que era exterior às famílias e aos Estados, à medida que conturbava as filiações e classificações (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 24) Resgata-nos rapidamente o problema da feitiçaria na Idade Média, pois os feiticeiros sempre estiveram em posição anômala, nas fronteiras dos campos ou bosques, assombrando as fronteiras, nas bordas ou entre vilarejos; “[...] o importante é sua afinidade com a aliança [...] O feiticeiro está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 28). Assim eram vistos sob as considerações teológicas. Estas distinguiam duas maldições sobre a sexualidade: processo de filiação em que se transmite o pecado original; e as potências de alianças inspirando uniões ilícitas, amores abomináveis, que impedem a procriação, “[...] e visto que o demônio, não tendo ele próprio o poder de procriar, deve passar por meios indiretos (assim, ser o súcubo fêmea de um homem para tornar-se o íncubo macho de uma mulher à qual ele transmite o sêmen do primeiro)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Assim a aliança guarda uma potência contagiosa; patcto-epidemia na feitiçaria Kachin, apontado por Leach segundo Deleuze e Guattari: “a influência maléfica é supostamente transmitida pelo alimento que a mulher prepara” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Por isso a expressão pacto demoníaco junto a devir-animal, ou mesmo às outras alianças. E o que tem de importante nisso para a literatura é a borda afrontada por essa aliança à medida que abre uma linha de fuga expressiva para fora das significâncias de famílias e Estados; à medida que perturba as subjetivações, objetividades, as filiações e classificações que agenciam a linguagem sob um imposto a priori. E aqui nos aproximamos à figura do Outsider de Lovecraft “a Coisa, que chega e transborda, linear e no entanto múltipla, „inquieta, fervilhante, marulhosa, espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 27). Deveremos sempre perceber o Anômalo, Outsider, que surge como condição de aliança necessária ao Devir, é um encontro de força irresistível, e pode desencadear muitos devires, mantendo aberta a passagem, contágio, entre multiplicidades que pode ir cada vez mais longe, por exemplo, do animal às suas micropercepções do som, da terra, do inimigo etc. A linha de atração pode até tornar-se linha de abolição levando ao aniquilamento, distensão molecular completa, como Achab precisava morrer em Moby Dick; ou, 37 como veremos em Rubião, O homem do Boné Cinzento incendiar-se e o personagem que o observa, que o tem por anômalo, encolher a ponto de virar uma minúscula bolinha preta. Em Castañeda “[...] os afectos de um devir-cachorro, por exemplo, são substituídos por aqueles de um devir-molecular, micropercepções da água, do ar, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 32) A lógica é simbiótica, por compatibilidades ou consistências alógicas, síntese disjuntiva, cósmica, agenciados em um meio e todo esse conjunto tomado em um devir-expressivo, tornando-se materialidade semiótica da escritura-realidade; não há uma ordem necessária para essas passagens. No entanto, há certo critério. Pareceme que em todo Devir, se não na proximidade direta de uma mulher ou criança, estão implícitas uma feminilidade e uma infância que dão vazão à borda, a deixar os animais, os vegetais, enfim, todo o marulho molecular, contar-nos, uma outra história. O Devir-mulher e o Devir-criança têm o particular poder de introdução aos devires, de desestabilização do discurso vigente, pois historicamente ainda predominantemente masculino e adulto; onde até a mulher e criança como entidades molares, em oposição a homem, e com suas funções estatais e familiares, tem que devir-mulher-criança. Por isso, não é a feiticeira que contém um devirmulher, mas a feitiçaria: agenciamento de uma sensibilidade capaz de alianças despreocupadas ou não pré-ocupadas. Assim vemos as princesas que conversam com os animais, ou a aliança demoníaca de Eva que arrasta Adão ao desestabilizar a palavra de Ordem, e as Sherazades; vemos as inúmeras crianças das narrativas e poemas que nos abrem para universos magníficos em Exupéry, Carrol, Manoel de Barros, Nietzsche, Guimarães Rosa; há sempre crianças e mulheres em momentos decisivos dos contos de Rubião. Voltemo-nos, enfim, para concluir direcionamentos para a operação com o Devir. A aliança ou pacto são formas de expressão para uma infecção ou epidemia como forma de conteúdo: em aliança com esse anômalo atinge-se a borda em devir, contamina-se com o estranho. O devir é essa anomalia singular, significativa e real como conteúdo. Fato que o afastará de ser uma remissão metafórica ou simbólica que são integrados a vigências semióticas circulares. O Devir poderia até ser engendrado devido a uma aliança anômala durante a construção de alguma metáfora , mas o devir seria uma mais valia de código, um ser à parte da função 38 associativa, situação em que um deve sobrepujar o outro dependendo do agenciamento contínuo; pois devir não é aliquid stat pro alíquo, algo que está por outro, não tem a dimensão de um representante ) 4. Para o nosso modus operandi com os devires “[...] mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 25). Assim, é possível divisar na citação a seguir essas formas de tomar o animal; primeiro volume de Mil Platôs, na sessão “Um só ou vários lobos?”, comentando uma análise de Freud sobre o Lobo e os Sete cabritinhos, se afirma: [...] decidiu-se desde o início que os animais podiam servir apenas para representar um coito entre pais, ou, ao contrário, para serem representados por um tal coito. Manifestamente, Freud ignora tudo sobre a fascinação exercida pelos lobos, do que significa o apelo mudo dos lobos, o apelo por devir-lobo. (DELEUZE; GUATTARI1995, p. 54) Como operação de leitura, essa mesma afirmação a respeito dos animais também se fará para outros elementos, de tentarmos não decidir seus sentidos previamente; ao menos tendo em vista que seus decalques subjetivos, estatais, familiares, sociais estarão em desconstrução e não como síntese de leitura. Estaremos utilizando esses termos explicitados e discutidos neste item “Modus Operandi em Devir”. Para isso, seguiremos procedimentos parecidos com o sugerido por Ana Costa Maluf, ao atuar nessa perspectiva, de uma leitura que surge de fato no encontro, “[...] no encontro-leitura, o crítico forçado pelo encontro [...] com as forças presente nele” (MALUF, 2011, p. 26). Distanciando-se de uma interpretação, que toma o texto como representação; propomos uma experimentação, tomando a literatura como acontecimento. Trocaremos a pergunta o que isto quer dizer? por o que se passa aqui?, ou ainda, como se alteram os corpos na implicância de tal ser? No lugar de encontrar sentidos 4 Umberto Eco em Semiótica e Filosofia da Linguagem (1991): p. 63, fala sobre a expressão latina citada para a relação remissiva; na p. 191, a par de muitas definições de metáfora, conclui que ela funciona sobre um tecido cultural, universo de conteúdo já organizados em redes de interpretantes que decidem (semioticamente) da semelhança e da dessemelhança das propriedades; e na p. 203, a partir de outros autores, como a ordem do simbólico está fundada na lei, e ainda está como substituição de algo. 39 representados, far-se-á cartografia, navegaremos em notação de um mapa intensivo do texto: como este dispõe os corpos plenamente constituídos – substâncias e instituições em longitude –; e as intensidades – agenciamentos, alianças, procedimentos desterritorializantes – que atravessam, modulam em latitude e transversalidade, a um ser Outro. Enfim, tentar indicar e discutir como o texto realiza uma crítica performática – ou as faz não existir – de formas essenciais ou substanciais, de imagens pré-fixadas sobre a sensibilidade e o pensamento em jogo. 40 3. RUBIÃO EM DEVIR É preciso manifestar desde o início, devido ao exposto até então, que a leitura que aqui vai se configurando se põe em um plano distinto dos lugares em que se assentam as leituras, enquanto representação sobre a obra de Murilo Rubião. Portanto, de algum modo, não há oposição propriamente dita, mas uma interposição em que as bases são outras. Pretendo situar a discussão dessa interposição principalmente junto ao mais icônico trabalho interpretativo de Rubião, a saber, A Poética do Uroboro (1981) de Jorge Schwartz, utilizando-o como exemplo entre as leituras com evocações representativas. Considero-o uma brilhante varredura elucidativa e, realmente, um empreendimento de amplitude e intimidade cuidadosa que nos proporciona um pleno contato com a obra do escritor mineiro. Longe de criticá-la em sentido negativo, pretendo expor os diferentes resultados, caminhos e – na medida possível –, pressupostos, em justaposição. Ao sintetizar considerações, concluir leituras e sentidos, a análise de Schwartz equilibra-se sobre a figura da representação através dos arranjos arquetípicos, mitológicos, simbólicos, metafóricos, subtextos, abrindo uma dualogia e até uma figura teleológica de um desenvolvimento da obra em geral, o que nos evoca a descrição, por Lyotard, de uma Metafísica do desenvolvimento que “[...] Assimila os acasos, memoriza o seu valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento. (LYOTARD, 1997, p.14), tornando a escritura uma projeção holográfica de sentidos fundados alhures e representes. Assim, a grande criação de um escritor seria a de conseguir representar tudo isso muito bem, esse nosso universo humano, com remissões sutis, intertextos, máscaras. Ainda assim, a cobertura que faz da obra muriliana é de uma abrangência tão precisa que há considerações de certos aspectos que, a meu ver, atingem perfeitamente esse outro plano de leitura da não representação, que não pude deixar de aproximá-lo ao âmbito do devir literário com leve intuito, apenas colateral, de demonstrar sintomas dessa leitura não representativa se mostrando em outros lugares – esses elementos de que me aproprio estarão indicados nos momentos oportunos durante a leitura nos contos. Concentremo-nos, por hora, nessas sínteses operacionais na representação. Esta é tão evidenciada que é justamente no outdoor do livro, a quarta capa em que encontramos enunciado: 41 Jorge Schwartz desvenda nos contos uma narrativa fundada nas epígrafes que ilustram cada um dos textos. Elas constituem fragmentos bíblicos que condensam, de modo sintético e metafórico, os significados profundos da obra [...] Seja como questionamento ou como denúncia, a linguagem do fantástico não se limita no texto de Murilo Rubião a uma experiência lúdica de leitura. Ela serve, para o autor, de metáfora mascaradora de outros textos – o cristão, o social e o existencialista – sobre os quais repousa a obra. (SCHWARTZ,1981, quarta capa, grifo meu) Observemos esses “significados profundos” da obra já erigidos na Bíblia; observemos ainda a preocupação em ressaltar que essa linguagem do fantástico não se limita à experiência lúdica de leitura, “Ela serve”, devido à ênfase sugerida implicitamente, para algo mais importante que é justamente essa potência representativa que sempre supõe uma verdade anteriormente bem fundada. A superfície da escritura em si, portadora por excelência da experiência lúdica é implicitamente dita como limitante, numa quase futilidade talvez, se não se permitir ter certa transparência em direção a esses sentidos ulteriores “subtextos encobertos pela linguagem do extraordinário: o subtexto cristão, o subtexto social e o subtexto existencial” (SCHWARTZ, 1981, p. 2). Ainda nessas proximidades afirma-se que se está “Analisando o fantástico como sistema metafórico global (SCHWARTZ, 1981, p. 2)”. Diante disto, reconvoquemos o que já expusemos de Todorov anteriormente, no assunto de uma literalidade essencial, de que o fantástico teria como condição o nível literal e que intermitências alegóricas o enfraquecem ou mesmo o destroem. Disto, Schwartz expressa perfeita clareza como vemos no capítulo 3 em que discorre sobre O universo Fantástico: “Fundamentado num universo empírico, sobrevive apenas na dimensão da escritura, tornando-se paradoxal pela sua capacidade de nomear aquilo que é e não é ao mesmo tempo.” (SCHWARTZ, 1981, p. 55). Nessas imediações nos interpõe uma série de problemáticas da verossimilhança, pois a avaliação de um fantástico teria como ponto de referência o repertório normativo do leitor. Para isso explicar recorre-se à distinção de Roland Barthes de verossimilhança referencial (que tem um referente) e verossimilhança discursiva (que tem apenas referência) que, se forem analisados do ponto de vista do efeito de leitura, constituem uma igualdade. Parece que retornamos à distinção platônica que identificava uma útil e outra maléfica; temos um confronto de um signo 42 serviente a uma realidade primeira e um signo com referência autoconstruída, sem transcendência (maléfico, inútil ao mundo de fora), e é aqui que reside o fantástico. Nesta questão, o que se relaciona com a perspectiva de leitura a que esta dissertação se propõe não é apenas reconhecer que é nesse nível literal (literatura como exploração e experiência) que reside um potente efeito de sentido, mas na positivação dessa literalidade essencial, ou valorização dessa cópia imperfeita, duplo que tem a potência de ser indócil à semelhança apresentando outra realidade, sendo articulação de sua Diferença, de um Devir. A superfície, a experiência lúdica da leitura, é que implode essas estruturas profundas, despóticas e coercivas e que têm horror a potências que realizam, num mesmo movimento, seu efeito de sentido, sua estrutura abstrata e sua realidade absoluta - que tem sua espessura na História, seu efeito positivo e não representativo. Concorda-se que há questionamento e denúncia, e nem poderia faltar, mas não no fundo, ou sobrecodificado. Os personagens e procedimentos, os afectos, reagem diretamente sobre esse cristão, esse social, esse existencial que oferecemos à turba da leitura. Com certeza esse efeito do “fantástico” se passa com sujeitos plenamente constituídos (o leitor, por vezes ainda com personagens, arrastando -os de suas certezas). A meu ver Schwartz brilhantemente detecta em Rubião aspectos que poderiam muito bem participar deste plano de leitura como, por exemplo, quando indica momentos em que se chega ao absurdo em forma pura (SCHWARTZ, 1981, p. 23); o que é um instante de devir próximo ao que Deleuze, em A lógica do Sentido (DELEUZE, 2011, p. 77), sugere nos paradoxos de Alice, non sens, no tempo do insensato. Mas para além destes aspectos, o que deverá diferir, portanto, o plano de leitura a partir da noção de Devir e o representativo – este sob os parâmetros até então expostos – é não ter os sujeitos ou objetos constituídos – expectativas do leitor, configurações de mundo exterior, sujeitos, enciclopédia – como medida, ou partida, da significação; mas como alvo, ou indiferença, das forças informais, que as porão em devir e à deriva. Como também já expomos, teremos uma aventura humana diferente; não como homem animal autobiográfico que afirma contar a história do mundo quando é tão somente a sua história, como nos diz Derrida (2011) em O Animal que logo sou. Diante disto os (an?)tropos perdem força, não teremos sistemas metafóricos nem 43 personificação como produção de Devir, mas a forças personífuga. Se ainda há figura, não tem a ver com retórica mas com uma figura imediatamente estética. Isto não é anulação do humano, mas uma guerrilha contra o Humano tornado instituição, portanto, centro propagador silencioso de significantes que impõem seu sentido como modelo abstrato universal, os sentidos próprios, os próprios do homem [...] denegação. Ela instituiu o próprio do homem, a relação consigo de uma humanidade antes de mais nada preocupada com seu próprio, ciumenta em relação a ele. (DERRIDA, 2011, p. 34); deslizaremos sobre linhas de fuga traçando novas possibilidades, abertura originária para humanos por vir, ou tão somente, por virtual. 3.1 Teleco o Coelhinho Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade. (Provérbios, XXX, 18 e 19) Rubião, 2010, p. 52 Em “Provérbios”, na Bíblia, capítulo 30, há uma estrutura expressiva numérica com o número “dois” e, mais esporadicamente, com o “quatro”. Mas, em predominância, tal como um quarto ponto extrapola o plano matemático, erigido em um tripé, há ainda uma estrutura bem destacada, como estribilho, na qual se estrutura a epígrafe, em que três coisas atingem um ponto culminante e uma quarta rompe completamente. Em tal expressão, o que nos afronta é uma força excessiva, misteriosa, que interrompe a circularidade da estrutura, deixando como uma ferida aberta, um quarto ponto que nos encaminha ao contínuo aberto. Isto ainda é só a sugestão intensiva no plano de expressão. Tentemos, para início, distinguir um conteúdo: diz-se da dificuldade de entender o caminho da águia no ar, o da cobra sobre a pedra, o da nau no meio do mar e, devido a sugestão expressiva, pior ainda, o caminho do homem na mocidade. Mas algo na própria formação de conteúdo também sugere o incontido e aberto: o ar, mar e a pedra não têm raias como guia e se rebelam contra a conceituação de “caminho”; assim, erige um paradoxo que converge a fo rça expressiva e a de 44 conteúdo em um sentido indiscernível, fazendo-nos perceber a mocidade como o caminho sem caminho, o “aberto” como guia. No texto bíblico, de sapiência e escolha, é um instante de enorme perigo para a maturidade ou para o governante. Portanto, é o instante-pré-escolha, mas já em movimento, contendo a futuridade e todos os passados que ocorrerão em detrimento das escolhas potenciais; de algum modo, todas as potências estão em ato; ou, o único ato possível nesse instante é caminhar sobre potências em aberto. Sob esta leitura, tal é a atuação desta epígrafe: pôr-nos desde o início em presença e leitura deste aberto, ponto conduzindo para fora do plano e da previsão – é em continuidade desta atração ao ilimitado que encontraremos o narradorpersonagem ante o mar no início do conto. Quem quer matar, na cozinha, como um “quadro possível”, escolhe a faca e não a cozinha inteira; ou até a cozinha inteira, como um serial Killer, mas a recortando da função como parte da casa, e a fazendo compor um abatedouro. Um recorte torna-se uma totalidade quando é interceptado como componente para uma nova máquina. Uma epígrafe pode ser utilizada de várias maneiras: tema, subordinação remissiva de significado etc. depende do agenciamento que se move. Mas neste caso, recortou-se um elemento inquieto de texto para compor uma nova máquina expressiva com o que há nessa parte. Não é mais metonímico – parte pelo todo – mas, a parte como um todo. Se formos ao próprio texto bíblico, veremos que há um sentido à parte do significado mais geral: é inevitável um fascínio estético por esse conjunto “ave-ar, serpente-pedra, nau-mar” que nos faz devir ventos, perspicácia e intempestividades como sentidos; faz com que “homem-mocidade”, posto no fim, no ponto de desestabilização, reformule-se em um devir-louco do caminho sem caminho; escolhas e futuros por vir, já caminhando; pulsão em duas direções ao mesmo tempo; ato feito de potências: “[...] que não se detêm nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado [...] na simultaneidade de uma matéria indócil” (DELEUZE, 2011, p. 1). Tudo isto conectado, mas também rebelde, ao conteúdo de perigo e negatividade a que se deve tomar cuidado, sugeridos como significação mais ampla no texto bíblico. Não é o texto cristão, como significação, que é recuperado; mas as potências expressivas da águia no ar, da serpente na pedra, da nau no mar que são 45 interceptadas a fazer atravessar um homem reinscrito, por essas expressividades, numa intensidade significativa desconhecida que extrapola os planos, excesso “significante” sobre um vazio significado: defasagem provocada: é aqui que o espectro plástico da linguagem sugere sentidos virtualmente vivenciados mas não significados, pois são estranhos à enciclopédia da cultura enquanto conhecido, sendo a articulação de sua diferença: “[...] sejam quais forem as totalizações operadas pelo conhecimento, elas permanecem assintóticas à totalidade virtual da língua ou da linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 51). A narrativa de Teleco o Coelhinho. “- Moço me dá um cigarro?” Pede-se, interrompendo o “aberto” intensivo da epígrafe, recupera-se a dinâmica urbana e faz fracassar o “mar” sob este aborrecimento; o narrador-personagem encontra-se ante o mar, absorvido com “ridículas lembranças”. É Já um confronto entre os diferentes planos de escritura: plano transcendente que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos) e o plano, por hora do “mar”, que libera as partículas de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do envoltório das formas e dos sujeitos; e é interrompendo estes afectos flutuantes que o incômodo pedido lateja. - Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. - Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar. Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente. (RUBIÃO, 2010, p. 52) O Estado psicológico do personagem-narrador está abalado e é tomado em impulso violento. Por algo como o susto-fascínio de Alice quando o coelho vê as horas, ou quando cai na toca sem fundo, este estado de sujeito é radicalmente interrompido pela presença do coelhinho cinzento a interpelar delicadamente. O jeito polido de dizer as coisas o comoveu, deu-lhe cigarro e afastou para dar visão ao oceano, já conversavam como velhos amigos, o coelhinho lhe contava acontecimentos extraordinários e aventuras. Enquanto pedido por um cigarro, sem a figura do coelho, a urbanidade e a mendicância assumem o sujeito do pedido, interrompendo 46 o “mar” que o consolava; aborrece e o resgata ao estado civil, e para tentar paz, ameaça com a polícia. Mas, ao deparar-se com o coelhinho cinzento, tudo se torna meigo e extraordinário, recupera-se e se intensificam os afectos flutuantes: o mar e um coelhinho delicado, fantástico, de aventuras tamanhas. Indaga ao coelho onde mora. Este afirma não ter morada certa, habitualmente a rua. Reparando seus olhos mansos e tristes, convida-o a residir com ele. O coelho, desconfiado se não gostasse de carne de coelho, transforma-se em girafa e mais à noite seria cobra ou pombo: “[...] não lhe importará a companhia de alguém tão instável?” (RUBIÃO, 2010, p. 53). Foram morar juntos. No começo só alegrias e tensões mínimas, Teleco ajuda idosos e alegra crianças, é um mundo reaberto para o personagem-narrador. Primeiro atrito grave: discussão com a cunhada sobre negócios de família; mal humor e agravamento devido à cena que encontra: De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam -se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário. - O que deseja a senhora com esse horrendo animal? – perguntei aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos. - Eu sou o Teleco – antecipou-se, dando uma risadinha. Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pelos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho. (RUBIÃO, 2010, p. 55) Os rituais que recuperam as figuras institucionais interrompem a corrente de afectos flutuantes, de leveza e liberdade. Os animais, nessas instâncias não o encantam mais. Teleco, sob a forma de canguru, e agora Barbosa, daí em diante, seria “apenas homem”; o canguru força um humano como função; independentemente de suas características físicas, será homem: usa roupas, óculos, tem uma mulher. Todo esse funcionamento faz fracassar o plano de devir em que o personagem-narrador o encontra: “cretinice de Teleco em afirmar-se homem” (RUBIÃO, 2010, p. 55). Tinha até a esperança de que fosse mais um gracejo, mas que não encontra mais teleco, apenas Barbosa. A complicação culmina na expulsão deste “filho de um rato” (RUBIÃO, 2010, p. 56). O animal agora não é mais prodígio, é recapturado pela linguagem comum de um irracional animal; há um ceticismo na possibilidade de se empregar, dar um trabalho, a um canguru. O animal 47 sofre, em grande parte, reterriotorialização personificado sob as instâncias medíocres, um canguru que o comove pelo choro. Na verdade, o personagemnarrador ainda se comove com Barbosa por este ter o domínio sobre os sentimentos de Tereza. É uma comoção extrínseca. Barbosa segue tomado por personificação, possui hábitos horríveis, cuspir no chão, vaidade ao espelho, não tomar banho, usa objetos pessoais e íntimos do anfitrião, maneira ruidosa de comer, anedotas sem graça, lisonjas exageradas, “homem” repugnante aos olhos do personagem-narrador. Sua figura física também repugna. Só a repentina atração por Tereza ainda o fazia suportar Barbosa. Tereza diz-se convicta de que este é um homem. O Canguru aproveita-se do interesse do anfitrião por Tereza e ainda zomba com firmeza, aproveitar-se de sua hospitalidade. O personagem-narrador implora para que volte a ser coelho: “Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala. – Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.” (RUBIÃO, 2010, p.57). O amor por Tereza, pouca esperança de ser correspondido, pedido de casamento. Ela responde que “Ele vale muito mais” – Barbosa. As palavras de recusa de Tereza convenceram-no de que ela tencionava explorar de modo suspeito as habilidades de Teleco. A partir de então, passa a atitudes agressivas ante os dois juntos. O Canguru o evitava devido a seu comportamento. Chega ao cúmulo de revolta ante Tereza e Barbosa dançando tango. Agarra o canguru pela gola, com violência ao espelho: “É ou não é um animal?” (RUBIÃO, 2010, p. 57). - Não, sou um homem! – E soluçava esperneando, transido de medo pela fúria que via nos meus olhos. À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia: - Não sou um homem, querida? Fala com ele. - Sim, amor, você é um homem. Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida enxotei-os. Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu: - Farei de Barbosa um home importante, seu porcaria! (RUBIÃO, 2010, p. 58). Não mais os vira. Tinha notícia de um mágico de sucesso chamado Barbosa, acreditou ser mera coincidência. Esvai-se a paixão por Tereza e volta o interesse por selos em horas disponíveis. Uma noite salta um cachorro à janela. 48 Sou Teleco, seu amigo – afirmou com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia. - E ela? Perguntei com simulada displicência. - Tereza... – sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão. - Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi horrível... – prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel. Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar: - O uniforme... muito branco... cinco cordas... amanhã serei homem... – as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais. ( RUBIÃO, 2010, p. 58) Tosse nervosa. Fraca a princípio, avultava com mutações de bichos maiores. Tentava exprimir-se em períodos curtos e confusos. Contínuas transformações. O personagem-narrador suplica por calma e que parasse. “Não posso – tartamudeava, sob a pele de um lagarto.” Alguns dias e o mesmo caos e metamorfoses. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirandome de encontro à parede. Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, trissava. Por fim, já menos intraquilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava. Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO, 2010, p. 58) Teleco decide ser homem, o que é repugnado pelo personagem-narrador. Este desenvolve uma paixão por Tereza formando um triângulo amoroso, Teleco, agora o canguru Barbosa com formalidades de homem, torna-se um inquilino abusado. Acaba-se, por vez, por suplantar todo o extraordinário teleco, recuperando as passionalidades, convivências conturbadas, ser um grande homem social (como Tereza diz que fará de Barbosa). O enredo linear que se presta em partes ou se recupera mais facilmente por representações sociais se detém aqui. O que ocorrerá como desfecho é tão somente da outra história. Mas esta, o plano de devir, reluta em meio a esta reterritorialização que ocorre a partir da volta para casa. 49 A contrassignificação, o elemento paradoxal e as séries significante e significada. Teleco é uma desterritorialização absoluta na configuração semiótica do conto; quem é recapturado é o canguru Barbosa concorrendo à função de homem. Nos espaços onde Teleco realmente figura, a linguagem está sempre nos limites, no extraordinário, tendo como sentido irrefratável ou irrefletível, as intensidades que suscita. Vemos isto na abertura e no desfecho com melhor nitidez. Teleco é excesso e criador de excessos exprimíveis e não significados. É o elemento apenas de linguagem, irremissível e com significado apenas virtual sugerido por seu corpo significante. Todo o triângulo amoroso e sentimentos (ciúme, disputa etc.) se prestam a representação de quadros vividos com significados já bem circulados antes mesmo de estarem no conto. Com o advento de Teleco, esses quadros encontram uma vazão anômala, incapaz de lhes fornecer explicação (predicados instituídos); este personagem passa a ser a condição única do que se vive e se sabe. Desse modo, os conflitos do triângulo amoroso não se fixam no motivo “Tereza”; há um Teleco que foi perdido nos riscos de ser um humano funcional, bifurcando o que impulsiona o desespero ante o quadro passional-conjugal – o quadro simplesmente passional-conjugal é rompido. Como se esse instante narrativo nos dissesse que nem só de pão vive o homem, mas de toda virtualidade capaz de nos renovar; reiteremos ainda a epígrafe e o quarto ponto que extrapola os planos. Ademais, o que é Teleco? O que é um coelhinho cinza que se transforma em outros animais? E por que “é” um coelhinho cinza, se pode ser outros animais de qualquer cor, de todas as cores juntas, e até espécies que não existem? Se não há predicado previsto para esse sujeito, se não há uma resposta prontamente significada, é porque é tão somente um conjunto intensivo de abertura e passagem, multiplicidades sob um nome, potências em ato, uma esfera do Aleph. [...] no mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave que as possuía todas e de espécie inteiramente desconhecida ou de raça já extinta. - Não existe pássaro assim! - Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos. (RUBIÃO, 2010, p. 54) 50 Como vemos nesta citação, Teleco consegue até mesmo desdobrar sua contrassignificância. Ele próprio, sendo um excesso significante sob a falta de um significado, designando apenas a si; faz com que suas transformações não sejam limitadas a cópias de seres existentes, mas ainda a seres sem classificação, figuras sem designação. Neste ponto as metamorfoses de Teleco atingem o excesso no plano da expressão, abrindo uma falta no plano do conteúdo: se não é factual tal pássaro, sua metamorfose não é imitação, mas sim criação, encerrando em si o sentido. Teleco, como elemento paradoxal, articulador da diferença, circula através das séries heterogêneas da linguagem: [...] tem como propriedade o fato de estar sempre deslocado com relação a si mesmo, „fora de seu próprio lugar‟, de sua própria identidade, de sua própria semelhança, de seu próprio equilíbrio. Ele aparece em uma série como um excesso, mas com a condição de aparecer ao mesmo tempo na outra como uma falta [...] ocupante sem casa. Determina como “significante” a série em que aparece como excesso, como “significada” aquela em que aparece em correlação como falta. (DELEUZE, 2011, p. 54) Se o elemento paradoxal se impõe como a condição de sentido da narrativa e faz prevalecer seu sentido irrefratável, é para configurar um regime assignificante de signos, em pré ou contrassignificância, autoprodutor, não passível docilmente de interpretação, mas de atividade ou experiência a ser descrita: [...] pré-significante [...] que conservam formas expressivas próprias ao próprio conteúdo, assim formas de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de dança, de rito, coexistem no heterogêneo com a forma vocal [...] contra-significante [...] procedendo a arranjos mais do que a totais, a distribuições mais do que a coleções, operando por corte, transição, migração e acumulação mais do que por combinação de unidades, um tal tipo de signo parece pertencer à semiótica de uma máquina de guerra nômade, dirigida por sua vez contra o aparelho de estado (DELEUZE,GUATTARI, 2011, p. 71-73) A personífuga Sob estas mesmas condições, criação e excesso, é que se configura a “criança encardida, sem dentes. Morta.” ao fim do conto. Mas um pouco antes, vejamos como um conjunto intensivo perturba o repouso e põe tudo em fluxo-refluxo até a vazão para esse excesso. Durante todo o processo, os animais fizeram sua 51 parte na guerrilha, carregavam para si as responsabilidades de sentido irrefratável em devires-animais, imediatamente reconduzindo os próprios do homem, desapropriando-os, ao devir-cósmico da capacidade mágica de Teleco de conter potencialmente todas as moléculas animais até mesmo os excessivos, inexistentes na natureza catalogada. Os devires sofrem ainda retração ante o canguru-homem em Barbosa, personificado, reterritorializando tudo em volta e o próprio narrador-personagem na circularidade das instituições. Mas, quando menos se espera, no salto de um cachorro, todo um espasmo esquizofrênico pulula, contrai-se e estende-se, momento em que as dimensões de grandeza ou pequenez perdem suas bases ante a velocidade das mudanças; são percebidas e medidas intuitivamente pela lágrima, pelo enfrentamento da boca e o alimento que se tornam incompatíveis com as frenéticas metamorfoses. Agoniza -se e goniza-se, cria-se: a criança tal como se apresenta, se é insucesso, é do ponto de vista do plano transcendente, de formalização estável e circularidade significativa, de compatibilidade entre expressão e conteúdo. Mas é a conquista difícil, sofrida, elemento vencedor que se fez fora do plano humano instituído; e, se projeta um humano, é outro completamente por vir, ilegível, incompatível, irreconhecível, não recuperável integralmente por símbolos, nem oferecendo propriedades equacionadas na troca das economias metafóricas, não desceu das árvores, signo desfigurado, encardido, sem dentes. Quero retomar aqui um esquema de Schwartz, a respeito da epígrafe do conto, que estende a circularidade significativa e recupera uma estrutura mítica. (SCHWARTZ, 1976, p. 14-15) Atribui-se ao homem na sua mocidade a metáfora fogo, completando os quatro elementos do universo mítico e sugerindo “a procura” como um fazer universal, na medida em que todos os elementos componentes do universo tornamse sujeitos da ação. (SCHWARTZ, 1976, p. 14-15). Problematizando o homem na geração dos que buscam: homem, insensatos, cavalos, águia, cobra, nau, o põe 52 justamente na vizinhança estranha do inumano molecular. Mas não é que o homem catalise em si os outros elementos do universo – como se sugere. Antes, provoca uma vazão para que o universo o catalise. Além do mais, na zona desses elementos, o universo é de um caráter pré-significante, anônimo, sem deuses individuados ou hierarquias, some nte elemento e força; o que também não se presta a representações definidas, mas apenas a atividades, velocidades e lentidões, aglomerações e retrações, involuções como sentido, caminhos não assistidos por formas determinantes. Essa informe aliança desterritorializa as figuras “arbóreas”, ordenadas por filiações e semelhanças. Coloca em questão dicotomias identitárias e estanques da humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu como um devir entre multiplicidades. Portanto, a partir deste mesmo “modelo mítico”, não se concorda aqui com a síntese: Teleco, na ânsia de achar uma linguagem identificadora com o seu mundo circundante, assume as mais diversas formas: a última delas, a humana (criança morta) – símbolo de seu inútil e derradeiro esforço. As metamorfoses de Teleco se configuram então como uma verdadeira sintaxe espacial rotativa – símbolo da sua procura de identificação com o ser humano. Este processo de contextualização, como desejo de identidade com o espaço exterior [...] (SCHWARTZ, 1997, p. 42) Não há em Teleco essa impotência de identificação com a forma humana, deveria ser potente o suficiente para isso, transformava-se no que nem existia. Nem é incapaz de identidade com o espaço exterior: era mágico, já fazia parte do cosmos. O que há é a humanidade como problema, aprisionamento dos fluxos libertos. Portador destes, Teleco não suportou os conter sob uma forma identitária fixa, de linguagem circular, a casca do homem civilizado. Teleco talvez tenha se perdido, nos caminhos de suas transformações no labirinto complexo humano, pensando aqui em uma sugestão de Lyotard, de dois inumanos: o fundo inumano onde tudo é potencialidade e renovação, onde temos uma dívida com a infância; e o civilizado, do desenvolvimento, que eu me tentaria a chamar de desumano: [...] que mais resta de “político” que não seja a resistência a esse inumano? E que mais resta, para opor resistência, que a dívida que toda alma contraiu com a indeterminação miserável da sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o outro inumano? (LYOTARD, 1997, p.15). E, num limite intensivo entre as forças personífuga e 53 personípeta, satura-se em um ser que é ato com todas as suas potências implicadas; é este elemento imediatamente expressivo, casa vazia de significado, que põe a vibrar, que cria, esse sentido da forma sempre insuficiente ou despótica, sempre em busca – neste ponto concordando com Schwartz – do disforme, desfigurado, encardido, sem dentes. 3.2 Simples Dragões “Fui irmão de Dragões e companheiro de avestruzes. (Jó, xxx, 29)” (RUBIÃO, 2010, p.47) Em Os Dragões, onde se localiza e como se constrói o excesso significativo, contrassignificante, a-significante; instantes em que o simulacro rompe o modelo e passa a propor uma singularidade imediata como sentido? Neste conto não é tão simples, pois há tramas muito próximas que se interpõem em jogo de forças: o plano transcendente – representativo, em que as instituições significantes forçam a sua circularidade, erigindo interpretantes e interpretados, universo já decidido alhures –; e o imanente – linha de fuga que cria eventos embaçados de tal forma que não se deixa refratar, sugerindo-se como única coisa a ser vista, ser do qual não se pode extrair nada sem multilar, mas apenas participar do fluxo de seus afectos, coexistir em seu mundo, experimentar. Se nos rendêssemos apressadamente ao primeiro, poderíamos abrir uma cadeia infinita de associações representativas – assimilação totalitária da diferença, tornando o texto uma sentinela guardando e portando o codec – e negligenciaríamos alguma criação singular. Vamos à narrativa, acompanhando o personagem-narrador. “Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes” (RUBIÃO, 2010, p. 47). Poucos os compreenderam, foram a lvo de muitas suposições sobre seu país e raça de origem. O vigário (o velho gramático) afirma que apesar da docilidade, eram enviados do demônio, por isso não permite ao personagem-narrador, suposto professor, educá-los; e ordena que sejam encerrados numa casa velha, exorcismada e isolada; nega-lhes a qualidade de dragões: “coisa asiática de importação europeia” (RUBIÃO, 2010, p. 47). 54 Um leitor de jornal falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça e lobisomens. Já as crianças, “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.” A polêmica cansa e evitavam o assunto. Logo mais voltam ao assunto com o pretexto de “aproveitamento dos dragões na tração de veículos” (RUBIÃO, 2010, p. 47), mas houve decepção na partilha dos animais devido ao número em relação aos pretendentes. O padre interfere novamente e “os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.” (RUBIÃO, 2010, p. 48) Narrador-personagem irrita-se: “São dragões! Não precisam de nome nem de batismo!” (RUBIÃO, 2010, p. 48), perplexo, o reverendo abriu mão do batismo e o personagem-narrador resigna-se à exigência de nomes. Subtraídos ao abandono são entregues ao personagem-narrador, em seu exercício de magistério, para serem educados. Contraíram moléstias, diversos faleceram. “Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos” (RUBIÃO, 2010, p. 48), os mais bem dotados em astúcia, fugiam e se embriagavam. O Dono do bar se divertia e até dava bebida grátis, a princípio; logo mais, enfadado negava-lhes o álcool. Para se satisfazerem os dragões viram-se forçados a furtos. O personagem-narrador “acreditava na possibilidade de reeducá-los” (RUBIÃO, 2010, p. 48); com a amizade do delegado sempre os retirava da cadeia (roubo, embriaguez, desordem). “Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte de tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal.” (RUBIÃO, 2010, p. 48). Vieram jovens e tinham lembranças confusas “inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha.” (RUBIÃO, 2010, p. 48-49). Ainda havia o mau humor devido às noites mal dormidas e ressacas alcoólicas. Continua-se o exercício do magistério, e a ausência de filhos contribuiu para que o mestre “lhes dispensasse uma resistência paternal. Do mesmo modo, certa candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a outros discípulos”. Odorico, o dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades, alvoroçado por saias “principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo 55 para viver com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49) O personagem-narrador, tenta destruir a “ligação pecaminosa”, sem conseguir combater “[...] uma resistência surda, impenetrável [...] palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava”. (RUBIÃO, 2010, p. 49). Junto à mulher o dragão Odorico é encontrado morto, rumores de tiro fortuito e erro de caçador, mas o olhar do marido abandonado pode desmentir a versão. O carinho é transferido para o último dos dragões, recuperado e afastado da bebida. “Nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência [...] aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança . Carregava-os nas costas, dava cambalhotas” (RUBIÃO, 2010, p. 49). O professor encontra sua “[...] mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade” (RUBIÃO, 2010, p. 50) O fato fez crescer a simpatia que dragão João tinha entre moças e rapazes. Agora demorava-se pouco em casa, sempre em grupo cobrado a alegrar soprando fogo, cheio de vaidade, toda festa solicitava sua presença, mesmo as religiosas. “Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município” (RUBIÃO, 2010, p. 50), vem um circo com eventos extraordinários e um homem que engolia brasas. Jovens interrompem o ilusionista e anunciam que têm coisa melhor. Sob a réplica desafiante do circo João desce e vomita fogo. Recebe e recusa propostas para trabalhar no circo “[...] dificilmente algo substituiria o prestígio de que desfrutava na localidade. “Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal” (RUBIÃO, 2010, p. 50). Várias são as versões sobre a fuga de João, dentre elas, amores por uma trapezista – talvez estratégia do circo para seduzi-lo –; e também se iniciara em jogos e retomara o vício da bebida; ao fim, o narrador-personagem-mestre: “Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões tem passado pelas nossas es tradas. “E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos” (RUBIÃO, 2010, p. 51) 56 Em “Os Dragões”, num volume quantitativo, poderíamos dizer que o plano representativo-humano predomina: temos todo um cenário com sujeitos da variada atividade humana: o padre, o professor, o delegado, a esposa, as crianças, a educação, a igreja, o entretenime nto (circo), a cidade e toda a civilidade. E o que fazer com a trama que treme a contrapelo: abrupto aparecimento de Dragões de um modo “a-histórico desprovido de contexto” (SCHWARTZ, 1981, p. 39) e a insalubridade, a apatia e o sumiço ao ser inscrito nessa ambiência humana.Temos uma problemática da alteridade, justamente onde os devires se acendem. Mas a alteridade também não cessa de ser subjugada, arquivada e redistribuída – e é intrinsecamente na linguagem que isto se dá – na economia de equivalências e semelhanças, onde a diferença é subordinada à identidade; teríamos como representações, por exemplo, (alteridades recapturadas) as contrastantes civilizações (bipolaridades ou multipolaridades da geopolítica, colonizador-colonizado), o marketing estético e as demasiado morais “belezas interiores” (belas e feras, feio por fora, bonito por dentro), os mitos dos contrários, o patinho feio (lido como desenvolvimento da feiúra em beleza) etc. Mas não teríamos ainda uma alteridade radical, fora dessa apropriação global-capitalista das diferenças que as devolve como produto e consumo, agenciando os sujeitos, e as subjetividades, no momento mesmo em que falam, veem ou ouvem . Tal alteridade, ficando mais distante ainda de escapar a um fundo mais imperceptível e implacável, poderoso centro irradiador, aquela autoridade dada por Deus a Adão, o eixo humanístico de classificação “[...] esse homem da gleba, criado como réplica de Deus [...] recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve para obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, em verdade, seu poder de domar”. (DERRIDA, 2011, p. 35); ou mesmo em recapturação tropológica, em codecs metafóricos, alegóricos, realizando com esses dragões o que Derrida temia fazer ao gato: [...] a reapropriação antropomórfica teria começado, uma domesticação mesmo poderia já estar em ação se eu cedesse à minha própria melancolia; se me engajasse, para escutá-lo em mim, a sobreinterpretar o que o gato poderia assim, à sua maneira, dizer-me, [...] sugerir ou simplesmente significar em uma linguagem de traços mudos, isto é, sem uma só palavra [...] desejo assim confessado de escapar à alternativa da projeção apropriante e da interrupção cortante 57 [...] não estou disposto a interpretá-lo ou a senti-lo em negativo (DERRIDA, 2011, p. 40) Mas há um Devir-Dragões a fender intervalos fatais nessas circularidades, a interromper – atrevendo-se a criar – a base humanística semio-despótica com a emissão de um signo excessivo: dragões fora do catálogo, que por mais que se tente identificá-los, acabam traindo a tradição dos dragões mitológicos, bem como fazendo vacilar, com certos afectos, a estabilidade das instituições que os cooptaram por vários momentos e, ao final, deixam os humanos por ver apenas sua partículas desejantes seguirem afetadas com os dragões. Em inversão a um conhecido colonialismo, no conto, os homens da cidade não vão ativamente até a alteridade (os dragões); esta é que chega de surpresa, pondo-nos (o narrador e o leitor implícito que implica a nós do lado de fora, deixando tudo em coexistência) em situação de passividade e um mal-estar sobre o que concordo tranquilamente com o que diz Schwartz: “A necessidade de justificar racionalmente a origem dos Dragões torna-se um imperativo, já que a sociedade nega a condição de indivíduo ao ser a-histórico desprovido de contexto social” (SCHWARTZ, 1981, p. 39). Esta passividade e mal estar inicial, esse ataquesurpresa de uma a-historicidade repentina é o primeiro golpe do devir que se configura, é o delirante encontro com o anômalo-dragão, elemento de fronteira que faz Deleuze sempre lembrar de Lovecraft com o Outsider, coisa que transborda. É justamente na borda da cidade que se passam os instantes decisivos do DevirDragões – como nas bordas do conto, início e desfecho. O anômalo está sempre na fronteira, sobre a borda de uma banda ou de uma multiplicidade; ele faz parte dela, mas a faz passar para outra multiplicidade, ele a faz devir, traçar uma linha-entre. É também o “outsider”: Moby Dick, ou então a Coisa, a Entidade de Lovecraft, terror. (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 56) Mas como o disse Schwartz, a necessidade de racionalizar é imperativa, essa “vocação para extrair o indeterminado dando-lhe forma, e que desta acção não pode deixar de sair triunfante” (LYOTARD, 1997, p. 12). E a partir daí, temos o embate entre devir ou ficar. O primeiro contra-golpe a essa Coisa intempestiva é o do vigário, velho gramático, afirmando serem enviados do demônio e não permitindo a sua educação; segue-se então o processo cadastral: o leitor de jornal que falava em 58 monstros antediluvianos; o povo benzendo-se, abrindo seu arquivo com mulas sem cabeça e lobisomens. “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.” Logo mais, dedicaremos bastante ouvido para elas; fiquemos com as outras considerações. As considerações do vigário, a do leitor de jornais com uma fraca formação, e a do povo com seu ato de benzer-se, corroboram a vestir o dragão com a figura demoníaca. Deleuze e Guattari põem os estranhos devires como pactos demoníacos. Afirmo que ironicamente, pois não recuperam aí a figura mitológica do demônio, mas o fato de que assim eram identificados pela doutrina religiosa, devido à aliança herege que se realiza – o feiticeiro, as bruxas, com os animais, os vegetais, com os elementos químico-físicos etc. –, ou seja, traem a palavra de Ordem; compõem novos sentidos não subalternos ao centro de verdades das catedrais e castelos. Nestes lugares, dessa formam, localizam-se forçosamente o elemento estranho em uma origem de registro, detendo, portanto, os protocolos autorizados de julgamento (padre/déspota, codec). Logo depois, vem a apreensão dos dragões pela utilidade possível, pela economia e técnica: animais domésticos e de trabalho, aproveitamento dos dragões na tração de veículos – com insucesso devido ter poucos dragões para muitos pretendentes. Por fim, decide o vigário, a apreensão mais grave do estranho: “receberiam nome na pia batismal e seriam alfabetizados” (RUBIÃO, 2010, p. 48). O narrador-personagem-mestre irrita-se: “São dragões! Não precisam de nome nem de batismo!” (RUBIÃO, 2010, 48). Reação de um espírito já fascinado com a alteridade do dragão e que resiste a algo que faça cessar esse devir. Perplexo, o reverendo abriu mão do batismo; o outro, cede à exigência de nomes. Segue-se então a trama da nomeação, educação e participação social: “Segundo os homens (integrados e representativos da sociedade) os dragões não podem subsistir no meio social sem a palavra. Justifica-se então a necessidade de atribuir-lhes nomes e sua posterior alfabetização” (SCHWARTZ, 1976, p. 39). Ainda na leitura de Os Dragões já mencionamos esse domínio a partir da nomeação, desígnio de Adão por Deus, junto à citação de Derrida. Este, como no questionamento com o gato, ainda tem muito a nos dizer sobre essa dominação: 59 é como se o gato lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer uma só palavra, o relato terrível da gênese. Quem nasceu primeiro antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O sujeito? Quem continua muito tempo sendo o déspota? (DERRIDA, 2011, p. 39) Os dragões participam da sociedade, bebidas, namoros, travessuras fora da lei; agora com identidade, cadastrada sua pessoa física; e estão sendo alfabetizados pelo mestre que não descola de sua fascinante presença – o nome fora aplicado, mas o batismo fora impedido, mantendo a ligação “demoníaca”. O narradorpersonagem-mestre encontra os olhos dos dragões de um modo delirante “certa candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a outros discípulos” (RUBIÃO, 2010, p. 49) Encontro este perigoso, pois é um dos instantes em que a instituição e a traição da fixidez duelam mortalmente. Um ou outro: “teatro de ressentimento e culpabilidade. [...] Em seu rosto e em seus olhos sempre se vê seu segredo” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 60), e o devir é ne utralizado, o Outro é subjetivado, contido, com toda a carga da humanidade de pecados e culpas. Ou então Por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo qualquer lógica está ausente... O olho liberado de si, não revela nem ilumina mais, ele corre ao longo da linha do horizonte, viajante eterno e privado de informações (Henri Miller. Tropique du crpricorne. Chêne, p.177 in: DELEUZE/PARNET, p. 59) Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito “animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o ahumano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar. E tudo pode me ocorrer, eu sou como uma criança pronta para o apocalipse, eu sou o próprio apocalipse, ou seja, o último e o primeiro evento do fim, o desvelamento e o veredito. Eu sou o apocalipse, eu me identifico a ele correndo-lhe atrás [...] atrás de toda a sua zoologia. (DERRIDA, 2011, p. 31) E então é o devir-dragões que continua a agir, mesmo com toda forma de contenção realizada, como um presságio indeterminado de liberdade. 60 Quando sugere-se a composição “mestre-personagem-narrador”, é para tentar registrar um delírio no discurso narrativa deste conto, que é a bifurcação do personagem que ora é personagem-mestre e suas ações estão enquadradas no quadro social de colonização da alteridade-dragão; ora é narrador-personagem, com um discurso anti-mestre, contra sua funcionalidade, este que não participou dos préjulgamentos no início sobre os dragões e que ouviu as crianças em sua voz frágil e sem vez, fascinado pela singularidade dragonácea (interessante termo cunhado por Schwartz (2010, p.39) para referir a alteridade dos dragões não inferida da significação dos humanos da cidade). Mas mesmo esse narrador fascinado, mesmo raramente, ainda sucumbe por instantes ao mestre, e o deixa afirmar que Odorico, o dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades, alvoroçado por saias “principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49). Esse instante narrativo, ele mesmo, é imbuído de hierarquia familiar, “irmão mais velho”; de violência à alteridade naturalizando comportamentos adquiridos, “vagabundagem inata” 5; o mestre ainda tenta destruir o que testemunha como relação pecaminosa de Odorico com a mulher de outrem. O narrador não encontra mais os olhos do dragão que direcionam em sorrisos para a mulher. E neste ponto, junto com o narrador, perdemos de vista o devir -dragões que vemos completamente afogado na circularidade social – ainda assim, com infrações penais. Odorico é encontrado morto, de tiro, sugestivamente passional. O carinho do mestre é direcionado para o último dragão, que é recuperado de vícios sociais e dedica-se aos estudos. Aqui ocorre uma trama familiar e uma nova complicação com o devir. Segue o narrador a respeito do dragão João, sugerindo que nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência, “[...] aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança. Carregava -os nas costas, dava cambalhotas (RUBIÃO, 2010, p. 49). O devir mostra sinal de vida. Ao mesmo tempo em que é inscrito na instituição familiar, ainda porta uma vazão anômala, demoníaca; a anomalia ocupa hereticamente, e positivamente, o lugar do 5 Neste fato, até revemos, por exemplo, a fofoca preconceituosa que se faz no Brasil sobre a preguiça “inata” do indígena. 61 filho, o lugar da descendência. A árvore é desviada, trai a raiz, cria um vínculo lateral, rizomático, conjunção disjuntiva, proliferação sem filiação. O mestre tem esposa, mas não filhos; ouve as crianças e é o único a testemunhar a indeterminação insistente dos dragões. As dragonidades se agravam e a esposa alerta que João cuspira fogo. Narra -se que sua maioridade chegara e a reapreensão dos atributos dragonáceos se opera novamente, a simpatia entre as moças e rapazes aumentam a se ver, nesse fogo, entretenimento e pirotecnia, showman, mesmo nas festas religiosas. Inscrevem-no no jogo das disputas ao abrir um desafio entre seu atributo dragonáceo – traduzido, abduzido em artifício, ilusionismo, “costumeira proeza de vomitar fogo” – e o ilusionista do circo. O circo gostaria de contratá-lo, mas houve recusa, nada superaria seu prestígio e até planejava futuros – o que poria totalmente abaixo sua preciosa a-historicidade –, ser prefeito. Mas, silenciosamente, uma linha de fuga. Ninguém sabia do desaparecimento de João, e tal como veio, restava m apenas vagas conjeturas; vagava por rumores. Fugiu novamente para sua a-historicidade, carregando consigo, levando -os até à borda da cidade, o narrador-personagem fascinado que traiu definitivamente o mestre. “Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro. Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 53); conjuntamente com as crianças, os alunos, a insistirem que os dragões permaneçam sem receber resposta. Nessa estrada, na borda e além, talvez não haja palavras, nem linguagem capaz de chamados, apelos ou frases, nem de respostas. Somente aquele fundo obscuro em que aquelas crianças e o personagem-narrador, com os quais somos arrastados , puderam experimentar e permanecerem afetados por dragonidades singulares irreversíveis – não as catalogadas –, onde uma mesma força inumana originária compreende dragões e humanidades. Da experimentação e da interpretação Diferentemente do que ocorreu em relação a Teleco, o coelhinho, com Os Dragões houve uma maior conjugação com a leitura realizada por Roberto Schwartz. A trama da crítica ao humano é bem desenvolvida pelo crítico e na descrição bruta 62 deste aspecto quase não acrescento. No entanto, nas sínteses e conclusões, na cauterização afirmativa da leitura, ainda é preciso diferenciar. Apesar de indicar muito bem como os humanos eram totalitários em sua supremacia discursiva sobre a alteridade dos dragões, certas considerações suas, do lado externo também o são – sob a perspectiva de leitura em contra-representação desta dissertação – ao realizar uma genealogia da origem dos dragões, da tradição mitológica que devem participar, aferindo com isso significados ao conto. A ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que sejam eliminados os atributos “dragonáceos” [...] A crítica à sociedade e ao homem é levada até as últimas conseqüências, através de uma inversão nos valores convencionais atribuídos ao dragão. [...] no nível conotativo [...] assim como a serpente, que, à diferença do dragão, possui referente concreto-real, a tradição literária ocidental convencionou o dragão como símbolo do mal (SCHWARTZ, 1981, p. 39/40) Pretendo argumentar, aqui, que esses dragões criados por Murilo Rubião, são signos excessivos, escapam à enciclopédia dos dragões e que mesmo uma inversão simbólica não os contém, pois não os tira do eixo do bem e do mal. Os dragões de Rubião são plasmados em um percepto bem diferente dos dragões mitológicos, sem tonalidade épica nem de combate. Em que se parecem com os dragões de “Hércules, Sigurd, São Miguel, São Jorge” (SCHWARTZ, 1981, p. 40) no eixo do bem e do mal? Neste conto, se não estão sendo “o mal” também não são “o bem” moralmente construído pelas doutrinas onde essa tradição simbólica do dragão se formou. Estes dragões são justamente a suspensão dessas alternativas sobre o mesmo eixo, em prol de pluralidades indeterminadas. A apropriação humana e social criticada no conto deve atingir a noção de “bem” como constructo seu. Dessa forma experimentamos os afectos desses dragões de um modo totalmente outro dos dragões mitológicos; eles traem também a árvore de seus ancestrais. O que se percebe neles no contexto do conto, é ainda o que se nos apresenta para o mundo de cá, tal como afirma Schwartz neste trecho. O Dragão surge como elemento “puro”, sem contexto nem história, e instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade. [...] Os meninos assim como os Dragões, vêm ao mundo desprovidos de um repertório preconceitual, e não apenas sua origem mas o percurso dos dois dentro da sociedade é análogo [...] por isso as crianças são as únicas que conseguem perceber os Dragões do modo que eles são: “simples dragões” (SCHWARTZ, 1981, p. 40) 63 É somente agora que quero relacionar a epígrafe, uma vez que é sugestivamente tomada como remissão, como alusão a um texto anterior, como quem dá continuidade em representações e participa de uma metafísica do desenvolvimento. Diferentemente de aludir, de confirmar informações; o que Rubião conseguiu realizar com a obsessão das epígrafes é que são um furo, uma vazão entre as realidades implicadas nos textos, por onde passam corpos e potências de lá para cá e daqui para lá; é um roubo de forças, como um gato de energia elétrica. Neste caso específico, se apropria apenas do corpo-dragão e sua potência muda, imediata e sem comentários, presença de dragão. Não fez questão de corroborar sua carga simbólica no contexto bíblico e, ainda, devido à vazão contrária, o ironiza. Há uma imanência ao corpo-dragão, que somente por raríssimas traduções seriam possíveis o seu recorte para epígrafe; ou então Rubião tenha arriscado versões do latim. Devido às interpretações na circularidade dos significados reciprocamente substituíveis, em pelo menos quatro versões não encontro os dragões, mas chacais; e no lugar da ave citada, umas “avestruzes”, outras “corujas”. Em Jó, 30, 29 temos: a) Tornei-me irmão dos chacais, companheiro das corujas 6. b) “Irmão me fiz dos chacais, e companheiro dos avestruzes” 7. c) “tornei-me irmão dos chacais e companheiro das corujas” (HItcook, 2005, p.573) d) “sou irmão dos chacais e companheiro de avestruzes” (A Bíblia Sagrada, 1980, p.553) e) “frater fui draconum et socius strutionum”. Acompanhada de uma tradução em Inglês, na qual se mantêm os dragões e fica-se com as corujas (I am a brother to dragons, and a companion to owls.) 8 No contexto bíblico, Jó assim se expressa devido não estar mais aos cuidados do Pai, estando em penúria, sendo desprezado por todos, inclusive pessoas desprezíveis; é banido do convívio social, de modo que tenha tido somente animais asquerosos como companhia. Se na tradução o chacal é autorizado ao lugar de dragões é porque o que importa é generalidade simbólica de “mal”, asqueroso; e o 6 http://www.bibliaon.com/jo_30/ acesso em 18/11/2013 7 http://biblia.gospelmais.com.br/jo_30/ acesso em 18/11/2013 8 http://latinitas.org/biblia/iob.pdf acesso em 18/12/2013 64 que importa é falar de algo mal em oposição um bem (estar sob os cuidados e aceitação de Deus). Em Rubião esse contexto não se conecta. O título de seu conto é o critério, o que interessa é apenas o corpo-dragão que será todo recriado em se u conto – caso contrário, chacais caberiam também –, não é tomado como asqueroso nem figura do mal, nem de submundo – a não ser pelo discurso criticado no conto. É mesmo instância de fascínio, paira indiferentemente ulterior ao bem e ao mal, com toda a simpatia infantil. A coruja ou o avestruz nada integram. E como encaixar a figura de Jó se, para esse, os animais estão em negativo, no submundo da bruta miséria humana da irracionalidade, aliança impura de sua condição deplorável. Fora da dócil integração remissiva, há mesmo uma salutar traição: “Sempre há traição em uma linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro. Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 53). É um drible na historialidade: Quanto à história, à historicidade, em verdade à historialidade [...] pertencem precisamente a esta autodefinição, a esta autoapreensão, a esta autossituação do homem e do Dasein humano em relação ao vivente e à vida animal, a esta autobiografia do homem que pretendo questionar hoje [...] todas essas palavras, e em particular a história, pertencem de maneira constitutiva à linguagem, aos interesses e aos enganos desta autobiografia (DERRIDA, 2011, p. 49/50) Enfim, uma última consideração sobre o trato representativo de os dragões. Bildungsroman às avessas, pois o caminho da aprendizagem conduz o discípulo à sua perdição, dissociando-o totalmente do meio ao qual ele deve inicialmente se integrar. A sociedade funciona assim como elemento contaminador e propagador do mal. Participar dela equivale à condenação de deixar-se contagiar pelo ser humano. A opção de permanecer fora da cidade é tão inexistente quanto os próprios dragões – serve apenas como artifício ficcional de uma opção inverossímil. A “entrada da cidade” é o limite entre o céu e o inferno, entre o paraíso e o mundo terrenal. Nem os homens podem transpô-la, nem os dragões se atrevem a voltar, sob pena de que a maldição da existência recaia sobre eles, ao repetir o percurso irreversível de Adão e Eva. Não há uma segunda vinda para os dragões: São eles símbolos de uma possibilidade para a qual o homem se volta, numa tentativa frustrada de recuperar o passado. “Fui irmão de dragões”, diz a epígrafe do conto – e não é casual a similaridade estabelecida: roto o 65 elo que liga o homem ao dragão, rompe-se a possibilidade de salvação do primeiro. Os dragões passam então a subsistir na cultura humana como reminiscência e como vontade; permanece o homem lutando nas portas da cidade, lutando entre o devaneio do passado e o gesto incalculável do futuro. O tempo que lhes resta é o presente da condenação: “postados na entrada da cidade”, batalham aqueles que não conseguem esquecer o lembrete de Dante: Lasciate ogni speranza voi che entrate. (SCHWARTZ, 1981, p. 41) Há talvez o reverso de um “Romance de Formação”, romance de deformação, talvez melhor, performação, e sugestão aberta a extrapolar princípios do humanismo; mas bem fora do jogo de perdição e salvação. 9 Como os dragões podem não existir após todo o transtorno que causaram? Que tem de celestial e infernal, no que acabamos de passar? Que há de Adão e Eva, a não ser a supremacia do nome? Como o desejo agenciado aos dragões é de salvação? Os dragões são santos? Sim, os dragões subsistem como desejo; não como lembrança, mas como contágio: para sempre haverá aquelas singulares dragonidades naquele homem que deu ouvidos ao testemunho das crianças, que é tomado em um Devir-criança que o conectou aos dragões10; que deu ouvidos ao mistério irrefratável para nós de que sejam simples dragões, algo que nos contamina do simples, em longas filas, para bem longe do “assim na terra”, com o que há de simbólico por baixo, e de “como no céu”. Realmente há algo de condenação na cidade, da permanência, do mesmo, pela significância, protocolos – mais ao modo da colônia penal de Kafka –; mas não há santidade ou salvação com os dragões, o que seria a outra ponta da mesma doutrina. Há desvio, recomeço, amnésia criadora, arquitetada heresia da inocência tornada escritura: “meio de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever [...] Experimentem, nunca interpretem. Programem, nunca fantasiem” (DELUZE/PARNET, 1998, p. 61). 9 “Bildungsroman é um tipo de romance que se caracteriza pela formação do protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de síntese entre práxis e contemplação”. Consideração sobre o romance de formação a partir do artigo de Flavio Quintale Neto (Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professor dos cursos de Letras e Filosofia da Universidade Metodista de São Paulo): Para uma interpretação do conceito de Bildungsroman (2005). 10 Se transporta alguém de longe, lembro-me de Heráclito e sua preferência a estar com as crianças e não nas assembléias. 66 3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O Homem do Boné Cinzento) Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu palácio. (Daniel, VI, 1). (RUBIÃO, 2010, 151) “O culpado foi o homem do boné cinzento. Antes da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade.” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Corria tudo em ordem na residência e na vizinhança do narrador Roderico e seu irmão Artur até a chegada de um rico celibatário, Anatólio – de quem cobria a cabeça um boné xadrez preto e branco, com dentes escuros e um cachimbo curvo. Este último, de hábitos estranhos, deixava a todos perplexos, nunca era visto saindo de casa. Artur desenvolveu uma forte obsessão em acompanhar a rotina do velho estranho e sentia uma eufórica alegria em vê-lo: “Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!”. Roderico se agastava e achava um aborrecimento a obsessão de acompanhar a vida do velho e seu definhamento. Seu irmão descobre o nome do ancião e sua irritação responde: “fosse Nabucodosor!” (RUBIÃO, 2010, p. 152). Uma bonita moça adentra a casa do estranho para logo mais não dar mais nem sinal de permanência.Três meses mais tarde, a moça surge para partir do casarão. Anatólio, à visão de Artur, continua emagrecendo. A confiança que o narrador Roderico em seus nervos e discernimentos decrescia instaurando uma ansiedade, segundo este, não tanto pelo velho, mas por seu irmão de quem se lhe afundavam os olhos; e para lhe provar que não havia anormalidades passa a vigiar também o homem do boné cinzento. Percebe que sua magreza realmente fascina e lhe indica um fato: o homem está ficando transparente. Roderico agora assusta-se, através do corpo se via objetos e o ambiente, o coração dependurado na maçaneta da porta. Artur também emagrecia mas Roderico ainda não dava importância: Anatólio era sua única preocupação agora, que de tão magro só tinha perfil. No dia seguinte, o homem sem mais o que emagrecer, reduz o crânio e o boné folga sobre os olhos, o vento dobra seu corpo sobre si, num espasmo lança um jato de fogo que varre a rua – Artur excitado, Roderico atemorizado –, ao fim escorre-lhe uma baba incandescente e o incendeia; resta somente a cabeça, coberta pelo boné. Artur afirma que é como previra, sua voz gradativamente afina e se distancia, o corpo 67 diminui a centímetros, Roderico o sustém nas mãos, com a ponta dos dedos, logo Artur se transforma em uma bolinha negra a rolar em sua mão. Dos planos Há um delírio impressionante como efeito no discurso narrativo que testemunhará a princípio, duas tramas, para logo mais mesclá-las em um turbilhão único. Temos o narrador-personagem, Roderico. Mas devido, tão frequentemente, seu irmão Artur manifestar-se em discurso direto, dá a impressão – e já basta para ser um fato narrativo – de haver um narrador extra que nos mostraria a história de dois irmãos em que um, Roderico, narra a trama de Artur acompanhando o velho celibatário; e ao mesmo tempo deixa o próprio Artur narrar diretamente sua história sobre o velho celibatário. Isto ocorre porque cada um tem um discurso apartado, fundado em bases perceptivas muito diferentes, travando duas histórias em que retomaremos – como em Teleco e os Dragões – a apropriação e os dribles entre o plano transcendente, aqui, manifestado pelo equilíbrio sempre seguro dos fenômenos sob as deduções lógicas de Roderico; e o plano de Devir, perturbações, fascínios e euforias, nas percepções e testemunhos de Artur siderados pela vazão anômala do Homem do Boné Cinzento. Veremos o plano de Artur desestabilizar insistentemente o de Roderico até ao ponto em que a trama da lógica e da normalidade previsível, dedutível, ordinária, devém em um fluxo único a testemunhar os extraordinários de que ainda trataremos com mais detalhes. “A nossa intranqüilidade começou na madrugada em que fomos despertados por desusado movimento de caminhões” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Esse evento marca apenas a chegada dos objetos pessoais de alguém. Veja-se que mesmo esse “nosso” não é comum entre os dois ao início, pois para Roderico é a inquietação absurda de seu irmão; para este, é já o evento sideral do velho celibatário. Segue-se a narrativa de Roderico: Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia suposições menos verossímeis. 68 Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum estabelecimento comercial. (RUBIÃO, 2010, p. 151) Toda sua análise é dedutiva, num tom de certeza quase debochante. Já a exagerada sensibilidade de seu irmão nos testemunha algo menos tranqüilo, casa tremendo, e o revezar do branco e cinzento no céu, “Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos e saltitantes” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Primeira traição à sua “mania de contradição” (RUBIÃO, 2010, p. 151), chegava o novo vizinho, olhos fundos e corpo esquelético e cobrindo-lhe a cabeça, um boné tal qual céu descrito pelo irmão. [...] ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela figura completamente transtornado. (RUBIÃO, 2010, p. 151). grotesca, Artur ficou Enquanto seu Artur lhe contava as coisas de um modo totalmente estranho, percebendo vibraçõe, frases surrealistas, homem que trouxe os quadradinhos e que desapareceria, Roderico conjeturava dentro dos padrões lógicos, homem que sem se separar do boné possivelmente escondia uma calvície adiantada. Artur em euforia, a repetir-lhe [...] que o homenzinho continuava definhando. – Impossível! – eu retrucava – o diabo do magrela não tem mais como emagrecer! - e pois está emagrecendo! (RUBIÃO, 2010, p. 152). Novamente Roderico segue seu testemunho sensato sobre os fatos, seu irmão em gradativo non sens: entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando: - Chama-se Anatólio! Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor! (RUBIÃO, 2010, p. 152) Aparecimento de uma moça e entra na casa do velho, para outra inquietação de Artur. - Ora, que importância tem uma jovem residir com um velho celibatário? (RUBIÃO, 2010, p. 153) Três meses para a saída da moça, “Sozinha como viera, carregou as malas consigo”. (RUBIÃO, 2010, p. 153). O velho continua emagrecendo no discurso de Artur. Chega-se então a um momento decisivo; se o celibatário fascina e afeta até mesmo fisicamente Artur, este começa a despertar em Roderico um mal-estar, insegurança quanto aos fenômenos que para este até então estavam bem registrados pelas recorrências. Algo salta para fora do plano, algo invade o plano, cisma: Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto 69 pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso enigmático vizinho. (RUBIÃO, 2010, p. 153) A partir daqui, não vemos mais o velho e os fenômenos de Artur filtrados pelas resoluções lógicas de Roderico. Tal mundo previsível se desfaz, os fluxos e planos agora são únicos e o Roderico-narrador acompanha, comunga, colado e passivamente o que se segue. Vemos sucumbir toda a lógica ordenada de seu discurso, e sua percepção passa ser um dueto com a de Artur – levando consigo o leitor implícito – com partículas de nós aqui de fora – da desconfiança assegurada pela lógica à sensibilidade direta dos fatos extraordinários. Dos Anômalos e dos Devires Se o homem que trouxe os quadradinhos no céu a na cabeça, foi desde o início o anômalo de Artur, a anomalia do comportamento deste o desterritorializou e o conectou às forças cinza e branca, da magreza, dos olhos fundos, das trepidações: Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe: - Ele está ficando transparente. Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados. Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo (RUBIÃO, 2010, p. 151) Todo o discurso narrativo é insano, sussurrante, eufórico. Lógicas ainda tentam levantar-se “nada mais tendo a emagrecer”; para logo serem afogadas: “seu crânio havia diminuído” (RUBIÃO, 2010, p. 154). Chega-se então ao final como descrito no enredo sobrescrito. Espasmo de fogo do velho, voz gradativamente afinando de Artur; baba incandescente, incêndio, e somente a cabeça coberta pelo boné e o triunfo dos quadradinhos; “Não falei, não falei”, dizendo Artur antes de se tornar uma bolinha negra. ... 70 “O culpado foi O homem do Boné Cinzento. Antes da sua vinda nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade”. Do Narrador extra e o Aion. Devir-tempo (Roderico-depois-de-tudo conta a história de um Roderico que virá a passar por tudo para ser o Roderico-depois-de-tudo que conta a história...) Tal narrador extra, mencionado bem mais acima, é o próprio Roderico depois de tudo, como indica a frase introdutória que implica, antes de tudo, que a voz vem de depois de tudo; ciente de que o culpado de tudo que ocorreu/ocorre/ocorrerá foi/é/será o homem do boné cinzento. Ou seja, o Roderico que está com seu irmão, passa por sua trama, sucumbe à de Artur, ao final, está apto a ser o narrador do início do conto, que tem onisciência e conhece os detalhes e o culpado de tudo o que ocorrerá. Tal frase no início, cria um percepto, aquela impressão de se ter um terceiro olhar, pouco mais acima, mais conhecedor que o Roderico que ainda vai passar pela história e Artur; provoca uma vertigem temporal, pirando Cronos, quebrando o relógio, estonteando a capacidade psicológica de suster um tempo; fazendo emergir o fundo não estriado do tempo, aquém de ter um início meio e fim, “o instante pervertendo o presente em futuro e passado insistentes, „impiedosa linha reta do Aion‟”. (PELBART, 2010: 71) Devir-luz, cor e fogo. Devir-elementos: distensão cósmica, dilatação e contração. O discurso, testemunho, de Artur contém uma sintaxe delirante que como diz Manoel de Barros, voa fora da asa. Afora toda a euforia, que forma de se comunicar!: é gaguejante mas promissora, sussurrante de presságio, é sempre descentrada porém intensa. E, em suas designações dos fenômenos, a sua semântica principal são as cores. As cores contem o sentido do que ele diz e o destino dos fatos, Artur é tomado num devir-cor e esta cor num devir-linguagem. A sua versão da história está em xadrez: pontos brancos, pontos cinzentos, quadrinhos perfeitos de duas cores; pronto, anunciara aquele que trouxe os 71 quadrinhos e desaparecerá – o desaparecimento não é um dos limites das cores? –; anunciara aquele que ficou transparente, incendiou-se, show pirotécnico de cores a nos narrar a sua, literalmente, brilhante versão dos fenômenos. Falando em pirotécnico, interessante compartilhar aqui outro devir-cor da escritura e sentido realizado por Rubião, em O Pirotécnico Zacarias, que já na epígrafe convoca a luz do meio-dia e a estrela D‟Alva do livro de Jó. Neste conto o Branco é um dos maiores sentidos e, quando um sol brilhando como nunca, diz-se: “os homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos”. (RUBIÃO, 2010, p. 20) Seu destino, Artur, foi uma bolinha preta. Há conjuntamente o Devir-cósmico, a distensão entre os anômalos de ligação mais sideral. Convulsivamente são reclamados pelo cosmo, esse inumano nos contém em potência, são distendidos ao sólido limite, a bolinha preta; polarizado na outra ponta pelo éter, vapor e transparência absolutos; conectados por incandescência, aquecimento e combustão – experimentamos aí, talvez, um espanto como o dos pensadores originários percorrendo pelos elementos cósmicos e devires. Da experimentação e da interpretação É importante relacionar ainda, como nos outros contos, considerações de Roberto Schwartz e, através do comentário deste, de Davi Arriguci, sobre uma questão que atinge o Homem do Boné Cinzento: a questão da hipérbole. Este sistema de adjunção “A hipérbole não parece ter limite determinável” afirma J. Dubois, em sua Retórica geral (p.189), o que vem confirmar a intimidade da relação forma/conteúdo, ou seja: a hipérbole como forma de expressão formaliza o conteúdo do conto, havendo um imbricamento entre o nível retórico e o seu correspondente semântico. “O discurso ficcional também se coaduna com o princípio de construção do edifício: o conto (...) permanece ironicamente aberto para um contar inacabável: enquanto o edifício ganhara altura”, observa Davi Arriguci, no seu artigo introdutório ao OPZ11, mostrando a superposição do narrar ao fato narrado. As progressões nos contos de Murilo Rubião revelam-se processos incontroláveis, que fogem à vontade dos sujeitos da ação. (SCHWRTZ, 1981, p. 71) 11 Abreviatura técnica em SCHWARTZ, 1981, para O Pirotécnico Zacarias. 72 Na perspectiva desta dissertação, do Devir sob considerações teóricofilosóficas já expostas em capítulo apropriado, o signo é um movimento único de escritura-realidade, essa coadunação do discurso ficcional com os objetos e a realidade designada por ele se opera imediatamente; pelo co ntrário, não se vê a possibilidade de uma escritura de devir crer na dualidade forma/contéudo. Não lemos como hipérbole, pois esta noção parece sugerir uma defasagem e separação entre conteúdo (como realidade em si) e forma (como fantasma de realidade a vagar com sua imagem); por isso a alcunha de “exagero”: pois deve haver um designado fixo, e uma expressão que distende sua imagem ou a reduz, ficando uma manipulação retórica e não real. Acolhemos sim, com toda a alegria de um achado importante, quando se fala em dilatação ou contração, que movimentam toda a física da realidade em questão “uma nomenclatura tipo hipérbole por dilatação e hipérbole por contração, respectivamente” (SCHWARTZ, 1981, p. 71); ou “processos incontroláveis que fogem à vontade dos sujeitos”, como na citação, pois no universo ulterior e imanente desses contos em questão, são eventos literalmente reais. Observemos: A forma hiperbólica pode-se apresentar invertida (tapinosis) como é o caso de “O homem do Boné Cinzento” EXM, que relata o gradativo desaparecimento de Anatólio e Artur. O Fantástico não se limita ao movimento físico regressivo, mas também se manifesta por descrições de caráter marcadamente surrealista: Via-se através do corpo de Anat ólio, objetos que estavam no interior da casa. Vasos de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçanet a da porta, cerrada somente de um dos lados. (p.123) (SCHWARTZ, 1981, p. 72) Sim a construção é infinita em conjunto indiscernível de sua narrativa e não é por hipérbole, efeito retórico, é por dilatação intensiva da realidade criada. Nesta citação, nada é hipérbole a não ser que nós sejamos os modelos. Não há surrealismo para os personagens, pois estes estão literalmente, no seu nível, sendo distendidos, sumindo, incendiando, transparecendo. Deveremos sempre ler/julgar os mundos de linguagem tendo o nosso como designação última? O nosso como medida? Entendendo o que nos ultrapassa ou nos encolhe, apenas “como um modo de dizer” sobre nós? Dessa forma não há Devir, não há terras não exploradas, não há experimentação real de mundos e sensibilidades, pois, como quem acorda e diz “foi 73 só um sonho”, também diremos, “foi só um modo de dizer”. A hipérbole espera interpretação, a retirada da máscara para se ver o designado (ilusão de que o nosso rosto não seja simulacros outros). O Devir, as figuras diretamente estéticointensivas, dilatação, contração, exigem experimentação; e que não se tome dessa forma: [...] dilatação/contração, montagem/desmontagem, força centrífuga/centrípeta definem-se como expressões hiperbólicas e geradoras de uma temática fantástica. (SCHWARTZ, 1981, p. 73) Sobre a epígrafe, insisto em dizer que, Rubião opera por recorte mais do que por desenvolvimento e remissão. É interessante q ue o texto bíblico retomado envolva sonhos e interpretações. Nabucodonosor é retirado de seu sossego devido a sonhos que o perturbam, com imagens um tanto desconexas e, portanto precisa de um intérprete; recorre a Daniel, já douto neste assunto. Daniel explicou que a árvore representava a grandeza do reino babilônio, o próprio Nabucodonosor, que dominava com orgulho e arrogância. Por um tempo determinado o rei seria retirado dentre os homens, viveria entre o gado do campo, molhado pelo orvalho do céu, e comeria a erva do campo até reconhecer que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens. O que o conto retoma disto? Digo que a cena da perturbação a partir de um evento estranho, imagético. E, pela leitura que já se expôs, o que ele mantém é esse jogo de euforia, intensidades e cores. Sim, no conto há algo bem Alto que tem domínio sobre os homens, que captura sua linguagem e sua matéria: o cosmo que os distendeu e os reclamou ao sólido e ao éter; ao sólido – conectados por olhos, luz, cores e fogo – ao éter. A experiência de quando o reino dos quadrinhos, dos cinzas e branco, tem domínio sobre os homens. Pelo buraco de minhoca12 da epígrafe, é como se o texto preferisse e transportasse somente superfície do sonho em sua expressão bruta, literal. 12 São pontes, na teoria da relatividade geral, que permitem ligar duas regiões muito afastadas do espaço-tempo. http://www.portaldoastronomo.org/cronica.php?id=25 Acesso em 20/11/2013. 74 75 4 Conclusões A investigação de supostas articulação e produção de uma diferença (realizada pelo procedimento literário, sob a sugestão de Gilles Deleuze, às vezes só, e em grande parte com este e Felix Guattari) e que tem como produto um Devir, um acontecimento que toma e modifica o sentido da existência do que nele se envolve; e isto, ainda, realizado pelo procedimento de Murilo Rubião nos contos Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem do Boné Cinzento foi uma experiência angustiante – devido ser uma perspectiva com muito poucas discussões e esclarecimentos no tocante à literatura, como uma operação de leitura afora as análises dos pensadores em questão, e talvez inédita com o escritor mineiro; mas, foi fascinante ao mobilizar revisão e discussão de saberes capitais aos estudos literários para que se entenda o seu lugar e sua atuação. Desde o início, não faz parte dos objetivos discutir até os limites essa revisão que acompanha tal perspectiva – a que caberia sozinho um trabalho investigativo –; mas apenas contribuir com um esclarecimento mínimo que situe a discussão e realizar uma possível operação de leitura com os contos mencionados nesta conclusão. Quanto à metodologia, talvez não se possa dizer que se tenha organizado um método; mas podemos dizer que uma operação criteriosa se realizou, obedecendo aos caminhos propostos. Pode-se dizer, ao final, que o Devir, em si, não se tornou um operador de leitura nem pode tornar-se talvez; mas entendendo seu funcionamento como diferença positiva, como recusa de mediações representativas para seu plano de composição, pôde-se sugerir uma predisposição teórica para o contemplar com sucessos esperados que foram as análises realizadas dos contos; e que foi possível pôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstrar o que se produziu em concordâncias e em divergências. Isto contribuiu, de modo geral, para a mobilização produtiva dos saberes para com a literatura; e, especificamente, para somar na afirmação – como a de Anita Costa Maluf devidamente citada – de que a noção de Devir aqui acionada, não suportando, em si, tornar-se método sem sua abolição, ao menos provoca o surgimento de um predisposição teórica que o enxergue, com ferramentas próprias, aptas a um novo olhar para com a literatura. 76 Ainda, outra grande contribuição aos Estudos Literários, reside na reflexão sobre o Devir-expressivo apontado por Deleuze/Guattari: se um corpo constituído (uma personalidade, um evento, uma coisa) é tensionado em devir-outro, esse outro também é comovido em devir. No caso da literatura, se o escritor, e seus universos virtuais, são afrontados por devires estranhos (animais, vegetais, cósmicos...), ele que já é tomado pela escritura, só pode sustentar essa afronta irresistível – acontecimento que toma em si o sentido da existência do que nele se envolve – dando-lhe escritura; ou seja, essa coisa torna-se escritura. O que não é o mesmo que dizer escrever sobre isso; este isso – seus afetos, suas potências – sendo o corpo da escritura. Manoel Bandeira – exemplo rápido para uma conclusão – não escreve sobre a onda, como assunto. Aonde anda a onda? Seus afectos (movimentos, ritmos, dobras, zoadas) tornaram-se escritura. A contribuição está em favorecer que se perceba a possibilidade de um processo semiótico como esse, sem a dimensão da imitação, devires que talvez sejam responsáveis por grande parte das escrituras, daqueles que escrevem para não morrer, propagando seus devires, bibliotecas inteiras de devires. Posso somar a estas conclusões, que Murilo Rubião nos guarda, e aguarda – pois pretendo mantê-lo em estudos – muito mais surpresas nesta perspectiva de Devir. Mas, percebi também, que ele tem um perfil bem complexo para tal análise, pois mantém os dois planos – o representativo e o de Devir – em proximidade estonteante de modo que concluo também que é uma singularidade sua, nos dois primeiros contos analisados, tal proximidade provocante; há uma luta de ironia melancólica, sussurrante, entre os dois planos – diferenciando-se assim, por exemplo, do mar e vento loucos, de sideração sanguinária de Achab e Moby Dick, tão citados por Deleuze. 77 BIBLIOGRAFIA A Bíblia sagrada: antigo e novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida; ed. revista e atualizada no Brasil. Sociedade Bíblica do Brasil. Brasília – DF, 1969. (reimpressão, 1980) ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. A rosa do povo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. 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