Gilberto B.Kerbauy Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo A idéia de cultivar células isoladas de plantas surgiu no início deste século com Gottlieb Haberlandt, um ilustre botânico alemão, como uma estratégia capaz de materializar os conceitos embutidos na teoria celular proposta por Schwann e Shleider por volta de 1839. O que postulava esta teoria? Esta conceituava a célula (vegetal e animal) como a menor unidade biológica, autônoma, e capaz, em princípio, de originar um organismo inteiro. Assim, ela afirmava que a célula madura do corpo de um organismo pluricelular (célula somática) manteria seu material genético em condições de originar um indivíduo idêntico à matriz doadora, comportando-se desta forma como se fosse uma célula-ovo ou zigoto. A questão, pois, era descobrir como fazer uma célula madura e especializada (diferenciada), programada para a realização de funções específicas, voltar ao estágio embrionário. A tarefa não era pequena para a época de Haberlandt e continua desafiadora e malcompreendida para a ciência ainda hoje, quase às vésperas da entrada da humanidade no 30 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento terceiro milênio. Haberlandt, todavia, legou às gerações seguintes de pesquisadores algo muito importante para o avanço do conhecimento científico, ou seja, princípios bem fundamentados, e procedimentos técnico-teóricos a serem seguidos, tendo alguns destes últimos se mostrado mais tarde quase que como verdadeiras “premonições”. A primeira demonstração inquestionável na obtenção de embriões de plantas a partir de células maduras (embriogênese somática) viria a ocorrer em 1958 pelo prof. F.C. Steward e colaboradores, cerca de quarenta anos mais tarde, através do cultivo de células isoladas de raiz de cenoura. Não obstante, o significado científico e o imenso potencial prático representado por esta descoberta parecem não ter sido suficientes para despertar na mídia da época o mesmo frisson verificado com a divulgação dos resultados com a ovelha Dolly, mesmo que neste caso não se possa falar em clonagem, na verdadeira acepção deste termo. Antes da obtenção de embriões somáticos de cenoura, já haviam conseguido a formação in vitro de estruturas complexas, como gemas vegetativas, raízes e plantas inteiras, utilizando-se fragmentos (explantes) de tecidos isolados de caules, folhas e raízes. Todavia, um avanço fantástico nos estudos da cultura de células, embriões e órgãos de plantas foi possibilitado com a desco- berta das citocininas, um importantíssimo hormônio vegetal, pelo grupo do professor Folke Skoog da Universidade de Wisconsin (USA). Paradoxalmente, a descoberta deste novo fitormônio deuse graças ao emprego da própria técnica da cultura de células vegetais. Esta descoberta levou à constatação de que o processo de formação de órgãos nas plantas dependia, na verdade, de um balanço das quantidades relativas de uma citocinina e de uma auxina (outro hormônio vegetal já conhecido), e não da presença de substâncias organogênicas específicas, conforme se postulava até então (floregno, calinas, rizocalinas). Paralelamente a uma renovada e inédita perspectiva de compreensão dos complexos mecanismos controladores do desenvolvimento das plantas como um todo, dava-se também com esta des- Embriões somáticos de amor-perfeiro (Viola tricolor) em diferentes estágios de desenvolvimento (estruturas verdes), formados sobre um calo (estrutura creme). Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento 31 coberta o início da chamada biotecnologia celular de plantas, aqui entendida como a utilização integrativa de processos tecnológicos e bioquímicos, empregando-se células, tecidos e órgãos de plantas superiores, visando a geração de produtos e serviços. das em biologia celular. Neste artigo, procuraremos abordar apenas uma destas diferentes técnicas, aquela mais visível para o público em geral, ou seja, a clonagem in vitro ou “plantas de proveta”. 1- Aplicações da cultura de tecidos Comparativamente às células animais, as células das plantas superiores (produtoras de flores) podem ser consideradas menos diferenciadas, tendo sido esta característica interpretada como uma importante estratégia de sobrevivência para organismos imóveis. Entretanto, isto não significa que possamos regenerar uma planta inteira de qualquer tecido. Os potenciais de regeneração dependem do tipo de planta, do órgão utilizado e do estágio de desenvolvimento deste. Órgãos jovens são mais suscetíveis à clonagem do que quando maduros, o que significa que, à medida que a especialização progride durante o desenvolvimento do órgão ou da planta, a desprogramação gênica (desdiferenciação) torna-se mais difícil. Conforme mostrado no esquema, verifica-se que as culturas podem ser estabelecidas a partir tanto de fragmentos de tecidos maduros (folhas, caules etc.), quanto de tecidos meristemáticos, constituídos por células em processo de divisão e localizados, geralmente, nos ápices dos caules e raízes em crescimento. O baixo grau de diferenciação de suas células, associado à maior estabilidade genética destas, faz dos ápices meristemáticos uma das principais fontes de explantes. Após a necessária desinfestação das superfícies externas, os explantes são transferidos para os meios de cultura, uma mistura balanceada de macro e micronutrientes (sais minerais), aminoácidos, vitaminas etc., e, obviamente, de uma auxina e uma citocinina em proporções adequadas às finalidades desejadas. A geleificação do meio para efeito de sustentação das culturas é obtida através da adição de agar. Gemas vegetativas e mesmo florais, raízes e embriões somáticos poderão se formar tanto diretamente do explante quanto indiretamente (via proliferação celulares, os chamados calos). De um modo Várias têm sido hoje as aplicações das técnicas de biotecnologia celular de plantas, a começar pela clonagem, seu lado mais visível, seguido pela cultura de Protocormóides formados diretamente de ápices de raízes de Catasetum fimbriatum (Orquidáceas). células (suspensões celulares em meio líquido), tecidos e órgãos para fins práticos, a obtenção de plantas haplóides a partir da cultura de anteras, a produção de metabólitos secundários em biorreatores, a geração de variantes somacionais, a microenxertia, a tecnologia dos protoplastos (células nuas com capacidade de se fundir) etc. Além disto, não seria demais mencionar ainda que um dos esteios básicos da chamada biologia molecular de plantas (“engenharia genética”) depende em grande extensão de estratégias e técnicas utiliza32 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento 2 - Estabelecimento das culturas Flor e botões florais formados a partir de tecido epidérmico, isolado de flores maduras de tabaco. geral, os balanços hormonais mais favoráveis às auxinas promovem a formação de embriões e primórdios de raízes e, quando favoráveis às citocininas, induzem a formação de gemas. Quando apenas gemas são formadas, torna-se necessária a transferência destas para meios indutores de raízes, obtendo-se então uma planta inteira e em condições de ser transferida para a casa de vegetação. Os calos, por serem massas celulares indiferenciadas, permitem também a regeneração in vitro com relativa facilidade. Todos os procedimentos necessários ao manuseio das culturas são realizados sob condições assépticas, fornecidas por equipamentos especiais. 3 - Clonagem de plantas in vitro O termo “clonagem”, hoje já incorporado ao cotidiano das pessoas, significa a formação de indivíduos geneticamante idênticos a partir de células ou fragmentos de uma determinada matriz. Clone deriva etmologicamente do grego klón, que quer dizer “broto” e pressupõe, portanto, a existência de um indivíduo gerador, e a ocorrência de reprodução assexuada. A técnica da clonagem in vitro de plantas, também conhecida por micropropagação, devido ao emprego de porções de tecidos bastante pequenas, tem-se mostrado de enorme importância prática e potencial nas áreas agrícola, florestal, horticultural, bem como na pesquisa básica em geral. A necessidade de colocação rápida no mercado de plantas de ciclo de vida longo, geralmente arbóreas e arbustivas, selecionadas após prolongados períodos de melhoramento genético, faz da clonagem uma alternativa muito importante e indispensável nos dias atuais. Em orquídeas, por exemplo, embora sejam plantas herbáceas, uma boa muda (“divisão”) não se obtém em menos de dois anos, enquanto que neste mesmo período, através da cultura in vitro de ápices meristemáticos, centenas ou milhares de clones podem ser produzidos. Além disto, são indiscutíveis as vantagens representadas pela manutenção de quantidades consideráveis destas plantas por metro quadrado, dentro de frascos em laboratórios, protegidos do ataque de pragas, doenças e intempéries. Particularmente na área de plantas ornamentais, onde predominam plantas híbridas (gerbera, cravo, tulipa, orquídea etc.), a clonagem in vitro de matrizes selecionadas tem permitido a compatibilização de demandas específicas do mercado interno e externo, com atributos importantes como época de floração, coloração, tamanho e forma das flores, número de flores/planta, comprimento e resistência das hastes florais, tamanho e vigor das plantas etc. A multiplicação in vitro em larga escala de plantas de importância econômica tem resultado na instalação de verdadeiras biofábricas comerciais, baseadas no princípio da linha de produção. 4 - Eliminação de patógenos Plantas propagadas vegetativamente por meio de técnicas convencionais, como estaquia, enxertia, etc., uma vez infectadas por vírus, micoplasmas, bactérias e fungos endógenos, transmitem inescapavelmente estes patógenos às gerações subseqüentes, provocando uma diminuição progressiva no rendimento das culturas. O cultivo de espécies com retornos abaixo do potencial genético produtivo, selecionado previamente, é inaceitável num mundo com população crescente e carente de alimentos. Avaliações comparativas realizadas com plantas de um mesmo cultivar de moranguinho, infectadas com vírus, mostraram que aquelas livres destes patógenos, via cultura de ápic e s meristemáticos, eram duas vezes mais produtivas. O fato de uma planta ter sido limpa de vírus, ou de outro patógeno em laboratório, não confere a ela nenhuma imunidade a novas infecções. De fato, a substituição das populações de plantas, após alguns anos de cultivo a campo, por novas matrizes produzidas em laboratório torna-se condição sine qua non. Laboratórios comerciais de médio e grande portes têm sido os responsáveis pela produção contínua de plantas livres de patógenos. Por sorte, conforme se descobriu tempos atrás, a distribuição de vírus e outros patógenos dentro das plantas não é uniforme, sendo os tecidos meristemáticos apicais praticamente livres destes microrganismos. Infelizmente, a ciência não sabe ao certo a(s) causa(s) desta capacidade protetora dos tecidos meristemáticos. De qualquer forma, o isolamento cuidadoso de pequenas porções de regiões meristemáticas (0,1 a 0,5mm) e a cultura destas em meios de cultura apropriados permitem a obtenção em escala econômica de plantas clonadas livres de muitos patógenos. É muito provável, sem que o leitor o saiba, que a batatinha, banana, moranguinho, abacaxi que saboreou nesta última semana tenham sido produzidos por plantas clonadas in vitro. Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento 33