POSSE DE ESTADO DE FILHO: A RELEVÂNCIA DA CARACTERIZAÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO BRASILEIRO1 Jéssica Cristina de Oliveira2 RESUMO A posse de estado de filho notadamente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se um pressuposto essencial na caracterização da filiação socioafetiva, especialmente no que concerne à relação paterno-filial. Começa, então, a desaparecer a concepção antiga de família matrimonializada que sempre esteve presente como modo de organização da sociedade e, em oposição a ela, nasce a família moderna. É a passagem da família patriarcal à família nuclear. O pátrio-poder cede espaço ao poder familiar, passando a existir absoluta isonomia entre todos os componentes da família, especialmente em relação aos filhos, fazendo cessar qualquer tipo de desigualdade entre eles, quando todos passam a conviver sob o vínculo da parentalidade, quebrando a hierarquização que até então se impunha. Passa a ter espaço relevante a discussão acerca do valor sociológico e afetivo da filiação. O aspecto biológico cede espaço ao comportamento, de modo que a paternidade passa a ser reconhecida pelo amor que se dedica ao bem da criança. O presente trabalho tem como objetivo, a partir da análise dos argumentos da doutrina e da jurisprudência, a busca de soluções para as lacunas legislativas ainda existentes nas relações familiares, sobretudo, no instituto da filiação, estabelecendo a paternidade socioafetiva. A mudança dos paradigmas da família reflete-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos que retratam a realidade atual: a relação de paternidade estabelecida no convívio familiar com base em outros fatores além do vínculo biológico, tal como na socioafetividade existente na convivência entre pai e filho, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes. Palavras-chave: Poder Familiar. Princípio da dignidade humana. Dever de convivência. Socioafetividade. Paternidade responsável. ABSTRACT Possession of child custody, since the enactment of the Federal Constitution of 1988, has become an essential prerequisite for characterizing socio-affective filiation, especially with regard to the parent-child relationship. The traditional concept of matrimonial family, as a social organization, begins to disappear and, as opposed, the modern family arises, marking the change from the patriarchal family to a nuclear one. Parental rights give place to family rights, providing with absolute equality among all members of the family. In relation to children, any kind of inequality comes to an 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador, Prof. Dilso Domingos Pereira, pelo Prof. José Bernardo Ramos Boeira e pelo Prof. Álvaro Paranhos Severo, em 06 de junho de 2011. 2 Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: [email protected] 2 end, enabling all to live within the bond of parenthood, as well as breaking the hierarchy previously imposed. The discussion on the sociological and emotional values of filiation has also gained more relevance. Biological aspects become less important than behavior, so that parenthood shall be recognized by the love that is dedicated to the welfare of the child. Thus, based on the analysis of the arguments for the doctrine and jurisprudence, .this paper aims at seeking solutions for the legislative gaps that still exist in family relationships, particularly in the institution of filiation, establishing the affective parenthood. The shifts in family paradigms are reflected in the identification of the family ties of parenting, leading to the emergence of new concepts that reflect the current reality: parenthood established by family life based on factors other than the biological bonds, such as the socio-affectiveness existing in parent and child living together, shaped by love, dedication and constant care. Key words: Parental Power. Principle of Human Dignity. Duty of Cohabitation. Socio-affectiveness. Parental responsibility. 1 INTRODUÇÃO A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram importantes evoluções histórico-constitucionais para o Direito de Família brasileiro, momentos a partir dos quais se passa a enfatizar os direitos fundamentais, estabelecendo a liberdade, a igualdade, a fraternidade e o direito à dignidade. Inúmeras transformações ocorreram em relação à pessoa e à família, sendo que, a partir daí, o instituto da filiação passou a ser visto através de um novo olhar, mais responsável e solidário. A disciplina jurídica dos modos de estabelecimento da paternidade vem se modificando ao longo das décadas. A escolha do presente tema dá-se em razão do desafio que este se apresenta no Direito de Família, sobretudo pela importância que o mesmo tem na sociedade contemporânea. O instituto da filiação, embora seja um tema recorrente na doutrina e na jurisprudência, quando relacionado ao reconhecimento da paternidade socioafetiva, acaba tomando proporções distintas por se tratar de um tema relativamente novo e bastante polêmico, assim como outros assuntos que envolvem as relações familiares. Fixado este rumo, tem de ser estudada a paternidade socioafetiva como problema, para ser encarada, em seguida, como premissa. Primeiramente, parte-se de um pressuposto – paternidade – aceitando a existência, no Direito brasileiro, das diferentes modalidades sob as quais se apresenta: biológica, jurídica e sociológica, para, depois, desenvolver-se a ocorrência dos efeitos gerados. É no Direito de Família que o princípio da afetividade encontra espaço para prosperar, encontrando no convívio e no respeito entre seus familiares a fórmula para se sustentar e, assim, tornar-se um elemento indispensável para o saudável desenvolvimento da personalidade da criança e do adolescente, sempre buscando o seu melhor interesse, preceituado no princípio da dignidade humana. Este vínculo socioafetivo apresenta-se a partir do momento em que o fenômeno natural e biológico torna-se secundário, sobrepondo-se, efetivamente, uma ligação afetiva entre pai e filho, no sentido sociológico, quando ambos possuem um elo íntimo e duradouro, proporcionando a exteriorização do chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai, baseado puramente em laços harmoniosos e afetivos. 3 Tendo em vista não haver no Código Civil brasileiro referência expressa à posse de estado de filho, implicitamente, são fornecidos indícios pelos quais se localiza a presença de elementos caracterizadores dessa noção. De fato, a expressão desses laços de carinho e afeto deve ser efetivamente elencada na legislação brasileira, dada a sua relevância no mundo jurídico. Entretanto, além de previsão jurisprudencial, deve haver um domínio da doutrina pelos operadores do Direito, de modo que se encontrem as ferramentas jurídicas mais adequadas para a aplicação da posse de estado de filho como precursora da paternidade socioafetiva em cada caso específico. Diante disso, o Judiciário vem sendo frequentemente impulsionado para se manifestar em ações de reconhecimento da paternidade socioafetiva quando são reivindicados alimentos e herança. No Brasil, ainda não há um entendimento pacífico, há posições tanto negando como aceitando a paternidade socioafetiva, sendo, ambas, independentes da opinião defendida, bastante respeitadas pela qualidade dos seus argumentos e dos seus defensores. Nesse sentido, observa-se que os Tribunais, ao decidirem sobre o estabelecimento da paternidade, começam a informar, progressivamente, seus pronunciamentos com valores diversos daqueles que inspiraram o legislador. Diversamente do sistema codificado, que apresenta de forma introvertida outras origens, senão a biológica, a jurisprudência mostra visível preocupação com a verdade da filiação, não seguindo estritamente os rigores impostos pelo legislador. Assim, recolhem dos fatos circunstâncias ausentes no Código Civil. Nessa recepção, a jurisprudência revela, em diversos momentos, elementos de fato que coincidem justamente com aqueles que caracterizam a posse de estado. Contudo, conforme já anteriormente mencionado, tal entendimento ainda não é pacífico, o que torna este tema polêmico e atual, levando a importantes discussões em todo o meio jurídico acerca do tema, principalmente nos Tribunais, sendo causa de interessantes estudos e pesquisas na área. Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo, a partir da análise e estudos dos argumentos da doutrina e da jurisprudência, examinar a noção de família e de filiação, partindo de uma visão sociológica, demonstrando a evolução deste grupo social e os reflexos dessas mudanças no mundo jurídico, examinando o conceito e a unidade da filiação dentro de um sistema formado pela presunção pater is est e seus fundamentos, que estabelecem a paternidade jurídica. A partir deste embasamento sobre a família sociológica, far-se-á um exame aprofundado sobre a noção de posse de estado de filho, seu conceito e sua relevância na solução dos conflitos de paternidade, dentro da filiação. O tema envolve, além do campo jurídico, outros ramos da ciência, pois engloba tanto a questão dos direitos e deveres, como também questões morais e éticas, exigindo bom-senso do julgador ao proferir suas decisões. 2 DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO 2.1 CONCEITO, ORIGEM, EVOLUÇÃO HISTÓRICA E SUPORTE FÁTICO DA FILIAÇÃO SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O CÓDIGO CIVIL Família “é o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade”, 4 afirmou Clovis Bevilaqua, ainda à luz do contexto jurídico dos valores do século XIX.3 Biologicamente, família é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum, ou seja, unidos por laços de sangue.4 Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos, compreendendo todas as relações e, respectivamente, sua constituição, sua modificação e sua extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos.5 Em sentido estrito, a família representa o grupo formado pelos pais e filhos. Venosa6 afirma que entre os vários organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão da família são os que mais se alteram no curso dos tempos. Na Roma Antiga, a palavra família significava “o conjunto de empregados de um senhor”.7 O sistema originário do Código Civil de 1916 tinha como base a família como grupo social de sangue, com origem no casamento. Com grande influência da religião, principalmente do cristianismo, o casamento passou a ser considerado uma comunhão de vida recíproca e perpétua, tornando-se uma orientação ética e moral dos povos, sendo que, a partir desse conceito, a sociedade passou a classificar em dois tipos as uniões do homem e da mulher para satisfação do instinto sexual. São elas as uniões legítimas, que são as matrimonializadas, e as chamadas uniões ilegítimas que a lei ou desconhecia ou menosprezava. “Dessas uniões, decorriam dois tipos de filhos: os legítimos, havidos dentro do casamento, e os ilegítimos, havidos fora do casamento, que, por sua vez, compreendem dois grupos: naturais e espúrios”.8 A família era vista como uma base de produção, devido à existência, na época, de uma sociedade basicamente rural, a qual importava, principalmente, entre outros aspectos, ser numerosa, representando maior força de trabalho e maiores condições de sobrevivência do grupo. Este modelo de família era chefiado por um homem que exercia o papel de pai e marido, o qual detinha toda a autoridade e poder sustentados numa estrutura patrimonial. Em época histórica de valores essencialmente patriarcais e individualistas, o legislador do início do século passado marginalizou a família não provinda do casamento, ignorando direitos dos filhos que proviessem de relações não matrimoniais, fechando os olhos a uma situação social que sempre existiu.9 Dessa forma, pelo sistema codificado, juridicamente, a família legítima somente se constituía através de matrimônio válido ou putativo, o que afastava de qualquer proteção legal os filhos de uniões não matrimonializadas, tidos como ilegítimos, em razão de não se enquadrarem dentro do modelo desenhado pelo sistema. Filho era somente o filho no sentido jurídico. A descendência genética deveria coincidir com a concepção do direito. Ao tempo do Código Civil de 1916, predominava o modelo de família com 3 BEVILAQUA (apud FACHIN, Luis Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 22). 4 MIRANDA (apud BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 20). 5 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 8. ed. 2. reimpr. v. 6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 211. 6 Ibid. 7 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança no novo direito de família: direitos fundamentais do direito de família. In: MADALENO, Rolf Hanssen; WELTER, Belmiro Pedro (Coords.). Direitos fundamentais do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 280. 8 BOEIRA, 1999, p. 21. 9 VENOSA, 2008, p. 212. 5 características eminentemente patriarcais, hierarquizada, matrimonializada e patrimonializada, com o poder centrado no chefe de família, no pátrio-poder, em que o homem era designado para ser o chefe da sociedade conjugal, sendo que a mulher e os filhos ocupavam uma posição de inferioridade no grupo familiar. Competia-lhes tão somente aceitar que deviam obediência ao pater familiae. Segundo Rolf Madaleno, “o pai era senhor absoluto da sua célula familiar, ele representava a cabeça do casal, depois vinha a sua esposa, que precisaria ser legítima, advinda das justas núpcias e os seus filhos”.10 O modelo hierarquizado e patriarcal impunha um conceito de respeito reverencial em que as pessoas deviam obediência ao pai e temiam descumprir suas ordens. Isto porque “as relações eram baseadas no respeito-temor, e não no respeito-cuidado”.11 Michele Perrot12 afirma que a família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido. A família é fluxo de propriedade que depende, primeiramente, da lei, ou seja, para o sistema originário do Código Civil, o casamento era a fonte única da família. Sendo a união do homem com a mulher para a prática do ato sexual, quando matrimonializada, era aceita, reconhecida e autorizada pela religião e pelo direito. Entretanto, aquela família com caráter patriarcal, centrada no matrimônio, sofreu transformações, o que foi considerado por muitos juristas e sociólogos como um processo de desintegração familiar, processo esse resultante de profundas mudanças das estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais, entre elas, a inserção da mulher no processo de produção e a emancipação feminina. É a passagem da família patriarcal à família nuclear. Começa a desaparecer a concepção antiga de família, que sempre esteve presente como modo de organização da sociedade e, em oposição a ela, nasce a família moderna. O pátriopoder cede espaço ao poder familiar, agora exercido pelo casal, em igualdade de condições, passando a existir absoluta isonomia entre os descendentes, fazendo cessar qualquer tipo de desigualdade entre eles, independente da origem da filiação, em que todos passam a conviver sob o vínculo da parentalidade, quebrando a hierarquização que até então se impunha.13 A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no momento pósguerra passa a enfatizar os direitos fundamentais, estabelecendo a liberdade, igualdade, fraternidade e o direito à dignidade, muitas transformações ocorreram em relação à pessoa e à família, sendo que, a partir daí, o instituto da filiação passou a ser visto através de um novo olhar, mais responsável e solidário. Surge também a busca pela efetivação dos direitos da mulher, a luta pela liberdade de manifestação do pensamento e outras relevantes transformações sociais.14 A filiação, na definição de Boeira15 “é a relação que surge entre uma pessoa e outra, imediatamente descendente daquela, ou tal se reputando”. É a relação de parentesco que se estabelece entre pais e filhos, sendo designada, do ponto de vista dos pais, como relação de paternidade e maternidade. Tais relações 10 MADALENO, Rolf Hanssen. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 115. 11 CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Afetividade como fundamento na parentalidade responsável. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=566>. Acesso em: 15 fev. 2011. 12 BOEIRA, 1999, p. 20. 13 CABRAL, op. cit. acesso em: 15 fev. 2011. 14 Ibid. 15 BOEIRA, 1999, p. 29. 6 estruturam a relação de parentesco. Sobretudo com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002) ocorreram inúmeras mudanças na estrutura familiar e, consequentemente, no instituto da filiação. De acordo com Fachin, desapareceu, a saber, qualquer forma de discriminação dos filhos, não há mais que falar, no campo do parentesco, em legitimidade ou ilegitimidade, tendo em vista ter havido avanços significativos no instituto da filiação, estabelecendo absoluta igualdade entre todos os filhos, não mais admitindo a retrógrada distinção entre filiação legítima e ilegítima. Tampouco subsistindo divergências sobre os efeitos jurídicos isonômicos dos filhos, passando a ter eles os mesmos direitos e qualificações.16 A chamada família, ou paternidade socioafetiva, ganha corpo no seio de nossa sociedade, com respaldo doutrinário e jurisprudencial, passando a ter um conteúdo marcadamente ético e cooperativo e não mais econômico, não havendo mais espaço para qualquer discriminação.17 O tratamento dispensado pelo Direito à família é constantemente colocado à prova, tendo em vista as renovadas transformações a que são submetidas as entidades familiais. Isto se deve à necessidade de responder às exigências, cada vez maiores, de realização do indivíduo no plano afetivo e relacional.18 Nos dias atuais, a família é vista como a base de um lar onde se sobressaem a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e de amor. Esse redimensionamento da família, sob as transformações que a distancia, revela-se entre o contemporâneo e os precedentes históricos: antes, um agrupamento de base econômica e religiosa; agora, grupo de companheirismo e lugar de afetividade. O elemento socioafetivo da filiação reflete a verdade jurídica que está além do biologismo, sendo essencial para o estabelecimento da filiação. Nesse contexto, é preciso examinar não apenas o sentido genérico e biológico da família, mas também o seu aspecto sociológico. Dessa forma, a família e o casamento passam a existir para contribuir para o crescimento e o desenvolvimento da pessoa, realizando os seus interesses afetivos e existenciais. De uma unidade criada para fins econômicos, políticos, culturais e religiosos, a família passou a grupo de companheirismo e lugar de afetividade. Com base na noção do melhor interesse da criança, tem-se considerado a prevalência do critério socioafetivo para fins de assegurar a tutela aos filhos, no resguardo dos seus direitos fundamentais, notadamente o direito à convivência familiar.19 Na acepção da Constituição Federal, a “família-instituição” foi substituída pela “família-instrumento”, voltada à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus membros. Passou-se a ter uma família nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra com o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários, família esta representada por pai, mãe e filhos, reconhecendo, expressamente, especial proteção do Estado (CF, art. 226), instituindo-a como base da sociedade.20 A Constituição Federal de 1988 define a entidade familiar como a constituída 16 MADALENO, 2007, p. 129. VENOSA, 2008, p. 214. 18 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. O pluralismo no direito de família brasileiro: realidade social e reinvenção da família. In: MADALENO, Rolf Hanssen; WELTER, Belmiro Pedro (Coords.). Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 256. 19 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação, o biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2003a. 20 BOEIRA, 1999, p. 23. 17 7 pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (art. 226, §§ 1º e 2º); a constituída pela união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, § 3º), bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Verifica-se, portanto, que o casamento não é mais a fonte exclusiva da família, tendo em vista que o legislador pátrio reconhece também como entidade familiar (CF, artigo 226, § 3º e § 4º), a união estável e as famílias monoparentais.21 Destarte, as uniões livres foram afastadas da marginalidade em que estavam colocadas pelo Direito Positivo, tendo as construções doutrinárias e jurisprudenciais lhe reconhecido verdadeiro status. No Direito de Família contemporâneo, é preciso compreender a evolução da construção e da aplicação de uma nova cultura jurídica, estabelecendo um processo de repersonalização das relações familiares, sendo que estas relações devem centrar-se especialmente na manutenção do afeto.22 É preciso aceitar o princípio democrático do pluralismo na formação de entidades familiais, respeitando as diferenças intrínsecas de cada uma delas, efetivar a proteção e promover os meios para resguardar o interesse das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, o direito à intimidade e à liberdade com os interesses sociais e, somente quando indispensável, recorrer à intervenção estatal para coibir abusos. A Constituição Federal de 1988, a partir de uma proposta constitucional revolucionária criou um novo paradigma que operou uma substituição ao modelo consagrado pelo Código Civil de 1916, modificando o tratamento jurídico das relações familiares, inserindo valores e princípios relativos à afetividade. O direito à convivência familiar significa também o direito de ser amado e de, consequentemente, aprender a amar o outro.23 A filiação é um fenômeno excepcionalmente complexo.24 O sentido e o alcance desse fenômeno jurídico sofreram profundas alterações, seja por conta de mudanças legislativas e constitucionais, seja pela construção doutrinária e jurisprudencial. A filiação e o direito de família estão na pauta dos debates e das discussões da contemporaneidade. Mudanças, transformações, desafios e contradições são questões importantes para a sociedade e para todos os aplicadores do Direito, haja vista que, não haverá cidadania na família sem a plena cidadania social.25 Na pós-modernidade, a família, mais do que uma unidade emocional, constitui uma unidade sociológica, incumbindo-se de transformar organismos biológicos em seres sociais, cabendo aos pais a responsabilidade pela transmissão de padrões culturais, valores ideológicos e morais.26 O parentesco vincula as pessoas entre si, quando descendem umas das outras, por vínculos de sangue ou por adoção, ou aproxima cada um dos cônjuges ou conviventes dos parentes do outro pelos vínculos de afinidade.27 21 AZAMBUJA, 2004, p. 281. BRAUNER, 2004, p. 257. 23 AZAMBUJA, 2004, p. 281. 24 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 25 FACHIN, Luis Edson. Direito além do Novo Código Civil: novas situações sociais, filiação e família. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 17, p. 07, abr./maio 2003. 26 AZAMBUJA, op. cit., p. 280. 27 MADALENO, 2007, p. 135. 22 8 Madaleno28 descreve: Os vínculos de parentesco têm fundamental importância no âmbito das relações jurídicas familiares, porque são por intermédio dos seus vínculos que são desenvolvidos os sentidos do afeto, da solidariedade, da união, do respeito, da confiança e do amor entre os componentes da célula familiar. Há toda uma movimentação doutrinária e jurisprudencial em defesa das relações de parentesco socioafetivas, surgidas com a desbiologização da paternidade, em que ao direito desimportam os elos de sangue e prevalecem as amarras do afeto, como núcleo da verdadeira filiação, indiferente à origem genética. “Filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais”,29 constituindo-se, em sua essência, do afeto que os une, haja ou não vínculo biológico entre eles.30 O estabelecimento do vínculo de paternidade do filho matrimonial, em matéria de filiação, assenta-se sob três fundamentos: o jurídico (presunção legal de paternidade do filho de sua esposa); o biológico (o marido é o genitor do filho de sua esposa, pois normalmente somente ele deve manter contato sexual com ela); e o socioafetivo (verdade socioafetiva da filiação, pai socioafetivo é aquele que tem relação paterno-filial calcada na posse de estado de filho, ou seja, o marido da mãe trata a criança como filho – e por ela é tratado – como pai).31 Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica, todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue.32 Pode-se ter uma paternidade jurídica sem ter a biológica, mas tendo a socioafetiva; pode existir a paternidade biológica sem existir a jurídica e a socioafetiva; pode-se, ainda, ter a paternidade socioafetiva, sem possuir a paternidade jurídica e a biológica.33 A partir dessas diferentes possibilidades, devemos questionar, partindo desta interligação de vínculos, qual a verdadeira paternidade. 2.2 PRESUNÇÃO “PATER IS EST” Segundo Planiol34, presunção é a consequência que deriva de um fato conhecido a outro desconhecido, sendo que, o fato conhecido é o estado de matrimônio em que tem vivido a mãe, já a paternidade, é o fato desconhecido. Quanto à natureza, costuma-se estabelecer três tipos de filiação: a biológica, a biológica presumida e a sociológica. Biológica é denominada a filiação quando decorre das relações sexuais dos pais, daí ser filho consanguíneo. De outro lado, o 28 MADALENO, 2007, p. 135. Ibid. 30 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 304. 31 GAMA, 2003a. 32 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=130>. Acesso em: 15 fev. 2011. 33 ALMEIDA, Maria Christina de. A paternidade socioafetiva e a formação da personalidade. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=54>. Acesso em: 15 fev. 2011. 34 PLANIOL (apud BOEIRA, 1999, p. 47). 29 9 fato de nascer o filho enquanto perdura o casamento, ou até certo tempo após sua desconstituição, faz presumir que o pai é aquele que convive com a mãe, porquanto dúvidas inexistem no pertinente à maternidade – mater semper certa. Já torna-se elemento definido da paternidade o fato do patrimônio: pater is est quem nuptiae demonstrant. Trata-se aí de filiação biológica presumida.35 Esta presunção pode ser contestada pelo suposto pai. Por último, temos a filiação sociológica, concernente à adoção e à socioafetividade, sem vínculos biológicos, mas admitida e reconhecida por engenho da lei. O sistema jurídico brasileiro adotou, inicialmente, através da exegese estrita do Código Civil de 1916, o regime de atribuição da paternidade por força do casamento, consagrando a máxima dos romanos: “pater is est quem nuptiae demonstrant”. Quer dizer, é pai aquele que as núpcias legítimas indicam e firma a certeza para o estabelecimento da condição de filho como uma consequência natural e espontânea do casamento. Desse modo, somente a contestação de paternidade realizada pelo marido seria apta a desfazer a presunção de paternidade de filho adulterino a matre, desde que nas hipóteses e nos prazos legais.36 O sistema codificado, entretanto, ainda não incorporou as principais mudanças havidas na legislação de outros países. A presunção pater is est, existente em nosso sistema, atenuou, porém ainda estabelece uma verdade jurídica de caráter quase absoluto, tendo em vista que, apesar da igualdade de direitos já estabelecidos em lei, com previsão expressa no art. 1.593 do Código Civil, os filhos havidos fora do casamento não gozam da presunção de paternidade outorgadas aos filhos de pais casados entre si, pois aqueles necessitam de um reconhecimento, que pode resultar de um ato de vontade dos pais ou de ato coativo, resultante de decisão judicial. Esta distinção decorre da lógica de que não há como presumir legalmente a paternidade se não há casamento dos pais.37 Como já mencionado, até o advento da Constituição Federal de 1988, a família, como instituição jurídica, somente era considerada a matrimonializada.38 Especial destaque merece a presunção pater is est, principalmente pelo fato de persistir dúvida quanto à sua permanência, após a Constituição de 1988. Durante séculos os povos do sistema jurídico romano-germânico encerraram a incerteza da paternidade, valendo-se dessa presunção prático-operacional. A presunção pressupõe que a maternidade é sempre certa e o marido da mãe é, normalmente, o pai dos filhos que nasceram da coabitação deles. No entanto, a presunção pater is est não resolve o problema mais comum que é o da atribuição da paternidade, quando não houve nem há coabitação. A presunção fazia sentido quando a filiação biológica era determinante, no modelo patriarcal de família, que exigia certeza e segurança para sucessão dos bens e não se admitiam outras entidades familiares fora do matrimônio. Contudo, os laços de afeto que se constroem entre pais e filhos não dependem de imposição da natureza (origem biológica) ou de imposição da lei, pois nascem de gestos de amor e carinho recíprocos.39 No entanto, a igualdade de direitos dos filhos, independentemente de sua origem, tal como fixada na atual ordem constitucional, afastou qualquer elemento 35 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: lei n. 10.406 de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 414. 36 FACHIN, 2003, p. 07. 37 VENOSA, 2008, p. 236. 38 GONÇALVES, 2010, p. 38. 39 LÔBO, acesso em: 15 fev. 2011. 10 discriminatório sobre sua natureza e origem, sendo que, a partir de então, a paternidade passou a ser vista especialmente como uma relação psicoafetiva existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas, sobretudo, afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial reveladores de uma convivência paterno-filial que, por si só, é capaz de identificar a verdadeira paternidade. Sendo a paternidade um conceito jurídico e, sobretudo, um direito, a verdade biológica da filiação não é o único fator a ser levado em consideração pelo aplicador do Direito, tendo em vista que o elemento material da filiação não é tão somente o vínculo de sangue, mas a expressão jurídica de uma verdade socioafetiva.40 É na declaração de paternidade que se apresenta toda a complexidade da filiação, sendo que deve ser feita uma análise sobre a posse de estado de filho no estabelecimento da filiação, considerando a noção de família elencada na Constituição Federal e no Código Civil. 3 POSSE DE ESTADO DE FILHO 3.1 CONCEITO E ELEMENTOS CARACTERIZADORES Boeira41 sintetiza com propriedade que: A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. No estabelecimento da filiação, em que o direito essencialmente baseia-se sobre a clássica presunção pater is est, a posse de estado aparece limitada a um papel subsidiário. No entanto, destaca-se que a mesma tem uma função criadora, pois não é somente uma prova do estado, mas também pode ser, às vezes, a condição de sua existência.42 Não obstante, há um marco comum nas legislações que aperfeiçoaram o sistema de estabelecimento da filiação, as quais deram uma posição diferenciada e ampliada para “posse de estado”, afirmando não ser apenas uma função criadora ou supridora desta quando presente, mas sim a consequência daí decorrente que é a aceitação da família sociológica. Resgatando-se a dimensão sociológica do direito, é possível acolher a noção de posse de estado de filho não apenas sob as presunções resultantes de fatos certos, como a autoria genética da descendência, mas sim como elemento constitutivo e causa de pedir no estabelecimento da filiação, em face dos novos valores acolhidos pela Constituição Federal, dentre os princípios fundamentais, o princípio da igualdade entre os filhos, sobretudo a unidade da filiação baseada na socioafetividade, sua ampliada dimensão e a relevância da nova tendência do 40 FACHIN, 2003, p. 11. BOEIRA, 1999, p. 60. 42 Ibid., p. 68. 41 11 Direito de Família. Nas palavras de Boeira43: A posse de estado de filho revela a constância social da relação paternofilial, caracterizando uma paternidade que existe não pelo simples fator biológico, ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, fruto de uma convivência afetiva. É a posse de estado a expressão forte e real do parentesco psicológico a caracterizar a filiação afetiva. A verdade socioafetiva da filiação revela-se na posse do estado de filho, que oferece os parâmetros necessários para o reconhecimento da relação de filiação.44 O modo mais expressivo de reconhecimento é o de um pai tratar o seu filho como tal, publicamente, dando-lhe proteção e afeto, e sendo o filho assim reputado pelos que, com ele, convivem. Pode-se afirmar, dessa forma, que a desbiologização da paternidade tem na posse de estado de filho sua aplicação mais evidente. Na relação paterno-filial, o que conta é a afeição, o vínculo amoroso, as condições de tratamento paterno e não apenas os meros laços biológicos, que por si só são insuficientes. Mesmo sem tê-la explicitamente assumido, a ideia de posse de estado de filho se faz presente em inúmeros acórdãos, exercendo um importante papel. Nesse aspecto, a jurisprudência mostra flagrante distância do texto codificado.45 Vários são os casos que demonstram a insuficiência do sistema adotado pelo nosso Código Civil na solução de conflitos de paternidade, decorrentes do apego formalista em favor da presunção pater is est. Boeira constata, através do Direito Comparado que, na legislação francesa por exemplo, hierarquizou-se, na posse de estado, a importância da filiação vivida e desejada, fundamento da paternidade socioafetiva. São vários os sistemas jurídicos que vêm dando especial atenção e, inclusive, reformando suas legislações em matéria de filiação, com a introdução, por exemplo, da noção de posse de estado de filho.46 Infelizmente, o sistema jurídico brasileiro não contempla, de modo expresso, a noção de “posse de estado de filho”, seja como elemento comprobatório ou fonte de pretensão. Contudo, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal há muito vem ao encontro da ideia de que a paternidade jurídica não se estabelece somente por laços de sangue, ocupando a posse de estado um papel relevante.47 O elemento socioafetivo da filiação, presente timidamente no artigo 1.593 do Código Civil de 2002, reflete a verdade jurídica que está para além do biologismo, sendo essencial para o estabelecimento da filiação. Afirma-se daí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão da posse de estado de filho.48 Mostra-se relevante a noção de posse de estado de filho em todas as legislações modernas, o que demonstra a inviabilidade de uma absorção total pelo princípio da verdade biológica, ou seja, a própria modificação na concepção jurídica de família conduz a uma alteração na ordem jurídica da filiação, em que a paternidade socioafetiva deverá ocupar posição de destaque, especialmente, para solução de conflitos de paternidade. “A igualdade passa a impor-se como elemento decorrente 43 BOEIRA, 1999, p. 54. FACHIN, 2003, p. 13. 45 Id., 1996, p. 63. 46 MADALENO, 2007, p. 161. 47 FACHIN, 2003, p. 07. 48 Ibid., p. 11. 44 12 do respeito à dignidade da pessoa humana”.49 Nessa perspectiva, a afetividade passa a ser um axioma em busca da igualdade substancial, e não mais formal, efetivando respeito às diferenças individuais, desempenhando importante papel para a construção ou a reestruturação da personalidade de cada indivíduo. Quando o respeito à pessoa, à sua identidade, à sua individualidade e às suas aspirações começa a ser observado, gera uma preocupação não somente de desejar, mas de promover o bem-estar dos entes familiares.50 O respeito passa a permear de modo mais expressivo as relações na dinâmica familiar, não mais como uma forma de subjugar, de impor, mas de considerar o outro nas suas diversas manifestações. O novo conceito de família aponta para uma acepção mais exigente, constituindo-se em ambiente que deve favorecer o pleno desenvolvimento dos indivíduos que a compõem.51 Denomina-se estado de uma pessoa determinadas qualidades que a lei toma em consideração para atribuir-lhe certos efeitos jurídicos. Para o estado civil é relevante, de modo especial, o estado de filiação, que pode decorrer de um fato, como nascimento, ou de um ato jurídico, como a adoção. “A verdade jurídica da filiação, a seu turno, vincula-se com maior força à sua dimensão fática. Essa dimensão, todavia, não é só aquela que diz respeito aos vínculos biológicos”, mas sim, passa a ter espaço relevante a discussão acerca do valor sociológico e afetivo da filiação.52 O aspecto biológico cede espaço ao comportamento, de modo que a paternidade passa a ser reconhecida pelo amor que se dedica ao bem da criança.53 É imperioso destacar que em todos esses conceitos o estado não consiste apenas em gozar dos benefícios do mesmo, mas também em cumprir os deveres jurídicos que ele comporta. Além disso, a posse de estado se constitui na base sociológica da filiação, necessitando somente que o nosso ordenamento a eleve da categoria apenas probatória para um caráter jurídico, como já fizeram as legislações mais modernas, possibilitando que, por si só, em casos de conflitos de paternidade, possa figurar como elemento constitutivo da filiação. Fachin54 assegura que: Se o afeto é a base das relações familiares, entre elas as de paternidade, há que se verificar a sua manifestação fática para averiguar-se a existência ou não de hipótese em que a filiação pode ser afirmada. Pertinente, por isso, a noção de posse de estado de filho. São três os elementos que, indicados pela doutrina, tradicionalmente caracterizam e constituem a posse de estado: o nome (nominatio), o trato (tractatus) e a fama (reputatio). Desta maneira, deve o indivíduo sempre usar o nome do pai ao qual ele identifica como tal, isto é, a utilização pelo suposto filho do nome do suposto pai; que o pai o tenha tratado como seu filho e tenha contribuído, nesta qualidade, para a sua formação como ser humano, assegurando-lhe manutenção, educação e 49 Ibid., p. 10. CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 51 Ibid. 52 FACHIN, 2003, p. 10. 53 VILLELA, João Baptista. Procriação, paternidade & alimentos, In: CAHALI, Francisco José; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords). Alimentos no Código Civil, aspectos civil, constitucional, processual e penal. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 132. 54 FACHIN, op. cit., p. 13. 50 13 instrução, agindo como provedor e educador; e, finalmente, que tenha sido constantemente reconhecido como tal na sociedade e pelo presumido pai, ou seja, a fama representa reputação social, exteriorização do “estado”, em que terceiros consideram o indivíduo como filho de determinada pessoa, deve se mostrar que ele é conhecido como tal pelo público. Destarte, é na reunião desses três elementos clássicos que começa a se formar a conjunção suficiente de fatos para indicar a real existência de relações familiais, em especial entre pai e filho.55 Na concepção de Orlando Gomes, o instituto de que se está a tratar, para sua caracterização, exige que estejam presentes certas qualidades, que oferecem segurança na afirmação da posse de estado. A aparência de legitimidade deve ser sustentada por uma posse de estado constante, revelando uma convivência contínua, perseverante, pública e notória da filiação.56 É de extrema importância que também seja analisada a duração dessa relação, que deve revelar estabilidade, continuidade, pois esta se assinala através do tempo, com a convivência no âmbito familiar, sendo uma condição de força e de existência da posse de estado. Desse modo, para que seja mantida a segurança das relações sociais, “a atribuição do nome, do tratamento de filho, bem como o reconhecimento social dessa relação, devem ser notórios, estáveis e inequívocos”.57 Contudo, a doutrina geralmente reconhece que o fato de o filho nunca ter usado o patronímico do pai não enfraquece a posse de estado de filho se concorrem os outros dois elementos: trato e fama, haja vista que são esses os elementos que possuem densidade suficiente capaz de caracterizar a posse de estado e confirmar a verdadeira paternidade. Se a posse de estado de filho, na ausência de registro, gera presunção, é certo que a lei civil está a reconhecer valor à dimensão social da filiação. Mais ainda enfática é a situação que agrega o aspecto jurídico relacionado ao patronímico do ascendente constante do registro civil a essa dimensão. O próprio Código Civil, em seus artigos 1.593, in fine, e 1.604, não fecha as portas para a incidência da posse de estado de filho.58 Quem detém posse de estado não detém mera aparência. É exteriorizada a posse de estado de filho, pela livre e desejada assunção do papel parental, em uma adoção nascida dos fatos e que se convencionou chamar de verdade sociológica ou de adoção à brasileira, quando há o prévio registro de filho de outrem por quem não é o seu descendente biológico.59 A noção de “posse de estado de filho” fez surgir um conceito de família sociológica, na qual a paternidade é reveladora de intensos laços de afetividade no relacionamento entre pai e filho.60 Sendo a paternidade um conceito jurídico e, sobretudo, um direito, a verdade biológica da filiação não é o único fator a ser levado em consideração pelo aplicador do Direito, o elemento material da filiação não é somente um vínculo de sangue, mas a expressão jurídica de uma verdade socioafetiva. A própria jurisprudência vem acolhendo esta nova noção de família, que vem superando as deficiências do sistema clássico, encartado no Código Civil brasileiro, ainda que, muitas vezes, sob o manto de outras figuras jurídicas, para não mais selar relações fictícias e sim chancelar a verdadeira paternidade. 55 Ibid., p. 14. GOMES, Orlando. Direito de Família. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. 57 FACHIN, 2003, p. 14. 58 Ibid. 59 MADALENO, 2007, p.164-5. 60 BOEIRA, 1999, p. 17. 56 14 O Desembargador Rui Portanova61, desempenhando o papel de relator em uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, afirmou que, em relação à posse de estado de filho, diante de casos concretos restará ao Juiz o mister de julgar a ocorrência ou não da posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. É necessário constituir-se a “posse de estado” num valioso, seguro e indispensável instrumento para resolver conflitos de filiação. Deve-se reconhecer que a verdadeira família sociológica é a que, efetivamente, retrata a realidade, respaldando, com segurança, uma declaração de filiação. Desta feita, caberá ao aplicador do direito acolher esta realidade, tendo como principal embasamento a jurisprudência, o que levará ao estabelecimento da normatização com integração plena e expressa da posse de estado dentro do nosso sistema jurídico. 3.2 PERDA DA POSSE Possuir um estado é ter de fato o título correspondente, desfrutar das vantagens a ele ligadas e suportar seus encargos. A posse de estado de filho constitui-se por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que o cria e educa.62 O estado de filho é irrenunciável e imprescritível, não admitindo transação. Seus atributos são pessoais, integrando o direito da personalidade. “Uma vez declarada a filiação por sentença, o filho adquire o estado de filiação jurídica, erga omnes, que é sua classificação social e que, simultaneamente, integra sua personalidade, constituindo sua condição na sociedade”.63 Por direito de personalidade, Rolf Madaleno64 define: São compreendidos os direitos personalíssimos e essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana e, por conta disso, desprovidos da faculdade de disposição. Através da personalidade, o homem adquire e defende seus direitos. Maria Berenice Dias65 explica que, estando constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento feito de forma espontânea por aquele que, mesmo sabendo não ser o pai consanguíneo, tem o filho como seu. A adoção, nos casos de recém-nascidos, não abrange o conhecimento dos pais naturais pela criança adotada que, no futuro, deve ter direito à identidade dos pais naturais diante do exercício do direito à identidade pessoal que inclui a historicidade biológica da pessoa sem haver qualquer possibilidade de retorno à família natural, uma vez que a adoção é irrevogável. Além disso, a adoção à brasileira não diverge da 61 TJ-RS – Apelação Cível 70007016710 – 8ª Câmara Cível – Rel. Des. Rui Portanova – Julgada em 13-11-2003 62 GOMES, 1978, p. 31. 63 BOEIRA, 1999, p. 59. 64 MADALENO, 2007, p. 167. 65 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 15 adoção legal, como tampouco foge à consciência média brasileira reconhecer distinções entre os deveres do pai socioafetivo e do biológico.66 O vínculo socioafetivo merece a integral proteção como representação legítima de um outro gênero de filiação, sendo vedada a sua desconstituição judicial, embora permita a jurisprudência a pesquisa da origem biológica para tutelar a saúde e os direitos de personalidade do investigante, sem que a descoberta do liame genético autorize mudar e se contrapor ao estado de filiação já constituído pelo registro do descendente como filho do coração.67 Os laços afetivos são inquebráveis porque sempre estiveram na origem das relações de família e porque é lá, em seu seio, o lugar natural e perfeito para a determinação dessa identidade profundamente afetiva que se estabelece entre os seus membros e, especialmente, entre pais e filhos.68 4 A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA 4.1 A EXPRESSÃO JURÍDICA DO AFETO NA RELAÇÃO FAMILIAR Denomina-se parentalidade toda espécie de parentesco capaz de gerar as diferentes e, por vezes, complexas relações familiares, entendidas como as oriundas da convivência em família, cotidianamente, capazes de criar direitos e deveres reciprocamente, sendo estes dois termos correlatos, e não se pode afirmar um direito sem afirmar ao mesmo tempo o dever do outro de respeitá-lo. Assim, cada membro da família tem direito de ser respeitado, receber carinho, proteção e cuidado, em contrapartida, tem deveres a cumprir. Cabe aos membros da família uma atuação conjunta no sentido de criar laços de afeto e agir de forma a preservar condutas que reflitam boa-fé, seguindo o viés de conduta ditado pela responsabilidade moral inerente a todo ser humano.69 O sistema clássico de estabelecimento da filiação vinha assentado na direção protetiva da instituição familiar hierarquizada, a qual chancelava um conjunto de normas para dar abrigo jurídico à defesa superior da família, sacrificando outros valores que podiam parecer incongruentes com esse mister. A superação desse sistema leva em conta, precisamente, que a verdadeira paternidade não pode se circunscrever na busca de uma precisa informação biológica, mais do que isso, exige uma concreta relação paterno-filial, pai e filho se tratam como tal, emergindo daí a verdadeira afetividade. Sergio Gischkow Pereira afirma que a paternidade é conceito não só genético ou biológico, mas psicológico, moral e sociocultural. Em muitos casos, o vínculo biológico não transcende a ele mesmo e revela uma relação de paternidade fracassada sob o prisma humano, social e ético. Em contrapartida, há inúmeras situações de ausência de ligação biológica que geram uma relação afetiva em nível de paternidade saudável, produtiva e responsável. 66 MADALENO, op. cit., p. 163. Ibid., p. 166. 68 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade civil na relação paterno-filial. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=285>. Acesso em: 24 fev. 2011. 69 CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 67 16 São três os fundamentos jurídico-constitucionais essenciais do princípio da afetividade, constitutivos da aguda evolução social da família: todos os filhos são iguais perante a lei, independentemente de sua origem (art. 227, §6º); a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º).70 Merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que, efetivamente, promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes. Fachin71 afirma que: A Constituição de 1988, ao vedar o tratamento discriminatório dos filhos, a partir dos princípios da igualdade e da inocência, veio a consolidar o afeto como elemento de maior importância no que tange ao estabelecimento da paternidade. Foi para a Constituição o que estava reconhecido na doutrina, na lei especial e na jurisprudência. A Constituição Federal não tutela apenas a família matrimonializada e não estabelece mais distinção entre os filhos. As famílias que se unem em comunhão de afeto passaram a ser protegidas pela Carta Constitucional.72 Além disso, o Código Civil, em seu art. 1.603, menciona que a filiação é determinada pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil, trazendo em seu escopo o princípio explícito da paternidade socioafetiva, porque confere o status de filho pelo assento de nascimento, e não pela verdade biológica. Essa prova da filiação pode também sustentar a posse do estado de filho, fundada em elementos que espelham o nome, o tratamento e a fama, caracterizando, assim, o reconhecimento da filiação socioafetiva. Ainda, a redação do art. 1.593, também do Código Civil, enseja a compreensão do parentesco socioafetivo proveniente de outra origem, adversa do parentesco natural ou civil, conforme resulte ou não da consanguinidade.73 Paradigmas foram quebrados a partir do momento em que nos deparamos com outra realidade social, um novo conceito de família em que pais e filhos são unidos pelos laços do amor. Passou-se a visualizar os vínculos familiares pela ótica da afetividade.74 Assim sendo, a nova família estrutura-se nas relações de autenticidade, amor, afeto, diálogo e igualdade, valorando a verdade sociológica construída todos os dias através do cultivo dos vínculos de afetividade entre seus membros. Houve uma repersonalização das relações de família, tendo por principal finalidade a realização da afetividade e a solidariedade pela pessoa no grupo familiar.75 O reconhecimento da pluralidade de formas de constituição de família é uma realidade que tende a se expandir através do processo de transformação global, repercutindo na forma de tratamento das relações interindividuais. Destarte, todas as pessoas tem o direito de constituir vínculos familiares e de manter relações afetivas, 70 LÔBO, acesso em: 15 fev. 2011. FACHIN, 2003, p. 12. 72 LÔBO, op. cit., acesso em: 15 fev. 2011. 73 MADALENO, 2007, p. 161. 74 GUIMARÃES, Janaína Rosa. Filhos de criação: o valor jurídico do afeto na entidade familiar. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=424>. Acesso em: 15 fev. 2011. 75 BOEIRA, 1999. 71 17 sem qualquer discriminação. Essa pluralidade de formas de constituição de família rompe com o modelo único de família, instituído pelo casamento. Deve-se garantir proteção jurídica, aceitando o princípio do pluralismo e da liberdade nas relações familiares, a fim de personificar a sociedade pós-moderna.76 Fachin77 descreve a importância da aceitação dos novos valores apresentados pelas relações de parentesco no Direito de Família: [...] o Direito não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível, família como sendo o mosaico da diversidade, ninho da comunhão no espaço plural da tolerância, valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias de um renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consanguíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro plural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis então o direito ao refúgio afetivo. A aceitação do pluralismo na forma de constituição das relações de família e o reconhecimento do afeto nestas relações representam grandes desafios frente à tradição conservadora que ainda nega novas realidades. Começa-se a valorizar as relações afetivas, levando à ascensão e à consagração do afeto na esfera jurídica.78 Este reconhecimento de outras formas de constituir família vem sendo feito de maneira gradual, exigindo dos doutrinadores e julgadores o enfrentamento das realidades plúrimas que insurgem nas relações afetivas, revelando-se, portanto, a necessidade de desconstruir o modelo herdado da família patriarcal. Nesse sentido, as previsões inovadoras, trazidas na Constituição Federal de 1988, atribuíram novo sentido às entidades familiares, exigindo do Direito que venha a incorporar este programa transformador.79 A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. O que se quer afirmar é que o reconhecimento da paternidade socioafetiva não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma das formas é a “posse de estado de filho” que exterioriza a condição filial, seja por levar o nome, por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Esta condição liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente.80 É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente para construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio de um exame de DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico. Muitas vezes, a filiação e a 76 BRAUNER, 2004, p. 258. FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar 1999, p. 306. 78 BRAUNER, op. cit., p. 260. 79 BRAUNER, 2004, p. 261. 80 Apelação Cível 70008795775 Julgada em 2004 pelo Desembargador aposentado do TJRS José Carlos Teixeira Giorgis. 77 18 paternidade derivam de uma ligação genética, mas esta não é o bastante para a formação e a afirmação do vínculo, é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo elo, dia após dia. O elo que une pais e filhos é, acima de tudo, socioafetivo, moldado por laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o elo biológico.81 A ordem constitucional tratou da diversidade das entidades familiais, da união estável, da família monoparental e da família adotiva, contudo, não deixou de dar ênfase ao casamento civil. Conquistado o reconhecimento das relações afetivas de fato, verifica-se que não houve a intenção de se manter uma hierarquia ou estabelecer discriminações a uma ou outra forma de manifestação de vida familiar. Houve, sim, o reconhecimento de outras formas de conjugalidade, quebrando-se a supremacia da família matrimonializada.82 Desse modo, sob a égide da igualdade e da primazia do afeto, caminha a doutrina para o reconhecimento da filiação como realidade em que o aspecto biológico caminha lado a lado com o socioafetivo.83 Nesse sentido, Fachin84 afirma que: Da família matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente porque afeto não é dever e a coabitação uma opção, um ato de liberdade. Verifica-se, desta forma, potencializada que, os interesses dos filhos, qualquer que seja a natureza da filiação, restam prioritariamente considerados. Além da doutrina, a jurisprudência pátria reconhece o valor jurídico do afeto como primordial para o estabelecimento da filiação. Trata-se do reconhecimento pelos Tribunais de uma situação que se coloca como base das relações familiares. Se não há dúvida acerca da relevância do reconhecimento dos laços biológicos da filiação, o vínculo que une pais e filhos, e que lhes oferece tais qualificações, é mais amplo que a carga genética de cada um, diz respeito às relações concretas entre eles, o carinho dispensado, o tratamento afetuoso, a vontade paterna em se projetar em outra pessoa, a quem reconhece como filho, não só em virtude do sangue, mas em virtude do afeto.85 “A filiação socioafetiva é a real paternidade do afeto e da solidariedade, são gestos de amor que registraram a colidência de interesse entre o filho registral e o seu pai de afeto”.86 A igualdade entre os cônjuges, expressa no § 5º do artigo 226 da Constituição Federal, bem como a isonomia entre todos os filhos, afirmada no § 6º do artigo 227 do mesmo texto constitucional, devem ser consideradas marcos fundamentais da reforma do Direito de Família, demonstrando a superação do modelo patriarcal clássico, concebido na codificação civil. O afeto passa a ter relevância para o Direito e transforma-se em um elemento importante, tanto para a continuação, quanto para o término das relações conjugais, quando fraturado o vínculo afetivo. Não obstante, a descoberta da verdadeira paternidade exige que não seja negado o direito da filiação, qualquer que seja ela, de ver declarada a paternidade. Essa negação é inconstitucional em face dos termos em que a unidade da filiação 81 ALMEIDA, acesso em: 15 fev. 2011. BRAUNER, 2004, p. 262. 83 FACHIN, 2003, p. 10. 84 Id., 1996, p. 98. 85 FACHIN, op. cit., p. 12. 86 MADALENO, 2007, p. 161. 82 19 restou inserida na Constituição Federal. Quando um filho já tem um pai registral, mostra-se totalmente integrada a jurisprudência com o espírito da lei, quando restringe a pesquisa dos laços genéticos apenas aos efeitos psicológicos quando existe a necessidade de conhecer a ancestralidade, eugênicos para preservar os impedimentos matrimoniais e de preservação da vida e da saúde em caso de grave doença genética, sem qualquer ingerência ou modificação dos vínculos de parentesco já estabelecidos por adoção ou por afeição.87 Guilherme Calmon Nogueira da Gama88 enfatiza que o conhecimento da origem biológica não envolve qualquer possibilidade de retorno à família natural. O direito à identidade pessoal deve abranger a historicidade pessoal, aí estando inserida a vertente biológica da identidade, sem que haja qualquer vínculo parental entre as duas pessoas que, biologicamente, são genitor e gerado, mas que juridicamente nunca tiveram qualquer vínculo de parentesco. Como já destacado, com o advento da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se a igualdade plena entre os filhos, qualquer que seja a natureza da filiação, sendo esta analogia reproduzida pelo Código Civil de 2002. Esta isonomia não é apenas importante no sentido de nivelar direitos patrimoniais e sucessórios, mas destaca-se pelo fato de impor uma nova ordem axiológica, com eficácia imediata em todo o ordenamento jurídico. Além disso, nova ordem constitucional assegurou também a tutela de núcleos familiares monoparentais, formado por um dos descendentes com os filhos (CF, art. 226, § 4º), e extramatrimoniais (CF, art. 226, § 3º).89 Dentre os diversos agrupamentos sociais existentes, destaca-se o de pessoas formado de parentes, cujo liame ou ponto comum da união ou aproximação está numa das seguintes ordens: no vínculo conjugal, quando o casamento une o homem e a mulher; na consanguinidade, pela qual as pessoas possuem um ascendente comum, ou trazem elementos sanguíneos comuns, denominado parentesco biológico ou natural; ou pela afinidade, denominado parentesco civil ou derivado, que se dá em virtude da lei e se forma em razão do casamento, envolvendo o marido e os familiares da mulher, ou vice-versa, isto é, a afinidade advém do vínculo conjugal, e se exterioriza com a relação que liga as pessoas aos parentes do seu cônjuge.90 Considerando-se que a procriação, sendo um fenômeno biológico, determina que todo filho tenha um pai e uma mãe, a filiação jurídica, por força da incidência da norma que declara a paternidade, teria que ser o retrato fiel da filiação biológica. A norma jurídica incide sobre este suporte fático de concepção, geração, nascimento, tão logo este se verifique no mundo dos fatos. Em outras palavras, deve haver a perfeição entre o conteúdo jurídico da norma e a realidade objetiva sobre a qual deverá incidir, produzindo assim os efeitos desejados. Contudo, quando não ocorrem os fatos previstos, ou em face de fatos diversos, a norma permanece sem qualquer eficácia. Desta feita, para ser declarada a filiação jurídica não é suficiente a filiação biológica, pois se necessita de um agir qualificado que é o reconhecimento, que pode se dar voluntariamente, por ordem judicial, ou por força de técnica jurídica criadora de presunções. A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na 87 MADALENO, 2007, p. 138. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003b, p. 483. 89 BOEIRA, 1999. 90 RIZZARDO, 2008, p. 399. 88 20 descendência, mas também no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento em público e na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que supera o laço biológico, compondo a base da paternidade. É à luz de uma hermenêutica constitucional de valorização da dignidade da pessoa humana.91 Essa verdade socioafetiva não é menos importante que a verdade biológica. A realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas também na realidade de afeto que une pais e filhos e se manifesta em sua subjetividade e perante o grupo social. A transformação da estrutura familiar se dá progressivamente com a adoção do princípio de igualdade entre todas as espécies de filiação. A Constituição Federal de 1988 não reconhece expressamente o estado de filiação socioafetivo, mas proibiu qualquer forma de discriminação ao estado de filiação. A partir de sua promulgação, prevalece o direito da personalidade e do respeito singular à dignidade da pessoa, sem mais discriminar a origem da filiação, que reina como única, quer ela derive da natureza biológica, socioafetiva ou dos laços de adoção.92 Esta nova concepção de família leva em consideração muito mais o núcleo em que são dominantes as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Ao transformar-se, a família valoriza as relações de sentimentos entre seus membros revelando a afetividade recíproca. De acordo com as transformações mais recentes por que passou a família, a mesma deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo.93 Compete aos pais cuidar da alma, da moral e da psique de seus filhos, biológicos, civis ou socioafetivos, porque é inquestionável a inserção dos direitos fundamentais do menor no texto constitucional.94 Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a filiação afetiva tem seu fundamento no afeto, pois nem sempre o melhor pai ou mãe é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo.95 Rolf Madaleno96 descreve com propriedade a relevância da família e do afeto: União afetiva e família têm como essência e razão de existência a sua comunhão espiritual, onde mulher e homem trabalham em igualdade de direitos, princípios valores e oportunidades, em uma atmosfera que visa ao crescimento e à fortificação da unidade familiar. Destarte, a sociedade é dinâmica e se transforma a cada momento, novas formas de relacionamento são construídas, novas estruturas econômicas e políticas são consolidadas, e o direito de família deve estar em constante desenvolvimento para abrigar as demandas diversas que surgem nessas transformações, especialmente no tocante instituto da filiação.97 Reconhecendo e atendendo aos clamores sociais, a Constituição Federal estabeleceu princípios norteadores das relações familiares que alteraram 91 FACHIN, 2003, p. 11. MADALENO, 2007, p. 164. 93 DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 94 MADALENO, op. cit., p. 127. 95 GAMA, 2003b, p. 482. 96 MADALENO, op. cit., p. 116. 97 GUIMARÃES, Acesso em: 15 fev. 2011. 92 21 profundamente sua estrutura. Ao incorporar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, autoriza o reconhecimento à relação afetiva, que deve prevalecer sobre qualquer outra, gerando a denominada “paternidade socioafetiva”.98 A Constituição Federal de 1988 foi, efetivamente, um divisor de águas no que concerne aos valores da família contemporânea brasileira. A iniciar pelo art. 1º, III, que traduz o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somado ao art. 3º, I, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das relações entre pais e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização que sempre os ligou para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um novo sujeito de direito nas relações familiares e, até mesmo, a uma nova face da paternidade: o vínculo socioafetivo que une pais e filhos, independentemente de vínculos biológicos.99 A dignidade humana é aquilo que é essencialmente comum a todas as pessoas, impondo-se um dever de respeito e intocabilidade, inclusive em face do Poder Público. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.100 O desafio que se coloca aos juristas, principalmente aos que lidam com o direito de família, é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica, a ela subordinando as considerações de caráter biológico ou patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais. A família recuperou a função de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida.101 Na atual perspectiva de família constitucionalizada, democrática e igualitária, a afetividade passa a desempenhar papel de incompatível relevância, assumindo ideais de cooperação nunca imaginados. A afetividade, baseada em amor, carinho, atenção respeito e cuidado, passa a inspirar toda a dinâmica das relações familiares, exigindo das pessoas que as relações familiares sejam permeadas pela responsabilidade como dever de cuidado e proteção recíprocos, numa dinâmica de vida em comum de membros comprometidos com os sólidos laços afetivos e a promoção do bem-estar de todos.102 4.2 A RELEVÂNCIA DA AFETIVIDADE NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL VISANDO O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E A PARENTALIDADE RESPONSÁVEL A atual realidade sobre as diferentes manifestações de família impõe a observância de certos princípios constitucionais, mormente no que se refere ao modelo de família afetiva em que há filhos de um cônjuge, filhos do outro e filhos 98 BARBOZA, Heloisa Helena. O reconhecimento jurídico. IBDFAM. <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=64>. Acesso em: 15 fev. 2011. 99 ALMEIDA, acesso em: 15 fev. 2011. 100 LÔBO, acesso em: 15 fev. 2011. 101 Ibid. 102 CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. Disponível em: 22 comuns. Nesse caso, que atualmente parece ser a regra, é necessário que haja muito equilíbrio para que se alcance um ambiente favorável ao desenvolvimento de pessoas tão diferentes entre si, mas que por forças circunstanciais vivem juntas.103 O nosso Direito de Família, alicerçado no contexto constitucional vigente, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 10.741/03) e nos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, deve construir seus caminhos, em especial, quando nos conflitos que examinar houver criança envolvida. Não é mais possível desvincular, diante da sistemática atual, o Direito de Família do Direito da Criança e do Adolescente. Ambos formam conexões que não podem ser desmembradas na atuação dos profissionais do Direito que devem levar em consideração o modo mais conveniente para obter soluções para os conflitos gerados nas relações familiares, respeitando sempre, em qualquer hipótese, o direito da criança.104 No Direito brasileiro, com base na noção do melhor interesse da criança, temse considerado a prevalência do critério socioafetivo para fins de assegurar a primazia da tutela à pessoa, no resguardo dos seus direitos fundamentais, notadamente o direito à convivência familiar.105 Rolf Madaleno106 assevera que: A filiação é redirecionada em seus reais valores e na sua efetiva interpretação, ao se escorar no critério do melhor interesse do filho e nos laços fundados sobre o afeto e na convivência familiar, e não mais apenas na sua origem genética, que perde importância se a relação não estiver minimamente fundada no amor. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, predomina a realização pessoal do menor, e não mais a hegemonia absoluta dos pais, dirigindo-se o Direito de Família para o plano da afetividade em lugar da legitimidade em razão do casamento, e indiferente à origem da concepção. Entretanto, o estado de filiação decorrente da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho nada tem a ver com a tutela do direito que tem este filho social de conhecer a sua origem genética e de conhecer e investigar a sua personalidade, inclusive para eventual preservação de sua vida. Nesse contexto, vale citar a denominada “adoção à brasileira”, aquela em que a paternidade não prescinde de vínculo biológico, encontrando guarida no art. 1.593 do Código Civil, quando dispõe que o parentesco pode resultar de “outra origem”.107 No caso do filho que já tem constituído o seu estado de filiação pelo registro socioafetivo da adoção à brasileira, o mesmo tem o direito de querer investigar a sua origem genética, sendo que isso não interfere no seu estado de filiação, pois tem apenas como foco o direito de personalidade de que todo homem é titular.108 Assim sendo, o estado de filiação não pode ser afetado quando já existe precedente 103 Ibid. AZAMBUJA, 2004, p. 288. 105 GAMA, 2003b, p. 482. 106 MADALENO, 2007, p. 165. 107 SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. A família afetiva. O afeto como formador de família. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=336>. Acesso em: 15 fev. 2011. 108 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: Anais IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, Del Rey, 2004. 104 23 atribuição de paternidade ou maternidade seja ela biológica ou socioafetiva.109 Destarte, a positivação dos direitos peculiares da criança e do adolescente caracteriza uma revolução no nosso ordenamento jurídico, modificando a estrutura sistemática e principiológica do clássico direito de família.110 Esse novo Direito de Família descortina valiosas oportunidades de garantia dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente, aplicando com propriedade os princípios da dignidade humana e da prioridade absoluta à infância, estando, portanto, nas mãos dos profissionais que atuam nos conflitos de família a responsabilidade de dar eficácia aos direitos que a Constituição Federal de 1988, com tanta sensatez, lhes outorgou.111 A paternidade socioafetiva, baseada na tendência de personificação do direito, vê a família como instrumento de realização do ser humano.112 A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança afirma que a criança tem o direito de conhecer e conviver com seus pais, a não ser quando incompatível com seu melhor interesse, considerando sempre o ambiente cultural em que vive.113 O artigo 227 da Constituição Federal assegura às crianças, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à liberdade, ao respeito, à dignidade, e o direito à convivência familiar e comunitária. Além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.114 Destaca-se, dessa forma, que foi somente a partir da carta constitucional que a criança adquiriu, frente ao ordenamento jurídico, a condição de sujeito de direitos. Esse avanço tem apontado para a importância dos cuidados que devem ser dispensados à criança, visando ao seu desenvolvimento saudável, não só na área física, como na social e na psíquica. Atribuiu-se à família, à sociedade e ao poder público a responsabilidade de assegurar à criança os seus direitos fundamentais, possibilitando o desenvolvimento de políticas e programas voltados à prevenção primária.115 Hoje, verifica-se nos Tribunais o predomínio evidente da priorização do direito da criança e do adolescente sobre os interesses do adulto. A partir do momento em que a filiação é identificada pela verdade socioafetiva e não pela verdade biológica, é de se reconhecer que os vínculos afetivos merecem a proteção do Estado. Esta nova orientação levou à adoção da doutrina da proteção integral da criança que, como sujeito de direito, gozando de uma extensa gama de direitos fundamentais, entre eles o de não ser abandonada e nem negligenciada, ou seja, toda criança tem o direito de ser amada.116 Os Tribunais, fundados nos princípios constitucionais e no art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecem o estado de filiação como um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou 109 MADALENO, op. cit., p. 166. AZAMBUJA, 2004, p. 288. 111 AZAMBUJA, 2004, p. 293. 112 ALMEIDA, acesso em: 15 fev. 2011. 113 AZAMBUJA, op. cit., p. 283. 114 LÔBO, Acesso em: 15 fev. 2011. 115 AZAMBUJA, op. cit., p. 284. 116 FREIRE, Denise Dias. O preço do amor. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/? artigos&artigo=162>. Acesso em: 15 fev. 2011. 110 24 seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça, ou seja, têm entendido que os filhos podem, a qualquer tempo, pleitear a paternidade que imputam a alguém, não prevalecendo a presunção pater is est nem o registro público do nascimento.117 No momento em que houve o reconhecimento da união estável como entidade familiar, sendo-lhe outorgada especial proteção, a Constituição Federal conheceu e legitimou o afeto. A partir daí, o afeto passou a merecer a tutela jurídica, tanto nas relações interpessoais como também nos vínculos de filiação.118 Além disso, no contexto familiar contemporâneo são acontecimentos comuns os divórcios e as dissoluções de uniões estáveis. Maria Cláudia Crespo Brauner explica que os desgastes da relação podem determinar seu fim, tendo em vista que os relacionamentos são reavaliados frequentemente pelos casais, ou seja, as pessoas toleram menos o fim do amor, ou do interesse sexual. A busca de realização afetiva em novas relações de conjugalidade é situação comum. Faz parte da nova realidade social o fato de as pessoas divorciadas, ou solteiras, que compõem as famílias monoparentais, encontrarem a possibilidade de restabelecer a vida conjugal. Essas novas famílias têm sido denominadas de famílias reconstituídas. Esse acontecimento se processa alheio ao Direito de Família brasileiro, que não elaborou regramentos para a proteção desses novos arranjos. Maria Cláudia Crespo Brauner119 assim define este novo modelo de família: [...] por famílias reconstituídas, reconstruídas, sequenciais ou heterogêneas entende-se o núcleo familiar formado por pessoas que saíram (através do divórcio, separação ou dissolução de uma união estável) de uma primeira união, da qual tiveram filhos, ou os adotaram, e ingressam em uma nova relação, unindo-se ou casando-se novamente (rematrimônio). É preciso que exista ao menos um filho de uma união anterior de um dos pais. Visando à estabilização da vida familiar, surgem situações que devem ser protegidas pelo Direito, no interesse das crianças e dos adolescentes evolvidos. O apoio dos familiares possibilita maior sucesso do rematrimônio e estimula o equilíbrio das relações parentais. Surge, neste momento, a chamada coparentalidade, quando o novo cônjuge ou companheiro passa a desempenhar funções e papéis no cuidado dos filhos do outro cônjuge.120 A inclusão dessas novas famílias deve ser buscada na tentativa de tutelar os direitos dos filhos afetivos, preexistentes às novas relações conjugais, fazendo-se necessário discutir as alternativas, visando a garantir a solução dos conflitos que podem resultar dessas relações. Alguns destes problemas vinculam diretamente os interesses do filho, do pai ou da mãe biológica, junto ao novo cônjuge ou companheiro, tanto durante a relação conjugal, quanto após a ruptura desta união. Dessa forma, seria importante destinar esforços para se construir soluções doutrinárias e jurisprudenciais que assegurem o interesse superior da criança para viver em um ambiente familiar equilibrado e acolhedor, mesmo após as separações e recomposições conjugais.121 Dessa maneira, a filiação socioafetiva deve ser valorada nas relações 117 LÔBO, Acesso em: 15 fev. 2011. GUIMARÃES, Acesso em: 15 fev. 2011. 119 BRAUNER, 2004, p. 274. 120 BRAUNER, 2004, p. 275. 121 Ibid. 118 25 familiares reconstituídas, através de uma implementação consistente na doutrina e na jurisprudência, com o principal objetivo de preservar o interesse dos filhos nas novas uniões. Para tanto, esses filhos devem receber amparo e proteção jurídica pelas circunstâncias peculiares que caracterizam sua constituição e, especialmente, pela oportunidade promissora para os filhos que, muitas vezes, são esquecidos pelos pais biológicos, após as rupturas conjugais. Faz-se necessário preponderar, nesse Direito de Família renovado, a noção de interesse social da coletividade, devendo o legislador adaptar a lei aos costumes e aos comportamentos da sociedade, respeitando as escolhas pessoais. O respeito aos princípios consensuais da humanidade, consubstanciados na dignidade da pessoa humana, na igualdade, na liberdade e na intimidade, servirão de fundamento para a construção da nova literatura jurídica do Direito de Família e para as decisões judiciais no âmbito dessas relações.122 O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 assegurou às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos, com proteção integral da família e do Estado. Assim sendo, o interesse prioritário passa a ser o da criança. Essa mudança de paradigmas tem exigido a implementação de ações que garantam o melhor interesse da criança, segundo as disposições trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.123 O ilustre doutrinador Rolf Madaleno124, ao analisar o instituto da filiação, afirma que: “As crianças e os adolescentes precisam ser nutridos do afeto de seus pais”, cujos valores são fundamentais para a futura inserção social dos filhos, não importando se os vínculos paternos são de ordem genética, civil ou socioafetiva, pois, têm eles a obrigação de exercerem sua função parental, essencial à formação moral e intelectual de seus descendentes. Assim sendo, a verdadeira estrutura familiar é construída pelo amor vivenciado no cotidiano dos relacionamentos, sendo favorecida pela unidade afetiva dos pais. A família contemporânea não apresenta a mesma configuração da família de séculos anteriores. A mudança de cultura, de hábitos e as exigências da vida de hoje provocaram alterações, não só no dia a dia das famílias, mas também na sua própria concepção legal. 4.2.1 Dos alimentos e da sucessão Para Rodrigo da Cunha Pereira, o afeto não é somente princípio jurídico, mas também um “pressuposto da autoridade e das funções paternas”,125 ou seja, um filho pode buscar a Justiça para protestar a ausência da figura paterna, tendo em vista os deveres que tem um pai para com seu filho. Nesse sentido, em relação aos alimentos, o art. 1.694 do Código Civil assegura aos parentes o direito de pedir alimentos necessários para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de 122 Ibid., p. 277. AZAMBUJA, 2004, p. 280. 124 MADALENO, 2007, p. 113. 125 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Nem só de pão vive o homem: responsabilidade civil por abandono afetivo. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=392>. Acesso em: 20 fev. 2011. 123 26 sua educação.126 Nos casos que envolvem a paternidade socioafetiva, João Baptista Villela afirma existir uma paternidade alimentar socioafetiva em conexão com a paternidade alimentar biológica. Para o autor, existe uma única paternidade que é socioafetiva, pois pertence à ordem natural e não pode ser determinada pela procriação.127 Rolf Madaleno, citando Helenira Bachi Coelho, afirma que os deveres de um pai em relação ao filho não nascem do reconhecimento civil ou judicial da paternidade, pelo contrário, antecedem a isso, decorrem da condição natural do homem enquanto agente na concepção legal daquele ser, pois quem deu origem ao filho biologicamente, mesmo que não saiba de sua existência ou nascimento, possui deveres decorrentes de sua participação na concepção, não podendo ser suplantado pela assunção destes por terceiros. Dessa forma, cumpre como pode o pai socioafetivo, que assume o sustento do seu filho social no limite de suas condições financeiras, ao arcar com aquilo que dispõe, para a formação, a alimentação e a educação do filho que assumiu por amor.128 Cada vez mais a paternidade firma-se na segurança das relações afetivas e assim, contemporiza a competência de prestar alimentos pela responsabilidade social e pela responsabilidade de pai, pois não se pode forçar a ser pai quem não quer assumir uma paternidade que rejeita, haja vista que não há como impor uma paternidade coercitiva. Entretanto, este genitor pode não ser compelido a conviver e gostar de seu filho, mas, em contrapartida, não pode ser dispensado da sua responsabilidade pelo vínculo de sua procriação apenas porque outro assume, por afeto, a sua primitiva função parental. Mesmo que o filho que ajudou a gerar não cause danos, ele opera custos que permitem buscar o reembolso ou a sua responsabilidade direta, pois é permitido ao Direito forçar o genitor biológico a assegurar a exata paridade dos alimentos que seu ascendente socioafetivo não tem condições de proporcionar.129 Assim sendo, é defensável a possibilidade de serem reivindicados alimentos do pai biológico diante da impossibilidade e incapacidade alimentar do pai socioafetivo, quando este não consegue cumprir de forma satisfatória a necessidade alimentar do filho que acolheu por amor e afeição. Como enfatiza Madaleno, é a dignidade consolidada em suas duas versões.130 Em relação à sucessão de filiação oriunda da adoção, por exemplo, o princípio da igualdade entre os filhos impôs o estabelecimento de vínculos entre o adotado e parentes do adotante, e entre adotante e descendentes do adotado (art. 41, § 2º, ECA), razão pela qual o falecimento da pessoa adotada somente possibilita o chamamento de seus ascendentes sucessíveis, excluindo os pais biológicos.131 Na visão de Arnaldo Rizzardo132: “Os pais biológicos são totalmente desobrigados da herança, por determinar a adoção o rompimento de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. Não há como distinguir um ato de adoção jurídica da adoção à brasileira, consistente no registro direito da pessoa, como se fosse filho biológico, porque ambas refletem um desejo de aproximação afetiva entre duas pessoas e, neste contexto, o filho adotivo, tanto 126 MADALENO, 2007, p. 169. VILLELA, 2005, p. 132. 128 COELHO (apud op. cit., p. 168). 129 Ibid., p. 169. 130 MADALENO, 2007, p. 169. 131 Ibid., p.164. 132 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 184. 127 27 de fato, quanto de direito, não pode efetivamente herdar do pai sanguíneo, haja vista que não pode um filho herdar herança de dois pais. No que concerne à possibilidade de adoção póstuma, que é o reconhecimento da socioafetividade após a morte do pai socioafetivo, o Superior Tribunal de Justiça vem dando ênfase a este novo conceito para referendar e ratificar as decisões proferidas pelos Tribunais estaduais. Havendo prova inequívoca da posse do estado de filho, qual seja, reconhecimento de fato preexistente de que houve adoção tácita, anterior ao processo, aponta-se para o princípio da preservação do melhor interesse da criança, consagrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.133 Não obstante, o art. 42, §5º do mesmo texto, permite a “adoção póstuma”, desde que o respectivo pedido já tenha sido encaminhado pelo adotante ao Juiz. Em tese, é possível juridicamente o deferimento da adoção, antes de iniciada a ação, desde que exista documento que evidencie o propósito de adotar.134 Duas recentes decisões proferidas pelo STJ em menos de seis meses mostram claramente os avanços na seara do Direito de Família. Em julho de 2007, no REsp. 823384, o Tribunal Cidadão protegeu a filiação socioafetiva ao possibilitar a adoção póstuma, ante a exclusiva demonstração da vontade de adotar e os laços de afetividade em vida. Os precedentes do STJ apontam para um abrandamento do rigor formal, em razão da evolução dos conceitos da filiação socioafetiva e da importância de tais relações na sociedade moderna. Logo depois, em setembro de 2007, o STJ foi além ao validar o reconhecimento de filiação socioafetiva mesmo diante da inexistência de relação sanguínea entre as partes, sendo, neste sentido, irrelevante a consanguinidade perante o vínculo socioafetiva.135 Assim sendo, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo para reconhecer a existência de filiação jurídica. Deste modo, o Recurso Especial foi conhecido e provido.136 Diante desse contexto, é possível reconhecer que, muito embora o instituto da posse de estado de filho esteja à margem da lei, decisões de vanguarda vêm atribuindo valor jurídico ao status filii e ao status familiae, reconhecendo nas famílias unidas pelos laços do amor e da gratidão uma relação afetiva, íntima e duradoura. É a verdade socioafetiva ganhando abrigo no Direito.137 4.3 O TRATAMENTO EXISTENTE NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL EM QUE HÁ O CHAMAMENTO DE FILHO E A ACEITAÇÃO DO CHAMAMENTO DE PAI “A descendência genética é um dado, a filiação socioafetiva se constrói”. A paternidade biológica vem pronta para a filiação, é traçada por uma informação obrigatória, é um elo indissolúvel, ao reverso, a relação paterno-filial socioafetiva se revela, é fruto de um querer: ser pai, desejo que se põe na via do querer ser filho, 133 TJRJ – Apelação Cível 2007.001.16970 – 17ª Câmara Cível – Relator Desembargador Rogério de Oliveira Souza – Julgado em 13-06-2007. 134 TJ-DFT – Apelação Cível 20050110334548APC DF – 4ª Turma Cível – Relator Desembargador José Divino de Oliveira – Publicado em 03-08-2006. 135 GUIMARÃES, acesso em: 15 fev. 2011. 136 STJ – REsp. 878941 DF – 3ª Turma – Relatora Ministra Nancy Andrighi – Publicado em 17-092007. 137 GUIMARÃES, op. cit., acesso em: 15 fev. 2011. 28 uma conquista que ganha grandeza e se afirma nos detalhes.138 Destarte, o papel da afetividade é imenso, eis que a paternidade decorre menos da procriação e mais da circunstância de amar e servir.139 Um dos elementos mais importantes na arte de “criar laços”, que constituem a relação socioafetiva, é o tempo. O tempo que se gasta, que se investe em alguém, em um relacionamento é o que produz o verdadeiro envolvimento. O tempo que se dedica às pessoas torna-as importantes, porque na medida em que horas são empregadas em condutas de zelo, de satisfação de necessidades, de assistência ou mesmo de companhia, os laços afetivos se estreitam e se fortalecem, ou seja, para se criar laços, no mais elevado sentido da expressão, é indispensável que haja um investimento de tempo, pois se trata de uma conquista que requer dedicação.140 Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral141 faz uma reflexão sobre a importância da criação e da manutenção dos laços de afeto dentro da família: Não se está a propor uma “felicidade para sempre”, utópica, estática e inatingível, mas que haja progressiva superação das diferenças que causam atrito, através de posturas baseadas no respeito e na criação, no desenvolvimento e na manutenção de laços afetivos capazes de suportar as diferentes e inusitadas situações de vida que se apresentem. Os laços afetivos possibilitam que as pessoas se amem, se respeitem e desejem a felicidade reciprocamente - atitudes que permitem construir pontes sobre os abismos emocionais, ligando as pessoas por vínculos perenes. O afeto é o propulsor do desenvolvimento do senso de respeito e de cuidado nas relações familiares. Pontua-se, dessa forma, que a afetividade se materializa nas condutas de respeito e de cuidado, na busca do bem-estar, na construção da autoestima, na incessante busca de atender às necessidades e aspirações uns dos outros, na aceitação recíproca e na compreensão.142 Pode-se sintetizar a parentalidade responsável como a dinâmica de relacionamentos entre pessoas comprometidas, assentada sobre a afetividade, concebida como dever de colaboração entre parentes e buscando o cumprimento da função social da família. Como via de consequência direta, gera efeitos jurídicos em três dimensões: pessoal, social e patrimonial. A esfera pessoal se refere, além dos laços afetivos indispensáveis, às obrigações deles decorrentes no que tange a valores, que vão desde a preservação da vida até as condutas concernentes ao respeito, ao cuidado, à proteção e à promoção da felicidade, a permear todas as relações que se desenvolvem no âmbito da entidade familiar.143 Constata-se, então, que a paternidade socioafetiva é garantidora da estabilidade social, pois um filho reconhecido como tal, no relacionamento diário e afetuoso, certamente formará uma base emocional capaz de lhe assegurar um pleno e diferenciado desenvolvimento como ser humano. Além disso, ter um filho e reconhecer sua paternidade deve ser, antes de uma obrigação legal, uma demonstração de afeto e dedicação, que decorre mais de amar e servir do que responder pela herança genética. A paternidade é construída, antes de qualquer 138 FACHIN, 1996, p. 59. LEITE, Eduardo de Oliveira. Temas de direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. 140 CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 141 Ibid. 142 Ibid. 143 Ibid. 139 29 coisa, com afeto, que jamais se detectará em uma lâmina de laboratório.144 Denise Dias Freire afirma que o afeto, por sua vez, é o alimento da alma. Na sociedade pós-moderna, sobretudo, com o prestígio de que desfruta o princípio da dignidade humana, a afetividade torna-se um imperativo à convivência em família. Em razão de muitas transformações sociais e do crescente movimento no sentido de humanização, a família evoluiu, e a convivência, sob o foco dela ser constitucionalizada, passa a requerer cada vez mais cuidado e respeito. Os membros de uma família passam a viver em espírito de solidariedade e cooperação, buscando auxílio recíproco, promovendo a realização pessoal daqueles com quem dividem o espaço mais íntimo. Nessa nova ótica de interação, a família, estruturada sob a orientação afetiva, encontra ambiente favorável ao desenvolvimento de potencialidades, à formação integral da pessoa, uma vez que, construída sobre o cuidado, o respeito, o afeto e o amor, passa a merecer especial conteúdo valorativo na perspectiva da família constitucionalizada deste novo milênio.145 Maria Berenice Dias consagra o afeto como verdadeiro direito fundamental, permitindo projeções do mais alto relevo, como o reconhecimento da igualdade entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva.146 O afeto e o respeito envolvem toda a família em uma dinâmica que visa à construção, à reconstrução e à adaptação das pessoas que a compõem, a fim de que a personalidade delas seja solidamente formada, num ambiente salutar em que as potencialidades individuais são preservadas e desenvolvidas satisfatoriamente. Tais posturas propiciam à pessoa se sentir segura, capaz de dar e receber amor, elas facilitam a estrutura do caráter para enfrentar as intempéries que a vida oferece, com uma dose suficiente de equilíbrio, serenidade e sabedoria, fatores imprescindíveis à realização de escolhas conscientes.147 Negar que atualmente as relações baseadas no afeto e carinho são menos importantes do que as consanguíneas é um erro. A filiação biológica não está mais em pé de superioridade, uma vez que a criação do filho afetivo surge por circunstâncias alheias à imposição natural que a paternidade impõe. Nessa perspectiva, a família somente tem razão de ser se atender às necessidades de seus membros, se viver em espírito de colaboração, cumprindo os ideais ditados pela afetividade e pela solidariedade, ou seja, cumprindo com sua função social. Embora sejam as questões existenciais a construírem o objeto deste trabalho, inexoravelmente as relações afetivas gerarão efeitos na esfera patrimonial. Aliás, salienta-se, uma das maiores transformações do Direito de Família neste novo milênio é o deferimento de direitos sucessórios fundado no reconhecimento de filiação socioafetiva, a demonstrar que existem novas formas de se estabelecer uma relação de parentesco tão legítima quanto aquela baseada na consanguinidade.148 Os laços afetivos estabelecem responsabilidades em três dimensões: pessoais, em relação à formação integral de cada parente que compõe a família, procurando suprir desde as necessidades materiais, passando pelas psicológicas, até as questões atinentes a seus sonhos, a suas expectativas; sociais, correspondentes a sua reputação como ente familiar; e, patrimoniais, 144 BARBOZA, acesso em: 15 fev. 2011. CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 146 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008a. 147 CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 148 Ibid. 145 30 compreendendo, inclusive, direitos sucessórios, naturalmente decorrentes das relações fundadas no afeto. Assim, a parentalidade requer um compromisso do qual decorre a responsabilidade em três dimensões que, consideradas harmonicamente, são capazes de sintonizar a pessoa em seu mundo pessoal e social, ajudando-a a formar o conceito e o conhecimento que terá de si mesma, além de sintonizá-la com o seu contexto patrimonial. Responsabilidade no contexto da família indica uma convivência ética. Desta maneira, cada um é responsável pelas pessoas com quem constrói laços de afeto, incumbindo a todos, ao mesmo tempo, a busca por um tratamento humano, solidário e igualitário, já que as cativou.149 Uma responsabilidade que perdura com o passar dos anos, consoante o que disse a raposa ao principezinho no conto “O Pequeno Príncipe”: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.150 O conto do Pequeno Príncipe nos revela traços da valoração da socioafetividade no convívio social e familiar, especialmente quando no seu encontro com uma raposa realça a importância de se estabelecer laços afetivos, remetendo a ricas lições de vida, em que se abstrai enorme sensibilidade, ao conversarem sobre uma gama de valores, evidenciados nesse diálogo, como tais: ao falar da necessidade de “criar laços”, de cativar; ao realçar a satisfação de suas necessidades básicas como encontrar galinhas, objetivando saciar a fome; ao ensinar de nobres sentimentos como “só se vê bem com o coração” e que “o essencial é invisível aos olhos”, destacando que os sentimentos mais sublimes não se curvam à razão do mundo sensível, mas são inerentes à esfera dos mais íntimos sentimentos que residem no nosso coração.151 Partindo desse raciocínio, a interpretação do Direito Civil à luz dos princípios constitucionais passa, então, a permear todas as relações privadas e, em especial, o Direito de Família. Passa a afetividade a ser o grande elemento propulsor das relações familiares, a sólida base sobre a qual se edifica a dinâmica dos relacionamentos no seio da família. O afeto torna-se indispensável à interação familiar a fim de viabilizar uma convivência harmoniosa e equilibrada, criando um ambiente saudável à formação de hábitos, habilidades e atitudes em consonância com os valores do Direito de Família de um novo tempo.152 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Estabelece o Código Civil de 2002 que compete a ambos os pais o exercício do poder familiar, ou seja, ampliou-se à figura materna o mesmo poder que detinha o pai na figura anterior do pátrio-poder. Houve a substituição da expressão “pátriopoder” pela expressão “poder familiar”. As novidades surgidas decorrem, na verdade, não da mudança da lei civil, mas sim das mudanças ocorridas na sociedade no período entre os Códigos de 1916 e o de 2002. A tarefa do jurista, nos dias de hoje, mostra-se árdua, e o seu desafio lancinante, eis que o exame da disciplina jurídica da família depende da concreta 149 Ibid. SAINT EXUPÈRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. 23. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p. 72. 151 Ibid. 152 CABRAL, acesso em: 15 fev. 2011. 150 31 verificação do entendimento do pressuposto de que a Carta Magna condicionou a tutela da família ao pleno desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, que passam da subestimada figura de ente a ser, por meio da promoção da dignidade da pessoa humana e da igualdade como valor inviolável. Portanto, passou de uma família, como comunidade intermediária funcionalizada, à realização da pessoa em si. Passa-se a correlacionar os direitos fundamentais ao Direito de Família, direitos esses que, quando se reportam à garantia constitucional da família, como instituição básica da sociedade democrática, estão a dizer, processualmente, que a dignidade humana é ínsita a cada um dos seus integrantes. Logo, é dever do Estado ensejar a procedimentação de seus direitos.153 A partir da Constituição Federal de 1988, norma fundamental ordenadora e conformadora da vida social, houve a reinvenção de família, baseada na igualdade como valor fundamental e com novos contornos na sua definição como o pluralismo na sua forma de constituição, desvinculada de valores estritamente patrimoniais, funcionalizada à realização do pleno desenvolvimento da personalidade e à dignidade da pessoa humana de cada um de seus integrantes. É na perspectiva da igualdade, como valor fundamental e dos direitos da personalidade, numa elaboração teórica compatível com sua essencial e inafastável vinculação aos valores da pessoa humana, que surgem novos sujeitos de direitos fundamentais, pois a isonomia da mulher e dos filhos devolve-lhes a dignidade de pessoas e cidadãos, até então considerados, apenas, como membros subjugados da entidade familiar. Da estreita igualdade jurídico-formal, passou-se às igualdades sociais, econômicas e culturais. Uma igualdade como direito inviolável que configura princípio vetor dos sistemas constitucionais pós-modernos, encarando sua evolução e possibilidades de configurar efetivamente uma família harmoniosa e feliz, quebrando barreiras impostas pelo sistema, criando novas formas de constituição e convivência familiar e de filiação. A nova ordem jurídica, aliada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, consagrou como fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Transformou a criança em sujeito de direito, deu prioridade à dignidade da pessoa humana, abandonando a feição patrimonialista da família. Proibiu quaisquer designações discriminatórias à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos nascidos ou não da relação de casamento e aos filhos havidos por adoção (CF, art. 227, § 6º). Todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos que melhor retratam a realidade atual: filiação social ou filiação socioafetiva. De acordo com a doutrinadora Maria Berenice Dias, tal como aconteceu com a entidade familiar, também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. Ampliouse o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. As transformações mais recentes porque passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo. A identificação dos vínculos de parentalidade não pode mais ser encontrada exclusivamente no campo genético, pois situações fáticas idênticas ensejam soluções consubstancialmente diferentes. No entanto, todas as espécies de filiação, 153 SILVA, Maria de Fátima Alflen da. Direitos fundamentais e o novo direito de família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. 32 igualmente, geram vínculos de parentesco e são merecedoras dos mesmos direitos. A paternidade não é só um ato físico, mas, principalmente, um fato de opção, extrapolando os aspectos meramente biológicos, ou presumidamente biológicos, para adentrar com força e veemência na área afetiva. A desbiologização da paternidade, consagrada pela presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, significa a convivência superveniente à verdade biológica e identifica pais e filhos não biológicos, não consanguíneos, mas que construíram uma filiação psicológica. A lei, ao gerar presunções de paternidade, afasta-se do fato natural da procriação para referendar o que hoje se pode chamar de posse de estado de filho, ou filiação socioafetiva. Como diz Luiz Edson Fachin154, “o vínculo de paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir”. Cabe, então, ao Direito identificar o vínculo de parentesco entre pai e filho como sendo o que confere a este a posse de estado de filho e, ao genitor, as responsabilidades decorrentes do poder familiar. A filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença na condição de filho fundada em laços de afeto, pois a afeição tem valor jurídico. Em assim sendo, a filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica, dando maior ênfase à socioafetividade. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Christina de. A paternidade socioafetiva e a formação da personalidade. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/? artigos&artigo=54>. Acesso em: 15 fev. 2011. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança no novo direito de família. In: MADALENO, Rolf Hanssen; WELTER, Belmiro Pedro (Coords.). Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. BARBOZA, Heloisa Helena. O reconhecimento jurídico. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=64>. 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