O sentido da criminalização 48 ______________________________________________________________________ O SENTIDO DA CRIMINALIZAÇÃO: ANÁLISE DISCURSIVA DE UMA MANIFESTAÇÃO INDÍGENA NOTICIADA PELO JORNAL FOLHA DE LONDRINA Luciana Pereira Tabosa1 Rogério Martins Marlier2 Resumo É objetivo deste trabalho interpretar discursivamente as notícias publicadas no jornal Folha de Londrina sobre um incidente causado numa manifestação indígena que ocorreu em fevereiro de 2010. Será utilizada para esta análise a metodologia da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, a fim de compreender a produção de sentidos do jornal e, consequentemente, o que não foi dito, o que não estava na notícia por meio de sua evidência, mas que, sob o olhar da análise do discurso, aparece como indício do esquecimento da própria historicidade da cultura indígena no acontecimento noticiado. Dessa forma, será verificada a produção de sentidos inserida na formação discursiva da notícia, evidenciando o efeito ideológico que deslegitimou a manifestação política. Palavras-chave: Análise do Discurso. Manifestação Indígena. Silenciamento Abstract The present paper aims to interpret discursively the news published by Folha de Londrina Newspaper on one incident caused in an indigenous march which took place in February 2010. In this analysis the methodology to be used will be the French perspective of Discourse Analysis (DA) line in order to understand the meaning production of the newspaper and therefore what has not been, what was not in the news through their evidence, but from the perspective of discourse analysis, it appears as a sign of forgetting the own history of indigenous culture in the event reported. Thus, it will be checked the production of meanings embedded in the discursive formation of the news, showing the ideological effect which delegitimized the political protest. Keywords: Discourse Analysis. Indigenous Expressions. Silencing. Introdução Este trabalho almeja interpretar as notícias publicadas no jornal Folha de Londrina, em fevereiro de 2010, sobre um incidente causado numa manifestação indígena nas ruas da cidade de Londrina. Cerca de 170 índios acamparam por mais de um mês no prédio da administração regional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de Londrina, em protesto ao decreto federal 7.056, que prevê a reestruturação do órgão. Após o anúncio deste decreto pelo então presidente Lula, várias foram as manifestações de Terras 1 2 Doutoranda em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Londrina Mestre em Ciências Sociais – Universidade Estadual de Londrina ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 49 ______________________________________________________________________ Indígenas em todo o país. Em Londrina, a cada protesto, a situação se agravava e o acontecimento analisado ocorreu quando os manifestantes indígenas bloquearam uma rua e um carro furou este bloqueio e foi atingido por uma pedrada que feriu gravemente a passageira do automóvel. Este evento repercutiu imediatamente pela cidade e foi amplamente noticiado. Dessa forma, a escolha do jornal Folha de Londrina é fruto da sua ampla circulação regional. Será utilizada para esta análise a metodologia da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, a fim de compreender a produção de sentidos do jornal e, consequentemente, o que não foi dito, o que não estava na notícia por meio de sua evidência, mas que, sob o olhar da análise do discurso, aparece como indício da própria historicidade da cultura indígena no acontecimento noticiado. Assim, a notícia é analisada enquanto “texto”, junto com seu acontecimento, com sua produção material e histórica, saindo da evidência e da transparência da linguagem para mostrar como funcionou a produção dos sentidos e dos sujeitos dentro da interpretação dada pela notícia publicada no jornal. Ou seja, a nossa intenção é mostrar o trabalho ideológico da formação dos sentidos dentro da notícia e mostrar que aquele sentido único do texto, não é único. O texto é composto por esses fragmentos (sentidos), mas é homogêneo por esquecê-los no seu interior. E estes sentidos produzidos pelo discurso, ao mesmo tempo em que se mostram homogêneos, esquecem/apagam outros sentidos relevantes que nortearam o acontecimento. Junto à análise discursiva do fato noticiado, apresentaremos alguns conceitos importantes da análise do discurso que servirão de base para nossa análise. Análise das notícias O corpus desta análise é composto por quatro notícias, três delas foram publicadas no dia 09 de fevereiro de 2010 e outra no dia seguinte, em 10 de fevereiro. No dia 09/02/2010, na página 03 do caderno “Cidades” do jornal Folha de Londrina a notícia principal tem o título “Índios deixam sede da Funai”, na qual são descritos os acontecimentos que levaram ao incidente. Logo abaixo, num quadro, aparecem duas outras notícias: “Manifestantes não querem dialogar” e “Testemunhas serão ouvidas até o fim da semana”, ambas são mostradas como matérias complementares. Com a notícia principal, estão inseridas duas fotos, uma mostrando a sede da Funai desocupada, com a legenda “Clima no escritório de Londrina era tranquilo ontem à tarde”; e a outra ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 50 ______________________________________________________________________ expondo o namorado da vítima, com seu nome e uma frase citada pelo mesmo: “Foi uma tentativa de homicídio”. Logo abaixo da manchete “Índios deixam sede da Funai”, foi colocado, em subtítulo, “Desocupação aconteceu dois dias depois que uma jovem levou uma pedrada e sofreu traumatismo craniano”. E em destaque numa caixa de texto centralizada na matéria a seguinte afirmação: “Família vai entrar com ação contra agressores”. Dessa forma, para a AD, as condições de produção do discurso compreendem, num sentido amplo, o contexto social, histórico e ideológico da produção do discurso. E, para compreendermos o interdiscurso é necessário identificar o efeito de sustentação e o préconstruído. O interdiscurso para Pêcheux (1995) é a exterioridade ocultada pela ideologia, sendo assim, o autor esclarece que: [...] propomos chamar de interdiscurso a esse „todo complexo com dominante‟ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1995, p. 162). O “interdiscurso” para Pêcheux produz as formações discursivas, pois a sua dominação é exercida pelo complexo das formações ideológicas. Assim, o efeito do préconstruído e o efeito da articulação (ou, “pré-construído” e “processo de sustentação”) são determinados materialmente na estrutura do interdiscurso. Para entendermos o efeito de sustentação, é necessário parafrasearmos o texto com ele mesmo. Porque sob o que é dito anteriormente é que se sustentam os sentidos do discurso, ou seja, isso proporciona a articulação necessária para que entendamos o discurso. Dentro do processo de sustentação, Pêcheux (1995) explica que a mudança de sentido das palavras, possibilitada pela substituição dos elementos dentro de uma formação discursiva dada e explicada anteriormente, é a concepção de “efeito de sentido”. Se voltarmos à análise para os textos que estão em destaque na reportagem, veremos que o deslizamento de sentidos produzido pelo efeito de sustentação ocorre principalmente na produção ideológica do sujeito do enunciado. Dessa forma, o sujeito “Índios” tem seu sentido deslocado para “agressores” e depois para “manifestantes”, sendo que, logo em seguida, vem a qualificação “não querem dialogar”. O deslizamento de sentidos provoca a evidência de que a manifestação é ilegítima, ocultando a “voz” ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 51 ______________________________________________________________________ dos índios e sentenciando-os como transgressores da Ordem. Sendo assim, o processo de sustentação desloca os sentidos transformando uma manifestação num “caso de polícia”. Essa produção de sentidos fica mais clara quando são confrontadas com as legendas das únicas imagens que aparecem no texto, indicando claramente a “tentativa de homicídio” e mostrando ainda que a desocupação do escritório da Funai trouxe “tranquilidade”, pois ela só existe sem a presença dos indígenas “agressores”, que não gostam de dialogar. O processo de identificação do sujeito é esquecido, trazendo uma aparente homogeneidade que é fruto da formação discursiva inserida na formação ideológica conservadora da “Ordem”, evidenciando tudo que afronta essa ordem como transgressão. A propriedade privada que é mostrada intacta e sem manifestantes (como é o caso da foto da sede da Funai em Londrina) é a evidência clara da tranquilidade originada pela coesão social que a Ordem constrói. Dessa forma, os manifestantes índios são vistos como inimigos da Ordem, da tranquilidade, da paz e principalmente do diálogo, do convívio público democrático. São sujeitos que deixam de ter voz, pois essa voz é transgressora e violenta. Por isso, o sujeito “índio” é sentenciado como pária da sociedade e inimigo público. Nessa primeira análise dos títulos, fica evidente o deslocamento de sentidos que silencia os indígenas envolvidos com a manifestação, pois o sentido da manifestação dá lugar à agressão, violência e impossibilidade de diálogo, tirando a legitimidade dos atos públicos e das reivindicações dos indígenas. No dia 10, a seguinte notícia aparece na página 7 da Folha de Londrina “Índios ameaçam „passar por cima‟”, tendo como destaque a foto de um líder indígena com a legenda: “Líder indígena avisa: „Estamos cansados de enrolação. E vamos continuar as manifestações até resolver o problema‟”. Na matéria logo abaixo, está a seguinte declaração, centralizada numa caixa de texto: “Ouvidor da Funai não conseguiu acalmar ânimos dos indígenas”. De acordo com a matéria, as lideranças indígenas paranaenses estavam “irredutíveis” ao exigir a revogação do decreto presidencial nº 7.056 que determinou a reestruturação da Funai ou, ao menos, que as três unidades administrativas do órgão no Estado fossem mantidas. Como consta no texto, nem mesmo a presença do ouvidor da fundação, Paulo Celso de Oliveira, representando o presidente da Funai, “acalmou os indígenas” que prometeram “ir até a última instância para mostrar o descontentamento com o decreto” - trecho colocado entre aspas pelo jornal para reproduzir a fala dos índios. A matéria segue relatando como foi a reunião ocorrida em Curitiba que contou ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 52 ______________________________________________________________________ com a presença de representantes do Ministério Público Estadual (MP-PR), Ministério Público Federal, Assessoria Indígena da Secretaria do Estado de Assuntos Estratégicos, servidores da Funai no Paraná, além de caciques de várias etnias do Estado para esclarecer a nova estrutura apresentada no decreto e a extinção das três regionais administrativas - Curitiba, Londrina e Guarapuava. Em seguida, a matéria aponta que os índios reclamaram que não foram ouvidos e que ficaram sem orientação com relação aos procedimentos que devem adotar para questões cotidianas da aldeia. Como não houve um consenso, Oliveira se comprometeu a agendar uma reunião na presidência da Funai, em Brasília, e a matéria segue destacando que os indígenas aceitaram voltar à Capital Federal, mas pedem que não sejam “ „recepcionados‟ pela força nacional de segurança”. O parágrafo seguinte da matéria cita os seguintes pronunciamentos dos indígenas: “Vamos lá para trazer as três „Funai‟(sic) de volta. A mensagem está clara, estamos cansados de enrolação. E vamos continuar as manifestações até resolver o problema”, disse Neoli Olíbio, da etnia Kaingang; em seguida, a matéria traz o trecho que motivou o título da notíca: “E ameaçam que podem até „passar por cima de um‟”, “Não estamos brincando e não vamos desistir”. A produção de sentidos ocorre entre o enunciado que denota o excesso de violência “vamos passar por cima” e o julgamento do próprio jornal “Ouvidor da Funai não conseguiu acalmar ânimos dos indígenas”. Dessa forma, o enunciado revela, na sua homogeneidade, que o movimento não tem legitimidade por utilizar de recursos de ação violenta e irracional, pois o movimento é qualificado como fruto de um “estado de humor” que é irracional, na medida em que é rebaixado a qualquer ação irracional desencadeada pelo ódio e a raiva. Da mesma forma que o interdiscurso é material e produz o sentido materialmente, por meio da interpelação althusseriana, reinterpretada por Pêcheux para a produção do sentido, ele é esquecido na evidência do discurso. Dessa forma, Orlandi (2000) entende que o assujeitamento, ou seja, a interpelação do indivíduo em sujeito feita pela Ideologia na qual o sujeito se submete ao Sujeito (com “S” maiúsculo), coloca o sentido como evidência apagando a base material que o constituiu. Assim a compreensão do discurso na sua produção material permite identificar a historicidade, a ideologia e forças políticas escondidas no discurso. Dessa forma, “O fato de que há um já dito que sustenta a possibilidade mesma de todo o dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua relação com os sujeitos e com a ideologia.” (ORLANDI, 2000, p. 32). ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 53 ______________________________________________________________________ Além da articulação necessária para a homogeneidade do texto (efeito de sustentação), a AD nos mostra que para compreender o interdiscurso (e para sair da transparência/evidência da linguagem) é necessário mostrar o “pré-construído”, porque sobre o que é dito anteriormente é que se faz sustentar os sentidos do discurso, ou seja, isso proporciona a articulação necessária para que entendamos o discurso. “[...] o interdiscurso também [...] aparece como a exterioridade já-dita antes, em outro lugar, do que se diz na enunciação. Trata-se de um efeito de pré-construído.” (GUIMARÃES, 1995, p.70). Assim entendemos que o pré-construído, o já-dito que significa e que não figura no texto, refere-se à interpretação que a sociedade capitalista/ocidental dá à cultura indígena e suas manifestações. Simplesmente os sentidos são colocados e, na sua imediaticidade, estão ali, homogêneos e evidentes, mas que na sua evidência escondem o processo ideológico de construção dos sentidos. Os efeitos ideológicos assujeitam os indivíduos a um Sujeito maior que é a Ordem Capitalista que coloca todos os sujeitos nos seus devidos lugares e condena qualquer movimento que tenta escapar desse processo. Dessa forma o pré-construído nos remete ao exterior do discurso. A noção de ideologia, dessa forma, é resignificada pela teoria do discurso. O papel da ideologia é apagar as formas da construção do sentido e do sujeito, colocando o homem numa relação imaginária com as suas condições materiais de existência. Os sentidos dependem da interpretação e isso atesta, para Orlandi, a presença da ideologia. É na interpretação que se constata a evidência do sentido, onde ele aparece como autônomo independente de qualquer relação com a exterioridade e com a sua produção discursiva. “Interpreta-se e ao mesmo tempo nega-se a interpretação, colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que é produzido na relação do histórico e do simbólico” (ORLANDI, op. cit., p. 46). Assim, Orlandi entende que a produção material do sentido é apagada e se constrói no lugar do que ficou vago, a transparência da linguagem, ou seja, a evidência ideológica daquela aparência como algo natural. Essa característica da ideologia de dissimular sua existência no seu próprio interior produz as “evidências subjetivas” nas quais o sujeito é constituído. Nesse sentido Althusser entende que: Segue-se que, tanto para vocês como para mim, a categoria de sujeito é uma „evidência‟ primeira [...]. Este é, aliás, o efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de "evidências") as evidências como evidências que não podemos deixar de reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente, exclamamos [...] „é evidente! É exatamente isso! É verdade!" (ALTHUSSER, 1983, p. 94-95) ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 54 ______________________________________________________________________ Sendo assim, a ideologia da Ordem Capitalista é conservadora, porque tenta manter a harmonia em detrimento do conflito e enxerga este como um erro. Para Araújo (2010), o conservadorismo mostra sua cara quando insiste em menosprezar a legitimidade de movimentos sociais e quando rechaça políticas de ação afirmativa aos índios, negros e diversas outras minorias. Como muitos medicamentos, o conservadorismo tem como princípio ativo o olhar de soberba, de cima para baixo, a não aceitação que o pessoal do andar de baixo tem os mesmos direitos que os do andar de cima, que a lei é soberana para todos e que a esta todos devem se submeter. O conservadorismo chega a ser um estilo de vida, uma forma de lutar contra qualquer forma de inclusão, seja social, cultural, digital. (ARAÚJO, 2010) A tentativa de criminalizar o movimento indígena que se manifestou em Londrina é fruto da formação discursiva da ideologia dominante. O ato discursivo de “conservar” está intimamente ligado com o ato discursivo de “silenciar”, evidenciando assim, toda a transgressão, violência e irracionalidade, em detrimento do interesse racional por dignidade, dentro dos princípios do direito democrático. A mídia potencializa o conservadorismo quando criminaliza movimentos sociais e interdita o debate sobre liberdade de expressão criando cortinas de fumaça em torno do que deseja, realmente, preservar. (ARAÚJO, 2010) Portanto, o discurso do jornal nos remete à construção material e histórica, o que a AD entende como interdiscurso. O pré-construído, que é um das características do interdiscurso, nos remete ao que foi silenciado pela “homogeneidade” do discurso jornalístico. Contudo, precisamos antes, entender o que motivou a manifestação política e depois entender em quais princípios se fundamenta o silenciamento do discurso indígena e do “sujeito índio”. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o decreto 7.056 do dia 28 de dezembro de 2009 "aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, e dá outras providências". Existe uma série de problemas que são ressaltados pelo Cimi sobre esse decreto. Uma das primeiras diz respeito à mudança da estrutura estatutária da Funai, "sem uma prévia discussão com os povos Indígenas, suas organizações e nem mesmo com a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), criada para ser uma instância ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 55 ______________________________________________________________________ articuladora e um espaço de diálogo entre o governo e os povos indígenas". (CIMI, 2010) As alterações que mais afrontaram os direitos indígenas e das quais foram objeto das manifestações em Londrina são as que dizem respeito às Administrações Executivas Regionais (AERs) que, segundo o decreto, foram extintas e em seu lugar serão criadas as Coordenações Regionais. Dessa forma, para o Cimi, "[...] haverá alterações quanto ao funcionamento, na medida em que nas Coordenações Regionais serão instituídos Comitês Regionais, compostos pelos Coordenadores Regionais, os assistentes técnicos, os chefes de divisão e de serviços e os representantes indígenas locais." (CIMI, 2010) Uma das alterações que cerceou a participação democrática dos povos indígenas e que centralizou o debate nas mobilizações indígenas é a extinção dos Postos Indígenas. Dessa forma, segundo o Cimi, "Estes se localizavam nas aldeias ou em terras indígenas e tinham a função de articular as ações locais de prestação de serviços, fiscalização e proteção das áreas." (CIMI, 2010). Neste caso, a região sul teria uma Coordenação Regional, que seria localizada em Santa Catarina, dificultando o acesso das Aldeias que tinham seu atendimento resolvido pelos Postos. Essa centralização burocrática dificulta ainda mais o processo de participação democrática das aldeias, visto que reduz o alcance e a dinâmica de organização local. Segundo a avaliação do Cimi, este decreto gera um problema político que diz respeito à questão da propriedade privada, que é alicerce fundamental dos interesses econômicos das classes dominantes no Capitalismo moderno. Dessa forma, "... consequentemente as inúmeras demandas por demarcação, proteção e fiscalização das terras sofrerão prejuízos ou adiamentos por longos períodos de tempo. Além disso, as lacunas que a reestruturação da Funai vier a deixar nos próximos anos serão ocupadas pelos setores que fazem oposição aos direitos territoriais indígenas, dentre eles os empreendimentos de infra-estrutura planejados através do PAC." O decreto gera o fortalecimento de setores conservadores dentro das discussões indígenas, pois são grupos políticos que querem manter a Ordem econômica, porque eles entendem que as demarcações prejudicam os negócios e a rentabilidade da terra, seja reforçando os direitos de propriedade privada para não-índios, seja mantendo os empreendimentos de infra-estrutura do governo federal, como usinas hidrelétricas, por exemplo. Portanto, a ideologia conservadora atravessa o jornal, construindo as evidências do discurso e silenciando a sua materialidade histórica, por meio de um ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 56 ______________________________________________________________________ efeito de sentido que transforma uma manifestação indígena legítima em um caso de polícia. Sendo assim, a formação ideológica retira a credibilidade da manifestação política indígena, porque essa voz não pode se contrapor aos interesses econômicos capitalistas. Nesse sentido: Na interpretação do Cimi, o decreto pode estar inserido na lógica de que a Funai deve ser a facilitadora dos empreendimentos econômicos e não empecilho ao desenvolvimento. Talvez a „nova‟ Funai se empenhe ainda mais em agilizar as autorizações das obras que afetam terras indígenas e dar vazão às demandas que travam as obras do PAC, como já fez o presidente da Funai, no que se refere à autorização para a execução das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. (CIMI, 2010). É necessário entendermos agora como se constitui historicamente o silenciamento do discurso indígena para entendermos o pré-construído que interpela os indivíduos em sujeitos construindo a identidade por meio da ideologia. Segundo Tommazino (2001), os livros didáticos ensinam que as terras brasileiras estavam vazias e os europeus, quando chegaram aqui, só encontraram florestas. Contam uma história na qual os povos indígenas são silenciados. No imaginário da população, em geral, principalmente por influência da televisão, só existem índios na Amazônia. O silenciamento do discurso indígena é fruto de uma construção histórica. No Paraná, com relação à sua história de colonização, por muito tempo pensou-se que os colonizadores brancos quando chegaram ao Norte do Estado não encontraram ninguém ocupando o território. Essa versão que aparece na História oficial e nos livros didáticos contribuiu para a ideia de que havia um imenso “vazio demográfico”. Assim, os pioneiros foram consagrados como heróis, por sua coragem na conquista de uma região ainda selvagem, enquanto que se ignorava a existência dos índios, chamados de “selvagens”. Desta forma, o índio passou a viver um processo de silenciamento e ocultamento. Conforme a autora, quando Cabral aqui chegou estima-se que havia pelo menos cinco milhões de pessoas, que constituíam cerca de 900 sociedades que foram surpreendidadas pelos europeus que romperam suas histórias e mudaram os rumos de suas vidas. Hoje a população indígena constitui-se por mais de 340 mil pessoas, representando 0,2% da população. De acordo com Tommasino (2001), os livros didáticos ao abordarem a História do Paraná, informam que as reduções fundadas pelos padres espanhóis nos séculos XVI e XVII foram destruídas pelos bandeirantes paulistas que levaram consigo os índios ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 57 ______________________________________________________________________ como escravos para São Paulo e outros índios fugiram com os missionários para a Província de Tape, hoje Estado do Rio Grande do Sul. Depois, a maioria dos historiadores afirma que as terras de todo interior do Paraná ficaram vazias, como se os índios deixassem de existir. No governo republicano, as terras dos índios foram reduzidas ainda mais, ocorrendo a maior ocupação pioneira do Paraná, na qual cada palmo foi conquistado pelas armas e, depois, pelo confisco que o Estado realizou a fim de entregá-las aos colonizadores estrangeiros e nacionais. Em especial, a região de Londrina foi colonizada por uma companhia da Inglaterra, a partir de 1929, e houve um grande silenciamento sobre a existência de indígenas nessa região, principalmente porque a companhia fazia propaganda de seus lotes de terras em todo o mundo, e para vendê-las as terras teriam que estar “vazias”. Dessa forma, os índios veem seus territórios sendo ocupados por interesse capitalista. Suas terras são vistas com os olhos do lucro. Considerações finais Por meio desta análise procuramos interpretar discursivamente as notícias relatadas acima sobre o incidente causado na manifestação indígena. Utilizamos a Análise do Discurso com o propósito de compreender a produção de sentidos do jornal, revelar o que não foi dito e mostrar o efeito ideológico que deslegitimou a manifestação. Procuramos evidenciar que, a todo momento, os sentidos produzidos pelo discurso do jornal apagaram outros sentidos que nortearam o acontecimento. Por meio do interdiscurso, comprovamos que houve um deslizamento de sentidos na produção ideológica do sujeito enunciado. Assim, nossa análise procurou mostrar que o discurso produzido pelo jornal deslocou o sentido do sujeito „Índios” para “agressores”, caracterizando a manifestação como ilegítima, ocultando, assim, a “voz” dos índios. Esse deslocamento de sentidos silenciou os manifestantes índios, pois os mesmos foram retratados como inimigos da Ordem. Dessa forma, são sujeitos que deixaram de ter voz, já que o sentido dessa voz foi construído de maneira a caracterizála como transgressora e violenta. Com o pré-construído que se insere dentro da formação discursiva, entendemos que o já-dito não figurado no texto refere-se à interpretação dada pela sociedade capitalista à cultura indígena e suas manifestações. Essa interpretação foi construída, como apresentamos acima, por meio do silenciamento do discurso indígena constituído historicamente. ______________________________________________________________________ Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 48-58, jan./jun. 2012 O sentido da criminalização 58 ______________________________________________________________________ Como apontou Tommazino (2001), o silenciamento do discurso indígena é fruto, portanto, de uma construção histórica que ocultou o índio da História oficial. No que se refere à História de Londrina, em especial, os livros didáticos são a prova concreta do silenciamento sobre a existência de indígenas nessa região. Enfim, o resultado desse silenciamento tem contribuído há muito tempo para uma visão errônea do índio e de sua cultura e para a construção de uma ideologia que o deslegitima como sujeito e silencia seu discurso. Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983. ARAÚJO, Washington. Paixão conservadora pelo obscurantismo. 05/04/2010. Disponível em< http://www.cartamaior.com.br/templates/ colunaMostrar.cfm?coluna_id=4588>. Acesso em: 05 jul. 2011 GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995. LEÃO, Silvana. Índios deixam se de Funai. Folha de Londrina. Londrina, 9 fev. 2010. Folha Cidades, p. 3. MENDES, Marcela R. Índios ameaçam „passar por cima‟. Folha de Londrina. Londrina, 10 fev. 2010. Folha Geral, p. 7. NOVA ESTRUTURA FUNCIONAL DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO: algumas questões para refletir sobre as mudanças. Conselho Indigenista Missionário. Brasília, 07 de janeiro de 2010. Disponível em<http://www.inesc.org.br/noticias/ noticias-gerais/2010/janeiro/nova-estrutura-funcional-da-fundacao-nacional-do-indioalgumas-questoes-para-refletir-sobre-as-mudancas-conselho-indigenista-missionariobrasilia-07-de-janeiro-de-2010-os-povos-indigenas-esperavam-desde-2003-que-ogoverno-lula-promovesse-uma-discus/>. Acesso em 05 jul. 2011. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma critica à afirmação do óbvio. Campinas : Editora da UNICAMP, 1995. TOMMASINO, Kimiye. Os povos indígenas no Paraná: 500 anos de encobrimento. In: VILLALOBOS, Jorge Guerra (org). Geografia social e agricultura no Paraná. 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