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O GAROTO DE BOSTON
No final do século XIX, a quantidade de imigrantes que chegavam aos
Estados Unidos através do porto de Nova York, vindos principalmente
da Europa, não fazia outra coisa senão crescer. Depois que os navios entravam na boca do estuário do rio Hudson, uma das primeiras imagens
dos homens, mulheres e crianças que tinham atravessado o Atlântico
Norte amontoados em beliches da terceira classe era a da Estátua da
Liberdade, inaugurada em 1886. Um quilômetro ao norte da estátua
havia um centro de triagem, na ilha Ellis, por onde todos os recém-chegados tinham de passar.
Grande parte dessas famílias vendera todos os seus bens em suas
terras natais para pagar a passagem. A origem dos imigrantes havia mudado. Em vez de irlandeses, ingleses, escoceses, franceses, holandeses,
belgas, escandinavos e alemães dos tempos anteriores, a maioria agora
vinha do sul da Itália, dos Bálcãs e dos impérios russo e austro-húngaro.
Um desses era o pintor de paredes judeu Abraham Sarnoff, que
foi inspecionado e aprovado pelos agentes sanitários e de imigração da
ilha Ellis em 1896. Ele deixara a família na pequena aldeia de Uzlian,
nas proximidades de Minsk, na Bielorrússia, onde haviam nascido.
Abraham pretendia trabalhar incansavelmente na América até poder
pagar a passagem da mulher e dos filhos, entre estes David, um menino
de 5 anos que já revelava uma inteligência incomum.
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Também judeus, os Baline, originários da Rússia, haviam desembarcado em Nova York em setembro de 1893, a bordo do navio SS
Rhynland. Ao contrário dos Sarnoff, a família Baline veio de uma só
vez: Moses, o pai; sua mulher, Lena; e seis filhos, entre os quais Israel
Baline, de 5 anos, a quem os íntimos chamariam de Izzy e o mundo
inteiro iria conhecer como Irving Berlin, nome artístico que Israel
adotaria no futuro.
Tal como acontecia com boa parte dos imigrantes que optavam
por fixar residência em Nova York, no início os Baline foram morar
num cortiço do Lower East Side — a família toda espremida em um
cômodo de quatro por quatro metros. Dois anos após sua chegada, Izzy,
então com 7 anos, ganhava seus primeiros trocados vendendo jornais
nas ruas. Frequentava também uma escola pública, onde aprendeu inglês rapidamente.
Boa parte das famílias de imigrantes costumava não conviver com a
miséria por muito tempo. Os Estados Unidos eram a terra da oportunidade e dos empreendedores. Era só ver o exemplo de alguns europeus
que tinham vindo antes. Eles haviam estendido os trilhos das ferrovias
e os fios do telégrafo, prospectado o solo, instalado indústrias de base
e de transformação, erguido os primeiros arranha-céus do planeta e
fundado bancos. Bancos esses que financiavam os empreendimentos
mais audaciosos e que, dentro de pouco mais de três décadas, iriam
desgraçadamente estimular a maior jogatina da história no mercado
de ações.
Entre os banqueiros, o de maior prestígio e não menor fortuna era
John Pierpont Morgan, nascido em Connecticut em 1837. Raros eram
os grandes negócios do país dos quais a Casa Morgan não participava
direta ou indiretamente.
Ao apagar das luzes do século XIX, Nova York já era um dos mais
importantes centros financeiros do mundo, tendo sua Bolsa de Valores
completado um século de existência. Um novo prédio para abrigar os
escritórios e o pregão estava sendo projetado. O volume de negócios
só aumentava, graças ao magnetismo que a especulação exercia sobre a
sociedade nouvelle riche americana.
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Não apenas em Nova York o mercado financeiro era ativo. Boston,
por exemplo, era um centro importante de negócios. Foi justamente
lá que Jesse Livermore, um jovem de apenas 14 anos, começou em
1891 sua carreira no negócio de ações, anotando cotações no quadro-negro de uma sociedade corretora e recebendo como pagamento um
dólar por semana.
Jesse não se limitava a anotar os preços para que outros os vissem.
Ele os memorizava, analisava e fazia projeções futuras, não raro permanecendo no escritório até altas horas. Nesses serões, não demorou
a perceber que a análise de tendências era um dos segredos do sucesso
nas bolsas. Saber o preço do momento não tinha a menor importância. Bastava ler a pedra. O que valia mesmo era descobrir para onde o
mercado estava indo, calcular a cotação do dia seguinte, e do outro, e
ainda do outro. Era essa habilidade, uma mistura de ciência e arte, que
diferenciava os vencedores dos fracassados.
Em Boston, assim como em Nova York, havia sociedades corretoras informais, sem nenhum vínculo com as bolsas. Eram os bookmakers
do mercado, chamados de bucket shops. Essas “empresas” aceitavam ordens de compra e de venda de ações, sem executá-las no pregão. Ou
seja, se alguém quisesse apostar na alta da General Electric, por exemplo, bastava entrar em uma bucket shop, dar uma ordem de compra ao
preço de mercado e pagá-la. Se a GE subisse, o cliente recebia o lucro.
Se caísse, o prejuízo era abatido na hora da liquidação do negócio.
Além de cobrar taxas de corretagem obcenas, as bucket shops inventavam cotações. Ou seja, se sabiam que o cliente iria comprar,
mostravam-lhe um preço acima do preço real praticado nas bolsas naquele momento. Se o freguês ia vender, a cotação era artificialmente
diminuída.
Para ganhar dinheiro no mercado de ações através de uma bucket
shop, o especulador tinha de superar o mercado, o alto custo de corretagem e o “boneco”, nome que se dá a essa diferença entre o preço real
e o preço cobrado. Mas vício é vício, especular é um jogo como outro
qualquer, e as bucket shops registravam grande movimento e não menores lucros, principalmente graças aos pequenos investidores que não
tinham cadastros bons o bastante para serem aceitos pelas sociedades
corretoras filiadas às bolsas.
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Vencendo todos esses obstáculos e contra todas as probabilidades,
o jovem Livermore, ainda com rosto imberbe de criança, graças ao seu
excepcional talento como trader e à sua habilidade de fazer prognósticos,
conseguia ganhar dinheiro operando nas bucket shops, o que fazia nos
intervalos de almoço. Ganhou tanto que foi proibido de frequentá-las.
Mas aí já não importava. A conta bancária de Jesse Livermore ficou suficientemente polpuda para que ele pudesse ser aceito como cliente das
corretoras.
Volta e meia, as bolsas de valores americanas eram acometidas de surtos
de pânico. No século XIX isso acontecera em 1819, 1837, 1857, 1873
e 1893. Durante este último evento, Jesse Livermore já era um especulador ativo e firmara sólida reputação como urso. Ou seja, jogava mais
na baixa, exemplar ainda raro no mercado. Certos investidores consideravam os ursos impatrióticos e derrotistas antiamericanos.
Ao pânico de 1893 seguiu-se uma severa depressão. Os fazendeiros, além de se defrontarem com secas, pragas e tempestades de
areia, se viram atingidos por uma deflação no preço das commodities
agrícolas. Nas regiões urbanas, um em cada quatro trabalhadores não
especializados perdeu seu emprego. Milhares deles participaram de
uma marcha sobre a capital, Washington. Paralisações no trabalho começaram a pipocar em diversos estados, sendo a mais grave delas em
Illinois, para onde tropas federais foram enviadas para enfrentar os
grevistas.
Tudo isso foi música para os ouvidos de Jesse Livermore. Durante
a depressão, que durou quatro anos, ele ganhou uma fortuna vendendo
ações a descoberto, ou seja, vendendo os papéis sem tê-los, para recomprá-los mais tarde por preços inferiores.
No primeiro semestre de 1898, com quase 21 anos de idade, mas
ainda com o rosto inocente de um garoto, Livermore mudou-se de Boston para Nova York, levando consigo um formidável capital de 2,5 milhões de dólares, ganhos na bolsa. Se impondo uma disciplina rígida,
Jesse jamais entrava em pânico.
Sua fortuna lhe permitiu a realização de sonhos pessoais. Comprou
automóveis luxuosos, dezenas de ternos, só fazia camisas sob medida,
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se banhava com galões de água-de-colônia. Tinha amantes na Flórida e
na Europa.
Os Estados Unidos cada vez mais emergiam como potência mundial.
Em 1898, o governo americano adquiriu o Havaí, no meio do Pacífico,
o que lhe permitiu estabelecer uma base naval a meio caminho entre a
Califórnia e o Extremo Oriente. Sua armada já era a terceira do mundo.
Nessa mesma época, o país se engajou em sua primeira incursão
militar no exterior, declarando guerra à Espanha. O objetivo era apoiar
os revolucionários cubanos que pretendiam obter a independência da
ilha. Além de perder Cuba, a Espanha cedeu Porto Rico, Guam e as
Filipinas aos americanos.
Veio então o século XX, no qual os Estados Unidos da América
se tornariam a maior potência militar e econômica do planeta, não sem
antes passar por terríveis provações, sobre as quais a especulação desenfreada no mercado financeiro exerceu forte influência.
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