UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ANDERSON DE JESUS COSTA
O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MUSICAS DE BOB
MARLEY
SALVADOR
2014
ANDERSON DE JESUS COSTA
O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB
MARLEY
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia como requisito parcial a
obtenção do titulo de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara
SALVADOR
2014
_____________________________________________________________________________
C837
Costa, Anderson de Jesus
O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley /
Anderson de Jesus Costa. – 2014.
102 f.: il.
Orientador: Profº Drº Antônio da Silva Câmara
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2014.
1. Marley, Bob, 1945-1981. 2. Cantores - Jamaica - Emancipação.
3. Música. 4. Política. 5. Representação (Sociologia). I. Câmara, Antônio
da Silva. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título
CDD: 306.484
_____________________________________________________________________________
À pessoa que me acompanha
em meus afetos expectante e
que me faz sentir vivo:
Marina.
À minha mãe, irmãos,
familiares e amigos, que
mesmo com a distância, me
alicerçaram para chegar onde
estou.
AGRADECIMENTO
À realização dessa dissertação marca o fim de uma importante etapa de minha
vida, momento este que só se tornou possível com o auxilio direto e indireto de sujeitos
que contribuíram para a consecução desse trabalho.
Primeiramente gostaria de agradecer ao meu orientador e amigo Antônio da
Silva Câmara, que com todo a sua sabedoria e carinho conduziu meu estudo de forma
coerente para o seu produto final, e por transformar os momentos em que
compartilhamos em especiais mesmo diante de toda dureza que a vida acadêmica nos
exige.
À Marina, minha companheira de vida e luta, que floresceu em minha vida a
tão pouco tempo, mas que desde esse momento esteve ao meu lado, oferecendo o seu
amor, e sua sensibilidade, na leitura, no apoio, na análise dos dados, e na escrita, desta
forma, tornando os momentos árduos de estudo em leves e felizes. Aos meus pais
Lourdes e José Roque (in memoria), por todo o alicerce educativo e material que me
ofereceram para que eu pudesse, diante das mazelas da realidade, caminhar sob os
trilhos do estudo.
Ao nosso grupo de pesquisa no NUCLEAR, especialmente à Rodrigo Lessa,
Bruno Evangelista, Bruno Sampaio e Fernanda Faria, que com toda sabedoria e carinho
me auxiliaram nessa caminhada acadêmica.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação, aos professores que o compõem e
aos seus funcionários, em especial ao professor Clóvis Zimmermann e a Dôra, pelo
apoio acadêmico.
Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) pelo financiamento da pesquisa através da bolsa acadêmica.
RESUMO
A análise do conteúdo emancipatório das canções do músico jamaicano Bob Marley é
abordada no presente trabalho de dissertação a partir do exame da relação entre obra de
arte e suas condições objetivas sociais. Foi analisada a representação da vida cotidiana
presente em músicas que apresentam, de forma latente, um conteúdo crítico a respeito
das contradições sociais inerentes ao mundo moderno. Realizou-se uma análise estética
sociológica, tendo como base a forma e o conteúdo da expressão artística. Nesse
sentido, a seleção e análise dos álbuns e faixas, que nos debruçaremos, foi realizada
através do método de análise do conteúdo musical, que consiste no ato de analisar a
letra das canções, assim como apreendê-las enquanto síntese de um contexto estético e
social. O caráter emancipatório dessas canções é entendido aqui através da capacidade
que essas obras têm de transpor uma dupla relação: ao mesmo tempo que a música tem
em seu conteúdo estético elementos que negam as situações postas, estão voltadas a
outra realidade, projetando novas possibilidades sociais.
Palavras-Chaves: Bob Marley, Música, Emancipação, Representação, Utopia, Política.
ABSTRACT
An analysis of the emancipatory content of the songs of Jamaican musician Bob Marley
is discussed in this dissertation by examining the relationship between art works and
their social objective conditions. We analyzed the representation of everyday life
present in specific songs that show, potentially, a critical content concerning the social
contradictions inherent in the modern world. We conducted a sociological aesthetic
analysis, based on the form and the content of an artistic expression. In this sense, the
selection and analysis of albums and tracks, we will turn to, was performed using the
method of analysis of the musical content, which consists in the act of analyzing the
lyrics of the songs, as well as understanding them as a synthesis of an aesthetic and
social context. The emancipatory character of these songs is demonstrated by the
capacity that these works have to cross a double relationship: while the music takes its
aesthetic content elements that deny established situations, are directed to another
reality, designing new social possibilities.
Keywords: Bob Marley, Music, Emancipating, Representation, Utopia y Politics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................09
CAPITULO 1. A MÚSICA EM SUAS DIVERSAS FACETAS: ESTÉTICA
SOCIOLÓGICA, REALIDADE SOCIAL E MÚSICA POPULAR........................15
1.1. Por uma estética sociológica.....................................................................................16
1.2. Arte e a realidade social............................................................................................25
1.3. O emergir da música popular....................................................................................30
CAPITULO 2. INTERFACE DO REGGAE: ARTE, POLÍTICA E RELIGIÃO. 42
2.1. O berço do reggae: dilemas de um mundo subdesenvolvido...................................44
2.2. O movimento de surgimento do reggae....................................................................51
2.3. Fogo na babilônia: música reggae e capitalismo.....................................................55
3. O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB MARLEY......70
3.1. Entre a contestação e a utopia: representação da emancipação humana nas músicas
de Bob Marley.................................................................................................................74
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................96
6. REFERENCIAS.......................................................................................................99
9
INTRODUÇÃO
“O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley” faz parte de um estudo
circunscrito à sociologia da arte, que compreende que a música enquanto expressão
humana é um objeto importante para apreensão da sociedade em suas múltiplas
determinações. A música constitui uma forma de expressão humana histórica,
assumindo diferentes faces durante distintos períodos da humanidade, no entanto,
sempre evidenciando aspectos de sua relação com a realidade social. Partidos da
abordagem dialética, que concebe a realidade social moderna como uma síntese de um
processo histórico alienado, assim, estabelecendo a separação entre aparência e
essência, entendemos que há na expressão artística a capacidade de apreender o
processo real de contradição presente na realidade moderna, integrando a unidade entre
aparência e essência da realidade social.
Desta forma, é importante salientar, que não analisaremos a música a partir de
seus aspectos de recepção social1, optou-se pela abordagem “estética sociológica”2, cuja
própria obra de arte será o instrumento que torna inteligível a realidade social, sendo
esta relação estabelecida pela refiguração da realidade objetiva. Nesse prisma, a análise
sociológica da arte deve partir de seus elementos intra-estéticos – características
internas, imanente à forma e conteúdo da obra de arte –, buscando estabelecer a relação
entre os elementos constituinte da estética e seus elementos extra-estéticos – exteriores a
estética, exógena a obra de arte3 - inferindo que a expressão artística não é produto de
um processo criativo puramente autônomo, este faz parte de um processo de síntese
entre os conteúdos internos e externos a arte.
Para tanto, devemos entender que há na arte uma relação dialética entre o
conteúdo estético das produções artísticas e a realidade social em que o artista está
inserido. Portanto, compreendemos que a expressão artística, em sua forma e conteúdo,
1
Teoria da Recepção é uma teoria de análise do fato artístico ou cultural que enfoca sua análise no
receptor. Dentro dos estudos literários se origina no trabalho de Hans Robert Jauss nos anos 1960 e se
desenvolve nas décadas seguintes na Alemanha e nos Estados Unidos (Fortier 132) se inserindo em
análises das mais variadas expressões artísticas. Ver: ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e
história da literatura. São Paulo: Ática, 2009; JAUSS, Hans Robert. Pour une Esthetique de la
Reception. Paris: Gallimard, 1978.
2
Essa perspectiva de estudo da arte é utilizados por teóricos como: Lucien Goldmann, Georg Lukacs,
Theodor Adorno, etc. Ver: HEINICH, Nathalie. A Sociologia da Arte. Bauru: EDUSC, 2008.
3
Podemos cita, por exemplo, a influência da indústria fonográfica na produção das músicas na
contemporaneidade. A preensão da música contemporânea necessariamente deve passar pela relação entre
os aspectos internos a estético e a influencia da indústria fonográfica como aspecto extra-estetico que
influencia de forma decisiva para o entendimento da música nessa conjuntura. Essa influencia é algo
externo a própria obra de arte.
10
é formada por uma relação intrínseca entre a subjetividade do artista e a objetividade
vivenciada por ele no seu cotidiano.
Compreendendo a arte, agora, como uma mediação da realidade, torna-se
possível perceber que esta carrega intrinsecamente, em seus elementos estéticos, um
caráter político. O “conteúdo emancipatório” nas obras de artes está ligado à
potencialidade, contida em sua estética, de contestar o seu outro social, e ao mesmo
tempo vislumbrar, em seu caráter aparente4, o prelúdio do novo. É através do “belo
artístico”, da sua capacidade de expressão por meio de uma criação harmônica que a
arte exterioriza os conteúdos sociais. O belo artístico compreende a expressão em forma
artística dos elementos contraditórios presentes na realidade social. Isto porque a arte é
uma expressão imanentemente social, constituída em uma práxis social construída por
um sujeito que a produz a partir das circunstancias históricas vivenciadas. Importante
notar que este caráter político não é necessariamente construído de forma instrumental,
entretanto, independentemente disso, ela carrega em si contradições presentes na
realidade objetiva formadora do artista, e, justamente por isso, estas contradições
expressam-se esteticamente. É de fundamental importância compreender que apesar
desse caráter político existente na arte, ela não pode ser aprisionada, de forma
pragmática, a uma finalidade política. A arte deve ter, por essência, assegurada sua
autonomia relativa a realidade social.
A música reggae, assim como a arte, em geral, em seu curto período de
existência sempre teve uma relação muito intima e profunda com o processo de
desenvolvimento da sociedade que lhe circunda, esse vínculo pode ser percebido tanto
nos elementos intra-estéticos, quanto em seus aspectos relacionais com os componentes
extra-estéticos. Essa relação pode ser apreendida em uma análise estética sociológica
por se tratar de uma expressão eminentemente moderna, a partir da representação social
das condições objetivas presentes nos elementos da composição de sua forma e
conteúdo. Também poderá ser apreendida na maneira como os aspectos do
desenvolvimento técnico material da sociedade vigente incidem sobre o processo
criativo dessas canções.
4
A arte é aparência por sua diferença em relação à realidade, pelo caráter aparente da realidade que
pretende retratar, pelo caráter aparente do espírito do qual ela é uma manifestação; a arte é até mesmo
aparência de si própria na medida em que pretende ser o que não pode ser: algo perfeito num mundo
imperfeito, por se apresentar como um ente definitivo, quando na verdade é algo feito e tornado como é.
Ver: ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2013.
11
Nesse sentido, o belo artístico presente no reggae corresponde a dois aspectos da
modernidade: ao desenvolvimento das forças produtivas e, mais precisamente, aos
avanços técnicos, inserindo novos instrumentos na criação musical popular, adequando
a harmonia dessas canções à busca incessante pela velocidade. Os avanços tecnológicos
contribuíram, sobremaneira, para uma nova concepção de espaço/tempo da sociedade da
produção em massa; e essa nova percepção da realidade interfere no processo de
representação estética das expressões contemporâneas, transformando tanto o seu
conteúdo, quanto a sua forma.
A música reggae tem por característica fundamental partir de um conteúdo cujo
conceito intrínseco relaciona-se com os aspectos sociais que a circunscreve,
particularidade viabilizada pela mediação realizada entre a subjetividade e a
objetividade, permitindo-lhe manter uma autonomia relativa das amarras postas pela
indústria cultural. Historicamente a música, em geral, e o reggae, em específico, vem
cumprindo, principalmente na sociedade moderna de predomínio da razão instrumental,
a função de ser um dos principais meios de expressão dos sentimentos e anseios dos
seres humanos.
Diante das questões levantadas, a presente dissertação pretende investigar o
conteúdo emancipatório das canções do músico jamaicano Bob Marley, buscando
abordar a representação da vida cotidiana presente, em especial, em músicas que
apresentam um conteúdo crítico a respeito das contradições sociais inerentes ao
contexto da modernidade. Para a consecução da presente investigação, foram escolhidos
quatro álbuns que contém fortemente este teor emancipatório, sobretudo pelo seu caráter
contestatório e utópico: Soul Rebel (1970), Catch a Fire (1973), Burnin (1973) e
Survival (1979).
Frente a esse objeto, optamos pela estruturação da dissertação em três capítulos,
cada um buscando representar a relação entre particularidade e universalidade,
formadores da totalidade que compõe a dissertação. São eles: 1. A música em suas
diversas facetas: estética sociológica, realidade social e música popular; 2. Interface do
reggae: arte, política e religião; e 3.O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob
Marley.
O primeiro capítulo objetiva criar as bases teórico-metodológicas, que servirão
de alicerce para o desenvolvimento das demais etapas da investigação, propõe-se
discutir a música em sua perspectiva mais genérica e em sua mediação com o conteúdo
social, estabelecendo, desta forma, os pressupostos de formação de um estudo
12
sociológico da expressão musical, desenvolvida a partir da abordagem de elementos
centrais para a discussão moderna de sua consecução enquanto arte: as artes românticas;
a concepção objetiva da arte; a mimese peculiar à música; a música em sua forma
erudita (clássica) e popular; a indústria cultural; dentre outras questões que são
essenciais para a compreensão da música.
Em seguida, traremos para discussão a relação estabelecida entre música,
política e religião, contextualizando esse fenômeno a partir do processo vivenciado
pelos países periféricos caribenhos, dando ênfase para o caso da Jamaica, em sua
relação entre o local e o global. A formação de um contexto histórico, em meio às
contradições sociais, será relacionada com as produções musicais que emergiram na
região e da capacidade de representação da vida cotidiana na música de Bob Marley
através do seu caráter mimético5, constituindo as representações do cotidiano na arte.
Será este um espaço para discutirmos, a partir da referencias atuais sobre a música
popular a relação entre música e realidade social, ao mesmo tempo, trataremos de
aspectos peculiares e universais do elo entre indústria fonográfica e as canções do
músico jamaicano.
Dando prosseguimento ao capítulo avançaremos sobre as questões que envolvem
a relação entre música popular e política, aprofundando o conteúdo contestatório,
emancipatório e utópico presente nas músicas reggae a partir de seu caráter estético.
Devido à relação da representação da emancipação humana contida no objeto de
pesquisa da presente investigação ter relação direta com questões religiosas e raciais,
buscaremos nos apropriar da relação constituída na música e o teor emancipatório e
religioso, bem como seus desdobramentos ideológicos ou críticos. Diante dessas
questões, retomaremos os debates entre autonomia artística e as experiências realizadas
sobre essa relação entre arte e política, dando ênfase à peculiaridade que a expressão
artística deve conter ao adentrar o mundo da política.
Para finalizar a Dissertação, realizaremos a análise da obra de arte de Bob
Marley. Para execução dessa tarefa utilizaremos do método de análise de conteúdo das
letras das canções que trazem uma representação mais pulsante da emancipação
humana. Nesse sentindo, realizaremos discussões referentes ao conceito de utopia
presente na música reggae do cantor jamaicano, buscando tornar evidentes os afetos
expectantes que funcionam como impulsionadores da representação utópica presente no
5
O caráter mimético da música será discutida com maior aprofundamento no capítulo 3 do presente
trabalho.
13
reggae. A análise deve, nesta medida, aprofundar-se nos elementos constitutivos do
conteúdo emancipatório na “representação da vida cotidiana” presente na música de
Bob Marley. Tal compreensão, entretanto, se realizará a partir da apropriação ou
objetivação do caráter eminentemente social dessa obra, que será apreendido pela
compreensão das letras que compõem as músicas.
Nesse contexto analítico faz-se necessário salientar, a técnica de investigação
utilizada para a consecução da presente etapa do trabalho. Perante os objetivos da
pesquisa, tornou-se tarefa inicial delimitar o recorte necessário para o estudo do
presente objeto. A duração da carreira de Bob Marley é inversamente proporcional à sua
obra, uma intensa produção em curto espaço de tempo, durando esse período de criação
apenas nas décadas 1960 e 1970. Nessa ocasião foram produzidas dezenas de faixas que
comporão cerca de dezoito álbuns, ainda uma série de coletâneas, compactos e vídeos.
Após a sua morte, suas composições foram bastante difundidas, sendo lançados outros
álbuns, inclusive com músicas inéditas, como foi o caso do álbum “Confrontation”, cujo
disco foi lançado dois anos após a sua morte.
Qualquer estudo sobre a música de Bob Marley encontrará diversos obstáculos
para estabelecer uma seleção de canções que se torne representativa da sua produção
artística, devido à riqueza e complexidade dessas obras. A limitação de espaço/tempo na
presente pesquisa impediu que nos apropriássemos de um recorte mais amplo do
universo que constitui a produção de suas composições. Diante destas questões,
optamos pelo percurso metodológico que parte da pesquisa científica vincada na estética
sociológica, tendo como base a forma e o conteúdo da expressão artística. Nesse
sentido, a seleção dos álbuns e faixas que nos debruçamos foi realizado através do
método de análise de conteúdo musical, que consiste ao ato de: a) explicitação; b)
sistematização; c) e expressão do conteúdo de mensagens contida na canção por meio
da análise de suas letras, o que propiciou as condições necessárias para recortar os
fragmentos mais significativos de uma canção e descrevê-lo dentro de um contexto
estético e social que se adapte com o proposto no presente na pesquisa.
A análise deve, nesta medida, aprofundar-se nos elementos constitutivos do
conteúdo emancipatório na representação da vida cotidiana presente na música de Bob
Marley. Tal compreensão, entretanto, se realizará a partir da apropriação por via da
descrição dos aspectos sociais que se apresentam nas obras. Essa análise de conteúdo
musical possibilitou uma descrição detalhada dos elementos mais significativos
14
relativos ao objetivo da pesquisa dentre aqueles que compõem os quatro álbuns
sugeridos.
Após essa fase de identificação das partes fundamentais e mais ilustrativas das
músicas, partimos para a fase da análise de conteúdo musical, que corresponde à
compreensão dos elementos decompostos observando as representações miméticas que
lhes são constituintes e que remontam à objetividade material na representação estética
da arte.
Finalizadas as etapas supracitadas, iniciamos a fase de recomposição das
canções. Partindo do pressuposto de que a recomposição consiste num processo de
reestruturação das músicas analisadas que durante a pesquisa deverão ser
verdadeiramente dissecadas em distintos termos e contextos sociais. Objetivamos, desta
maneira, reconstituir a música em sua totalidade original.
Os processos de análise e produção postos e descritos foram mediados pelo
cotejo teórico das referências bibliográficas a respeito da sociologia da música, da
estética e da emancipação; subsidiada ainda, por fontes secundárias de pesquisa
alicerçadas na temática do reggae, e da obra do ícone em questão. Este método também
será subsidiado pelo estudo das condições externas que influenciam na produção
musical, o que significa que é necessário também circunscrever a produção deste artista
na sociedade jamaicana das décadas de 1960 e 1970. Desta forma, partindo do objeto
musical, e de sua análise interna, buscaremos compreender não só sua capacidade de
apontar para o mundo social, como o seu contrário, ou seja, como determinadas relações
e problemas sociais condicionaram a produção musical.
15
1. A MÚSICA EM SUAS DIVERSAS FACETAS
ESTÉTICA SOCIOLÓGICA, REALIDADE SOCIAL E A MÚSICA POPULAR
“[A música] é um só tempo social
em si mesma. A sociedade se
encontra sedimentada no seu
sentido e nas suas categorias, e é
este sentido que a sociologia da
música deve desvelar” (Adorno).
“[...] a música constitui, ao mesmo
tempo, a manifestação imediata do
instinto humano e a instância
própria para o seu apaziguamento.
Ela desperta a dança das deusas,
ressoa da flauta encantadora de Pã,
brotando ao mesmo tempo da lira
de Orfeu, em torno da qual se
congregam saciadas as diversas
formas do instinto humano.”
(ADORNO, 1963).
A música é uma das mais importantes expressões artísticas da humanidade.
Está presente, de forma significativa, em diversos espaços e tempos sociais, sendo
também objeto de estudo de muitos teóricos que se propuseram a refletir sobre as
diferentes formas de representação social na arte. Deste modo, ao definir como objeto
de pesquisa sociológica o conteúdo emancipatório das músicas de Bob Marley, tem-se
por condição imperativa a necessidade de incidir analiticamente sobre a teoria
produzida pelas ciências humanas a respeito da representação social da música.
Partindo desse pressuposto, esse capítulo tem por objetivo abordar a música
como expressão artística, salientando a sua constituição e sua relação com a sociedade,
de modo a discernir o elo entre estética e processo social no que concerne a sua
complexa gênese como arte. Todavia, salienta-se que o percurso optado para a pesquisa
é o da compreensão dos elementos estéticos em sua mediação com a sociedade,
partindo, portanto, da própria música, levantando nessa sessão os elementos de
constituição estética e seu intermédio social, tendo como pressuposto norteador a
apreensão científica/filosófica da relação entre a música e as relações sociais, que a
contém e a circunda ao mesmo tempo; buscando desvendar nela uma representação
sociohistórica, seja por via do movimento do espírito defendida pelo pensamento
hegeliano, seja pelo movimento da realidade social apontada pela “Teoria Estética” de
Theodor Adorno e Georg Lukács.
16
Dessa forma, nos interessa compreender como a inscrição do social encontra-se
presente na forma estética de um determinado gênero musical. Não obstante, não se
pretende reduzir a música a seu condicionamento social. A apreensão da relação entre
música e sociedade perpassa a análise de temáticas acerca das artes românticas; da
concepção objetiva da arte; da mimese peculiar à música; da música em sua forma
erudita (clássica) e popular e da indústria cultural; dentre outras questões que são
essenciais para a compreensão da música popular à qual se propõe esta pesquisa.
Decerto, torna-se fundamental para o entendimento da música popular produzida por
Bob Marley, a assimilação da síntese artística realizada entre objetividade e
subjetividade, tendo clareza que tal fenômeno sofre influência de processos conjunturais
relacionados ao cenário de desenvolvimento da mesma.
1.1. Por uma estética sociológica
Para a compreensão da música partimos do pressuposto dialético da totalidade,
implicando necessariamente em compreender a obra de arte ao mesmo tempo como
singularidade/universalidade que se apresenta na realização da análise como
instrumento que possibilitará a apropriação dos diferentes elementos constituintes dessa
expressão artística. Para isso é preciso levar em consideração que não se trata de um
fenômeno de caráter simples, e sim que se opera com um objeto complexo que sofre na
sua formação diversas mediações com graus qualitativos e quantitativos diversos,
embora combinados. A partir dessa conjectura, busca-se apreender nos demais capítulos
a complexidade das formas estéticas particulares de cada obra, abordando-as em seus
propósitos de diferenciação e em sua atividade de desdobramento em múltiplas formas
particulares, dentre elas o reggae.
A música é uma expressão artística que tem como caráter central o fato de ser
uma representação social que tem uma forma peculiar, sensível e efêmera em seu modo
de expressão, o que a torna na análise de hegeliana uma expressão artística romântica
(HEGEL, 1962). A arte no sistema filosófico idealista hegeliano seria a etapa inicial de
afirmação do Espírito Absoluto, sendo as artes românticas (pintura, arquitetura, poesia e
música) as que atingiriam um nível mais profundo de sensibilidade do espírito
universal, trazendo um caráter de verdade. No entanto, o desenvolvimento do espírito
absoluto só estará completo em suas etapas posteriores, com o desdobramento dialético
17
da religião e da filosofia. A expressão musical, em sua forma de manifestar-se na
objetividade concreta, apresenta um elemento importante para seu entendimento como
arte sensível, ela traz como característica que diante do seu exercício de materialização
e comunicação não se apresenta como natureza permanente, sendo objetivada por ondas
sonoras que se dissipam logo após a sua apreciação. Não está aqui, ainda, abordando-se
as formas de armazenamento da música, fruto do desenvolvimento das forças produtivas
na modernidade, mas sim da forma de expressão em si da música, em seu caráter mais
imediato e genérico, tendo como conteúdo uma mediação social. Como nos aponta F.
Hegel:
A supressão do espacial efetua-se, portanto, de tal modo que uma
determinada matéria sensível abandona o seu estado de repouso, põe-se em
movimento, sofre uma espécie de abalo por meio do qual cada parte do
corpo, até então coerente, não só muda de lugar, mas procura também
retornar ao seu anterior estado. Este estremecimento vibratório produz o som,
que é a matéria da música. (HEGEL, 1962, p.180-181).
Hegel, ao realizar a análise da música, infere que esta tem um conteúdo
subjetivo em si, pelo fato de conter uma dupla negação, que está representada tanto em
sua forma de expressão, quanto em sua recepção, propiciada pelas conexões
possibilitadas pela subjetividade, estando todo o processo ligado a conteúdos sensíveis.
Primeiramente pelo ato da música, ao exteriorizar-se, ter por conteúdo a interioridade,
que se objetiva a partir do elemento sensível das ondas sonoras, trazendo de maneira
inerente o processo de autodestruir-se espacialmente ao longo de seu percurso; e, em
seguida, pelo fato de que para a concepção das suas produções necessita-se do ouvido –
entendido pelo pensador como órgão especial que faz parte dos sentidos sensíveis –
fazendo com que só a interioridade objetivada pela onda mecânica e a subjetividade
abstrata se deixem exprimir pelo som.
A arte, em geral, e a música, em particular, constituem a forma pela qual o
espírito se torna consciente de seus interesses, diferenciando-se da natureza por meio do
movimento contraditório propiciado pelo processo da contemplação, exteriorização,
desdobramento, representando o ser – espírito - em si e para si. As artes românticas são
fundamentais nessa dinâmica ao não se apresentarem em sua exteriorização de maneira
limitada pelo senso-percepção do espírito, essas expressões realizam um duplo
movimento dialético que produzem “uma significação essencial” de sua unidade
necessária, aparecendo como manifestação sensível do espírito. Assim, a música,
18
cumpriria uma função de mediação entre o sensível e o inteligível, o finito e o infinito, o
subjetivo e o objetivo, e desta forma libertaria o pensamento por via das ondas sonoras
sensíveis. O idealismo hegeliano atribui a geração da música ao conteúdo da vida
subjetiva da alma, estando em acentuada oposição entre a livre interioridade e as
proporções numéricas6. No fluxo dessa consecução o espírito aponta a necessidade de
exteriorizar-se, visitando desta forma a realidade exterior a ele, para só depois retornar à
totalidade.
O elemento essencial para o entendimento da formação da música é o som,
sendo que ele pode a partir de sua totalidade, ou da ausência desta, constituir-se
enquanto música ou mero ruído. Constantemente estamos cercados de sons e ruídos
oriundos diretamente da natureza ou mediados pela interação humana. Para tornar
inteligíveis como tais questões estão presentes de forma imanente na realidade dos seres
vivos – sendo eles humanos ou não humanos – destaca-se a utilização por parte dos
morcegos, baleias e golfinhos que usam das informações geradas pelas ondas mecânicas
dos sons para adquirirem informações sobre o ambiente, ecolocalizando o espaço para
voar e nadar por entre obstáculos e caçar suas presas.
A elucidação dos meios que levam o som natural a transformar-se em
expressão artística, sendo faculdade de cada som ser uma entidade total, para Hegel
(1962), tem o seu epicentro no fato da canção emergir a partir do elemento elaborado
pela arte e para arte. Embora todos os sons sejam produtos da natureza, faz-se
necessário distinguir os sons que se transformaram em música, dos que se perpetuarão
pelas repetições dos processos naturais sem se tornarem em uma totalidade artística. A
consecução da síntese da expressão artística musical tem seu fundamento no artista,
resultando de um processo muito mais elaborado no curso de desenvolvimento de
transformação em sons harmônicos, sendo a beleza algo que nasce do espírito em sua
execução laboral, gerando harmonias e melodias musicais; já percorrendo a outra face,
as dos sons que não recebem o toque de composição do artista, estes não têm outras
motivações senão as próprias formas espontâneas, que faz com que se repitam guiadas
pelas condições de subsistências do próprio movimento de conformação dos diferentes
6
As proporções numéricas levantadas estão ligadas a uma concepção matemática que não se restringe ao
poder do número ser puramente quantitativo, mas inserido essa relação numérica com outras
determinações importantes de objetos, que não se constituem meramente quanto números, garantido a
análise da música a partir de toda complexidade que envolve a realidade objetiva, imersos está em
aspectos quantitativos e qualitativos.
19
fatores que constituem o complexo do sistema natural.7 Na composição da música existe
um único produto que é direto da natureza humana, a voz humana, os outros elementos
cabem ao artista constituir os meios que lhe permitiram criar sons, sem os quais ela não
poderia mesmo existir. Está presente aí um elemento que reforça que a música é uma
expressão artística eminentemente social, o nível de desenvolvimento social
circunscreverá as reais condições dos sons, embora seja necessário ter cautela para
afastar o risco do determinismo e do evolucionismo, que nos levam a inferir que as artes
modernas são superiores esteticamente a obras de períodos históricos anteriores.
Portanto, a existência desse som por si só não garante os elementos necessários para sua
constituição como expressão artística musical, não sendo algo inato ao som a presença
de unidade harmônica que lhe será conferida por meio de articulações realizadas pelo
labor humano. É por meio das relações humanas que o som recebe o seu sentido
estético, seu significado e a sua expressão, transformando-se em música.
Hegel ao expressar a sua análise sobre a música diz:
Tampoco el sonido suelto tiene sentido sino en el comportamiento y la
vinculación con otro y con la sucesión de otros; la armonía o la desarmonía
en ese círculo de vinculaciones constituye su naturaleza cualitativa, la cual se
basa al mismo tiempo en relaciones cuantitativas que constituyen una serie de
exponentes y son las relaciones entre las dos específicas relaciones que son
en sí cada uno de los dos sonidos relacionados. El sonido aislado es el tono
fundamental de un sistema, pero también miembro individual del sistema de
cualquier otro tono fundamental. Las armonías son excluyentes afinidades
electivas cuya peculiaridad cualitativa se disuelve de nuevo en la exterioridad
de procesos meramente cuantitativos (HEGEL, p. 415. 1947).8
O som musical se constitui em uma unidade duplamente contraditória por ser
composta pelo contraste de suas diferentes unidades sonoras, sendo que essas são
constituídas com um caráter de precisão e pureza gerado pela combinação antinômica
entre seus elementos formadores: duração (longo ou curto), altura (agudo ou grave) e
dinâmica (tocado mais forte ou mais fraco). Sendo assim, o som, devido a esses dois
elementos, precisão e pureza, apresenta tanto do ponto de vista da sua tonalidade real
7
Ao tratar a questão da natureza não buscamos simplificar todo o complexo de determinação que compõe
tal sistema, mas nos posicionamos a partir da perspectiva que é o homem a partir de sua capacidade
criativa que produz o belo, unindo particularidade e universalidade em um conteúdo estético.
8
Nem um som solto tem sentido senão no comportamento e na vinculação, com outro e com a sucessão
de outros; A harmonia e a desarmonia nesse circulo de vinculações constitui sua natureza qualitativa, na
qual se passa ao mesmo tempo nas relações quantitativas que constituem uma série de expoentes e são as
relações entre dois, especificas relações que são em si cada um dos dois sons relacionados. O som isolado
é um tom fundamental. As harmonias são exclusivas da finalidade eletiva cuja peculiaridade qualitativa se
dissolve de novo na exterioridade do processo meramente quantitativo. (HEGEL, p. 415. 1947) (tradução
do autor)
20
quanto de sua duração, relações diretas com outros sons, sendo justamente essas
relações o elemento de sua precisão real, diferenciando-o dos outros, opondo-o ou
fundindo-o com eles, formando uma totalidade gerada pela subsunção de um som pelo
outro, criando um todo harmônico. (HEGEL, 1962)
A própria diferença entre os instrumentos musicais na execução da sonoridade
se constitui, para Hegel, como diferença nas propriedades qualitativas hierárquicas da
formação da obra. Para o autor os sons produzidos tendo como medida uma direção
linear (instrumentos de corda e de sopro) tem caráter essencial, como subordinada a eles
estão os instrumentos de superfície plana (tambor, bombo, timbale, harmônica). Dentre
esses instrumentos a voz humana ocupa posição de excelência, por reunir as
propriedades dos instrumentos de cordas e dos de sopro, sendo, em parte, uma coluna de
ar que vibra, e funcionando em parte, graças aos músculos, como uma corda esticada, o
que lhe possibilita uma tonalização que se adapta a todos os instrumentos. Mas é
necessário que, diante da multiplicidade de instrumentos na criação musical, possam ser
realizadas intercalações complementares entre estes de acordo com os caracteres
particulares que precisam ser harmonizados entre si, de forma que, esses progressos e
mediações possam ser providos de sentido.
Nesse sentido, a música apresenta-se como uma expressão artística que tem a
sua forma de exteriorização produzida pelo movimento vibratório dos corpos – som –
dispostos no espaço. É a sucessão das vibrações que formam os elementos que
estruturam uma composição, sendo essa, estruturada pelos movimentos do tempo e
pelas durações desses movimentos dos corpos sensíveis. O tempo em que se efetuam as
vibrações de um corpo no caso da música tem fundamental importância para sua
produção, é a forma dessa sucessão temporal que demarcara o ritmo. A composição dos
tempos das notas musicais em cada som particular deixa-se fixar em parte como uma
unidade de uma totalidade. Os processos pelos quais os sons vão se sucedendo no
espaço em determinado período temporal, a substituição de uma nota por outra, que por
sua vez é suprimida por outra seguidamente, constitui uma sequência regular e uma
duração indiferenciada, instaurando dessa maneira o alicerce da música, no entanto, tais
combinações e variações não são o efeito de uma síntese arbitrária, mas estão sujeitos,
por via da criação humana, a leis definidas e que formam a base necessária de tudo o
que é musical (HEGEL, 1962).
Essa combinação complementar entre os sons não tem caráter linear, eles
formam intervalos que se configuram em diferença de altitude entre duas notas, sendo
21
então classificados quanto à simultaneidade ou não dos sons e à distância (altura) entre
eles, deste modo, formando unidades de medida de intervalos, são o tom e o semitom.
Entre essas combinações complementares, os sons têm necessidade de produção não só
da sua tonalidade, mas é preciso que este tenha também precisão. Os sons e números
nessa combinação têm relação intrínseca, que interfere diretamente na precisão da
execução sonora. A onda sonora está na base da variedade, impulsionado por um corpo
em vibração e se desenvolvendo no tempo, ela é produto de um determinado número de
vibrações num dado intervalo de tempo. Decerto que essas relações não são compostas
de correlações simples, os sons que tem um acordo direto, sem nenhuma oposição ou
diferença audível, são os que têm as vibrações em suas relações numéricas da maior
simplicidade, paralelamente o som cujo acordo não se encontra realizado desde o
princípio resulta de proporções concordantes mais complicadas (HEGEL, 1962).
Assim, a canção para se formar enquanto totalidade precisa determinar
precisamente o tempo, submetendo o seu compasso e ordenamento, a sua sequência,
segundo as regras destas cadências. No entanto, esse tempo que se configura como
elemento essencial desse compasso, é um tempo histórico, que está diretamente ligado
com as condições objetivas em que estão inseridas socialmente tais composições. O
cotidiano entendido como as condições que as pessoas levam a vida em um período
histórico é uma variável importante para formação da música, mas esse cotidiano não
deve ser compreendido como algo simplificado e homogêneo, e sim com toda a sua
complexa gama de possibilidades que a própria história propicia. Aponta-se aqui um
elemento genérico na música a partir de seu caráter social, muito embora se faça
necessário ponderar que em meio a essa unidade referente ao ritmo de vida estão
presentes diversos fatores (subjetividade, classe, cultura, entre outros) que faz com que
a música em seus diferentes elementos de constituição não forme um conjunto similar.
Portanto, não se tem por objetivo ao abordar a categoria de tempo histórico na
composição da música, aprisioná-la à questões objetivas, tornando-as obras de arte
determinadas por estruturas mecânicas da realidade histórica, nem muito menos tornálas uma simplificação de um determinado gênero musical, até porque, como já fora dito,
o desenvolvimento da música não se dá de maneira homogênea, e sim por via de
múltiplas variáveis contraditórias. Essa complexidade que envolve a música nos traz
elementos que tornam evidentes os processos de desenvolvimento e constituição da
peça artística musical durante as diversas épocas, influenciada pelas condições
objetivas.
22
Outro elemento essencial para o entendimento da música é o compasso,
formado pela repetição uniforme da mesma unidade de tempo de um som, determinando
a regularidade do pulso, estabelecendo na canção uma determinada unidade de tempo,
formador do passo de desenvolvimento dos sons, servindo de regra para a interrupção
acentuada da sequencia anteriormente indiferenciada do tempo como a duração
igualmente arbitrária de tons isolados, sendo utilizado nessa sequência continua para
formar uma unidade determinada e geradora de uma linha de tempo e sequências, que
elas por si só não possuem. O compasso como um elemento físico de organização dos
corpos mecânicos, estabelece, a partir da sua forma, o momento que ela vai terminar ou
fazer uma pausa. Essa antecipação se incorpora à percepção de sentimento subjetivo
formando uma temporalização, por exemplo: um crescendo musical pode criar uma
expectativa em relação ao máximo de intensidade que ele vai alcançar, criando uma
sensação de tempo e de sentimentos, pois temos uma referência auditiva de limites de
intensidades sonoras, que estão ligados aos sentidos humanos.
Em seus escritos sobre a música Lukács (1982), apontava que na abordagem da
política de Aristóteles já despontava a relação entre a música e os sentimentos,
observando que os ritmos e melodias são muito próximos, servindo em muitos
momentos como cópias para a verdadeira essência da raiva e da ternura, assim como
para a coragem e a moderação, e os seus opostos. O artista, a partir desses elementos
que configuram – tempo, intervalo, melodia, compasso, ritmo – a música e sua
liberdade em organizá-los, compõem e forma uma totalidade, inserindo nela uma
harmonia geradora dos sentimentos mais sensíveis captados pelo ouvido. O simples fato
de o compositor antecipar uma nota acentuando a batida induz a música a ficar
carregada em um momento de maior tensão, fazendo com que o ouvinte vibre com tal
mudança, ou ainda, quando as notas agudas têm curta duração e torna-se repetitiva,
causando um sentimento de urgência, alvoroço, desespero e medo. Um exemplo que
pode deixar a ligação entre música e sentimento mais evidente é a forma como são
utilizadas nas trilhas sonoras e nos jogos eletrônicos para potencializar ou formar junto
ao cenário o florescimento de determinados sentimentos que o momento exige do
espectador ou do jogador; ou mesmo quando são utilizados para marcar o gênero –
terror, humor, ação – da película fílmica ou do game, ou ainda o despertar de
sentimentos provocados pela execução de um Hino Nacional, sentimos dessa forma que
23
há um “caminhar” na música9.
É a partir desse movimento imanente que a música adquire a possibilidade de
tornar-se concreta, constituindo-se pelos sons como sonoridades regidas pelas leis da
harmonia. Desta maneira, um corpo em movimento de vibrações sonoras dá origem a
uma figura temporal, que emite sons que variam com as suas propriedades físicas, com
duração maior ou menor no número de vibrações que ele executa durante um intervalo
de tempo determinado, transformando-se em um todo de fins artísticos.
Ainda sobre esse aspecto Adorno (1996) reflete que é na variedade dos
encantos e da expressão, que comprova sua grandeza e sua força que conduz à música a
síntese. Sendo que para o autor, este processo não somente conserva a unidade da
aparência, como a protege do perigo de brotar para a tentação do “bonvivantismo”.
Todavia, em tal unidade, do movimento dialético dos momentos particulares com o todo
na criação, fixa-se a imagem de uma situação social na qual esses elementos particulares
seriam mais do que mera aparência. No mesmo percurso de análise, Lukács (1985), ao
abordar a questão da gênese da música propõe que o desenvolvimento desta está ligado
a três fenômenos do ritmo guiados pela ontologia do trabalho humano:
[...] Primero, los movimientos rítmicos de seres vivos, que hemos mostrado
ya en el reino animal; éstos son hechos biologicamente fundados -con
independencia de que se basen en reflejos incondicionados o en reflejos
condicionados bien fijados-, los cuales facilitan la adaptación al mundo
circundante y hacen más eficaces las reacciones del animal a dicho mundo;
pero respecto de la totalidad de su vida son episodios sin consecuencias
decisivas. Segundo, el ritmo que nace en el trabajo: éste muestra el sello de
aquel salto cualitativo que distingue el trabajo como tal de toda reacción
meramente biológica al mundo externo. Pues por obra de este ritmo se
organiza conscientemente un proceso espacio-temporal en interés de una
finalidad puesta por el hombre, la facilitación del trabajo y la intensificación
de su efecto. [...] La fase más desarrollada del canto de trabajo muestra ya
claros indicios del tercer estadio, el estajeo plenamente mimético. Este
momento es aún más llamativo em los demás terrenos de aplicación de la
música en todas las sociedades primitivas, ante todo em la danza. Pues la
danza es desde el principio de caráter evidentemente mimético, y
precisamente como refiguración de las ocupaciones vitales más importante
del hombre primitivo. (LUKÁCS, p. 19, 1982)10
9
Esse é o fenômeno da pulsação musical que se caracteriza pelo “pulso” que a canção tem, uma batida
regular que marcar o seu passo.
10
[...] Primero, os movimentos rítmicos de seres vivos, que temos mostrado já no reino animal; estes são
fatos biologicamente fundados - com independência de que se baseam nos reflexos incondicionados ou
nos reflexos condicionados bem fixados-, os quais facilitam a adaptacão no mundo circundante e fazem
mais eficácia nas reacões do animal em seu mundo; mas respeito da totalidade de sua vida são episódios
sem consequências decisivas. Segundo, o ritmo que nasce no trabalho: este mostra a marca daquele salto
qualitativo que distingue o trabalho como tal de toda reacões meramente biológica no mundo externo.
Pois por obra deste ritmo se organiza conscientemente um processo espaço-temporal no interesse de uma
24
A abordagem, do autor, é bastante interessante à medida que busca desvendar a
relação entre a música e realidade social objetivando o seu caráter mais genérico. No
entanto, devido à própria escassez de informações históricas sobre as origens da música,
a tese de Lukács apresenta o limite de um enunciado filosófico sobre a relação
ontológica entre os dois fenômenos sociais. Devido a toda complexidade que envolve o
processo de criação humana tal tese, justa do ponto de vista lógico, é imprecisa, em
função do desconhecimento da própria história da humanidade em seus primórdios. Por
outro lado, temos diversas experiências históricas registradas que vinculam a música às
práticas religiosas, o que não invalida a formulação de Lukács, mas não a reforça.
Preservando as necessárias precauções para não cair em uma exacerbação do
sistema ontológico do trabalho, faz-se necessário realizar as ligações entre conjuntura e
música, tendo por objetivo estreitar essa relação, aproximando-se do processo da
construção musical. Desta forma, debruçar-se sobre os conteúdos históricos que
compõem cada período, fazendo o exercício de relacioná-las com a música, é algo
fundamental para a compreensão da totalidade desse fenômeno. Por exemplo, na Idade
Média o teocentrismo e os sistemas de feudos agrários definiam a dinâmica de
funcionamento do cotidiano histórico guiada pelo idílico, pelo pensamento religioso
conduzido pelo tempo do sol, nesse contexto, grande parte das canções estava ligada
diretamente à cadência, ao ritmo, e à regularidade, elementos expectantes do paraíso
angelical, ou aos rituais politeístas de culto e celebração tradicionais conduzidas por um
tempo “espaçado” e “tranquilo”. As músicas nessa época estavam conectadas a sons da
natureza, no compasso mais lento, como os das músicas medievais dos cantos
gregorianos ou dos trovadores. Ou ainda, exemplificada pela forma que a música é
representada pelos gregos a partir da Republica de Platão, que negava os modos
musicais “queixosos” como os moles, proibindo as flautas e os instrumentos de muita
corda tangidos com os dedos, não constituindo a canção uma utopia, mas sim um
instrumento utilizado pelas Pólis Gregas para disciplinar os seus cidadãos incitando-os
tanto para salvaguardar o Estado, quanto para manter a ordem interna dos regimes
finalidade posta pelo homem, a facilitacão do trabajo e a intensificação de seus efeito. [...] A fase mais
desenvolvida do canto de trabalho mostra já claros indícios do terceiro estágio, o estagio plenamente
mimético. Este momento é mais forte que os demais terrenos de aplicacão da música em todas as
sociedades primitivas, antes de todo na dança. Pois a dança é desde o princípio de caráter evidentemente
mimético, e precisamente como refiguracão das ocupacões vitaes mais importante do homem primitivo.
(LUKÁCS, p. 19, 1982) (tradução nossa).
25
implantados, afastando, desta, forma os prelúdios de outra realidade. (ADORNO, 1996).
Adorno (1996) ao analisar tal relação no caso grego, defende que todas essas
refutações representadas pelo sistema Platônico para a música fazem parte do progresso,
tanto do ponto de vista social como sob o aspecto estético específico. Sendo que para o
autor, nos atrativos proibidos, entrelaçam-se a variedade do prazer dos sentidos e a
consciência diferenciada. Os aspectos censurados entram desta forma na grande música
ocidental, elevando o prazer dos sentidos como passagem para espaço da dimensão
harmônica.
Prosseguindo, no sentido apontado por Adorno, a eclosão da música moderna
tem outro cenário social. A sociedade moderna marcada pelas modificações profundas
na dinâmica social, tendo sua própria existência orientada por transformações
produzidas pelo ritmo da industrialização em massa, e pelo surgimento da cidade
moderna, será o ambiente de florescimento da canção moderna. A dinâmica do cotidiano
nesta sociedade passa por um processo de aceleração, trazendo à tona o domínio do
estilo polifônico ligado a combinações de sons e melodias simultâneas, regada a
dissoluções atonais como a produzidas por Bach, que se tornaram possíveis pelas bases
produzidas pelas mudanças propiciadas no seio da sociedade moderna (PAHLEN, s.d.).
1.2. Arte e a realidade social
Diante desses elementos torna-se possível perceber o quanto a música em seu
escopo está em constante mudança durante todo o curso da história humana, sofrendo
transformações geradas por variados fatores interna ao sistema musical – ritmo,
melodia, forma, origem, interpretação, entre outros, que formam um conjunto
indissociável em sua totalidade – ou externos a elas – o desenvolvimento da técnica, da
tecnologia dos instrumentos musicais, da indústria fonográfica, do gosto. Não há dentro
desse processo de desenvolvimento como apreender a música sem realizar um esforço
de compreensão da sua relação com a sociedade, de sua singularidade artística como
expressão social de um dado período histórico, mesmo tendo em vista que ela traz
eminentemente nesse movimento dialético as suas próprias contradições, evidenciadas
pelo processo de representar traços de uma época e ao mesmo tempo transcendê-la,
universalizando-se e tornando-se atemporal. Essa faculdade teria sua gênese no fato da
arte ter uma autonomia em relação às condições objetivas de existência, muito embora
26
seja preciso afirmar que essa liberdade, ao contrário do que alguns estudiosos da arte
afirmam, não é absoluta, e sim relativa, havendo ligação entre arte e sociedade, sendo
ela, produto não só da capacidade criativa do artista, mas de uma mediação entre as
condições subjetivas e objetivas.
Ao mesmo passo, esse aspecto imanente à obra, possibilita que ela não se
constitua como um reflexo direto da realidade social. Ainda que essas obras sejam
também uma objetivação do conteúdo social, elas apresentam independência relativa em
face dessa realidade, o que lhes possibilitam a capacidade de transcender o espaço e o
tempo. Diante de tal situação, Lukács (1982) aponta que a música, em sua refiguração
com a realidade por via da mimese, não se configura nesse processo em uma relação
mecânica de reflexão, como se fosse uma cópia direta, tal qual um reflexo em um
espelho, a ausência de semelhança entre a obra de arte e o mundo objetivo não pode
servir de prova contra a refiguração desta mesma realidade, para o autor, quanto mais se
reflete a essência, tanto menos se poderão apresentar questões sobre a semelhança de
forma imediata. Desta maneira, ao mesmo tempo em que a arte não deve ser a fotocópia
do modelo da vida exterior, ela conserva em si, elementos que comprovam, em sua
concretude, o desenvolvimento humano. Uma circunstância que evidencia muito bem
tal questão é o próprio desenvolvimento da técnica, como o avançar dos instrumentos
eletrônicos na modernidade, que trouxeram uma nova dinâmica na criação e adaptação
para as condições de composições musicais. A mimese da interioridade do artista, não
deve ser a síntese de uma interioridade conformada com as diversas situações externas
que as desencadearam, de tal modo, limitando a criação artística aos aportes do mundo
ao qual circunscreve o artista11.
Vázquez (2011), ao analisar a representação da arte a partir da teoria marxista,
nos traz alguns elementos para a compreensão da autonomia relativa ao ponderar que
não cabe à obra de arte ficar presa a nenhuma representação que a restrinja a uma regra
particular, é preciso que ela seja livre:
11
Em paralelo a análise de Lukács, mas levando em consideração o período histórico que o autor
produziu a sua teoria sobre as expressões artísticas, dentre elas a música, faz-se necessário ponderar sobre
os contornos estéticos que vem tomando as artes modernas, para não incorrer o risco de cair em um
anacronismo ao não analisá-las em sua completude. Tanto as artes modernas e, por conseguinte as
expressões contemporâneas tem se afastado das possibilidades de refiguração que se encontravam nas
artes clássicas, buscando cada vez mais se apresentar em vez de representar algo. Ao mesmo passo, não
podemos cair no fatalismo e colocar a teoria lukacsiana no anacronismo, pois o que estamos apontando é
uma tendência das artes contemporânea, até porque não podemos considerar que há uma ruptura completa
com a refiguração nos tempos atuais.
27
A arte é uma esfera autônoma e todas as tentativas que se façam para reduzila a outra – seja esta a religião, a economia ou a política – não terão por efeito
senão o cancelamento do que existe na arte de qualitativamente distinto,
precisamente isto que Marx via, na arte grega, fugir ao seu condicionamento
social [...] A arte é uma esfera autônoma, mas sua autonomia só se dá por, em
e através de seu condicionamento social. (VÁZQUEZ, pág. 92, 2011).
Ao mesmo tempo as correntes teóricas das ciências humanas que analisam a
obra de arte à luz dessa outra faceta, emprestando-lhe uma autonomia absoluta sobre a
realidade, serão criticadas por Lukács (1982) como pensamentos fetichizantes:
[...] estas filosofias e tendências artísticas ao isolarem as reações do sujeito de
seu concreto mundo circundante e fetichizá-las numa plena autarquia,
deformam e amputam a expressão das mesmas, separando-as de sua base, de
seu autêntico conteúdo, reduzindo-as a um solipsismo privado no qual –
apesar de todas proclamações expressionistas - , em vez de ultrapassar
intensificadamente a realidade, se empobrece em comparação com ela,
empalidece e perde intensidade”. [...] “a largura, profundidade, amplitude de
toda expressão na vida e na arte dependem da largura, profundidade e
amplitude do mundo recolhido (interiorizado) no sujeito como material a
reflexão, o qual determina a expressão de modo imediato e mediado.
(LUKÁCS, p. 07, 1982).
A relação entre arte e sociedade é uma temática bastante discutida por teóricos
das ciências humanas, trazendo, como já percebemos logo acima, uma série de
divergências, mas o caminho que se opta por percorrer será o da consecução ocasionada
pela síntese mediada entre esses dois extremos. Nesse sentido, mesmo analisando a
música como fenômeno artístico imerso no sistema filosófico idealista, Hegel (1983)
nos traz importantes contribuições para a compreensão da problemática relacional entre
arte e sociedade, o que pode nos apontar pistas para o entendimento da música, como
objeto sociológico.
Hegel considera que há na arte uma relação entre o universal e o particular
como forma singular de experiência, de apreensão da verdade. Para ele, a perspectiva
daqueles que veem na arte o resultado exclusivo dos esforços de gênios se equivocam,
uma vez que a arte é produto da cultura de sua época. “O grau de complexidade das
artes estaria relacionado com a menor ou a maior inserção do artista na própria cultura
universal” (CÂMARA, 2007). Mesmo compreendendo a arte como produto do espírito
humano, portanto rico em interioridade, Hegel não perde de vista que o espírito se
apropria da forma de existência exterior para trabalhar o objeto artístico (IDEM, 2007).
A base fundamental que subsidiará a realização dessa síntese estética será o
28
artista como sujeito histórico. Todas as mediações necessárias ao processo criativo
ocorrerão no interior das múltiplas determinações – capacidade de sentir, de refletir, de
criar - que formam o criador. A análise de Marx (2008) ao tratar da formação do sujeito
histórico, apresenta alguns pontos de intersecção que podem auxiliar na compreensão da
relação entre subjetividade e objetividade na produção artística:
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre
vontade, em circunstancias escolhidas por eles próprios, mas nas
circunstancias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado.
A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como
um pesadelo. E mesmo quando estes parecem ocupados a revolucionar-se, a
si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente
nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu
auxílio os espíritos do passado (...). (MARX, p. 207-208, 2008).
Guardando as possíveis precauções, para não correr o perigo de ser mecanicista
ao expandir tal análise a questões referentes à arte, preservar-se-á a utilização de alguns
aspectos da abordagem realizada pelo autor. Somente será empregada aquela dimensão
que pode ser facilmente relacionada na interpelação das perspectivas que utiliza o artista
na confecção da obra. Marx ao delinear o que conformaria o sujeito histórico incide
justamente sobre a autonomia que o ser humano tem na realidade social de produzir e
transformar sua própria existência, mas, ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato
de que ao executar tais tarefas, este não o faz sem levar em consideração os elementos
que os circunscreve socialmente, inclusive delimitando a sua capacidade criativa. Este
princípio pode ser transferido à arte, em geral, e à música, em particular, na medida em
que o artista, mesmo em sua singularidade, configura-se como um sujeito histórico e
principal elaborador dos elos de intermediação que compõe a obra de arte. Para a teoria
marxista, o homem é um ser social formado por um conjunto de relações sociais. Os
indivíduos se agrupam por interesses e aspirações comuns, mesmo sem disto ter
consciência, formando assim as comunidades humanas que chamamos de classes,
povos, nações ou sociedades.
Um elemento fundamental que propiciará uma melhor explicação de tais
intermediações será a interpretação da música em sua relação com a sociedade
levantada por Lukács (1982). Para o mesmo, o fato de que na vida, não há como o
sujeito histórico demonstrar e aplicar de forma imediata e total, as impressões que se
tem da própria realidade, dos acontecimentos vivenciados, senão de maneira mediada,
sendo essa realizada por meio da representação mimética – principalmente realizada
29
pela música – das impressões objetivadas pela emoção geradora do sujeito criador da
representação por via de uma catarse emocional. O ato de transformar passado, presente
e futuro em um mesmo momento vivenciado choca-se com a objetividade do tempo
concreto que existe em união do espaço com a matéria em movimento, e perde seu
caráter, seu poder subjetivo. Na música, há a separação do mundo das impressões,
portanto, subjetivo, do mundo externo/objetivo que as geram e essa separação concede
uma “aura” de autenticidade à interioridade, quando esta é compreendida de modo
subjetivista, como se não fosse gerada a partir do mundo sensível, essa interioridade
fecharia as relações humanas em um universo próprio, ou seja, tornaria a música em
mera expressão dos sentimentos humanos internos e isolados. Nesse sentido, Vázquez
(2011) pondera:
Para evitar este equívoco, a obra musical deve ser compreendida como uma
unidade dialética composta pelo ser da obra e a realidade social na qual está
inserida, sendo que a autonomia artística se faz presente pelo fato de que toda
a complexa trama de elos interpostos tem de passar pela experiência singular
do artista como individualidade criadora (VÁZQUEZ, pág. 94, 2011).
A relação entre subjetividade e objetividade na música é explicada por uma das
características fundamentais e peculiares da expressão artística, que lhe diferencia em
essência das demais artes, corresponde à constituição de uma mimese própria. A música
objetiva reproduzir a vida interior do artista, ou seja, seus sentimentos e emoções, nessa
perspectiva, o objeto da reflexão musical é a interioridade humana, a vida emotiva dos
indivíduos. No entanto, essa interioridade não existe como esfera independente das
experiências humanas no mundo sensível, externo. Essa interiorização é o resultado da
evolução histórica-social da humanidade. Os sentimentos como elementos da
interioridade humana são gerados a partir da interação do ser humano com o mundo
externo que o cerca, e somente a partir desse movimento entre subjetividade e
objetividade, os sentimentos poderão influenciar decisivamente na vida humana, logo
esses sentimentos são apenas – no sentido quantitativo e não qualitativo – uma parte da
complexa interioridade humana. (LUKÁCS, 1982)
O mundo externo com sua estrutura e sua velocidade não consegue por
obstáculos aos sentimentos que florescem na música. No entanto, os efeitos do mundo
externo não são eliminados, haja vista que são por meio da interação do homem no
mundo externo que se constituem as impressões, desencadeando os seus sentimentos
30
interiores. Essas obras de artes devem ser apreendidas a partir de sua capacidade de
transpor essa dupla face: ao mesmo tempo em que a música tem em seu conteúdo
estético elementos que representam situações já postas, elas vislumbram outra realidade,
projetando outras possibilidades sociais. Bloch (2005) incorpora a esse conteúdo social,
presente na música, a capacidade que essa tem de ultrapassar os limites da realidade
presente sendo impregnada de conteúdo antecipatório e dinâmico. Não obstante essa
característica, a música será compreendida a partir do pressuposto dos seus aspectos
estéticos, objetivando a beleza, construída pela mediação entre intuição (subjetividade)
e fruição da refiguração da realidade por meio dos sentimentos. (BLOCH, 2005).
1.3. O emergir da música popular
A relação entre objetividade e subjetividade é o ponto de partida para
compreender-se a música popular, vista como uma vertente do atual momento de
desenvolvimento da música moderna. Dentre os fatores que vieram influenciar a
concepção de música que se detém na contemporaneidade, o fenômeno da indústria
cultural e as suas consequências é fundamental para compreender como imposições da
reprodução capitalista agiram sobre o modo de fazer arte, no caso específico compor
música popular nos países periféricos.
Na base desse fenômeno está o processo de modernidade fomentada pelos
arroubos estruturais da sociedade de classe capitalista. A modernidade formada pela
explosão de fenômenos guiados pela nova lógica produtiva da indústria capitalista vê-se
impulsionada pelo salto do crescimento demográfico, que empurra cada vez mais
habitante para os centros de funcionamento da nova ordem social, as cidades urbanas
modernas. Os habitantes afluem a esses espaços sedentos por trabalho e entretenimento,
como produtores e consumidores. Diante de tais questões a modernidade é classificada
por Adorno por meio da fetichização da obra de arte, gerada pela apropriação da
indústria cultural das expressões artísticas, transformando o seu valor de uso em mero
valor de troca, criando uma etapa de consciência artística nas massas caracterizada pela
negação e rejeição do prazer de forma plena. Esse fenômeno é exemplificado por
Adorno em sua análise a partir da decadência do gosto musical na sociedade moderna.12
Nessa acepção, a música, na sociedade moderna de forma geral, é submetida à condição
12
Ver: ADORNO, Theodor W. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011.
31
de mercadoria. Assim, segundo Adorno (1989):
[...] o ideal musical é [...] escrever para todos e para ninguém, ou seja, deverse-ia escrever música como se ela fosse escrita para si mesmo e por si só, mas
ao mesmo tempo não se contentar com o fato de que ela seja então, de novo,
ouvida apenas por um círculo de especialista. (ADORNO, 1989, p. 462).
Na sociedade moderna, a problemática da criação artística é fruto da produção
em massa realizada pela indústria cultural, que impõe uma mecanização e padronização
da obra, tirando a autonomia da arte. São empregados milhões de dólares nessas
indústrias para que possam inventar métodos de reprodução capazes de criar e difundir
de forma massiva gostos padronizados. Decerto que a indústria cultural, ao visar a
produção em série e a homogeneização, emprega técnicas de reprodução que sacrificam
a distinção entre o caráter da própria obra musical e do sistema social. Todavia, se a
técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, para Adorno, devido
ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder é arquitetado pelo poder dos
economicamente mais fortes na sociedade. Segundo Adorno (1996), a indústria cultural,
ao almejar a integração vertical de seus consumidores não apenas adapta seus produtos
ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo, trazendo
desta forma, todos os elementos característicos do mundo industrial moderno para ditar
o conteúdo e a forma das obras de arte (ADORNO, 2010).
Ainda, nessa mesma perspectiva, o autor afirma “Ao invés de entreter, parece
que tal música contribuiu ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da
linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação.” Para Flo Menezes
(2009), a produção musical na sociedade moderna tem por característica o fato de que o
tempo das elaborações se encontra deslocado, fazendo com que tais produtos se tornem
de caráter excêntrico, disforme e não condizentes com as necessidades triviais do
consumo de massa. Neste sentido, a nova produção cultural atua na superestrutura
social, e tem como função o entretenimento dos sujeitos sociais limitando a sua
capacidade de refletir criticamente. Desta maneira, a indústria cultural empobrece o
conteúdo estético da música interferindo na forma e conteúdo das composições para que
elas possam ficar submetidas à lógica do mercado, do consumo e do gosto.
[...] o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade
32
encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma
sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria
dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena
(ADORNO, p.9, 2010).
Em sua análise da era da reprodutibilidade técnica moderna Benjamin, nos
aponta outros contrapontos que devem ser levados em consideração sobre a relação
entre obra de arte e indústria cultural, reduzindo o pessimismo adorniano, ao levantar
que nesse processo dialético a indústria cultural desponta também como possibilidade
para as massas de acesso às produções musicais antes restritas a “alta cultura” 13. A
transformação da arte em produto específico das relações de produções é viabilizada
pela revolução tecnológico-industrial, que permitiu promover a reprodução em série da
obra de arte. Vivemos a era da reprodutibilidade técnica da arte e sua transformação em
mercadoria (BENJAMIM, 1975). Esse potencial caráter de expansão que a indústria
cultural propicia não pode ser avaliado de forma fatalista, acabando por transformar as
características negativas em um centro excessivo, convertendo os indivíduos em
autômatos conduzidos por uma engrenagem central. Desta forma, realizaremos uma
análise mecanicista da relação entre indústria cultural e música, é preciso compreender
tal associação de forma dialética, apreendendo na indústria cultural tanto o seu espectro
ideológico, condizente com a sociedade de classes capitalista, exercendo desta forma o
seu impacto na padronização da obra de arte; quanto em suas contradições internas,
deixando emergir da configuração do fenômeno os meios que a própria ideologia
permite o seu questionamento, apresentando também conteúdos e singularidades que
lhes escapam ao controle, abrindo espaço para os seus próprios elementos de superação.
O empobrecimento da estética musical estaria relacionado à conformação da
melodia, os seus ritmos e todas as suas partes, ao ritmo repetitivo do compasso
determinado pela lógica do mercado determinado pela indústria fonográfica. Diante de
tal fenômeno, a música torna-se monótona, inexpressiva, sendo consequência da
redução do movimento mais ou menos livre. Mesmo realizando tais críticas, para
Adorno, é, ainda na obra de arte, em especial na composição musical, que se preserva
uma pequena área de verdade, esta não se encontra de todo destruída pelo inevitável
avanço do sistema capitalista e de sua ideologia. Para o autor, somente a estética, e mais
especificamente a música, preserva ainda a utopia de um mundo melhor, um potencial
13
Alta cultura é uma categoria utilizada por Walter Benjamin para definir a cultura das camadas mais
abastadas de uma sociedade, sendo estas, durante um grande período, privilegiado no acesso as artes.
Podemos citar como exemplo o acesso restrito as músicas eruditas no período renascentista, cujo acesso a
essas obras estavam circunscritos aos grandes teatros ou aos bailes da aristocracia.
33
crítico do passado e do presente por via de sua negatividade da nova música. Para
chegar a tal consecução, a nova música deve negar o tonalismo 14, por este ter se
transformado pela indústria cultural em uma convenção inibidora, dado que nele o
universal não mais se encontra em relação dialética com o particular (FREITAG, 1990).
Uma vez que o universal e o particular não podem mais ser reunidos
arbitrariamente, “a tonalidade também não pode ser restabelecida, como às
vezes se presumiu”.12 Ao contrário, ela tem que ser negada naquilo que
possui de mais ilusório, de mais falacioso, pagando a própria culpa pelo que é
repressiva, pelo que agrida ao sentimento individual. Portanto, deve-se
contestar a própria noção de uma harmonia pré-estabelecida entre o universal
e o particular, em nome de uma situação que não quer mais o ilusório, nem
tampouco a mentira que decorre do escamoteamento das diferenças
específicas e das contradições reais, por meio da ideia de ajuste da tensão, de
uma harmonia conciliatória. Tal pretensão, lembra Adorno, faz-se “cada vez
mais ideológica quanto menos a realidade propicia ao individual através do
universal o que é prometido ao individual e o que ele mesmo promete.
(Adorno, T.W. p. 154,).
Entretanto, vale dizer, Adorno só admite esse caráter de negação emancipatória
às composições eruditas da vanguarda avant garde15, embora estas não se mostrem tão
acessíveis e compreensíveis às massas. Entusiasta do dodecafonismo de Arnold
Schoenberg, com sua sonoridade excêntrica, Adorno considera que todas as inovações
produzidas pela indústria de massa, entre elas a música popular, trata-se de pura
standardização, levando-o a enquadrar a forma, estilizar o conteúdo, fracionando suas
partes de maneira que estas adquiram significado independente do todo, isto é, tenham
um sentido em si, separado da totalidade da forma. A música popular para o autor é
manipulada por aqueles que a promovem de tal maneira que seus ouvintes, ao ouvi-la,
enquadram-na em estruturas subjetivas estereotipadas pré-existentes, de forma que
facilite a compreensão e consequente aceitação.
A perspectiva de avançarmos no exame dos elementos da sonoridade do autor
emergente da música popular – reggae -dos países periféricos em sua expressividade
moderna surge como possibilidade de um novo olhar sobre essas obras, buscando
14
Tonalidade é um sistema de sons baseados nas Escalas maior, menor, menor harmônica e menor
melódica, onde os graus da escala são observados de acordo com sua função dentro da harmonia. Cada
um dos graus de uma escala desempenha funções próprias na formação e concatenação dos acordes. A
palavra função serve para estabelecer a sensação que determinado grau (ou acorde) nos dá dentro da frase
harmônica.
15
Avant-garde na música refere-se às formas musicais que dentro das estruturas tradicionais, buscam
romper limites de alguma maneira. O termo é usado livremente para descrever o trabalho de todos os
músicos que se afastam radicalmente da tradição. Dentre eles está: Arnold Schoenberg, Charles Ives, Igor
Stravinsky, Anton Webern, entre outros.
34
esclarecer o potencial estético produzido nessas regiões, podendo estas ter uma enorme
capacidade criativa e rompimento com a perspectiva de razão instrumental que domina
a estética artística, sendo então, capaz de propiciar novas alternativas que pudessem
levar à ruptura com a ideologia, surgindo como uma nova possibilidade para
restabelecer o caráter emancipatório da música moderna. Ao limitar-se a esse
posicionamento vanguardista a teoria adorniana, restringe muito a capacidade de
superação da fetichização da música, e aprisiona-a ao mantê-la identificada a uma figura
e a um estilo muito reduzido, com pouca amplitude social. Por sua vez, quando Adorno
(2009) trata da música popular considera-a somente a partir do desenvolvimento técnico
e industrial da sociedade capitalista, circunscrevendo o estilo musical a análise do
isolamento dos ouvintes e apreciadores da música “séria”, produto da própria expansão
do campo produtor, divulgador e apreciador da música popular, além de indicar que esta
seria parte do processo de “decadência do gosto” musical dos ouvintes que, a priori, têm
maior identificação com a música sobre a qual não necessitam realizar um processo
reflexivo para o entendimento e o entretenimento. Essas questões despontam, desta
maneira, como um limite às suas reflexões. Por outro lado, faz-se necessário a
ampliação desse postulado para uma análise na qual seja possível investigar a
experiência de negação na arte que contemple outros movimentos artísticos, como o da
música popular despontadas na periferia do mundo. Essas obras surgem com um
conteúdo estético que buscam contrapor aspectos aparentemente positivos dessa
sociedade, explicitando, assim, contradições e angústias vivenciadas na cotidianidade de
miséria que esses artistas criam as suas glebas.
Ao mesmo tempo, tal postulado deve buscar solucionar os contrastes gerados
pelas características peculiares ao processo que envolve a composição destas obras, até
porque, ao explorar essas peças populares se tem que lidar com o fato que estas são
produzidas por meio da indústria cultural. Essa problemática abriu espaço para a
discussão da possibilidade da indústria fonográfica ter múltiplas formas de atuação a
partir das contingências geradas pela singularidade do funcionamento desigual das
condições econômicas, políticas e culturais de cada região, não perdendo de vista que
tais configurações locais são partes integrantes do próprio modo de produção capitalista.
Dito de outra forma, isto significa que o modo de produção capitalista deve ser pensado
em suas múltiplas determinações, o que implica do ponto de vista da arte compreender
traços unitários e heterogeneidades na criação artística nas diversas partes do globo
terrestre. Ao mesmo passo, surgem algumas indagações: será que esta circunstância
35
propicia espaços para que essas músicas ganhem mais autonomia em relação ao modo
de produção quando comparado a outras situações sociais? Ou ainda, esses conteúdos
contestatórios, emancipatórios casados a esses novos contrastes sonoros são utilizados
como formas de potencializar o comércio, adequando-se ao gosto gerado pelas
contradições sociais dessas regiões? 16
Em meio a essas inquietações prosseguimos nossa análise sobre a música
popular. É preciso nesse ínterim, compreender que a música popular é fruto da interação
(tanto na forma como no conteúdo) do artista com elementos intrínsecos da cultura do
seu país e mesmo de outros países, por isso durante muito tempo foi percebida como
sinônimo da música folclórica. A partir do século XX a música popular toma outros
contornos, mas mantêm por base uma sutil variedade do povo que a produz e a absorve,
embora sendo agora uma das suas principais características a disseminação no seio da
população, o que lhe conferiu ligação direta com a relação comercial e cosmopolita, que
teve como seu motor os veículos de comunicação de massa, como nos aponta Burnett
(2011): “[...] música popular é, antes de tudo, uma expressão dessa chamada verdade
musical, na medida em que revela, no caso do Brasil e, provavelmente, em todos os
países onde se desenvolveu, as sutis variedades do povo que a produz e consome.”
(BURNETT, p.148, 2011).
Para G. Simmel (2003), a canção popular tem por característica o fato de
primeiro ser cantada por um, e logo ser conhecida por um refrão, mas para isso deve
encantar e popularizar-se, sobretudo, ao adequar-se ao caráter do público. Não obstante
essa possibilidade, a supervalorização dos elementos externos à música, nessa mediação
que constitui a refiguração, levará a prejuízos na estética musical popular. É sem dúvida
esse o objetivo da indústria cultural em todos os cantos, onde se faz presente, como já
foi explicitado acima, busca imperativamente potencializar os conteúdos massivos
(cotidiano), tendo por objetivo maior a comercialização das músicas, retirando destas o
movimento realizado pela refiguração, a autonomia que deve ser o elemento central
formado dessa síntese, e deste modo empobrece a estética das obras. Somando-se a tais
questões, pode-se acrescentar o fato de a música ser historicamente uma expressão
artística, que tem como função o entretenimento, executada em eventos, concertos
musicais a festas populares, como o carnaval. No entanto, só no século XX, esses
16
As presentes questões levantadas, são propostas enquanto inquietações, que só serão respondidas em sua
completude no capítulo 2 desse trabalho, quando trabalharemos com o contexto dos países periféricos na
modernidade, podem também servir de estimulo a outras pesquisas.
36
espaços de entretenimento chegam ao ápice do domínio do mercado sobre essa parcela
da vida humana, visto que, até então a utilização da música, nesses espaços, estava
estritamente relacionada à iniciativas de diferentes sujeitos sociais – aristocracia, servos,
escravos, camponeses, etc., - considerando a peculiaridade das confraternizações e a
posição ocupadas pelos mesmos na esfera social e na criação de espaços de
sociabilidade.
A música popular desde os seus primórdios é empregada como meio de
entretenimento de povos de diversas partes do mundo, não diferindo na historia da
América Latina. Mesmo em espaços em que a sua utilização não tem por foco o seu
caráter imanente de organização ela se faz presente como música de acompanhamento.
A Dança é um exemplo evidente desse tipo de relação, entre música e outras expressões
artísticas nesses locais de diversão, existindo entre elas uma ligação mais profunda,
gerada pela obrigatoriedade do acompanhamento musical. Segundo Lukács (1982):
A dança, em relação, não pode existir, essa função organizadora da música,
não só como princípio, se não queira, senão como modo de manifestação do
ócio cotidiano. A música mesma é capaz de separa-se, na medida em que as
frases para dança se vão desprendendo progressivamente na música da idade
moderna das danças propriamente ditas e as utilizam só como fundamento
motivador para expressar uma determinada interioridade emocional. Mas a
dança não pode separa-se nunca da música; inclusive quando já tenha deixa
de fazer parte de ser encarnação mimética de importantes fatos da vida, como
ainda o é em certas cerimônias campesinas, mantêm o entretenimento a
ineliminabilidade de sua fundamentação organizadora na música. (LUKÁCS,
p. 21-22, 1982) (tradução nossa).
Ao mesmo tempo, mesmo preservando todo o processo histórico, em que essas
músicas estão inseridas, ao realizar uma análise estética sobre elas não se deve reduzilas a esses dois critérios, a música popular não pode ser resumida à música de massa,
que aliena o homem como produto da coisificação da sociedade industrial capitalista,
pois, assim, ao tempo em que se desconhece a força e a variedade da música popular
corre-se o risco de elitização, adotando-se apenas a música erudita produzida pelas
vanguardas. De tal maneira, as músicas que conteriam uma estética que preserva uma
parcela de verdade no interior da realidade da reprodutibilidade técnica, seria a música
minoritária e que se afasta das massas alienadas. Mesmo não adotando tal linha de
reflexão, não se pode limitar a música popular a uma arte populista, que se objetiva por
força do consumo de massa, levando-se a acreditar que o simples fato de pôr o povo
como objeto de representação artística, transcrevendo uma relação epidérmica entre a
37
música e o povo de forma superficial, traria o real significado estético de tais canções.
Evidente, que é um equívoco não atentar para o fato de que a música popular no século
XX e XXI destaca-se pela expressão artística com maior disseminação e penetração nas
diversas camadas sociais. Como bem cultural de consumo, ela se desenvolve
concomitantemente com o surgimento da indústria fonográfica – ramo específico da
indústria cultural – e o desenvolvimento dos meios técnicos de divulgação (do
gramofone ao rádio) que vão consolidá-la socialmente, permitindo que ela adquira sua
abrangência. A acessibilidade advém tanto do aspecto físico da divulgação quanto da
questão da recepção e apreensão da subjetividade musical pelo indivíduo (MATHIAS,
2011).
Decerto, é preciso apreender a música popular a partir de sua unidade dialética
entre qualitativo e quantitativo. É necessário, na mesma medida que se leve em
consideração o processo de difusão da obra, entendendo que existem elementos
qualitativos diretamente ligados a tais movimentos realizados pela música. É preciso
assimilá-la através de toda profundidade e riqueza que ela exerce ao expressar a vontade
e as aspirações de um povo, e de ao mesmo tempo, apresentar capacidade de subsunção
desse movimento e dos elementos que os constituem em seus diferentes momentos, para
que possa se tornar atemporal e universal.
A fim de, explorar toda a complexidade que configura a música popular nos
países periféricos lançaremos mão de contribuições de Hegel, que segundo Lukács
(1982), chama atenção para a importância da superação das dicotomias entre elementos
quantitativos e qualitativos da música, aproximando-se dessa forma da unidade
dialética. Na medida em que se desdobram os elementos quantitativos pondo em
evidência suas determinações imanentes, convertem-se esses em uma medida da
objetividade, a música reabsorverá em si a qualidade antes superada, sem reduzir a
natureza de sua essência numérica (quantitativa). Esse processo só é possível pelo duplo
caráter da medida (quantitativo e qualitativo), que se encontra inseparavelmente
vinculada com as coisas, suas relações, sendo deste modo utilizado pela interioridade do
artista ao compor suas obras.
La medida es, certamente, modo y natureza externos, um Más o um Menos,
pero que, reflejada em sí misma, no es ya meramente indiferente y externa,
sino determinación em sí; así es l concreta verdade del ser... la medida es la
38
simple relación del quantum consigo mismo, su determinación em sí misma;
así es el quantum cualitativo. (LUKÁCS apud Hegel, 1982). 17
Entretanto, a música popular na modernidade tem como peculiaridade ser uma
expressão artística que deve ter em sua base conteúdos que consigam se universalizar,
tendo capacidade de tocar as múltiplas subjetividades e coletividades que compõem
seus ouvintes. De forma alguma, há uma defesa da submissão da arte a esses aspectos
externos – ouvinte, indústria fonográfica, entre outros -, a obra para que possa atingir a
massa tão disforme que compõem o seu público, em meio a tal contexto, precisa criar
harmonias que possam ter aspectos cada vez mais absolutos de universalização.
Na América Latina dentre as expressões artísticas que conseguiram um
conteúdo estético universalizante, rompendo com os paradoxos do tempo/espaço da
modernidade, e preservando um conteúdo de verdade, foi a música popular, e não
música erudita. Ela conseguiu manter um caráter de verdade em meio a uma realidade
analisada através da dialética negativa produzida pela deturpação da razão humana pela
razão instrumental, se tornando uma música carregada por um cotidiano construído com
intensos choques sócio/econômico/culturais norteados por uma conjuntura de países
subdesenvolvidos, cheios de contradições geradas pela sua própria formação histórica,
que se forjaram em meio a questões geradas nos caldeirões das modernas cidades
urbanas que subsistia em meio às desigualdades sociais – pobreza, questões raciais,
entre outras questões – e alimentadas por uma intensa diversidade gerada de países que
saíram do colonialismo e se tornaram independentes e terceiros mundistas, se
desenvolvendo em meio à lógica desigual e combinada. A música popular nessa região
do mundo, não em sua totalidade, destaca-se enquanto expressão que conseguiu
preservar esse caráter de verdade.
A partir de tal movimento da medida dialética dinâmica, Lukács defende que
quanto mais complicadas são as relações e situações que se refletem intelectualmente
com essas determinações da objetividade, menos limitações a refiguração nas músicas
terão, afastando-se de situações estáticas de existência, portanto, quanto mais ligadas a
essas contradições expressará as relações dinâmicas legais e gerais nas conexões
fenomênicas do fazer estético. Desta forma, quanto mais complexas forem as condições
objetivas, mais se impõe a vinculação inseparável entre a quantidade e a qualidade,
17
O movimento é, certamente, o modo e a natureza externa, mais ou menos, mas reflete em si mesma,
não é simplesmente indiferente e externa, de autodeterminação, mas, assim é a verdade concreta do ser...
a medida é a razão simples de o quantum si mesmo, sua própria determinação, assim é o quantum
qualitativa. (LUKÁCS apud Hegel, 1982) (Tradução nossa).
39
surgindo dessa forma, como própria determinação dessa existência.
Diante de tais questões, pode-se afirmar que a música popular dessas regiões
tem em sua composição uma relação intrínseca com outra forma de sentimento do
mundo, caráter singular esse que lhe assegura, por meio da internalização dos artistas
das condições de contradições que são postas pela realidade social de um país
periférico, potencialidades que lhes propiciem condições de transgredir esteticamente as
condições de espaço e tempo. A mediação executada entre subjetividade e objetividade,
sentimento subjetivo e sentimento do mundo, ligado ao caso particular das condições
objetivas dos países periféricos, pode ser um elemento desantropomofizador da
representação da realidade em tais músicas.
Pode-se observar na estética da música popular, principalmente na América
Latina, uma peculiar forma estética, que se centra em uma refiguração social
apresentando-se de maneira mais direta nessas canções18, de tal modo, compostas de um
conteúdo que tem relação mais intrínseca com a possibilidade de expressão dos
processos históricos que envolvem os sujeitos históricos. Ao mesmo tempo, a música de
forma alguma deve servir ou aprisiona-se aos engajamentos ideológicos, que acabam
por determinar sua forma estética subordinando-a a conteúdos exteriores à própria arte –
poder-se-á apresentar como exemplo a captura da arte pelo socialismo soviético ou pelo
nazi-fascismo. A música deve ser livre para expressar em sua totalidade, a harmonia
imponderável da mediação, entre subjetividade e objetividade.
A música popular está na América Latina simultaneamente ligada a outras
formas artísticas, com já citado o caso da interação com a dança, sua relação com a
poesia se faz no caso do conteúdo estético ainda mais importante. A partir dessa
interação a música popular pode dividir-se em dois tipos, as músicas de
acompanhamento (vocal) cujo movimento tal como é formado sonoramente em
mediação com a representação e expressão em palavras, ou se formar como música
instrumental, que utiliza somente as várias sonoridades. A partir da peculiaridade do
objeto de estudo do presente trabalho – as composições musicais de Bob Marley –
percorre-se o caminho das canções populares que se tornaram mais marcante nos países
18
Entretanto, destaca-se também que, no momento atual, coexistem nas composições músicas populares
de expressões que não buscam uma representação mais direta do cotidiano, objetivando não mais
representar nada do cotidiano e sim se apresentar – buscando ser a experiência do próprio dia-a-dia –
pode-se citar por exemplos do psicodélico som da música eletrônica contemporânea. Mas mesmo essas
canções distanciando-se da corrente representação de uma realidade, se transformando em um fenômeno
que se apresenta enquanto alternativa de experiência do que é mais imediato na realidade social, ela não
deixa de ser uma música que, em última instância, está ligada aos ritmos e conteúdo de um mundo que
cada vez mais adere a uma dinâmica imediata das existências vividas.
40
terceiro-mundista da América, estando dentre eles o reggae, que tem em todo seu
percurso de existência uma relação de coexistência entre linguagem falada e sons
instrumentais.
Entre essas duas expressões artísticas há uma relação de afinidade produzida
pelo fato de ambas utilizarem o mesmo elemento sensível, o som. No entanto, é preciso
salientar também seus elementos de diferenciação: a maneira de empregar os sons e o
seu modo de expressão distanciam-se muito nas duas artes. Na poesia os sons não são
emitidos por diversos instrumentos inventados pela arte, e sim pela voz humana,
transformando-se em sinais verbais gerador de valores de designações de
representações. Nesse caso, a verdadeira objetividade do interior, consiste não nos sons
e nas palavras, mas na consciência que temos de um pensamento ou sentimento. Pelo
contrário, a música ao empregar o som ao invés do som para formar palavras, faz do
próprio som o seu elemento tratando-o como um fim (Hegel, 1962).
Ao mesmo tempo, segundo Hegel (1962), a música não se contenta com esta
independência em relação à poesia a ao conteúdo espiritual, associando-se em muitos
momentos a um conteúdo tratado pela poesia. A predominância de uma destas duas
artes sobre a outra, nas associações da música com a poesia, torna-se prejudicial a
ambas. Diante dessas questões, a música popular nas Américas ao ligar-se com a poesia,
torna possível a potencialização do laço entre música e um determinado conteúdo
social, se transformando em música de acompanhamento, como assinala Hegel (1962):
[...] a voz enuncia ao mesmo tempo as palavras que exprimem um
determinado conteúdo, de maneira que a música, como palavra cantada, não
pode ter por missão, por muito insignificante que seja a correspondência mais
ou menos estreita entre os sons e as palavras, senão dar uma expressão
musical a este conteúdo que, como conteúdo, deixou de constituir o objeto de
um sentimento vago, para se tornar o de uma representação mais ou menos
precisa. Dado que todavia, apesar desta associação, o conteúdo representado,
como texto, pode ser compreendido pela leitura a ser o objeto de uma
representação independente da expressão musical, a música que a ele se
acrescenta torna-se uma música de acompanhamento. (HEGEL, pág. 256,)
A respeito de tal relação é preciso não entender a música de acompanhamento
como se ela desempenhasse uma função secundária, se tornando puramente utilitária,
muito pelo contrário é o texto que serve à música, sendo a sua função dar à consciência
uma ideia mais precisa daquilo que o artista escolheu como objeto da sua obra, no caso
de Marley a emancipação humana. A música cumpre o papel na música de
41
acompanhamento de exprimir o lado interior do conteúdo que o texto elaborou para uma
representação mais imediata da realidade. Portanto, para que a música mantenha sua
autonomia estética em sua relação com a poesia é necessário que o compositor não
exprima somente sentimento subjetivo – em sua mimese entre sentimento subjetivo e
sentimento do mundo – que uma determinada temática tenha o inspirado, mas que possa
inserir na totalidade estética, mesmo em meio à extrema objetividade da representação
produzida pela poesia, uma harmonia que possa ultrapassar tais elementos
transformando em uma catarse humana.
Nesse sentido, a música, em geral, e a música popular, em especifico, surge
como expressões de nexos profundos e interlocutoras de um dado tempo e das formas
de sociabilidades aí constituídas, sendo ampliados os sentimentos internalizados e
refigurados na obra para além da sensibilidade do artista, estas composições musicais a
apresentar sentimento intersubjetivo entre o eu e sua vivencia no mundo, representada
pelo cotidiano, formando, assim, uma síntese compartilhada pelo movimento dialético
entre cotidiano e subjetividade, sendo este, um movimento de mútuo compartilhamento
de sentimentos e influencias pelo sujeito e pela realidade social no qual está inserido.19
“La musique inscrit dans son temps le temp où elle est inscrite” (Michel Imberty apud
Miranda, 2009:).
19
Não está presente em tal questão a relativização da realidade a partir da experiência, e sim o fato da
música popular ao invés de ser uma refiguração de sentimentos não só subjetivos mas também de uma
internalização de sentimentos mediados entre subjetividade e objetividade.
42
2. INTERFACE DO REGGAE: ARTE, POLÍTICA E RELIGIÃO
“É melhor atirar-se em luta, em busca
de dias melhores, do que permanecer
estático como os pobres de espírito,
que não lutaram, mas também não
venceram. Que não conheceram a
glória de ressurgir dos escombros.
Esses pobres de espírito, ao final de
sua jornada na Terra, não agradecem à
Deus por terem vivido, mas
desculpam-se diante dele, por
simplesmente, haverem passado pela
vida.”
Bob Marley
Como já discutido no capítulo anterior o estudo das composições musicais de
Bob Marley enquanto representação social da realidade torna-se possível na medida em
que a música é uma refiguração da realidade através das emoções. Uma das categorias
constitutivas fundamentais da música é a formação de uma mímese particular,
diferenciando-a das demais artes. Em termos miméticos, a música objetiva reproduzir a
vida interior do artista, ou seja, seus sentimentos e emoções. Essa interiorização é
resultado, segundo Lukács: “da evolução histórico-social da humanidade”.
O reggae é caracterizado por muitos autores que se predispuseram a trabalhar
com a temática, como o ritmo musical que traz as marcas da opressão da população dos
bairros pobres da periferia. Segundo Carlos Benedito (1992), o reggae, desde seu início,
foi considerado como música dos becos por refletir em suas letras os anseios das
populações de baixa renda, segregadas socialmente. Muito embora, “Ele – o reggae – se
caracteriza (mas não se limita) pelo seu conteúdo social e de protesto.”
(GIOVANNETTI, pag. 66, 2001).
O reggae produzido na Jamaica por Bob Marley não foge à regra e tem como
uma de suas principais características o conteúdo contestatório da realidade social,
vivenciada principalmente pela população pobre e negra daquele país, suas canções
despontam trazendo em sua estética questões que misturam um teor de emancipação,
compreendendo dimensões política e religiosa. A relação entre arte, política e religião
na música de Bob Marley, suscita questões que se busca desenvolver nesse capítulo, a
43
partir da apreensão de temáticas relativas aos contextos de conflitos sociais objetivados
na representação musical, entendendo-se que tais obras, a partir da perspectiva dialética,
são parte de uma representação que é a síntese das determinações resultantes da relação
reciprocamente mediada entre sujeito e a realidade social, estando a representação
musical presente no modo como o conteúdo e a forma se apresentam articulados na
relação entre a expressividade sonora e poética da música (LESSA, 2011).
Nesse sentindo, partir-se-á das bases da influência mútua entre subjetividade e
objetividade, estabelecendo-se a relação entre as condições de vida jamaicana e as
canções, evidenciando o sujeito e as condições materiais e culturais que serão base da
obra estética. Decerto, ao analisar as canções deste músico, parte-se do pressuposto de
que tais obras são frutos da imaginação criadora deste compositor, cuja objetivação só é
possível através do amadurecimento da subjetividade criadora estabelecida em meio à
relação do sujeito com a realidade social na qual está inserido, estando esse sujeito sob a
influência da própria organização social e de sua situação de classe (CÂMARA;
SILVA, 2013). Assim, as diversas canções de Bob Marley, ao representarem as
condições de vida da maioria da população do seu país, expressa a sua vivência social
do processo de opressão por via da criação estética. De certa forma defrontamo-nos com
um acordar da consciência por via da música, da apreensão do destino de um povo,
reinventando céus e terras, recriando Deus à sua imagem e semelhança, arrancando do
fundo de si as raízes do sofrimento e da desigualdade, desenhando, por via do belo, o
princípio de esperança e a emancipação de um povo.
Não obstante, ao se interpretar tais canções é condição sine qua non apontar
que o papel singular do sujeito na atividade artística, não é consequência meramente de
sua existência individual e de conexões imediatas com a vida, ela ocorre por via de uma
relação mediada com as condições objetivas que lhe fornecerá o conteúdo necessário
para as produções. Nesse sentido Lukács analisa que:
Tais conexões imanentes existem, sem duvida, na realidade objetiva, mas só
como momento do tecido histórico, como momento do conjunto do
desenvolvimento histórico, no interior do qual, através do intrincado
complexo de interações, o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das
forças sociais produtivas) assume o papel principal (LUKÁCS, p. 12, 2012)
44
Nesse sentido, segundo Lukács (1996), a criação artística provém dos
desvelamentos do núcleo e da crítica da vida por um sujeito que está imerso num objeto
apropriado na obra enquanto refiguração da realidade. Desta forma, considera-se que as
obras artísticas – aí incluídas o reggae produzido por Bob Marley – emergem tendo por
elemento de grande importância a capacidade criadora subjetiva, sendo produto das
categorias da imaginação e da inspiração do artista, muito embora, essas devem ter por
base a relação mediada com as condições objetivas da Jamaica. Isto é, a existência, a
gênese e a eficácia da música reggae devem ser compreendidas e explicadas no quadro
histórico do complexo de múltiplas determinações que formam os alicerces de
desenvolvimento da condição humana de produção artística no desenvolvimento do
processo geral da sociedade. No caso específico aqui tratado, o conteúdo e o valor
estético do reggae fazem parte do processo social no qual está inserido o compositor
(Bob Marley), que se apropria do mundo através de sua consciência e sentimentos em
relação a este, e traz à representação musical os conflitos vivenciados nesta conjuntura.
Deste modo, a síntese entre subjetividade e objetividade, assume um caráter de
superação gradual da subjetividade até sua plena desaparição, fazendo com que surjam
os parâmetros de reconhecimento dessas como obras autenticas: a profundidade, a
riqueza e a universalidade (LUKÁCS, 2012).
2.1 O berço do reggae: dilemas de um mundo subdesenvolvido
As músicas de Bob Marley representam poeticamente o processo histórico do
país jamaicano compreendendo o longo período colonial20, a independência (1962), e
seus desdobramentos permeados por mazelas sociais, pela violência urbana, baixo
índice de desenvolvimento econômico e condições deploráveis de existência21. A
história do reggae é marcada pelos contornos de uma realidade preenchida por dilemas
gerados pelas questões socio-econômico-raciais criadas pelo desenvolvimento histórico
da economia capitalista e de suas múltiplas determinações, que se acirraram no país por
20
A ilha foi "descoberta" por Colombo em 1494 e ficou sob domínio espanhol até 1660, quando foi tomada por
piratas ingleses como Harry Morgan, mais tarde feito governador da nova colônia. Os ingleses no processo de
colonização desenvolveram na ilha caribenha um potencial agrícola, cuja exploração do cultivo da cana-de-açúcar era
o que predominava na economia agrícola de então, fomentado pela importação de escravos em massa trazidos do
continente africano (GIOVANNETTI, 2001).
21
Os jovens negros, em meio ao desemprego, perambulavam por Kingston, caindo na marginalidade, muitos se
tornaram “rude boys” ou “rudies”, andavam frequentemente armados e resolveram tomar os rumos de sua vida por
conta própria. (BERGMAN, 1997)
45
via de relações de desigualdade presentes cotidianamente tais como: colonizadores e
colonizados,
pobres
e
ricos,
negros
e
brancos,
economia desenvolvida e
subdesenvolvida.
A realidade social na qual o reggae emergiu, em meio à história social da
modernidade, imbrica-se aos distintos e desiguais percursos de desenvolvimento da vida
social de cada economia em nível mundial. A América central é uma região fortemente
marcada pelo processo de exclusão, de desigualdade, e de exploração que a acompanha
desde o período de seu descobrimento pelo modelo mercantilista de expansão e de
acumulação primitiva de capital empreendido pelos países do continente europeu. Em se
tratando do caso da Jamaica, esta questão se torna ainda mais complexa devido ao longo
período de exploração e de segregação do país, ao se tornar colônia inglesa, que se
iniciou no século XVII, só conquistando a sua independência política em meados do
século XX. A história dessa região é marcada pelo processo de escravidão da população
negra trazida pela diáspora do continente africano. Ao mesmo tempo o cenário de
violência escravista foi acompanhado de contínuas revoltas e formas de resistência por
parte daqueles que foram escravizados. (GILVANNETTI, 2001)
Nesse sentido, as bases das músicas populares na Jamaica não se apresentam
somente por via das contribuições do contexto contemporâneo do país, para Gilvannetti
(2001) a história social da música na ilha caribenha pode ser remontada aos tempos de
escravidão, sendo utilizada para além de seu papel recreativo, mas também como forma
de atenuar as dores do exercício do trabalho. Com argumento semelhante Brathwaite
(1971) observa que:
A música, além de recreativa, era também funcional. Os escravos, como
ocorria na África , bailavam e cantavam no trabalho, em jogos, em cultos, de
medo, tristeza e de alegria. (BRATHWITE, p.10, 1971). (Tradução nossa).
Deste modo, o reggae, e os outros gêneros musicais afro-caribenhos teria uma
íntima relação com as músicas desenvolvidas pelos escravos, sendo essa expressão
artística uma das formas que estes sujeitos oprimidos tinham para expressar suas
angústias de forma segura.
46
As raízes do mento, o calypso e o reggae remontam à escravidão, onde a crítica
social e a sátira somente podiam ser expressas por médio da canção. Os senhores de
escravos naquele momento (como seus sucessores atuais, as classes capitalistas) eram
incapazes de sentir as mensagens das canções e raras vezes buscavam entendê-las.
(GIOVANNETTI, apud BERFORD e WITTER, 2001).
Gilroy (2001), em sua teoria pós-
colonial, analisa que é a proximidade imaginativa do terror do processo de escravismo
que criou a experiência inaugural do modernismo dos países da América Central, sendo
classificado como uma estrutura transnacional que se desenvolveu e deu origem a um
sistema de comunicações globais, marcado por fluxos e trocas culturais, o que teria
possibilitado às populações negras, durante a diáspora africana, formar uma cultura que
não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou
britânica, mas todas elas ao mesmo tempo formando a cultura do Atlântico Negro. Para
o autor, a música, dentre elas o reggae, constituiria umas das formas de expressão, que
mantinha viva os terrores inefáveis da escravidão por via da ritualização, formando o
que ele classifica enquanto a forma especifica de modernismo dos negros.
Gilroy, em sua pesquisa busca refutar a perspectiva marxista que vê nas
questões referentes à materialidade produtiva o epicentro de desenvolvimento da
sociedade. Desta forma, explica a realidade social vivenciada no “Atlântico Negro”
através da centralidade de aspectos culturais e comunicativos nas formações da
sociabilidade humana moderna. No entanto, busca se diferenciar das argumentações
culturalistas que restringem as relações culturais a aspectos nacionalistas. Para o autor a
explicação dos movimentos contra-culturais modernos se sustenta em uma solidariedade
translocal, que possibilita por meio da hibridização, trajetos e migrações que produzem
um conjunto de práticas expressivas, artísticas e políticas originadas pela experiência da
escravidão negra em toda a América. Assim, o autor toma o rumo de trabalhar com uma
modernidade formada pelo fluxo cultural e comunicativo transnacional, embora não
deixe de considerar aspectos econômicos, como o surgimento da indústria cultural.
Ao declinar da perspectiva marxista o autor silencia sobre elementos centrais
de constituição desse período histórico, o desenvolvimento do capitalismo, fomentador
da ampliação do desenvolvimento das forças produtivas, determinando novas diretrizes
de socialização de indivíduos, considerado livre no olhar dos pós-colonialistas, mas que
são submetidos na sociedade burguesa ao crivo das instâncias verticais de produção e
controle, cuja reprodução ampliada do capital se desdobra em modificações estruturais
transformando as relações presentes também na superestrutura social (SILVA, 2013).
47
Ao mesmo passo, em o “O Atlântico Negro”, o escritor aponta de forma
contraditória que a música negra desse território seria uma expressão eminentemente
moderna por dois aspectos: por terem origens híbridas e crioulas no Ocidente, e o mais
curioso por ter a capacidade de escapar, em meio à inserção e difusão via indústria
cultural, da lógica da mercadoria, apresentando-se como opositora dos regimes de
Exploração. Apesar de apontar para uma autonomia da arte, o que se verifica nesse
percurso, é que Gilroy (2001), ao colocar essa síntese tendo por base a situação dada
pela rede de encadeamento histórico-cultural fluido de caráter transnacional racialista,
atribui às obras de artes da América Central um papel de acessório subordinando-as aos
movimentos de contracultura raciais, extraindo da expressão artística seu caráter de
criação, de fazer existir algo inédito, um objeto novo e singular que expressa o sujeito
criador e, simultaneamente, o transcende. Conquanto, levante de maneira acertada que
esse objeto é portador de um conteúdo de cunho social e histórico apresentando essas
obras como uma síntese das experiências marcantes do desenvolvimento desses sujeitos,
mas, ao mesmo tempo, subordina sua observação aos paradigmas raciais. Desta forma, a
arte nesse tipo de abordagem assume uma natureza castrada, secundarizando os seus
elementos intra-estéticos, enclausurando o conteúdo e forma às questões de caráter
culturais-racialistas.
A relação entre música e cultura deve ser feita com cautela para que não se
transforme em uma relação de face unilateral, na qual a arte seria mero epifenômeno da
cultura, perdendo, assim seu conteúdo imaginativo, sua forma e sua capacidade de
transgressão do espaço-tempo de um período histórico. O reggae de Bob Marley, aqui
estudado não é analisado somente a partir dos elementos históricos da conjuntura de
uma Jamaica negra, mas aborda esses aspectos não enquanto limítrofes de sua estética,
mas como representação musical que transcende a própria condição objetiva no qual é
produzido.
No final da década de 1950, a Jamaica vivenciou uma era de considerável
agitação política à medida que os grupos sociais médios e proletarizados jamaicanos
começavam a assumir um papel nas decisões acerca do destino da ilha. O país
apresentava problemas graves como desemprego, falta de moradia e condições precárias
de trabalho, não correspondendo às expectativas da população após a independência. O
reggae composto por esse cantor tem sua gênese, portanto, nesse contexto, e em uma
Jamaica totalmente dividida: de um lado, uma classe dominante branca, remanescente
da aristocracia colonial inglesa; de outro, a grande massa negra e mestiça, que ou se
48
submetia às humilhações impostas pelas classes dominantes ou reagia à violência
repressora.
Concomitantemente faz-se necessário apropriar-se dos elementos que constitui
a formação da sociedade jamaicana pós-independência, integrada a uma economia
mundial, isto porque, ligada à correlação concreta destes fatores desigualmente
desenvolvidos no processo histórico de uma economia global, seus múltiplos elementos
formadores seguiram o parâmetro de crescimento da sociedade moderna levando a ilha
caribenha pós-independência a desdobramentos posteriores em âmbito político,
econômico e social, com o capitalismo expandindo-se de forma desigual e combinada.
Segundo Trotski (1978):
O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz:
necessariamente, a uma combinação original das diversas fases dos processos
históricos. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular,
complexo, combinado [...]. As leis da História nada têm em comum com os
sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral dos
processos históricos, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos
destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida
retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal
da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação
apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa
aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada,
bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a
história da Rússia, como – em geral a de todos os países chamados à
civilização em segunda, terceira ou décima linha. (TROTSKY, 1978, p. 24).
Ou ainda segundo Manolo e Bernardo (2010), olhando para os processos
econômicos e políticos que perpassavam os países colonizados, tornou-se evidente que
esses funcionavam, sobretudo, como áreas complementares do acúmulo de capital para
os países metropolitanos, transformando-se na pós-independência, devido às próprias
demandas do capital global, em economias que se desenvolvem no interior do
capitalismo.
É assim que a Jamaica pós-independência busca inserir-se na economia
mundial, tomando o caminho de consolidação enquanto país atrasado, buscando por
meio do desenvolvimento de uma economia capitalista fundamentada no capital externo
as respostas necessárias para diluir todos os entraves deixados por séculos de exploração
colonial. Contudo, esse panorama acarretou no resultado inverso: a potencialização das
desigualdades e a exploração da classe trabalhadora. Assim como em outros países
49
limítrofes do mundo capitalista, o capital financeiro era o principal propulsor da
dinamização de amplos setores das atividades econômicas, encarnado na vinda de
bancos estrangeiros à região; no financiamento de obras públicas, de cultivos de
exportação agrícola, de refinarias e distribuição do petróleo; investimento no setor
turístico e na construção de redes hoteleiras. Desta forma, a economia do país
funcionava fundamentalmente alicerçada no capital estrangeiro, estimulando o
crescimento econômico mediante exportações de bens primários. Esta forma de inserção
provocará uma crise social interna nas economias neocoloniais.
Esse fenômeno ocorreu com a difusão do capitalismo nos países da América
Latina, após as lutas armadas pela independência política e a conquista da
emancipação nacional. As técnicas, instituições e valores sociais que
permitiriam uma profunda e revolucionária reorganização da sociedade, da
economia e da cultura sofreram uma difusão rápida. O mesmo não sucedeu –
nem podia suceder – com a possibilidade de convertê-los em fatores
concretos da dinamização da ordem econômica, social e política. Nesse
sentido, pode-se dizer que os modelos ideais de organização da sociedade
foram substituídos de acordo com ritmos históricos muito intensos. O mesmo
não aconteceu com a criação das estruturas sociais, econômicas e políticas
correspondentes, que iriam emergir, difundir-se e desenvolver-se através de
ritmos históricos muito débeis e incertos, graças a uma evolução lenta,
penosa e oscilante (mesmo nos países que lograram a integração nacional da
economia de mercado e da ordem social competitiva com maior rapidez)
(FERNANDES, p.43-44, 1975).
Inserida de forma particular no contexto de formação social da América Latina,
constituída por meio de relações econômicas mundiais, a análise de Fernandes (1975)
acerca desse processo traz aspectos que podem contribuir para elucidar a compreensão
da conjuntura jamaicana pós-período de “emancipação” nacional.
Essa situação de desenvolvimento “dependente” e do aumento das contradições
geradas pelo sistema capitalista torna os grandes centros urbanos – e, dentre esses se
destaca Kingston – pólos atrativos de fluxos migratórios estabelecendo um período
intenso de êxodo rural, no qual a massa populacional emigrava para a capital Kingston
principalmente em busca de melhores condições de vida e de empregos, propiciando
um aumento demográfico de cerca de 80%, concentrando, desse modo, um quarto da
população residente na ilha. Nas décadas de 1960 e 1970 o país entra em uma depressão
resultante dos impactos da crise da economia internacional: tem-se na Jamaica um
enfraquecimento do setor agrícola, e o crescimento da produção manufatureira; o
50
aumento do desemprego e do êxodo rural; e, o crescimento das moradias precárias em
solo urbano, dos guetos ou do bairro de Trench Town (Ver figura 1), com sua inevitável
tensão potencializada pelas desigualdades. Esse bairro está situado no coração de
Kingston, capital da Jamaica. Apesar da pobreza extrema e subdesenvolvimento da
região, este bairro violento emergiu como um dos guetos mais famosas do mundo. Essa
façanha se deve em grande parte à reputação de Trench Town como um terreno fértil
para superstar do reggae.
Figura 1 – Bairro de Trench Town um dos guetos mais conhecidos do mundo
Fonte: Página da BBC News/ 2 December, 1999.
22
Essa conjuntura fora marcada por lutas dos operários que abarcaram
trabalhadores das centrais açucareiras, dos grandes hotéis, trabalhadores da grande
indústria elétrica, do setor de transportes e os operários da construção civil. Essas
circunstâncias sociais e políticas influenciaram a transformação musical vivenciada no
país, a qual trouxe junto com o teor crítico às desigualdades sociais, a incorporação de
elementos inovadores que o avanço tecnológico da modernidade oferecia, ou seja, de
instrumentos eletrônicos como o baixo e a guitarra na composição musical. Isto
propiciou inclusive a introdução de novos formatos harmônicos advindos de gêneros
musicais oriundos da Inglaterra e dos Estados Unidos, tais como o rhythm and blues, o
blues, o jazz, “race records” e o rock, sendo amplamente difundidos através das
emissoras de rádio que tocavam clássicos das músicas populares daqueles países.
Contudo, “algumas das estações de rádio serviam exclusivamente a um público de
classe média. Outras bandas se apresentavam em locais mais populares, a que os negros
tinham acesso.” (CARDOSO, 1997, p. 24). A inserção desses ritmos incidiu
22
Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/shared/bsp/hi/services/help/html/sources.stm
51
diretamente sobre a forma e conteúdo da música afrocaribenha, de seu processo de
desenvolvimento e de formação de gêneros cuja subsunção das harmonias da estética do
ska em rock steady possibilitou a constituição da estética sui generis do reggae
(GIOVANNETTI, 2001; CARDOSO, 1997).
2.2. O movimento de surgimento do reggae
A relação da população jamaicana com a música é algo que expressa de forma
central o desenvolvimento histórico do território. A formação do reggae, dentre eles os
compostos por B. Marley, ocorreu através do processo de subsunção de estilos estéticos
presentes na música afro-caribenha, africana, inglesa e estadunidense, nas quais se
encontram os estilos formadores do reggae, o mento, o rhythm and blues (R&B), jazz,
blues, ska, rock steady.
Considerado um gênero remanescente da música tradicional jamaicana, o
mento23 era proveniente da zona rural, e estabelecia os primeiros arranjos sincréticos
dos cultos afros cristãos, combinava em partes iguais música inglesa e africana, e ainda
era composto a partir de harmonias religiosas e do ruflar dos tambores, intercalado com
o som do baixo em tonalidade não específica.
Essa linha dominante do baixo
influenciou o “riddim” do reggae tocado por Bob Marley. E nesse interim, o “riddim”
jamaicano é a forma pela qual uma afirmação apoia a si mesma e ao mesmo tempo a
todos os outros elementos da música, fornecendo a base e complementos aos acordes,
melodia e letra da música. Mas cada “riddim” tem sua particularidade que subjaz ao
padrão em que está inserido, possuindo sua melodia e padrão rítmicos distintos como se
fosse uma composição em si mesma, estabelecendo uma analogia com o tempo dos
sentidos humanos, os “riddims são exercícios de estratégias altamente intuitivos para se
balancear o silêncio e o som, com uma qualidade íntima, quase como uma conversa
informal. O baixo “diz” uma frase, depois faz uma pausa para “respirar” [...]”
(CARDOSO, 1997, p. 67).
Posteriormente, a partir da disseminação de bailes regados aos sistemas
portáteis de amplificação de sons constituindo uma forma de discoteca itinerante
23
Ver: http://www.youtube.com/watch?v=taEnME5_-Ts e http://www.youtube.com/watch?v=HvEcz95F7M.
52
tocando (ver Figura 2)24, sobretudo, o R&B25 americano (gênero amplamente absolvido
pelas massas jamaicanas), iniciou-se uma tentativa de autoprodução desse ritmo, aliás,
tocado pelos próprios jamaicanos, o que longe de aderir ao imperialismo cultural
aparecia como uma alternativa à unificação dos negros nas Américas, nisso o que se viu
foi a influencia do mento na formação harmônica dessas canções, causando uma
acentuação no compasso o que diferia tanto do R&B americano, quanto do mento, e
desse movimento surge o ska26. O ska desponta como o primeiro gênero musical
jamaicano que ganha dimensão internacional, sendo difundido pela Europa e Estados
Unidos, inserindo as músicas nacionais no mercado fonográfico internacional, tendo
como difusora da música jamaicana a gravadora inglesa Island Records, que divulgou
cantores e grupos do estilo, como o Skatalites27, para todo mundo. Isto despertou nos
jovens das periferias de Kingston o olhar sobre a música enquanto possibilidade
concreta de ascensão social. Entretanto, o ska por mais que tivesse em seu conteúdo e
forma os impulsos dançantes e certo teor crítico social que propiciaram sua
massificação e difusão, contrastava com a expectativa desses jovens por uma harmonia
carregada de angustia e protestos (CARDOSO, 2001).
Figura 2: Sistemas portáteis de amplificação de sons
Fonte: Página do Sound System thewickedesttime.28
24
Ver:http://www.youtube.com/watch?v=A1DPi_4zQbc&list=PLDMb1EONDv_3xoRbGyysp1ofgM2rox
gzQ
25
Ver: http://www.youtube.com/watch?v=YIL7-C9PCZs&list=PLE6A57489B4ED71F8
26
Ver: http://www.youtube.com/watch?v=EZC6Ot1MLP0
27
Ver: http://www.youtube.com/watch?v=EcoNPm3pyqg
28
Disponível em: http://www.thewickedesttime.com/2010/09/jamaican-sound-system-culture-and.html
53
Isso levou os jovens músicos a experimentarem outras formas musicais, novos
compassos cuja diminuição do ritmo acompanhado de bases mais firmes, permitiu a
criação do “Rock Steady”, que continha em sua musica mais conteúdo ameaçador e de
contestação social do que o ska. Sobre o surgimento desse novo estilo musical Bob
Marley em entrevista em 1975, regozijava-se: “[...] gente como eu adorava James
Brown [...]. A gente não queria ficar mais por aí tocando aquela batida lenta do ska. Os
músicos novos tinham uma batida diferente – agora era o Rock Steady!29 Pronto pra
decolar!” (WHITE, 2011, p. 37). Em meio a esse processo de consolidação do Rock
Steady surge um novo ritmo musical, sobre o qual existem controvérsias, sobretudo
quanto às demarcações estéticas que diferenciavam um estilo doutro: se para Grass
(1997) o surgimento do reggae é imanente ao desenvolvimento da “criação aleatória”
dos artistas do Rock Steady, pode-se até dizer que, na verdade, trata-se do primeiro
formato que o reggae como conhecemos hoje adquiriu; para Giovannetti (2001) há
delimitações explícitas entre os estilos musicais evidenciados principalmente pela
intensidade do conteúdo de crítica social daquelas letras, essa perspectiva é a mais
utilizada entre os pesquisadores do ritmo.
Para Vidigal (2001), a introdução da guitarra e do baixo elétrico em meados
dos anos 1960 pode ser considerada a grande mudança que possibilitou o surgimento de
novos arranjos e harmonias na música jamaicana. “Eles permitiram que os músicos
criassem linhas de baixos mais ágeis, que serviriam como base para o rocksteady e
também para o reggae.” (VIDIGAL, 2001, sp.) Ainda, segundo o autor, o próprio Bob
Marley teria comentado que os instrumentistas ligados ao ska, tributários do jazz e do
rhythm & blues, teriam ficado insatisfeitos com a parca remuneração recebida e
diminuído o ritmo de produção, abrindo o caminho para novos músicos, mais
influenciados pela soul music e pelo rock n'roll. Se os instrumentos de sopro eram a
base do ska, no reggae estes assumem uma outra função e o baixo ocupa este lugar, o
que inclusive torna possível evidenciar tanto os outros instrumentos quanto a voz dos
cantores, sobressaindo-se.
Decerto que o reggae aflora como gênero musical nos anos 1960, sendo uma
música criada por meio da inquietação artística posta pela vontade criativa de músicos
jamaicanos, dentre eles Bob Marley, que buscaram transformar a forma sonora do rock
steady, norteados pelos cânticos dos rituais rastafáris e por protesto pela justiça social,
29
Ver:http://www.youtube.com/watch?v=SAAtWkyxXkI,
http://www.youtube.com/watch?v=feywAK09bxk.
54
enfatizando a repetição rítmica, e assumindo, ao mesmo tempo, um conteúdo que tem
em suas letras poéticas o movimento da pressão social vivenciada em Kingston.
Especificamente há aqueles que defendem que o reggae surge em um dia de 1968
“quando Toots and the Maytals gravaram um pequeno número chamado “Do the
Reggay”. Mas como Toots lembra com rapidez, ele não inventou o termo; reggae era
apenas uma expressão circulando nas ruas [...].” (GRASS, 1997, p. 43). Enquanto
expressão estética o reggae possui, em termos musicais, a síncope no seu ritmo básico –
elemento que consiste na deslocação da acentuação da parte forte do tempo musical
para a sua parte mais fraca –, tendo por noção de belo a uniformidade gerada pelo
padrão harmônico em suas diversas partes nas quais as canções são ordenadas. Nessa
configuração os instrumentos em conjunto são partes sincopadas no processo de
construção musical, aspecto presente na musicalidade africana. Isso contribuiu para a
constituição de uma unidade intrínseca, que subjaz aos gêneros jamaicanos: isto é um
aspecto africano no reggae. Nesta forma, o compasso do reggae contém quatro tempos
principais de intervalos.
O reggae conservava muitos aspectos do rock steady, dentre estes a função
central assumida pelo baixo no preenchimento do compasso, que assume o mesmo
caráter do tambor nas músicas folclóricas afro-jamaicanas, diferenciando-se por ser um
instrumento elétrico de marcação temporal dos intervalos musicais. Porém aquele
gênero é imbricado com novas características rítmicas:
[...] o baixo tornou-se mais forte e enfático, conduzindo a batida e permitindo
que o baterista floreasse um pouco com a acentuação nos pratos. A guitarra
era tocada de forma cíclica, acentuando os acordes no contratempo, que não
ocorriam com tanta freqüência quanto no rock steady: o pulso da Jamaica
diminuíra outra vez, embora certos elementos fossem tocados com maior
rapidez. O impulso vinha de um padrão constante de dois acordes a fornecer
um contraponto persistente para a forma de chamada e resposta, como o
canto de Toots e a resposta harmônica dos Maytals (CARDOSO, 1997, p.
44).
Além das mudanças ligadas às formas sonoras trazidas pelo reggae, segundo
Vidigal (2001), em comparação aos ritmos que lhe antecederam, houve uma mudança
nas próprias formas poéticas de suas letras, tornando-se mais realista, assumindo um
conteúdo político cada vez mais contundente. A relação entre o reggae e a política se
estabeleceu sempre de maneira inerente a seu próprio conteúdo e forma, exprimindo
desde o seu início uma conexão intensa com as condições sociais da existência humana.
55
As músicas de Bob Marley estavam mergulhadas em imagens dos conflitos existentes
no país, trazendo por tema a vida dos rude boys, ou seja, a juventude sem emprego,
rapazes e moças que muitas vezes eram recém-chegados de regiões interioranas em
busca de melhores condições de vida na cidade, por falta de condições materiais
mínimas de sobrevivência eram impulsionados a vagar pelas ruas das megalópoles
jamaicanas, as vezes praticando pequenos roubos, ou envolvendo-se em brigas de
gangues, agindo de forma transgressora.
O próprio Robert Nesta Marley teve uma vida dura e repleta de contradições
impostas pelo contexto socio-histórico de um país que passava pela transição do regime
colonial escravista e se tornava independente. Nessa conjuntura, enfrentou a violência
policial e a miséria urbana. Filho de um oficial branco do exercito Britânico e de uma
negra jamaicana, sofreu com os problemas decorrentes das desigualdades socio-raciais.
Passou sua infância no miserável gueto Trench Town, construído sobre as valas que
drenavam as partes antigas de Kingston; cresceu nesse ambiente de privações junto com
crianças em situação de rua, com quem começou a tocar latas e guitarras improvisadas
em casa (WHITE, 2011). É nesse contexto que o Reggae aparece como uma criação
estética nascida da necessidade de responder à precariedade de uma vida suburbana que
se desenrolava nas condições miseráveis e desumanas dos guetos (BARROW, 1993,
p.15).
2.3. Fogo na babilônia: música reggae e capitalismo
A compreensão da música reggae jamaicana perpassa necessariamente pela
análise da relação entre obra de arte e capitalismo, já que em seu processo de
desenvolvimento o capital acabou também colonizando a área que corresponde à
criação artística. Agrega-se a esse aspecto para Vázquez (2011) ao analisar Marx em
“Historia critica da teoria da mais valia”, que a produção artística na modernidade está
no espaço reservado ao que há de mais essencial na existência humana, contendo nestas
umas das expressões mais fundamentais da capacidade criativa do homem. Todavia, em
meio a esse contexto, faz-se necessário refletir que a própria criação da música popular,
como expressão artística, surge em momento anterior à instauração da infra-estrutura
social capitalista, e mesmo se retornássemos à música popular em suas primeiras formas
que teve contiguidade com o período capitalista, composto ainda pelo preâmbulo da
56
indústria fonográfica, pode-se constatar que essas obras comportavam ainda traços de
singularidade cultural, as músicas americanas, como jazz e o blues em seu inicio são
exemplos destas formas. É somente com a dissolução dos métodos de padronização das
harmonias musicais, utilizados pela indústria fonográfica para a massificação dessas
obras como mercadoria, que ocorrerá o processo de fetichização e empobrecimento da
composição musical. A partir desses elementos pode-se analisar o reggae produzido por
Bob Marley inserido nessa conjuntura e em sua relação com a indústria fonográfica,
verificando seus desdobramentos e consequência.
Nesse contexto da indústria fonográfica, caracterizado pela colonização e
exploração da produção musical sob o capitalismo, essa forma de organização social
fomenta um comportamento hostil em relação à produção destas obras. Isto significa
que o potencial estético de uma obra de arte é secundarizado em função de sua inserção
no mercado de circulação de mercadorias. O reggae de Bob Marley deve ser entendido
nessa relação conflituosa na sociedade moderna como uma forma de expressão sensível
da capacidade criativa da condição humana em mediação com as condições sociais, as
quais estão circunscritas em um determinado momento histórico, tendo a arte uma
relativa autonomia em relação às condições objetivas.
A autonomia musical do reggae implica considerar a liberdade formal de Bob
Marley em representar o mundo circundante capitalista tal qual o concebe. No entanto,
essa liberdade estética é relativa, visto que a representação artística não se constitui
somente da subjetividade do sujeito criador, mas evoca a realidade externa com o seu
devido conteúdo de verdade. A autonomia estética presente nessas canções diz respeito
à singularidade da obra em relação ao próprio mundo objetivo, haja vista a problemática
em que esses estão inseridos em meio às imposições extra-estéticas da indústria
fonográfica à sua produção, reduzindo as possibilidades formais do sujeito criador.
Muito embora, essa arte assuma uma capacidade desveladora e reveladora de um mundo
passível de contradições e tensões sociais, mesmo estando sistematicamente ameaçada
pelas seduções mercantis de um período marcado pela reprodução ampliada do capital.
Neste contexto, o princípio de autonomia comporta imediatamente a dinâmica social
com a qual sofre sistematicamente diversas influências, uma vez que ainda é domínio
superestrutural, de modo a sustentar uma díade pautada na autonomia e consciência
social. (SILVA, 2013).
Ao observar as músicas de Bob Marley diante destas reflexões sobre a relação
entre a arte e o capitalismo, surgem dois questionamentos: 1) quais limites são postos à
57
criação artística do músico nessa relação hostil entre arte e capitalismo? 2) até que ponto
essa relação consegue impedir que seu reggae floresça? É diante destes dilemas que
podemos compreender a crítica que Marley, em suas músicas, faz ao sistema capitalista
dominado pelos brancos, no qual os negros pobres vivem na miséria, isto é a
“babilônia” e todo sistema de opressão gerado nas Américas. Contudo, de forma
contraditória Marley produziu música de contestação e esperança, com teor
revolucionário, em meio aos ditames da indústria fonográfica e da “babilônia”,
conquistando reconhecimento neste mundo por ele negado. Essas canções foram criadas
através de um processo de crítica à condição de vida produzida pelo mundo capitalista,
ao tempo em que o artista se apropriou dos recursos tecnológicos capazes de
potencializar a criação e a difusão de sua obra. Inicialmente os seus álbuns fizeram
sucesso na clandestinidade, mas foi através das gravações realizadas nos EUA e na
Europa que ele alcançou seus maiores sucessos.
A “babilônia” representada nas poesias da música reggae diz respeito ao
mundo capitalista contemporâneo e às agruras produzidas na sociabilidade da população
negra jogada na miséria pelo mecanismo de reprodução do sistema. Esse capitalismo
refigurado nessas canções foi produzido pelo olhar da filosofia rastafári, influenciando
de maneira fundamental o desenvolvimento da música reggae. Bob em sua canção
“Babylon System” canta a rebeldia contra o sistema:
Babylon System
We refuse to be
What you wanted us to be
We are what we are
That's the way it's going to be, if you don't know
You can't educate I
For no equal opportunity
Talking about my freedom
People freedom and liberty
Yeah, we've been trodding on
The winepress much too long
Rebel, Rebel
We've been trodding on the
Winepress much too long, Rebel
Babylon System is the Vampire
Sucking the children day by day
Me say the Babylon System is the Vampire
Sucking the blood of the sufferers
Building church and university
58
Deceiving the people continually
Me say them graduating thieves and murderers
Look out now
Sucking the blood of the sufferers
Tell the children the truth
Tell the children the truth
Tell the children the truth right now
Come on and tell the children the truth
'Cause we've been trodding on
The winepress much too long
Got to Rebel, Got to Rebel Now
We've been taken for granted
Much too long, Rebel
From the very day we left the shores
Of our father's land
We've been trampled on, oh now
Now we know everything we got to rebel
Somebody got to pay for the work
We've done, Rebel30
Desta forma, essa canção, traz a representação rasta contra o sistema da
babilônia que quer adestrar o povo através de uma educação que prega igualdade
equitativa dentro de um sistema que vive da desigualdade. As letras de suas canções
fazem alusão direta à necessidade de um processo de rebelião. O sistema da babilônia é
apresentado como um vampiro que suga o povo negro, levando-o a condições
desumanas de vida.
Segundo White (2011), a importância dos rastas e dos preceitos do
rastafarianismo para o desenvolvimento da música jamaicana interfere diretamente na
forma como estes se relacionam com o processo de composição, de modo que muitos
artistas se recusaram a participar dos conluios cotidianos e do comércio da sociedade
capitalista, que fariam parte da “Babilônia”, muitos buscaram os meios para criar seu
próprio selo para difusão de suas obras.
30
Sistema da Babilônia: Nós nos recusamos a sermos / O que vocês querem que sejamos / Nós somos quem somos / E
é assim que vai ser, se você não sabe! / Vocês não podem me educar / Para oportunidades desiguais / Falando da
minha liberdade / Um Povo livre e liberdade! / É, nós temos marchado para / Essa prensa de vinho há muito tempo /
Rebelem-se, Rebelem-se / É, nós temos marchado para / Essa prensa de vinho há muito tempo, Rebelem-se / O
Sistema da Babilônia é o Vampiro / Sugando as crianças dia após dia / Eu disse que o Sistema da Babilônia é o
Vampiro / Sugando o sangue dos que sofrem / Construindo Igrejas e Universidades / Iludindo as pessoas sem parar /
Digo que eles congratulam, bandidos e assassinos / Olhe agora / Eles estão sugando o sangue dos que sofrem. /
Contem a verdade para as crianças! / Contem a verdade para as crianças! / Contem a verdade para as crianças agora
mesmo! / Contem a verdade para as crianças / Porque nós temos marchado para essa prensa de vinho há muito tempo
/ Rebelem-se, rebelem-se agora! / E nós temos sido adquiridos / Por muito tempo rebelem-se / Desde o dia em que
saímos das praias / Da terra de nosso pai / Nós fomos pisoteados, oh agora / Agora sabemos de tudo, temos que nos
rebelar / Alguém tem que pagar pelo serviço / Que nós fizemos, rebele-se!
59
Tal capacidade criativa de Bob Marley em suas composições, em meio ao
contexto de desenvolvimento de uma indústria fonográfica ainda incipiente em um país
de economia subdesenvolvida, possibilitou ao reggae a capacidade de fugir da
padronização da indústria cultural, formando uma base sólida em seu conteúdo e forma.
Por outro lado, a necessidade incessante de crescimento e de auto-renovação da
indústria cultural levou as gravadoras a buscarem novos territórios de produção musical
e novos estilos que pudessem suprir as necessidades do mercado consumidor de música,
nesse contexto, de forma contraditória, mesmo o reggae tendo por conteúdo a denúncia
das agruras do capitalismo será apropriado pela grande indústria fonográfica como
forma de se revitalizar. Essa trajetória faz com que o reggae refaça o percurso de outros
gêneros da música popular, como o jazz e blues, e se difunda por todo mundo, no
entanto, nesse curso o gênero se apropriará de elementos anglo-saxões, mas mantém a
capacidade de refigurar a cultura local e sua singularidade.
As músicas de Bob Marley têm como seu conteúdo central questões referentes
à condição humana estabelecida pelo caráter desumano das relações econômicas
capitalistas. Ao criticar as relações sociais travadas na sociedade moderna, o músico
revela sua vinculação com uma concepção humanista e revolucionária da sociedade e do
homem. Ao contrário do pretendido por Kant (1961) ao defender um princípio de
desinteresse na sua concepção de belo, as obras de arte produzidas por Bob Marley,
estão ligadas diretamente à necessidade do povo pobre e negro da Jamaica. Pode-se
perceber de maneira evidente na música “Trench Town” todo o conteúdo político da
música de Bob Marley e de que forma esta era utilizada como instrumento político de
contestação e utopia:
Trench Town
(Bob Marley, 1980)
Scoop, scoop, scoop, scoo-doo;
Scoop, scoop wa-doo.)
Up a cane river to wash my dread;
Upon a rock I rest my head.
There I vision through the seas of oppression, oh-oo-wo!
Don't make my life a prison.
We come from Trench Town, Trench Town (Trenchtown) Most of them come from Trench Town.
We free the people with music (sweet music);
Can we free the people with music (sweet music)?
Can we free our people with music? - With music,
60
With music, oh music!
Oh-y, my head,
In desolate places we'll find our bread,
And everyone see what's taking place, oh-oo-wo! Another page in history.
We come from Trench Town,
Come from Trench Town;
We come from Trench Town.
Lord we free the people with music (sweet music);
We free the people with music (sweet music);
We free our people with music,
With music, oh music (oh music)!
They say it's hard to speak;
They feel so strong to say we are weak;
But through the eyes the love of our people, oh-oo-wo!
They've got to repay.
We come from (Trenchtown) Trench Town;
We come from (Trenchtown) Trench Town;
Trench - Trench Town (Trenchtown).
They say, "Can anything good come out of Trench Town?"
(Trench - Trenchtown)
That's what they say, (Trenchtown); (Trench - Trenchtown)
Say (Trench - Trenchtown) we're the underprivileged people,
So (Trenchtown) they keep us in chains:
"Pay (Trench - Trenchtown) - pay - pay tribute to -" (Trenchtown).
We come from (Trench - Trenchtown);
We come from (Trench - Trenchtown);
Just because we come from Trench Town.
Not because we come from Trench Town;
Just because we come from (Trenchtown). /fadeout/ 31
A canção remete à zona urbana de Trench Town como espaços de mazelas
sociais, mas que ao mesmo tempo é o espaço onde surge o elemento de libertação do
povo: a música reggae. É em meio à miséria e descontentamento que emergem os tons
que levaram a história desse povo a outros contornos sociais. Os versos cantam a
importância da música reggae para o processo de emancipação de um povo, essa
harmonia tem que trazer contestação e utopia para cumprir sua missão de libertação.
31
Trench Town: Scoop, scoop, scoop, scoo-doo/ Scoop, scoop wa-doo/ Subindo o rio Cane/ Para lavar meus dreads/
Numa pedra encosto minha cabeça/ Lá eu tenho visões dos mares de opressão , oh-oo-wo!/ Não transforme minha
vida numa prisão/ Nós viemos de Trench Town/ A maioria deles vem de Trench Town/ Nós podemos libertar pessoas
com música (doce musica)/ Podemos libertar pessoas com música (doce musica) / Podemos libertar pessoas com
música? / Com musica, Com musica, oh musica! / Uh minha cabeça / Em lugares desolados acharemos nosso pão / E
todos vêem que estão tomando lugar / Outra página da história / Nós viemos de Trench Town / Vindos de Trench
Town / Nós viemos de Trench Town / Senhor, nós libertaremos pessoas com música (doce musica) / Nós libertamos
pessoas com musica (doce musica) / Nós libertaremos nosso povo com musica (doce musica) / Com musica, oh
musica! / Eles dizem que isto é muito difícil de falar / Eles sentem-se fortes chamando-nos de fracos / Mas através
dos olhos do amor do nosso povo, oh /Eles terão que pagar / Nós viemos de Trench Town /Nós viemos de Trench
Town / Trench Town / Parte falada(final)/ Eles dizem "pode vir algo de bom de Trench Town?" / É o que eles dizem/
Nós somos desprivilegiados / Então nos mantém acorrentados / Paguem tributo à Trench Town (Trench Town ) / Só
porque somos de trench Town / Não porque somos de Trench Town / Só porque somos de Trench Town.
61
Doravante, para White (2011) o reggae produzido por Bob Marley traria como
eixo a necessidade de não se afastar das problemáticas que envolvem o gueto:
De Bob Marley a todos os outros, nenhum artista dos mais altos escalões das
favelas jamais conseguira romper totalmente os laços com a vida nas yards,
mantendo sempre uma certa familiaridade com seus maneirismos e levando
consigo uma carga de culpa mal resolvida em relação aos irmãos deixados
para trás na sarjeta abjeta. E mais, os triunfos do reggae da Jamaica como
música transfronteiriça sempre foram temporários ou condicionais, sua
potência internacional ainda estranhamente dependente de um apego às raízes
e a um status de ponta nas esferas da zona pobre do centro da cidade
(WHITE, p. 337, 2011).
A expressão artística do reggae, nesse contexto explosivo, se transformou em
uma arma de síntese de questões sociais, raciais, políticas, filosóficas e religiosas,
utilizadas para contestar e apontar um horizonte utópico de emancipação motivada pelos
princípios da fé rastafári (WHITE, 2011). O movimento rastafári surge na Jamaica na
década de 1930 sobre influencia do processo de escravidão negro, das condições
humanas do povo negro da América Central e das ideologias de Marcus Garvey e do
Pan-africanismo. O rastafarianismo será responsável pela última onda “popular” de
êxodo à África preconizada para quando um imperador negro chegasse ao poder na
região, tendo por base o milenarismo cristão, a chegada do controverso Tafari
Makonnen32 ao governo da Etiópia levou a sua “canonização” por este movimento.
A relação do país caribenho com o messianismo não é algo que se inicia com a
religião rastafári, a história da ilha é permeada desde o início do século XX pela crença
messiânica de caráter racialista, a exemplo dos maroons33 que permaneciam presentes
no imaginário popular. Nesse período a principal referencia religiosa popular era a seita
batista da “Jamaica Native Baptist Free Church” (1889), que teve como seu principal
liderança Alexander Bedward – influenciada pelo avivamento cristão europeu ocorrido
entre 1850 e 1900 –, esse levanta-se como messias dos Bedwardites e em 1895
32
Haile Selassie ou Hailê Selassiê nascido em 23 de julho de 1892 – Adis Abeba, 27 de agosto de 1975, nascido
Tafari Makonnen e posteriormente conhecido como Ras Tafari, foi regente da Etiópia de 1916 a 1930 e imperador
daquele país de 1930 e 1974. Herdeiro duma dinastia cujas origens remontam historicamente ao século XIII e,
tradicionalmente, até o Rei Salomão e a Rainha de Sabá, Haile Selassie é uma figura crucial na história da Etiópia e
da África. (Leia mais: http://espacoreggae.webnode.com.br/products/haile-selassie/)
33
Os marrons são os africanos escravizados que em 1965 que fugiram para o deserto americano para formar suas
próprias comunidades separadas – formando uma forma de resistência e adaptação ao Novo Mundo. Estes maroons
(ou outlyers, como eram chamados frequentemente na América do Norte) configurar pequenas comunidades em
pântanos ou outras áreas onde eles não eram susceptíveis a serem descobertos.
62
conclamava seus fiéis a “lembrarem-se de Morant Bay”, a grande rebelião jamaicana de
1865 que tinha como lema:
[...]“há um muro branco e um muro negro, e o muro branco
fechava-se em torno do muro negro; mas agora o muro negro
está ficando maior que o muro branco, e deve derrubá-lo. Por
anos o muro branco nos oprimiu; agora devemos oprimir o muro
branco.
Depois de um período de privação de sua liberdade, entre internamentos e
prisões, em 1921 Bedward reapareceu guiando seus fiéis em procissão de Augustus
Town até Kingston, sendo novamente preso. Na delegacia ele se apresentou de forma
veemente como Jesus Cristo, sendo novamente internado em uma clínica de transtornos
mentais. Antes de mudar sua identidade de Paul Bogley para Jesus Cristo, Bedward
aproximara-se do movimento garveísta, levando consigo muitos fiéis que viam em
Garvey um profeta ou o novo Moisés (ver figura 3) (MANOLO; BERNARDO, 2010).
Figura 3: Garvey em um desfile.
Fonte: Página da Brack History Heroes. 34
34
Disponível em: http://www.blackhistoryheroes.com/2010_06_01_archive.html
63
Observa-se a partir desse contexto, que a ilha caribenha tem uma longa história
alicerçada nas profecias de caráter religioso e racialista. Segundo Cunha (1993), o
Rastafarismo constitui um amplo conjunto de práticas e ideias que começaram a se
esboçar a partir de movimentos político-religiosos e, sobretudo, étnicos, na Jamaica
desde o século XIX. A religião rastafári emerge mediante uma reinterpretação étnica da
bíblia, os rastas, como são denominados seus adeptos, promoveram um constante
movimento contra a opressão escravista britânica, ao afirmar a redenção do povo negro
por meio do repatriamento à África, em especial à Etiópia, tida como Terra-Mãe. A
gênese desse movimento garveísta encontra-se na interpretação moderna da bíblia e no
etiopismo, que menciona o livro do Gêneses (2:13) situando o reino de Cuch ao sul do
jardim do Éden. A Septuaginta – base de muitas traduções modernas da Bíblia, junto
com a Vulgata – traduziu o hebraico “Cuch” como “A’ithiopia”, raiz grega da atual
denominação, já encontrada na obra de Heródoto. De fronteiras fluidas, este território
abrange a região localizada atualmente entre o norte do Sudão, o sul do Egito e partes
da Etiópia, Eritréia e Somália. Esta “confusão” entre Etiópia e África está presente na
raiz do etiopismo enquanto ideologia popular na Jamaica (ver mapa 1).
George Lisle, primeiro missionário batista a chegar à colônia no século XVIII,
convertia novos fiéis afro-descendentes ressaltando as passagens da Bíblia que falavam
da Etiópia (África) para gerar identificação entre o conteúdo bíblico e seus leitores, e
sempre iniciava seus sermões com a mesma exortação: “Levantai, ó filhos da Etiópia”.
A própria salvação milenar cristã era ensinada por Lisle como o advento de um novo
império etíope, amalgamado com a libertação social e política da opressão. Nem a
posterior chegada de missionários batistas britânicos, enviados à Jamaica para corrigir
esta “heresia”, foi capaz de redirecionar o etiopismo segundo os preceitos batistas
tradicionais. Com esta bagagem histórica, não era de se estranhar que a Etiópia fosse
assunto corrente entre os jamaicanos de origem africanas no começo do século XX,
muitas, inclusive, clamando pela ancestralidade etíope e mesmo pela ascendência da
linhagem salomônica (MANOLO; BERNADOR, 2010).
64
Mapa 1: Mapa histórico com os limites aproximados dos impérios kushita e
aksumita
Fonte: imagem Images Photo Gallery35
Esses elementos fizeram com que se disseminasse na América Central a
perspectiva de a África ser a terra sagrada de salvação do povo negro. Além disso, os
rastafáris produziram uma série de outros princípios e símbolos que deveriam ser
utilizados pelos seus seguidores: a alimentação naturalista, os dreadlocks, o uso da erva
sagrada (a ganja), todos estes elementos possuem a finalidade de deixar o homem
próximo da natureza e permitir um contato mais direto com Jah36 (CUNHA, 1993).
Juntando a situação política jamaicana, a emergência de um movimento religioso
radicalizado, embora pacífico, e a ânsia por tempos melhores para o povo da Jamaica,
Bob Marley passa a produzir suas obras musicais. Em diversas canções do músico
torna-se evidente como está representado o contexto social e histórico de diversos
aspectos da sociedade jamaicana (rastafarianismo, trabalho, pobreza, racismo, entre
outros), especialmente a vida cotidiana dos setores marginalizados, trazendo sempre um
caráter contestatório e antecipatório da realidade.
Devido a esse conteúdo imanente gerou-se nas agências policiais, jamaicanas e
internacionais, a necessidade de monitoramento tanto da vida do músico jamaicano
quanto do movimento rastafári e dos concertos de reggae. White (2011) ao relatar essa
situação destaca que nas décadas de 1970 e 1980, a Agência Central de Inteligência
(CIA) e outras agências de segurança arquivavam os registros da vida e da carreira de
Bob Marley, e o acompanhavam sob a vigilância. Aliás, o autor ao construir a biografia
do músico declara que recebeu da CIA confirmação “que ela e outras agências
35
36
Disponível em: http://withfriendship.com/user/levis/kingdom_of_kush.php
Jah é a forma denominada pelos rastas para chamar Jeová ou Deus.
65
governamentais dos Estados Unidos da América mantinham de fato arquivos sobre o
ambiente do reggae jamaicano, o movimento rastafári e as atividades de Bob Marley”
(WHITE, 2011, p. 14).
A relação entre arte e política nas músicas de Bob Marley, inclusive, remete às
bases trazidas pelo rastafarianismo e seus ideais de liberdade e igualdade os quais são
elementos fundamentais para entender a relação dessas canções com estas questões.
Segundo Linton Kwesi Johnson (1993) a religião dos rastas incidiu sobre as músicas de
reggae não só em seu conteúdo, mas também em sua forma, na inserção de back vocais
e em um arranjo harmônico, lírico, haja vista que diversas canções do reggae foram
inspiradas nos hinos religiosos. Com isso, o conteúdo das canções refere-se a questões
políticas que envolvem os preceitos rastafáris que prega a insurreição dos negros contra
a dominação branca por meio do regresso ao continente africano, que se consolidaria
quando na África ocupasse o poder um Rei negro – o 225º descendente da linhagem de
Menelik, o filho do rei Salomão e da rainha de Sabá, que libertaria a raça negra do
domínio branco – em parte essa nova versão tomava por base o status de Selassiê como
o único monarca. Essa visão messiânica propagou-se entre o proletariado de Kingston
como uma reação à influência ocidental (PATTERSON, 1994, p. 05), pois pregava o
retorno dos negros à África, numa espécie de repatriação espiritual. O álbum “êxodus”
(1977) que tem como subtítulo Movement of Jah People tinha relação direta com a
chegada de Hailé Selassié ao poder e com a jornada final do povo negro ao continente
africano, pode-se verificar isso na faixa:
Exodus
Exodus, movement of JAH people(Oh,Yeah)
Exodus, movement of JAH people
Men and people will fight ya down,tell me why
when ya see JAH light
let me tell you if you're not wrong(and why)
everything is allright
so we gonna walk,(allright) through the roads of
creation
we're the generation,tell me why
who trod through great tribulation
Exodus, movement of JAH people
Exodus, movement of JAH people
open your eyes and look within
are you satisfied with the life
you're living (huh)
66
We know where we're going
we know where we're from
we're leaving babylon
we're going to our father's land
Exodus, movement of JAH people
Exodus, movement of JAH people
Exodus, Exodus, Exodus
Exodus, Exodus, Exodus
movement of JAH people
movement of JAH people
movement of JAH people
movement of JAH people
move, move, move, movement of JAH people
JAH come to breakdown downpression, rule equality
wipe away transgression
and set the captives free
Exodus, movement of JAH people
Exodus, movement of JAH people37
A música ao representar o processo de migração de retorno do povo africano às
suas origens critica a vida levada pelo povo da diáspora africana na Babilônia
(capitalismo), sendo por via da transmigração para a terra prometida que o povo negro
romperia com as opressões das quais são vítima na América Central. Em entrevista com
White (2011) o próprio Bob Marley explica porque o povo rasta deveria emigrar da
“Babilônia” para a África:
[...] uma terra sem fronteiras na qual os homens pecam e sofrem por ela [...]
Quem tem poder no governo jamaicano deveria limpar os esgotos e as favelas
e alimentar a minha gente, as minhas crianças! Leio o jornal e fico
envergonhado. É por isso que tenho que sair desse lugar e voltar pra África.
Se aquilo fosse o meu lar, eu amaria a Jamaica... e não me sentiria como se
isso daqui não fosse o meu lugar. Eu não quero lutar contra a polícia; a
polícia é cruel e ajuda a atiçar a confusão. Mas quando eu for a África, se
alguém disser que não, então não tem jeito: vou ter que entrar em luta.
(WHITE, 2011, p. 21).
37
Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Os homens e as pessoas
irão lutar ya / (Diga-me por quê!) / Ao ver ya a luz de Jah / Deixe-me dizer-lhe se você não está errado /
(Então, por quê?) / Tudo está tudo certo / assim que vamos andar (certo!) através da estrada da criação /
Somos a geração (Diga-me por quê!) / Que tropeia pela grande tribulação / Êxodo: movimentação do
povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah /Abra seus olhos e olhe por dentro / Você está
satisfeito com a vida / Que leva? (Uh!) / Sabemos onde estamos indo / Nós sabemos de onde somos /
Estamos deixando a Babilônia / Indo para a terra de nossos pais / Êxodo: movimentação do povo de Jah /
Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo, Êxodo, Êxodo! / Êxodo, Êxodo, Êxodo! / movimentação
do povo de Jah / movimentação do povo de Jah / movimentação do povo de Jah / movimentação do povo
de Jah / mover, mover, mover, movimentação do povo de Jah / Jah vir a quebrar a depressão, governar
com igualdade / Varrer a transgressão / E libertar os que estão aprisionados / Êxodo: movimentação do
povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah.
67
A perspectiva de superação dos rastafáris e de Bob Marley estava ligada ao
imaginário do movimento Pan-africanista, que tem como eixo de análise as contradições
vivenciadas pelos negros na sociedade moderna, tanto na África quanto na diáspora.
Esse movimento prega a união de todo o povo negro em um único Estado, na África. O
rastafarianismo que tem como seu principal disseminador Marcus Garvey38, tornando-se
uma das vertentes mais fortes do complexo movimento de disseminação de uma visão
política africanista proposta pelo movimento Pan-africanista surgido na primeira metade
do século XIX, a partir dos contatos entre negros da Grã-Bretanha, Antilhas, EUA e
lideranças do continente africano. Esse movimento político era uma resposta às teorias
raciais, desenvolvidas ao longo do século XIX, a exemplo da eugenia que pregava
instrumentos de controle social como instrumento para melhorar ou piorar as qualidades
raciais de gerações futuras, quer física ou mentalmente, e do darwinismo social a
doutrina que tenta explicar a vida social nos moldes da evolução biológica, transpondo
os fenômenos evolutivos na natureza para a vida humana em sociedade (HERNANDEZ,
2005; APPIAH, 1997; DECRAENE, 1962).
O pan-africanismo prega enquanto horizonte de atuação política, a
transformação do continente africano em um Estado único do povo negro. Os teóricos
do pan-africanismo, embora reconhecessem a diversidade étnica presente no continente,
por via de seus ideais políticos criaram um ideário de uma África idílica, politicamente
homogênea, território singular de encontro do povo negro, deixando de lado todas as
suas mazelas geradas por anos de exploração colonial e conflitos pelo poder. Para
Manolo e Bernando (2010), “A África rastafári, transformada em utopia e mito, é uma
“África” edênica, sem conflitos interétnicos ou interclassistas, uma “África” que
precisa, segundo a ideologia rastáfari, ser libertada da opressão da Babilônia”. E é esta
África mítica que servirá como pano de fundo de toda a política do pan-africanismo,
negligenciando-se o capitalismo enquanto sistema propiciador destas contradições.
Dessa forma, desconhece-se que o próprio continente africano não escapava das
contradições capitalistas. A África, nessa perspectiva, é tida como a origem de todas as
práticas, costumes, culturas e religiões dos negros da diáspora. Nesse sentido, o
38
Em 1926, o Real Pergaminho da Supremacia Negra, obra religiosa escrita por Fitz Balintine Petersburgh
com a técnica surrealista do fluxo de consciência, referia-se muito favoravelmente a Garvey como um
“piloto” que levaria os negros de volta à África, além de mencionar Robert Rogers em várias passagens.
Ambos os textos são tidos como precursores diretos do movimento rastafari. (ver em: http://www.sacredtexts.com/afr/rps/)
68
Rastafarismo como um flanco do pan-africanismo aparece na música reggae de Bob
Marley representando o continente africano como horizonte de salvação de um povo.
Não obstante, Bob Marley quando foi ao continente africano encontrou um
território que não correspondia a seu imaginário rasta. Deparou-se com uma realidade
análoga à vivenciada na Jamaica, as mesmas favelas, o povo vivendo na miséria,
política corrompida, o poder armado do Estado agindo cruelmente sobre as massas. Um
continente que estava entregue às lutas civis, em meio a processos de independência, à
instauração de governos ditatórios, sendo um território regido pelos processos de lutas
entre etnias que batalhavam pelo poder, onde os lideres políticos eram derrotados por
meio da luta armada. Diante dessa realidade se encontrava Hailé Selassié I (ver figura 3
e 4), primeiro imperador negro no continente africano, rei dos reis na Etiópia, e
propagado pelos rastas como cumprindo a profecia bíblica que levaria a salvação de seu
povo. Mas diante dessa realidade Bob Marley encontrou um povo indignado com o
regime ditatorial implantado no governo do considerado herdeiro de Jah.
Figura 3: Hailé Salassie em seu Império na Etiópia
Fonte: Pagina do allposters39
39
Disponível no: http://www.allposters.com.br/-sp/Haile-Selassie-Emperor-of-Ethiopiaposters_i3728999_.htm
69
Figura 4: A Etiópia governada pela mão de ferro da junta militar de Hailé
Salassie
Fonte: Página do travelhomepage.40
O homem no qual depositava-se a esperança de salvação dos rastafáris, o
Imperador Haile Selassie, tornou-se um líder reacionário e retrógrado em seu país,
instaurando um governo que se preocupava não apenas com a preservação da
independência etíope, mas também em manter a antiga ordem política, econômica e
social do país. Nesse contexto, a Etiópia era dirigida por um pequeno grupo social,
formando uma a aristocracia feudal amárica, que consistia do Imperador e seus nobres,
que constituíam não apenas uma classe social dominante41, mas eram também os líderes
do grupo étnico predominante no país. (MANOLO; BERNARDO, 2010)
Mesmo diante do paradoxo que foi para Marley a visão real de África, pode-se
perceber que não há um esvaziamento do conteúdo estético de suas canções, que
permanecem impregnadas do caráter popular, mergulhando no imaginário dos conflitos
de países economicamente marginais sob o ponto de vista do desenvolvimento do
capital, enfatizadas pelos princípios da fé rastafári, bem como pelos símbolos e
máximas derivados do folclore jamaicano e africano. Mas, ainda assim, carregava
aspectos que trazem esperança de mudança através das ações dos homens, essas
composições se apresentam como alternativa de negação emancipacionista das agruras
do mundo capitalista moderno, na condição de expressões populares que conseguem
sobreviver criticamente, mesmo inseridas no cenário atual do fetichismo da obra de arte,
dado pelo mercado cultural.
40
41
Disponível em: http://www.travelhomepage.de/ethiopia/ethiopia.htm
Um exemplo desse processo paradoxo representado pelo governo imperado da Etiópia e a forma de funcionamento
do parlamento, que embora existisse funcionava de forma manipulada. O imperador escolhia os membros da Casa
Alta com os nobres, e a Casa Alta, consistindo geralmente da alta nobreza, escolhia a Casa Baixa entre a baixa
nobreza. A política partidária não era permitida. A política consistia de faccionalismo em torno de candidatos rivais ao
trono, ministérios e governadorias.
70
3. O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB MARLEY
O tom vai conosco e é Nós, não é como as artes
plásticas que nos acompanham só até a sepultura,
elas que antes disso pareciam apontar para lugares
tão acima de nós, para o rigoroso, o objetivo, o
cósmico; é, antes, como as boas obras, que nos
acompanham até para além da sepultura; e isto
justamente porque o novo símbolo na música, que é
mais pedagógico, e sim real, brilha tão embaixo, tão
como uma mera irrupção ígnea em nossa atmosfera,
embora seja nada menos que uma luz no firmamento
mais longínquo e, todavia, mais íntimo.
Ernst Bloch, Geist der Utopie [Espírito da utopia]
Há algo de ultrapassador e inconcluso na música, de
que nenhuma poesia já consegue dar conta, a não ser
aquela que a música possivelmente venha a
desenvolver a partir de si mesma. O caráter aberto
dessa arte mostra, ao mesmo tempo, de forma
especialmente incisiva, que também no que se refere
ao conteúdo das demais artes ainda não se chegou ao
fim da jornada.
Ernst Bloch, Subjekt-Objekt, Erläuterungen zu
Hegel [Sujeito-objeto, esclarecimento sobre Hegel]
Estas passagens textuais de Ernst Bloch se põem de forma expressiva à reflexão
do que vem se propondo aqui: a música em seu princípio de esperança. Ademais, em “O
Princípio Esperança”, este autor propõe o estudo das motivações humanas relacionadas
à esperança e a sua repercussão no âmbito das relações sociais em suas múltiplas
expressões, dentre elas as artísticas. Neste interim, o autor define como os prelúdios se
formam a partir da gênese do pensamento, traçando o devir inerente ao
desenvolvimento histórico da realidade social. Os prelúdios configuram-se como
respostas antecipadoras dos sujeitos históricos ao contexto social no qual estão
inseridos, impulsionados pelos incessantes desejos, sonhos e anseios por melhores
condições de vida. Os prelúdios são, nesse sentido, abstrações pré-conscientes sobre o
mundo, dando condições ao sujeito histórico em determinada situação na qual “a
introversão ou o relacionamento tão-só com o entorno mais imediato” da vida cotidiana
de “comunicar-se com o que está além de si mesmo”. Esse desenvolvimento se dá pelo
sentimento de autopreservação humana, tendo por ponto de partida as pulsões mais
imediatas, como a fome, passando pelo exercício de apreensão das causas do fenômeno
71
e por fim chegando ao instante de superação dos obstáculos inerentes às condições
objetivas de existência, aportando para o objeto que satisfaz as necessidades mais
pungentes o “afeto expectante”, o mais importante da condição humana na esfera da
sociedade de classe capitalista: a esperança.
A música como já vimos nos capítulos anteriores tem capacidade de expressão
diretamente humana, mas para além dessa propriedade, na análise de Bloch (2006), ela
se diferencia das outras expressões artísticas por ainda conter a potencialidade de
acolher o conteúdo de múltiplos sofrimentos, os desejos e os pontos expectantes da
classe oprimida. A música tem uma ampla capacidade de transgredir as barreiras do
espaço e tempo constituinte de seu período histórico, mas sem abandonar a esfera
humana, trata-se do princípio esperança, presente mesmo no sofrimento infligido pelas
condições sociais da modernidade capitalista.
Esse capítulo tem justamente por objetivo a análise do conteúdo emancipatório
das letras de Bob Marley, identificando na obra do compositor o princípio esperança
presente de forma peculiar nas canções de quatro álbuns: Soul Rebel (1970), Catch a
Fire (1973), Burnin (1973) e Survival (1979). Desta forma, a música reggae em sua
plenitude será entendida através de seu elemento de autonomia. Embora essas obras
sejam também uma objetivação do conteúdo social, elas apresentam autonomia relativa
face à realidade exterior, o que lhe possibilita transcender o espaço e o tempo. O caráter
emancipatório dessas canções é entendido aqui através da capacidade que essas obras
têm de atuar sob dupla face: ser portadora de um conteúdo estético no qual se afirmam
elementos de negação das situações de opressão dominantes; e, por outro lado,
vislumbrar outra realidade, projetando outras possibilidades sociais (BLOCH, 2006). A
busca
por
entender
de
modo
mais
aprofundado
a
proposta
estética
42
deste
cantor/compositor, sobretudo naquilo que apresenta em seu conteúdo emancipatório e
contestatório em relação à realidade social, é o que a torna esse objeto passível de uma
abordagem eminentemente sociológica. Por sua vez, tem por tônica fundamental
compreender a emancipação enquanto expressão objetiva do momento histórico da música
em seu caráter particular, o que se mostra possível desde que se aborde essas obras de arte
em seu caráter antecipatório de um futuro social utopicamente desejado.
42
Quando nos referimos ao caráter estético o fazemos com base na proposição de Roger Bastide que
cunhou o conceito de estética sociológica, compreendendo que a forma estética encerra um conteúdo
social interno e mantêm uma viva relação de reciprocidade com a sociedade (BASTIDE, 1979).
72
As músicas de Bob Marley ao destacar-se justamente pela abordagem do
cotidiano vivido pelas camadas oprimidas da população jamaicana, que ocupavam os
chamados “bairros de lixo” (Trench Town), ganhou força pelo modo como representou
profundamente a realidade social e as adversidades vividas geralmente por esta
população marginalizada. Nesses locais, predominavam diversos problemas sociais
como violência, fome, miséria e desemprego, e as letras das músicas de Marley, além
desta inclinação crítica inicial, ganhariam ainda elementos religiosos alicerçados no
Rastafarismo, religião adotada pelo músico e que, dentre outras coisas, denunciava o
sistema de opressão vivenciado pela população pobre negra. Aliás, esse conteúdo
contestatório do reggae apresenta um potencial antecipatório/utópico, que nos leva a
princípios dinâmicos de esperança (BLOCH, 2006), conduzindo-nos a agir diretamente
na realidade imediata para que possamos ultrapassar essa cotidianidade e alcançar o
futuro potencial representado na música.
A teoria da utopia desenvolvida por Bloch fundamenta a concepção de
emancipação que nós utilizaremos na análise do reggae, na medida em que o autor
recupera as discussões sobre a esperança contida no conceito de utopia, estando essa
categoria inerente ao movimento dialético do conhecer-se a si mesmo. Para chegar a
esse produto Bloch articula a filosofia da práxis de Marx e a ontologia da “consciência
antecipadora” ao que “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo, o homem, compreendido
como um ser ainda em formação é remetido em direção ao futuro, ao novum, ao devir.
Ao analisar esteticamente o conteúdo emancipatório do legado musical de Marley,
busca-se desvendar se de fato encontra-se nas suas composições um conteúdo da crítica
ao presente e de antecipação de um mundo futuro, e de que maneira tal conteúdo está
relacionado com algumas expressões sociais, como as de raça, trabalho, marginalização
e religião.
Para Bloch, esse caráter utópico/emancipatório nas artes surge dos sonhos
diurnos que se originam do desejo de ultrapassar as condições objetivas no mundo
social. Esses sonhos diurnos antecipatórios são guiados pelo impulso de auto-expansão
em direção frontal, o que significa que esse sonho diurno tido como prelúdio da arte
vislumbra a melhoria do mundo. Esse elemento antecipatório que nasce da vida
cotidiana é apropriado pela consciência, e nisto consiste sua natureza utópica (BLOCH,
2005). Sobre a música em particular, E. Bloch pondera que o sonho diurno penetra na
composição musical e torna parte dela a expansão do mundo, atuando como sonho
dinâmico e expressivo, tornando-se um além, transgredindo os limites da forma da
73
música em tempos de coisificação do mundo. A categoria utopia apresenta tanto o
sentido habitual, justificadamente depreciativo, trazendo consigo limitações à sua
objetivação o que pode nos remeter à idéia de fantasia, inatingibilidade ou ilusão,
quanto também contém outro sentido que de modo algum é necessariamente abstrato ou
alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado a ele, a práxis, carregado pelo princípio
de objetividade, no sentido de romper com o curso natural dos acontecimentos e de um
dado real (BLOCH, 2005).
Neste sentido, diante de uma sociedade regida pelo imediatismo de uma
realidade dominada pela razão instrumental, a relação dialética do sujeito com a
natureza historicamente constitui-se enquanto uma relação de dominação da natureza e
da própria humanidade. Decorrente da divisão do trabalho, a relação dialética de
dominação aliena o sujeito de tal modo que este se torna um ser estranhado à natureza e
aos homens, mesmo fazendo parte da própria natureza. Portanto essa natureza é uma
unidade, embora com sua complexa diversidade natural, a tentativa de separação das
suas diversas partes culmina na transformação da realidade em uma unidade
fragmentada, na qual o processo de dominação da natureza envolve a dominação
humana, ganhando significado a partir da potencialidade de objetivos funcionais. Há
uma subjugação da natureza tanto em relação à negação da própria natureza humana,
quanto em relação aos aspectos da natureza exterior à humanidade. O homem passa a
negar tanto a sua própria natureza, quanto a totalidade da natureza. Horkheimer (2002)
busca abordar essa alienação do homem em relação ao natural por via da razão presente
na sociedade industrial, que no processo de centralização da subjetividade pragmática,
subjuga a natureza, desembocando em um eclipse, em uma perda momentânea da luz,
fazendo-nos mergulhar na sombra e na barbárie. Já Lukács (1959) caracteriza esta época
pelo definhamento da razão e a ascensão da decadência intelectual e moral na sociedade
burguesa. No entanto, Bloch percebe a necessidade de superar essa perda de si e da
natureza por parte da humanidade, sugerindo:
“[...] necessitamos de um telescópio mais potente, o da consciência utópica
afiada, para atravessar justamente a proximidade mais imediata, assim como
para atravessar o imediatismo mais imediato, em que ainda reside o cerne do
encontrar-se e do estar-aí, no qual está simultaneamente todo o nó do
mistério do mundo.” (BLOCH, p.13, 2006)
74
A perspectiva de Bloch concebe a música como expressão eminentemente social
que está ligada diretamente à objetividade da realidade devido a sua gênese criadora ter
seu centro na materialidade das relações humanas, mas, ao mesmo tempo, esta arte
constitui-se em um intervalo para os pensamentos e elaborações pré-conscientes que
antecipam seus termos ao captar, no presente, os primeiros elementos formadores de sua
manifestação, restando à canção desenvolver uma compreensão daquilo que há de mais
profundo no futuro.
Este ponto se mostra fundamental ao estudo da extensão e dos limites deste
caráter emancipatório na música de Bob Marley. Ao investigarmos a representação do
reggae deste jamaicano que conquistou públicos, internacionalmente, com suas músicas
e letras politicamente combativas, descobrimos suas composições enquanto alternativa
de negação emancipatória das agruras do mundo capitalista moderno. Desta forma, a
música reggae conforma algo bastante peculiar: enquanto expressão subjetiva desvela
elementos da constituição afetiva do ser humano, permitindo, assim, emergir os afetos
expectantes. Muito embora, essa música devido ao seu conteúdo político, não se limite a
refletir os aspectos afetivos referentes à subjetividade do artista, é certo que apresenta
capacidade de transgressão, até mesmo da perspectiva do artista que consegue criar
representações que se universalizam ao atingir a sua sociedade e ao mundo que lhe
contém. Essas canções embora representem um conteúdo subjetivo estão ligadas aos
interesses comuns, distanciando-se em sua síntese do interesse particular do artista.
3.1. Entre a contestação e a utopia: representação da emancipação humana nas
músicas de Bob Marley
A história da utopia por muito tempo se restringiu aos prelúdios elaborados e
limitados aos pensamentos mais íntimos e particulares dos indivíduos, mas com o
avançar das utopias sociais que buscavam refletir de forma latente e tenaz as esperanças
coletivas, cada vez mais essas predileções passam a ser objetivadas nas mais variadas
formas de expressão humana: ciência, arte e política. As utopias sociais são pulsões que
conduzem a sonhos coletivos, aqueles que expressam não somente as tendências, mas as
reações das pessoas frente a uma realidade considerada insuportável, motivo pelo qual
devem ser considerados no contexto histórico que os explica e justifica. Bloch salienta
que todos estes sonhos têm em comum a imagem final de um mundo mais perfeito,
75
visto terem constituição superior àquelas conhecidas empiricamente. No entanto, o autor
diferencia os espaços nos quais emergem esses sonhos quanto à sua pré-aparência, pois
todos eles, exceto as obras de arte, partem de princípios abstratos, ou seja, sua préaparência não parte daquilo que já existe no mundo. Somente as obras de arte “mostram
essencialmente uma pré-aparência tomada da realidade, construída a partir do seu
próprio objeto em plena forma” (BLOCH, 2006, p. 24). Contudo, isto não implica em
algo “estático”, uma vez que o olhar dirigido para o pré-figurado na arte sempre se
altera, sendo diversamente concreto, visto que expressa ideias, valores e possibilidades
diferentes para pessoas diversas.
Neste contexto, as músicas de Bob Marley despontam assumindo para si um
conteúdo estético ancorado pela utopia social estabelecendo uma relação entre música e
política permeada por um conteúdo que mescla contestação e utopia. Desta forma, podese verificar nas composições do músico jamaicano diversas questões que florescem em
seus arranjos musicais: a contradição vivenciada na sociedade moderna e o princípio de
esperança de uma condição humana melhor para todos. A necessidade de confronto
social apresentava-se nas músicas refletindo os sentimentos dos negros pobres que
sobreviviam em meio ao fratricídio político pós-independência, escassez econômica,
mazelas sociais; mesmo em meio a uma vivência permeada por esses aspectos severos,
criou-se um ambiente estético que além da denúncia estava acompanhado por uma
sensação pulsante de escape.
Esse conteúdo emancipatório presente nas canções são criadas a partir do
momento que são decididos os elementos formativos da produção musical enquanto
álbum. Cada álbum tem o seu conceito, constituído pelas canções que devem se somar
para formação da identidade que o artista pretende imprimir na totalidade, desta forma,
compondo a sua face conceitual. Os álbuns de Bob Marley foram produzidos a partir de
um princípio conceitual, normalmente formando discos cuja maioria das músicas
contribui para os mesmos efeitos e desdobramentos temáticos. Os principais conceitos
utilizados pelo músico estão ligados à negação, à resistência e à rebelião contra as
expressões da opressão do mundo capitalista – executadas como a necessidade de
queimar a Babilônia -, ou mesmo, relacionada à salvação, ligadas às idéias de um
paraíso reservado ao povo negro alicerçados no Rastafarismo. Nos quatro discos que
nós analisamos cada qual apresenta de forma política peculiar questões que incidem
sobre o processo de contestação da sociedade capitalista e sobre a utopia de outro tipo
de sociabilidade humana, sobretudo aquela desenvolvida por meio dos princípios do
76
rastafarianismo, que buscam potencializar melhores condições de vida para a população
negra e pobre. Muito embora, os álbuns de Bob Marley tenham um conceito que guie
por via da música os elementos constituintes da canção, cada parte que compõe essa
totalidade musical tem suas peculiaridades, o que garante a autenticidade de cada obra a
partir da particularidade estética presente no conteúdo e na forma da composição
musical. Todavia, os aspectos expectantes presentes na expressão estética da canção vão
além do seu conteúdo conceitual fundante, evidenciando com maior profundidade seus
aspectos contestatórios e utópicos.
A emancipação humana presente nas músicas dos quatro álbuns analisados tem
por seu elemento impulsionador os afetos expectantes negativos – o medo, o pavor e o
horror – e os positivos – esperança e confiança – do compositor a respeito da sociedade
capitalista. Nelas estão presentes os sonhos subjetivos de Bob Marley, enquanto
singularidade criadora, mas essas obras de artes contêm um conteúdo universalizante,
que se objetiva trazendo sonhos que despertam os sujeitos sociais para lutarem por
melhores condições de vida, trazendo um contexto temporal cujo conteúdo é o futuro.
Essas canções despontam com iminente conteúdo de critica à realidade social, cuja
cadente intenção expectante traz a ação de transformação da sociedade vigente como o
seu maior e mais forte componente. Essas canções em sua abrangência expressam de
que maneira as questões referentes às angústias e medo se tornam esteticamente em
esperança e negação da ordem social vigente.
O percurso de Bob Marley aos poucos, entre as décadas de 1960 e 1970, ia
ganhando espaço nas mais diversas regiões geográficas, e em distintos regimes políticos
e culturas. Mesmo os países com bases étnicas e culturais bastante diferentes acabaram
aderindo aos encantos estéticos de suas músicas. O ápice de seu processo de
universalização está na repercussão do álbum “Survival” (1979) gravada pelo Island
Record, que também gravou outros álbuns como “Catch a Fire” (1973), desta forma, por
meio de um conteúdo que conseguia tanto denunciar questões muito peculiares do povo
jamaicano, quanto trazer elementos humanísticos universais, tais como problemas da
luta por emancipação, contestações, lutas religiosas,
conteúdos conquistaram os mais diversos públicos,
o anti-racismo etc. Esses
o reggae deixava de ser uma
representação popular dos países periféricos e ganhava espaço como expressão de
resistência em todo mundo.
77
Essa acepção estética tem no álbum “Soul Rebels” (1970), o primeiro disco de
reggae de Bob Marley junto com The Wailers que foi lançado fora da Jamaica,
produzido por Lee Perry, uma de suas vias de expressão. Esse álbum foi relançado em
uma série de vezes em vários rótulos diferentes. A primeira edição no Reino Unido foi
lançada pela Trojan Records. Esse primeiro lançamento continha apenas: violão, baixo,
bateria, órgãos eletrônicos, chifres e vocais. Esse disco traz como elemento conceitual a
característica política e transgressora da rebeldia do povo, que está presente em algumas
canções como "Soul Rebel":
Soul Rebel
I'm a rebel, soul rebel.
I'm a capturer, soul adventurer.
I'm a rebel, soul rebel.
I'm a capturer, soul adventurer.
See the morning sun, the morning sun,
On the hillside.
If you're not living good, travel wide,
You gotta travel wide.
Said I'm a living man,
And I've got work to do.
If you're not happy, children,
Then you must be blue,
Must be blue, people say.
I'm a rebel, let them talk,
Soul rebel, talk won't bother me.
I'm a capturer, that's what they say,
Soul adventurer, night and day.
I'm a rebel, soul rebel.
Do you hear them lippy.
I'm a capturer, gossip around the corner,
Soul adventurer. How they adventure on me.
But, see the morning sun, the morning sun,
On the hillside.
If you're not living good, travel wide,
You gotta travel wide.
Said I'm a living man,
I've got work to do.
If you're not happy, then you must be blue,
Must be blue, people say.
I'm a rebel, soul rebel.
78
I'm a capturer, soul adventurer.
Do you hear me?
I'm a rebel, rebel in the morning.
Soul rebel, rebel at midday time.43
Essa canção desponta trazendo em sua poesia uma síntese entre a negação da
realidade vivenciada pelos jovens jamaicanos e o conteúdo de afirmação daqueles
sujeitos históricos quanto à sua capacidade de transformação dessa realidade. Desta
maneira, a sua poesia faz um chamado à reação contra a ordem que nos aprisiona,
conclamando à liberdade. Essa ação libertadora aparece nas entrelinhas da música por
via do potencial contido nas próprias almas lutadoras dos jovens, que encontram sua
materialização em movimentos transgressores por via da música, como foi o caso de
Bob Marley e dos músicos do grupo “The Wailers”, ou por via da força e violência
empregada pelos jovens de grupos como os “Rudes Boys”, ou mesmo por meio da
religião rastafári. O conteúdo estético da música contém em sua poesia a potencialidade
de pulsar com os versos sou rebelde, aludindo a um aventureiro que luta pela
transformação da conjuntura em que está inserido em todo o momento de sua vida,
convertendo-se em obstinado caçador de outra realidade social.
Ao olhar o conteúdo poético da aclamação “Soul Rebel” pode-se verificar a
representação que a juventude tem nos processos de mudança daquele período histórico
limitada pela ordem capitalista. Uma juventude, que na análise de Bloch (2006), está
ligada às transformações necessárias de um período histórico, que tem a virtualidade de
ultrapassar com sua capacidade de produção criativa, as barreiras de um período que
limita seus anseios, levando a sociedade a uma emancipação histórica. É possível
verificar no chamado de Bob Marley aos, rebeldes a importância que é depositada na
existência da força transformadora presente na juventude, na sua representação musical
e em cada jovem florescerá o alvorecer, o esperado, a voz do amanhã. Estes sujeitos
seriam fios condutores da agitação que moverá a estrutura, ultrapassando o que até
43
Soul Rebel: Eu sou um rebelde, uma alma rebelde / Eu sou um caçador, aventureiro da alma / Eu sou um rebelde,
uma alma rebelde / Eu sou um caçador, aventureiro da alma / Veja o sol da manhã, o sol da manhã / Ao lado da
montanha / Se você não está vivendo bem, viaje, / Você tem que viajar / Disse que sou um homem que vive / E tenho
trabalho a fazer / Se você não está feliz, criança, / Então você deve estar triste / Deve estar triste, as pessoas dizem. /
Eu sou um rebelde, deixe eles falarem, / Alma rebelde, falar não me incomodará / EU sou um caçador, dia e noite /
Eu sou um rebelde, uma alma rebelde. / Você os ouve? / EU sou um caçador, diga para todos. / Aventureiro da alma. /
Como eles se aventuram em mim. / Veja o sol da manhã, o sol da manhã / Ao lado da montanha / Se você não está
vivendo bem, viaje, / Você tem que viajar / Disse que sou um homem que vive / E tenho trabalho a fazer / Se você
não está feliz, criança, / Então você deve estar triste / Deve estar triste, as pessoas dizem. / EU sou um rebelde, uma
alma rebelde. / Sou um caçador, uma alma caçadora. / Você me ouve? EU sou um rebelde, rebelde da manhã. / Alma
rebelde, rebelde ao meio dia. (Tradução: http://www.vagalume.com.br/bob-marley/soul-rebel-traducao.
html#ixzz2vVBE9inx).
79
aquele momento seria o mundo da Babilônia. A juventude rebelde se apresenta entre um
verso e outro como um ser que tem asas para superar e libertar a sociedade.
Não obstante, Marley, ao tratar em sua obra dessa capacidade emancipatória que
uma vez se encontra na juventude, como algo pulsante, luminoso, ao menos consolador
diante dos olhos, não a restringe ao critério cronológico fixado na faixa etária, os
rebeldes são a juventude que sempre vai atrás das melodias do seu sonhar, espera
encontrá-las, conhece as duras condições de existência humana, mas aguarda a
liberdade que está adiante. O rebelde é um sujeito que tem esperança nos elementos que
alimentam a sua existência. As condições humanas disseminadas na sociedade moderna
precisa de uma reação. A atitude de resistência é cantada por Marley em “Reaction”:
Reaction
Talking 'bout reaction yeah yeah yeah
Talking 'bout attraction yeah yeah yeah
Said i'm gonna rock on you yeah yeah yeah
From shanti town yeah yeah yeah
Yeah yeah yeah
In every little action yeah yeah yeah
There's a reaction yeah yeah yeah
You don't don't don't get that soul no no no
You don't get that soul no no no
In every little action yeah yeah yeah
There's a reaction yeah yeah yeah
Said i'm mama rock on you yeah yeah yeah
From shanti town yeah yeah yeah
Yeah yeah yeah
Said i'm mama rock on you yeah yeah
From shanti town yeah yeah yeah44
A resistência cantada nos versos de “Reaction” torna inteligível como as
relações angustiantes, carregadas de medo e de terror, nutridas pela sociabilidade
humana moderna na América Central, agem como afetos expectantes de uma reação às
privações impostas pelas classes dominantes à maioria pobre da sociedade. Desta forma,
44
Reação: Falando sobre reação yeah yeah yeah / Falando sobre atração yeah yeah yeah / Disse que eu vou balançar /
em você yeah yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah / Yeah yeah yeah / Em cada pequena ação yeah yeah yeah
/ Há uma reação yeah yeah yeah / Você não não não entendo que a alma não não não / Você não tem alma que não
não não / Em cada pequena ação yeah yeah yeah / Há uma reação yeah yeah yeah / Disse que eu estou rocha mãe em
você yeah yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah / Yeah yeah yeah / Disse que eu estou rocha mãe em você
yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah. (tradução: http://www.vagalume.com.br/bob-marley/reactiontraducao.html#ixzz2vgpyyz9I).
80
esses sentimentos negativos – angústia, medo e terror – apresentam sua face positiva ao
se apresentarem em sua aparência de confronto direto, manifestada por via da ação e da
reação. Decerto, a importância que o reggae de B. Marley emprega nessa juventude
transgressora tem suas causas nos moldes estabelecidos na América Central pelo
sistema de exploração capitalista. Pode-se observar nas composições como se refigura,
de forma enfática, a insatisfação com os padrões dominantes na sociedade que não
oferece nenhuma alternativa às suas dores.
O eu-lírico canta um sentimento de angústia e insatisfação daquele povo com
todas as contradições sociais, na forma áspera e dura que os pobres e negros são
marginalizados nas terras que foram concebidas. Essas letras abrem espaço na
contestação para o surgimento do novo. De acordo com Bloch (2006), a esperança real
surge quando o ser está disponível para o que há de novo diante de si, para o que há em
tendência e em latência no mundo. Intenção, anseio, expectativa e esperança são as
primeiras manifestações do que está diante de nós. O novum é o despontar do que está
diante de nós. O ser está sempre em processo e, como um ser inacabado, o espanto vem
da latência do vir-a-ser em ação e da antecipação do ser futuro. O ser que está sempre
em movimento e em modificação “tem esse poder-vir-a-ser inconcluso, esse ainda-nãoestar-concluído tanto na sua base quanto no seu horizonte”.
Desta forma, percebe-se que a angústia presente na letra não traz como produto
o ceticismo na resolução de tais problemáticas, é um sentimento angustiante que leva à
contestação que traz consigo o novum, a um mundo repleto de disposição para algo,
latência de outra forma de sociabilidade que supere aquelas presentes na Babilônia,
criando um mundo mais adequado para todos, sem dores indignas, angústia, autoalienação. O impulso básico da fome, presente na canção, carregado pelo olhar sobre a
privação e a miséria, conduz à Esperança voltada para frente e à descoberta do ainda
não existente que se anuncia como um querer necessário: um mundo sem miséria e
fome representada nas frases cantadas: “Eu estou no meu caminho / Para a felicidade /
Onde eu posso encontrar / Um pouco de paz e descanso”.
Essa resposta apresentada enquanto atitude de oposição é carregada pelos afetos
expectantes negativos do regime cruel da sociedade capitalista que não é nem um pouco
afável com a maioria de sua população, desprezando suas peças mais preciosas, os seres
humanos, e cuida da pedra que se tornou o principal elemento de riqueza: a mercadoria.
81
Cornerstone
The stone that the builder refused
Will always be the head cornerstone
The stone that the builder refused
Will always be the head cornerstone
You're a builder, oh, la di la
Here I am a stone
Don't you think and refuse me
'Cause the things people refuse
Are the things they should refuse
Do you hear me? Hear what I say
The stone taht the builder refused
Will always be the head cornerstone
The stone that the builder refused
Will always be the head cornerstone
I can be soft as a pillow
Weep like a willow
Caress and bring happiness
Don't refuse me, don't you refuse
Don't, don't, don't you refuse45
Ao ressaltar a pedra, o que se recusa para construir algo é essencial para a vida,
os seres humanos, recusa que pode percebida na sociedade jamaicana e em diversas
partes do mundo através das opressões de classe, raça, gênero, que distancia a sociedade
daquilo que é a sua essência transformadora, que na visão marxista é a capacidade do
homem de transformar a natureza e com isso satisfazer suas necessidade e desenvolver
as forças produtivas. Ao viver em uma sociedade cuja segregação nega o ser humano a
partir da cor de sua pele, do seu gênero, descarta-o na miséria dependendo da classe na
qual se encontra, a sociabilidade capitalista está negando sua matéria principal de
desenvolvimento. Essas relações chamam os sujeitos guerreiros à reação, para impedir a
extinção de seu povo é necessário revoltar-se contra os maus tratos, como na lei romana
de Talião, olho por olho, dente por dente, é assim cantada:
Try Me
Try me [try me]
Try me [try me]
Try me [try me]
45
Pedra Angular: A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / A pedra que o construtor recusou
/ Sempre será a pedra principal / Você é um construtor, oh, querida / Aqui estou eu uma pedra / Você não pensa e me
recusa / Porque as coisas que as pessoas recusam / São as coisas que se deviam escolher / Você me ouve? Escute o
que eu digo / A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / A pedra que o construtor recusou /
Sempre será a pedra principal / Eu posso ser suave como um travesseiro / Chorar como um salgueiro / Conforte e me
traga felicidade / Não me recuse, não se recuse / Não, não, não se recuse.
82
Try me [try me]
Try me [try me, try me]
Try me [a wah wah wow]
Try me [try me, try me]
When the hurt is strong
And everything you do is wrong
You need someone to comfort you
Well, listen baby, I'll come first to you, so
Try me [try me, try me]
Try me [a wah wah wow]
Try me [try me, try me]
Try me [a wah wah wow]
If you need satisfaction
Listen baby, I've got the action
Where I am, that's where it's at
So, listen baby, it's tit for tat, so
Try me [try me, try me]
Try me [a wah wah wow]
Try me [try me, try me]
Try me [a wah wah wow]
Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh
Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh
Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh
Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh
One more thing I'd like to say right here
Try me [try me, try me]
One more thing I'd like to say right here
Try me [try me, try me]
Need good lovin'
I'm black [try me] coming
Yes I'm black [try me] and I'm coming
Try me, try me46
O sistema capitalista oprime o povo, Try me, desta forma é preciso resistir, agir,
de frente para combater suas mazelas. Mas os problemas trazidos pelas almas
dominantes não se apresentam apenas nas condições objetivas do povo. Existe toda uma
amálgama que liga as almas do povo à classe dominante, é preciso dizer não à felicidade
na Babylonia, é preciso despertar o povo da ilusão que é criada pelos donos do poder, e
46
Try me: Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente,
me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Quando o machucado é forte / E tudo que
você faz é errado / Você precisa de algúem pra te confortar / Bem, escute baby, eu irei primeiro pra você, então / Me
tente [me tente,me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Me tente [a wah wah wow] /
Se você precisa de satisfação / Escute baby, eu tenho ação Onde eu estou, é onde isso está / Então, escute baby, olho
por olho, então / Me tente [me tente,me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Me tente
[a wah wah wow] / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo,
woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Mais uma coisa que eu gostaria de dizer bem aqui / Me tente
[me tente, me tente] / Mais uma coisa que eu gostaria de dizer bem aqui / Me tente [me tente, me tente] / Preciso de
bom amor / Eu sou negro [me tente] indo / Sim eu sou negro [me tente] e estou indo / Me tente, me tente.
83
o antidoto está no ritmo do reggae, é preciso que o povo se una em busca da vitória,
contra as amarras que não só aprisionam materialmente, mas que cria ilusões nas
mentes. Por isso, Bob Marley compôs:
Soul Almighty
Hey happy people, this here is something new
I know you're gonna like it
So let me tell you what we're gonna do
Souls almighty [uh]
Don't you know we got the rhythm
Souls almighty [oh]
We are willing
Funky, Funky Chicken [ooh]
And the Mashed Potato
Do the Alligator
Let's do it together
Souls almighty
Do you dig me ya'll
Souls almighty, my soul is raw
[ooh-ee yeah]
Get yourself together
In any kind of weather
Things will be mighty better
If you get it together [witness]
Souls almighty [ooh]
Don't you know we got the rhythm
Souls almighty [exactly when baby]
[You're not with him]
Get yourself, yourself together
In any kind of weather [I'll come home baby]
Things will be mighty better
If we, if we get it together
Souls, don't you know we got the rhythm
Hit it brother
Souls Almighty
O' baby, when you're not with him
Funky, Funky Chicken
And the Mashed Potato [oh]
Do the Alligator
Do it together ya'll [uh]
Shocks of [mighty]
Souls and shocks, souls and shocks
We got, we got, we got the rhythm
Sing your song brother
My baby's with him, ooh
Get yourself together
In any kind of weather
Things will be mighty better.47
47
Alma Todo-Poderoso: Olá pessoas felizes, isso aqui é algo novo / Eu sei que você vai gostar / Então deixe-me dizer
o que vamos fazer / Almas todo-poderoso [uh] / Você não sabe que nós temos o ritmo / Almas todo-poderoso [oh] /
Estamos dispostos / Funky, Funky Chicken [ooh] / E o purê de batata / Fazer o Jacaré / Vamos fazer isso juntos /
Almas poderosas / Você me ya dig / Almas todo-poderoso, minha alma é cru / [Ooh-ee yeah] / Obter-se juntos / Em
qualquer tipo de clima / As coisas vão ser poderoso melhor / Se você conseguir isso juntos [testemunha] / Almas
todo-poderoso [ooh] / Você não sabe que nós temos o ritmo / Almas todo-poderoso [exatamente quando o bebê] /
[Você não está com ele] / Obter-se, a si mesmo em conjunto / Em qualquer tipo de clima [eu vou vem o bebê] / As
coisas vão ser poderoso melhor / Se nós, se chegarmos juntos / Almas, que você não sabe que temos o ritmo / Batê-lo
84
No entanto, os afetos expectantes negativos presentes são projetados com um
lastro criado pela pulsão da esperança não cedendo o seu futuro ao fracasso. É preciso
confiar que ainda há salvação no horizonte: “Onde há perigo, cresce também o que
salva” (BLOCH, apud HÖLDERLIN, 2005, sp). De tal maneira a esperança acaba
assumindo nas obras do canto um afeto prático, militante, que vai crescendo a cada
álbum.
O disco “Catch a Fire” (1973) é a estréia em uma grande gravadora da banda de
reggae The Wailers, lançado pela Island Records. Ele tem por característica a ênfase no
conteúdo de caráter social e militante, além dos temas controversos e uma visão otimista
em relação a um futuro livre de opressões fundamentado pelos lemas do Rastafarismo.
A maioria de suas letras destaca algum aspecto expressivo da opressão do sistema
capitalista, quer seja nesse atual sistema “babilônia”, quer seja dos resquícios de
escravidão, quer seja nas relações amorosas entre homem e mulher. O álbum se inicia
com duas canções com um conteúdo político bastante forte: "Concrete Jungle" uma
denúncia do sistema capitalista; e "Slave Driver" que apresenta o processo de
escravidão vivenciada por um trabalhador.
Concrete Jungle
No sun will shine in my day today
(No sun will shine.)
The high yellow moon won't come out to play
(Won't come out to play.)
Darkness has covered my light (and has changed,)
And has changed my day into night
Now where is this love to be found, won't someone tell me?
'Cause life, sweet life, must be somewhere to be found, yeah
Instead of a concrete jungle where the livin' is hardest
irmão / Almas Todo-Poderoso / O bebê, quando você não está com ele / Frango, Funky Funky / E o purê de batata
[oh] / Fazer o Jacaré Fazê-lo juntos ya [uh] / Choques de [poderoso] / Almas e os choques, as almas e os choques /
Temos, nós temos, nós temos o ritmo / Cante sua canção irmão / Meu bebê está com ele, ooh / Obter-se juntos / Em
qualquer tipo de clima As coisas vão ser poderoso melhor.
85
Concrete jungle, oh man, you've got to do your best, yeah.
No chains around my feet, but I'm not free
I know I am bound here in captivity
And I've never known happiness, and I've never known sweetcaresses
Still, I be always laughing like a clown
Won't someone help me?
Cause, sweet life, I've, I've got to pick myself from off theground, yeah
In this here concrete jungle,
I say, what do you got for me now?
Concrete jungle, oh, why won't you let me be now?
I said life, sweet life, must be somewhere to be found, yeah
Instead of a concrete jungle, illusion, confusion
Concreate jungle, yeah
Concrete jungle, you name it, we got it, concrete jungle now
Concrete jungle, what do you got for me now48
Slave Driver
Ooh-ooh-oo-ooh. Oo-oo-ooh! Oo-oo-ooh.
Slave driver, the table is turn; (catch a fire)
Catch a fire, so you can get burn, now. (catch a fire)
Slave driver, the table is turn; (catch a fire)
Catch a fire: gonna get burn. (catch a fire) Wo, now!
Ev'rytime I hear the crack of a whip,
My blood runs cold.
I remember on the slave ship,
How they brutalize the very souls.
Today they say that we are free,
Only to be chained in poverty.
48
Selva de Concreto: Nenhum sol vai brilhar no meu dia hoje (Nenhum sol vai brilhar) / A alta lua amarelada não
sairá pra brincar (não sairá pra brincar) / A escuridão tem coberto minha luz (e transformou) / E transformou meu dia
em noite / Agora aonde o amor está e pode ser encontrado? / Alguém vai me contar? / Pois a vida, doce vida, deve
estar em algum lugar para ser encontrada / Ao invés de selva de concreto onde viver é tão mais difícil! / Selva de
concreto, cara, você tem de dar tudo de si, sim. / Mesmo sem correntes nos pés, mas não estou livre... / Sei que estou
aqui, amarrado e cativo / Jamais conheci a felicidade, e nunca soube o que é uma doce carícia / Vou sempre gargalhar
como um palhaço / Ninguém vai me socorrer porque / Devo me erguer sozinho deste chão / Nesta selva de concreto /
Eu digo, o que você tem agora para mim? / Selva de concreto, Ah não vai agora me deixar na mão... / Eu disse que a
vida deve ser um lugar para ser encontrada, sim / Em vez de uma selva de concreto, ilusão, confusão / Selva de
concreto, sim / Selva de concreto, você nomeou isso, você teve isso, agora selva de concreto / Selva de concreto, o
que você tem pra min agora?
86
Good God, I think it's illiteracy;
It's only a machine that makes money.
Slave driver, the table is turn, y'all. Ooh-ooh-oo-ooh.
Slave driver, uh! The table is turn, baby, now; (catch a fire)
Catch a fire, so you can get burn, baby, now. (catch a fire)
Slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire)
Catch a fire: so you can get burn, now. (catch a fire)
Ev'rytime I hear the crack of a whip,
My blood runs cold.
I remember on the slave ship,
How they brutalize the very soul.
O God, have mercy on our souls!
Oh, slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire)
Catch a fire, so you can get burn. (catch a fire)
Slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire)
Catch a fire ...49
A música “Concrete Jungle” e “Slave Driver” realizam uma representação direta
e pulsante dos problemas nas cidades capitalistas, ou melhor, na selva de pedra. Na sua
letra a denúncia aberta à forma como a ordem burguesa destrói todas as formas de
sociabilidade humana, mesmo não estando mais no regime no qual os negros eram
tratados como mercadorias, não há liberdade, pois as relações de dominação continuam
destruindo as pessoas não vivem como amor, lazer, não se vive feliz, a sociedade está
entregue às ilusões e à confusão. Ao mesmo tempo, a canção abre espaço para a
esperança, ao reivindicar à própria sociedade o que é digno, “Eu disse que a vida deve
ser um lugar para ser encontrada, sim”, é preciso revolucionar essa sociedade, fazendo-a
queimar junto com a memória das mazelas que ela trouxe para o povo.
Já em se tratando de “Burnin” (1973) e “Survival” (1979), o primeiro trabalho
começa com uma canção assinada, um chamado e incentivo à ação, "Get Up, Stand Up"
sendo a obra em sua totalidade impregnada de um teor de confronto e preocupação com
as questões militares e políticas em território africano, tendo grande importância política
para a Jamaica; e o segundo trabalho apresenta algumas controvérsias de caráter
político, inicialmente o disco foi nomeado de Black Survival, para sublinhar a urgência
49
Escravo: Ooh-ooh-oo-ooh! Oo-oo-ooh! Oo-oo-ooh. / Escravo, a mesa está virada; (Toca fogo) / Toca fogo, assim
você pode se queimar, agora. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada; (Toca fogo) / Toca fogo: Vou começar
queimar. (Toca fogo) Wo, agora! / Todo o tempo ouço o crack de um chicote / Meu sangue corre frio. / Lembro-me
sobre os navios negreiros, Como eles brutalizam a própria alma. / Hoje dizem que somos livres, / Só para ser
encadeados na pobreza. / Bom Deus, eu acho que é o analfabetismo; / É apenas uma máquina que faz dinheiro. /
Escravo, o quadro é transformar, vocês todos. Ooh-ooh-oo-ooh. / Escravo, uh! O quadro é transformar, baby, agora;
(Toca fogo) / Toca fogo, assim você pode se queimar, baby, agora. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada, vocês
todos; (Toca fogo) / Toca Fogo: Assim você pode se queimar, agora. (Toca fogo) / Todo o tempo ouço o crack de um
chicote, / Meu sangue corre frio. / Lembro-me sobre os navios negreiros, / Como eles brutalizam a própria alma / Ó
Deus, tem piedade de nossas almas! / Oh,escravo, a mesa está virada, vocês todos; (Toca fogo) / Toca fogo, assim
você pode se queimar. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada, vocês todos; (Toca fogo) / Toca fogo...
87
da unidade africana. Esse foi o primeiro disco de uma trilogia que conta com o
“Uprising” e o póstumo “Confrontation”. Ele traz na capa as bandeiras de diversos
países da África que se libertaram do colonialismo no século XX. O álbum conta com
canções como “Babylon System”, “Ambush in the Night” e “Wake Up and Live”, que
nos remete a uma crítica ao sistema capitalista e às suas formas de poder, que
marginalizam a população pobre e negra na Jamaica e na África. Esse disco foi criado
com o objetivo de ditar os elementos da agenda para a batalha apocalíptica entre os
rastas e a Babilônia, e tinha uma mensagem incendiária de um manifesto do tipo “não
olhe para trás”. O álbum é um chamado à luta para o povo “terceiro-mundista”.
Esse chamado à ação nesses dois discos está diretamente relacionado aos
horizontes ditados pelos preceitos da religião rastafári na América Central, a estética das
músicas serviu como veículo de disseminação de uma parte do movimento panafricanista. Para espalhar as idéias messiânicas dos rastas, os contornos religiosos
encontram-se em relação direta com o impulso para a formação de uma consciência
revolucionária, como idéias “transcendentes”, exprimindo uma força subversiva e tendo
um efeito de transformação em relação à ordem social vigente. Esse milenarismo vem
acompanhado sempre de irrupções revolucionárias, motivando os sujeitos à ação,
mesmo quando esses espíritos se enfraquecem e abandona o movimento, a chama
permanece latente, como um delírio e um fervor coletivos (SOUZA, 2011).
Essa resistência travada nessas canções em diálogo com o rastafarianismo
projeta um mundo melhor que deve ser buscado na Terra e não no paraíso após morte
“Get Up, Stand Up” faz justamente esse chamado para a conquista de uma vida mais
digna aqui, e que é preciso levantar e lutar por isso:
Get Up, Stand Up
Get up, stand up: stand up for your rights!
Get up, stand up: stand up for your rights!
Get up, stand up: stand up for your rights!
Get up, stand up: don't give up the fight!
Preacherman, don't tell me,
Heaven is under the earth.
I know you don't know
What life is really worth.
It's not all that glitters is gold;
'Alf the story has never been told:
So now you see the light, eh!
Stand up for your rights. Come on!
88
Get up, stand up: stand up for your rights!
Get up, stand up: don't give up the fight!
Get up, stand up: stand up for your rights!
Get up, stand up: don't give up the fight!
Most people think,
Great God will come from the skies,
Take away everything
And make everybody feel high.
But if you know what life is worth,
You will look for yours on earth:
And now you see the light,
You stand up for your rights. Jah!
Get up, stand up! (Jah, Jah!)
Stand up for your rights! (Oh-hoo!)
Get up, stand up! (Get up, stand up!)
Don't give up the fight! (Life is your right!)
Get up, stand up! (So we can't give up the fight!)
Stand up for your rights! (Lord, Lord!)
Get up, stand up! (Keep on struggling on!)
Don't give up the fight! (Yeah!)
We sick an' tired of-a your ism-skism game Dyin' 'n' goin' to heaven in-a Jesus' name, Lord.
We know when we understand:
Almighty God is a living man.
You can fool some people sometimes,
But you can't fool all the people all the time.
So now we see the light (What you gonna do?),
We gonna stand up for our rights! (Yeah, yeah, yeah!)
So you better:
Get up, stand up! (In the morning! Git it up!)
Stand up for your rights! (Stand up for our rights!)
Get up, stand up!
Don't give up the fight! (Don't give it up, don't give it up!)
Get up, stand up! (Get up, stand up!)
Stand up for your rights! (Get up, stand up!)
Get up, stand up! ( ... )
Don't give up the fight! (Get up, stand up!)
Get up, stand up! ( ... )
Stand up for your rights!
Get up, stand up!
Don't give up the fight!50
50
Levante, Resista: Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante,
resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta! / Pastor, não me diga, / Que o paraíso está
embaixo da terra / Você não sabe quanto / A vida realmente vale / Nem tudo que brilha é ouro / Só metade da história
foi contada / E então agora que você enxergou a luz, eh! / Lute pelos seus direitos. Vamos lá! / Levante, resista: lute
pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante,
resista: não desista da luta! / A maioria das pessoas pensa / Que o grande Deus vai surgir dos céus / Levar tudo / E
fazer todo mundo se sentir elevado / Mas se você sabe o quanto vale a vida / Vai procurar o seu aqui na terra / E agora
que você enxerga a luz / Lute pelos seus direitos / Levante, resista! (Jah, Jah!) / Lute pelos seus direitos! (Ph-hoo!) /
Levante, Resista! (Levante, Resista!) / Não desista da luta! / Levante, Resista! (Então, nos nao podemos desistir da
luta!) / Lute pelos seus direitos! (Senhor, Senhor) / Levante, Resista! / Não desista da luta! (Yeah!) / Estamos cheios e
cansados do seu jogo de ismos - / Morrer e ir pro céu em nome de Jesus, Senhor. / Nós sabemos e entendemos: / O
Deus poderoso é um homem vivo. / Vocês podem enganar algumas pessoas algumas vezes, / Mas não podem enganar
a todos o tempo todo. / Então agora que você enxerga a luz (O que você vai fazer?), / Vamos lutar por nossos direitos!
(Yeah, yeah, yeah!) Então é melhor: / Levante, Resista! (Pela manhã! Git it up!) / Lute pelos seus direitos!(Lute pelos
seus direitos!) / Levante, Resista! / Não desista da luta! (Não desista, não desista!) / Levante, Resista! (Levante,
89
As lutas são por vitórias que devem ser conquistadas na terra em nome de um
Deus de carne e osso. O “ainda-não-consciente” blochiano que está presente nos
“sonhos diurnos”; fomentador das potencialidades imanentes do ser-humano que ainda
não foram exteriorizadas, mas que possui uma força dinâmica e o projeta
necessariamente para o futuro. As vitórias devem ser conquistadas dentro do contexto
social, é isso que prega a música de Bob Marley: é preciso lutar, resistir, conquistar!
Logo, as ilusões devem ser deixadas de lado, pois estão presentes nas imagens
idealizadas do espelho de uma sociedade dominada pelo processo doloroso da moderna
sociedade industrial, reificada e consumista; abandonar as ideologias, e construir uma
consciência que se origine das condições históricas do próprio povo.
Segundo Bloch (2006) “Onde há esperança, há religião”, esperança que não
poderia faltar ao povo escravizado na América Central e que ganha materialidade nas
ideias difundidas por Marcus Garvey; a escravidão representa a necessidade que ensina
a rezar. “O sofrimento e a indignação estão na origem de tudo, assim que, de antemão,
fazem da fé um caminho para a liberdade” (BLOCH, 2006, p. 316.). O Deus do êxodo,
ou o rei dos reis, o Leão de Judá, traz consigo um imaginário que acompanha sua tribo
para caminhada final rumo à Etiópia, direcionando o povo para a ação de transformação
da realidade.51 Essa representação de liberdade será encontrada em "I Shot the Sheriff",
"Burnin' And Lootin” e “Rastaman Chant", essas canções trazem um conteúdo de
liberdade e resistência à criminalização dos elementos rastafáris como a ganja, uso da
cannabis nos cultos rasta que simbolizaria a queima da Babilônia, a contestação do
sistema social, e revelações como o sétimo selo, com a queda da Babilônia e com isso
se volta a Zion.
Resista!) / Lute pelos seus direitos! (Levante, Resista!) / Levante, Resista! (...) / Não desista da luta! (Levante,
Resista!) / Levante, Resista! (...) / Lute pelos seus direitos! / Levante, Resista! / Não desista da luta.
51
A perspectiva de Bloch aponta para a luta revolucionária anterior à própria modernidade capitalista na
qual o milenarismo teria um papel ativo, a permanência de elementos milenaristas no reggae e até em
diversas expressões artísticas contemporâneas são indícios de um desenvolvimento não linear da supraestrutura, pois, apesar da secularização da vida cotidiana e da preponderância de relações sociais
mercantilizadas, a busca por uma esfera espiritualizada pode utilizar-se de símbolos e recursos
milenaristas. Um misto de consciência de classe, decorrente da percepção das contradições capitalistas,
com o apelo à esfera da salvação unificam-se nessa expressão artística.
90
Burnin' And Lootin'
This morning I woke up in a curfew
Oh, God, I was a prisoner, too - yeah!
Could not recognize the faces standing over me
They were all dressed in uniforms of brutality. Eh!
How many rivers do we have to cross
Before we can talk to the boss? Eh!
All that we got, it seems we have lost
We must have really paid the cost
(That's why we gonna be)
Burnin' and a-lootin' tonight
(Say we gonna burn and loot)
Burnin' and a-lootin' tonight
(One more thing)
Burnin' all pollution tonight
(Oh, yeah, yeah)
Burnin' all illusion tonight
Oh, stop them!
Give me the food and let me grow
Let the Roots Man take a blow
All them drugs gonna make you slow now
It's not the music of the ghetto. Eh!
Weeping and a-wailin' tonight
(Who can stop the tears?)
Weeping and a-wailin' tonight
(We've been suffering these long, long-a years!)
Weeping and a-wailin' tonight
(Will you say cheer?)
Weeping and a-wailin' tonight
(But where?)
Give me the food and let me grow
Let the Roots Man take a blow
I must say: all them – all them drugs gonna make you slow
It's not the music of the ghetto
We gonna be burning and a-looting tonight
(To survive, yeah!)
Burning and a-looting tonight
(Save your baby lives)
Burning all pollution tonight
(Pollution, yeah, yeah!)
Burning all illusion tonight
(Lord-a, Lord-a, Lord-a, Lord!)
Burning and a-looting tonight
Burning and a-looting tonight
Burning all pollution tonight... 52
52
Incêndios e Saques: Esta manha acordei em um toque de recolher / Oh, Deus, eu era um prisioneiro também, yeah /
Não pude reconhecer os rostos sobre mim / Eles todos estavam vestidos com uniformes de brutalidade. É! / Quantos
rios nós devemos atravessar / Antes que possamos falar com o chefe? É! / Tudo que nos temos parece que perdemos /
Nós devemos ter realmente pagado o preço / (É por isso que nós vamos ser) / Incêndios e saques hoje à noite / (Diga
que nós vamos queimar e pilhar) / Incêndios e saques hoje à noite / (Mais uma coisa) / Queimando toda poluição hoje
à noite / (Oh, é, é) / Queimando toda ilusão hoje à noite / Oh, parem eles! / Dê-me comida e deixe-me crescer / Deixe
91
Seguindo o horizonte Pan-africanista, que defendia na teoria e na prática a
unidade do mundo africano, reivindicando a unificação da África e a aliança concreta e
progressista com uma diáspora unida, Marley produz: "Africa Unite" e "Zimbabwe” 53.
As duas canções reproduzem os anseios e o otimismo experimentado por ativistas de
todo mundo após o processo de descolonização de diversos países da África no século
XX54. Esses versos recuperam as expectativas geradas por esses acontecimentos na
Jamaica e nos rastafáris, alimentados pelo sentimento de paixão e solidariedade,
trazidos pelo potencial libertador que essas experiências poderiam significar, plenos de
sonhos da criação de novas relações sociais. A primeira canção refere-se à unificação
dos africanos como o caminho para liberdade no êxodo à África, a terra do pai (Jah), o
paraíso na terra, como espaço fundamental de encontro do seu povo. Já a segunda apela
para a revolução e a libertação da terra prometida através da luta armada, chegou a hora
da batalha final. O nome “Zimbabwe” faz alusão ao país que acabara de ficar
independente em 18 de abril de 1980, significando mais um avanço na unificação do
continente negro.
Africa Unite
Cause we're moving right out of Babylon
And we're going to our father's land
How good and how pleasant it would be
Before GOD and man, yeah
To see the unification of all Africans, yeah
As it's been said already let it be done, yeah
We are the children of the Rastaman
os homens enraizados darem um sopro / Todos eles e suas drogas vão fazer você ficar lento agora / Não é a música do
gueto. É! / Lamento e um gemido hoje à noite / (Quem pode parar as lágrimas?) / Choro e um gemido hoje à noite /
(Andamos sofrendo por muito, muitos anos!) / Choro e um gemido hoje à noite / (Você dirá alegria?) / Choro e um
gemido hoje à noite / (Mas onde?) / Me dê comida e me deixe crescer / Deixe os homens enraizados darem um sopro
/ Eu devo dizer: todos eles – todos eles e suas drogas vão fazer você ficar lento / Não é a música do gueto / Vamos
estar queimando e pilhando hoje à noite / (Sobreviver, é!) / Incêndios e saques hoje à noite / (Salve as vidas de seus
bebês) / Queimando toda poluição hoje à noite / (Poluição, é, é!) / Queimando toda ilusão hoje à noite / (Senhor,
senhor, senhor, senhor) / Incêndios e saques hoje à noite / Incêndios e saques hoje à noite / Queimando toda poluição
hoje à noite...
53
O biografo White (2011), aponta que quando Marley foi à África para fazer apresentação especial no Zimbábue,
encontrou com diversas versões de “Survival” sendo comercializado na Nigéria ao Senegal.
54
A Convenção dos Estados Independentes Africanos, convocada por Kwame Nkrumah em Gana em 1958, fomentou
o debate sobre uma unificação federativa de todos os Estados africanos, e pavimentou o caminho para a criação da
Organização da Unidade Africana (OUA) em 1963 – através da mediação, por Haile Selassie, entre o grupo favorável
à federação política imediata (Gana, Egito, Guiné, Mali, Líbia e Marrocos) e o grupo favorável a uma aproximação
política gradual, através da cooperação econômica (Senegal, Libéria, Nigéria, Etiópia e a maior parte das antigas
colônias francesas). A Convenção dos Povos Africanos, realizada em Gana em 1958, mais uma vez sob a iniciativa de
Nkrumah, inspirou movimentos de independência por todo o continente – alguns deles com financiamento ganense.
(Ver: http://passapalavra.info/2010/07/26898)
92
We are the children of the Higher Man
Africa, unite 'cause the children wanna come home
Africa, unite 'cause we're moving right out of Babylon
And we're grooving to our father's land
How good and how pleasant it would be
Before GOD and man
To see the unification of all Rastaman, yeah
As it's been said already let it be done
I tell you who we are under the sun
We are the children of the Rastaman
We are the children of the Higher Man
So, Africa, unite, Africa, unite
Unite for the benefit of your people
Unite for it's later than you think
Unite for the benefit of your children
Unite for it's later than you think
Africa awaits its creators, Africa awaiting its creators
Africa, you're my forefather cornerstone
Unite for the Africans abroad, unite for the Africans a yard
Africa, Unite.55
“Africa Unite” faz a elegia ao processo de criação de “nações” independentes na
África, onde o que existia era a sociabilidade forçada de diversas etnias nos limites de
um território. O processo de independência desses países, e a chegada ao poder de
Selassié, são representados como o inicio da realização da utopia rastafári e da profecia
de Garvey, a fuga dos povos da diáspora africana nas Américas e sua chegada à terra de
sua salvação e liberdade. A unificação do continente África aparecerá como instrumento
tardio de salvação do povo negro, essa letra canta o retorno dos dissidentes diretos da
dinastia rasta à pátria mãe – África –, o território onde se encontrariam os antepassados
fundamentais dos rastas e a zona onde ficaram sobre o governo do seu pai maior, cujo
representante maior seria o imperador etíope Hailé Selassie. Dentro da mesma
perspectiva do chamado à unidade dos países africanos, “Zimbabwe” convoca os negros
para a ação direta como via para alcançar essa conquista:
55
África Se Una: África, se una / Porque estamos saindo da Babilônia / e estamos indo para a terra de nosso pai. /
Como seria bom e agradável / diante de Deus e do homem, / ver a unificação de todos os africanos / como já tem sido
dito, deixe ser feito / nós somos as crianças do homem rasta / nós somos as crianças do homem mais elevado /
Portanto África se une porque nossas crianças querem vir para casa / África se une porque estamos saindo da
babilônia / e nós estamos trilhando a terra do nosso pai / Como seria bom e agradável / diante de Deus e do homem /
ver a unificação de todos os homens rastas, yeah / como já tem sido dito, deixe ser feito / eu te digo quem nós somos
embaixo do sol / nós somos as crianças do homem rasta, / nós somos as crianças do homem mais elevado / Então
África se una, se una para o bem do nosso povo / Se una pois está mais tarde do que você pensa / Se una para o
beneficio de suas crianças / Te une pois está mais tarde do que você pensa / A África espera por seus criadores, a
África espera por seus criadores / África você é meu antepassado fundamental / Te une para os africanos que estão no
mundo, te une pelos africanos de longe / África se uma.
93
Zimbabwe
Every man gotta right to decide his own destiny
And in this judgment there is no partiality
So arm in arms, with arms
We will fight this little struggle
'Cause that's the only way
We can overcome our little trouble
Brother you're right, you're right
You're right, you're right, you're so right
We gonna fight, we'll have to fight
We gonna fight, fight for our rights
Natty dread it in a Zimbabwe
Set it up in a Zimbabwe
Mash it up in a Zimbabwe
Africans a liberate
Zimbabwe
No more internal power struggle
We come together, to over come the little trouble
Soon we will find out
Who is the real revolutionary
'Cause I don't want my people
To be contrary
Brothers you're right, you're right
You're right, you're right, you're so right
We'll have to fight, we gonna fight
We'll have to fight, fighting for our rights
Mash it up ina Zimbabwe
Natty trash it ina Zimbabwe
I and I a liberate Zimbabwe
Brother you're right, you're right
You're right, you're right, you're so right
We gonna fight, we'll have to fight
We gonna fight, fighting for our rights
To divide and rule
Could only tear us apart
In everyman chest there beats a heart
So soon we'll find out
Who is the real revolutionaries
And I don't want my people
To be tricked by mercenaries
Brother you're right, you're right
You're right, you're right, you're so right
We gonna fight, we'll have to fight
We gonna fight, fighting for our rights
Natty trash it ina Zimbabwe
Mash it up ina Zimbabwe
Set it up ina Zimbabwe
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Africans a liberate
Zimbabwe
Africans a liberate Zimbabwe
Natty dub it ina Zimbabwe
Set it up ina Zimbabwe
Africans a liberate Zimbabwe
Every man got a right
To decide his own destiny.56
Esta canção traz em seu conteúdo a constatação de que a libertação do povo
negro africano e de seus descendentes afro-americanos das amarras do colonialismo
europeu não se daria pela ação política nas metrópoles, senão pela ação militante do
próprio povo deste território. Por isso, a música inicia-se lembrando ao povo negro o
seu papel enquanto sujeito histórico do processo de unificação africana, seguindo o
exemplo do povo de Zimbábue que se ergueu pela sua independência. É realizando,
desta forma, um convite para que estes deixem a parcialidade e atuem de forma ativa na
luta para que se cumpram as profecias do Rastafarismo pan-africanista. Nesse sentido, é
preciso que o povo se coloque em luta para sua libertação, agindo através da luta
armada como única saída possível para superação do sistema de opressão em que estão
inseridos. Ao mesmo tempo, a sua letra refere-se à fragmentação do continente africano
e quanto isso dificulta o processo de unificação e à luta pelo poder interno, o que nessa
lógica gera segregação e divisionismo; neste momento surge na canção um clamor para
que se deixem as lutas pelo poder interno no continente, fazendo-se necessário que se
superem as pequenas divergências e que se coloque em movimento em prol de uma
unificação em torno desta causa maior, tornando-se evidente quem são os verdadeiros
56
Zimbábue: Todo homem tem o direito de decidir seu próprio destino / E nesse julgamento não há parcialidade /
Então, armas em mãos, com o exército / Vamos lutar esta pequena luta / Porque essa é a única forma / De superarmos
nossos poucos problemas / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos /
vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Vamos lutar, lutar pelos nossos direitos / Sendo
Dread no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Arrasando no Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue /
Chega de luta pelo poder interno / Nós nos unimos para superarmos o pequeno problema / Em breve descobriremos /
Quem é o verdadeiro revolucionário / Porque eu não quero que o meu povo / Seja contrário / Irmãos, vocês estão
certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós teremos que lutar,
vamos lutar / Nós teremos que lutar, lutar pelos nossos direitos / Esmague tudo no Zimbábue / Lixo horroso em
Zimbábue / Africanos para libertar / Eu vou libertar o Zimbábue / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos /
Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Nós vamos
lutar, lutar pelos nossos direitos / Dividir e reinar / Só poderia nos separar / No peito de todos os homens bate um
coração / Então logo vamos descobrir / Quem são os verdadeiros revolucionários / E eu não quero que o meu povo /
Seja enganado por mercenário / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos /
vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Nós vamos lutar, lutar pelos nossos direitos / Lixo
horroso em Zimbábue / Esmague tudo no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue
/ Africanos libertam o Zimbábue / Baseado horroso no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Africanos
libertam o Zimbábue / Todo homem tem o direito / De decidir seu próprio destino. (Tradução:
http://www.vagalume.com.br/bob-marley/zimbabwe-traducao.html#ixzz2vl9FDHY7).
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revolucionários, aqueles que lutam não pelo poder, e sim pela libertação e unificação da
África.
Logo, como já exposto, prepondera na música de Marley os afetos expectantes
de um processo de emancipação humana, tendo por eixo contestatório os reflexos da
opressão sobre a população pobre e negra no mundo. Nesse cenário, a busca por uma
solução encontrou na síntese entre política, religião e arte a força revolucionária que
apela contra a ordem estabelecida. Esse conteúdo contém as experiências vividas na
Jamaica e elementos da ideologia pan-africanista, o que leva Marley a defender outro
mundo, mas que seria negro e no continente africano. O equívoco quanto a uma visão
idílica da África não impede, no entanto, que sua canção preserve um forte apelo
utópico e antecipatório de um horizonte futuro para a sociabilidade humana.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A música reggae de Bob Marley, com sua harmonia, carregada pelo compasso
marcante do baixo, pela marcação frenética da guitarra, e pela sua letra de conteúdo
crítico, apresenta-se de maneira contraditória à sociedade moderna capitalista. Primeiro
como uma expressão artística contestatória de sua época e concomitantemente como a
representação de sua superação. Assimila em seus elementos intra-estéticos e extraestéticos os elementos formativos do contexto, mutuamente, caracteriza-se por apontar
através de uma estética insólita, representar a superação da sociabilidade vigente e
precipita a existência do novo.
Esse movimento de contestação e prelúdio dessas canções está presente em sua
essência na forma e conteúdo estético, criadas a partir da mediação entre subjetividade e
objetividade. As condições objetivas de existência do povo pobre e negro da América
Central, em geral, e da Jamaica, em especifico, despontam por via da representação
musical da realidade e estão presentes de forma relevante, frisada pela marcação do
compasso do reggae que contém quatro tempos principais de intervalos e bases rítmicas
asseguradas pela guitarra trazendo sua fruição mecânica ocasionam uma forte pulsação,
que te deixa atendo, ativo. Sincronicamente, os seus conteúdos trazem uma realidade
representada nas obras de Bob Marley por meio da mímese peculiar a música, realizada
pela internalização das condições objetivas por meio dos sentimentos do artista,
produzindo uma síntese entre fatores subjetivos e objetivos.
O reggae tem como característica mais marcante a forma acentuada que traz em
seu conteúdo e forma estética os aspectos antecipatórios de uma realidade desejada,
para alcançar essa representação emancipatória o gênero trava uma relação muito íntima
com outros aspectos da sociabilidade humana, como política, filosofia e religião, que
lhes serviram de fio condutor dos aspectos expectantes que pulsam em sua
representação musical da realidade social. A utopia presente de forma antecipatória no
reggae precipita a promessa do novo, a felicidade prometida, embora ainda de modo
fragmentário.
Mesmo dentro de um contexto que se encontra mergulhado pelos ditames da
indústria cultural e do processo de padronização da obra de arte, o reggae consegue,
como uma dos poucos gêneros musical, manter o que é de mais essencial na produção
artística: a autonomia relativa a realidade social. O que lhe viabilizou uma certa
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liberdade no processo de composição, permitindo que florescesse uma música dotada de
aspectos contestatórios e utópicos.
Desta forma, o conteúdo das canções do músico jamaicano está preenchido pela
peculiar realidade de desigualdade social vivenciada pelo povo pobre e negro da
Jamaica historicamente, sendo marcado pelo longo processo de colonização Inglesa,
alicerçada pelo escravismo do povo africano, e pelo ambíguo processo de
independência, que não trouxe a liberdade e melhorias para a maioria da população
daquele país, mas sim a confirmação que estavam na miséria. O reggae de Bob Marley
desponta dos guetos daquela ilha nesse contexto trazendo como expressão o
enfrentamento e a superação da sociedade capitalista. O reggae representa por meio de
sua estética o caráter popular daquele povo, que encontrava-se mergulhado no
imaginário dos conflitos de países economicamente marginais estabelecido pelo
processo de desenvolvimento do capital, muito embora, trazendo a resistência
enfatizada pelos princípios da fé rastafári, bem como pelos símbolos e máximas
derivados do folclore jamaicano e africano, constituída de forma sui generis pelo caráter
emancipatório, dotado em seu conteúdo e na sua forma de elementos que negam as
situações postas e vislumbram outra realidade,
projetando
outras possibilidades
sociais.
A relação firmada entre o reggae e o rastafarianismo marcada pelas profecias de
uma fé cristã atingia de forma controvérsia as músicas de Bob Marley, ao mesmo que
que apontavam a necessidade de enfrentamento ao sistema da babilônia (capitalismo),
se limitavam aos processos de liberdade de caráter racialista, restrito a salvação do povo
negro por via da unificação da África. Mas ao mesmo tempo essa fé apareceu como o
combustível para o conteúdo emancipatório dessas canções, os afetos expectantes
negativos (angústia e medo), os sofrimentos e a indignações estão na origem do novo,
assim que, de antemão, fazem da fé, e nesse caso crença e estética musical, um caminho
para a liberdade. Há nesse caso a existência de uma tendência crítica ou subversiva
presente no messianismo rastafári que de forma herética adentram o reggae. Alicerçada,
por uma interpretação de “eixo não teocrático” faz com que o conteúdo emancipatório
da religião na música seja justificado por um paraíso não transcendente, é preciso lutar
pela libertação no mundo material, fazendo com esse movimento absorva o caráter
contestador da ordem social e revolucionário.
Ademais, o reggae conseguiu estabelecer uma relação bastante profícua ao
estabelecer relações com outras formas de expressão da sociabilidade humana, trazendo
98
em sua representação musical elementos com um forte teor político, religioso e
filosófico, de maneira que a obra de arte não ficasse subordinada em sua capacidade de
representação a nenhum desses elementos que tem sua gênese externa a sua formação
estética. A síntese entre música, política e religião é onde está contido o catalizador dos
afetos expectantes presentes no conteúdo emancipatório das músicas de Bob Marley.
No entanto, há nesse processo de desenvolvimento do reggae, mesmo tendo em
vista que ela traz eminentemente nesse movimento dialético as suas próprias
contradições, algo que deve ser evidenciado a sua capacidade de transcender,
universalizar-se e tornar-se atemporal. Nesse, sentido, aos poucos o reggae foi se
difundindo, se tornando uma música conhecida em todo mundo, o que se pode constatar
é que os conteúdos e formas trazidos até então como mensagens singulares da América
Central, se tornaram universais, o que nos leva a concluir que existe no belo artístico
dessas canções uma relação intrínseca entre singularidade e universalidade.
Há nessas canções uma relação entre o universal e o particular como forma
singular de experiência, que proporciona apreensão e representação da realidade de
maneira verossímil. Essa faculdade está relacionada com a maior inserção de Bob
Marley na cultura universal da sociedade moderna, o que permite a ele reproduzir tantos
as suas contradições, quanto os seus elementos de superação. Assim, o caráter singular
destas canções é estabelecido, por meio da internalização do artista das contradições que
são colocadas pela realidade social de um país periférico, potencialidades que lhes
propiciam condições de transgredir esteticamente as condições de espaço e tempo. A
mediação executada entre subjetividade e objetividade, sentimento subjetivo e
sentimento do mundo, ligado ao caso particular das condições objetivas dos países
periféricos, pode ser um elemento desantropomofizador da representação da realidade
presente na música reggae de Bob Marley.
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