UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANDERSON DE JESUS COSTA O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MUSICAS DE BOB MARLEY SALVADOR 2014 ANDERSON DE JESUS COSTA O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB MARLEY Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial a obtenção do titulo de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara SALVADOR 2014 _____________________________________________________________________________ C837 Costa, Anderson de Jesus O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley / Anderson de Jesus Costa. – 2014. 102 f.: il. Orientador: Profº Drº Antônio da Silva Câmara Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2014. 1. Marley, Bob, 1945-1981. 2. Cantores - Jamaica - Emancipação. 3. Música. 4. Política. 5. Representação (Sociologia). I. Câmara, Antônio da Silva. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título CDD: 306.484 _____________________________________________________________________________ À pessoa que me acompanha em meus afetos expectante e que me faz sentir vivo: Marina. À minha mãe, irmãos, familiares e amigos, que mesmo com a distância, me alicerçaram para chegar onde estou. AGRADECIMENTO À realização dessa dissertação marca o fim de uma importante etapa de minha vida, momento este que só se tornou possível com o auxilio direto e indireto de sujeitos que contribuíram para a consecução desse trabalho. Primeiramente gostaria de agradecer ao meu orientador e amigo Antônio da Silva Câmara, que com todo a sua sabedoria e carinho conduziu meu estudo de forma coerente para o seu produto final, e por transformar os momentos em que compartilhamos em especiais mesmo diante de toda dureza que a vida acadêmica nos exige. À Marina, minha companheira de vida e luta, que floresceu em minha vida a tão pouco tempo, mas que desde esse momento esteve ao meu lado, oferecendo o seu amor, e sua sensibilidade, na leitura, no apoio, na análise dos dados, e na escrita, desta forma, tornando os momentos árduos de estudo em leves e felizes. Aos meus pais Lourdes e José Roque (in memoria), por todo o alicerce educativo e material que me ofereceram para que eu pudesse, diante das mazelas da realidade, caminhar sob os trilhos do estudo. Ao nosso grupo de pesquisa no NUCLEAR, especialmente à Rodrigo Lessa, Bruno Evangelista, Bruno Sampaio e Fernanda Faria, que com toda sabedoria e carinho me auxiliaram nessa caminhada acadêmica. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação, aos professores que o compõem e aos seus funcionários, em especial ao professor Clóvis Zimmermann e a Dôra, pelo apoio acadêmico. Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo financiamento da pesquisa através da bolsa acadêmica. RESUMO A análise do conteúdo emancipatório das canções do músico jamaicano Bob Marley é abordada no presente trabalho de dissertação a partir do exame da relação entre obra de arte e suas condições objetivas sociais. Foi analisada a representação da vida cotidiana presente em músicas que apresentam, de forma latente, um conteúdo crítico a respeito das contradições sociais inerentes ao mundo moderno. Realizou-se uma análise estética sociológica, tendo como base a forma e o conteúdo da expressão artística. Nesse sentido, a seleção e análise dos álbuns e faixas, que nos debruçaremos, foi realizada através do método de análise do conteúdo musical, que consiste no ato de analisar a letra das canções, assim como apreendê-las enquanto síntese de um contexto estético e social. O caráter emancipatório dessas canções é entendido aqui através da capacidade que essas obras têm de transpor uma dupla relação: ao mesmo tempo que a música tem em seu conteúdo estético elementos que negam as situações postas, estão voltadas a outra realidade, projetando novas possibilidades sociais. Palavras-Chaves: Bob Marley, Música, Emancipação, Representação, Utopia, Política. ABSTRACT An analysis of the emancipatory content of the songs of Jamaican musician Bob Marley is discussed in this dissertation by examining the relationship between art works and their social objective conditions. We analyzed the representation of everyday life present in specific songs that show, potentially, a critical content concerning the social contradictions inherent in the modern world. We conducted a sociological aesthetic analysis, based on the form and the content of an artistic expression. In this sense, the selection and analysis of albums and tracks, we will turn to, was performed using the method of analysis of the musical content, which consists in the act of analyzing the lyrics of the songs, as well as understanding them as a synthesis of an aesthetic and social context. The emancipatory character of these songs is demonstrated by the capacity that these works have to cross a double relationship: while the music takes its aesthetic content elements that deny established situations, are directed to another reality, designing new social possibilities. Keywords: Bob Marley, Music, Emancipating, Representation, Utopia y Politics. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................09 CAPITULO 1. A MÚSICA EM SUAS DIVERSAS FACETAS: ESTÉTICA SOCIOLÓGICA, REALIDADE SOCIAL E MÚSICA POPULAR........................15 1.1. Por uma estética sociológica.....................................................................................16 1.2. Arte e a realidade social............................................................................................25 1.3. O emergir da música popular....................................................................................30 CAPITULO 2. INTERFACE DO REGGAE: ARTE, POLÍTICA E RELIGIÃO. 42 2.1. O berço do reggae: dilemas de um mundo subdesenvolvido...................................44 2.2. O movimento de surgimento do reggae....................................................................51 2.3. Fogo na babilônia: música reggae e capitalismo.....................................................55 3. O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB MARLEY......70 3.1. Entre a contestação e a utopia: representação da emancipação humana nas músicas de Bob Marley.................................................................................................................74 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................96 6. REFERENCIAS.......................................................................................................99 9 INTRODUÇÃO “O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley” faz parte de um estudo circunscrito à sociologia da arte, que compreende que a música enquanto expressão humana é um objeto importante para apreensão da sociedade em suas múltiplas determinações. A música constitui uma forma de expressão humana histórica, assumindo diferentes faces durante distintos períodos da humanidade, no entanto, sempre evidenciando aspectos de sua relação com a realidade social. Partidos da abordagem dialética, que concebe a realidade social moderna como uma síntese de um processo histórico alienado, assim, estabelecendo a separação entre aparência e essência, entendemos que há na expressão artística a capacidade de apreender o processo real de contradição presente na realidade moderna, integrando a unidade entre aparência e essência da realidade social. Desta forma, é importante salientar, que não analisaremos a música a partir de seus aspectos de recepção social1, optou-se pela abordagem “estética sociológica”2, cuja própria obra de arte será o instrumento que torna inteligível a realidade social, sendo esta relação estabelecida pela refiguração da realidade objetiva. Nesse prisma, a análise sociológica da arte deve partir de seus elementos intra-estéticos – características internas, imanente à forma e conteúdo da obra de arte –, buscando estabelecer a relação entre os elementos constituinte da estética e seus elementos extra-estéticos – exteriores a estética, exógena a obra de arte3 - inferindo que a expressão artística não é produto de um processo criativo puramente autônomo, este faz parte de um processo de síntese entre os conteúdos internos e externos a arte. Para tanto, devemos entender que há na arte uma relação dialética entre o conteúdo estético das produções artísticas e a realidade social em que o artista está inserido. Portanto, compreendemos que a expressão artística, em sua forma e conteúdo, 1 Teoria da Recepção é uma teoria de análise do fato artístico ou cultural que enfoca sua análise no receptor. Dentro dos estudos literários se origina no trabalho de Hans Robert Jauss nos anos 1960 e se desenvolve nas décadas seguintes na Alemanha e nos Estados Unidos (Fortier 132) se inserindo em análises das mais variadas expressões artísticas. Ver: ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009; JAUSS, Hans Robert. Pour une Esthetique de la Reception. Paris: Gallimard, 1978. 2 Essa perspectiva de estudo da arte é utilizados por teóricos como: Lucien Goldmann, Georg Lukacs, Theodor Adorno, etc. Ver: HEINICH, Nathalie. A Sociologia da Arte. Bauru: EDUSC, 2008. 3 Podemos cita, por exemplo, a influência da indústria fonográfica na produção das músicas na contemporaneidade. A preensão da música contemporânea necessariamente deve passar pela relação entre os aspectos internos a estético e a influencia da indústria fonográfica como aspecto extra-estetico que influencia de forma decisiva para o entendimento da música nessa conjuntura. Essa influencia é algo externo a própria obra de arte. 10 é formada por uma relação intrínseca entre a subjetividade do artista e a objetividade vivenciada por ele no seu cotidiano. Compreendendo a arte, agora, como uma mediação da realidade, torna-se possível perceber que esta carrega intrinsecamente, em seus elementos estéticos, um caráter político. O “conteúdo emancipatório” nas obras de artes está ligado à potencialidade, contida em sua estética, de contestar o seu outro social, e ao mesmo tempo vislumbrar, em seu caráter aparente4, o prelúdio do novo. É através do “belo artístico”, da sua capacidade de expressão por meio de uma criação harmônica que a arte exterioriza os conteúdos sociais. O belo artístico compreende a expressão em forma artística dos elementos contraditórios presentes na realidade social. Isto porque a arte é uma expressão imanentemente social, constituída em uma práxis social construída por um sujeito que a produz a partir das circunstancias históricas vivenciadas. Importante notar que este caráter político não é necessariamente construído de forma instrumental, entretanto, independentemente disso, ela carrega em si contradições presentes na realidade objetiva formadora do artista, e, justamente por isso, estas contradições expressam-se esteticamente. É de fundamental importância compreender que apesar desse caráter político existente na arte, ela não pode ser aprisionada, de forma pragmática, a uma finalidade política. A arte deve ter, por essência, assegurada sua autonomia relativa a realidade social. A música reggae, assim como a arte, em geral, em seu curto período de existência sempre teve uma relação muito intima e profunda com o processo de desenvolvimento da sociedade que lhe circunda, esse vínculo pode ser percebido tanto nos elementos intra-estéticos, quanto em seus aspectos relacionais com os componentes extra-estéticos. Essa relação pode ser apreendida em uma análise estética sociológica por se tratar de uma expressão eminentemente moderna, a partir da representação social das condições objetivas presentes nos elementos da composição de sua forma e conteúdo. Também poderá ser apreendida na maneira como os aspectos do desenvolvimento técnico material da sociedade vigente incidem sobre o processo criativo dessas canções. 4 A arte é aparência por sua diferença em relação à realidade, pelo caráter aparente da realidade que pretende retratar, pelo caráter aparente do espírito do qual ela é uma manifestação; a arte é até mesmo aparência de si própria na medida em que pretende ser o que não pode ser: algo perfeito num mundo imperfeito, por se apresentar como um ente definitivo, quando na verdade é algo feito e tornado como é. Ver: ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2013. 11 Nesse sentido, o belo artístico presente no reggae corresponde a dois aspectos da modernidade: ao desenvolvimento das forças produtivas e, mais precisamente, aos avanços técnicos, inserindo novos instrumentos na criação musical popular, adequando a harmonia dessas canções à busca incessante pela velocidade. Os avanços tecnológicos contribuíram, sobremaneira, para uma nova concepção de espaço/tempo da sociedade da produção em massa; e essa nova percepção da realidade interfere no processo de representação estética das expressões contemporâneas, transformando tanto o seu conteúdo, quanto a sua forma. A música reggae tem por característica fundamental partir de um conteúdo cujo conceito intrínseco relaciona-se com os aspectos sociais que a circunscreve, particularidade viabilizada pela mediação realizada entre a subjetividade e a objetividade, permitindo-lhe manter uma autonomia relativa das amarras postas pela indústria cultural. Historicamente a música, em geral, e o reggae, em específico, vem cumprindo, principalmente na sociedade moderna de predomínio da razão instrumental, a função de ser um dos principais meios de expressão dos sentimentos e anseios dos seres humanos. Diante das questões levantadas, a presente dissertação pretende investigar o conteúdo emancipatório das canções do músico jamaicano Bob Marley, buscando abordar a representação da vida cotidiana presente, em especial, em músicas que apresentam um conteúdo crítico a respeito das contradições sociais inerentes ao contexto da modernidade. Para a consecução da presente investigação, foram escolhidos quatro álbuns que contém fortemente este teor emancipatório, sobretudo pelo seu caráter contestatório e utópico: Soul Rebel (1970), Catch a Fire (1973), Burnin (1973) e Survival (1979). Frente a esse objeto, optamos pela estruturação da dissertação em três capítulos, cada um buscando representar a relação entre particularidade e universalidade, formadores da totalidade que compõe a dissertação. São eles: 1. A música em suas diversas facetas: estética sociológica, realidade social e música popular; 2. Interface do reggae: arte, política e religião; e 3.O conteúdo emancipatório nas músicas de Bob Marley. O primeiro capítulo objetiva criar as bases teórico-metodológicas, que servirão de alicerce para o desenvolvimento das demais etapas da investigação, propõe-se discutir a música em sua perspectiva mais genérica e em sua mediação com o conteúdo social, estabelecendo, desta forma, os pressupostos de formação de um estudo 12 sociológico da expressão musical, desenvolvida a partir da abordagem de elementos centrais para a discussão moderna de sua consecução enquanto arte: as artes românticas; a concepção objetiva da arte; a mimese peculiar à música; a música em sua forma erudita (clássica) e popular; a indústria cultural; dentre outras questões que são essenciais para a compreensão da música. Em seguida, traremos para discussão a relação estabelecida entre música, política e religião, contextualizando esse fenômeno a partir do processo vivenciado pelos países periféricos caribenhos, dando ênfase para o caso da Jamaica, em sua relação entre o local e o global. A formação de um contexto histórico, em meio às contradições sociais, será relacionada com as produções musicais que emergiram na região e da capacidade de representação da vida cotidiana na música de Bob Marley através do seu caráter mimético5, constituindo as representações do cotidiano na arte. Será este um espaço para discutirmos, a partir da referencias atuais sobre a música popular a relação entre música e realidade social, ao mesmo tempo, trataremos de aspectos peculiares e universais do elo entre indústria fonográfica e as canções do músico jamaicano. Dando prosseguimento ao capítulo avançaremos sobre as questões que envolvem a relação entre música popular e política, aprofundando o conteúdo contestatório, emancipatório e utópico presente nas músicas reggae a partir de seu caráter estético. Devido à relação da representação da emancipação humana contida no objeto de pesquisa da presente investigação ter relação direta com questões religiosas e raciais, buscaremos nos apropriar da relação constituída na música e o teor emancipatório e religioso, bem como seus desdobramentos ideológicos ou críticos. Diante dessas questões, retomaremos os debates entre autonomia artística e as experiências realizadas sobre essa relação entre arte e política, dando ênfase à peculiaridade que a expressão artística deve conter ao adentrar o mundo da política. Para finalizar a Dissertação, realizaremos a análise da obra de arte de Bob Marley. Para execução dessa tarefa utilizaremos do método de análise de conteúdo das letras das canções que trazem uma representação mais pulsante da emancipação humana. Nesse sentindo, realizaremos discussões referentes ao conceito de utopia presente na música reggae do cantor jamaicano, buscando tornar evidentes os afetos expectantes que funcionam como impulsionadores da representação utópica presente no 5 O caráter mimético da música será discutida com maior aprofundamento no capítulo 3 do presente trabalho. 13 reggae. A análise deve, nesta medida, aprofundar-se nos elementos constitutivos do conteúdo emancipatório na “representação da vida cotidiana” presente na música de Bob Marley. Tal compreensão, entretanto, se realizará a partir da apropriação ou objetivação do caráter eminentemente social dessa obra, que será apreendido pela compreensão das letras que compõem as músicas. Nesse contexto analítico faz-se necessário salientar, a técnica de investigação utilizada para a consecução da presente etapa do trabalho. Perante os objetivos da pesquisa, tornou-se tarefa inicial delimitar o recorte necessário para o estudo do presente objeto. A duração da carreira de Bob Marley é inversamente proporcional à sua obra, uma intensa produção em curto espaço de tempo, durando esse período de criação apenas nas décadas 1960 e 1970. Nessa ocasião foram produzidas dezenas de faixas que comporão cerca de dezoito álbuns, ainda uma série de coletâneas, compactos e vídeos. Após a sua morte, suas composições foram bastante difundidas, sendo lançados outros álbuns, inclusive com músicas inéditas, como foi o caso do álbum “Confrontation”, cujo disco foi lançado dois anos após a sua morte. Qualquer estudo sobre a música de Bob Marley encontrará diversos obstáculos para estabelecer uma seleção de canções que se torne representativa da sua produção artística, devido à riqueza e complexidade dessas obras. A limitação de espaço/tempo na presente pesquisa impediu que nos apropriássemos de um recorte mais amplo do universo que constitui a produção de suas composições. Diante destas questões, optamos pelo percurso metodológico que parte da pesquisa científica vincada na estética sociológica, tendo como base a forma e o conteúdo da expressão artística. Nesse sentido, a seleção dos álbuns e faixas que nos debruçamos foi realizado através do método de análise de conteúdo musical, que consiste ao ato de: a) explicitação; b) sistematização; c) e expressão do conteúdo de mensagens contida na canção por meio da análise de suas letras, o que propiciou as condições necessárias para recortar os fragmentos mais significativos de uma canção e descrevê-lo dentro de um contexto estético e social que se adapte com o proposto no presente na pesquisa. A análise deve, nesta medida, aprofundar-se nos elementos constitutivos do conteúdo emancipatório na representação da vida cotidiana presente na música de Bob Marley. Tal compreensão, entretanto, se realizará a partir da apropriação por via da descrição dos aspectos sociais que se apresentam nas obras. Essa análise de conteúdo musical possibilitou uma descrição detalhada dos elementos mais significativos 14 relativos ao objetivo da pesquisa dentre aqueles que compõem os quatro álbuns sugeridos. Após essa fase de identificação das partes fundamentais e mais ilustrativas das músicas, partimos para a fase da análise de conteúdo musical, que corresponde à compreensão dos elementos decompostos observando as representações miméticas que lhes são constituintes e que remontam à objetividade material na representação estética da arte. Finalizadas as etapas supracitadas, iniciamos a fase de recomposição das canções. Partindo do pressuposto de que a recomposição consiste num processo de reestruturação das músicas analisadas que durante a pesquisa deverão ser verdadeiramente dissecadas em distintos termos e contextos sociais. Objetivamos, desta maneira, reconstituir a música em sua totalidade original. Os processos de análise e produção postos e descritos foram mediados pelo cotejo teórico das referências bibliográficas a respeito da sociologia da música, da estética e da emancipação; subsidiada ainda, por fontes secundárias de pesquisa alicerçadas na temática do reggae, e da obra do ícone em questão. Este método também será subsidiado pelo estudo das condições externas que influenciam na produção musical, o que significa que é necessário também circunscrever a produção deste artista na sociedade jamaicana das décadas de 1960 e 1970. Desta forma, partindo do objeto musical, e de sua análise interna, buscaremos compreender não só sua capacidade de apontar para o mundo social, como o seu contrário, ou seja, como determinadas relações e problemas sociais condicionaram a produção musical. 15 1. A MÚSICA EM SUAS DIVERSAS FACETAS ESTÉTICA SOCIOLÓGICA, REALIDADE SOCIAL E A MÚSICA POPULAR “[A música] é um só tempo social em si mesma. A sociedade se encontra sedimentada no seu sentido e nas suas categorias, e é este sentido que a sociologia da música deve desvelar” (Adorno). “[...] a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas, ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano.” (ADORNO, 1963). A música é uma das mais importantes expressões artísticas da humanidade. Está presente, de forma significativa, em diversos espaços e tempos sociais, sendo também objeto de estudo de muitos teóricos que se propuseram a refletir sobre as diferentes formas de representação social na arte. Deste modo, ao definir como objeto de pesquisa sociológica o conteúdo emancipatório das músicas de Bob Marley, tem-se por condição imperativa a necessidade de incidir analiticamente sobre a teoria produzida pelas ciências humanas a respeito da representação social da música. Partindo desse pressuposto, esse capítulo tem por objetivo abordar a música como expressão artística, salientando a sua constituição e sua relação com a sociedade, de modo a discernir o elo entre estética e processo social no que concerne a sua complexa gênese como arte. Todavia, salienta-se que o percurso optado para a pesquisa é o da compreensão dos elementos estéticos em sua mediação com a sociedade, partindo, portanto, da própria música, levantando nessa sessão os elementos de constituição estética e seu intermédio social, tendo como pressuposto norteador a apreensão científica/filosófica da relação entre a música e as relações sociais, que a contém e a circunda ao mesmo tempo; buscando desvendar nela uma representação sociohistórica, seja por via do movimento do espírito defendida pelo pensamento hegeliano, seja pelo movimento da realidade social apontada pela “Teoria Estética” de Theodor Adorno e Georg Lukács. 16 Dessa forma, nos interessa compreender como a inscrição do social encontra-se presente na forma estética de um determinado gênero musical. Não obstante, não se pretende reduzir a música a seu condicionamento social. A apreensão da relação entre música e sociedade perpassa a análise de temáticas acerca das artes românticas; da concepção objetiva da arte; da mimese peculiar à música; da música em sua forma erudita (clássica) e popular e da indústria cultural; dentre outras questões que são essenciais para a compreensão da música popular à qual se propõe esta pesquisa. Decerto, torna-se fundamental para o entendimento da música popular produzida por Bob Marley, a assimilação da síntese artística realizada entre objetividade e subjetividade, tendo clareza que tal fenômeno sofre influência de processos conjunturais relacionados ao cenário de desenvolvimento da mesma. 1.1. Por uma estética sociológica Para a compreensão da música partimos do pressuposto dialético da totalidade, implicando necessariamente em compreender a obra de arte ao mesmo tempo como singularidade/universalidade que se apresenta na realização da análise como instrumento que possibilitará a apropriação dos diferentes elementos constituintes dessa expressão artística. Para isso é preciso levar em consideração que não se trata de um fenômeno de caráter simples, e sim que se opera com um objeto complexo que sofre na sua formação diversas mediações com graus qualitativos e quantitativos diversos, embora combinados. A partir dessa conjectura, busca-se apreender nos demais capítulos a complexidade das formas estéticas particulares de cada obra, abordando-as em seus propósitos de diferenciação e em sua atividade de desdobramento em múltiplas formas particulares, dentre elas o reggae. A música é uma expressão artística que tem como caráter central o fato de ser uma representação social que tem uma forma peculiar, sensível e efêmera em seu modo de expressão, o que a torna na análise de hegeliana uma expressão artística romântica (HEGEL, 1962). A arte no sistema filosófico idealista hegeliano seria a etapa inicial de afirmação do Espírito Absoluto, sendo as artes românticas (pintura, arquitetura, poesia e música) as que atingiriam um nível mais profundo de sensibilidade do espírito universal, trazendo um caráter de verdade. No entanto, o desenvolvimento do espírito absoluto só estará completo em suas etapas posteriores, com o desdobramento dialético 17 da religião e da filosofia. A expressão musical, em sua forma de manifestar-se na objetividade concreta, apresenta um elemento importante para seu entendimento como arte sensível, ela traz como característica que diante do seu exercício de materialização e comunicação não se apresenta como natureza permanente, sendo objetivada por ondas sonoras que se dissipam logo após a sua apreciação. Não está aqui, ainda, abordando-se as formas de armazenamento da música, fruto do desenvolvimento das forças produtivas na modernidade, mas sim da forma de expressão em si da música, em seu caráter mais imediato e genérico, tendo como conteúdo uma mediação social. Como nos aponta F. Hegel: A supressão do espacial efetua-se, portanto, de tal modo que uma determinada matéria sensível abandona o seu estado de repouso, põe-se em movimento, sofre uma espécie de abalo por meio do qual cada parte do corpo, até então coerente, não só muda de lugar, mas procura também retornar ao seu anterior estado. Este estremecimento vibratório produz o som, que é a matéria da música. (HEGEL, 1962, p.180-181). Hegel, ao realizar a análise da música, infere que esta tem um conteúdo subjetivo em si, pelo fato de conter uma dupla negação, que está representada tanto em sua forma de expressão, quanto em sua recepção, propiciada pelas conexões possibilitadas pela subjetividade, estando todo o processo ligado a conteúdos sensíveis. Primeiramente pelo ato da música, ao exteriorizar-se, ter por conteúdo a interioridade, que se objetiva a partir do elemento sensível das ondas sonoras, trazendo de maneira inerente o processo de autodestruir-se espacialmente ao longo de seu percurso; e, em seguida, pelo fato de que para a concepção das suas produções necessita-se do ouvido – entendido pelo pensador como órgão especial que faz parte dos sentidos sensíveis – fazendo com que só a interioridade objetivada pela onda mecânica e a subjetividade abstrata se deixem exprimir pelo som. A arte, em geral, e a música, em particular, constituem a forma pela qual o espírito se torna consciente de seus interesses, diferenciando-se da natureza por meio do movimento contraditório propiciado pelo processo da contemplação, exteriorização, desdobramento, representando o ser – espírito - em si e para si. As artes românticas são fundamentais nessa dinâmica ao não se apresentarem em sua exteriorização de maneira limitada pelo senso-percepção do espírito, essas expressões realizam um duplo movimento dialético que produzem “uma significação essencial” de sua unidade necessária, aparecendo como manifestação sensível do espírito. Assim, a música, 18 cumpriria uma função de mediação entre o sensível e o inteligível, o finito e o infinito, o subjetivo e o objetivo, e desta forma libertaria o pensamento por via das ondas sonoras sensíveis. O idealismo hegeliano atribui a geração da música ao conteúdo da vida subjetiva da alma, estando em acentuada oposição entre a livre interioridade e as proporções numéricas6. No fluxo dessa consecução o espírito aponta a necessidade de exteriorizar-se, visitando desta forma a realidade exterior a ele, para só depois retornar à totalidade. O elemento essencial para o entendimento da formação da música é o som, sendo que ele pode a partir de sua totalidade, ou da ausência desta, constituir-se enquanto música ou mero ruído. Constantemente estamos cercados de sons e ruídos oriundos diretamente da natureza ou mediados pela interação humana. Para tornar inteligíveis como tais questões estão presentes de forma imanente na realidade dos seres vivos – sendo eles humanos ou não humanos – destaca-se a utilização por parte dos morcegos, baleias e golfinhos que usam das informações geradas pelas ondas mecânicas dos sons para adquirirem informações sobre o ambiente, ecolocalizando o espaço para voar e nadar por entre obstáculos e caçar suas presas. A elucidação dos meios que levam o som natural a transformar-se em expressão artística, sendo faculdade de cada som ser uma entidade total, para Hegel (1962), tem o seu epicentro no fato da canção emergir a partir do elemento elaborado pela arte e para arte. Embora todos os sons sejam produtos da natureza, faz-se necessário distinguir os sons que se transformaram em música, dos que se perpetuarão pelas repetições dos processos naturais sem se tornarem em uma totalidade artística. A consecução da síntese da expressão artística musical tem seu fundamento no artista, resultando de um processo muito mais elaborado no curso de desenvolvimento de transformação em sons harmônicos, sendo a beleza algo que nasce do espírito em sua execução laboral, gerando harmonias e melodias musicais; já percorrendo a outra face, as dos sons que não recebem o toque de composição do artista, estes não têm outras motivações senão as próprias formas espontâneas, que faz com que se repitam guiadas pelas condições de subsistências do próprio movimento de conformação dos diferentes 6 As proporções numéricas levantadas estão ligadas a uma concepção matemática que não se restringe ao poder do número ser puramente quantitativo, mas inserido essa relação numérica com outras determinações importantes de objetos, que não se constituem meramente quanto números, garantido a análise da música a partir de toda complexidade que envolve a realidade objetiva, imersos está em aspectos quantitativos e qualitativos. 19 fatores que constituem o complexo do sistema natural.7 Na composição da música existe um único produto que é direto da natureza humana, a voz humana, os outros elementos cabem ao artista constituir os meios que lhe permitiram criar sons, sem os quais ela não poderia mesmo existir. Está presente aí um elemento que reforça que a música é uma expressão artística eminentemente social, o nível de desenvolvimento social circunscreverá as reais condições dos sons, embora seja necessário ter cautela para afastar o risco do determinismo e do evolucionismo, que nos levam a inferir que as artes modernas são superiores esteticamente a obras de períodos históricos anteriores. Portanto, a existência desse som por si só não garante os elementos necessários para sua constituição como expressão artística musical, não sendo algo inato ao som a presença de unidade harmônica que lhe será conferida por meio de articulações realizadas pelo labor humano. É por meio das relações humanas que o som recebe o seu sentido estético, seu significado e a sua expressão, transformando-se em música. Hegel ao expressar a sua análise sobre a música diz: Tampoco el sonido suelto tiene sentido sino en el comportamiento y la vinculación con otro y con la sucesión de otros; la armonía o la desarmonía en ese círculo de vinculaciones constituye su naturaleza cualitativa, la cual se basa al mismo tiempo en relaciones cuantitativas que constituyen una serie de exponentes y son las relaciones entre las dos específicas relaciones que son en sí cada uno de los dos sonidos relacionados. El sonido aislado es el tono fundamental de un sistema, pero también miembro individual del sistema de cualquier otro tono fundamental. Las armonías son excluyentes afinidades electivas cuya peculiaridad cualitativa se disuelve de nuevo en la exterioridad de procesos meramente cuantitativos (HEGEL, p. 415. 1947).8 O som musical se constitui em uma unidade duplamente contraditória por ser composta pelo contraste de suas diferentes unidades sonoras, sendo que essas são constituídas com um caráter de precisão e pureza gerado pela combinação antinômica entre seus elementos formadores: duração (longo ou curto), altura (agudo ou grave) e dinâmica (tocado mais forte ou mais fraco). Sendo assim, o som, devido a esses dois elementos, precisão e pureza, apresenta tanto do ponto de vista da sua tonalidade real 7 Ao tratar a questão da natureza não buscamos simplificar todo o complexo de determinação que compõe tal sistema, mas nos posicionamos a partir da perspectiva que é o homem a partir de sua capacidade criativa que produz o belo, unindo particularidade e universalidade em um conteúdo estético. 8 Nem um som solto tem sentido senão no comportamento e na vinculação, com outro e com a sucessão de outros; A harmonia e a desarmonia nesse circulo de vinculações constitui sua natureza qualitativa, na qual se passa ao mesmo tempo nas relações quantitativas que constituem uma série de expoentes e são as relações entre dois, especificas relações que são em si cada um dos dois sons relacionados. O som isolado é um tom fundamental. As harmonias são exclusivas da finalidade eletiva cuja peculiaridade qualitativa se dissolve de novo na exterioridade do processo meramente quantitativo. (HEGEL, p. 415. 1947) (tradução do autor) 20 quanto de sua duração, relações diretas com outros sons, sendo justamente essas relações o elemento de sua precisão real, diferenciando-o dos outros, opondo-o ou fundindo-o com eles, formando uma totalidade gerada pela subsunção de um som pelo outro, criando um todo harmônico. (HEGEL, 1962) A própria diferença entre os instrumentos musicais na execução da sonoridade se constitui, para Hegel, como diferença nas propriedades qualitativas hierárquicas da formação da obra. Para o autor os sons produzidos tendo como medida uma direção linear (instrumentos de corda e de sopro) tem caráter essencial, como subordinada a eles estão os instrumentos de superfície plana (tambor, bombo, timbale, harmônica). Dentre esses instrumentos a voz humana ocupa posição de excelência, por reunir as propriedades dos instrumentos de cordas e dos de sopro, sendo, em parte, uma coluna de ar que vibra, e funcionando em parte, graças aos músculos, como uma corda esticada, o que lhe possibilita uma tonalização que se adapta a todos os instrumentos. Mas é necessário que, diante da multiplicidade de instrumentos na criação musical, possam ser realizadas intercalações complementares entre estes de acordo com os caracteres particulares que precisam ser harmonizados entre si, de forma que, esses progressos e mediações possam ser providos de sentido. Nesse sentido, a música apresenta-se como uma expressão artística que tem a sua forma de exteriorização produzida pelo movimento vibratório dos corpos – som – dispostos no espaço. É a sucessão das vibrações que formam os elementos que estruturam uma composição, sendo essa, estruturada pelos movimentos do tempo e pelas durações desses movimentos dos corpos sensíveis. O tempo em que se efetuam as vibrações de um corpo no caso da música tem fundamental importância para sua produção, é a forma dessa sucessão temporal que demarcara o ritmo. A composição dos tempos das notas musicais em cada som particular deixa-se fixar em parte como uma unidade de uma totalidade. Os processos pelos quais os sons vão se sucedendo no espaço em determinado período temporal, a substituição de uma nota por outra, que por sua vez é suprimida por outra seguidamente, constitui uma sequência regular e uma duração indiferenciada, instaurando dessa maneira o alicerce da música, no entanto, tais combinações e variações não são o efeito de uma síntese arbitrária, mas estão sujeitos, por via da criação humana, a leis definidas e que formam a base necessária de tudo o que é musical (HEGEL, 1962). Essa combinação complementar entre os sons não tem caráter linear, eles formam intervalos que se configuram em diferença de altitude entre duas notas, sendo 21 então classificados quanto à simultaneidade ou não dos sons e à distância (altura) entre eles, deste modo, formando unidades de medida de intervalos, são o tom e o semitom. Entre essas combinações complementares, os sons têm necessidade de produção não só da sua tonalidade, mas é preciso que este tenha também precisão. Os sons e números nessa combinação têm relação intrínseca, que interfere diretamente na precisão da execução sonora. A onda sonora está na base da variedade, impulsionado por um corpo em vibração e se desenvolvendo no tempo, ela é produto de um determinado número de vibrações num dado intervalo de tempo. Decerto que essas relações não são compostas de correlações simples, os sons que tem um acordo direto, sem nenhuma oposição ou diferença audível, são os que têm as vibrações em suas relações numéricas da maior simplicidade, paralelamente o som cujo acordo não se encontra realizado desde o princípio resulta de proporções concordantes mais complicadas (HEGEL, 1962). Assim, a canção para se formar enquanto totalidade precisa determinar precisamente o tempo, submetendo o seu compasso e ordenamento, a sua sequência, segundo as regras destas cadências. No entanto, esse tempo que se configura como elemento essencial desse compasso, é um tempo histórico, que está diretamente ligado com as condições objetivas em que estão inseridas socialmente tais composições. O cotidiano entendido como as condições que as pessoas levam a vida em um período histórico é uma variável importante para formação da música, mas esse cotidiano não deve ser compreendido como algo simplificado e homogêneo, e sim com toda a sua complexa gama de possibilidades que a própria história propicia. Aponta-se aqui um elemento genérico na música a partir de seu caráter social, muito embora se faça necessário ponderar que em meio a essa unidade referente ao ritmo de vida estão presentes diversos fatores (subjetividade, classe, cultura, entre outros) que faz com que a música em seus diferentes elementos de constituição não forme um conjunto similar. Portanto, não se tem por objetivo ao abordar a categoria de tempo histórico na composição da música, aprisioná-la à questões objetivas, tornando-as obras de arte determinadas por estruturas mecânicas da realidade histórica, nem muito menos tornálas uma simplificação de um determinado gênero musical, até porque, como já fora dito, o desenvolvimento da música não se dá de maneira homogênea, e sim por via de múltiplas variáveis contraditórias. Essa complexidade que envolve a música nos traz elementos que tornam evidentes os processos de desenvolvimento e constituição da peça artística musical durante as diversas épocas, influenciada pelas condições objetivas. 22 Outro elemento essencial para o entendimento da música é o compasso, formado pela repetição uniforme da mesma unidade de tempo de um som, determinando a regularidade do pulso, estabelecendo na canção uma determinada unidade de tempo, formador do passo de desenvolvimento dos sons, servindo de regra para a interrupção acentuada da sequencia anteriormente indiferenciada do tempo como a duração igualmente arbitrária de tons isolados, sendo utilizado nessa sequência continua para formar uma unidade determinada e geradora de uma linha de tempo e sequências, que elas por si só não possuem. O compasso como um elemento físico de organização dos corpos mecânicos, estabelece, a partir da sua forma, o momento que ela vai terminar ou fazer uma pausa. Essa antecipação se incorpora à percepção de sentimento subjetivo formando uma temporalização, por exemplo: um crescendo musical pode criar uma expectativa em relação ao máximo de intensidade que ele vai alcançar, criando uma sensação de tempo e de sentimentos, pois temos uma referência auditiva de limites de intensidades sonoras, que estão ligados aos sentidos humanos. Em seus escritos sobre a música Lukács (1982), apontava que na abordagem da política de Aristóteles já despontava a relação entre a música e os sentimentos, observando que os ritmos e melodias são muito próximos, servindo em muitos momentos como cópias para a verdadeira essência da raiva e da ternura, assim como para a coragem e a moderação, e os seus opostos. O artista, a partir desses elementos que configuram – tempo, intervalo, melodia, compasso, ritmo – a música e sua liberdade em organizá-los, compõem e forma uma totalidade, inserindo nela uma harmonia geradora dos sentimentos mais sensíveis captados pelo ouvido. O simples fato de o compositor antecipar uma nota acentuando a batida induz a música a ficar carregada em um momento de maior tensão, fazendo com que o ouvinte vibre com tal mudança, ou ainda, quando as notas agudas têm curta duração e torna-se repetitiva, causando um sentimento de urgência, alvoroço, desespero e medo. Um exemplo que pode deixar a ligação entre música e sentimento mais evidente é a forma como são utilizadas nas trilhas sonoras e nos jogos eletrônicos para potencializar ou formar junto ao cenário o florescimento de determinados sentimentos que o momento exige do espectador ou do jogador; ou mesmo quando são utilizados para marcar o gênero – terror, humor, ação – da película fílmica ou do game, ou ainda o despertar de sentimentos provocados pela execução de um Hino Nacional, sentimos dessa forma que 23 há um “caminhar” na música9. É a partir desse movimento imanente que a música adquire a possibilidade de tornar-se concreta, constituindo-se pelos sons como sonoridades regidas pelas leis da harmonia. Desta maneira, um corpo em movimento de vibrações sonoras dá origem a uma figura temporal, que emite sons que variam com as suas propriedades físicas, com duração maior ou menor no número de vibrações que ele executa durante um intervalo de tempo determinado, transformando-se em um todo de fins artísticos. Ainda sobre esse aspecto Adorno (1996) reflete que é na variedade dos encantos e da expressão, que comprova sua grandeza e sua força que conduz à música a síntese. Sendo que para o autor, este processo não somente conserva a unidade da aparência, como a protege do perigo de brotar para a tentação do “bonvivantismo”. Todavia, em tal unidade, do movimento dialético dos momentos particulares com o todo na criação, fixa-se a imagem de uma situação social na qual esses elementos particulares seriam mais do que mera aparência. No mesmo percurso de análise, Lukács (1985), ao abordar a questão da gênese da música propõe que o desenvolvimento desta está ligado a três fenômenos do ritmo guiados pela ontologia do trabalho humano: [...] Primero, los movimientos rítmicos de seres vivos, que hemos mostrado ya en el reino animal; éstos son hechos biologicamente fundados -con independencia de que se basen en reflejos incondicionados o en reflejos condicionados bien fijados-, los cuales facilitan la adaptación al mundo circundante y hacen más eficaces las reacciones del animal a dicho mundo; pero respecto de la totalidad de su vida son episodios sin consecuencias decisivas. Segundo, el ritmo que nace en el trabajo: éste muestra el sello de aquel salto cualitativo que distingue el trabajo como tal de toda reacción meramente biológica al mundo externo. Pues por obra de este ritmo se organiza conscientemente un proceso espacio-temporal en interés de una finalidad puesta por el hombre, la facilitación del trabajo y la intensificación de su efecto. [...] La fase más desarrollada del canto de trabajo muestra ya claros indicios del tercer estadio, el estajeo plenamente mimético. Este momento es aún más llamativo em los demás terrenos de aplicación de la música en todas las sociedades primitivas, ante todo em la danza. Pues la danza es desde el principio de caráter evidentemente mimético, y precisamente como refiguración de las ocupaciones vitales más importante del hombre primitivo. (LUKÁCS, p. 19, 1982)10 9 Esse é o fenômeno da pulsação musical que se caracteriza pelo “pulso” que a canção tem, uma batida regular que marcar o seu passo. 10 [...] Primero, os movimentos rítmicos de seres vivos, que temos mostrado já no reino animal; estes são fatos biologicamente fundados - com independência de que se baseam nos reflexos incondicionados ou nos reflexos condicionados bem fixados-, os quais facilitam a adaptacão no mundo circundante e fazem mais eficácia nas reacões do animal em seu mundo; mas respeito da totalidade de sua vida são episódios sem consequências decisivas. Segundo, o ritmo que nasce no trabalho: este mostra a marca daquele salto qualitativo que distingue o trabalho como tal de toda reacões meramente biológica no mundo externo. Pois por obra deste ritmo se organiza conscientemente um processo espaço-temporal no interesse de uma 24 A abordagem, do autor, é bastante interessante à medida que busca desvendar a relação entre a música e realidade social objetivando o seu caráter mais genérico. No entanto, devido à própria escassez de informações históricas sobre as origens da música, a tese de Lukács apresenta o limite de um enunciado filosófico sobre a relação ontológica entre os dois fenômenos sociais. Devido a toda complexidade que envolve o processo de criação humana tal tese, justa do ponto de vista lógico, é imprecisa, em função do desconhecimento da própria história da humanidade em seus primórdios. Por outro lado, temos diversas experiências históricas registradas que vinculam a música às práticas religiosas, o que não invalida a formulação de Lukács, mas não a reforça. Preservando as necessárias precauções para não cair em uma exacerbação do sistema ontológico do trabalho, faz-se necessário realizar as ligações entre conjuntura e música, tendo por objetivo estreitar essa relação, aproximando-se do processo da construção musical. Desta forma, debruçar-se sobre os conteúdos históricos que compõem cada período, fazendo o exercício de relacioná-las com a música, é algo fundamental para a compreensão da totalidade desse fenômeno. Por exemplo, na Idade Média o teocentrismo e os sistemas de feudos agrários definiam a dinâmica de funcionamento do cotidiano histórico guiada pelo idílico, pelo pensamento religioso conduzido pelo tempo do sol, nesse contexto, grande parte das canções estava ligada diretamente à cadência, ao ritmo, e à regularidade, elementos expectantes do paraíso angelical, ou aos rituais politeístas de culto e celebração tradicionais conduzidas por um tempo “espaçado” e “tranquilo”. As músicas nessa época estavam conectadas a sons da natureza, no compasso mais lento, como os das músicas medievais dos cantos gregorianos ou dos trovadores. Ou ainda, exemplificada pela forma que a música é representada pelos gregos a partir da Republica de Platão, que negava os modos musicais “queixosos” como os moles, proibindo as flautas e os instrumentos de muita corda tangidos com os dedos, não constituindo a canção uma utopia, mas sim um instrumento utilizado pelas Pólis Gregas para disciplinar os seus cidadãos incitando-os tanto para salvaguardar o Estado, quanto para manter a ordem interna dos regimes finalidade posta pelo homem, a facilitacão do trabajo e a intensificação de seus efeito. [...] A fase mais desenvolvida do canto de trabalho mostra já claros indícios do terceiro estágio, o estagio plenamente mimético. Este momento é mais forte que os demais terrenos de aplicacão da música em todas as sociedades primitivas, antes de todo na dança. Pois a dança é desde o princípio de caráter evidentemente mimético, e precisamente como refiguracão das ocupacões vitaes mais importante do homem primitivo. (LUKÁCS, p. 19, 1982) (tradução nossa). 25 implantados, afastando, desta, forma os prelúdios de outra realidade. (ADORNO, 1996). Adorno (1996) ao analisar tal relação no caso grego, defende que todas essas refutações representadas pelo sistema Platônico para a música fazem parte do progresso, tanto do ponto de vista social como sob o aspecto estético específico. Sendo que para o autor, nos atrativos proibidos, entrelaçam-se a variedade do prazer dos sentidos e a consciência diferenciada. Os aspectos censurados entram desta forma na grande música ocidental, elevando o prazer dos sentidos como passagem para espaço da dimensão harmônica. Prosseguindo, no sentido apontado por Adorno, a eclosão da música moderna tem outro cenário social. A sociedade moderna marcada pelas modificações profundas na dinâmica social, tendo sua própria existência orientada por transformações produzidas pelo ritmo da industrialização em massa, e pelo surgimento da cidade moderna, será o ambiente de florescimento da canção moderna. A dinâmica do cotidiano nesta sociedade passa por um processo de aceleração, trazendo à tona o domínio do estilo polifônico ligado a combinações de sons e melodias simultâneas, regada a dissoluções atonais como a produzidas por Bach, que se tornaram possíveis pelas bases produzidas pelas mudanças propiciadas no seio da sociedade moderna (PAHLEN, s.d.). 1.2. Arte e a realidade social Diante desses elementos torna-se possível perceber o quanto a música em seu escopo está em constante mudança durante todo o curso da história humana, sofrendo transformações geradas por variados fatores interna ao sistema musical – ritmo, melodia, forma, origem, interpretação, entre outros, que formam um conjunto indissociável em sua totalidade – ou externos a elas – o desenvolvimento da técnica, da tecnologia dos instrumentos musicais, da indústria fonográfica, do gosto. Não há dentro desse processo de desenvolvimento como apreender a música sem realizar um esforço de compreensão da sua relação com a sociedade, de sua singularidade artística como expressão social de um dado período histórico, mesmo tendo em vista que ela traz eminentemente nesse movimento dialético as suas próprias contradições, evidenciadas pelo processo de representar traços de uma época e ao mesmo tempo transcendê-la, universalizando-se e tornando-se atemporal. Essa faculdade teria sua gênese no fato da arte ter uma autonomia em relação às condições objetivas de existência, muito embora 26 seja preciso afirmar que essa liberdade, ao contrário do que alguns estudiosos da arte afirmam, não é absoluta, e sim relativa, havendo ligação entre arte e sociedade, sendo ela, produto não só da capacidade criativa do artista, mas de uma mediação entre as condições subjetivas e objetivas. Ao mesmo passo, esse aspecto imanente à obra, possibilita que ela não se constitua como um reflexo direto da realidade social. Ainda que essas obras sejam também uma objetivação do conteúdo social, elas apresentam independência relativa em face dessa realidade, o que lhes possibilitam a capacidade de transcender o espaço e o tempo. Diante de tal situação, Lukács (1982) aponta que a música, em sua refiguração com a realidade por via da mimese, não se configura nesse processo em uma relação mecânica de reflexão, como se fosse uma cópia direta, tal qual um reflexo em um espelho, a ausência de semelhança entre a obra de arte e o mundo objetivo não pode servir de prova contra a refiguração desta mesma realidade, para o autor, quanto mais se reflete a essência, tanto menos se poderão apresentar questões sobre a semelhança de forma imediata. Desta maneira, ao mesmo tempo em que a arte não deve ser a fotocópia do modelo da vida exterior, ela conserva em si, elementos que comprovam, em sua concretude, o desenvolvimento humano. Uma circunstância que evidencia muito bem tal questão é o próprio desenvolvimento da técnica, como o avançar dos instrumentos eletrônicos na modernidade, que trouxeram uma nova dinâmica na criação e adaptação para as condições de composições musicais. A mimese da interioridade do artista, não deve ser a síntese de uma interioridade conformada com as diversas situações externas que as desencadearam, de tal modo, limitando a criação artística aos aportes do mundo ao qual circunscreve o artista11. Vázquez (2011), ao analisar a representação da arte a partir da teoria marxista, nos traz alguns elementos para a compreensão da autonomia relativa ao ponderar que não cabe à obra de arte ficar presa a nenhuma representação que a restrinja a uma regra particular, é preciso que ela seja livre: 11 Em paralelo a análise de Lukács, mas levando em consideração o período histórico que o autor produziu a sua teoria sobre as expressões artísticas, dentre elas a música, faz-se necessário ponderar sobre os contornos estéticos que vem tomando as artes modernas, para não incorrer o risco de cair em um anacronismo ao não analisá-las em sua completude. Tanto as artes modernas e, por conseguinte as expressões contemporâneas tem se afastado das possibilidades de refiguração que se encontravam nas artes clássicas, buscando cada vez mais se apresentar em vez de representar algo. Ao mesmo passo, não podemos cair no fatalismo e colocar a teoria lukacsiana no anacronismo, pois o que estamos apontando é uma tendência das artes contemporânea, até porque não podemos considerar que há uma ruptura completa com a refiguração nos tempos atuais. 27 A arte é uma esfera autônoma e todas as tentativas que se façam para reduzila a outra – seja esta a religião, a economia ou a política – não terão por efeito senão o cancelamento do que existe na arte de qualitativamente distinto, precisamente isto que Marx via, na arte grega, fugir ao seu condicionamento social [...] A arte é uma esfera autônoma, mas sua autonomia só se dá por, em e através de seu condicionamento social. (VÁZQUEZ, pág. 92, 2011). Ao mesmo tempo as correntes teóricas das ciências humanas que analisam a obra de arte à luz dessa outra faceta, emprestando-lhe uma autonomia absoluta sobre a realidade, serão criticadas por Lukács (1982) como pensamentos fetichizantes: [...] estas filosofias e tendências artísticas ao isolarem as reações do sujeito de seu concreto mundo circundante e fetichizá-las numa plena autarquia, deformam e amputam a expressão das mesmas, separando-as de sua base, de seu autêntico conteúdo, reduzindo-as a um solipsismo privado no qual – apesar de todas proclamações expressionistas - , em vez de ultrapassar intensificadamente a realidade, se empobrece em comparação com ela, empalidece e perde intensidade”. [...] “a largura, profundidade, amplitude de toda expressão na vida e na arte dependem da largura, profundidade e amplitude do mundo recolhido (interiorizado) no sujeito como material a reflexão, o qual determina a expressão de modo imediato e mediado. (LUKÁCS, p. 07, 1982). A relação entre arte e sociedade é uma temática bastante discutida por teóricos das ciências humanas, trazendo, como já percebemos logo acima, uma série de divergências, mas o caminho que se opta por percorrer será o da consecução ocasionada pela síntese mediada entre esses dois extremos. Nesse sentido, mesmo analisando a música como fenômeno artístico imerso no sistema filosófico idealista, Hegel (1983) nos traz importantes contribuições para a compreensão da problemática relacional entre arte e sociedade, o que pode nos apontar pistas para o entendimento da música, como objeto sociológico. Hegel considera que há na arte uma relação entre o universal e o particular como forma singular de experiência, de apreensão da verdade. Para ele, a perspectiva daqueles que veem na arte o resultado exclusivo dos esforços de gênios se equivocam, uma vez que a arte é produto da cultura de sua época. “O grau de complexidade das artes estaria relacionado com a menor ou a maior inserção do artista na própria cultura universal” (CÂMARA, 2007). Mesmo compreendendo a arte como produto do espírito humano, portanto rico em interioridade, Hegel não perde de vista que o espírito se apropria da forma de existência exterior para trabalhar o objeto artístico (IDEM, 2007). A base fundamental que subsidiará a realização dessa síntese estética será o 28 artista como sujeito histórico. Todas as mediações necessárias ao processo criativo ocorrerão no interior das múltiplas determinações – capacidade de sentir, de refletir, de criar - que formam o criador. A análise de Marx (2008) ao tratar da formação do sujeito histórico, apresenta alguns pontos de intersecção que podem auxiliar na compreensão da relação entre subjetividade e objetividade na produção artística: Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstancias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstancias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo. E mesmo quando estes parecem ocupados a revolucionar-se, a si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado (...). (MARX, p. 207-208, 2008). Guardando as possíveis precauções, para não correr o perigo de ser mecanicista ao expandir tal análise a questões referentes à arte, preservar-se-á a utilização de alguns aspectos da abordagem realizada pelo autor. Somente será empregada aquela dimensão que pode ser facilmente relacionada na interpelação das perspectivas que utiliza o artista na confecção da obra. Marx ao delinear o que conformaria o sujeito histórico incide justamente sobre a autonomia que o ser humano tem na realidade social de produzir e transformar sua própria existência, mas, ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato de que ao executar tais tarefas, este não o faz sem levar em consideração os elementos que os circunscreve socialmente, inclusive delimitando a sua capacidade criativa. Este princípio pode ser transferido à arte, em geral, e à música, em particular, na medida em que o artista, mesmo em sua singularidade, configura-se como um sujeito histórico e principal elaborador dos elos de intermediação que compõe a obra de arte. Para a teoria marxista, o homem é um ser social formado por um conjunto de relações sociais. Os indivíduos se agrupam por interesses e aspirações comuns, mesmo sem disto ter consciência, formando assim as comunidades humanas que chamamos de classes, povos, nações ou sociedades. Um elemento fundamental que propiciará uma melhor explicação de tais intermediações será a interpretação da música em sua relação com a sociedade levantada por Lukács (1982). Para o mesmo, o fato de que na vida, não há como o sujeito histórico demonstrar e aplicar de forma imediata e total, as impressões que se tem da própria realidade, dos acontecimentos vivenciados, senão de maneira mediada, sendo essa realizada por meio da representação mimética – principalmente realizada 29 pela música – das impressões objetivadas pela emoção geradora do sujeito criador da representação por via de uma catarse emocional. O ato de transformar passado, presente e futuro em um mesmo momento vivenciado choca-se com a objetividade do tempo concreto que existe em união do espaço com a matéria em movimento, e perde seu caráter, seu poder subjetivo. Na música, há a separação do mundo das impressões, portanto, subjetivo, do mundo externo/objetivo que as geram e essa separação concede uma “aura” de autenticidade à interioridade, quando esta é compreendida de modo subjetivista, como se não fosse gerada a partir do mundo sensível, essa interioridade fecharia as relações humanas em um universo próprio, ou seja, tornaria a música em mera expressão dos sentimentos humanos internos e isolados. Nesse sentido, Vázquez (2011) pondera: Para evitar este equívoco, a obra musical deve ser compreendida como uma unidade dialética composta pelo ser da obra e a realidade social na qual está inserida, sendo que a autonomia artística se faz presente pelo fato de que toda a complexa trama de elos interpostos tem de passar pela experiência singular do artista como individualidade criadora (VÁZQUEZ, pág. 94, 2011). A relação entre subjetividade e objetividade na música é explicada por uma das características fundamentais e peculiares da expressão artística, que lhe diferencia em essência das demais artes, corresponde à constituição de uma mimese própria. A música objetiva reproduzir a vida interior do artista, ou seja, seus sentimentos e emoções, nessa perspectiva, o objeto da reflexão musical é a interioridade humana, a vida emotiva dos indivíduos. No entanto, essa interioridade não existe como esfera independente das experiências humanas no mundo sensível, externo. Essa interiorização é o resultado da evolução histórica-social da humanidade. Os sentimentos como elementos da interioridade humana são gerados a partir da interação do ser humano com o mundo externo que o cerca, e somente a partir desse movimento entre subjetividade e objetividade, os sentimentos poderão influenciar decisivamente na vida humana, logo esses sentimentos são apenas – no sentido quantitativo e não qualitativo – uma parte da complexa interioridade humana. (LUKÁCS, 1982) O mundo externo com sua estrutura e sua velocidade não consegue por obstáculos aos sentimentos que florescem na música. No entanto, os efeitos do mundo externo não são eliminados, haja vista que são por meio da interação do homem no mundo externo que se constituem as impressões, desencadeando os seus sentimentos 30 interiores. Essas obras de artes devem ser apreendidas a partir de sua capacidade de transpor essa dupla face: ao mesmo tempo em que a música tem em seu conteúdo estético elementos que representam situações já postas, elas vislumbram outra realidade, projetando outras possibilidades sociais. Bloch (2005) incorpora a esse conteúdo social, presente na música, a capacidade que essa tem de ultrapassar os limites da realidade presente sendo impregnada de conteúdo antecipatório e dinâmico. Não obstante essa característica, a música será compreendida a partir do pressuposto dos seus aspectos estéticos, objetivando a beleza, construída pela mediação entre intuição (subjetividade) e fruição da refiguração da realidade por meio dos sentimentos. (BLOCH, 2005). 1.3. O emergir da música popular A relação entre objetividade e subjetividade é o ponto de partida para compreender-se a música popular, vista como uma vertente do atual momento de desenvolvimento da música moderna. Dentre os fatores que vieram influenciar a concepção de música que se detém na contemporaneidade, o fenômeno da indústria cultural e as suas consequências é fundamental para compreender como imposições da reprodução capitalista agiram sobre o modo de fazer arte, no caso específico compor música popular nos países periféricos. Na base desse fenômeno está o processo de modernidade fomentada pelos arroubos estruturais da sociedade de classe capitalista. A modernidade formada pela explosão de fenômenos guiados pela nova lógica produtiva da indústria capitalista vê-se impulsionada pelo salto do crescimento demográfico, que empurra cada vez mais habitante para os centros de funcionamento da nova ordem social, as cidades urbanas modernas. Os habitantes afluem a esses espaços sedentos por trabalho e entretenimento, como produtores e consumidores. Diante de tais questões a modernidade é classificada por Adorno por meio da fetichização da obra de arte, gerada pela apropriação da indústria cultural das expressões artísticas, transformando o seu valor de uso em mero valor de troca, criando uma etapa de consciência artística nas massas caracterizada pela negação e rejeição do prazer de forma plena. Esse fenômeno é exemplificado por Adorno em sua análise a partir da decadência do gosto musical na sociedade moderna.12 Nessa acepção, a música, na sociedade moderna de forma geral, é submetida à condição 12 Ver: ADORNO, Theodor W. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. 31 de mercadoria. Assim, segundo Adorno (1989): [...] o ideal musical é [...] escrever para todos e para ninguém, ou seja, deverse-ia escrever música como se ela fosse escrita para si mesmo e por si só, mas ao mesmo tempo não se contentar com o fato de que ela seja então, de novo, ouvida apenas por um círculo de especialista. (ADORNO, 1989, p. 462). Na sociedade moderna, a problemática da criação artística é fruto da produção em massa realizada pela indústria cultural, que impõe uma mecanização e padronização da obra, tirando a autonomia da arte. São empregados milhões de dólares nessas indústrias para que possam inventar métodos de reprodução capazes de criar e difundir de forma massiva gostos padronizados. Decerto que a indústria cultural, ao visar a produção em série e a homogeneização, emprega técnicas de reprodução que sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra musical e do sistema social. Todavia, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, para Adorno, devido ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder é arquitetado pelo poder dos economicamente mais fortes na sociedade. Segundo Adorno (1996), a indústria cultural, ao almejar a integração vertical de seus consumidores não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo, trazendo desta forma, todos os elementos característicos do mundo industrial moderno para ditar o conteúdo e a forma das obras de arte (ADORNO, 2010). Ainda, nessa mesma perspectiva, o autor afirma “Ao invés de entreter, parece que tal música contribuiu ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação.” Para Flo Menezes (2009), a produção musical na sociedade moderna tem por característica o fato de que o tempo das elaborações se encontra deslocado, fazendo com que tais produtos se tornem de caráter excêntrico, disforme e não condizentes com as necessidades triviais do consumo de massa. Neste sentido, a nova produção cultural atua na superestrutura social, e tem como função o entretenimento dos sujeitos sociais limitando a sua capacidade de refletir criticamente. Desta maneira, a indústria cultural empobrece o conteúdo estético da música interferindo na forma e conteúdo das composições para que elas possam ficar submetidas à lógica do mercado, do consumo e do gosto. [...] o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade 32 encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena (ADORNO, p.9, 2010). Em sua análise da era da reprodutibilidade técnica moderna Benjamin, nos aponta outros contrapontos que devem ser levados em consideração sobre a relação entre obra de arte e indústria cultural, reduzindo o pessimismo adorniano, ao levantar que nesse processo dialético a indústria cultural desponta também como possibilidade para as massas de acesso às produções musicais antes restritas a “alta cultura” 13. A transformação da arte em produto específico das relações de produções é viabilizada pela revolução tecnológico-industrial, que permitiu promover a reprodução em série da obra de arte. Vivemos a era da reprodutibilidade técnica da arte e sua transformação em mercadoria (BENJAMIM, 1975). Esse potencial caráter de expansão que a indústria cultural propicia não pode ser avaliado de forma fatalista, acabando por transformar as características negativas em um centro excessivo, convertendo os indivíduos em autômatos conduzidos por uma engrenagem central. Desta forma, realizaremos uma análise mecanicista da relação entre indústria cultural e música, é preciso compreender tal associação de forma dialética, apreendendo na indústria cultural tanto o seu espectro ideológico, condizente com a sociedade de classes capitalista, exercendo desta forma o seu impacto na padronização da obra de arte; quanto em suas contradições internas, deixando emergir da configuração do fenômeno os meios que a própria ideologia permite o seu questionamento, apresentando também conteúdos e singularidades que lhes escapam ao controle, abrindo espaço para os seus próprios elementos de superação. O empobrecimento da estética musical estaria relacionado à conformação da melodia, os seus ritmos e todas as suas partes, ao ritmo repetitivo do compasso determinado pela lógica do mercado determinado pela indústria fonográfica. Diante de tal fenômeno, a música torna-se monótona, inexpressiva, sendo consequência da redução do movimento mais ou menos livre. Mesmo realizando tais críticas, para Adorno, é, ainda na obra de arte, em especial na composição musical, que se preserva uma pequena área de verdade, esta não se encontra de todo destruída pelo inevitável avanço do sistema capitalista e de sua ideologia. Para o autor, somente a estética, e mais especificamente a música, preserva ainda a utopia de um mundo melhor, um potencial 13 Alta cultura é uma categoria utilizada por Walter Benjamin para definir a cultura das camadas mais abastadas de uma sociedade, sendo estas, durante um grande período, privilegiado no acesso as artes. Podemos citar como exemplo o acesso restrito as músicas eruditas no período renascentista, cujo acesso a essas obras estavam circunscritos aos grandes teatros ou aos bailes da aristocracia. 33 crítico do passado e do presente por via de sua negatividade da nova música. Para chegar a tal consecução, a nova música deve negar o tonalismo 14, por este ter se transformado pela indústria cultural em uma convenção inibidora, dado que nele o universal não mais se encontra em relação dialética com o particular (FREITAG, 1990). Uma vez que o universal e o particular não podem mais ser reunidos arbitrariamente, “a tonalidade também não pode ser restabelecida, como às vezes se presumiu”.12 Ao contrário, ela tem que ser negada naquilo que possui de mais ilusório, de mais falacioso, pagando a própria culpa pelo que é repressiva, pelo que agrida ao sentimento individual. Portanto, deve-se contestar a própria noção de uma harmonia pré-estabelecida entre o universal e o particular, em nome de uma situação que não quer mais o ilusório, nem tampouco a mentira que decorre do escamoteamento das diferenças específicas e das contradições reais, por meio da ideia de ajuste da tensão, de uma harmonia conciliatória. Tal pretensão, lembra Adorno, faz-se “cada vez mais ideológica quanto menos a realidade propicia ao individual através do universal o que é prometido ao individual e o que ele mesmo promete. (Adorno, T.W. p. 154,). Entretanto, vale dizer, Adorno só admite esse caráter de negação emancipatória às composições eruditas da vanguarda avant garde15, embora estas não se mostrem tão acessíveis e compreensíveis às massas. Entusiasta do dodecafonismo de Arnold Schoenberg, com sua sonoridade excêntrica, Adorno considera que todas as inovações produzidas pela indústria de massa, entre elas a música popular, trata-se de pura standardização, levando-o a enquadrar a forma, estilizar o conteúdo, fracionando suas partes de maneira que estas adquiram significado independente do todo, isto é, tenham um sentido em si, separado da totalidade da forma. A música popular para o autor é manipulada por aqueles que a promovem de tal maneira que seus ouvintes, ao ouvi-la, enquadram-na em estruturas subjetivas estereotipadas pré-existentes, de forma que facilite a compreensão e consequente aceitação. A perspectiva de avançarmos no exame dos elementos da sonoridade do autor emergente da música popular – reggae -dos países periféricos em sua expressividade moderna surge como possibilidade de um novo olhar sobre essas obras, buscando 14 Tonalidade é um sistema de sons baseados nas Escalas maior, menor, menor harmônica e menor melódica, onde os graus da escala são observados de acordo com sua função dentro da harmonia. Cada um dos graus de uma escala desempenha funções próprias na formação e concatenação dos acordes. A palavra função serve para estabelecer a sensação que determinado grau (ou acorde) nos dá dentro da frase harmônica. 15 Avant-garde na música refere-se às formas musicais que dentro das estruturas tradicionais, buscam romper limites de alguma maneira. O termo é usado livremente para descrever o trabalho de todos os músicos que se afastam radicalmente da tradição. Dentre eles está: Arnold Schoenberg, Charles Ives, Igor Stravinsky, Anton Webern, entre outros. 34 esclarecer o potencial estético produzido nessas regiões, podendo estas ter uma enorme capacidade criativa e rompimento com a perspectiva de razão instrumental que domina a estética artística, sendo então, capaz de propiciar novas alternativas que pudessem levar à ruptura com a ideologia, surgindo como uma nova possibilidade para restabelecer o caráter emancipatório da música moderna. Ao limitar-se a esse posicionamento vanguardista a teoria adorniana, restringe muito a capacidade de superação da fetichização da música, e aprisiona-a ao mantê-la identificada a uma figura e a um estilo muito reduzido, com pouca amplitude social. Por sua vez, quando Adorno (2009) trata da música popular considera-a somente a partir do desenvolvimento técnico e industrial da sociedade capitalista, circunscrevendo o estilo musical a análise do isolamento dos ouvintes e apreciadores da música “séria”, produto da própria expansão do campo produtor, divulgador e apreciador da música popular, além de indicar que esta seria parte do processo de “decadência do gosto” musical dos ouvintes que, a priori, têm maior identificação com a música sobre a qual não necessitam realizar um processo reflexivo para o entendimento e o entretenimento. Essas questões despontam, desta maneira, como um limite às suas reflexões. Por outro lado, faz-se necessário a ampliação desse postulado para uma análise na qual seja possível investigar a experiência de negação na arte que contemple outros movimentos artísticos, como o da música popular despontadas na periferia do mundo. Essas obras surgem com um conteúdo estético que buscam contrapor aspectos aparentemente positivos dessa sociedade, explicitando, assim, contradições e angústias vivenciadas na cotidianidade de miséria que esses artistas criam as suas glebas. Ao mesmo tempo, tal postulado deve buscar solucionar os contrastes gerados pelas características peculiares ao processo que envolve a composição destas obras, até porque, ao explorar essas peças populares se tem que lidar com o fato que estas são produzidas por meio da indústria cultural. Essa problemática abriu espaço para a discussão da possibilidade da indústria fonográfica ter múltiplas formas de atuação a partir das contingências geradas pela singularidade do funcionamento desigual das condições econômicas, políticas e culturais de cada região, não perdendo de vista que tais configurações locais são partes integrantes do próprio modo de produção capitalista. Dito de outra forma, isto significa que o modo de produção capitalista deve ser pensado em suas múltiplas determinações, o que implica do ponto de vista da arte compreender traços unitários e heterogeneidades na criação artística nas diversas partes do globo terrestre. Ao mesmo passo, surgem algumas indagações: será que esta circunstância 35 propicia espaços para que essas músicas ganhem mais autonomia em relação ao modo de produção quando comparado a outras situações sociais? Ou ainda, esses conteúdos contestatórios, emancipatórios casados a esses novos contrastes sonoros são utilizados como formas de potencializar o comércio, adequando-se ao gosto gerado pelas contradições sociais dessas regiões? 16 Em meio a essas inquietações prosseguimos nossa análise sobre a música popular. É preciso nesse ínterim, compreender que a música popular é fruto da interação (tanto na forma como no conteúdo) do artista com elementos intrínsecos da cultura do seu país e mesmo de outros países, por isso durante muito tempo foi percebida como sinônimo da música folclórica. A partir do século XX a música popular toma outros contornos, mas mantêm por base uma sutil variedade do povo que a produz e a absorve, embora sendo agora uma das suas principais características a disseminação no seio da população, o que lhe conferiu ligação direta com a relação comercial e cosmopolita, que teve como seu motor os veículos de comunicação de massa, como nos aponta Burnett (2011): “[...] música popular é, antes de tudo, uma expressão dessa chamada verdade musical, na medida em que revela, no caso do Brasil e, provavelmente, em todos os países onde se desenvolveu, as sutis variedades do povo que a produz e consome.” (BURNETT, p.148, 2011). Para G. Simmel (2003), a canção popular tem por característica o fato de primeiro ser cantada por um, e logo ser conhecida por um refrão, mas para isso deve encantar e popularizar-se, sobretudo, ao adequar-se ao caráter do público. Não obstante essa possibilidade, a supervalorização dos elementos externos à música, nessa mediação que constitui a refiguração, levará a prejuízos na estética musical popular. É sem dúvida esse o objetivo da indústria cultural em todos os cantos, onde se faz presente, como já foi explicitado acima, busca imperativamente potencializar os conteúdos massivos (cotidiano), tendo por objetivo maior a comercialização das músicas, retirando destas o movimento realizado pela refiguração, a autonomia que deve ser o elemento central formado dessa síntese, e deste modo empobrece a estética das obras. Somando-se a tais questões, pode-se acrescentar o fato de a música ser historicamente uma expressão artística, que tem como função o entretenimento, executada em eventos, concertos musicais a festas populares, como o carnaval. No entanto, só no século XX, esses 16 As presentes questões levantadas, são propostas enquanto inquietações, que só serão respondidas em sua completude no capítulo 2 desse trabalho, quando trabalharemos com o contexto dos países periféricos na modernidade, podem também servir de estimulo a outras pesquisas. 36 espaços de entretenimento chegam ao ápice do domínio do mercado sobre essa parcela da vida humana, visto que, até então a utilização da música, nesses espaços, estava estritamente relacionada à iniciativas de diferentes sujeitos sociais – aristocracia, servos, escravos, camponeses, etc., - considerando a peculiaridade das confraternizações e a posição ocupadas pelos mesmos na esfera social e na criação de espaços de sociabilidade. A música popular desde os seus primórdios é empregada como meio de entretenimento de povos de diversas partes do mundo, não diferindo na historia da América Latina. Mesmo em espaços em que a sua utilização não tem por foco o seu caráter imanente de organização ela se faz presente como música de acompanhamento. A Dança é um exemplo evidente desse tipo de relação, entre música e outras expressões artísticas nesses locais de diversão, existindo entre elas uma ligação mais profunda, gerada pela obrigatoriedade do acompanhamento musical. Segundo Lukács (1982): A dança, em relação, não pode existir, essa função organizadora da música, não só como princípio, se não queira, senão como modo de manifestação do ócio cotidiano. A música mesma é capaz de separa-se, na medida em que as frases para dança se vão desprendendo progressivamente na música da idade moderna das danças propriamente ditas e as utilizam só como fundamento motivador para expressar uma determinada interioridade emocional. Mas a dança não pode separa-se nunca da música; inclusive quando já tenha deixa de fazer parte de ser encarnação mimética de importantes fatos da vida, como ainda o é em certas cerimônias campesinas, mantêm o entretenimento a ineliminabilidade de sua fundamentação organizadora na música. (LUKÁCS, p. 21-22, 1982) (tradução nossa). Ao mesmo tempo, mesmo preservando todo o processo histórico, em que essas músicas estão inseridas, ao realizar uma análise estética sobre elas não se deve reduzilas a esses dois critérios, a música popular não pode ser resumida à música de massa, que aliena o homem como produto da coisificação da sociedade industrial capitalista, pois, assim, ao tempo em que se desconhece a força e a variedade da música popular corre-se o risco de elitização, adotando-se apenas a música erudita produzida pelas vanguardas. De tal maneira, as músicas que conteriam uma estética que preserva uma parcela de verdade no interior da realidade da reprodutibilidade técnica, seria a música minoritária e que se afasta das massas alienadas. Mesmo não adotando tal linha de reflexão, não se pode limitar a música popular a uma arte populista, que se objetiva por força do consumo de massa, levando-se a acreditar que o simples fato de pôr o povo como objeto de representação artística, transcrevendo uma relação epidérmica entre a 37 música e o povo de forma superficial, traria o real significado estético de tais canções. Evidente, que é um equívoco não atentar para o fato de que a música popular no século XX e XXI destaca-se pela expressão artística com maior disseminação e penetração nas diversas camadas sociais. Como bem cultural de consumo, ela se desenvolve concomitantemente com o surgimento da indústria fonográfica – ramo específico da indústria cultural – e o desenvolvimento dos meios técnicos de divulgação (do gramofone ao rádio) que vão consolidá-la socialmente, permitindo que ela adquira sua abrangência. A acessibilidade advém tanto do aspecto físico da divulgação quanto da questão da recepção e apreensão da subjetividade musical pelo indivíduo (MATHIAS, 2011). Decerto, é preciso apreender a música popular a partir de sua unidade dialética entre qualitativo e quantitativo. É necessário, na mesma medida que se leve em consideração o processo de difusão da obra, entendendo que existem elementos qualitativos diretamente ligados a tais movimentos realizados pela música. É preciso assimilá-la através de toda profundidade e riqueza que ela exerce ao expressar a vontade e as aspirações de um povo, e de ao mesmo tempo, apresentar capacidade de subsunção desse movimento e dos elementos que os constituem em seus diferentes momentos, para que possa se tornar atemporal e universal. A fim de, explorar toda a complexidade que configura a música popular nos países periféricos lançaremos mão de contribuições de Hegel, que segundo Lukács (1982), chama atenção para a importância da superação das dicotomias entre elementos quantitativos e qualitativos da música, aproximando-se dessa forma da unidade dialética. Na medida em que se desdobram os elementos quantitativos pondo em evidência suas determinações imanentes, convertem-se esses em uma medida da objetividade, a música reabsorverá em si a qualidade antes superada, sem reduzir a natureza de sua essência numérica (quantitativa). Esse processo só é possível pelo duplo caráter da medida (quantitativo e qualitativo), que se encontra inseparavelmente vinculada com as coisas, suas relações, sendo deste modo utilizado pela interioridade do artista ao compor suas obras. La medida es, certamente, modo y natureza externos, um Más o um Menos, pero que, reflejada em sí misma, no es ya meramente indiferente y externa, sino determinación em sí; así es l concreta verdade del ser... la medida es la 38 simple relación del quantum consigo mismo, su determinación em sí misma; así es el quantum cualitativo. (LUKÁCS apud Hegel, 1982). 17 Entretanto, a música popular na modernidade tem como peculiaridade ser uma expressão artística que deve ter em sua base conteúdos que consigam se universalizar, tendo capacidade de tocar as múltiplas subjetividades e coletividades que compõem seus ouvintes. De forma alguma, há uma defesa da submissão da arte a esses aspectos externos – ouvinte, indústria fonográfica, entre outros -, a obra para que possa atingir a massa tão disforme que compõem o seu público, em meio a tal contexto, precisa criar harmonias que possam ter aspectos cada vez mais absolutos de universalização. Na América Latina dentre as expressões artísticas que conseguiram um conteúdo estético universalizante, rompendo com os paradoxos do tempo/espaço da modernidade, e preservando um conteúdo de verdade, foi a música popular, e não música erudita. Ela conseguiu manter um caráter de verdade em meio a uma realidade analisada através da dialética negativa produzida pela deturpação da razão humana pela razão instrumental, se tornando uma música carregada por um cotidiano construído com intensos choques sócio/econômico/culturais norteados por uma conjuntura de países subdesenvolvidos, cheios de contradições geradas pela sua própria formação histórica, que se forjaram em meio a questões geradas nos caldeirões das modernas cidades urbanas que subsistia em meio às desigualdades sociais – pobreza, questões raciais, entre outras questões – e alimentadas por uma intensa diversidade gerada de países que saíram do colonialismo e se tornaram independentes e terceiros mundistas, se desenvolvendo em meio à lógica desigual e combinada. A música popular nessa região do mundo, não em sua totalidade, destaca-se enquanto expressão que conseguiu preservar esse caráter de verdade. A partir de tal movimento da medida dialética dinâmica, Lukács defende que quanto mais complicadas são as relações e situações que se refletem intelectualmente com essas determinações da objetividade, menos limitações a refiguração nas músicas terão, afastando-se de situações estáticas de existência, portanto, quanto mais ligadas a essas contradições expressará as relações dinâmicas legais e gerais nas conexões fenomênicas do fazer estético. Desta forma, quanto mais complexas forem as condições objetivas, mais se impõe a vinculação inseparável entre a quantidade e a qualidade, 17 O movimento é, certamente, o modo e a natureza externa, mais ou menos, mas reflete em si mesma, não é simplesmente indiferente e externa, de autodeterminação, mas, assim é a verdade concreta do ser... a medida é a razão simples de o quantum si mesmo, sua própria determinação, assim é o quantum qualitativa. (LUKÁCS apud Hegel, 1982) (Tradução nossa). 39 surgindo dessa forma, como própria determinação dessa existência. Diante de tais questões, pode-se afirmar que a música popular dessas regiões tem em sua composição uma relação intrínseca com outra forma de sentimento do mundo, caráter singular esse que lhe assegura, por meio da internalização dos artistas das condições de contradições que são postas pela realidade social de um país periférico, potencialidades que lhes propiciem condições de transgredir esteticamente as condições de espaço e tempo. A mediação executada entre subjetividade e objetividade, sentimento subjetivo e sentimento do mundo, ligado ao caso particular das condições objetivas dos países periféricos, pode ser um elemento desantropomofizador da representação da realidade em tais músicas. Pode-se observar na estética da música popular, principalmente na América Latina, uma peculiar forma estética, que se centra em uma refiguração social apresentando-se de maneira mais direta nessas canções18, de tal modo, compostas de um conteúdo que tem relação mais intrínseca com a possibilidade de expressão dos processos históricos que envolvem os sujeitos históricos. Ao mesmo tempo, a música de forma alguma deve servir ou aprisiona-se aos engajamentos ideológicos, que acabam por determinar sua forma estética subordinando-a a conteúdos exteriores à própria arte – poder-se-á apresentar como exemplo a captura da arte pelo socialismo soviético ou pelo nazi-fascismo. A música deve ser livre para expressar em sua totalidade, a harmonia imponderável da mediação, entre subjetividade e objetividade. A música popular está na América Latina simultaneamente ligada a outras formas artísticas, com já citado o caso da interação com a dança, sua relação com a poesia se faz no caso do conteúdo estético ainda mais importante. A partir dessa interação a música popular pode dividir-se em dois tipos, as músicas de acompanhamento (vocal) cujo movimento tal como é formado sonoramente em mediação com a representação e expressão em palavras, ou se formar como música instrumental, que utiliza somente as várias sonoridades. A partir da peculiaridade do objeto de estudo do presente trabalho – as composições musicais de Bob Marley – percorre-se o caminho das canções populares que se tornaram mais marcante nos países 18 Entretanto, destaca-se também que, no momento atual, coexistem nas composições músicas populares de expressões que não buscam uma representação mais direta do cotidiano, objetivando não mais representar nada do cotidiano e sim se apresentar – buscando ser a experiência do próprio dia-a-dia – pode-se citar por exemplos do psicodélico som da música eletrônica contemporânea. Mas mesmo essas canções distanciando-se da corrente representação de uma realidade, se transformando em um fenômeno que se apresenta enquanto alternativa de experiência do que é mais imediato na realidade social, ela não deixa de ser uma música que, em última instância, está ligada aos ritmos e conteúdo de um mundo que cada vez mais adere a uma dinâmica imediata das existências vividas. 40 terceiro-mundista da América, estando dentre eles o reggae, que tem em todo seu percurso de existência uma relação de coexistência entre linguagem falada e sons instrumentais. Entre essas duas expressões artísticas há uma relação de afinidade produzida pelo fato de ambas utilizarem o mesmo elemento sensível, o som. No entanto, é preciso salientar também seus elementos de diferenciação: a maneira de empregar os sons e o seu modo de expressão distanciam-se muito nas duas artes. Na poesia os sons não são emitidos por diversos instrumentos inventados pela arte, e sim pela voz humana, transformando-se em sinais verbais gerador de valores de designações de representações. Nesse caso, a verdadeira objetividade do interior, consiste não nos sons e nas palavras, mas na consciência que temos de um pensamento ou sentimento. Pelo contrário, a música ao empregar o som ao invés do som para formar palavras, faz do próprio som o seu elemento tratando-o como um fim (Hegel, 1962). Ao mesmo tempo, segundo Hegel (1962), a música não se contenta com esta independência em relação à poesia a ao conteúdo espiritual, associando-se em muitos momentos a um conteúdo tratado pela poesia. A predominância de uma destas duas artes sobre a outra, nas associações da música com a poesia, torna-se prejudicial a ambas. Diante dessas questões, a música popular nas Américas ao ligar-se com a poesia, torna possível a potencialização do laço entre música e um determinado conteúdo social, se transformando em música de acompanhamento, como assinala Hegel (1962): [...] a voz enuncia ao mesmo tempo as palavras que exprimem um determinado conteúdo, de maneira que a música, como palavra cantada, não pode ter por missão, por muito insignificante que seja a correspondência mais ou menos estreita entre os sons e as palavras, senão dar uma expressão musical a este conteúdo que, como conteúdo, deixou de constituir o objeto de um sentimento vago, para se tornar o de uma representação mais ou menos precisa. Dado que todavia, apesar desta associação, o conteúdo representado, como texto, pode ser compreendido pela leitura a ser o objeto de uma representação independente da expressão musical, a música que a ele se acrescenta torna-se uma música de acompanhamento. (HEGEL, pág. 256,) A respeito de tal relação é preciso não entender a música de acompanhamento como se ela desempenhasse uma função secundária, se tornando puramente utilitária, muito pelo contrário é o texto que serve à música, sendo a sua função dar à consciência uma ideia mais precisa daquilo que o artista escolheu como objeto da sua obra, no caso de Marley a emancipação humana. A música cumpre o papel na música de 41 acompanhamento de exprimir o lado interior do conteúdo que o texto elaborou para uma representação mais imediata da realidade. Portanto, para que a música mantenha sua autonomia estética em sua relação com a poesia é necessário que o compositor não exprima somente sentimento subjetivo – em sua mimese entre sentimento subjetivo e sentimento do mundo – que uma determinada temática tenha o inspirado, mas que possa inserir na totalidade estética, mesmo em meio à extrema objetividade da representação produzida pela poesia, uma harmonia que possa ultrapassar tais elementos transformando em uma catarse humana. Nesse sentido, a música, em geral, e a música popular, em especifico, surge como expressões de nexos profundos e interlocutoras de um dado tempo e das formas de sociabilidades aí constituídas, sendo ampliados os sentimentos internalizados e refigurados na obra para além da sensibilidade do artista, estas composições musicais a apresentar sentimento intersubjetivo entre o eu e sua vivencia no mundo, representada pelo cotidiano, formando, assim, uma síntese compartilhada pelo movimento dialético entre cotidiano e subjetividade, sendo este, um movimento de mútuo compartilhamento de sentimentos e influencias pelo sujeito e pela realidade social no qual está inserido.19 “La musique inscrit dans son temps le temp où elle est inscrite” (Michel Imberty apud Miranda, 2009:). 19 Não está presente em tal questão a relativização da realidade a partir da experiência, e sim o fato da música popular ao invés de ser uma refiguração de sentimentos não só subjetivos mas também de uma internalização de sentimentos mediados entre subjetividade e objetividade. 42 2. INTERFACE DO REGGAE: ARTE, POLÍTICA E RELIGIÃO “É melhor atirar-se em luta, em busca de dias melhores, do que permanecer estático como os pobres de espírito, que não lutaram, mas também não venceram. Que não conheceram a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada na Terra, não agradecem à Deus por terem vivido, mas desculpam-se diante dele, por simplesmente, haverem passado pela vida.” Bob Marley Como já discutido no capítulo anterior o estudo das composições musicais de Bob Marley enquanto representação social da realidade torna-se possível na medida em que a música é uma refiguração da realidade através das emoções. Uma das categorias constitutivas fundamentais da música é a formação de uma mímese particular, diferenciando-a das demais artes. Em termos miméticos, a música objetiva reproduzir a vida interior do artista, ou seja, seus sentimentos e emoções. Essa interiorização é resultado, segundo Lukács: “da evolução histórico-social da humanidade”. O reggae é caracterizado por muitos autores que se predispuseram a trabalhar com a temática, como o ritmo musical que traz as marcas da opressão da população dos bairros pobres da periferia. Segundo Carlos Benedito (1992), o reggae, desde seu início, foi considerado como música dos becos por refletir em suas letras os anseios das populações de baixa renda, segregadas socialmente. Muito embora, “Ele – o reggae – se caracteriza (mas não se limita) pelo seu conteúdo social e de protesto.” (GIOVANNETTI, pag. 66, 2001). O reggae produzido na Jamaica por Bob Marley não foge à regra e tem como uma de suas principais características o conteúdo contestatório da realidade social, vivenciada principalmente pela população pobre e negra daquele país, suas canções despontam trazendo em sua estética questões que misturam um teor de emancipação, compreendendo dimensões política e religiosa. A relação entre arte, política e religião na música de Bob Marley, suscita questões que se busca desenvolver nesse capítulo, a 43 partir da apreensão de temáticas relativas aos contextos de conflitos sociais objetivados na representação musical, entendendo-se que tais obras, a partir da perspectiva dialética, são parte de uma representação que é a síntese das determinações resultantes da relação reciprocamente mediada entre sujeito e a realidade social, estando a representação musical presente no modo como o conteúdo e a forma se apresentam articulados na relação entre a expressividade sonora e poética da música (LESSA, 2011). Nesse sentindo, partir-se-á das bases da influência mútua entre subjetividade e objetividade, estabelecendo-se a relação entre as condições de vida jamaicana e as canções, evidenciando o sujeito e as condições materiais e culturais que serão base da obra estética. Decerto, ao analisar as canções deste músico, parte-se do pressuposto de que tais obras são frutos da imaginação criadora deste compositor, cuja objetivação só é possível através do amadurecimento da subjetividade criadora estabelecida em meio à relação do sujeito com a realidade social na qual está inserido, estando esse sujeito sob a influência da própria organização social e de sua situação de classe (CÂMARA; SILVA, 2013). Assim, as diversas canções de Bob Marley, ao representarem as condições de vida da maioria da população do seu país, expressa a sua vivência social do processo de opressão por via da criação estética. De certa forma defrontamo-nos com um acordar da consciência por via da música, da apreensão do destino de um povo, reinventando céus e terras, recriando Deus à sua imagem e semelhança, arrancando do fundo de si as raízes do sofrimento e da desigualdade, desenhando, por via do belo, o princípio de esperança e a emancipação de um povo. Não obstante, ao se interpretar tais canções é condição sine qua non apontar que o papel singular do sujeito na atividade artística, não é consequência meramente de sua existência individual e de conexões imediatas com a vida, ela ocorre por via de uma relação mediada com as condições objetivas que lhe fornecerá o conteúdo necessário para as produções. Nesse sentido Lukács analisa que: Tais conexões imanentes existem, sem duvida, na realidade objetiva, mas só como momento do tecido histórico, como momento do conjunto do desenvolvimento histórico, no interior do qual, através do intrincado complexo de interações, o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das forças sociais produtivas) assume o papel principal (LUKÁCS, p. 12, 2012) 44 Nesse sentido, segundo Lukács (1996), a criação artística provém dos desvelamentos do núcleo e da crítica da vida por um sujeito que está imerso num objeto apropriado na obra enquanto refiguração da realidade. Desta forma, considera-se que as obras artísticas – aí incluídas o reggae produzido por Bob Marley – emergem tendo por elemento de grande importância a capacidade criadora subjetiva, sendo produto das categorias da imaginação e da inspiração do artista, muito embora, essas devem ter por base a relação mediada com as condições objetivas da Jamaica. Isto é, a existência, a gênese e a eficácia da música reggae devem ser compreendidas e explicadas no quadro histórico do complexo de múltiplas determinações que formam os alicerces de desenvolvimento da condição humana de produção artística no desenvolvimento do processo geral da sociedade. No caso específico aqui tratado, o conteúdo e o valor estético do reggae fazem parte do processo social no qual está inserido o compositor (Bob Marley), que se apropria do mundo através de sua consciência e sentimentos em relação a este, e traz à representação musical os conflitos vivenciados nesta conjuntura. Deste modo, a síntese entre subjetividade e objetividade, assume um caráter de superação gradual da subjetividade até sua plena desaparição, fazendo com que surjam os parâmetros de reconhecimento dessas como obras autenticas: a profundidade, a riqueza e a universalidade (LUKÁCS, 2012). 2.1 O berço do reggae: dilemas de um mundo subdesenvolvido As músicas de Bob Marley representam poeticamente o processo histórico do país jamaicano compreendendo o longo período colonial20, a independência (1962), e seus desdobramentos permeados por mazelas sociais, pela violência urbana, baixo índice de desenvolvimento econômico e condições deploráveis de existência21. A história do reggae é marcada pelos contornos de uma realidade preenchida por dilemas gerados pelas questões socio-econômico-raciais criadas pelo desenvolvimento histórico da economia capitalista e de suas múltiplas determinações, que se acirraram no país por 20 A ilha foi "descoberta" por Colombo em 1494 e ficou sob domínio espanhol até 1660, quando foi tomada por piratas ingleses como Harry Morgan, mais tarde feito governador da nova colônia. Os ingleses no processo de colonização desenvolveram na ilha caribenha um potencial agrícola, cuja exploração do cultivo da cana-de-açúcar era o que predominava na economia agrícola de então, fomentado pela importação de escravos em massa trazidos do continente africano (GIOVANNETTI, 2001). 21 Os jovens negros, em meio ao desemprego, perambulavam por Kingston, caindo na marginalidade, muitos se tornaram “rude boys” ou “rudies”, andavam frequentemente armados e resolveram tomar os rumos de sua vida por conta própria. (BERGMAN, 1997) 45 via de relações de desigualdade presentes cotidianamente tais como: colonizadores e colonizados, pobres e ricos, negros e brancos, economia desenvolvida e subdesenvolvida. A realidade social na qual o reggae emergiu, em meio à história social da modernidade, imbrica-se aos distintos e desiguais percursos de desenvolvimento da vida social de cada economia em nível mundial. A América central é uma região fortemente marcada pelo processo de exclusão, de desigualdade, e de exploração que a acompanha desde o período de seu descobrimento pelo modelo mercantilista de expansão e de acumulação primitiva de capital empreendido pelos países do continente europeu. Em se tratando do caso da Jamaica, esta questão se torna ainda mais complexa devido ao longo período de exploração e de segregação do país, ao se tornar colônia inglesa, que se iniciou no século XVII, só conquistando a sua independência política em meados do século XX. A história dessa região é marcada pelo processo de escravidão da população negra trazida pela diáspora do continente africano. Ao mesmo tempo o cenário de violência escravista foi acompanhado de contínuas revoltas e formas de resistência por parte daqueles que foram escravizados. (GILVANNETTI, 2001) Nesse sentido, as bases das músicas populares na Jamaica não se apresentam somente por via das contribuições do contexto contemporâneo do país, para Gilvannetti (2001) a história social da música na ilha caribenha pode ser remontada aos tempos de escravidão, sendo utilizada para além de seu papel recreativo, mas também como forma de atenuar as dores do exercício do trabalho. Com argumento semelhante Brathwaite (1971) observa que: A música, além de recreativa, era também funcional. Os escravos, como ocorria na África , bailavam e cantavam no trabalho, em jogos, em cultos, de medo, tristeza e de alegria. (BRATHWITE, p.10, 1971). (Tradução nossa). Deste modo, o reggae, e os outros gêneros musicais afro-caribenhos teria uma íntima relação com as músicas desenvolvidas pelos escravos, sendo essa expressão artística uma das formas que estes sujeitos oprimidos tinham para expressar suas angústias de forma segura. 46 As raízes do mento, o calypso e o reggae remontam à escravidão, onde a crítica social e a sátira somente podiam ser expressas por médio da canção. Os senhores de escravos naquele momento (como seus sucessores atuais, as classes capitalistas) eram incapazes de sentir as mensagens das canções e raras vezes buscavam entendê-las. (GIOVANNETTI, apud BERFORD e WITTER, 2001). Gilroy (2001), em sua teoria pós- colonial, analisa que é a proximidade imaginativa do terror do processo de escravismo que criou a experiência inaugural do modernismo dos países da América Central, sendo classificado como uma estrutura transnacional que se desenvolveu e deu origem a um sistema de comunicações globais, marcado por fluxos e trocas culturais, o que teria possibilitado às populações negras, durante a diáspora africana, formar uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo formando a cultura do Atlântico Negro. Para o autor, a música, dentre elas o reggae, constituiria umas das formas de expressão, que mantinha viva os terrores inefáveis da escravidão por via da ritualização, formando o que ele classifica enquanto a forma especifica de modernismo dos negros. Gilroy, em sua pesquisa busca refutar a perspectiva marxista que vê nas questões referentes à materialidade produtiva o epicentro de desenvolvimento da sociedade. Desta forma, explica a realidade social vivenciada no “Atlântico Negro” através da centralidade de aspectos culturais e comunicativos nas formações da sociabilidade humana moderna. No entanto, busca se diferenciar das argumentações culturalistas que restringem as relações culturais a aspectos nacionalistas. Para o autor a explicação dos movimentos contra-culturais modernos se sustenta em uma solidariedade translocal, que possibilita por meio da hibridização, trajetos e migrações que produzem um conjunto de práticas expressivas, artísticas e políticas originadas pela experiência da escravidão negra em toda a América. Assim, o autor toma o rumo de trabalhar com uma modernidade formada pelo fluxo cultural e comunicativo transnacional, embora não deixe de considerar aspectos econômicos, como o surgimento da indústria cultural. Ao declinar da perspectiva marxista o autor silencia sobre elementos centrais de constituição desse período histórico, o desenvolvimento do capitalismo, fomentador da ampliação do desenvolvimento das forças produtivas, determinando novas diretrizes de socialização de indivíduos, considerado livre no olhar dos pós-colonialistas, mas que são submetidos na sociedade burguesa ao crivo das instâncias verticais de produção e controle, cuja reprodução ampliada do capital se desdobra em modificações estruturais transformando as relações presentes também na superestrutura social (SILVA, 2013). 47 Ao mesmo passo, em o “O Atlântico Negro”, o escritor aponta de forma contraditória que a música negra desse território seria uma expressão eminentemente moderna por dois aspectos: por terem origens híbridas e crioulas no Ocidente, e o mais curioso por ter a capacidade de escapar, em meio à inserção e difusão via indústria cultural, da lógica da mercadoria, apresentando-se como opositora dos regimes de Exploração. Apesar de apontar para uma autonomia da arte, o que se verifica nesse percurso, é que Gilroy (2001), ao colocar essa síntese tendo por base a situação dada pela rede de encadeamento histórico-cultural fluido de caráter transnacional racialista, atribui às obras de artes da América Central um papel de acessório subordinando-as aos movimentos de contracultura raciais, extraindo da expressão artística seu caráter de criação, de fazer existir algo inédito, um objeto novo e singular que expressa o sujeito criador e, simultaneamente, o transcende. Conquanto, levante de maneira acertada que esse objeto é portador de um conteúdo de cunho social e histórico apresentando essas obras como uma síntese das experiências marcantes do desenvolvimento desses sujeitos, mas, ao mesmo tempo, subordina sua observação aos paradigmas raciais. Desta forma, a arte nesse tipo de abordagem assume uma natureza castrada, secundarizando os seus elementos intra-estéticos, enclausurando o conteúdo e forma às questões de caráter culturais-racialistas. A relação entre música e cultura deve ser feita com cautela para que não se transforme em uma relação de face unilateral, na qual a arte seria mero epifenômeno da cultura, perdendo, assim seu conteúdo imaginativo, sua forma e sua capacidade de transgressão do espaço-tempo de um período histórico. O reggae de Bob Marley, aqui estudado não é analisado somente a partir dos elementos históricos da conjuntura de uma Jamaica negra, mas aborda esses aspectos não enquanto limítrofes de sua estética, mas como representação musical que transcende a própria condição objetiva no qual é produzido. No final da década de 1950, a Jamaica vivenciou uma era de considerável agitação política à medida que os grupos sociais médios e proletarizados jamaicanos começavam a assumir um papel nas decisões acerca do destino da ilha. O país apresentava problemas graves como desemprego, falta de moradia e condições precárias de trabalho, não correspondendo às expectativas da população após a independência. O reggae composto por esse cantor tem sua gênese, portanto, nesse contexto, e em uma Jamaica totalmente dividida: de um lado, uma classe dominante branca, remanescente da aristocracia colonial inglesa; de outro, a grande massa negra e mestiça, que ou se 48 submetia às humilhações impostas pelas classes dominantes ou reagia à violência repressora. Concomitantemente faz-se necessário apropriar-se dos elementos que constitui a formação da sociedade jamaicana pós-independência, integrada a uma economia mundial, isto porque, ligada à correlação concreta destes fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico de uma economia global, seus múltiplos elementos formadores seguiram o parâmetro de crescimento da sociedade moderna levando a ilha caribenha pós-independência a desdobramentos posteriores em âmbito político, econômico e social, com o capitalismo expandindo-se de forma desigual e combinada. Segundo Trotski (1978): O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz: necessariamente, a uma combinação original das diversas fases dos processos históricos. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado [...]. As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral dos processos históricos, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como – em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha. (TROTSKY, 1978, p. 24). Ou ainda segundo Manolo e Bernardo (2010), olhando para os processos econômicos e políticos que perpassavam os países colonizados, tornou-se evidente que esses funcionavam, sobretudo, como áreas complementares do acúmulo de capital para os países metropolitanos, transformando-se na pós-independência, devido às próprias demandas do capital global, em economias que se desenvolvem no interior do capitalismo. É assim que a Jamaica pós-independência busca inserir-se na economia mundial, tomando o caminho de consolidação enquanto país atrasado, buscando por meio do desenvolvimento de uma economia capitalista fundamentada no capital externo as respostas necessárias para diluir todos os entraves deixados por séculos de exploração colonial. Contudo, esse panorama acarretou no resultado inverso: a potencialização das desigualdades e a exploração da classe trabalhadora. Assim como em outros países 49 limítrofes do mundo capitalista, o capital financeiro era o principal propulsor da dinamização de amplos setores das atividades econômicas, encarnado na vinda de bancos estrangeiros à região; no financiamento de obras públicas, de cultivos de exportação agrícola, de refinarias e distribuição do petróleo; investimento no setor turístico e na construção de redes hoteleiras. Desta forma, a economia do país funcionava fundamentalmente alicerçada no capital estrangeiro, estimulando o crescimento econômico mediante exportações de bens primários. Esta forma de inserção provocará uma crise social interna nas economias neocoloniais. Esse fenômeno ocorreu com a difusão do capitalismo nos países da América Latina, após as lutas armadas pela independência política e a conquista da emancipação nacional. As técnicas, instituições e valores sociais que permitiriam uma profunda e revolucionária reorganização da sociedade, da economia e da cultura sofreram uma difusão rápida. O mesmo não sucedeu – nem podia suceder – com a possibilidade de convertê-los em fatores concretos da dinamização da ordem econômica, social e política. Nesse sentido, pode-se dizer que os modelos ideais de organização da sociedade foram substituídos de acordo com ritmos históricos muito intensos. O mesmo não aconteceu com a criação das estruturas sociais, econômicas e políticas correspondentes, que iriam emergir, difundir-se e desenvolver-se através de ritmos históricos muito débeis e incertos, graças a uma evolução lenta, penosa e oscilante (mesmo nos países que lograram a integração nacional da economia de mercado e da ordem social competitiva com maior rapidez) (FERNANDES, p.43-44, 1975). Inserida de forma particular no contexto de formação social da América Latina, constituída por meio de relações econômicas mundiais, a análise de Fernandes (1975) acerca desse processo traz aspectos que podem contribuir para elucidar a compreensão da conjuntura jamaicana pós-período de “emancipação” nacional. Essa situação de desenvolvimento “dependente” e do aumento das contradições geradas pelo sistema capitalista torna os grandes centros urbanos – e, dentre esses se destaca Kingston – pólos atrativos de fluxos migratórios estabelecendo um período intenso de êxodo rural, no qual a massa populacional emigrava para a capital Kingston principalmente em busca de melhores condições de vida e de empregos, propiciando um aumento demográfico de cerca de 80%, concentrando, desse modo, um quarto da população residente na ilha. Nas décadas de 1960 e 1970 o país entra em uma depressão resultante dos impactos da crise da economia internacional: tem-se na Jamaica um enfraquecimento do setor agrícola, e o crescimento da produção manufatureira; o 50 aumento do desemprego e do êxodo rural; e, o crescimento das moradias precárias em solo urbano, dos guetos ou do bairro de Trench Town (Ver figura 1), com sua inevitável tensão potencializada pelas desigualdades. Esse bairro está situado no coração de Kingston, capital da Jamaica. Apesar da pobreza extrema e subdesenvolvimento da região, este bairro violento emergiu como um dos guetos mais famosas do mundo. Essa façanha se deve em grande parte à reputação de Trench Town como um terreno fértil para superstar do reggae. Figura 1 – Bairro de Trench Town um dos guetos mais conhecidos do mundo Fonte: Página da BBC News/ 2 December, 1999. 22 Essa conjuntura fora marcada por lutas dos operários que abarcaram trabalhadores das centrais açucareiras, dos grandes hotéis, trabalhadores da grande indústria elétrica, do setor de transportes e os operários da construção civil. Essas circunstâncias sociais e políticas influenciaram a transformação musical vivenciada no país, a qual trouxe junto com o teor crítico às desigualdades sociais, a incorporação de elementos inovadores que o avanço tecnológico da modernidade oferecia, ou seja, de instrumentos eletrônicos como o baixo e a guitarra na composição musical. Isto propiciou inclusive a introdução de novos formatos harmônicos advindos de gêneros musicais oriundos da Inglaterra e dos Estados Unidos, tais como o rhythm and blues, o blues, o jazz, “race records” e o rock, sendo amplamente difundidos através das emissoras de rádio que tocavam clássicos das músicas populares daqueles países. Contudo, “algumas das estações de rádio serviam exclusivamente a um público de classe média. Outras bandas se apresentavam em locais mais populares, a que os negros tinham acesso.” (CARDOSO, 1997, p. 24). A inserção desses ritmos incidiu 22 Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/shared/bsp/hi/services/help/html/sources.stm 51 diretamente sobre a forma e conteúdo da música afrocaribenha, de seu processo de desenvolvimento e de formação de gêneros cuja subsunção das harmonias da estética do ska em rock steady possibilitou a constituição da estética sui generis do reggae (GIOVANNETTI, 2001; CARDOSO, 1997). 2.2. O movimento de surgimento do reggae A relação da população jamaicana com a música é algo que expressa de forma central o desenvolvimento histórico do território. A formação do reggae, dentre eles os compostos por B. Marley, ocorreu através do processo de subsunção de estilos estéticos presentes na música afro-caribenha, africana, inglesa e estadunidense, nas quais se encontram os estilos formadores do reggae, o mento, o rhythm and blues (R&B), jazz, blues, ska, rock steady. Considerado um gênero remanescente da música tradicional jamaicana, o mento23 era proveniente da zona rural, e estabelecia os primeiros arranjos sincréticos dos cultos afros cristãos, combinava em partes iguais música inglesa e africana, e ainda era composto a partir de harmonias religiosas e do ruflar dos tambores, intercalado com o som do baixo em tonalidade não específica. Essa linha dominante do baixo influenciou o “riddim” do reggae tocado por Bob Marley. E nesse interim, o “riddim” jamaicano é a forma pela qual uma afirmação apoia a si mesma e ao mesmo tempo a todos os outros elementos da música, fornecendo a base e complementos aos acordes, melodia e letra da música. Mas cada “riddim” tem sua particularidade que subjaz ao padrão em que está inserido, possuindo sua melodia e padrão rítmicos distintos como se fosse uma composição em si mesma, estabelecendo uma analogia com o tempo dos sentidos humanos, os “riddims são exercícios de estratégias altamente intuitivos para se balancear o silêncio e o som, com uma qualidade íntima, quase como uma conversa informal. O baixo “diz” uma frase, depois faz uma pausa para “respirar” [...]” (CARDOSO, 1997, p. 67). Posteriormente, a partir da disseminação de bailes regados aos sistemas portáteis de amplificação de sons constituindo uma forma de discoteca itinerante 23 Ver: http://www.youtube.com/watch?v=taEnME5_-Ts e http://www.youtube.com/watch?v=HvEcz95F7M. 52 tocando (ver Figura 2)24, sobretudo, o R&B25 americano (gênero amplamente absolvido pelas massas jamaicanas), iniciou-se uma tentativa de autoprodução desse ritmo, aliás, tocado pelos próprios jamaicanos, o que longe de aderir ao imperialismo cultural aparecia como uma alternativa à unificação dos negros nas Américas, nisso o que se viu foi a influencia do mento na formação harmônica dessas canções, causando uma acentuação no compasso o que diferia tanto do R&B americano, quanto do mento, e desse movimento surge o ska26. O ska desponta como o primeiro gênero musical jamaicano que ganha dimensão internacional, sendo difundido pela Europa e Estados Unidos, inserindo as músicas nacionais no mercado fonográfico internacional, tendo como difusora da música jamaicana a gravadora inglesa Island Records, que divulgou cantores e grupos do estilo, como o Skatalites27, para todo mundo. Isto despertou nos jovens das periferias de Kingston o olhar sobre a música enquanto possibilidade concreta de ascensão social. Entretanto, o ska por mais que tivesse em seu conteúdo e forma os impulsos dançantes e certo teor crítico social que propiciaram sua massificação e difusão, contrastava com a expectativa desses jovens por uma harmonia carregada de angustia e protestos (CARDOSO, 2001). Figura 2: Sistemas portáteis de amplificação de sons Fonte: Página do Sound System thewickedesttime.28 24 Ver:http://www.youtube.com/watch?v=A1DPi_4zQbc&list=PLDMb1EONDv_3xoRbGyysp1ofgM2rox gzQ 25 Ver: http://www.youtube.com/watch?v=YIL7-C9PCZs&list=PLE6A57489B4ED71F8 26 Ver: http://www.youtube.com/watch?v=EZC6Ot1MLP0 27 Ver: http://www.youtube.com/watch?v=EcoNPm3pyqg 28 Disponível em: http://www.thewickedesttime.com/2010/09/jamaican-sound-system-culture-and.html 53 Isso levou os jovens músicos a experimentarem outras formas musicais, novos compassos cuja diminuição do ritmo acompanhado de bases mais firmes, permitiu a criação do “Rock Steady”, que continha em sua musica mais conteúdo ameaçador e de contestação social do que o ska. Sobre o surgimento desse novo estilo musical Bob Marley em entrevista em 1975, regozijava-se: “[...] gente como eu adorava James Brown [...]. A gente não queria ficar mais por aí tocando aquela batida lenta do ska. Os músicos novos tinham uma batida diferente – agora era o Rock Steady!29 Pronto pra decolar!” (WHITE, 2011, p. 37). Em meio a esse processo de consolidação do Rock Steady surge um novo ritmo musical, sobre o qual existem controvérsias, sobretudo quanto às demarcações estéticas que diferenciavam um estilo doutro: se para Grass (1997) o surgimento do reggae é imanente ao desenvolvimento da “criação aleatória” dos artistas do Rock Steady, pode-se até dizer que, na verdade, trata-se do primeiro formato que o reggae como conhecemos hoje adquiriu; para Giovannetti (2001) há delimitações explícitas entre os estilos musicais evidenciados principalmente pela intensidade do conteúdo de crítica social daquelas letras, essa perspectiva é a mais utilizada entre os pesquisadores do ritmo. Para Vidigal (2001), a introdução da guitarra e do baixo elétrico em meados dos anos 1960 pode ser considerada a grande mudança que possibilitou o surgimento de novos arranjos e harmonias na música jamaicana. “Eles permitiram que os músicos criassem linhas de baixos mais ágeis, que serviriam como base para o rocksteady e também para o reggae.” (VIDIGAL, 2001, sp.) Ainda, segundo o autor, o próprio Bob Marley teria comentado que os instrumentistas ligados ao ska, tributários do jazz e do rhythm & blues, teriam ficado insatisfeitos com a parca remuneração recebida e diminuído o ritmo de produção, abrindo o caminho para novos músicos, mais influenciados pela soul music e pelo rock n'roll. Se os instrumentos de sopro eram a base do ska, no reggae estes assumem uma outra função e o baixo ocupa este lugar, o que inclusive torna possível evidenciar tanto os outros instrumentos quanto a voz dos cantores, sobressaindo-se. Decerto que o reggae aflora como gênero musical nos anos 1960, sendo uma música criada por meio da inquietação artística posta pela vontade criativa de músicos jamaicanos, dentre eles Bob Marley, que buscaram transformar a forma sonora do rock steady, norteados pelos cânticos dos rituais rastafáris e por protesto pela justiça social, 29 Ver:http://www.youtube.com/watch?v=SAAtWkyxXkI, http://www.youtube.com/watch?v=feywAK09bxk. 54 enfatizando a repetição rítmica, e assumindo, ao mesmo tempo, um conteúdo que tem em suas letras poéticas o movimento da pressão social vivenciada em Kingston. Especificamente há aqueles que defendem que o reggae surge em um dia de 1968 “quando Toots and the Maytals gravaram um pequeno número chamado “Do the Reggay”. Mas como Toots lembra com rapidez, ele não inventou o termo; reggae era apenas uma expressão circulando nas ruas [...].” (GRASS, 1997, p. 43). Enquanto expressão estética o reggae possui, em termos musicais, a síncope no seu ritmo básico – elemento que consiste na deslocação da acentuação da parte forte do tempo musical para a sua parte mais fraca –, tendo por noção de belo a uniformidade gerada pelo padrão harmônico em suas diversas partes nas quais as canções são ordenadas. Nessa configuração os instrumentos em conjunto são partes sincopadas no processo de construção musical, aspecto presente na musicalidade africana. Isso contribuiu para a constituição de uma unidade intrínseca, que subjaz aos gêneros jamaicanos: isto é um aspecto africano no reggae. Nesta forma, o compasso do reggae contém quatro tempos principais de intervalos. O reggae conservava muitos aspectos do rock steady, dentre estes a função central assumida pelo baixo no preenchimento do compasso, que assume o mesmo caráter do tambor nas músicas folclóricas afro-jamaicanas, diferenciando-se por ser um instrumento elétrico de marcação temporal dos intervalos musicais. Porém aquele gênero é imbricado com novas características rítmicas: [...] o baixo tornou-se mais forte e enfático, conduzindo a batida e permitindo que o baterista floreasse um pouco com a acentuação nos pratos. A guitarra era tocada de forma cíclica, acentuando os acordes no contratempo, que não ocorriam com tanta freqüência quanto no rock steady: o pulso da Jamaica diminuíra outra vez, embora certos elementos fossem tocados com maior rapidez. O impulso vinha de um padrão constante de dois acordes a fornecer um contraponto persistente para a forma de chamada e resposta, como o canto de Toots e a resposta harmônica dos Maytals (CARDOSO, 1997, p. 44). Além das mudanças ligadas às formas sonoras trazidas pelo reggae, segundo Vidigal (2001), em comparação aos ritmos que lhe antecederam, houve uma mudança nas próprias formas poéticas de suas letras, tornando-se mais realista, assumindo um conteúdo político cada vez mais contundente. A relação entre o reggae e a política se estabeleceu sempre de maneira inerente a seu próprio conteúdo e forma, exprimindo desde o seu início uma conexão intensa com as condições sociais da existência humana. 55 As músicas de Bob Marley estavam mergulhadas em imagens dos conflitos existentes no país, trazendo por tema a vida dos rude boys, ou seja, a juventude sem emprego, rapazes e moças que muitas vezes eram recém-chegados de regiões interioranas em busca de melhores condições de vida na cidade, por falta de condições materiais mínimas de sobrevivência eram impulsionados a vagar pelas ruas das megalópoles jamaicanas, as vezes praticando pequenos roubos, ou envolvendo-se em brigas de gangues, agindo de forma transgressora. O próprio Robert Nesta Marley teve uma vida dura e repleta de contradições impostas pelo contexto socio-histórico de um país que passava pela transição do regime colonial escravista e se tornava independente. Nessa conjuntura, enfrentou a violência policial e a miséria urbana. Filho de um oficial branco do exercito Britânico e de uma negra jamaicana, sofreu com os problemas decorrentes das desigualdades socio-raciais. Passou sua infância no miserável gueto Trench Town, construído sobre as valas que drenavam as partes antigas de Kingston; cresceu nesse ambiente de privações junto com crianças em situação de rua, com quem começou a tocar latas e guitarras improvisadas em casa (WHITE, 2011). É nesse contexto que o Reggae aparece como uma criação estética nascida da necessidade de responder à precariedade de uma vida suburbana que se desenrolava nas condições miseráveis e desumanas dos guetos (BARROW, 1993, p.15). 2.3. Fogo na babilônia: música reggae e capitalismo A compreensão da música reggae jamaicana perpassa necessariamente pela análise da relação entre obra de arte e capitalismo, já que em seu processo de desenvolvimento o capital acabou também colonizando a área que corresponde à criação artística. Agrega-se a esse aspecto para Vázquez (2011) ao analisar Marx em “Historia critica da teoria da mais valia”, que a produção artística na modernidade está no espaço reservado ao que há de mais essencial na existência humana, contendo nestas umas das expressões mais fundamentais da capacidade criativa do homem. Todavia, em meio a esse contexto, faz-se necessário refletir que a própria criação da música popular, como expressão artística, surge em momento anterior à instauração da infra-estrutura social capitalista, e mesmo se retornássemos à música popular em suas primeiras formas que teve contiguidade com o período capitalista, composto ainda pelo preâmbulo da 56 indústria fonográfica, pode-se constatar que essas obras comportavam ainda traços de singularidade cultural, as músicas americanas, como jazz e o blues em seu inicio são exemplos destas formas. É somente com a dissolução dos métodos de padronização das harmonias musicais, utilizados pela indústria fonográfica para a massificação dessas obras como mercadoria, que ocorrerá o processo de fetichização e empobrecimento da composição musical. A partir desses elementos pode-se analisar o reggae produzido por Bob Marley inserido nessa conjuntura e em sua relação com a indústria fonográfica, verificando seus desdobramentos e consequência. Nesse contexto da indústria fonográfica, caracterizado pela colonização e exploração da produção musical sob o capitalismo, essa forma de organização social fomenta um comportamento hostil em relação à produção destas obras. Isto significa que o potencial estético de uma obra de arte é secundarizado em função de sua inserção no mercado de circulação de mercadorias. O reggae de Bob Marley deve ser entendido nessa relação conflituosa na sociedade moderna como uma forma de expressão sensível da capacidade criativa da condição humana em mediação com as condições sociais, as quais estão circunscritas em um determinado momento histórico, tendo a arte uma relativa autonomia em relação às condições objetivas. A autonomia musical do reggae implica considerar a liberdade formal de Bob Marley em representar o mundo circundante capitalista tal qual o concebe. No entanto, essa liberdade estética é relativa, visto que a representação artística não se constitui somente da subjetividade do sujeito criador, mas evoca a realidade externa com o seu devido conteúdo de verdade. A autonomia estética presente nessas canções diz respeito à singularidade da obra em relação ao próprio mundo objetivo, haja vista a problemática em que esses estão inseridos em meio às imposições extra-estéticas da indústria fonográfica à sua produção, reduzindo as possibilidades formais do sujeito criador. Muito embora, essa arte assuma uma capacidade desveladora e reveladora de um mundo passível de contradições e tensões sociais, mesmo estando sistematicamente ameaçada pelas seduções mercantis de um período marcado pela reprodução ampliada do capital. Neste contexto, o princípio de autonomia comporta imediatamente a dinâmica social com a qual sofre sistematicamente diversas influências, uma vez que ainda é domínio superestrutural, de modo a sustentar uma díade pautada na autonomia e consciência social. (SILVA, 2013). Ao observar as músicas de Bob Marley diante destas reflexões sobre a relação entre a arte e o capitalismo, surgem dois questionamentos: 1) quais limites são postos à 57 criação artística do músico nessa relação hostil entre arte e capitalismo? 2) até que ponto essa relação consegue impedir que seu reggae floresça? É diante destes dilemas que podemos compreender a crítica que Marley, em suas músicas, faz ao sistema capitalista dominado pelos brancos, no qual os negros pobres vivem na miséria, isto é a “babilônia” e todo sistema de opressão gerado nas Américas. Contudo, de forma contraditória Marley produziu música de contestação e esperança, com teor revolucionário, em meio aos ditames da indústria fonográfica e da “babilônia”, conquistando reconhecimento neste mundo por ele negado. Essas canções foram criadas através de um processo de crítica à condição de vida produzida pelo mundo capitalista, ao tempo em que o artista se apropriou dos recursos tecnológicos capazes de potencializar a criação e a difusão de sua obra. Inicialmente os seus álbuns fizeram sucesso na clandestinidade, mas foi através das gravações realizadas nos EUA e na Europa que ele alcançou seus maiores sucessos. A “babilônia” representada nas poesias da música reggae diz respeito ao mundo capitalista contemporâneo e às agruras produzidas na sociabilidade da população negra jogada na miséria pelo mecanismo de reprodução do sistema. Esse capitalismo refigurado nessas canções foi produzido pelo olhar da filosofia rastafári, influenciando de maneira fundamental o desenvolvimento da música reggae. Bob em sua canção “Babylon System” canta a rebeldia contra o sistema: Babylon System We refuse to be What you wanted us to be We are what we are That's the way it's going to be, if you don't know You can't educate I For no equal opportunity Talking about my freedom People freedom and liberty Yeah, we've been trodding on The winepress much too long Rebel, Rebel We've been trodding on the Winepress much too long, Rebel Babylon System is the Vampire Sucking the children day by day Me say the Babylon System is the Vampire Sucking the blood of the sufferers Building church and university 58 Deceiving the people continually Me say them graduating thieves and murderers Look out now Sucking the blood of the sufferers Tell the children the truth Tell the children the truth Tell the children the truth right now Come on and tell the children the truth 'Cause we've been trodding on The winepress much too long Got to Rebel, Got to Rebel Now We've been taken for granted Much too long, Rebel From the very day we left the shores Of our father's land We've been trampled on, oh now Now we know everything we got to rebel Somebody got to pay for the work We've done, Rebel30 Desta forma, essa canção, traz a representação rasta contra o sistema da babilônia que quer adestrar o povo através de uma educação que prega igualdade equitativa dentro de um sistema que vive da desigualdade. As letras de suas canções fazem alusão direta à necessidade de um processo de rebelião. O sistema da babilônia é apresentado como um vampiro que suga o povo negro, levando-o a condições desumanas de vida. Segundo White (2011), a importância dos rastas e dos preceitos do rastafarianismo para o desenvolvimento da música jamaicana interfere diretamente na forma como estes se relacionam com o processo de composição, de modo que muitos artistas se recusaram a participar dos conluios cotidianos e do comércio da sociedade capitalista, que fariam parte da “Babilônia”, muitos buscaram os meios para criar seu próprio selo para difusão de suas obras. 30 Sistema da Babilônia: Nós nos recusamos a sermos / O que vocês querem que sejamos / Nós somos quem somos / E é assim que vai ser, se você não sabe! / Vocês não podem me educar / Para oportunidades desiguais / Falando da minha liberdade / Um Povo livre e liberdade! / É, nós temos marchado para / Essa prensa de vinho há muito tempo / Rebelem-se, Rebelem-se / É, nós temos marchado para / Essa prensa de vinho há muito tempo, Rebelem-se / O Sistema da Babilônia é o Vampiro / Sugando as crianças dia após dia / Eu disse que o Sistema da Babilônia é o Vampiro / Sugando o sangue dos que sofrem / Construindo Igrejas e Universidades / Iludindo as pessoas sem parar / Digo que eles congratulam, bandidos e assassinos / Olhe agora / Eles estão sugando o sangue dos que sofrem. / Contem a verdade para as crianças! / Contem a verdade para as crianças! / Contem a verdade para as crianças agora mesmo! / Contem a verdade para as crianças / Porque nós temos marchado para essa prensa de vinho há muito tempo / Rebelem-se, rebelem-se agora! / E nós temos sido adquiridos / Por muito tempo rebelem-se / Desde o dia em que saímos das praias / Da terra de nosso pai / Nós fomos pisoteados, oh agora / Agora sabemos de tudo, temos que nos rebelar / Alguém tem que pagar pelo serviço / Que nós fizemos, rebele-se! 59 Tal capacidade criativa de Bob Marley em suas composições, em meio ao contexto de desenvolvimento de uma indústria fonográfica ainda incipiente em um país de economia subdesenvolvida, possibilitou ao reggae a capacidade de fugir da padronização da indústria cultural, formando uma base sólida em seu conteúdo e forma. Por outro lado, a necessidade incessante de crescimento e de auto-renovação da indústria cultural levou as gravadoras a buscarem novos territórios de produção musical e novos estilos que pudessem suprir as necessidades do mercado consumidor de música, nesse contexto, de forma contraditória, mesmo o reggae tendo por conteúdo a denúncia das agruras do capitalismo será apropriado pela grande indústria fonográfica como forma de se revitalizar. Essa trajetória faz com que o reggae refaça o percurso de outros gêneros da música popular, como o jazz e blues, e se difunda por todo mundo, no entanto, nesse curso o gênero se apropriará de elementos anglo-saxões, mas mantém a capacidade de refigurar a cultura local e sua singularidade. As músicas de Bob Marley têm como seu conteúdo central questões referentes à condição humana estabelecida pelo caráter desumano das relações econômicas capitalistas. Ao criticar as relações sociais travadas na sociedade moderna, o músico revela sua vinculação com uma concepção humanista e revolucionária da sociedade e do homem. Ao contrário do pretendido por Kant (1961) ao defender um princípio de desinteresse na sua concepção de belo, as obras de arte produzidas por Bob Marley, estão ligadas diretamente à necessidade do povo pobre e negro da Jamaica. Pode-se perceber de maneira evidente na música “Trench Town” todo o conteúdo político da música de Bob Marley e de que forma esta era utilizada como instrumento político de contestação e utopia: Trench Town (Bob Marley, 1980) Scoop, scoop, scoop, scoo-doo; Scoop, scoop wa-doo.) Up a cane river to wash my dread; Upon a rock I rest my head. There I vision through the seas of oppression, oh-oo-wo! Don't make my life a prison. We come from Trench Town, Trench Town (Trenchtown) Most of them come from Trench Town. We free the people with music (sweet music); Can we free the people with music (sweet music)? Can we free our people with music? - With music, 60 With music, oh music! Oh-y, my head, In desolate places we'll find our bread, And everyone see what's taking place, oh-oo-wo! Another page in history. We come from Trench Town, Come from Trench Town; We come from Trench Town. Lord we free the people with music (sweet music); We free the people with music (sweet music); We free our people with music, With music, oh music (oh music)! They say it's hard to speak; They feel so strong to say we are weak; But through the eyes the love of our people, oh-oo-wo! They've got to repay. We come from (Trenchtown) Trench Town; We come from (Trenchtown) Trench Town; Trench - Trench Town (Trenchtown). They say, "Can anything good come out of Trench Town?" (Trench - Trenchtown) That's what they say, (Trenchtown); (Trench - Trenchtown) Say (Trench - Trenchtown) we're the underprivileged people, So (Trenchtown) they keep us in chains: "Pay (Trench - Trenchtown) - pay - pay tribute to -" (Trenchtown). We come from (Trench - Trenchtown); We come from (Trench - Trenchtown); Just because we come from Trench Town. Not because we come from Trench Town; Just because we come from (Trenchtown). /fadeout/ 31 A canção remete à zona urbana de Trench Town como espaços de mazelas sociais, mas que ao mesmo tempo é o espaço onde surge o elemento de libertação do povo: a música reggae. É em meio à miséria e descontentamento que emergem os tons que levaram a história desse povo a outros contornos sociais. Os versos cantam a importância da música reggae para o processo de emancipação de um povo, essa harmonia tem que trazer contestação e utopia para cumprir sua missão de libertação. 31 Trench Town: Scoop, scoop, scoop, scoo-doo/ Scoop, scoop wa-doo/ Subindo o rio Cane/ Para lavar meus dreads/ Numa pedra encosto minha cabeça/ Lá eu tenho visões dos mares de opressão , oh-oo-wo!/ Não transforme minha vida numa prisão/ Nós viemos de Trench Town/ A maioria deles vem de Trench Town/ Nós podemos libertar pessoas com música (doce musica)/ Podemos libertar pessoas com música (doce musica) / Podemos libertar pessoas com música? / Com musica, Com musica, oh musica! / Uh minha cabeça / Em lugares desolados acharemos nosso pão / E todos vêem que estão tomando lugar / Outra página da história / Nós viemos de Trench Town / Vindos de Trench Town / Nós viemos de Trench Town / Senhor, nós libertaremos pessoas com música (doce musica) / Nós libertamos pessoas com musica (doce musica) / Nós libertaremos nosso povo com musica (doce musica) / Com musica, oh musica! / Eles dizem que isto é muito difícil de falar / Eles sentem-se fortes chamando-nos de fracos / Mas através dos olhos do amor do nosso povo, oh /Eles terão que pagar / Nós viemos de Trench Town /Nós viemos de Trench Town / Trench Town / Parte falada(final)/ Eles dizem "pode vir algo de bom de Trench Town?" / É o que eles dizem/ Nós somos desprivilegiados / Então nos mantém acorrentados / Paguem tributo à Trench Town (Trench Town ) / Só porque somos de trench Town / Não porque somos de Trench Town / Só porque somos de Trench Town. 61 Doravante, para White (2011) o reggae produzido por Bob Marley traria como eixo a necessidade de não se afastar das problemáticas que envolvem o gueto: De Bob Marley a todos os outros, nenhum artista dos mais altos escalões das favelas jamais conseguira romper totalmente os laços com a vida nas yards, mantendo sempre uma certa familiaridade com seus maneirismos e levando consigo uma carga de culpa mal resolvida em relação aos irmãos deixados para trás na sarjeta abjeta. E mais, os triunfos do reggae da Jamaica como música transfronteiriça sempre foram temporários ou condicionais, sua potência internacional ainda estranhamente dependente de um apego às raízes e a um status de ponta nas esferas da zona pobre do centro da cidade (WHITE, p. 337, 2011). A expressão artística do reggae, nesse contexto explosivo, se transformou em uma arma de síntese de questões sociais, raciais, políticas, filosóficas e religiosas, utilizadas para contestar e apontar um horizonte utópico de emancipação motivada pelos princípios da fé rastafári (WHITE, 2011). O movimento rastafári surge na Jamaica na década de 1930 sobre influencia do processo de escravidão negro, das condições humanas do povo negro da América Central e das ideologias de Marcus Garvey e do Pan-africanismo. O rastafarianismo será responsável pela última onda “popular” de êxodo à África preconizada para quando um imperador negro chegasse ao poder na região, tendo por base o milenarismo cristão, a chegada do controverso Tafari Makonnen32 ao governo da Etiópia levou a sua “canonização” por este movimento. A relação do país caribenho com o messianismo não é algo que se inicia com a religião rastafári, a história da ilha é permeada desde o início do século XX pela crença messiânica de caráter racialista, a exemplo dos maroons33 que permaneciam presentes no imaginário popular. Nesse período a principal referencia religiosa popular era a seita batista da “Jamaica Native Baptist Free Church” (1889), que teve como seu principal liderança Alexander Bedward – influenciada pelo avivamento cristão europeu ocorrido entre 1850 e 1900 –, esse levanta-se como messias dos Bedwardites e em 1895 32 Haile Selassie ou Hailê Selassiê nascido em 23 de julho de 1892 – Adis Abeba, 27 de agosto de 1975, nascido Tafari Makonnen e posteriormente conhecido como Ras Tafari, foi regente da Etiópia de 1916 a 1930 e imperador daquele país de 1930 e 1974. Herdeiro duma dinastia cujas origens remontam historicamente ao século XIII e, tradicionalmente, até o Rei Salomão e a Rainha de Sabá, Haile Selassie é uma figura crucial na história da Etiópia e da África. (Leia mais: http://espacoreggae.webnode.com.br/products/haile-selassie/) 33 Os marrons são os africanos escravizados que em 1965 que fugiram para o deserto americano para formar suas próprias comunidades separadas – formando uma forma de resistência e adaptação ao Novo Mundo. Estes maroons (ou outlyers, como eram chamados frequentemente na América do Norte) configurar pequenas comunidades em pântanos ou outras áreas onde eles não eram susceptíveis a serem descobertos. 62 conclamava seus fiéis a “lembrarem-se de Morant Bay”, a grande rebelião jamaicana de 1865 que tinha como lema: [...]“há um muro branco e um muro negro, e o muro branco fechava-se em torno do muro negro; mas agora o muro negro está ficando maior que o muro branco, e deve derrubá-lo. Por anos o muro branco nos oprimiu; agora devemos oprimir o muro branco. Depois de um período de privação de sua liberdade, entre internamentos e prisões, em 1921 Bedward reapareceu guiando seus fiéis em procissão de Augustus Town até Kingston, sendo novamente preso. Na delegacia ele se apresentou de forma veemente como Jesus Cristo, sendo novamente internado em uma clínica de transtornos mentais. Antes de mudar sua identidade de Paul Bogley para Jesus Cristo, Bedward aproximara-se do movimento garveísta, levando consigo muitos fiéis que viam em Garvey um profeta ou o novo Moisés (ver figura 3) (MANOLO; BERNARDO, 2010). Figura 3: Garvey em um desfile. Fonte: Página da Brack History Heroes. 34 34 Disponível em: http://www.blackhistoryheroes.com/2010_06_01_archive.html 63 Observa-se a partir desse contexto, que a ilha caribenha tem uma longa história alicerçada nas profecias de caráter religioso e racialista. Segundo Cunha (1993), o Rastafarismo constitui um amplo conjunto de práticas e ideias que começaram a se esboçar a partir de movimentos político-religiosos e, sobretudo, étnicos, na Jamaica desde o século XIX. A religião rastafári emerge mediante uma reinterpretação étnica da bíblia, os rastas, como são denominados seus adeptos, promoveram um constante movimento contra a opressão escravista britânica, ao afirmar a redenção do povo negro por meio do repatriamento à África, em especial à Etiópia, tida como Terra-Mãe. A gênese desse movimento garveísta encontra-se na interpretação moderna da bíblia e no etiopismo, que menciona o livro do Gêneses (2:13) situando o reino de Cuch ao sul do jardim do Éden. A Septuaginta – base de muitas traduções modernas da Bíblia, junto com a Vulgata – traduziu o hebraico “Cuch” como “A’ithiopia”, raiz grega da atual denominação, já encontrada na obra de Heródoto. De fronteiras fluidas, este território abrange a região localizada atualmente entre o norte do Sudão, o sul do Egito e partes da Etiópia, Eritréia e Somália. Esta “confusão” entre Etiópia e África está presente na raiz do etiopismo enquanto ideologia popular na Jamaica (ver mapa 1). George Lisle, primeiro missionário batista a chegar à colônia no século XVIII, convertia novos fiéis afro-descendentes ressaltando as passagens da Bíblia que falavam da Etiópia (África) para gerar identificação entre o conteúdo bíblico e seus leitores, e sempre iniciava seus sermões com a mesma exortação: “Levantai, ó filhos da Etiópia”. A própria salvação milenar cristã era ensinada por Lisle como o advento de um novo império etíope, amalgamado com a libertação social e política da opressão. Nem a posterior chegada de missionários batistas britânicos, enviados à Jamaica para corrigir esta “heresia”, foi capaz de redirecionar o etiopismo segundo os preceitos batistas tradicionais. Com esta bagagem histórica, não era de se estranhar que a Etiópia fosse assunto corrente entre os jamaicanos de origem africanas no começo do século XX, muitas, inclusive, clamando pela ancestralidade etíope e mesmo pela ascendência da linhagem salomônica (MANOLO; BERNADOR, 2010). 64 Mapa 1: Mapa histórico com os limites aproximados dos impérios kushita e aksumita Fonte: imagem Images Photo Gallery35 Esses elementos fizeram com que se disseminasse na América Central a perspectiva de a África ser a terra sagrada de salvação do povo negro. Além disso, os rastafáris produziram uma série de outros princípios e símbolos que deveriam ser utilizados pelos seus seguidores: a alimentação naturalista, os dreadlocks, o uso da erva sagrada (a ganja), todos estes elementos possuem a finalidade de deixar o homem próximo da natureza e permitir um contato mais direto com Jah36 (CUNHA, 1993). Juntando a situação política jamaicana, a emergência de um movimento religioso radicalizado, embora pacífico, e a ânsia por tempos melhores para o povo da Jamaica, Bob Marley passa a produzir suas obras musicais. Em diversas canções do músico torna-se evidente como está representado o contexto social e histórico de diversos aspectos da sociedade jamaicana (rastafarianismo, trabalho, pobreza, racismo, entre outros), especialmente a vida cotidiana dos setores marginalizados, trazendo sempre um caráter contestatório e antecipatório da realidade. Devido a esse conteúdo imanente gerou-se nas agências policiais, jamaicanas e internacionais, a necessidade de monitoramento tanto da vida do músico jamaicano quanto do movimento rastafári e dos concertos de reggae. White (2011) ao relatar essa situação destaca que nas décadas de 1970 e 1980, a Agência Central de Inteligência (CIA) e outras agências de segurança arquivavam os registros da vida e da carreira de Bob Marley, e o acompanhavam sob a vigilância. Aliás, o autor ao construir a biografia do músico declara que recebeu da CIA confirmação “que ela e outras agências 35 36 Disponível em: http://withfriendship.com/user/levis/kingdom_of_kush.php Jah é a forma denominada pelos rastas para chamar Jeová ou Deus. 65 governamentais dos Estados Unidos da América mantinham de fato arquivos sobre o ambiente do reggae jamaicano, o movimento rastafári e as atividades de Bob Marley” (WHITE, 2011, p. 14). A relação entre arte e política nas músicas de Bob Marley, inclusive, remete às bases trazidas pelo rastafarianismo e seus ideais de liberdade e igualdade os quais são elementos fundamentais para entender a relação dessas canções com estas questões. Segundo Linton Kwesi Johnson (1993) a religião dos rastas incidiu sobre as músicas de reggae não só em seu conteúdo, mas também em sua forma, na inserção de back vocais e em um arranjo harmônico, lírico, haja vista que diversas canções do reggae foram inspiradas nos hinos religiosos. Com isso, o conteúdo das canções refere-se a questões políticas que envolvem os preceitos rastafáris que prega a insurreição dos negros contra a dominação branca por meio do regresso ao continente africano, que se consolidaria quando na África ocupasse o poder um Rei negro – o 225º descendente da linhagem de Menelik, o filho do rei Salomão e da rainha de Sabá, que libertaria a raça negra do domínio branco – em parte essa nova versão tomava por base o status de Selassiê como o único monarca. Essa visão messiânica propagou-se entre o proletariado de Kingston como uma reação à influência ocidental (PATTERSON, 1994, p. 05), pois pregava o retorno dos negros à África, numa espécie de repatriação espiritual. O álbum “êxodus” (1977) que tem como subtítulo Movement of Jah People tinha relação direta com a chegada de Hailé Selassié ao poder e com a jornada final do povo negro ao continente africano, pode-se verificar isso na faixa: Exodus Exodus, movement of JAH people(Oh,Yeah) Exodus, movement of JAH people Men and people will fight ya down,tell me why when ya see JAH light let me tell you if you're not wrong(and why) everything is allright so we gonna walk,(allright) through the roads of creation we're the generation,tell me why who trod through great tribulation Exodus, movement of JAH people Exodus, movement of JAH people open your eyes and look within are you satisfied with the life you're living (huh) 66 We know where we're going we know where we're from we're leaving babylon we're going to our father's land Exodus, movement of JAH people Exodus, movement of JAH people Exodus, Exodus, Exodus Exodus, Exodus, Exodus movement of JAH people movement of JAH people movement of JAH people movement of JAH people move, move, move, movement of JAH people JAH come to breakdown downpression, rule equality wipe away transgression and set the captives free Exodus, movement of JAH people Exodus, movement of JAH people37 A música ao representar o processo de migração de retorno do povo africano às suas origens critica a vida levada pelo povo da diáspora africana na Babilônia (capitalismo), sendo por via da transmigração para a terra prometida que o povo negro romperia com as opressões das quais são vítima na América Central. Em entrevista com White (2011) o próprio Bob Marley explica porque o povo rasta deveria emigrar da “Babilônia” para a África: [...] uma terra sem fronteiras na qual os homens pecam e sofrem por ela [...] Quem tem poder no governo jamaicano deveria limpar os esgotos e as favelas e alimentar a minha gente, as minhas crianças! Leio o jornal e fico envergonhado. É por isso que tenho que sair desse lugar e voltar pra África. Se aquilo fosse o meu lar, eu amaria a Jamaica... e não me sentiria como se isso daqui não fosse o meu lugar. Eu não quero lutar contra a polícia; a polícia é cruel e ajuda a atiçar a confusão. Mas quando eu for a África, se alguém disser que não, então não tem jeito: vou ter que entrar em luta. (WHITE, 2011, p. 21). 37 Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Os homens e as pessoas irão lutar ya / (Diga-me por quê!) / Ao ver ya a luz de Jah / Deixe-me dizer-lhe se você não está errado / (Então, por quê?) / Tudo está tudo certo / assim que vamos andar (certo!) através da estrada da criação / Somos a geração (Diga-me por quê!) / Que tropeia pela grande tribulação / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah /Abra seus olhos e olhe por dentro / Você está satisfeito com a vida / Que leva? (Uh!) / Sabemos onde estamos indo / Nós sabemos de onde somos / Estamos deixando a Babilônia / Indo para a terra de nossos pais / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo, Êxodo, Êxodo! / Êxodo, Êxodo, Êxodo! / movimentação do povo de Jah / movimentação do povo de Jah / movimentação do povo de Jah / movimentação do povo de Jah / mover, mover, mover, movimentação do povo de Jah / Jah vir a quebrar a depressão, governar com igualdade / Varrer a transgressão / E libertar os que estão aprisionados / Êxodo: movimentação do povo de Jah / Êxodo: movimentação do povo de Jah. 67 A perspectiva de superação dos rastafáris e de Bob Marley estava ligada ao imaginário do movimento Pan-africanista, que tem como eixo de análise as contradições vivenciadas pelos negros na sociedade moderna, tanto na África quanto na diáspora. Esse movimento prega a união de todo o povo negro em um único Estado, na África. O rastafarianismo que tem como seu principal disseminador Marcus Garvey38, tornando-se uma das vertentes mais fortes do complexo movimento de disseminação de uma visão política africanista proposta pelo movimento Pan-africanista surgido na primeira metade do século XIX, a partir dos contatos entre negros da Grã-Bretanha, Antilhas, EUA e lideranças do continente africano. Esse movimento político era uma resposta às teorias raciais, desenvolvidas ao longo do século XIX, a exemplo da eugenia que pregava instrumentos de controle social como instrumento para melhorar ou piorar as qualidades raciais de gerações futuras, quer física ou mentalmente, e do darwinismo social a doutrina que tenta explicar a vida social nos moldes da evolução biológica, transpondo os fenômenos evolutivos na natureza para a vida humana em sociedade (HERNANDEZ, 2005; APPIAH, 1997; DECRAENE, 1962). O pan-africanismo prega enquanto horizonte de atuação política, a transformação do continente africano em um Estado único do povo negro. Os teóricos do pan-africanismo, embora reconhecessem a diversidade étnica presente no continente, por via de seus ideais políticos criaram um ideário de uma África idílica, politicamente homogênea, território singular de encontro do povo negro, deixando de lado todas as suas mazelas geradas por anos de exploração colonial e conflitos pelo poder. Para Manolo e Bernando (2010), “A África rastafári, transformada em utopia e mito, é uma “África” edênica, sem conflitos interétnicos ou interclassistas, uma “África” que precisa, segundo a ideologia rastáfari, ser libertada da opressão da Babilônia”. E é esta África mítica que servirá como pano de fundo de toda a política do pan-africanismo, negligenciando-se o capitalismo enquanto sistema propiciador destas contradições. Dessa forma, desconhece-se que o próprio continente africano não escapava das contradições capitalistas. A África, nessa perspectiva, é tida como a origem de todas as práticas, costumes, culturas e religiões dos negros da diáspora. Nesse sentido, o 38 Em 1926, o Real Pergaminho da Supremacia Negra, obra religiosa escrita por Fitz Balintine Petersburgh com a técnica surrealista do fluxo de consciência, referia-se muito favoravelmente a Garvey como um “piloto” que levaria os negros de volta à África, além de mencionar Robert Rogers em várias passagens. Ambos os textos são tidos como precursores diretos do movimento rastafari. (ver em: http://www.sacredtexts.com/afr/rps/) 68 Rastafarismo como um flanco do pan-africanismo aparece na música reggae de Bob Marley representando o continente africano como horizonte de salvação de um povo. Não obstante, Bob Marley quando foi ao continente africano encontrou um território que não correspondia a seu imaginário rasta. Deparou-se com uma realidade análoga à vivenciada na Jamaica, as mesmas favelas, o povo vivendo na miséria, política corrompida, o poder armado do Estado agindo cruelmente sobre as massas. Um continente que estava entregue às lutas civis, em meio a processos de independência, à instauração de governos ditatórios, sendo um território regido pelos processos de lutas entre etnias que batalhavam pelo poder, onde os lideres políticos eram derrotados por meio da luta armada. Diante dessa realidade se encontrava Hailé Selassié I (ver figura 3 e 4), primeiro imperador negro no continente africano, rei dos reis na Etiópia, e propagado pelos rastas como cumprindo a profecia bíblica que levaria a salvação de seu povo. Mas diante dessa realidade Bob Marley encontrou um povo indignado com o regime ditatorial implantado no governo do considerado herdeiro de Jah. Figura 3: Hailé Salassie em seu Império na Etiópia Fonte: Pagina do allposters39 39 Disponível no: http://www.allposters.com.br/-sp/Haile-Selassie-Emperor-of-Ethiopiaposters_i3728999_.htm 69 Figura 4: A Etiópia governada pela mão de ferro da junta militar de Hailé Salassie Fonte: Página do travelhomepage.40 O homem no qual depositava-se a esperança de salvação dos rastafáris, o Imperador Haile Selassie, tornou-se um líder reacionário e retrógrado em seu país, instaurando um governo que se preocupava não apenas com a preservação da independência etíope, mas também em manter a antiga ordem política, econômica e social do país. Nesse contexto, a Etiópia era dirigida por um pequeno grupo social, formando uma a aristocracia feudal amárica, que consistia do Imperador e seus nobres, que constituíam não apenas uma classe social dominante41, mas eram também os líderes do grupo étnico predominante no país. (MANOLO; BERNARDO, 2010) Mesmo diante do paradoxo que foi para Marley a visão real de África, pode-se perceber que não há um esvaziamento do conteúdo estético de suas canções, que permanecem impregnadas do caráter popular, mergulhando no imaginário dos conflitos de países economicamente marginais sob o ponto de vista do desenvolvimento do capital, enfatizadas pelos princípios da fé rastafári, bem como pelos símbolos e máximas derivados do folclore jamaicano e africano. Mas, ainda assim, carregava aspectos que trazem esperança de mudança através das ações dos homens, essas composições se apresentam como alternativa de negação emancipacionista das agruras do mundo capitalista moderno, na condição de expressões populares que conseguem sobreviver criticamente, mesmo inseridas no cenário atual do fetichismo da obra de arte, dado pelo mercado cultural. 40 41 Disponível em: http://www.travelhomepage.de/ethiopia/ethiopia.htm Um exemplo desse processo paradoxo representado pelo governo imperado da Etiópia e a forma de funcionamento do parlamento, que embora existisse funcionava de forma manipulada. O imperador escolhia os membros da Casa Alta com os nobres, e a Casa Alta, consistindo geralmente da alta nobreza, escolhia a Casa Baixa entre a baixa nobreza. A política partidária não era permitida. A política consistia de faccionalismo em torno de candidatos rivais ao trono, ministérios e governadorias. 70 3. O CONTEÚDO EMANCIPATÓRIO NAS MÚSICAS DE BOB MARLEY O tom vai conosco e é Nós, não é como as artes plásticas que nos acompanham só até a sepultura, elas que antes disso pareciam apontar para lugares tão acima de nós, para o rigoroso, o objetivo, o cósmico; é, antes, como as boas obras, que nos acompanham até para além da sepultura; e isto justamente porque o novo símbolo na música, que é mais pedagógico, e sim real, brilha tão embaixo, tão como uma mera irrupção ígnea em nossa atmosfera, embora seja nada menos que uma luz no firmamento mais longínquo e, todavia, mais íntimo. Ernst Bloch, Geist der Utopie [Espírito da utopia] Há algo de ultrapassador e inconcluso na música, de que nenhuma poesia já consegue dar conta, a não ser aquela que a música possivelmente venha a desenvolver a partir de si mesma. O caráter aberto dessa arte mostra, ao mesmo tempo, de forma especialmente incisiva, que também no que se refere ao conteúdo das demais artes ainda não se chegou ao fim da jornada. Ernst Bloch, Subjekt-Objekt, Erläuterungen zu Hegel [Sujeito-objeto, esclarecimento sobre Hegel] Estas passagens textuais de Ernst Bloch se põem de forma expressiva à reflexão do que vem se propondo aqui: a música em seu princípio de esperança. Ademais, em “O Princípio Esperança”, este autor propõe o estudo das motivações humanas relacionadas à esperança e a sua repercussão no âmbito das relações sociais em suas múltiplas expressões, dentre elas as artísticas. Neste interim, o autor define como os prelúdios se formam a partir da gênese do pensamento, traçando o devir inerente ao desenvolvimento histórico da realidade social. Os prelúdios configuram-se como respostas antecipadoras dos sujeitos históricos ao contexto social no qual estão inseridos, impulsionados pelos incessantes desejos, sonhos e anseios por melhores condições de vida. Os prelúdios são, nesse sentido, abstrações pré-conscientes sobre o mundo, dando condições ao sujeito histórico em determinada situação na qual “a introversão ou o relacionamento tão-só com o entorno mais imediato” da vida cotidiana de “comunicar-se com o que está além de si mesmo”. Esse desenvolvimento se dá pelo sentimento de autopreservação humana, tendo por ponto de partida as pulsões mais imediatas, como a fome, passando pelo exercício de apreensão das causas do fenômeno 71 e por fim chegando ao instante de superação dos obstáculos inerentes às condições objetivas de existência, aportando para o objeto que satisfaz as necessidades mais pungentes o “afeto expectante”, o mais importante da condição humana na esfera da sociedade de classe capitalista: a esperança. A música como já vimos nos capítulos anteriores tem capacidade de expressão diretamente humana, mas para além dessa propriedade, na análise de Bloch (2006), ela se diferencia das outras expressões artísticas por ainda conter a potencialidade de acolher o conteúdo de múltiplos sofrimentos, os desejos e os pontos expectantes da classe oprimida. A música tem uma ampla capacidade de transgredir as barreiras do espaço e tempo constituinte de seu período histórico, mas sem abandonar a esfera humana, trata-se do princípio esperança, presente mesmo no sofrimento infligido pelas condições sociais da modernidade capitalista. Esse capítulo tem justamente por objetivo a análise do conteúdo emancipatório das letras de Bob Marley, identificando na obra do compositor o princípio esperança presente de forma peculiar nas canções de quatro álbuns: Soul Rebel (1970), Catch a Fire (1973), Burnin (1973) e Survival (1979). Desta forma, a música reggae em sua plenitude será entendida através de seu elemento de autonomia. Embora essas obras sejam também uma objetivação do conteúdo social, elas apresentam autonomia relativa face à realidade exterior, o que lhe possibilita transcender o espaço e o tempo. O caráter emancipatório dessas canções é entendido aqui através da capacidade que essas obras têm de atuar sob dupla face: ser portadora de um conteúdo estético no qual se afirmam elementos de negação das situações de opressão dominantes; e, por outro lado, vislumbrar outra realidade, projetando outras possibilidades sociais (BLOCH, 2006). A busca por entender de modo mais aprofundado a proposta estética 42 deste cantor/compositor, sobretudo naquilo que apresenta em seu conteúdo emancipatório e contestatório em relação à realidade social, é o que a torna esse objeto passível de uma abordagem eminentemente sociológica. Por sua vez, tem por tônica fundamental compreender a emancipação enquanto expressão objetiva do momento histórico da música em seu caráter particular, o que se mostra possível desde que se aborde essas obras de arte em seu caráter antecipatório de um futuro social utopicamente desejado. 42 Quando nos referimos ao caráter estético o fazemos com base na proposição de Roger Bastide que cunhou o conceito de estética sociológica, compreendendo que a forma estética encerra um conteúdo social interno e mantêm uma viva relação de reciprocidade com a sociedade (BASTIDE, 1979). 72 As músicas de Bob Marley ao destacar-se justamente pela abordagem do cotidiano vivido pelas camadas oprimidas da população jamaicana, que ocupavam os chamados “bairros de lixo” (Trench Town), ganhou força pelo modo como representou profundamente a realidade social e as adversidades vividas geralmente por esta população marginalizada. Nesses locais, predominavam diversos problemas sociais como violência, fome, miséria e desemprego, e as letras das músicas de Marley, além desta inclinação crítica inicial, ganhariam ainda elementos religiosos alicerçados no Rastafarismo, religião adotada pelo músico e que, dentre outras coisas, denunciava o sistema de opressão vivenciado pela população pobre negra. Aliás, esse conteúdo contestatório do reggae apresenta um potencial antecipatório/utópico, que nos leva a princípios dinâmicos de esperança (BLOCH, 2006), conduzindo-nos a agir diretamente na realidade imediata para que possamos ultrapassar essa cotidianidade e alcançar o futuro potencial representado na música. A teoria da utopia desenvolvida por Bloch fundamenta a concepção de emancipação que nós utilizaremos na análise do reggae, na medida em que o autor recupera as discussões sobre a esperança contida no conceito de utopia, estando essa categoria inerente ao movimento dialético do conhecer-se a si mesmo. Para chegar a esse produto Bloch articula a filosofia da práxis de Marx e a ontologia da “consciência antecipadora” ao que “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo, o homem, compreendido como um ser ainda em formação é remetido em direção ao futuro, ao novum, ao devir. Ao analisar esteticamente o conteúdo emancipatório do legado musical de Marley, busca-se desvendar se de fato encontra-se nas suas composições um conteúdo da crítica ao presente e de antecipação de um mundo futuro, e de que maneira tal conteúdo está relacionado com algumas expressões sociais, como as de raça, trabalho, marginalização e religião. Para Bloch, esse caráter utópico/emancipatório nas artes surge dos sonhos diurnos que se originam do desejo de ultrapassar as condições objetivas no mundo social. Esses sonhos diurnos antecipatórios são guiados pelo impulso de auto-expansão em direção frontal, o que significa que esse sonho diurno tido como prelúdio da arte vislumbra a melhoria do mundo. Esse elemento antecipatório que nasce da vida cotidiana é apropriado pela consciência, e nisto consiste sua natureza utópica (BLOCH, 2005). Sobre a música em particular, E. Bloch pondera que o sonho diurno penetra na composição musical e torna parte dela a expansão do mundo, atuando como sonho dinâmico e expressivo, tornando-se um além, transgredindo os limites da forma da 73 música em tempos de coisificação do mundo. A categoria utopia apresenta tanto o sentido habitual, justificadamente depreciativo, trazendo consigo limitações à sua objetivação o que pode nos remeter à idéia de fantasia, inatingibilidade ou ilusão, quanto também contém outro sentido que de modo algum é necessariamente abstrato ou alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado a ele, a práxis, carregado pelo princípio de objetividade, no sentido de romper com o curso natural dos acontecimentos e de um dado real (BLOCH, 2005). Neste sentido, diante de uma sociedade regida pelo imediatismo de uma realidade dominada pela razão instrumental, a relação dialética do sujeito com a natureza historicamente constitui-se enquanto uma relação de dominação da natureza e da própria humanidade. Decorrente da divisão do trabalho, a relação dialética de dominação aliena o sujeito de tal modo que este se torna um ser estranhado à natureza e aos homens, mesmo fazendo parte da própria natureza. Portanto essa natureza é uma unidade, embora com sua complexa diversidade natural, a tentativa de separação das suas diversas partes culmina na transformação da realidade em uma unidade fragmentada, na qual o processo de dominação da natureza envolve a dominação humana, ganhando significado a partir da potencialidade de objetivos funcionais. Há uma subjugação da natureza tanto em relação à negação da própria natureza humana, quanto em relação aos aspectos da natureza exterior à humanidade. O homem passa a negar tanto a sua própria natureza, quanto a totalidade da natureza. Horkheimer (2002) busca abordar essa alienação do homem em relação ao natural por via da razão presente na sociedade industrial, que no processo de centralização da subjetividade pragmática, subjuga a natureza, desembocando em um eclipse, em uma perda momentânea da luz, fazendo-nos mergulhar na sombra e na barbárie. Já Lukács (1959) caracteriza esta época pelo definhamento da razão e a ascensão da decadência intelectual e moral na sociedade burguesa. No entanto, Bloch percebe a necessidade de superar essa perda de si e da natureza por parte da humanidade, sugerindo: “[...] necessitamos de um telescópio mais potente, o da consciência utópica afiada, para atravessar justamente a proximidade mais imediata, assim como para atravessar o imediatismo mais imediato, em que ainda reside o cerne do encontrar-se e do estar-aí, no qual está simultaneamente todo o nó do mistério do mundo.” (BLOCH, p.13, 2006) 74 A perspectiva de Bloch concebe a música como expressão eminentemente social que está ligada diretamente à objetividade da realidade devido a sua gênese criadora ter seu centro na materialidade das relações humanas, mas, ao mesmo tempo, esta arte constitui-se em um intervalo para os pensamentos e elaborações pré-conscientes que antecipam seus termos ao captar, no presente, os primeiros elementos formadores de sua manifestação, restando à canção desenvolver uma compreensão daquilo que há de mais profundo no futuro. Este ponto se mostra fundamental ao estudo da extensão e dos limites deste caráter emancipatório na música de Bob Marley. Ao investigarmos a representação do reggae deste jamaicano que conquistou públicos, internacionalmente, com suas músicas e letras politicamente combativas, descobrimos suas composições enquanto alternativa de negação emancipatória das agruras do mundo capitalista moderno. Desta forma, a música reggae conforma algo bastante peculiar: enquanto expressão subjetiva desvela elementos da constituição afetiva do ser humano, permitindo, assim, emergir os afetos expectantes. Muito embora, essa música devido ao seu conteúdo político, não se limite a refletir os aspectos afetivos referentes à subjetividade do artista, é certo que apresenta capacidade de transgressão, até mesmo da perspectiva do artista que consegue criar representações que se universalizam ao atingir a sua sociedade e ao mundo que lhe contém. Essas canções embora representem um conteúdo subjetivo estão ligadas aos interesses comuns, distanciando-se em sua síntese do interesse particular do artista. 3.1. Entre a contestação e a utopia: representação da emancipação humana nas músicas de Bob Marley A história da utopia por muito tempo se restringiu aos prelúdios elaborados e limitados aos pensamentos mais íntimos e particulares dos indivíduos, mas com o avançar das utopias sociais que buscavam refletir de forma latente e tenaz as esperanças coletivas, cada vez mais essas predileções passam a ser objetivadas nas mais variadas formas de expressão humana: ciência, arte e política. As utopias sociais são pulsões que conduzem a sonhos coletivos, aqueles que expressam não somente as tendências, mas as reações das pessoas frente a uma realidade considerada insuportável, motivo pelo qual devem ser considerados no contexto histórico que os explica e justifica. Bloch salienta que todos estes sonhos têm em comum a imagem final de um mundo mais perfeito, 75 visto terem constituição superior àquelas conhecidas empiricamente. No entanto, o autor diferencia os espaços nos quais emergem esses sonhos quanto à sua pré-aparência, pois todos eles, exceto as obras de arte, partem de princípios abstratos, ou seja, sua préaparência não parte daquilo que já existe no mundo. Somente as obras de arte “mostram essencialmente uma pré-aparência tomada da realidade, construída a partir do seu próprio objeto em plena forma” (BLOCH, 2006, p. 24). Contudo, isto não implica em algo “estático”, uma vez que o olhar dirigido para o pré-figurado na arte sempre se altera, sendo diversamente concreto, visto que expressa ideias, valores e possibilidades diferentes para pessoas diversas. Neste contexto, as músicas de Bob Marley despontam assumindo para si um conteúdo estético ancorado pela utopia social estabelecendo uma relação entre música e política permeada por um conteúdo que mescla contestação e utopia. Desta forma, podese verificar nas composições do músico jamaicano diversas questões que florescem em seus arranjos musicais: a contradição vivenciada na sociedade moderna e o princípio de esperança de uma condição humana melhor para todos. A necessidade de confronto social apresentava-se nas músicas refletindo os sentimentos dos negros pobres que sobreviviam em meio ao fratricídio político pós-independência, escassez econômica, mazelas sociais; mesmo em meio a uma vivência permeada por esses aspectos severos, criou-se um ambiente estético que além da denúncia estava acompanhado por uma sensação pulsante de escape. Esse conteúdo emancipatório presente nas canções são criadas a partir do momento que são decididos os elementos formativos da produção musical enquanto álbum. Cada álbum tem o seu conceito, constituído pelas canções que devem se somar para formação da identidade que o artista pretende imprimir na totalidade, desta forma, compondo a sua face conceitual. Os álbuns de Bob Marley foram produzidos a partir de um princípio conceitual, normalmente formando discos cuja maioria das músicas contribui para os mesmos efeitos e desdobramentos temáticos. Os principais conceitos utilizados pelo músico estão ligados à negação, à resistência e à rebelião contra as expressões da opressão do mundo capitalista – executadas como a necessidade de queimar a Babilônia -, ou mesmo, relacionada à salvação, ligadas às idéias de um paraíso reservado ao povo negro alicerçados no Rastafarismo. Nos quatro discos que nós analisamos cada qual apresenta de forma política peculiar questões que incidem sobre o processo de contestação da sociedade capitalista e sobre a utopia de outro tipo de sociabilidade humana, sobretudo aquela desenvolvida por meio dos princípios do 76 rastafarianismo, que buscam potencializar melhores condições de vida para a população negra e pobre. Muito embora, os álbuns de Bob Marley tenham um conceito que guie por via da música os elementos constituintes da canção, cada parte que compõe essa totalidade musical tem suas peculiaridades, o que garante a autenticidade de cada obra a partir da particularidade estética presente no conteúdo e na forma da composição musical. Todavia, os aspectos expectantes presentes na expressão estética da canção vão além do seu conteúdo conceitual fundante, evidenciando com maior profundidade seus aspectos contestatórios e utópicos. A emancipação humana presente nas músicas dos quatro álbuns analisados tem por seu elemento impulsionador os afetos expectantes negativos – o medo, o pavor e o horror – e os positivos – esperança e confiança – do compositor a respeito da sociedade capitalista. Nelas estão presentes os sonhos subjetivos de Bob Marley, enquanto singularidade criadora, mas essas obras de artes contêm um conteúdo universalizante, que se objetiva trazendo sonhos que despertam os sujeitos sociais para lutarem por melhores condições de vida, trazendo um contexto temporal cujo conteúdo é o futuro. Essas canções despontam com iminente conteúdo de critica à realidade social, cuja cadente intenção expectante traz a ação de transformação da sociedade vigente como o seu maior e mais forte componente. Essas canções em sua abrangência expressam de que maneira as questões referentes às angústias e medo se tornam esteticamente em esperança e negação da ordem social vigente. O percurso de Bob Marley aos poucos, entre as décadas de 1960 e 1970, ia ganhando espaço nas mais diversas regiões geográficas, e em distintos regimes políticos e culturas. Mesmo os países com bases étnicas e culturais bastante diferentes acabaram aderindo aos encantos estéticos de suas músicas. O ápice de seu processo de universalização está na repercussão do álbum “Survival” (1979) gravada pelo Island Record, que também gravou outros álbuns como “Catch a Fire” (1973), desta forma, por meio de um conteúdo que conseguia tanto denunciar questões muito peculiares do povo jamaicano, quanto trazer elementos humanísticos universais, tais como problemas da luta por emancipação, contestações, lutas religiosas, conteúdos conquistaram os mais diversos públicos, o anti-racismo etc. Esses o reggae deixava de ser uma representação popular dos países periféricos e ganhava espaço como expressão de resistência em todo mundo. 77 Essa acepção estética tem no álbum “Soul Rebels” (1970), o primeiro disco de reggae de Bob Marley junto com The Wailers que foi lançado fora da Jamaica, produzido por Lee Perry, uma de suas vias de expressão. Esse álbum foi relançado em uma série de vezes em vários rótulos diferentes. A primeira edição no Reino Unido foi lançada pela Trojan Records. Esse primeiro lançamento continha apenas: violão, baixo, bateria, órgãos eletrônicos, chifres e vocais. Esse disco traz como elemento conceitual a característica política e transgressora da rebeldia do povo, que está presente em algumas canções como "Soul Rebel": Soul Rebel I'm a rebel, soul rebel. I'm a capturer, soul adventurer. I'm a rebel, soul rebel. I'm a capturer, soul adventurer. See the morning sun, the morning sun, On the hillside. If you're not living good, travel wide, You gotta travel wide. Said I'm a living man, And I've got work to do. If you're not happy, children, Then you must be blue, Must be blue, people say. I'm a rebel, let them talk, Soul rebel, talk won't bother me. I'm a capturer, that's what they say, Soul adventurer, night and day. I'm a rebel, soul rebel. Do you hear them lippy. I'm a capturer, gossip around the corner, Soul adventurer. How they adventure on me. But, see the morning sun, the morning sun, On the hillside. If you're not living good, travel wide, You gotta travel wide. Said I'm a living man, I've got work to do. If you're not happy, then you must be blue, Must be blue, people say. I'm a rebel, soul rebel. 78 I'm a capturer, soul adventurer. Do you hear me? I'm a rebel, rebel in the morning. Soul rebel, rebel at midday time.43 Essa canção desponta trazendo em sua poesia uma síntese entre a negação da realidade vivenciada pelos jovens jamaicanos e o conteúdo de afirmação daqueles sujeitos históricos quanto à sua capacidade de transformação dessa realidade. Desta maneira, a sua poesia faz um chamado à reação contra a ordem que nos aprisiona, conclamando à liberdade. Essa ação libertadora aparece nas entrelinhas da música por via do potencial contido nas próprias almas lutadoras dos jovens, que encontram sua materialização em movimentos transgressores por via da música, como foi o caso de Bob Marley e dos músicos do grupo “The Wailers”, ou por via da força e violência empregada pelos jovens de grupos como os “Rudes Boys”, ou mesmo por meio da religião rastafári. O conteúdo estético da música contém em sua poesia a potencialidade de pulsar com os versos sou rebelde, aludindo a um aventureiro que luta pela transformação da conjuntura em que está inserido em todo o momento de sua vida, convertendo-se em obstinado caçador de outra realidade social. Ao olhar o conteúdo poético da aclamação “Soul Rebel” pode-se verificar a representação que a juventude tem nos processos de mudança daquele período histórico limitada pela ordem capitalista. Uma juventude, que na análise de Bloch (2006), está ligada às transformações necessárias de um período histórico, que tem a virtualidade de ultrapassar com sua capacidade de produção criativa, as barreiras de um período que limita seus anseios, levando a sociedade a uma emancipação histórica. É possível verificar no chamado de Bob Marley aos, rebeldes a importância que é depositada na existência da força transformadora presente na juventude, na sua representação musical e em cada jovem florescerá o alvorecer, o esperado, a voz do amanhã. Estes sujeitos seriam fios condutores da agitação que moverá a estrutura, ultrapassando o que até 43 Soul Rebel: Eu sou um rebelde, uma alma rebelde / Eu sou um caçador, aventureiro da alma / Eu sou um rebelde, uma alma rebelde / Eu sou um caçador, aventureiro da alma / Veja o sol da manhã, o sol da manhã / Ao lado da montanha / Se você não está vivendo bem, viaje, / Você tem que viajar / Disse que sou um homem que vive / E tenho trabalho a fazer / Se você não está feliz, criança, / Então você deve estar triste / Deve estar triste, as pessoas dizem. / Eu sou um rebelde, deixe eles falarem, / Alma rebelde, falar não me incomodará / EU sou um caçador, dia e noite / Eu sou um rebelde, uma alma rebelde. / Você os ouve? / EU sou um caçador, diga para todos. / Aventureiro da alma. / Como eles se aventuram em mim. / Veja o sol da manhã, o sol da manhã / Ao lado da montanha / Se você não está vivendo bem, viaje, / Você tem que viajar / Disse que sou um homem que vive / E tenho trabalho a fazer / Se você não está feliz, criança, / Então você deve estar triste / Deve estar triste, as pessoas dizem. / EU sou um rebelde, uma alma rebelde. / Sou um caçador, uma alma caçadora. / Você me ouve? EU sou um rebelde, rebelde da manhã. / Alma rebelde, rebelde ao meio dia. (Tradução: http://www.vagalume.com.br/bob-marley/soul-rebel-traducao. html#ixzz2vVBE9inx). 79 aquele momento seria o mundo da Babilônia. A juventude rebelde se apresenta entre um verso e outro como um ser que tem asas para superar e libertar a sociedade. Não obstante, Marley, ao tratar em sua obra dessa capacidade emancipatória que uma vez se encontra na juventude, como algo pulsante, luminoso, ao menos consolador diante dos olhos, não a restringe ao critério cronológico fixado na faixa etária, os rebeldes são a juventude que sempre vai atrás das melodias do seu sonhar, espera encontrá-las, conhece as duras condições de existência humana, mas aguarda a liberdade que está adiante. O rebelde é um sujeito que tem esperança nos elementos que alimentam a sua existência. As condições humanas disseminadas na sociedade moderna precisa de uma reação. A atitude de resistência é cantada por Marley em “Reaction”: Reaction Talking 'bout reaction yeah yeah yeah Talking 'bout attraction yeah yeah yeah Said i'm gonna rock on you yeah yeah yeah From shanti town yeah yeah yeah Yeah yeah yeah In every little action yeah yeah yeah There's a reaction yeah yeah yeah You don't don't don't get that soul no no no You don't get that soul no no no In every little action yeah yeah yeah There's a reaction yeah yeah yeah Said i'm mama rock on you yeah yeah yeah From shanti town yeah yeah yeah Yeah yeah yeah Said i'm mama rock on you yeah yeah From shanti town yeah yeah yeah44 A resistência cantada nos versos de “Reaction” torna inteligível como as relações angustiantes, carregadas de medo e de terror, nutridas pela sociabilidade humana moderna na América Central, agem como afetos expectantes de uma reação às privações impostas pelas classes dominantes à maioria pobre da sociedade. Desta forma, 44 Reação: Falando sobre reação yeah yeah yeah / Falando sobre atração yeah yeah yeah / Disse que eu vou balançar / em você yeah yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah / Yeah yeah yeah / Em cada pequena ação yeah yeah yeah / Há uma reação yeah yeah yeah / Você não não não entendo que a alma não não não / Você não tem alma que não não não / Em cada pequena ação yeah yeah yeah / Há uma reação yeah yeah yeah / Disse que eu estou rocha mãe em você yeah yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah / Yeah yeah yeah / Disse que eu estou rocha mãe em você yeah yeah / De shanti cidade yeah yeah yeah. (tradução: http://www.vagalume.com.br/bob-marley/reactiontraducao.html#ixzz2vgpyyz9I). 80 esses sentimentos negativos – angústia, medo e terror – apresentam sua face positiva ao se apresentarem em sua aparência de confronto direto, manifestada por via da ação e da reação. Decerto, a importância que o reggae de B. Marley emprega nessa juventude transgressora tem suas causas nos moldes estabelecidos na América Central pelo sistema de exploração capitalista. Pode-se observar nas composições como se refigura, de forma enfática, a insatisfação com os padrões dominantes na sociedade que não oferece nenhuma alternativa às suas dores. O eu-lírico canta um sentimento de angústia e insatisfação daquele povo com todas as contradições sociais, na forma áspera e dura que os pobres e negros são marginalizados nas terras que foram concebidas. Essas letras abrem espaço na contestação para o surgimento do novo. De acordo com Bloch (2006), a esperança real surge quando o ser está disponível para o que há de novo diante de si, para o que há em tendência e em latência no mundo. Intenção, anseio, expectativa e esperança são as primeiras manifestações do que está diante de nós. O novum é o despontar do que está diante de nós. O ser está sempre em processo e, como um ser inacabado, o espanto vem da latência do vir-a-ser em ação e da antecipação do ser futuro. O ser que está sempre em movimento e em modificação “tem esse poder-vir-a-ser inconcluso, esse ainda-nãoestar-concluído tanto na sua base quanto no seu horizonte”. Desta forma, percebe-se que a angústia presente na letra não traz como produto o ceticismo na resolução de tais problemáticas, é um sentimento angustiante que leva à contestação que traz consigo o novum, a um mundo repleto de disposição para algo, latência de outra forma de sociabilidade que supere aquelas presentes na Babilônia, criando um mundo mais adequado para todos, sem dores indignas, angústia, autoalienação. O impulso básico da fome, presente na canção, carregado pelo olhar sobre a privação e a miséria, conduz à Esperança voltada para frente e à descoberta do ainda não existente que se anuncia como um querer necessário: um mundo sem miséria e fome representada nas frases cantadas: “Eu estou no meu caminho / Para a felicidade / Onde eu posso encontrar / Um pouco de paz e descanso”. Essa resposta apresentada enquanto atitude de oposição é carregada pelos afetos expectantes negativos do regime cruel da sociedade capitalista que não é nem um pouco afável com a maioria de sua população, desprezando suas peças mais preciosas, os seres humanos, e cuida da pedra que se tornou o principal elemento de riqueza: a mercadoria. 81 Cornerstone The stone that the builder refused Will always be the head cornerstone The stone that the builder refused Will always be the head cornerstone You're a builder, oh, la di la Here I am a stone Don't you think and refuse me 'Cause the things people refuse Are the things they should refuse Do you hear me? Hear what I say The stone taht the builder refused Will always be the head cornerstone The stone that the builder refused Will always be the head cornerstone I can be soft as a pillow Weep like a willow Caress and bring happiness Don't refuse me, don't you refuse Don't, don't, don't you refuse45 Ao ressaltar a pedra, o que se recusa para construir algo é essencial para a vida, os seres humanos, recusa que pode percebida na sociedade jamaicana e em diversas partes do mundo através das opressões de classe, raça, gênero, que distancia a sociedade daquilo que é a sua essência transformadora, que na visão marxista é a capacidade do homem de transformar a natureza e com isso satisfazer suas necessidade e desenvolver as forças produtivas. Ao viver em uma sociedade cuja segregação nega o ser humano a partir da cor de sua pele, do seu gênero, descarta-o na miséria dependendo da classe na qual se encontra, a sociabilidade capitalista está negando sua matéria principal de desenvolvimento. Essas relações chamam os sujeitos guerreiros à reação, para impedir a extinção de seu povo é necessário revoltar-se contra os maus tratos, como na lei romana de Talião, olho por olho, dente por dente, é assim cantada: Try Me Try me [try me] Try me [try me] Try me [try me] 45 Pedra Angular: A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / Você é um construtor, oh, querida / Aqui estou eu uma pedra / Você não pensa e me recusa / Porque as coisas que as pessoas recusam / São as coisas que se deviam escolher / Você me ouve? Escute o que eu digo / A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / A pedra que o construtor recusou / Sempre será a pedra principal / Eu posso ser suave como um travesseiro / Chorar como um salgueiro / Conforte e me traga felicidade / Não me recuse, não se recuse / Não, não, não se recuse. 82 Try me [try me] Try me [try me, try me] Try me [a wah wah wow] Try me [try me, try me] When the hurt is strong And everything you do is wrong You need someone to comfort you Well, listen baby, I'll come first to you, so Try me [try me, try me] Try me [a wah wah wow] Try me [try me, try me] Try me [a wah wah wow] If you need satisfaction Listen baby, I've got the action Where I am, that's where it's at So, listen baby, it's tit for tat, so Try me [try me, try me] Try me [a wah wah wow] Try me [try me, try me] Try me [a wah wah wow] Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh One more thing I'd like to say right here Try me [try me, try me] One more thing I'd like to say right here Try me [try me, try me] Need good lovin' I'm black [try me] coming Yes I'm black [try me] and I'm coming Try me, try me46 O sistema capitalista oprime o povo, Try me, desta forma é preciso resistir, agir, de frente para combater suas mazelas. Mas os problemas trazidos pelas almas dominantes não se apresentam apenas nas condições objetivas do povo. Existe toda uma amálgama que liga as almas do povo à classe dominante, é preciso dizer não à felicidade na Babylonia, é preciso despertar o povo da ilusão que é criada pelos donos do poder, e 46 Try me: Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente] / Me tente [me tente, me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Quando o machucado é forte / E tudo que você faz é errado / Você precisa de algúem pra te confortar / Bem, escute baby, eu irei primeiro pra você, então / Me tente [me tente,me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Se você precisa de satisfação / Escute baby, eu tenho ação Onde eu estou, é onde isso está / Então, escute baby, olho por olho, então / Me tente [me tente,me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Me tente [me tente, me tente] / Me tente [a wah wah wow] / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Woo, woo-ooh, woo, woo, woo-ooh / Mais uma coisa que eu gostaria de dizer bem aqui / Me tente [me tente, me tente] / Mais uma coisa que eu gostaria de dizer bem aqui / Me tente [me tente, me tente] / Preciso de bom amor / Eu sou negro [me tente] indo / Sim eu sou negro [me tente] e estou indo / Me tente, me tente. 83 o antidoto está no ritmo do reggae, é preciso que o povo se una em busca da vitória, contra as amarras que não só aprisionam materialmente, mas que cria ilusões nas mentes. Por isso, Bob Marley compôs: Soul Almighty Hey happy people, this here is something new I know you're gonna like it So let me tell you what we're gonna do Souls almighty [uh] Don't you know we got the rhythm Souls almighty [oh] We are willing Funky, Funky Chicken [ooh] And the Mashed Potato Do the Alligator Let's do it together Souls almighty Do you dig me ya'll Souls almighty, my soul is raw [ooh-ee yeah] Get yourself together In any kind of weather Things will be mighty better If you get it together [witness] Souls almighty [ooh] Don't you know we got the rhythm Souls almighty [exactly when baby] [You're not with him] Get yourself, yourself together In any kind of weather [I'll come home baby] Things will be mighty better If we, if we get it together Souls, don't you know we got the rhythm Hit it brother Souls Almighty O' baby, when you're not with him Funky, Funky Chicken And the Mashed Potato [oh] Do the Alligator Do it together ya'll [uh] Shocks of [mighty] Souls and shocks, souls and shocks We got, we got, we got the rhythm Sing your song brother My baby's with him, ooh Get yourself together In any kind of weather Things will be mighty better.47 47 Alma Todo-Poderoso: Olá pessoas felizes, isso aqui é algo novo / Eu sei que você vai gostar / Então deixe-me dizer o que vamos fazer / Almas todo-poderoso [uh] / Você não sabe que nós temos o ritmo / Almas todo-poderoso [oh] / Estamos dispostos / Funky, Funky Chicken [ooh] / E o purê de batata / Fazer o Jacaré / Vamos fazer isso juntos / Almas poderosas / Você me ya dig / Almas todo-poderoso, minha alma é cru / [Ooh-ee yeah] / Obter-se juntos / Em qualquer tipo de clima / As coisas vão ser poderoso melhor / Se você conseguir isso juntos [testemunha] / Almas todo-poderoso [ooh] / Você não sabe que nós temos o ritmo / Almas todo-poderoso [exatamente quando o bebê] / [Você não está com ele] / Obter-se, a si mesmo em conjunto / Em qualquer tipo de clima [eu vou vem o bebê] / As coisas vão ser poderoso melhor / Se nós, se chegarmos juntos / Almas, que você não sabe que temos o ritmo / Batê-lo 84 No entanto, os afetos expectantes negativos presentes são projetados com um lastro criado pela pulsão da esperança não cedendo o seu futuro ao fracasso. É preciso confiar que ainda há salvação no horizonte: “Onde há perigo, cresce também o que salva” (BLOCH, apud HÖLDERLIN, 2005, sp). De tal maneira a esperança acaba assumindo nas obras do canto um afeto prático, militante, que vai crescendo a cada álbum. O disco “Catch a Fire” (1973) é a estréia em uma grande gravadora da banda de reggae The Wailers, lançado pela Island Records. Ele tem por característica a ênfase no conteúdo de caráter social e militante, além dos temas controversos e uma visão otimista em relação a um futuro livre de opressões fundamentado pelos lemas do Rastafarismo. A maioria de suas letras destaca algum aspecto expressivo da opressão do sistema capitalista, quer seja nesse atual sistema “babilônia”, quer seja dos resquícios de escravidão, quer seja nas relações amorosas entre homem e mulher. O álbum se inicia com duas canções com um conteúdo político bastante forte: "Concrete Jungle" uma denúncia do sistema capitalista; e "Slave Driver" que apresenta o processo de escravidão vivenciada por um trabalhador. Concrete Jungle No sun will shine in my day today (No sun will shine.) The high yellow moon won't come out to play (Won't come out to play.) Darkness has covered my light (and has changed,) And has changed my day into night Now where is this love to be found, won't someone tell me? 'Cause life, sweet life, must be somewhere to be found, yeah Instead of a concrete jungle where the livin' is hardest irmão / Almas Todo-Poderoso / O bebê, quando você não está com ele / Frango, Funky Funky / E o purê de batata [oh] / Fazer o Jacaré Fazê-lo juntos ya [uh] / Choques de [poderoso] / Almas e os choques, as almas e os choques / Temos, nós temos, nós temos o ritmo / Cante sua canção irmão / Meu bebê está com ele, ooh / Obter-se juntos / Em qualquer tipo de clima As coisas vão ser poderoso melhor. 85 Concrete jungle, oh man, you've got to do your best, yeah. No chains around my feet, but I'm not free I know I am bound here in captivity And I've never known happiness, and I've never known sweetcaresses Still, I be always laughing like a clown Won't someone help me? Cause, sweet life, I've, I've got to pick myself from off theground, yeah In this here concrete jungle, I say, what do you got for me now? Concrete jungle, oh, why won't you let me be now? I said life, sweet life, must be somewhere to be found, yeah Instead of a concrete jungle, illusion, confusion Concreate jungle, yeah Concrete jungle, you name it, we got it, concrete jungle now Concrete jungle, what do you got for me now48 Slave Driver Ooh-ooh-oo-ooh. Oo-oo-ooh! Oo-oo-ooh. Slave driver, the table is turn; (catch a fire) Catch a fire, so you can get burn, now. (catch a fire) Slave driver, the table is turn; (catch a fire) Catch a fire: gonna get burn. (catch a fire) Wo, now! Ev'rytime I hear the crack of a whip, My blood runs cold. I remember on the slave ship, How they brutalize the very souls. Today they say that we are free, Only to be chained in poverty. 48 Selva de Concreto: Nenhum sol vai brilhar no meu dia hoje (Nenhum sol vai brilhar) / A alta lua amarelada não sairá pra brincar (não sairá pra brincar) / A escuridão tem coberto minha luz (e transformou) / E transformou meu dia em noite / Agora aonde o amor está e pode ser encontrado? / Alguém vai me contar? / Pois a vida, doce vida, deve estar em algum lugar para ser encontrada / Ao invés de selva de concreto onde viver é tão mais difícil! / Selva de concreto, cara, você tem de dar tudo de si, sim. / Mesmo sem correntes nos pés, mas não estou livre... / Sei que estou aqui, amarrado e cativo / Jamais conheci a felicidade, e nunca soube o que é uma doce carícia / Vou sempre gargalhar como um palhaço / Ninguém vai me socorrer porque / Devo me erguer sozinho deste chão / Nesta selva de concreto / Eu digo, o que você tem agora para mim? / Selva de concreto, Ah não vai agora me deixar na mão... / Eu disse que a vida deve ser um lugar para ser encontrada, sim / Em vez de uma selva de concreto, ilusão, confusão / Selva de concreto, sim / Selva de concreto, você nomeou isso, você teve isso, agora selva de concreto / Selva de concreto, o que você tem pra min agora? 86 Good God, I think it's illiteracy; It's only a machine that makes money. Slave driver, the table is turn, y'all. Ooh-ooh-oo-ooh. Slave driver, uh! The table is turn, baby, now; (catch a fire) Catch a fire, so you can get burn, baby, now. (catch a fire) Slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire) Catch a fire: so you can get burn, now. (catch a fire) Ev'rytime I hear the crack of a whip, My blood runs cold. I remember on the slave ship, How they brutalize the very soul. O God, have mercy on our souls! Oh, slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire) Catch a fire, so you can get burn. (catch a fire) Slave driver, the table is turn, y'all; (catch a fire) Catch a fire ...49 A música “Concrete Jungle” e “Slave Driver” realizam uma representação direta e pulsante dos problemas nas cidades capitalistas, ou melhor, na selva de pedra. Na sua letra a denúncia aberta à forma como a ordem burguesa destrói todas as formas de sociabilidade humana, mesmo não estando mais no regime no qual os negros eram tratados como mercadorias, não há liberdade, pois as relações de dominação continuam destruindo as pessoas não vivem como amor, lazer, não se vive feliz, a sociedade está entregue às ilusões e à confusão. Ao mesmo tempo, a canção abre espaço para a esperança, ao reivindicar à própria sociedade o que é digno, “Eu disse que a vida deve ser um lugar para ser encontrada, sim”, é preciso revolucionar essa sociedade, fazendo-a queimar junto com a memória das mazelas que ela trouxe para o povo. Já em se tratando de “Burnin” (1973) e “Survival” (1979), o primeiro trabalho começa com uma canção assinada, um chamado e incentivo à ação, "Get Up, Stand Up" sendo a obra em sua totalidade impregnada de um teor de confronto e preocupação com as questões militares e políticas em território africano, tendo grande importância política para a Jamaica; e o segundo trabalho apresenta algumas controvérsias de caráter político, inicialmente o disco foi nomeado de Black Survival, para sublinhar a urgência 49 Escravo: Ooh-ooh-oo-ooh! Oo-oo-ooh! Oo-oo-ooh. / Escravo, a mesa está virada; (Toca fogo) / Toca fogo, assim você pode se queimar, agora. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada; (Toca fogo) / Toca fogo: Vou começar queimar. (Toca fogo) Wo, agora! / Todo o tempo ouço o crack de um chicote / Meu sangue corre frio. / Lembro-me sobre os navios negreiros, Como eles brutalizam a própria alma. / Hoje dizem que somos livres, / Só para ser encadeados na pobreza. / Bom Deus, eu acho que é o analfabetismo; / É apenas uma máquina que faz dinheiro. / Escravo, o quadro é transformar, vocês todos. Ooh-ooh-oo-ooh. / Escravo, uh! O quadro é transformar, baby, agora; (Toca fogo) / Toca fogo, assim você pode se queimar, baby, agora. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada, vocês todos; (Toca fogo) / Toca Fogo: Assim você pode se queimar, agora. (Toca fogo) / Todo o tempo ouço o crack de um chicote, / Meu sangue corre frio. / Lembro-me sobre os navios negreiros, / Como eles brutalizam a própria alma / Ó Deus, tem piedade de nossas almas! / Oh,escravo, a mesa está virada, vocês todos; (Toca fogo) / Toca fogo, assim você pode se queimar. (Toca fogo) / Escravo, a mesa está virada, vocês todos; (Toca fogo) / Toca fogo... 87 da unidade africana. Esse foi o primeiro disco de uma trilogia que conta com o “Uprising” e o póstumo “Confrontation”. Ele traz na capa as bandeiras de diversos países da África que se libertaram do colonialismo no século XX. O álbum conta com canções como “Babylon System”, “Ambush in the Night” e “Wake Up and Live”, que nos remete a uma crítica ao sistema capitalista e às suas formas de poder, que marginalizam a população pobre e negra na Jamaica e na África. Esse disco foi criado com o objetivo de ditar os elementos da agenda para a batalha apocalíptica entre os rastas e a Babilônia, e tinha uma mensagem incendiária de um manifesto do tipo “não olhe para trás”. O álbum é um chamado à luta para o povo “terceiro-mundista”. Esse chamado à ação nesses dois discos está diretamente relacionado aos horizontes ditados pelos preceitos da religião rastafári na América Central, a estética das músicas serviu como veículo de disseminação de uma parte do movimento panafricanista. Para espalhar as idéias messiânicas dos rastas, os contornos religiosos encontram-se em relação direta com o impulso para a formação de uma consciência revolucionária, como idéias “transcendentes”, exprimindo uma força subversiva e tendo um efeito de transformação em relação à ordem social vigente. Esse milenarismo vem acompanhado sempre de irrupções revolucionárias, motivando os sujeitos à ação, mesmo quando esses espíritos se enfraquecem e abandona o movimento, a chama permanece latente, como um delírio e um fervor coletivos (SOUZA, 2011). Essa resistência travada nessas canções em diálogo com o rastafarianismo projeta um mundo melhor que deve ser buscado na Terra e não no paraíso após morte “Get Up, Stand Up” faz justamente esse chamado para a conquista de uma vida mais digna aqui, e que é preciso levantar e lutar por isso: Get Up, Stand Up Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight! Preacherman, don't tell me, Heaven is under the earth. I know you don't know What life is really worth. It's not all that glitters is gold; 'Alf the story has never been told: So now you see the light, eh! Stand up for your rights. Come on! 88 Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight! Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight! Most people think, Great God will come from the skies, Take away everything And make everybody feel high. But if you know what life is worth, You will look for yours on earth: And now you see the light, You stand up for your rights. Jah! Get up, stand up! (Jah, Jah!) Stand up for your rights! (Oh-hoo!) Get up, stand up! (Get up, stand up!) Don't give up the fight! (Life is your right!) Get up, stand up! (So we can't give up the fight!) Stand up for your rights! (Lord, Lord!) Get up, stand up! (Keep on struggling on!) Don't give up the fight! (Yeah!) We sick an' tired of-a your ism-skism game Dyin' 'n' goin' to heaven in-a Jesus' name, Lord. We know when we understand: Almighty God is a living man. You can fool some people sometimes, But you can't fool all the people all the time. So now we see the light (What you gonna do?), We gonna stand up for our rights! (Yeah, yeah, yeah!) So you better: Get up, stand up! (In the morning! Git it up!) Stand up for your rights! (Stand up for our rights!) Get up, stand up! Don't give up the fight! (Don't give it up, don't give it up!) Get up, stand up! (Get up, stand up!) Stand up for your rights! (Get up, stand up!) Get up, stand up! ( ... ) Don't give up the fight! (Get up, stand up!) Get up, stand up! ( ... ) Stand up for your rights! Get up, stand up! Don't give up the fight!50 50 Levante, Resista: Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta! / Pastor, não me diga, / Que o paraíso está embaixo da terra / Você não sabe quanto / A vida realmente vale / Nem tudo que brilha é ouro / Só metade da história foi contada / E então agora que você enxergou a luz, eh! / Lute pelos seus direitos. Vamos lá! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta! / Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta! / A maioria das pessoas pensa / Que o grande Deus vai surgir dos céus / Levar tudo / E fazer todo mundo se sentir elevado / Mas se você sabe o quanto vale a vida / Vai procurar o seu aqui na terra / E agora que você enxerga a luz / Lute pelos seus direitos / Levante, resista! (Jah, Jah!) / Lute pelos seus direitos! (Ph-hoo!) / Levante, Resista! (Levante, Resista!) / Não desista da luta! / Levante, Resista! (Então, nos nao podemos desistir da luta!) / Lute pelos seus direitos! (Senhor, Senhor) / Levante, Resista! / Não desista da luta! (Yeah!) / Estamos cheios e cansados do seu jogo de ismos - / Morrer e ir pro céu em nome de Jesus, Senhor. / Nós sabemos e entendemos: / O Deus poderoso é um homem vivo. / Vocês podem enganar algumas pessoas algumas vezes, / Mas não podem enganar a todos o tempo todo. / Então agora que você enxerga a luz (O que você vai fazer?), / Vamos lutar por nossos direitos! (Yeah, yeah, yeah!) Então é melhor: / Levante, Resista! (Pela manhã! Git it up!) / Lute pelos seus direitos!(Lute pelos seus direitos!) / Levante, Resista! / Não desista da luta! (Não desista, não desista!) / Levante, Resista! (Levante, 89 As lutas são por vitórias que devem ser conquistadas na terra em nome de um Deus de carne e osso. O “ainda-não-consciente” blochiano que está presente nos “sonhos diurnos”; fomentador das potencialidades imanentes do ser-humano que ainda não foram exteriorizadas, mas que possui uma força dinâmica e o projeta necessariamente para o futuro. As vitórias devem ser conquistadas dentro do contexto social, é isso que prega a música de Bob Marley: é preciso lutar, resistir, conquistar! Logo, as ilusões devem ser deixadas de lado, pois estão presentes nas imagens idealizadas do espelho de uma sociedade dominada pelo processo doloroso da moderna sociedade industrial, reificada e consumista; abandonar as ideologias, e construir uma consciência que se origine das condições históricas do próprio povo. Segundo Bloch (2006) “Onde há esperança, há religião”, esperança que não poderia faltar ao povo escravizado na América Central e que ganha materialidade nas ideias difundidas por Marcus Garvey; a escravidão representa a necessidade que ensina a rezar. “O sofrimento e a indignação estão na origem de tudo, assim que, de antemão, fazem da fé um caminho para a liberdade” (BLOCH, 2006, p. 316.). O Deus do êxodo, ou o rei dos reis, o Leão de Judá, traz consigo um imaginário que acompanha sua tribo para caminhada final rumo à Etiópia, direcionando o povo para a ação de transformação da realidade.51 Essa representação de liberdade será encontrada em "I Shot the Sheriff", "Burnin' And Lootin” e “Rastaman Chant", essas canções trazem um conteúdo de liberdade e resistência à criminalização dos elementos rastafáris como a ganja, uso da cannabis nos cultos rasta que simbolizaria a queima da Babilônia, a contestação do sistema social, e revelações como o sétimo selo, com a queda da Babilônia e com isso se volta a Zion. Resista!) / Lute pelos seus direitos! (Levante, Resista!) / Levante, Resista! (...) / Não desista da luta! (Levante, Resista!) / Levante, Resista! (...) / Lute pelos seus direitos! / Levante, Resista! / Não desista da luta. 51 A perspectiva de Bloch aponta para a luta revolucionária anterior à própria modernidade capitalista na qual o milenarismo teria um papel ativo, a permanência de elementos milenaristas no reggae e até em diversas expressões artísticas contemporâneas são indícios de um desenvolvimento não linear da supraestrutura, pois, apesar da secularização da vida cotidiana e da preponderância de relações sociais mercantilizadas, a busca por uma esfera espiritualizada pode utilizar-se de símbolos e recursos milenaristas. Um misto de consciência de classe, decorrente da percepção das contradições capitalistas, com o apelo à esfera da salvação unificam-se nessa expressão artística. 90 Burnin' And Lootin' This morning I woke up in a curfew Oh, God, I was a prisoner, too - yeah! Could not recognize the faces standing over me They were all dressed in uniforms of brutality. Eh! How many rivers do we have to cross Before we can talk to the boss? Eh! All that we got, it seems we have lost We must have really paid the cost (That's why we gonna be) Burnin' and a-lootin' tonight (Say we gonna burn and loot) Burnin' and a-lootin' tonight (One more thing) Burnin' all pollution tonight (Oh, yeah, yeah) Burnin' all illusion tonight Oh, stop them! Give me the food and let me grow Let the Roots Man take a blow All them drugs gonna make you slow now It's not the music of the ghetto. Eh! Weeping and a-wailin' tonight (Who can stop the tears?) Weeping and a-wailin' tonight (We've been suffering these long, long-a years!) Weeping and a-wailin' tonight (Will you say cheer?) Weeping and a-wailin' tonight (But where?) Give me the food and let me grow Let the Roots Man take a blow I must say: all them – all them drugs gonna make you slow It's not the music of the ghetto We gonna be burning and a-looting tonight (To survive, yeah!) Burning and a-looting tonight (Save your baby lives) Burning all pollution tonight (Pollution, yeah, yeah!) Burning all illusion tonight (Lord-a, Lord-a, Lord-a, Lord!) Burning and a-looting tonight Burning and a-looting tonight Burning all pollution tonight... 52 52 Incêndios e Saques: Esta manha acordei em um toque de recolher / Oh, Deus, eu era um prisioneiro também, yeah / Não pude reconhecer os rostos sobre mim / Eles todos estavam vestidos com uniformes de brutalidade. É! / Quantos rios nós devemos atravessar / Antes que possamos falar com o chefe? É! / Tudo que nos temos parece que perdemos / Nós devemos ter realmente pagado o preço / (É por isso que nós vamos ser) / Incêndios e saques hoje à noite / (Diga que nós vamos queimar e pilhar) / Incêndios e saques hoje à noite / (Mais uma coisa) / Queimando toda poluição hoje à noite / (Oh, é, é) / Queimando toda ilusão hoje à noite / Oh, parem eles! / Dê-me comida e deixe-me crescer / Deixe 91 Seguindo o horizonte Pan-africanista, que defendia na teoria e na prática a unidade do mundo africano, reivindicando a unificação da África e a aliança concreta e progressista com uma diáspora unida, Marley produz: "Africa Unite" e "Zimbabwe” 53. As duas canções reproduzem os anseios e o otimismo experimentado por ativistas de todo mundo após o processo de descolonização de diversos países da África no século XX54. Esses versos recuperam as expectativas geradas por esses acontecimentos na Jamaica e nos rastafáris, alimentados pelo sentimento de paixão e solidariedade, trazidos pelo potencial libertador que essas experiências poderiam significar, plenos de sonhos da criação de novas relações sociais. A primeira canção refere-se à unificação dos africanos como o caminho para liberdade no êxodo à África, a terra do pai (Jah), o paraíso na terra, como espaço fundamental de encontro do seu povo. Já a segunda apela para a revolução e a libertação da terra prometida através da luta armada, chegou a hora da batalha final. O nome “Zimbabwe” faz alusão ao país que acabara de ficar independente em 18 de abril de 1980, significando mais um avanço na unificação do continente negro. Africa Unite Cause we're moving right out of Babylon And we're going to our father's land How good and how pleasant it would be Before GOD and man, yeah To see the unification of all Africans, yeah As it's been said already let it be done, yeah We are the children of the Rastaman os homens enraizados darem um sopro / Todos eles e suas drogas vão fazer você ficar lento agora / Não é a música do gueto. É! / Lamento e um gemido hoje à noite / (Quem pode parar as lágrimas?) / Choro e um gemido hoje à noite / (Andamos sofrendo por muito, muitos anos!) / Choro e um gemido hoje à noite / (Você dirá alegria?) / Choro e um gemido hoje à noite / (Mas onde?) / Me dê comida e me deixe crescer / Deixe os homens enraizados darem um sopro / Eu devo dizer: todos eles – todos eles e suas drogas vão fazer você ficar lento / Não é a música do gueto / Vamos estar queimando e pilhando hoje à noite / (Sobreviver, é!) / Incêndios e saques hoje à noite / (Salve as vidas de seus bebês) / Queimando toda poluição hoje à noite / (Poluição, é, é!) / Queimando toda ilusão hoje à noite / (Senhor, senhor, senhor, senhor) / Incêndios e saques hoje à noite / Incêndios e saques hoje à noite / Queimando toda poluição hoje à noite... 53 O biografo White (2011), aponta que quando Marley foi à África para fazer apresentação especial no Zimbábue, encontrou com diversas versões de “Survival” sendo comercializado na Nigéria ao Senegal. 54 A Convenção dos Estados Independentes Africanos, convocada por Kwame Nkrumah em Gana em 1958, fomentou o debate sobre uma unificação federativa de todos os Estados africanos, e pavimentou o caminho para a criação da Organização da Unidade Africana (OUA) em 1963 – através da mediação, por Haile Selassie, entre o grupo favorável à federação política imediata (Gana, Egito, Guiné, Mali, Líbia e Marrocos) e o grupo favorável a uma aproximação política gradual, através da cooperação econômica (Senegal, Libéria, Nigéria, Etiópia e a maior parte das antigas colônias francesas). A Convenção dos Povos Africanos, realizada em Gana em 1958, mais uma vez sob a iniciativa de Nkrumah, inspirou movimentos de independência por todo o continente – alguns deles com financiamento ganense. (Ver: http://passapalavra.info/2010/07/26898) 92 We are the children of the Higher Man Africa, unite 'cause the children wanna come home Africa, unite 'cause we're moving right out of Babylon And we're grooving to our father's land How good and how pleasant it would be Before GOD and man To see the unification of all Rastaman, yeah As it's been said already let it be done I tell you who we are under the sun We are the children of the Rastaman We are the children of the Higher Man So, Africa, unite, Africa, unite Unite for the benefit of your people Unite for it's later than you think Unite for the benefit of your children Unite for it's later than you think Africa awaits its creators, Africa awaiting its creators Africa, you're my forefather cornerstone Unite for the Africans abroad, unite for the Africans a yard Africa, Unite.55 “Africa Unite” faz a elegia ao processo de criação de “nações” independentes na África, onde o que existia era a sociabilidade forçada de diversas etnias nos limites de um território. O processo de independência desses países, e a chegada ao poder de Selassié, são representados como o inicio da realização da utopia rastafári e da profecia de Garvey, a fuga dos povos da diáspora africana nas Américas e sua chegada à terra de sua salvação e liberdade. A unificação do continente África aparecerá como instrumento tardio de salvação do povo negro, essa letra canta o retorno dos dissidentes diretos da dinastia rasta à pátria mãe – África –, o território onde se encontrariam os antepassados fundamentais dos rastas e a zona onde ficaram sobre o governo do seu pai maior, cujo representante maior seria o imperador etíope Hailé Selassie. Dentro da mesma perspectiva do chamado à unidade dos países africanos, “Zimbabwe” convoca os negros para a ação direta como via para alcançar essa conquista: 55 África Se Una: África, se una / Porque estamos saindo da Babilônia / e estamos indo para a terra de nosso pai. / Como seria bom e agradável / diante de Deus e do homem, / ver a unificação de todos os africanos / como já tem sido dito, deixe ser feito / nós somos as crianças do homem rasta / nós somos as crianças do homem mais elevado / Portanto África se une porque nossas crianças querem vir para casa / África se une porque estamos saindo da babilônia / e nós estamos trilhando a terra do nosso pai / Como seria bom e agradável / diante de Deus e do homem / ver a unificação de todos os homens rastas, yeah / como já tem sido dito, deixe ser feito / eu te digo quem nós somos embaixo do sol / nós somos as crianças do homem rasta, / nós somos as crianças do homem mais elevado / Então África se una, se una para o bem do nosso povo / Se una pois está mais tarde do que você pensa / Se una para o beneficio de suas crianças / Te une pois está mais tarde do que você pensa / A África espera por seus criadores, a África espera por seus criadores / África você é meu antepassado fundamental / Te une para os africanos que estão no mundo, te une pelos africanos de longe / África se uma. 93 Zimbabwe Every man gotta right to decide his own destiny And in this judgment there is no partiality So arm in arms, with arms We will fight this little struggle 'Cause that's the only way We can overcome our little trouble Brother you're right, you're right You're right, you're right, you're so right We gonna fight, we'll have to fight We gonna fight, fight for our rights Natty dread it in a Zimbabwe Set it up in a Zimbabwe Mash it up in a Zimbabwe Africans a liberate Zimbabwe No more internal power struggle We come together, to over come the little trouble Soon we will find out Who is the real revolutionary 'Cause I don't want my people To be contrary Brothers you're right, you're right You're right, you're right, you're so right We'll have to fight, we gonna fight We'll have to fight, fighting for our rights Mash it up ina Zimbabwe Natty trash it ina Zimbabwe I and I a liberate Zimbabwe Brother you're right, you're right You're right, you're right, you're so right We gonna fight, we'll have to fight We gonna fight, fighting for our rights To divide and rule Could only tear us apart In everyman chest there beats a heart So soon we'll find out Who is the real revolutionaries And I don't want my people To be tricked by mercenaries Brother you're right, you're right You're right, you're right, you're so right We gonna fight, we'll have to fight We gonna fight, fighting for our rights Natty trash it ina Zimbabwe Mash it up ina Zimbabwe Set it up ina Zimbabwe 94 Africans a liberate Zimbabwe Africans a liberate Zimbabwe Natty dub it ina Zimbabwe Set it up ina Zimbabwe Africans a liberate Zimbabwe Every man got a right To decide his own destiny.56 Esta canção traz em seu conteúdo a constatação de que a libertação do povo negro africano e de seus descendentes afro-americanos das amarras do colonialismo europeu não se daria pela ação política nas metrópoles, senão pela ação militante do próprio povo deste território. Por isso, a música inicia-se lembrando ao povo negro o seu papel enquanto sujeito histórico do processo de unificação africana, seguindo o exemplo do povo de Zimbábue que se ergueu pela sua independência. É realizando, desta forma, um convite para que estes deixem a parcialidade e atuem de forma ativa na luta para que se cumpram as profecias do Rastafarismo pan-africanista. Nesse sentido, é preciso que o povo se coloque em luta para sua libertação, agindo através da luta armada como única saída possível para superação do sistema de opressão em que estão inseridos. Ao mesmo tempo, a sua letra refere-se à fragmentação do continente africano e quanto isso dificulta o processo de unificação e à luta pelo poder interno, o que nessa lógica gera segregação e divisionismo; neste momento surge na canção um clamor para que se deixem as lutas pelo poder interno no continente, fazendo-se necessário que se superem as pequenas divergências e que se coloque em movimento em prol de uma unificação em torno desta causa maior, tornando-se evidente quem são os verdadeiros 56 Zimbábue: Todo homem tem o direito de decidir seu próprio destino / E nesse julgamento não há parcialidade / Então, armas em mãos, com o exército / Vamos lutar esta pequena luta / Porque essa é a única forma / De superarmos nossos poucos problemas / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Vamos lutar, lutar pelos nossos direitos / Sendo Dread no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Arrasando no Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue / Chega de luta pelo poder interno / Nós nos unimos para superarmos o pequeno problema / Em breve descobriremos / Quem é o verdadeiro revolucionário / Porque eu não quero que o meu povo / Seja contrário / Irmãos, vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós teremos que lutar, vamos lutar / Nós teremos que lutar, lutar pelos nossos direitos / Esmague tudo no Zimbábue / Lixo horroso em Zimbábue / Africanos para libertar / Eu vou libertar o Zimbábue / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Nós vamos lutar, lutar pelos nossos direitos / Dividir e reinar / Só poderia nos separar / No peito de todos os homens bate um coração / Então logo vamos descobrir / Quem são os verdadeiros revolucionários / E eu não quero que o meu povo / Seja enganado por mercenário / Irmãos vocês estão certos, vocês estão certos / Vocês estão certos, vocês estão certos / vocês estão tão certos / Nós vamos lutar, nós vamos ter que lutar / Nós vamos lutar, lutar pelos nossos direitos / Lixo horroso em Zimbábue / Esmague tudo no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue / Baseado horroso no Zimbábue / Arme o esquema no Zimbábue / Africanos libertam o Zimbábue / Todo homem tem o direito / De decidir seu próprio destino. (Tradução: http://www.vagalume.com.br/bob-marley/zimbabwe-traducao.html#ixzz2vl9FDHY7). 95 revolucionários, aqueles que lutam não pelo poder, e sim pela libertação e unificação da África. Logo, como já exposto, prepondera na música de Marley os afetos expectantes de um processo de emancipação humana, tendo por eixo contestatório os reflexos da opressão sobre a população pobre e negra no mundo. Nesse cenário, a busca por uma solução encontrou na síntese entre política, religião e arte a força revolucionária que apela contra a ordem estabelecida. Esse conteúdo contém as experiências vividas na Jamaica e elementos da ideologia pan-africanista, o que leva Marley a defender outro mundo, mas que seria negro e no continente africano. O equívoco quanto a uma visão idílica da África não impede, no entanto, que sua canção preserve um forte apelo utópico e antecipatório de um horizonte futuro para a sociabilidade humana. 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS A música reggae de Bob Marley, com sua harmonia, carregada pelo compasso marcante do baixo, pela marcação frenética da guitarra, e pela sua letra de conteúdo crítico, apresenta-se de maneira contraditória à sociedade moderna capitalista. Primeiro como uma expressão artística contestatória de sua época e concomitantemente como a representação de sua superação. Assimila em seus elementos intra-estéticos e extraestéticos os elementos formativos do contexto, mutuamente, caracteriza-se por apontar através de uma estética insólita, representar a superação da sociabilidade vigente e precipita a existência do novo. Esse movimento de contestação e prelúdio dessas canções está presente em sua essência na forma e conteúdo estético, criadas a partir da mediação entre subjetividade e objetividade. As condições objetivas de existência do povo pobre e negro da América Central, em geral, e da Jamaica, em especifico, despontam por via da representação musical da realidade e estão presentes de forma relevante, frisada pela marcação do compasso do reggae que contém quatro tempos principais de intervalos e bases rítmicas asseguradas pela guitarra trazendo sua fruição mecânica ocasionam uma forte pulsação, que te deixa atendo, ativo. Sincronicamente, os seus conteúdos trazem uma realidade representada nas obras de Bob Marley por meio da mímese peculiar a música, realizada pela internalização das condições objetivas por meio dos sentimentos do artista, produzindo uma síntese entre fatores subjetivos e objetivos. O reggae tem como característica mais marcante a forma acentuada que traz em seu conteúdo e forma estética os aspectos antecipatórios de uma realidade desejada, para alcançar essa representação emancipatória o gênero trava uma relação muito íntima com outros aspectos da sociabilidade humana, como política, filosofia e religião, que lhes serviram de fio condutor dos aspectos expectantes que pulsam em sua representação musical da realidade social. A utopia presente de forma antecipatória no reggae precipita a promessa do novo, a felicidade prometida, embora ainda de modo fragmentário. Mesmo dentro de um contexto que se encontra mergulhado pelos ditames da indústria cultural e do processo de padronização da obra de arte, o reggae consegue, como uma dos poucos gêneros musical, manter o que é de mais essencial na produção artística: a autonomia relativa a realidade social. O que lhe viabilizou uma certa 97 liberdade no processo de composição, permitindo que florescesse uma música dotada de aspectos contestatórios e utópicos. Desta forma, o conteúdo das canções do músico jamaicano está preenchido pela peculiar realidade de desigualdade social vivenciada pelo povo pobre e negro da Jamaica historicamente, sendo marcado pelo longo processo de colonização Inglesa, alicerçada pelo escravismo do povo africano, e pelo ambíguo processo de independência, que não trouxe a liberdade e melhorias para a maioria da população daquele país, mas sim a confirmação que estavam na miséria. O reggae de Bob Marley desponta dos guetos daquela ilha nesse contexto trazendo como expressão o enfrentamento e a superação da sociedade capitalista. O reggae representa por meio de sua estética o caráter popular daquele povo, que encontrava-se mergulhado no imaginário dos conflitos de países economicamente marginais estabelecido pelo processo de desenvolvimento do capital, muito embora, trazendo a resistência enfatizada pelos princípios da fé rastafári, bem como pelos símbolos e máximas derivados do folclore jamaicano e africano, constituída de forma sui generis pelo caráter emancipatório, dotado em seu conteúdo e na sua forma de elementos que negam as situações postas e vislumbram outra realidade, projetando outras possibilidades sociais. A relação firmada entre o reggae e o rastafarianismo marcada pelas profecias de uma fé cristã atingia de forma controvérsia as músicas de Bob Marley, ao mesmo que que apontavam a necessidade de enfrentamento ao sistema da babilônia (capitalismo), se limitavam aos processos de liberdade de caráter racialista, restrito a salvação do povo negro por via da unificação da África. Mas ao mesmo tempo essa fé apareceu como o combustível para o conteúdo emancipatório dessas canções, os afetos expectantes negativos (angústia e medo), os sofrimentos e a indignações estão na origem do novo, assim que, de antemão, fazem da fé, e nesse caso crença e estética musical, um caminho para a liberdade. Há nesse caso a existência de uma tendência crítica ou subversiva presente no messianismo rastafári que de forma herética adentram o reggae. Alicerçada, por uma interpretação de “eixo não teocrático” faz com que o conteúdo emancipatório da religião na música seja justificado por um paraíso não transcendente, é preciso lutar pela libertação no mundo material, fazendo com esse movimento absorva o caráter contestador da ordem social e revolucionário. Ademais, o reggae conseguiu estabelecer uma relação bastante profícua ao estabelecer relações com outras formas de expressão da sociabilidade humana, trazendo 98 em sua representação musical elementos com um forte teor político, religioso e filosófico, de maneira que a obra de arte não ficasse subordinada em sua capacidade de representação a nenhum desses elementos que tem sua gênese externa a sua formação estética. A síntese entre música, política e religião é onde está contido o catalizador dos afetos expectantes presentes no conteúdo emancipatório das músicas de Bob Marley. No entanto, há nesse processo de desenvolvimento do reggae, mesmo tendo em vista que ela traz eminentemente nesse movimento dialético as suas próprias contradições, algo que deve ser evidenciado a sua capacidade de transcender, universalizar-se e tornar-se atemporal. Nesse, sentido, aos poucos o reggae foi se difundindo, se tornando uma música conhecida em todo mundo, o que se pode constatar é que os conteúdos e formas trazidos até então como mensagens singulares da América Central, se tornaram universais, o que nos leva a concluir que existe no belo artístico dessas canções uma relação intrínseca entre singularidade e universalidade. Há nessas canções uma relação entre o universal e o particular como forma singular de experiência, que proporciona apreensão e representação da realidade de maneira verossímil. Essa faculdade está relacionada com a maior inserção de Bob Marley na cultura universal da sociedade moderna, o que permite a ele reproduzir tantos as suas contradições, quanto os seus elementos de superação. Assim, o caráter singular destas canções é estabelecido, por meio da internalização do artista das contradições que são colocadas pela realidade social de um país periférico, potencialidades que lhes propiciam condições de transgredir esteticamente as condições de espaço e tempo. A mediação executada entre subjetividade e objetividade, sentimento subjetivo e sentimento do mundo, ligado ao caso particular das condições objetivas dos países periféricos, pode ser um elemento desantropomofizador da representação da realidade presente na música reggae de Bob Marley. 99 REFERENCIAS ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008. ________. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Unesp, 2011. ________. Indústria cultural e sociedade. Ed. al. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ________. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Adorno. Coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996. BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Companhia das Letras. São Paulo. 1979. 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