Serviço Nacional de Saúde e
Enfermagem: presente e futuro
sexta, 08 maio 2015 19:50 Manuel
Oliveira, Enfermeiro
Sendo o Serviço Nacional de Saúde (SNS) a grande conquista de
Abril que garantiu aos portugueses níveis de saúde excelentes, e
instrumento fundamental, promotor de solidariedade, coesão social e
de materialização da democracia, estamos todos convocados a cuidar
do mesmo de forma a salvaguardar a sua universalidade,
acessibilidade e equidade.
Tal como como em outros sectores da nossa sociedade, hoje, na saúde, os tempos são de
incerteza, indefinição, angústia e muita dificuldade para preservar os padrões de qualidade
e segurança a que o SNS no habituou.
Mais uma vez, observamos que, associados a uma política demolidora de austeridade e
de desinvestimento público, são os interesses dos partidos políticos e seus calendários
eleitorais que determinam a política de saúde, e não o cumprimento de um plano
estratégico, desenvolvido de acordo com as boas regras do planeamento em saúde, que
evidencie de forma prospectiva as reais necessidades em cuidados de saúde do país, a
capacidade instalada no sector e o caminho seguro a prosseguir.
Globalmente, estamos perante dois grandes desafios. O primeiro, no sentido da criação de
valor em saúde, coloca-se ao nível da concepção e implementação de um modelo de
organização de cuidados de saúde que aposte na articulação, integração, continuidade e
proximidade de cuidados, centrado no cidadão, de forma a garantir a qualidade do SNS,
suportado por um sistema efectivo de governação clínica promotor da sua efectividade e
eficiência, que passe pela rentabilização da capacidade instalada no sector público, da
qualidade em saúde e da implementação de uma cultura efectiva de accountability de
forma a acautelar a boa utilização do erário público.
O segundo, assenta na necessidade emergente da mudança de paradigma do modelo de
organização dos sistemas de saúde, a nível nacional e internacional. Temos que passar,
definitivamente, do modelo “hospitalocêntrico” vigente, centrado na gestão da doença ou
de doentes, para um modelo “salutogénico”, centrado na gestão do projeto de saúde de
cada cidadão, família e comunidade, focalizado na promoção/protecção da saúde e na
prevenção da doença, considerando que este último aportará ao sistema maiores ganhos
em saúde e menores custos para os sistemas de saúde. Este é um desafio da
responsabilidade de todos: cidadãos; decisores políticos; e profissionais de saúde.
Neste âmbito, não poderemos deixar de enfatizar os Cuidados de Saúde Primários pela
sua importância e o necessário investimento à continuidade da reforma em curso. Este
movimento dinâmico e responsabilizante continua a demandar e a implicar uma mudança
cultural que passa pela constituição de equipas multiprofissionais que integram hoje as
várias unidades funcionais e que têm de mobilizar novas competências, a saber:
autonomia e gestão processual; negociação e construção de compromissos;
responsabilização e partilha duma cultura comum.
São hoje perceptíveis sinais de dificuldade no cumprimento da estratégia definida há 10
anos para o setor. Será pela excessiva contenção financeira decorrente do controlo
obsessivo do deficit das contas públicas, que não possibilita a atribuição dos recursos
necessários à sua sustentabilidade e prossecução? Queremos acreditar que assim seja e
não a sua descontinuidade em benefício de outros sectores, que não o público. Mas
deveremos estar muito atentos, destacando como principal preocupação a atual tentativa
de municipalização da Saúde/CSP.
Se relativamente ao princípio da importância da descentralização e maior autonomia do
poder local, para em proximidade garantirmos uma administração pública mais efectiva e
eficiente, e conseguirmos uma maior participação do cidadão na gestão da “coisa pública”,
estaremos de acordo, não podemos deixar de manifestar total discordância com o
enquadramento legal já publicado, de onde se destaca a possibilidade de “celebração de
acordos com instituições particulares de solidariedade social para intervenções de apoio
domiciliário, de apoio social a dependentes, e de iniciativas de prevenção da doença e
promoção da saúde, no âmbito do Plano Nacional de Saúde” por considerar, por
antecipação, que os acordos referidos, não serão de parceria mas de cedência.
Vários são os reptos futuros, considerando que o maior e imediato será evidenciar o valor
do SNS, do seu modelo organizacional, através de uma maior produção científica, capaz
de reforçar o “conhecimento novo” necessário à fundamentação das opções a fazer em
política de saúde e à continuidade e consolidação do percurso encetado.
Relativamente à Enfermagem, é reconhecido hoje, pela sociedade em geral, que esta
passou nas últimas décadas por um notável e ímpar desenvolvimento, enquanto profissão
e disciplina do conhecimento, sustentado pela clínica, inovação, formação e investigação.
De acordo com o enquadramento conceptual e regulamentar da profissão, considerando
que o foco de atenção do enfermeiro no exercício da sua profissão é o diagnóstico das
respostas humanas à doença e aos processos de vida e transição, a sociedade não
espera que os enfermeiros tomem decisões sobre o diagnóstico e tratamento da doença,
em substituição de outros profissionais. Nesta perspectiva, os enfermeiros orientam a sua
intervenção para a satisfação das necessidades humanas fundamentais, a máxima
independência na realização das actividades da vida (promoção do autocuidado e
capacitação do familiar cuidador/cuidador informal), os processos de readaptação e
adaptação funcional aos défices, em suma, a promoção dos projectos de saúde que cada
pessoa vive e persegue.
Estaremos seguramente de acordo sobre a necessidade de potenciar e valorizar o
contributo dos enfermeiros no contexto das equipas de saúde, a bem da saúde dos nossos
concidadãos e da sustentabilidade do nosso sistema de saúde, nomeadamente o SNS.
Concretamente em áreas como: promoção/vigilância da saúde e prevenção da doença,
intervenção em grupos de maior vulnerabilidade (saúde da mulher e materna, saúde
infantil, saúde mental, saúde do adulto, saúde do idoso,…); gestão da doença aguda;
gestão da doença crónica (hipertensão, diabetes, oncologia, dor, cuidados paliativos...),
etc.
Não temos dúvidas que, por essa via, alcançaremos ganhos de eficiência e efectividade,
demonstrados pela evidência científica, num quadro de “skill mix (recombinação e
complementaridade de competências profissionais) e nunca num modelo de “task shifting”
(delegação de tarefas) porque entendemos ser prioritário situar a análise, no quadro do
desenvolvimento disciplinar das profissões da saúde e os desafios que lhe estão hoje
colocados face às necessidades e complexidade dos cuidados de saúde. O ato em saúde
obriga à multidisciplinaridade pelo que na gestão de recursos humanos não poderemos
deter-nos numa mera atitude/visão economicista do processo de cuidados de saúde. A
propósito, não poderemos ignorar os recentes anunciados cursos de curta duração (2
anos) para o ensino superior politécnico e o novo quadro legal para as qualificações
profissionais.
Face ao enquadramento referido e nossa responsabilidade profissional, estamos hoje
confrontados com inúmeras dificuldades que, sucintamente, referimos: a falta grave de
enfermeiros nas instituições, que obrigam colegas nossos a esforços sobre-humanos, com
perigo para a sua saúde e de quem cuidam; o desrespeito completo pela profissão,
ignorando que temos as mesmas ou mais competências para o exercício de determinados
cargos na administração pública; a perda progressiva do poder de auto regulação e
autonomia da profissão; a usurpação de funções a que vamos denunciando, mas que
persistem; um horário de trabalho de 40 horas, mais o extraordinário a que nos obrigam,
para colmatar as graves falhas que existem; o desemprego; uma remuneração injusta e
em declínio contínuo; etc.
Esta desvalorização da profissão, por semelhança com outros países, conduzirá, a curto e
médio prazo, a dificuldades de recrutamento e taxas de abandono da profissão. Desde há
muito que entendemos que a solução passa por um trabalho sério no domínio das
dotações seguras, identificando objectivamente o impacto negativo da sua não
salvaguarda na saúde dos nossos concidadãos, na elevação dos custos em saúde e no
respeito pelos preceitos ético-deontológicos, divulgando esta informação junto do público
em geral.
Nunca será de mais relembrar que os enfermeiros foram e serão sempre obreiros
empenhados na edificação do nosso sistema de saúde, nomeadamente do SNS, pelo que
temos desafios próprios que pomos ao serviço deste, a destacar:
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O desenvolvimento e reconhecimento das especialidades em Enfermagem nos termos
já regulamentados pela profissão. Recordamos a propósito, pela sua atualidade, que
no âmbito da individualização da Especialidade em Enfermagem de Saúde Familiar, a
Ordem dos Enfermeiros já definiu, aprovou e publicou as competências específicas do
Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Saúde Familiar - Regulamento n.º
126/2011. D.R. n.º 35, Série II, de 18 de fevereiro;
O maior reconhecimento e valorização das competências profissionais dos
enfermeiros (clinicas, de gestão e formação) na gestão integrada e multidisciplinar do
processo de cuidados;
O desenvolvimento dos sistemas de informação em enfermagem, decisivo para
evidenciarmos o valor da nossa intervenção, considerando ainda a sua importância
para a continuidade, segurança e qualidade de cuidados;
A garantia da participação efectiva dos enfermeiros nos processos de tomada de
decisão que tenham implicações na profissão, na saúde e no SNS;
A afirmação e valorização da liderança em Enfermagem.
Por último, afirmamos que prestar cuidados de enfermagem de qualidade é um imperativo
ético que qualquer estado de direito deverá assegurar, cabendo às nossas entidades
reguladoras zelar pelo seu cumprimento e garantia, a bem do SNS, da Enfermagem e do
respeito pelo direito de todos à protecção da saúde constitucionalmente garantido em
Portugal.
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