Dia-Logos REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 7 | NOVEMBRO DE 2013 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Paulo Roberto Volpato Dias Sub-Reitoria de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-Reitoria de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais Léo da Rocha Ferreira Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas José Augusto de Souza Rodrigues Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A ______________________________________________________________ D536 Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº7 (2013) .- Rio de Janeiro: UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2013 – v. Anual Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ, nº7, 2013. ISSN 1414-9109 1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. CDU: 981 (05) Dia-Logos REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 7 | NOVEMBRO DE 2013 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Conselho Consultivo (UERJ) Edgar Leite Ferreira Neto; Edna Maria dos Santos; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves; Lúcia Maria Paschoal Guimarães; Maria do Carmo Parente; Maria Emília da Costa Prado; Maria Regina Cândido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Marilene Rosa Nogueira da Silva; Oswaldo Munteal Filho; Paulo Roberto Gomes Seda; Ricardo Antônio Souza Mendes; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira. Conselho Consultivo (professores convidados) Alex Gonçalves Varella (UERJ); Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Álvaro Vicente G. Truppel P. do Cabo (UFRJ/UCAM); Andrea Barboza Marzano (UNIRIO); Andrea Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ); Beatriz Vieira (UERJ); Bernardo Borges Buarque de Hollanda (CPDOC/FGV); Bruno Leal (UFRJ); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina Tavares (UERJ/FFP); Daniel Aarão Reis Filho (UFF); Felipe Charbel (UFRJ); Felipe Magalhães (UFRRJ); Gelsom Rozentino (UERJ/FFP); Guilherme Pereira das Neves (UFF); Hilton Meliande de Oliveira (UERJ); Humberto Fernandes Machado (UFF); Icléia Thiesen (UNIRIO); Júlio Cesar Mendonça Gralha (UFF/PUCG); Kátia Krause (UFF); Laura Moutinho Nery (UERJ); Luciana Gandelman (UFRRJ); Luiz Reznik (UERJ/FFP); Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Conceição Pires (UNIRIO); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Maria Regina Celestino de Almeida (UFF); Maria Teresa Villela Bandeira de Mello (UERJ/FFP); Mariana de Aguiar Ferreira Muaze (UNIRIO); Maurício Drumond (UFRJ); Mirian Cabral Coser (UNIRIO); Miriam Lourdes L. Luna (UERJ); Monica Almeida Kornis (CPDOC/FGV); Monique Gonçalves (UERJ); Norma Cortes (UFRJ); Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS/UVA); Paulo Cruz Terra (UFF); Rafael Alex Rocha (UFF); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Rui Aniceto (UERJ/FFP); Sérgio Chahon (FIS/UGF); Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Vantuil Pereira (UFRJ). Conselho Editorial Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos, Sheila Conceição Silva Lima. Designer Gráfico Junio Cesar Rodrigues Lima | e-mail: [email protected] Desenho de Capa Gabriel Costa Labanca Correspondência Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037 Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013 Tel./Fax.: (21) 2334-0678 - e-mail: [email protected] Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta publicação. ÍNDICE 9 Apresentação 11 Editorial 15 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis Alexandre Raicevich de Medeiros Universidade do Estado do Rio de Janeiro 27 Mort, tu l’es déjà: a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot Aline Magalhães Pinto Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 42 Escola Nova e a literatura infantil na formação de professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) Aline Santos Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro 54 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política Amanda Muzzi Gomes Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 70 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 85 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início dos oitocentos Camila Borges da Silva Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 100 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o teatro do oprimido Desirree dos Reis Santos Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 116 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Gabriela Piai de Assis Universidade Estadual de Campinas 130 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista Laila Luna Liano de León Universidade Federal Fluminense 143 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - o caso emblemático de Araribóia Marcello Felipe Duarte Universidade do Estado do Rio de Janeiro 158 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na província do Rio de Janeiro (1871-1888) Maristela Santana Universidade do Estado do Rio de Janeiro 172 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque Priscila Gomes Correa Universidade de São Paulo 183 O Carnaval de Ouro Preto: mercado e tradição (1980-2011) Sarah Teixeira Soutto Mayor Universidade Federal de Minas Gerais 197 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós Welinton Serafim da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro 212 A Criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram William Geraldo Cavalari Barbosa Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande 225 Resumos | Abstracts 240 Normas Editoriais APRESENTAÇÃO Os discentes do PPGH/ UERJ têm realizado um trabalho de grande valia para divulgar os estudos desenvolvidos por eles e também por diversos colegas de pesquisas. São conhecidas as dificuldades com as quais se defrontam para publicar ao longo do processo de realização de seus mestrados e doutorados. Produzir uma revista acadêmica também não é uma tarefa fácil ao se considerar o nível de exigências para que ela atinja um bom nível de excelência, concorrendo com publicações de cursos de Pós-graduação no Brasil. No caso da revista Dia-logos esta tarefa de selecionar textos, obter pareceres e sistematizar mais um número, representa muito mais. O destaque a ser enunciado é o consistente planejamento dos alunos do curso de Pós-Graduação em História do IFCH/UERJ, o cuidado editorial e acadêmico que procuram superar a cada número. A captação de textos torna-se cada vez mais complexo, uma vez que o periódico é organizado a partir de trabalhos mais relevantes apresentados anualmente na Semana de História Política, promovida pelos discentes e que tem tido um relevante êxito. Portanto, o número de textos só se amplia, a se considerar a presença de pesquisadores de vários estados brasileiros, e o número ascendente de inscrições de propostas que acontecem anualmente. A seleção de textos e a atenção com o leitor ficam cada vez mais patentes, destacando-se neste número trabalhos sobre linguagens e cultura políticas, ensino de História e sua perspectiva política, História e cinema, História e Literatura, memória e biografia, além de abordagens de questões teóricas e metodológicas de valor para os estudos historiográficos. Ressaltam-se as variadas fontes utilizadas no trato investigativo, salientando o estudo de gravuras e dos discursos de lideranças indígenas. Estes investimentos proporcionaram a seleção de 15 excelentes artigos inseridos nas vertentes mais contemporâneas de história política. Textos muito bem elaborados, sumário bem organizado, tanto na escolha dos artigos, quanto na sua articulação dão um estofo Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 9 Apresentação considerável à publicação. Ao trazer à luz temas diversos, mas entrecruzados, Dia-logos incorpora conceitos e permite a discussão entre autores e leitores, contrapondo novos temas, novas abordagens, como também o uso de fontes de maneira a apresentar a riqueza que os estudos históricos têm produzido no Brasil. Outro aspecto a destacar fundamenta-se na originalidade dos temas, quer pela sua diversidade, quer pelas novas possibilidades de estudos. Os artigos retomam alguns clássicos da historiografia, ou abordam novas questões fundamentadas em estudos recentes da historiografia, contribuindo dessa forma com a divulgação científica e a apresentação da multiplicidade de temas em estudo nos últimos anos. Reflexões sobre a produção científica na área de história na contemporaneidade, o ensino e seus desdobramentos em períodos da História do Brasil, a atuação do Ministério público na aplicação da legislação pertinente, o imaginário social e suas representações, a valorização dos estudos de lideranças indígenas e suas contribuições para a consolidação da América Portuguesa, todas estas vertentes temáticas encontram-se entre os artigos englobados pela comissão científica para este número da revista. A história política dialoga aqui com as novas tendências da história cultural de maneira bastante sólida e inovadora. A Coordenação do PPGH tem grande satisfação em apresentar dessa forma o potencial historiográfico encontrado nas páginas da revista Dia-logos, do qual este número é mais uma demonstração a ser apreciada. Parabéns aos autores, aos organizadores, e boa leitura a todos. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, pela Coordenação do PPGH/UERJ 10 ISSN 1414-9109 EDITORIAL É hora de mais uma edição da Revista Dia-Logos. A cada ano reafirmamos nosso compromisso de divulgarmos as produções inéditas dos pesquisadores de todo o país. Dessa forma, consolidamos nossa posição e estilo junto aos grandes periódicos acadêmicos do Brasil! Dessa forma, nos alegramos por poder divulgar a excelência de nosso Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Esse esforço se deve ao trabalho voluntário e árduo de alunos, professores e servidores do supracitado programa, como da colaboração de docentes de outras instituições que nos privilegiam com sua presença e participação. Essa trajetória de sucesso tem início na Semana de História Política/Seminário Nacional de História dos alunos do PPGH/UERJ, que, a cada ano, abrange um número expressivo de participantes de todos os Estados do Brasil. Esse processo tem beneficiado professores e jovens pesquisadores, que tem a oportunidade de dialogar com seus pares e o público em geral, acerca de suas pesquisas e sobre a produção histórica. O resultado desse debate se expressa nessa sétima edição de nosso periódico. Estamos primando pela qualidade e respeito aos artigos dos proponentes que, a cada ano, vem depositando sua confiança em nosso trabalho. Artigos de excelência envolvendo um profundo diálogo com a História Política, o que muito nos tem feito avançar enquanto Programa e espaço de difusão, discussão e consolidação de novos pesquisadores. É importante ressaltar, que essas variedades de proposições contribuem diretamente para o aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no Seminário, o que influencia diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos. Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir alguns dos melhores trabalhos historiográficos, sendo assim, não se delimita temáticas para esse periódico. A nós cabe o papel de promover o conhecimento dos novos trabalhos que se desenvolvem Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 11 Editorial na academia, as mais interessantes pesquisas desenvolvidas por jovens talentos, da mais variada gama de assuntos, de acordo com os pareceres de especialistas nos mesmos temas. Sendo assim, a Dia-Logos comporta artigos que tratam da abordagem da História Política, como dos demais domínios da História. E nessa edição é importante destacar que, entre as temáticas tradicionais da História Política, esse lançamento nos brinda com discussões acerca da sociedade musical enquanto espaço de manifestação cultural e política, a importante discussão acerca do ensino de história na Educação Básica, num diálogo entre a academia e a sociedade. As propostas de trabalho com a imagem e o poder, os movimentos sociais e suas interfaces com a política, assim como nos oferece a discussão das questões indígenas no Brasil. O Conselho Editorial desta revista muito tem se empenhado em transformá-la num periódico online, angariando melhores investimentos e ampliando a sua qualificação, que já é B5, no ranking da CAPES. Essa luta permitirá valorizar ainda mais os trabalhos de nossos proponentes e promover maior difusão e circulação de suas questões e ideias. Com todo esse movimento ainda nos é muito importante imprimir, anualmente esse periódico, difusor de novas pesquisas e pesquisadores, e distribui-lo entre os principais programas de pósgraduação em História do país e do exterior. Cabe ainda agradecer pelos 4 anos de trabalho e dedicação que tive junto com Conselho Editorial na preparação dos exemplares desde 2009, quando ingressei neste Programa de Pós-Graduação. Cabe o agradecimento a cada membro que ajudou a transpor os obstáculos e as dificuldades na trajetória de muita luta, mas também de muitas gratificações. Agradeço a todos os conselheiros pelo apoio, a partilha, a compreensão e o carinho com este periódico e o respeito com nossos proponentes e pareceristas. Agradeço a todos os colaboradores e aos leitores pelo crédito e pela confiança. 12 ISSN 1414-9109 Despeço-me com um até breve, desejando muito sucesso e muitos empreendimentos aos conselheiros que ficam e os que foram eleitos no último pleito. Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez agradecemos a todos que participaram desse imenso e árduo trabalho, mas de grande importância para a divulgação da pesquisa científica no Brasil. Boa Leitura! Conselho Editorial Sheila Lima Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 13 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis Alexandre Raicevich de Medeiros O pianista e compositor português, Arthur Napoleão dos Santos (06 de março de 1843 - 12 de maio de 1925) nasceu na cidade do Porto, e foi revelado pelo pai, o napolitano Alexandre Napoleão, como um prodígio musical. Após algumas apresentações na sua cidade natal, foi levado a Lisboa onde teve o talento reconhecido pela elite local. Em 1852, deixou Portugal e passou a apresentar-se em diversos palcos da Europa e Américas, incluindo o Brasil, que visitou por três vezes 1857, 1862 e 1866, até se fixar definitivamente em 1868 na cidade do Rio de Janeiro, onde tornou-se, além de pianista e compositor, um atuante homem de negócios do campo das artes. Durante essas viagens a trajetória artística de Arthur Napoleão se entrecruzou com a dos principais artistas do período, cuja música costumava ser apreciada nos salões frequentados por membros da aristocracia e da burguesia em ascensão. Esses espaços eram muito desejados pelos Napoleão, principalmente pelos possíveis favorecimentos resultantes das talentosas apresentações, que podiam variar desde algum recurso financeiro, até uma melhoria no status social do músico e de seus familiares. Ao estabelecer-se no Rio de Janeiro, Arthur Napoleão tomou as rédeas de sua carreira, e decidiu investir no campo dos negócios ligados a música, não abandonando entretanto sua carreira de pianista. Um ano após sua chegada ao Brasil se associou a Narciso José Pinto Braga, um editor de partituras, e fundou a Narciso, Arthur Napoleão & Cia, uma nova casa de edição, publicação e comercialização de partituras. i Em 1878, Narciso deixou a firma, e Arthur Napoleão se associou ao jovem e talentoso violinista Leopoldo 15 Alexandre Raicevich de Medeiros Miguez (1850-1902) fundando a Casa Arthur Napoleão & Miguez, situada à rua do Ouvidor 89. ii A firma, além de manter o trabalho de edição de partituras, passou a comportar um pequeno salão destinado a pequenas apresentações de música de câmara e concertos solo, abertas a um público não muito diferente do frequentador dos grandes clubes e das sociedades musicais cariocas do período. iii Pelo palco da Casa Arthur Napoleão & Miguez passaram diversas atrações, tanto nacionais quanto internacionais, o que pode comprovar a ocorrência de uma circularidade constante de músicos. Dentre os instrumentistas internacionais podemos citar o violinista português Francisco Pereira da Silva Costa (1847-1890), iv o violoncelista português Frederico do Nascimento (1852-1924), v e o violinista cubano José White (18361918), que viveu no Brasil entre 1879 e 1889. Ainda em relação ao público que frequentava a sociedade podemos destacar que o concerto de José White em 30 de dezembro de 1879, no salão da Casa Arthur Napoleão & Miguez, reuniu “Um núcleo de distinctíssimas senhoras, ministros d’estado, músicos notáveis, e outras pessoas gradas”. vi O virtuose da flauta e filho de escravos Viriato Figueira da Silva (1851-1883), vii e o então, jovem e talentoso pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) viii foram alguns dos artistas nacionais que se apresentaram no salão da Casa Arthur Napoleão & Miguez. Em relação a tarefa primordial do estabelecimento, a edição de partituras, a Casa Arthur Napoleão & Miguez. editou a primeira peça de Ernesto Nazareth, a polca-lundu Você bem sabe, em 1877, que o compositor dedicou ao seu pai, contando com um anúncio publicado no Jornal do Commercio : “Sahio a luz : Você bem sabe, linda polca para piano, composição do distincto pianista Ernesto Júlio Nazareth, acha-se a venda unicamente em casa de Arthur Napoleão & Miguez – 89 Rua do Ouvidor 89”. ix A pianista Chiquinha Gonzaga (1847-1935) também teve diversas composições editadas pela firma de Arthur Napoleão, dentre as quais a balada Manhã de Amor 16 ISSN 1414-9109 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis (ca. 1881), x e a valsa Carlos Gomes (ca. 1880), homenagem ao maestro e compositor brasileiro. xi escrita em Arthur Napoleão e seu pai desembarcaram no Brasil pela segunda vez em agosto de 1862, na busca de espaços para novos concertos que, como de costume, contaram sempre com lotação esgotada. Logo após sua chegada, Arthur Napoleão foi homenageado por um artigo publicado no periódico O Futuro (18621863), em 15 de setembro de 1862, assinado por Machado de Assis, no qual o escritor destacou a chegada do jovem pianista português ao Brasil, recordando o sucesso obtido por Arthur durante sua primeira visita ao Brasil, em 1857. No referido artigo, Machado de Assis não poupou elogios ao talento musical de Arthur, comparando-o ao jovem Mozart, que também teve sua carreira tutelada pelo pai Leopold Mozart, cerca de cem anos antes. (...) Fallemos agora de Arthur Napoleão que acaba de chegar ao Rio de Janeiro. Em 1857, aquelle prodigioso menino inspirou verdadeiro enthusiasmo nesta corte onde acabava de chegar cercado pela auréola de uma reputação. Creança ainda, o prestígio dos tenros annos dava ao seu talento realce maior. (...) Assim cresceu Arthur Napoleão na idade, na glória e no talento: de cidade em cidade, a sua viagem foi um triumpho não interrompido; mas, como verdadeiro artista, não se deixou adormecer nos louros e nas delícias de Capua; xii estudou viajando e buscou pelo estudo a perfeição. A referência de Machado de Assis a primeira estada do pianista portuense no Rio de Janeiro nos faz supor que tenha sido durante esse período que Arthur Napoleão e o escritor tenham se conhecido, e travado os primeiros laços de amizade. O texto das Memórias de Arthur Napoleão, publicado no periódico Correio da Manhã entre 04 de setembro de 1925 xiii e 07 de fevereiro de 1926, xiv descreve ainda um sarau ocorrido na residência do contador, filólogo e bibliotecário do Gabinete Português de Leitura, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 17 Alexandre Raicevich de Medeiros Manuel da Silva Melo Guimarães (1834-1884), na rua da Quitanda número 06, em 22 de novembro de 1862. O encontro cultural contou com a presença de importantes figuras do universo sociocultural carioca do período. Como de costume o evento foi dividido em partes, na primeira foi representada uma comédia em um ato de autoria de Machado de Assis, intitulada Quase Ministro. Machado de Assis ressalta nas notas preliminares do seu texto, que essa comédia foi “expressamente escrita para ser representada em um sarau literário e artístico”, os papéis da peça foram distribuídos entre os senhores Moraes Tavares, Manoel de Mello, Ernesto Cybrão, Bento Marques, Joaquim Insley Pacheco, Muniz Barreto, Carlos Schramm e Arthur Napoleão. xv Na sua terceira visita ao Brasil, Arthur Napoleão compôs o fundo musical para uma peça do ator português Furtado Coelho (1831-1900), que residia no Rio de Janeiro, intitulada Remorso Vivo, com texto de Machado de Assis, do jornalista Joaquim Serra (1838-1888) e do próprio Furtado Coelho. Na instrumentação Arthur Napoleão contou com a ajuda do trompetista e regente Henrique Alves de Mesquita (1830-1906). Remorso Vivo foi representado pela primeira vez no Theatro Gymnasio, em 21 de janeiro de 1867. xvi O espetáculo dentro do âmbito do teatro musicado apresentava componentes rítmicos e melódicos comuns das modinhas e romances do final do século XIX. xvii Enfim, Machado de Assis e Arthur Napoleão teriam a consagração de seus laços de amizade alguns anos depois, quando o acaso voltou a coloca-los frente à frente. Esse reencontro deu-se por motivo da chegada da senhorita Carolina Augusta Xavier de Novaes (1820-1904) a cidade do Rio de Janeiro. A jovem Carolina que mais tarde se tornaria a esposa Machado de Assis, deixou a cidade do Porto, com o intuito de cuidar do seu irmão, o jornalista, poeta e escritor português Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), que residia no Brasil desde 1858, e que nesse momento encontravase hospedado na residência da senhora Rita de Cássia Calasans 18 ISSN 1414-9109 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis Rodrigues, filha dos Barões de Taquary, por estar sofrendo das faculdades mentais. xviii Quanto ao acaso, a família de Arthur Napoleão mantinha uma antiga relação de amizade com a família Novaes, que pode ser comprovada por uma poesia escrita por Faustino, em 09 de dezembro de 1862, dedicada a Arthur Napoleão, e publicada no periódico O Futuro. xix Nada mais simples do que os Novaes contarem com a ajuda do velho amigo pianista, solicitando que Arthur Napoleão acompanhasse Carolina Novaes na sua primeira viagem ao Brasil. Assim, desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1868, trazidos pelo navio francês Estreamadure, Carolina Augusta Xavier de Novaes, e Arthur Napoleão, o qual chegava ao Brasil pela quarta vez. xx Nessa ocasião, Machado de Assis foi apresentado por Faustino Xavier de Novaes, àquela que seria sua companheira de toda a vida, e naquele momento teve o prazer de reencontrar-se com o amigo Arthur Napoleão. Em 12 de novembro de 1869, Carolina Augusta Xavier de Novaes casou-se com o escritor Machado de Assis, e Arthur Napoleão foi convidado para ser padrinho do enlace matrimonial. xxi Alguns anos mais tarde, o pianista Arthur Napoleão e Machado de Assis encontraram na prática do enxadrismo mais um laço de fortalecimento de suas relações pessoais. Desde sua saída de Portugal em 1852, até sua estabilização definitiva no Brasil em 1868, a trajetória de Arthur Napoleão foi baseada em horas de estudo sob a severa supervisão do pai, longos períodos de isolamento a bordo dos navios que entrecruzavam oceanos, distribuição de cartas de apresentação, concertos, e por fim, o êxito profissional. Todo esse processo, apesar de estar voltado para o sustento da família Napoleão, e para a consequente consagração de Arthur, talvez não fosse ideal para o desenvolvimento de uma criança, que segundo o próprio pianista, achava-se muitas vezes saturado por acordes, letras e algarismos. xxii Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 19 Alexandre Raicevich de Medeiros A solução imediata foi encontrar atividades que pudessem distrair, mesmo que sumariamente, a alma infantil, evitando problemas que pudessem eclodir na vida adulta do pianista. Entretanto, por serem muito limitados os espaços de tempo livre na cansativa rotina do musicista, nos únicos momentos distantes das “atividades profissionais”, restava ao pequeno Arthur Napoleão envolver-se nas atividades dos adultos, que costumavam se divertir com jogos, geralmente após as apresentações musicais e literárias, que aconteciam na cidade do Porto, entre 1840 e 1850. Ao circular nesse universo, o menino Arthur, ávido por novidades, descreve ter desenvolvido de imediato a paixão pelo jogo de xadrez, que foi incentivada pelo pai, por parecer uma distração eficiente, e incapaz de atrapalhar a carreira do seu prodígio infantil. Desde então, a vida de Arthur Napoleão passou a contar com lições de piano, ensaios, concertos, e a companhia do tabuleiro de xadrez. Após encontrar-se estabilizado no Brasil, Arthur Napoleão decidiu retomar sua ligação com a prática do enxadrismo, organizando, em 1880, um torneio em sua residência que contou com a presença dos enxadristas Carlos Pradez, Caldas Vianna, Machado de Assis, Navarro de Andrade, Joaquim Palhares. Torneio de Xadrez. Está-se effectuando actualmente um torneio de xadrez entre seis dos melhores amadores d`esta Côrte. Cada um tem a jogar 4 partidas com o outro e no resultado final, será considerado vencedor. A situação dos jogadores, n`esta data é a seguinte: Sr. Machado d`Assis, 6; Arthur Napoleão, 5 ½; C. Vianna, 4 ½; Prades, 4; Navarro, 1; Dr. Palhares, 1. Conforme os regulamentos hoje instituídos em toda a xxiii parte, as partidas empatadas contam meia partida a cada jogador. Ao término do torneio Arthur Napoleão saiu vencedor, sendo seguido por Caldas Vianna, e por Carlos Pradez, no segundo e terceiro lugar respectivamente. Segundo o próprio Arthur Napoleão, esse torneio despertou o interesse da sociedade carioca pelo jogo, e 20 ISSN 1414-9109 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis consequentemente estimulou a organização de outros embates na cidade do Rio de Janeiro.xxiv Em relação a Machado de Assis, acreditamos que o desejo em aprofundar seus conhecimentos na prática do enxadrismo pode ter se iniciado entre os anos de 1862 e 1865, por incentivo do amigo Arthur Napoleão, que visitava o Brasil pela segunda vez nesse período. A prática do jogo faz parte de alguns contos do escritor como, Questão de Vaidade (1864), Astúcias do Marido (1886), História de uma Lágrima (1867), Ruy de Leão (1872), Qual dos dois (1872), Antes que cases (1875); do romance Iaiá Garcia (1878), e da novela A cartomante (1884). O escritor ainda chegou a frequentar algumas das mais importantes agremiações de xadrez, espalhadas pela cidade, e o pianista costumava discutir com o amigo questões sobre o jogo. xxv Rio de Janeiro, 25 de dezembro de [...] Meu caro Machado. Eu creio ter-te dito ontem que te dava o problema como muito bonito e difícil; tão difícil que não julgo que terei quem o possa resolver. Quando li, pois, o teu cartão não julguei por um momento que em 12 horas o tivesses resolvido! Há mil jogadas neste problema que parecem ser as verdadeiras e afinal não são. Tu enviaste-me: 1. B. 2 R 1. D. 3 R 2. D. 8 CD 2. Aqui se eu tivesse a condescendência de jogar como tu indicas eu estaria mate em 4, mas eu prefiro responder com 2. D. 4 B. Parece-me suficiente indicação. Desculpa, e trabalha de novo, fica certo de que se resolveres o problema eu te considero um grande homem na matéria. Em compensação, quando quiseres eu te mando a solução, que te há de deixar boquiaberto!!... Mais nada. xxvi Teu amigo certo, A. Napoleão. Em 1898, Arthur Napoleão escreveu um livro sobre o jogo de xadrez, que foi publicado pela Typographia do Jornal do Commercio de Rodriguez & C. e recebeu o título de Caissana Brasileira. xxvii O título do livro, Caissana Brasileira, foi inspirado na história de Caíssa, ninfa da mitologia grega, considerada a deusa do xadrez. xxviii Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 21 Alexandre Raicevich de Medeiros A Caissana Brasileira de Arthur Napoleão se encarregava de apresentar, pela primeira vez em língua portuguesa, um trabalho sério sobre o enxadrismo. O livro continha um breve panorama histórico do xadrez, incluindo seu código de regras baseado numa bibliografia consistente, e uma série de anotações sobre a prática do jogo, capaz de esclarecer dúvidas até mesmo dos mais experientes enxadristas. Além de reunir cerca de quinhentos problemas de autores brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, apresentando suas soluções, e listar os torneios de xadrez, realizados no Rio de Janeiro desde a chegada de Arthur Napoleão na cidade, em 1868, até a data da publicação do livro. O nome de Machado de Assis é citado no livro como autor de um problema em dois lances. xxix Consideramos ainda que certas passagens da relação de amizade e admiração entre o pianista e o escritor possam ter inspirado Machado de Assis na sua trajetória literária, a qual vem nos oferecer quase que um “relatório sociológico e histórico” em seus contos, que se desdobram numa rede complexa de dinâmicas coerentes com o que se tem estudado sobre o universo sócio-cultural do Rio de Janeiro do século XIX. Especificamente, identificamos semelhanças entre a história apresentada no conto de Machado de Assis Um Homem Célebre, publicado em 1888, no periódico Gazeta de Notícias, xxx e algumas passagens da trajetória do pianista portuense, descritas na sua autobiografia. Entre 1858 e 1860, Arthur Napoleão e o pai estiveram nos Estados Unidos da América, sempre em busca de oportunidades de apresentações, sendo que nesse período o jovem pianista começava a ensaiar seus primeiros passos como um adolescente que desejava encontrar o espaço necessário para as suas próprias realizações, mesmo que para isso fosse preciso contrariar as ordens de seu pai. Assim, ao circular por Nova Iorque mantendo a programação de concertos organizada por Alexandre Napoleão, Arthur também 22 ISSN 1414-9109 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis procurou encontrar-se com os mais importantes enxadristas da cidade, como Sam Loyd (1841-1911), Miron James Hazeltine (1824-1907), Charles Henri Stanley (1819-1901) e Theodor Lichtenhein (1829-1874), e Paul Morphy (1837-1884), tendo inclusive a oportunidade de visitar o New York Chess Club, e disputar algumas partidas com esses grandes jogadores. Ainda em Nova Iorque, Arthur Napoleão compôs e comercializou algumas polcas e valsas, se utilizando de um pseudônimo, em troca de poucos dólares pagos por editores norte-americanos, que eram destinados a propiciar a sua tão almejada independência financeira. O conto de Machado de Assis narra a história de um pianista chamado Pestana, que tentava a todo o custo tornar-se um compositor erudito. Na sua residência, Pestana vivia em companhia de um preto velho, e mantinha seu piano cercado de retratos gravados ou litografados de músicos europeus, como Beethoven, Chopin, Mozart, Gluck, que contrastavam com uma tela a óleo na qual destacava-se o rosto de um padre que além compositor de motetes, e responsável pela educação de Pestana, seria supostamente o pai do personagem. Entretanto, mesmo com muito esforço e dedicação, Pestana não conseguia deixar de ser um excelente compositor de “polcas buliçosas e ligeiras”, cujo nome era protegido por um pseudônimo. Suas composições quando publicadas se esgotavam logo, garantindo a renda do pianista e passando a fazer parte do repertório da maioria dos músicos populares do período. No conto, o personagem machadiano ainda se enamora de uma jovem que conhecera numa festa de São Francisco de Paula, e que poderia ter sido a maior fonte de inspiração para suas peças, se não tivesse falecido de tuberculose, para aumentar a sua tristeza. Machado de Assis encerra sua narrativa descrevendo a frustração do compositor, que morre sem conseguir entrar no tão desejado campo da música erudita. Reconhecendo que a literatura pode servir como instrumento Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 23 Alexandre Raicevich de Medeiros avaliador dos níveis de tensão existentes no interior de determinada estrutura social, tanto trazendo à tona os planos que não se concretizaram, como se vinculando a grupamentos humanos que xxxi ficaram marginais ao sucesso dos fatos, e devido aos seus temas, valores e motivos serem sugeridos pelo ambiente social que envolve a sua produção. xxxii Concluímos que certos pontos destacados no conto machadiano “Um Homem Célebre”, podem produzir efeitos de correlação sugestiva com a realidade, e que a trajetória do personagem Pestana possa ter se baseado numa trajetória especifica, como a de Arthur Napoleão, supostamente relatada ao escritor pelo próprio pianista durante os seus anos de franca amizade. Assim, ao resgatarmos esse pequeno fragmento literário de Machado de Assis, e a sua relação com o pianista Arthur Napoleão, reconhecemos que esse entrecruzamento de trajetórias muito contribuiu tanto para produções de campos específicos como o da música e da literatura, quanto para de outros mais distantes como o do teatro, e que essas produções vieram enriquecer profundamente o universo cultural da sociedade carioca no fim do século XIX. Notas e referências Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientado pelo Professor Doutor Orlando de Barros. Contato: [email protected] i NAPOLEÃO, Arthur. Memórias, 1907, p. 145. ii Ibid., p. 191. iii Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 1, em 03 de janeiro de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). iv Nascido na cidade do Porto, Francisco Pereira da Silva Costa foi aluno de Alard no Conservatório de Paris, chegando do Rio de Janeiro em 1871 onde atuou como instrumentista e professor. 24 ISSN 1414-9109 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis v Nascido em Setúbal chegou ao Rio de Janeiro em 1880. Sendo indicado em 1890, para a cadeira de professor no Instituto Nacional de Música, tendo Heitor Villa-Lobos como um de seus alunos. vi Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 1, em 03 de janeiro de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). vii Ibid., ano I, número 20, em 17 de maio de 1879. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). viii Ibid., ano II, número 6, em 13 de março de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). ix Jornal do Commercio, 25 de dezembro de 1878. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). x Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 14, em 26 de junho de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xi Ibid., ano II, número 17, em 17 de julho de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xii O Futuro. Chronica por Machado de Assis, 15 de setembro de 1862. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xiii Correio da Manhã, 04 de setembro de 1925. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xiv Ibid., 07 de fevereiro de 1926. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xv NAPOLEÃO, op. cit., 1907, pp. 96-97. xvi Jornal do Commercio, 21 de janeiro de 1867. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xvii FREIRE, Vanda L. B. A Mágica. In : II Simpósio Latino-Americano de Musicologia, 1999. Curitiba. Anais do II Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Curitiba, 1999. xviii Ibid., pp. 142-143. xix O Futuro, 01 de janeiro de 1863. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xx VIANNA FILHO, Luiz. A vida de Machado de Assis. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974. p. 79. xxi NAPOLEÃO, op. cit., 1907, p. 157. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 25 Alexandre Raicevich de Medeiros xxii Ibid., p. 3. xxiii Revista Musical e de Bellas Artes, artigo: Torneio de Xadrez, 17 de janeiro de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xxiv NAPOLEÃO, op. cit., 1907, p. 218. xxv xxv Revista Brasileira. Fase VII. Abril-Maio-Junho, nº 55, Ano XIV, 2008, artigo: Machado de Assis, o enxadrista, de autoria de C. S. Soares, pp. 135-152. xxvi Coleção Afrânio Peixoto. Academia Brasileira de Letras. Correspondência de Machado de Assis : tomo II, 1870-1889 /coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet ; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério.– Rio de Janeiro : ABL, 2009, [171], p. 168. O bilhete não apresenta qualquer indicação de data. Entretanto, o texto referencial cita que o texto está redigido num papel com monograma ANLS (Arthur Napoleão Lívia Santos), possivelmente impresso durante a primeira viagem do casal a Europa, entre 1873 e 1876. xxvii NAPOLEÃO, Arthur. Caissana Brasileira. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal do Commercio de Rodriguez & C., 1898. xxviii Revista Brasileira. Fase VII. Abril-Maio-Junho, nº 55, Ano XIV, 2008, artigo: Machado de Assis, o enxadrista, de autoria de C. S. Soares, pp. 135-152. xxix NAPOLEÃO, Arthur. Caissana Brasileira. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal do Commercio de Rodriguez & C., 1898. xxx Gazeta de Notícias, 29 de junho de 1888. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) xxxi SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. Companhia das Letras, 2003, p. 28. xxxii SARTRE, Jean-Paul. Situations II. 7. Paris: Ed. Gallimard, 1948, p. 13. 26 São Paulo.: ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot Aline Magalhães Pinto O escritor e ensaísta francês Maurice Blanchot foi um dos personagens mais interessantes da intelectualidade francesa do século XX. As relações que manteve, nos anos 30, com a extremadireita francesa são objeto de bastante debate e foram bastante nuançadas pela postura adotada pelo intelectual durante a guerra e sobretudo no pós-guerra. Aliás, o autor de L’espace Littéraire é uma das figuras centrais na elaboração do discurso do pós-guerra europeu e seu trabalho é fonte de inspiração para os maiores nomes da filosofia francesa da década de 1960, entre eles, Foucault, Derrida, Deleuze. Debruçando-se filosoficamente sobre o mundo das artes, Maurice Blanchot construiu uma reflexão inquieta e instigante sobre a escrita literária. Pensar a literatura para Blanchot, a partir do final dos anos 1940, significou explorar a força cáustica, volátil e volatizante do discurso literário e projetar o entendimento dessa força em um mundo já sem fundamentos. Blanchot está longe de estar isolado. Neste momento, a “questão da literatura” é um ponto concentrado de incertezas, uma tensão compartilhada pela intelectualidade francesa do imediato pósguerra. O fecundo debate intelectual no qual se insere Blanchot pode ser atestado pela circulação de revistas como Esprit e a Tel Quel e, principalmente, Les temps modernes fundada por J-P Sartre em 1945 e Critique criada por Georges Bataille em 1946. Embora mais próximo da Critique, Blanchot esteve ligado tanto a ela quanto a Les temps modernes como membro do comité de redação, publicando em ambas vários artigos. Nas páginas dessas revistas estão impressas as discussões que aconteciam nos cafés, nas universidades, nos i encontros nas casas dos escritores e editores . Ao fundo, encontram- 27 Aline Magalhães Pinto se as incertezas em relação ao futuro da cultura francesa e europeia, em que pensadores e escritores reveem sua função numa sociedade descrente e desamparada. Em “Qu'est-ce que la littérature?” publicado em 1947 em Les Temps modernes, Sartre elabora a exigência de que a literatura cumpra no mundo uma função social que não seja puramente de fruição estética. A questão capital para ele seria como pensar uma literatura que, sem perdas estéticas, estivesse totalmente engajada no mundo político. Blanchot se posiciona em oposição à “literatura engajada” proposta por Sartre. O ensaio que vamos analisar, La Littérature et Le droit à la mort, está inserido neste contexto. Publicado em duas partes, ambas pela Critique, a primeira em novembro de 1947 sob o nome de La règne animal de l’esprit e a secunda parte, em janeiro de 1948, na edição sobre Bataille, sob nome La littérature et le droit à la mort. Sob este nome a reunião dos ii dois textos fecha o volume de La part du feu de 1949. Ao discutir o espaço da literatura e da ação política do mundo, Blanchot responde a Sartre em defesa da natureza ambígua e misteriosa da palavra escrita. Desta forma, ao invés de ver o duplo sentido em torno da palavra escrita como uma “doença” que o escritor deve combater, Blanchot sugere que a incerteza e a dúvida que pairam sobre o texto literário permitem ao leitor desenvolver um diálogo sincero com o texto, através das leituras, interpretações, infinitas conversas. Já nas primeiras linhas Blanchot declara: “A literatura se edifica sobre suas ruínas: esse paradoxo é para nós um lugar-comum”.iii Com esta declaração, o crítico francês reconhece no surrealismo literário, para Blanchot, a realização de uma tarefa fundamental: fazer com que a literatura realizasse sua própria irrealidade. Combinando um poderoso movimento negativo e uma grande ambição criadora, no surrealismo: “A literatura, por um instante, coincide com o nada, e imediatamente ela é tudo e tudo começa a existir: grande prodígio.” iv 28 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot Contudo, para Blanchot, a despeito da importância do surrealismo e dos movimentos literários da alta modernidade, eles não são responsáveis pela força corrosiva da literatura. O intento deste artigo é mostrar a argumentação mobilizada por Blanchot para construir uma tradição literatura que tem o momento da revolução francesa e a escrita de Sade como ponto de irradiação da força de negatividade da literatura moderna na França. La littérature et le droit à la mort é um texto inspirado pelas leituras da filosofia hegeliana de Kojève e de Jean Hyppolite. Percorremos o texto, focando os pontos de diálogo entre Hegel e Blanchot, para mostrar como - na transposição para literatura da lógica de entendimento que kojève, especialmente, imprimiu ao sistema hegelianov – Blanchot constrói certa interpretação da Revolução francesa e do Terror para criar uma tradição literária: a tradição da negatividade, encontrando em Sade uma figura de emergência. Toda transposição supõe um deslocamento que diferencia, e nesse sentido este trajeto permitirá também a singularização do hegelianismo de Blanchot. Para Blanchot, aquele que escolhe ser literato se condena a permanecer imerso numa teia de contradições. Enquanto Hegel trabalha as contradições tendo em consideração a obra humana em geral, Blanchot transporta a noção de contradição para a atividade da escrita literária e explora as consequências deste deslocamento: O individuo que quer escrever é impedido por uma contradição: para escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons não são nada. Enquanto não se puser à mesa e escrever uma obra, o escritor não é escritor e não sabe se tem capacidade para vir a ser um. Só terá talento após ter escrito, mas dele necessita para vi escrever. Para o escritor, a consciência de si e da obra vêm da obra. Antes de escrever, mesmo o maior dos talentos é apenas Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 29 Aline Magalhães Pinto inefetividade. Não importam as circunstâncias, o momento de começar a escrever é sempre fundamental. A escrita rompe a inefetividade. Sem a obra, não há nada além de um problema: a impossibilidade de escrever. A tautologia é explícita: antes de escrever não há escritor. Sem o respaldo da filosofia hegeliana, esta afirmação seria absolutamente redundante e inútil. Por isso é preciso lembrar que o Começo na Fenomenologia do Espírito assume uma posição de relevo: o Começo não deve pressupor nada, não deve ser mediatizado por nada, nem ter um fundamento; ao contrário deve ele mesmo ser o fundamento. Deve ser absolutamente um imediato, ou antes apenas a imediaticidade mesma. O começo é o ser puro.vii Quando Blanchot se refere ao começo da escrita de uma obra isto significa dizer, portanto, que começar a escrever desencadeia o movimento da literatura e contém o que seria sua essência: a falta de qualquer essencialidade. A obra acabada, por sua vez, desencadeia uma experiência desconcertante: O autor vê os outros se interessarem por sua obra, mas esse interesse é diferente daquele que havia feito dela a pura tradução dele mesmo, e esse outro interesse muda a obra, transforma-a em algo diferente em que ele não desapareceu, ela se torna a obra dos outros, a obra em que eles estão e ele não está, um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o reflexo dos outros. Ora, essa nova etapa não deve ser negligenciada pelo escritor. Como vimos, ele só existe em sua obra, mas a obra só existe quando se torna essa realidade pública, estrangeira, feita e desfeita pelo contrachoque das realidades. Assim, ele está na obra mas a própria obra desaparece. (...) a obra é o que ele fez, não é esse livro comprado, lido, triturado, exaltado ou viii esmagado pela cotação do mundo. O desaparecimento da obra para o autor é a realização da obra no mundo. O Começo da escrita e o desaparecimento da obra 30 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot quando ela surge para o público são momentos distintos do movimento literário, reunidos pelo que Blanchot chama, em diálogo com a filosofia hegeliana, de “a própria Coisa”- “é tudo que acima da obra, sempre em dissolução nas coisas, mantém o modelo, a essência e a verdade de que ela é feitaix”. A análise torna claro como as noções de fluidez e de verdade no tempo presentes na Fenomenologia do Espírito conduzem a noção de literatura de Blanchot. A escrita literária não se deixa cristalizar em nenhuma de suas figuras, ela é o fluxo contínuo de contradições que dialeticamente se negam. O empreendimento literário tem como meta o que lhe é próprio: o movimento que em si unifica o individuo que escreve, o poder de negação criador, e a obra em movimento, no qual se afirma esse poder de negação e superação. Blanchot adota a noção de movimento contínuo, de maneira formalmente análoga, ao raciocínio com que Hegel afirma que a verdade do Espírito não está em suas determinações ou figuras isoladas e sim no movimento que, negando cada uma destas figuras particulares, realiza o universal. Contra as críticas literárias que separam analiticamente autor, obra e leitor, Blanchot propõe a literatura como um movimento que une estes momentos na persona do escritor. O escritor, na concepção e na crítica literária de Blanchot, funciona como um operador e também como uma máscara. Para o entendimento do texto literário, Blanchot vai jogar com a toda a plasticidade da persona do escritor. O trabalho de crítica e de pensamento literário em Blanchot é feito a partir deste recorte: não se fala de todos os homens, nem da obra humana como um todo. Tratase de uma abordagem metonímica, na qual o foco é alcançar a literatura pelo escritor.x O que é escritor para Blanchot? É o movimento que agrupa os diferentes momentos da literatura. Blanchot não reserva para o escritor o espaço daquele que porta a voz de um povo, tão somente Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 31 Aline Magalhães Pinto uma consciência infeliz, desesperada. Este escritor trabalha. Citando Hegel e Marx, Blanchot reconhece o trabalho, atividade especificamente humana, como negatividade. Por derivação inspirada em Hegel, Blanchot conclui que a escrita literária realiza-se ao negar-se. A transposição que desloca a fenomenologia hegeliana (da maneira entendida por Kojève) da obra humana em geral para a região da literatura é um dos apoios sobre os quais Blanchot buscará entender a especificidade do trabalho da escrita. Porque o ato de fabricar uma estufa [ou qualquer outra coisa] pode ser considerado trabalho que forma e arrasta a história e por que o ato de escrever aparece como uma pura passividade que permanece à xi margem da história, e que a história arrasta sem querer? Ao elaborar esta questão, Blanchot afirma que o escritor trabalha como todo homem que trabalha, mas num grau mais eminente. Isto porque o trabalho é uma categoria negativa. Trata-se de uma negação que produz, modificando realidades naturais e humanas, uma positividade. Contudo, ao contrário do trabalhador comum, o escritor para escrever, deve destruir a linguagem tal como é e realiza-la sob uma outra forma, negar os livros fazendo um livro com o que não são. O volume escrito é para mim uma inovação extraordinária, imprevisível, e de tal forma que me é impossível, sem escrevê-lo, imaginar o que poderia ser. É por isso que me aparece como uma experiência cujos efeitos, por maior que seja a consciência com que se produzem, me escapam e diante da qual não posso me reencontrar o mesmo, por essa razão: na presença de outra coisa eu me torno outro, mas por essa razão mais decisiva ainda: essa outra coisa – o livro- da qual eu tinha apenas uma ideia e que nada me permitia conhecer previamente, é justamente eu mesmo transformado em xii outro. 32 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot À diferença do trabalho no mundo cotidiano, o trabalho de escrever não somente transforma pela negação uma realidade já dada. Dominado por uma força que extrapola a consciência, escrever transforma o próprio escritor. No livro, na obra, está impressa esta transformação. Para Blanchot, o trabalho de escrever é radicalmente transformador. Escrever é mais radical do que o trabalho em geral, pois não gera uma positividade no mundo. Sem dúvida, a obra existe. Mas ela existe não como um ato realmente negativo, destruidor e transformador de realidades. Ela existe porque realiza a impotência de negar e a recusa de intervir no mundo. Nesta recusa, a liberdade do escritor é infinita. Infinita, esta liberdade só pode ser irreal. A influência do escritor está ligada a esse privilégio, o de ser senhor de tudo. Mas ele é senhor apenas de tudo, só possui o infinito, o finito lhe falta, o limite lhe escapa. Ora, não agimos no infinito, não realizamos nada no ilimitado, de maneira que, se o escritor age bem realmente produzindo sessa coisa real que se chama livro, desacredita também, com esse ato, qualquer ato, substituindo o mundo das coisas determinadas e do trabalho definido por um mundo onde tudo é agora dado, e nada presenta ser feito além de gozá-lo xiii pela literatura. A liberdade infinita da escrita literária se dá à leitura. Ler é desfrutar essa liberdade alcançada apenas de maneira irreal. O que é a possibilidade aberta pela literatura e, ao mesmo tempo, a condição de sua existência. A força de negatividade da escrita literária e sua impotência como ação política tem como contrapartida o efeito de liberação, de fruição - próprias do fenômeno estético. Contudo, Blanchot não desconsidera a proximidade da liberdade que fundamenta a ação consciente e voluntária (política) e a liberdade que fundamenta o ato da escrita. Elas têm como ponto comum a força de negação. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 33 Aline Magalhães Pinto A compreensão do movimento da força de negação por Blanchot tem como base a leitura de kojève sobre a Fenomenologia do Espírito. No plano fenomenológico, portanto, a negatividade é a liberdade humana. Ela só pode ser e existir como negação. A liberdade, entendida por este prisma teórico, não é uma escolha entre dois dados, ela é a negação do dado, realiza-se e manifesta-se como ação criadora. Historicamente, a conexão entre liberdade e negatividade tornou-se consciente, em sua radicalidade, nos homens de 1789 durante a Revolução Francesa. Como afirma Kojève, o mundo cristão encontra seu fim na realização abstrata da liberdade que se efetua pela Revolução Francesa e se afirma no Estado napoleônico.xiv Esta conexão permite a analogia estabelecida por Blanchot entre a ação revolucionária e a escrita literária. Em sua transposição interpretativa, o crítico francês toma emprestada a análise da ação revolucionária para fazer entender com precisão a maneira como ele pensa o ato de escrever. A ação revolucionária é, em todos os pontos, análoga à ação tal como é encarnada pela literatura: passagem do nada ao tudo, afirmação do absoluto como acontecimento e de cada acontecimento como absoluto. A ação revolucionária se desencadeia com a mesma força e a mesma facilidade que o escritor, que, para mudar o mundo, só precisa alinhar algumas palavras. Ela tem também a mesma exigência de pureza e essa certeza de que tudo o que faz vale completamente, não é uma ação qualquer com relação a alguma meta desejável e estimável, mas a meta única, o Último Ato. Esse último ato é a liberdade, e só existe escolha entre a liberdade e o nada. É por isso xv que, então, a única frase suportável é: liberdade ou morte. Escrever e o agir político revolucionário teriam como raíz comum constituírem-se a partir da mesma força de negação que alimenta a liberdade humana. A leitura de Blanchot identifica e trabalha a força de negação em sua capacidade destruidora e 34 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot criadora. Neste sentido, a Revolucão Francesa é um momento histórico decisivo, como abertura da modernidade. Ao mesmo tempo, ela oferece uma modelagem para a criação artística moderna, pois propõe simultaneamente a afirmação do absoluto como acontecimento derivado de uma ação humana e cada acontecimento como valor absoluto. Esta modelagem abre o caminho para o Terror. Para Blanchot, a decisão pela encruzilhada entre liberdade e a morte instaura o Terror. O Terror é a liberdade universal. Politicamente, o Terror inaugura um mundo onde tudo é público e ninguém tem direito ao segredo, à vida privada. O sentido do Terror, para Blanchot, é criar este mundo no qual ninguém tem direito a uma vida individual, a uma existência efetivamente separada e fisicamente distinta.xvi Nesse mundo, a morte não é uma condenação, ela é tão somente a essência do direito de cada cidadão. No Terror, os indivíduos morrem e isto é insignificante porque a morte é o próprio trabalho da liberdade nos homens livres. A ação revolucionária movimenta “la liberté d’une tête coupée”. Nos momentos em que a liberdade é a aparição absoluta, morrer não tem importância. Esta é a “lição” que, aprendida durante o Terror na Revolução Francesa, se repete no horror das Grandes Guerras. Neste sentido, Blanchot afirma: Os terroristas são aqueles que, desejando a liberdade absoluta, sabem que querem assim sua morte, têm consciência dessa liberdade que afirmam como da morte que realizam e por consequinte, já que estão vivos, agem não como homens vivendo no meio de homens vivos, mas como seres privados do ser, pensamentos universais, puras abstrações julgando e decidindo, além da historia, em nome da xvii história inteira. Blanchot move sua reflexão convencido do ponto de contato entre o escritor e o “terrorista”: em ambos encontra-se o Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 35 Aline Magalhães Pinto reconhecimento de que a morte é o ponto vazio da liberdade. O escritor se reconhece na Revolução e no Terror. Ele tem como ideal criar o instante em que a liberdade é a morte. Na escrita e no Terror, a morte retém o desejo e preocupação da criatura humana forçando um deslocamento da esfera de sentido para fora da vida. Este é o ponto de contato que une figuras díspares como Robespierre e SaintJust a Sade. Para Blanchot, Sade foi aquele que soube reconhecer e compreender que a possibilidade da escrita literária estava ligada a liberdade radical e a morte. Sade é o escritor por excelência; ele reuniu todas as contradições do escritor. Só: de todos os homens o mais só e contudo, personagem público e homem político importante, perpetuamente preso e absolutamente livre, teórico e símbolo da liberdade absoluta. Escreveu uma obra imensa, e essa obra não existe para ninguém. Desconhecido, mas o que ele representa tem para todos uma significação imediata. Nada mais que um escritor, ele representa a vida elevada até a paixão, a paixão transformada em crueldade e loucura. Do sentimento mais singular, mais oculto e mais privado do senso comum ele fez uma afirmação universal, a realidade de uma palavra pública que, entregue à história, se torna uma explicação legítima da condição do homem em seu conjunto. Finalmente, ele é a própria negação: sua obra é apenas o trabalho da negação, sua experiência, o movimento de uma negação, sua experiência, o movimento de uma negação furiosa, sanguinolenta, e que nega os outros nega a Deus, nega a natureza e, nesse círculo eternamente xviii percorrido, goza de si mesmo como da absoluta soberania. A reflexão blanchotiana sobre o Terror entra em cena provocando um duplo efeitoxix. O primeiro efeito é uma concepção de literatura que concede espaço e legitimidade aos movimentos da vanguarda literária. Com a postura defendida em La littérature e Le droit à la mort, Blanchot estabelece uma tradição para os movimentos literários que fazem da negatividade sua força. Tradição inaugurada 36 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot com Sade, e que passa por Hölderlin, Nerval, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Kafka. O segundo efeito é a emergência da cena da metáfora da morte como ponto de encontro entre estas duas formas antropológicas de atuação - escrever e agir politicamente. Blanchot soliticita a figura da morte tanto para definir a ação política em sua formulação mais radical (o Terror) quanto para definir a escrita literária e o escritor. E, se a figura da morte é usada para aproximálas, paradoxalmente, é também o uso diferenciado da mesma figura que irá distingui-las. O que separa o escritor e o “terrorista”? Ao contrário do “terrorista” para quem a liberdade do poder-morrer é essencialmente transfigura-se em poder-matar; para o escritor podermorrer é a possibilidade de poder- escrever. O escritor se sente presa de uma força impessoal que não o deixa viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não pode superar tornase a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira do nada; a imortalidade literária é o próprio movimento pelo qual, até no mundo, um mundo minado pela existência bruta, se insinua a náuse de uma sobrevida que não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma nela. (...) Ao realizar o vazio, criamos uma obra, e a obra, nascida da fidelidade à morte, no final já não é capaz de morrer e a quem quis preparar-se uma morte sem história só traz o desdém da xx imortalidade. Muito próximo a Hegel, Blanchot enlaça a linguagem à liberdade e à morte, entendendo que o sentido da palavra está sempre ligado a uma aniquilação. Como maravilha inquietante, a linguagem oferece significado ao que suprime. “A palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência da palavra desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é.”xxi Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 37 Aline Magalhães Pinto No que consiste a singularidade da interpretação da filosofia hegeliana de Blanchot? Para o Blanchot de La littérature et le droit à la mort, assim como para Bataille em, por exemplo, L’experiènce intérieure, trata-se antes de tudo da leitura de Kojève sobre a filosofia hegeliana. Esta leitura tem como propósito fazer uma apresentação total da filosofia hegeliana e da experiência humana tendo como horizonte o fim da história. Por sua vez, Bataille - que apresentou o pensamento de kojève a Blanchot - pensa a possibilidade do Sagrado e da soberania no mundo pós-guerra segundo uma exigência antropológica, estando sempre atento à negatividade sem emprego traduzida pelo riso e pelo gozo.xxii Já Maurice Blanchot transpõe a totalidade do movimento hegeliano para a região antropológica da literatura. Centralizando a figura do escritor, ele transforma o trabalho de escrita na forma de trabalho por excelência. Nesta transposição, sua leitura se singulariza. Ele extrai, da leitura de Kojève, uma concepção de literatura autônoma e legítima calcada em um uso específico da metáfora da morte, concebendo um escritor submetido à estranha condição de, já estando morto, estar condenado a trabalhar (escrever) para morrer infinitamente. xxiii A Literatura é uma forma de ocupação antropológica que realiza no escritor um modo de efetivação do estar-no-mundo livre somente na medida em que a experiência se mantém presa à negatividade dialética da linguagem: questionamento, aniquilação, superação e conservação da vida ausente. Indeferida pela história, a literatura joga por um outro lado. Se não está realmente no mundo, trabalhando para fazer o mundo. É porque, por sua falta de ser (de realidade inteligível), ela se relacionada com a existência ainda desumana. Sim, ela reconhece, existe em sua natureza um deslizamento estranho entre ser e não ser, presença, ausência, realidade e irrealidade. O que é uma obra? Palavras reais e uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado 38 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot da realidade, e esse mundo é inacessível. Personagens que se querem vivos, mas sabemos que sua vida é feita de não viver (de permanecer na ficção); então, um puro nada? Mas o livro está ali, nós o tocamos, as palavras são lidas, não podemos muda-las; o nada de uma ideia, do que só existe compreendido? Mas a ficção não é compreendida, é vivida sobre as palavras a partir das quais se realiza, e é mais real, para mi que a leio ou a escrevo, do que muitos acontecimentos reais, pois se impregna de toda a realidade da xxiv linguagem e se substitui à minha vida, à força de existir. Numa época em que o esquecimento se torna a forma política possível, Blanchot constrói esta concepção da literatura como abertura, uma revelação dentro do vazio do esquecimento que, ao mesmo tempo, conserva-se como uma impostura. Finalmente, em La littérature et le droit à la mort, anuncia-se a literatura como espaço literário. A análise de La littérature et le droit à la mort apontou para a relação metafórica entre poder-morrer e poder-escrever, que culmina na situação de um escritor situado como centro tenso de uma dialética decapitada, descrevendo o movimento do fenômeno literário e seu encontro com a metáfora da morte. Notas e referências Doutoranda do Programa de História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (Puc-Rio), orientada pelo Professor Doutor Luiz Costa Lima. Contato: [email protected] i Para um maior aprofundamento acerca das políticas editoriais e circulação de revistas na França do imediato pós-guerra, bem como da importância do papel destas revistas para a reconstrução do ambiente cultural francês Cf. Histoire de l'édition française 4. Le Livre concurrencé 1900-1950. sous la dir. deHenri-Jean Martin, Roger Chartier et JeanPierre Vivet Paris : Promodis, 1986 p. 143-155. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 39 Aline Magalhães Pinto ii Blanchot, Maurice. La part du feu, Paris, Gallimard,1949,. A partir deste momento, para citações literais, A parte do fogo – tradução de Ana Maria Scherer. Rio de janeiro, Rocco, 1997; a referência ao original segue entre colchetes. Para as demais citações a referência é a obra original, indicada por (a). iii Blanchot, M. idem. p. 305 (a). iv Blanchot, M. idem, p. 292 [p. 306]. v Alexandre Kojève entre 1933 à 1939 à l’école des Hautes-Études (EHESS) proferiu uma série de seminários sobre a Fenomenologia do Espírito. As anotações destes cursos foram posteriormente reunidos em Introduction à la lecture de Hegel. Através dos seminários, mas também através de sua atividade intelectual na revista Recherches philosophiques,Kojève marca profundamente a comunidade universtária dos anos 30-50 na França, fixando por algumas décadas, até mais ou menos o fim do século XX, uma imagem de Hegel. Os seminaries tiveram como ouvintes, entre outros, Georges Bataille, Raymond Queneau, Gaston Fessard, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Raymond Aron, Roger Caillois, Éric Weill, Georges Gurvitch, Raymond Polin, Jean Hyppolite et Robert Marjolin. Cf. Jarezyk, Gwendoline e Labarrière, Pierre-Jean. De Kojève à Hegel – Cent cinquante ans de pensée hégélienne em france. Paris: Éditions Albin Michel, 1996. P. 29 e ss vi Blanchot, M. idem. p. 307 (a) vii Hegel, G [1807] HEGEL, G.W.F. In. Prefácio à Fenomenologia do Espírito. Tradução: Henrique Claúdio de Lima Vaz. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 305. viii Blanchot,M. idem. p. 296 [p. 310]. ix Blanchot, M. idem. p 312 (a). x Blanchot, M. idem. p. 315-316 (a). xi Blanchot, M. idem. p. 304 [p. 318]. xii Blanchot,M. idem p. 303 [p. 317-318]. xiii Blanchot, M. idem. p. 305[p. 319]. 40 ISSN 1414-9109 Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot xiv Cf. KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel: Leçons sur La Phénoménologie de l’Esprit professées de 1933 à 1939 à l’école des Hautes-Études réunies et publies par Raymond Queneau. Paris: Gallimard, 1947. Tradução brasileira: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; Contraponto, 2002. xv Blanchot, M. idem, p. 307 [p. 322]. xvi Blanchot, M. idem, p. 322] (a). xvii Blanchot, M.idem. p. 308 [p. 323]. xviii Blanchot, M. p. 324 (a). xix A ideia de Terror está diretamente relacionada ao livro Les Fleurs de Tarbes, em que jean Paulhan defende que a ojeriza a qualquer convenção literária, iniciada com o romantismo moderno e, por fim, transformada em um tipo de neurose na literatura da alta modernidade era uma forma de terror. O terror seria, explicitamente, a preeminência do pensamento sobre as regras e uso da linguagem. Blanchot publica xix um artigo sobre a obra de Jean Paulhan , chamado Le mystère dans les lettres, publicado em1941 no Journal des débats, foi re-publicado, assim como La littérature et le droit à la mort, em La part du feu. A interpretação de Blanchot radicaliza o argumento de Paulhan, e afirma o “terror” como exatamente o que a literatura tem de mais próprio. xx Blanchot, M. idem 341-342 (a). xxi Blanchot, M. idem. p. 311 [p. 325]). xxii Cf. BATAILLE, G. L’experience intérieure. [1943] Paris, Gallimard, 2009. xxiii Blanchot, M. idem. p. 339 (a) xxiv Blanchot, idem. p. 341 (a) Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 41 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) Aline Santos Costa A relação que se estabelece entre a Escola e a Literatura Infantil, no Brasil, data aproximadamente do século XIX. No entre séculos, os escritores Olavo Bilac e Manuel de Bonfim escreveram, em conjunto, livros de poesias e contos infanto-juvenis que tinham como alvo os alunos das escolas públicas brasileiras1. Na década de 1920, Monteiro Lobato também teve seus livros infantis adotados por algumas escolas e, tal expansão da Literatura Infantil continuou crescendo nos anos de 1930, principalmente a partir de novas ideias acerca da educação, propagadas sobretudo pelo movimento denominado ―Escola Nova‖2. A ―Escolarização‖ do livro infanto-juvenil se faz sentir, nesse período não apenas na adoção desse tipo de literatura pelas escolas, mas também pela própria classificação que é estabelecida para esse gênero. Algumas histórias são classificadas de acordo com a faixa etária das crianças, princípio semelhante ao usado para dividí-las em turmas escolares. Outro indicativo desse crescente uso do livro infanto-juvenil nas escolas, é a criação de disciplinas que visavam habilitar as futuras professoras para trabalharem com os livros infantis em sala de aula. O caso que será aqui melhor estudado é o do Instituto de Educação do Distrito Federal, entre os anos d 1935 e 1937. Para melhor compreender o papel da disciplina ―Literatura Infantil‖ na formação de professores no Instituto de Educação, é necessária a análise da ementa da disciplina que, de 1935 a 1937, foi assinada pela educadora Elvira Nizynska da Silva (professora assistente de Ensino de Leitura e Materiais de Ensino, entre 1934 e 42 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) 1937). A ementa é dividida em Objetivos (gerais e específicos) e bibliografia. Na primeira parte, é explicitado que: Ao lado dos objetivos de pura informação como o da significação social da literatura, sua finalidade, gêneros literários, etc, a matéria possui como função educativa geral, que pode assim ser discriminada: (A) A literatura, como aprendizagem de apreciação, tendo por finalidade o cultivo de sentimentos: educação estética e a formação de ideais de ação; (B) A literatura e as suas relações com as outras disciplinas; auxilio prestado à motivação de outras aprendizagens, e a aquisição de 3 certas habilidades. O primeiro objetivo explanado apresenta questões que já nos apontam certa aproximação com o chamado movimento de Renovação do Ensino (ou, Escola Nova): a formação de ideiais de ação. Nesse sentido, a Literatura Infantil deveria ser compreendida a partir de uma função educativa, formando o gosto pela leitura, e os sentimentos infantis. No período de 1930, com o movimento de renovação do ensino, a chamada Educação Estética era fundamental. Para muitos educadores, que comungavam dessas ideias, o ensino da música, do desenho e, principalmente, da literatura eram fundamentais para cultivar nas crianças e nos jovens, bons sentimentos (entendidos aqui como amor à pátria, à escola, à família, etc). O ―culto ao belo e ao harmônico‖ seria, então, uma forma de também de inspirar esses sentimentos. Todavia, a estética não é imutável ou atemporal. Ao contrário, varia de acordo com a sociedade analisada e com o momento histórico nela vivenciado. Assim, é importante compreender aquilo que, provavelmente, esperava-se de um livro de literatura infantil com valor estético. Apesar de não constar, ao menos no programa da disciplina, clara concepção estética acerca do livro infantil, a professora encarregada de ministrar o curso, Elvira Nizynska, escreveu algumas Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 43 Aline Santos Costa considerações a esse respeito, no artigo intitulado ―O problema da Literatura Infantil‖, que foi publicado na revista Infância, em 1936. Segundo a educadora, o que se esperava de um bom livro infantil era: Se a literatura infantil souber tirar partido desses interesses naturais, guiando, expandindo e apurando o gosto das crianças, aos poucos irá aparecendo a exigência de maior sinceridade nas histórias; o desejo do conhecimento do mundo que rodeia a criança, crescerá com um pendor acentuado, nos anos que precedem a adolescência, para as situações em que se faça sentir o predomínio da força, da coragem, da beleza, do estoicismo. E um período ideal para dirigir as crianças no sentido de apurar seu gosto estético, dar-lhes ideais nobres de ação; desenvolver, convenientemente, seus sentimentos, afastando-a 4 do sentimentalismo piegas e pernicioso. [...] Nesse primeiro momento do artigo, Nizynska ressaltou a ideia da função do livro infanto-juvenil na vida cotidiana das crianças. Além da formação das crianças em leitores, a literatura infanto-juvenil deveria ter o compromisso em também educá-los enquanto cidadãos. Para atingir esse papel educativo, o livro infantil deveria, sobretudo, partir dos interesses infantis. Tipos de histórias (aventuras, romances, lendas, contos, etc) preferidos pelos petizes, deveriam ser trabalhados de modo a direcionar, aos poucos, a leitura para o objetivo principal (educar, ao mesmo tempo em que a criança se diverte). No mesmo artigo, Elvira Nizynska apontou aquilo que considera como valor estético dos livros infanto-juvenis: Mas quais as qualidades essenciais aos livros, para que tal finalidade seja alcançada? Antes de tudo, arte. Arte na apresentação material do livro, afim de que ele seja um estímulo agradável. Até na linguagem, que deve corresponder a simplicidade, a clareza, a correção, sem preciosismo de estilo e 44 ISSN 1414-9109 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) rebuscamento de termos, sem emprego de termos grosseiros de gíria[...] A arte no enredo, isto é, fantasia delicada, dentro dos interesses dominantes nas crianças, em determinadas situações reais, embora o elemento de ficção ali se deva fazer sentir; soluções felizes, sem recurso a absurdos, incidentes jocosos que mostrem os aspectos pitorescos da vida, sem abuso do grotesco, e muita ação, muita vivacidade, muita imaginação com uma preocupação dominante da 5 ―formação moral‖ da nossa infância [...] No quesito estética, para a educadora, o livro infantil deveria ter assuntos ―leves‖ (sem tramas muito complexas ou que provocassem sentimentos de angústia ou medo), de acordo com os interesses infantis. Deveria também privilegiar a formação moral, a ação dos personagens e o final feliz. Nesse estilo literário, a fantasia deveria ser explorada em harmonia com as demais características do livro. Vale ressaltar que a presença do elemento fantástico nos livros infanto-juvenis foi, por muitos educadores, condenada. O próprio Lourenço Filho ponderava que, em alguns casos, a fantasia poderia interferir negativamente no conhecimento sobre o mundo (esse era um dos motivos que o levava a desaprovar histórias com animais e objetos inanimados falantes) 6. Aqui, ao contrário, Nizynska salientou a importância desse elemento, apontando que fazia parte do próprio processo de crescimento cognitivo e psicológico das crianças. O segundo objetivo, por sua vez, também dá indícios a respeito da orientação que se quer renovadora, da disciplina. Esse indício é a visão de que a literatura infantil deveria estar relacionada com o ensino e aprendizado de outras disciplinas. Esse segundo objetivo vem ao encontro do que o educador Fernando de Azevedo ponderava. Segundo ele, o grande problema do ensino de literatura (como um todo e não apenas a literatura infantil) era a preocupação com a formação de futuros escritores, e não com a formação de leitores. Para o educador, a literatura só fazia sentido se os leitores fossem envolvidos pelas histórias, motivados a ―seguir viagem‖ com o Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 45 Aline Santos Costa livro. A leitura, pois, deveria ter ações práticas, efetivas no cotidiano daqueles que a praticassem. Relatos de algumas alunas do Instituto de Educação demonstram essa relação estabelecida entre a literatura infantil e as demais áreas do saber. Nas aulas, Elvira Nizynska costumava ensinar às crianças a lerem através de histórias infantis. Para melhor entender os objetivos da disciplina, é importante compreender a importância da leitura para o movimento renovador. No período de criação da matéria de ―Literatura Infantil‖, o Instituto de Educação do Distrito Federal foi dirigido por dois importantes expoentes da Escola Nova, no Brasil: Anísio Teixeira e Lourenço Filho. O primeiro, enquanto Diretor Geral de Ensino do Distrito Federal, em 1934, criou a Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco, coordenada por Cecília Meireles. Além de biblioteca, o Pavilhão Mourisco também oferecia às crianças, aulas de dança, teatro infantil e música7. Havia, à época, por parte de alguns críticos, a acusação de que a Escola Nova não dava a devida importância aos livros e a leitura. Tal crítica derivava da ideia de que os renovadores preconizavam o Ensino Ativo (através de atividades práticas, de observação e experimento, sem grandes preocupações com a leitura). Contudo, tanto a gestão de Anísio Teixeira na Direção e Instrução Pública (até 1935) e a de Lourenço Filho no Instituto de Educação (quando houve a organização da biblioteca, para alunos e professores) demonstram justamente o oposto das críticas. A mudança não estava no ―não uso‖ dos livros, mas sim, no seu papel. Para os renovadores, a Criança (ou o aluno) era o centro da atenção educativa. Assim, a leitura deveria respeitar os limites e características desse público-alvo8. Respeitando os limites de cada aluno, a leitura privilegiada passou a ser a silenciosa. Além disso, uma vez que era a criança o ―centro de ação‖ educativa, os gostos literários infantis também passaram a ser um importante aliado dessa ―nova literatura infantojuvenil‖ que, nas palavras de Elvira Nizynska, em parecer à Comissão de Literatura Infantil, deveria recrear e educar, ao mesmo tempo. 46 ISSN 1414-9109 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) Sobre isso, Nizynska publicou, em 1936, um artigo na Revista Infância, no qual, apontava algumas pesquisas feitas com crianças da Escola Primária do Instituto de Educação, buscando verificar quais os principais gostos literários das crianças a partir da idade, sexo, série escolar, aos quais o leitor estava inserido 9. Assim, buscava-se uma literatura que, além do carater educativo, tivesse também de acordo com os interesses infantis, privilegiando também a formação estética do leitor (os livros deveriam ser belos, simples, em acordo também com o desenvolvimento cognitivo das crianças). Olha, era a professora Elvira Nizynska. Agora me lembrei o nome dela. Ela usava as historietas infantis para ensinar o início da leitura e as histórias. Era a melhor forma para despertar o interesse, curiosidade e desejo para saber ler e reler tais histórias. Nós usávamos [a literatura infantil] e adaptávamos de acordo com o meio cultural das crianças (...) Dessas histórias tirávamos as frases principais no ou do enredo, fazíamos tais frases no quadro negro. Elas [as crianças] depois escreviam ‗no ar‗ as frases; a seguir, no quadro negro (sem que apagássemos) e depois era destacadas tais ou determinadas palavras, cujas letras se encontravam em sacos individuais (alfabeto repetidos várias vezes, principalmente as vogais) para cada aluno escrever e ler‗ sem usar a soletração. (OLIVEIRA, 10 Helena Silva de In: VIDAL, Diana: p. 22) . Além dos objetivos e do uso prático das histórias infantis, a disciplina também apresentava bibliografia de curso que nos faz compreender melhor a relação entre a Escola Nova e a criação dessa disciplina no Instituto de Educação. b) Livros para consulta, para estudo comparativo e discussão: - Claparède – Psicologia del niño; - Helena Antipoff – Ideais e interesses das crianças de Belo Horizonte; - Marcel Braunsclavid (Revista do Brasil – outubro de 1921) – A Literatura Infantil. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 47 Aline Santos Costa c) Leituras recomendáveis: - Sampaio Doria – Educação; - Kilpatrick – Educação para uma civilização em mudança; - Binet – Les idées modernes sur les enfants; - Claparède – Educação Funcional; - Dewey – Como pensamos; 11 - Piaget – Le lengage et la pensée chez l‗enfant. A maioria dos autores apresentados na lista de livros recomendados pela professora é composta por teóricos da chamada Escola Nova ou por estudiosos que ajudaram a pensar a criança naquele momento. Piaget é um nome importante, pois classifica a criança conforme a idade e o desenvolvimento cognitivo. Foi com base nos estudos de Piaget que as escolas passaram a dividir seus alunos em turmas. Na comissão há toda a preocupação em classificar — de acordo com o nível de complexidade, de linguagem e de tema — os livros infantis por idade. Levavam-se em consideração dois aspectos: o interesse da criança e seu nível de desenvolvimento cognitivo. Já os estudos de Edouard Claparède em ―Psicologia da Criança‖, lança mão de pesquisas recentes sobre o universo infantil para apresentar considerações acerca dos interesses, das melhores maneiras de estimular o desenvolvimento cognitivo da criança. John Dewey – considerado por muitos como o precursor da Escola Nova – apresenta a importância do desenvolvimento de uma nova educação para uma sociedade em constantes transformações. Os autores que nortearam a disciplina Literatura Infantil, não apenas apresentaram novas concepções acerca da educação, mas também – e principalmente – em relação ao estatuto psicossocial da criança. Uma vez entendida como centro de toda ação pedagógica, a criança passa a ter seus interesses, gostos e sentimentos levados em consideração (embora nem sempre eles prevaleçam no caso da escolha dos melhores livros infanto-juvenis). Essa nova percepção sobre a infância – enquanto fase do desenvolvimento humano – 48 ISSN 1414-9109 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) também se refletiu naquilo de era destinado aos petizes. No caso da literatura infantil, o conhecimento apresentado por Piaget, por exemplo, a despeito das fases do desenvolvimento, auxiliaram a desenvolver a classificação etária dos livros infantis (de acordo com a linguagem, com o tipo de história, de fantasia apresentada). Além de aprenderem a trabalhar, em sala de aula, a usar a literatura infanto-juvenil, as professorandas também aprendiam a classificar os livros destinados às crianças, bem como avaliá-los. Dos quesitos a serem avaliados estavam: VI – Requisito que deve preencher um livro de literatura infantil: Texto; Organização: unidade, atualidade e exatidão de noções. Adaptação aos interesses básicos das crianças Qualidades artísticas. Linguagem: propriedade, correção, clareza e simplicidade. Feição Material. Formato. Encadernação Papel. Impressão. 12 Gravura. As professoras em formação deveriam, quando escolher os livros para serem trabalhados, considerar também as dimensões materiais das obras (tamanho, número de páginas, encadernação, papel). Os preferenciais deveriam ser aqueles acessíveis, que fossem fáceis de serem carregados pelas crianças, de modo que os petizes pudessem ler onde melhor lhes agradassem. Uma boa impressão e linguagem simples, clara e correta, também eram quesitos fundamentais. O exercício de escolherem os livros infantis ideais para o trabalho na escola fazia, então, parte da formação docente nesse período. A presença da escola nova se fazia aí presente não somente Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 49 Aline Santos Costa pelas discussões teóricas, ou pelas práticas planejadas para serem trabalhadas em aula com os alunos da escola elementar do Instituto de Educação (onde as normalistas faziam o estágio docente), mas também na estruturação do próprio curso de Literatura Infantil). Outra parte da Ementa que nos leva a pensar sobre isso é a destinada a explanar os ―processos de trabalho‖ (ou seja, a mameira como se desenvolverá a disciplina). 4. Processo de trabalho: Dissertação pelo professor, das noções básicas necessárias ao estudo da matéria. Pesquisas bibliográficas para o estudo da evolução dos interesses nas crianças conhecimento de inquéritos realizados no Brasil e estrangeiro sobre Literatura Infantil. Leituras e apreciação de livros de literatura infantil. Discussão sobre bibliográfico colhido pelos alunos. Discussão sobre livros de literatura infantil para a apreciação e classificação dos mesmos. Inquéritos sobre interesses e ideias das crianças. Inquérito sobre tipos de leitura preferidos pelas crianças, nas 13 diferentes idades e classes. O incentivo à pesquisa sobre os gostos das crianças é salientada nos dois últimos ítens do programa (―Inquéritos‖). A construção do conhecimento por meio de discussões e pesquisas é uma novidade trazida pelo ensino renovador. Os trabalhos realizados pelas educandas foi citado por Elvira Nizynska no artigo publicado em Revista Infância. Segundo a professora, o trabalho foi realizado pelas professorandas e ―entrevistou‖ crianças da Escola Primária do Instituto de Educação, além de crianças das famílias das alunas14. Por fim, podemos então perceber que o processo de escolarização do livro infantil é muito mais complexo e envolve não apenas a adoção de certos livros pelas escolas ou, ainda, a 50 ISSN 1414-9109 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) ―pedagogização‖ das histórias infantis. Antes de mais nada, exige definir o público - alvo desejado, compreender seus gostos e definir critérios ―ecléticos‖ para avaliar os livros que serão destinados a ele. Ao mesmo tempo, esse processo exige que a escola crie espaços que disponibilizassem os livros aos alunos, uma vez que nem todos teriam condições de comprar os livros infantis. As bibliotecas escolares e as infantis, por sua vez, passam a ser pensadas tendo como foco não mais o entesouramento as ―obras da humanidade‖, mas a interação da criança com o livro e com o espaço. E essas mudanças foram, então, iniciadas pelo movimento de renovação do ensino15. Em 1935, no Instituto de Educação, foi elaborada uma monografia que constava como ―plano de ensino de linguagem e leitura‖16 e muitas dessas ideias ―novas‖ de leitura, importância da biblioteca e papel do professor como mediador entre aluno e o livro foram ressaltadas. A disciplina Literatura Infantil, então, pode ser entendida como uma das faces desse projeto de escolarização da leitura (e da literatura infantil) implementado pelos educadores da Escola Nova. Notas e referências 1 Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected] LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e literatura escolar na república velha. São Paulo: Ática, 1998. 2 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Editora Moderna; 2000. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 51 Aline Santos Costa 3 SILVA, Elvira Nizynska da. Ementa da Disciplina Literatura Infantil. Publicação do Instituto de Educação & Universidade do Distrito Federal – Rio de Janeiro – Brasil. Vol. I, março de 1937. (Localização: Centro de Memória Institucional do Instituto de Educação do Rio de Janeiro). 4 SILVA, Elvira Nizynska da. ―O problema da Literatura Infantil‖. In: Revista Infância. Julho de 1936. (Acervo de Periódicos da Biblioteca Nacional). 5 Idem. 6 Ver: COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/ Juvenil. Ática, São Paulo, 1991. SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007 7 PIMENTA, Jussara Santos. Leitura, arte e educação: a biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco (1934- 1937). Editora CRV: Curitiba; 2011. 8 VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora Universidade São Francisco; 2001. 9 Sobre pesquisas e gostos infantis, e sua relevância para a definição de literatura infantil ver: COSTA, Aline Santos. A Comissão Nacional de Literatura Infantil e a formação do público leitor infanto-juvenil no Governo Vargas (19361938). Dissertação de Mestrado defendida pelo PPGHIS/UFRJ; Rio de Janeiro; 2011. 10 Apud. VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora Universidade São Francisco;p.22. 2001 11 SILVA, Elvira Nizynska da. Ementa da Disciplina Literatura Infantil. Publicação do Instituto de Educação & Universidade do Distrito Federal – Rio de Janeiro – Brasil. Vol. I, março de 1937. (Localização: Centro de Memória Institucional do Instituto de Educação do Rio de Janeiro). 52 ISSN 1414-9109 Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) 12 Idem. 13 Idem. 14 SILVA, Elvira Nizynska da. ―O problema da Literatura Infantil‖. In: Revista Infância. Julho de 1936. (Acervo de Periódicos da Biblioteca Nacional). 15 VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora Universidade São Francisco; 2001. 16 INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. Linguagem na Escola Elementar. Rio de Janeiro: 1935. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 53 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política Amanda Muzzi Gomes O jovem Joaquim Nabuco Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 1849, filho de Ana Benigna de Sá Barreto e José Tomás Nabuco de Araújo, expresidente de província, então deputado geral e futuro senador do Império do Brasil. Os Nabuco de Araújo constituíam uma influente família baiana, com senadores desde o Primeiro Reinado. Os Paes Barreto eram extremamente influentes em Pernambuco desde o século XVI. Quando sua família estabeleceu residência no Rio de Janeiro, em razão de seu pai ter sido novamente eleito deputado geral, Nabuco permaneceu com a madrinha, no Engenho Massangana, em Pernambuco. Quando Ana Rosa Falcão de Carvalho morreu, em 1857, Nabuco foi morar com os pais no Rio de Janeiro. Como quase todos os jovens oriundos de família com cabedal político, Nabuco estudou Direito, iniciando os estudos na Faculdade de São Paulo e concluindo-os na Faculdade de Direito de Recife. Pouco depois de ingressar na universidade, teve sua primeira atuação no jornalismo. Foi um dos fundadores do jornal Tribuna Liberal, criado para atacar o gabinete Zacarias de Góes e Vasconcellos, em ação juvenil que muito desagradou seu pai. O conselheiro Nabuco, então, tomou o impulso de iniciar os filhos Joaquim, mais velho, e Sizenando no mundo da política, levando-os a reuniões do Centro Liberal, em 1868. Beneficiando-se das discussões que presenciava e dos primeiros contatos em círculo de notáveis da política nacional, Nabuco escreveu seu primeiro livreto, O Povo e o trono – profissão de fé política, sob o pseudônimo 54 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política de “Juvenal, Romano da decadência”.i Como todo e qualquer texto, este escrito de iniciação foi marcado pelo seu contexto de produção. Atentemos, portanto, ao panorama político, o de mais intensa recomposição e realinhamento políticos do Segundo Reinado, em que estava imerso o jovem Nabuco. O desmonte da lógica da Conciliação O Ministério da Conciliação, iniciado em 6 de setembro de 1853, foi assim chamado porque cargos da administração e do parlamento foram dados a liberais estando os conservadores no poder. Sua direção coube a Honório Hermeto Carneiro Leão, visconde e posteriormente marquês de Paraná.ii O conselheiro Nabuco de Araújo, chefe conservador, foi um dos políticos que mais defendeu a harmonização entre os elementos moderados dos dois partidos, como no discurso de 6 de julho, apelidado pelos parlamentares de “ponte de ouro”.iii Com as eleições de 1860, entretanto, a oposição liberal cresceu, e voltaram à Câmara vários liberais históricos iv, como Teófilo Otoni. Os anos de 1860 a 1862 se caracterizaram por uma forte v oposição aos emperrados. A maioria parlamentar não foi capaz de garantir efetiva governabilidade aos conservadores, que se dividiram entre as lideranças tradicionais e as novas, mais moderadas. Tal esfacelamento intra-partidário fez com que os conservadores herdeiros da conciliação iniciassem uma dissidência e se aliassem aos liberais históricos, em outra coalizão, a Liga Progressista. Na articulação desta nova composição destacaram-se dois chefes políticos: no Senado, o seu principal mentor, o conservador dissidente Nabuco de Araújo; na Câmara, o liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos. Eles conseguiram retirar os conservadores do poder e iniciaram um novo gabinete, agora de primazia liberal.vi Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 55 Amanda Muzzi Gomes A Liga Progressista levou adiante o ideal da harmonização dos partidos, subjacente à conciliação, mas agora sob a égide liberal. De bloco parlamentar a nova composição transformou-se no Partido Progressista, em 1864, o primeiro partido formalmente criado no Brasil. Seu programa demandava, entre outros fatores, a descentralização, tese clássica dos liberais, e a responsabilidade dos ministros pelos atos do Poder Moderador.vii Embora nem tenha sido publicado, este foi o primeiro programa político elaborado por um partido no país. O predomínio liberal da aliança progressista era incerto, sendo frequentes as mudanças de posições partidárias. O período progressista foi o de maior instabilidade ministerial do Império.viii O caráter volúvel já começou com o primeiro gabinete, de Zacarias, de 1862, que durou apenas seis dias. Até a reação conservadora, em 1868, sucederam-se cinco ministérios.ix A Guerra do Paraguai veio jogar mais água no moinho das volatilidades políticas, fazendo com que as discussões sobre relações estrangeiras e demarcação de fronteiras, particularmente com a invasão brasileira ao Uruguai e o bloqueio de Montevidéu, afetassem a política doméstica. Diante de um conflito externo, os partidos brevemente abrandaram suas animosidades. Mas a calmaria partidária durou menos do que as circunstâncias exigiam, em parte pelo próprio prosseguimento da Guerra, dado o adiamento de operações, os problemas de organização e a resistência paraguaia.x De um apoio inicial à Guerra, os parlamentares começaram a questionar a centralização das operações pelo gabinete e erros de comando das estratégias bélicas. Conflitos de bastidores foram travados entre o progressista Zacarias, presidente do Conselho de Ministros, e o marquês de Caxias, general em chefe, do Partido Conservador. Para não desagradar o comandante das tropas brasileiras, Pedro II, fazendo uso do poder moderador, chamou Zacarias para 56 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política indicar o seu sucessor. Como Zacarias pediu para ser dispensado de fazer a indicação, ele foi destituído. O Partido Progressista se desintegrou, até porque já vinha sendo minado internamente pela própria divisão pela qual se formou: liberais históricos e conservadores dissidentes. Todavia, o fim do Partido Progressista não significou um recuo dos liberais. Muito ao contrário, iniciou-se movimento de violentos ataques ao Poder Moderador e novas recomposições partidárias. Para compor novo gabinete, Pedro II chamou Joaquim José Rodrigues Torres, o visconde de Itaboraí, antigo líder do Partido Conservador e um dos integrantes da trindade saquarema, que aceitou o convite para o que ele mesmo chamou de “perigosa tarefa”.xi O início do novo gabinete, a 16 de julho, ocasionou mais uma crise partidária: a separação definitiva entre liberais e conservadores e nova cisão entre os liberais. Desde o início do primeiro gabinete Zacarias (24 a 30 de maio de 1862), os liberais e os progressistas (a partir de 1864) estavam no poder. Apesar de divididos, com maioria nas duas casas parlamentaresxii, os progressistas reagiram bruscamente à nova situação conservadora, vista como reacionária. Um dos políticos que mais influenciou a onda de ataques à figura do imperador e ao falseamento do sistema representativo foi Nabuco de Araújo. Teve bastante repercussão o seu discurso proferido na sessão do Senado de 17 de julho de 1868: O Poder Moderador não tem o direito de despachar ministros como despacha delegados e subdelegados de polícia. [...] Ora, dizei-me, não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: o Poder Moderador chama a quem quer para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 57 Amanda Muzzi Gomes fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema xiii representativo do nosso País! O discurso do senador Nabuco funcionou como reforço ao ataque às usurpações do Poder Moderador. Reativaram-se nas fileiras liberais os brados contra o poder pessoal ou “imperialismo”. Apesar de antigo, esse havia sido o mote de críticas do período de governo da Liga/Partido Progressista. No momento de sua queda, acabou sendo intensificado. Principalmente na Corte e em São Paulo todas as ocasiões eram aproveitadas para combater os excessos da centralização. Entre a juventude acadêmica, o antimonarquismo levou a uma significativa adesão ao republicanismo. Resolvidos a reorganizar o Partido Liberal, líderes da dissidência progressista, como Nabuco de Araújo e Zacarias fundaram o Centro Liberal, ainda em 3 de outubro de 1868, presidido pelo primeiro.xiv O Centro se tornou o embrião do (novo) Partido Liberal, criado no ano seguinte, cuja conformação se manteve, sem se subdividir, até o fim da monarquia. Nabuco de Araújo redigiu o Manifesto do Centro Liberal, publicado em 30 de março de 1869, com árduas críticas ao ministério Itaboraí. A legenda proclamada no Manifesto, “Reforma ou revolução!”, ajudou a bandeira reformista a ganhar amplitude em um momento prenhe de insatisfações. Em maio, nas páginas do jornal A Reforma, os membros do Centro Liberal apresentaram um vasto programa de reformas: eleição direta; abolição gradual da escravidão, iniciando-se com a libertação do ventre; descentralização; vitaliciedade do Senado; reforma do Conselho de Estado; redução das forças militares em tempos de paz; extinção da Guarda Nacional; as reformas judiciárias do programa progressista, entre outros itens.xv Criticou-se também a reforma do Código do Processo Criminal, que teria deixado o cidadão sujeito às arbitrariedades policiais e judiciais.xvi 58 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política Foi em 1868 que Nabuco de Araújo colocou o filho para traduzir documentos publicados pelo Anti-Slavery Reporter, revista da British and Foreign Anti-Slavery Society de Londres.xvii O jovem Nabuco consolidou relações com eminentes políticos liberais amigos do pai, como o próprio Zacarias e Saldanha Marinho. Foi no clima de ebulição de fins de 1868 que Joaquim Nabuco, ainda estudante universitário, escreveu o seu primeiro livreto político, influenciado pelo ambiente de hostilidades ao imperador. “O povo e o trono”: retórica e argumentação O livreto O Povo e o Trono, escrito em fins de 1868 e publicado no ano seguinte, foi redigido em estilo bem colérico, refletindo a pouca maturidade de Nabuco, aos dezenove anos. Acabou sendo praticamente desconsiderado pela historiografia, pois manchava a imagem criada pelos seus biógrafos. Luiz Viana Filho chegou a questionar se o panfleto não passaria de um “simples assomo de mocidade” e concluiu que Nabuco, como jovem apaixonado, vivendo num momento divisor de águas, não sabia de que lado se posicionar.xviii Assim como o biografado fica marcado com as impressões do biógrafo, aquele cuja vida será traçada, principalmente quando já redigiu memórias e outros escritos autobiográficos, deixa traços com os quais espera ser pintado por biógrafos futuros. Como David Lowenthal adverte, “toda memória transmuta experiência”. Por isso, “destila o passado mais que o reflete”.xix Nos seus textos autobiográficos, Nabuco esboçou as marcas com os quais gostaria de ser visto e retratado pela posteridade. Ao contar sua história de vida, como observa Bourdieu, o indivíduo atua como autor de sua própria história, seleciona alguns acontecimentos em função de uma intenção maior e estabelece entres eles nexos com o objetivo de garantir uma determinada coerência. Assim, o indivíduo cria uma retórica ordenadora da descontinuidade do real em Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 59 Amanda Muzzi Gomes um esforço de produção de si mesmo. Portanto, a coerência perfeita de uma história de vida já tem suas bases dadas por quem produz esta representação de si.xx Essa é uma das maneiras pela qual se manifesta a ilusão biográfica. Cria-se uma representação linear, coerente e acabada, mas que não se relaciona de fato à realidade, pois, como observa Michel de Certeau, cada homem é “um locus no qual uma incoerente e frequentemente contraditória pluralidade de determinações relacionais interagem”. xxi A coerência e a perfectibilidade estão longe da existência real, embora sejam anelos humanos e daí a ânsia do indivíduo em representar a si mesmo neste padrão. Evidentemente, como não há memória estável e fixa, ela é (re)atualizada constantemente nas memórias e biografias. Os dois principais biógrafos de Nabuco, a sua filha Carolina e Luiz Viana Filho, pintaram-no de maneira similar à que ele mesmo se representou em Minha Formação. Daí a pouca valorização dos escritos embora não a atuação da juventude, até finais da década de 1870, e mesmo da fase radical, na década de 1880. Há um favorecimento da fase clássica, da proclamação da República em diante, quando um nostálgico Nabuco pintou a si próprio como mais sério e moderado. Carolina descreveu Nabuco como “pouco indulgente para suas xxii obras de mocidade”. Foi por isso que ela nem mencionou O Povo e o Trono, reportando-se ao trabalho incompleto e não publicado A Escravidão como se fosse o primeiro escrito não literário e não jornalístico de Joaquim Nabuco.xxiii A Escravidão, apresentada como o primeiro livro político de Nabuco, se encaixa muito bem na imagem que a biógrafa anunciou desde o início para o pai: o “apóstolo da Abolição”, em prosseguimento à obra do avô como “oráculo do Senado”.xxiv Em outra chave interpretativa, Leonardo Dantas Silva vê o opúsculo, embora “escrito no fervor das paixões”, como “um verdadeiro libelo contra a monarquia”.xxv Na parte final, Nabuco apresentaria tom republicano: “Sejamos um povo livre. Nos cânticos 60 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política sagrados da América seja a nossa voz uma harmonia, não uma dissonância”. Nabuco, de fato, teve um rápido namoro com o reacender das ideias republicanas em solo brasileiro, até porque essa aproximação foi típica dos ambientes universitários da virada da década de 60 à de 70. Entretanto, Nabuco nunca se posicionou de fato como republicano. Desde a juventude, em seu conteúdo tendeu a seguir os passos do pai, embora a forma, de fato, fosse bastante desabrida, com estilo impetuoso de um jovem que queria causar impacto. O pensamento político dos estadistas brasileiros do Império teve nítida inspiração européia, particularmente dos textos legais franceses, além dos de filosofia que os embasava.xxvi Logo no início de O Povo e o Trono, o jovem Joaquim Nabuco também tomou a França como madrinha do “verbo santo da liberdade moderna” ouvido pelos povos após a Revolução Francesa. Com forte viés historicista, após comentários retóricos sobre outras experiências, Nabuco apresentou o trono como uma “fatalidade” e o povo como a “liberdade”. O trabalho do século XIX seria a extinção da realeza. Nos países que a mantinham, como o Brasil, ela deveria se harmonizar com o povo. Nabuco, mais do que defender a república, levantou a bandeira de luta daquele momento do Partido Liberal: o combate ao Poder Moderador. Só uma “regeneração social” possibilitaria a substituição do “regime pessoal” pelo “puro governo representativo”. Apenas quando a “vontade de um só” fosse suplantada pela “voz da praça pública” haveria, em vez do “imperialismo”, a “democracia”.xxvii Os conceitos antitéticos assimétricos, profusos no texto de Nabuco, foram empregados para defender a democracia, e não propriamente a república, face ao “déspota cruel”. Alguns pares conceituais antônimos bem simples e explorados no setecentos do Iluminismo – como verdade e mentira, sombra e luz, tirania e Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 61 Amanda Muzzi Gomes liberdade – foram caracterizados por ele como “antíteses eternas, que se repelem ainda mais na terra americana”.xxviii Como aponta Reinhart Koselleck, pela própria relação dicotômica, os conceitos antitéticos assimétricos têm efeito persuasivo.xxix Por seu valor argumentativo de fácil inteligibilidade, na medida em que os pólos são mutuamente excludentes, eles foram bastante utilizados na oratória moderna, para fins de propaganda política, e também em panfletos, opúsculos e artigos de jornais. No caso do primeiro opúsculo de Nabuco, foi com base nesses pares antitéticos e nas comparações, da realidade brasileira com outras, que o autor pretendeu convencer o leitor do caráter extemporâneo da organização política da monarquia brasileira. Apesar de constitucional, o regime político no Brasil não seguia a senda do século, pois o “governo pessoal pertence às criações híbridas do passado”. Assim, o país teria um governo absoluto como o da China e o do Japão e a Constituição do país seria “um disfarce calvo do absolutismo turco”.xxx Daí a argumentação de Nabuco de que “o trono deve ceder ao impulso do povo”, para que “barco” do Brasil se coloque na “cadência das ondas” do século. Citando autores europeus e sobretudo franceses ‒ como Louis Adolphe Thiers, Jules Favre, e Jules Simon – Nabuco combateu o absolutismo. Outro alvo de crítica, a este relacionado, era o aulicismo, até porque beneficiava o Partido Conservador, pois este, “proscrito pelo povo”, foi “reintegrado pela coroa”, em uma referência indireta à queda de Zacarias. No par antônimo assimétrico principal, que dá título ao opúsculo, Nabuco reverberou a crítica do pai no discurso do sorites: Como ainda se ouse negar que o poder do rei seja o único – quando se o vê demitindo e nomeando livremente os ministros, que por sua vez demitem e nomeiam as câmaras, porque de há muito as câmaras não são as depositárias de um poder extenso como a soberania do xxxi povo [...]. 62 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política A mesma crítica que o pai fez, e os liberais bradavam contra o falseamento do sistema representativo, Nabuco repetiu ao falar das eleições: “se as eleições não são senão uma comédia ridícula... o único poder sério, alfa e ômega... princípio e fim de toda autoridade fica sendo o da majestade imperial”. Nabuco tanto defendeu causas dos liberais que tratou das divergências entre os partidos do Império, afirmando que “a mais radical separação dos dois partidos está no modo de entender a estrutura dos poderes públicos”. Os liberais demandavam a responsabilidade do Poder Moderador ou a sua extinção, ao passo que os conservadores queriam o status quo. xxxii Nabuco tanto se posicionou como um simpatizante do Partido Liberal, e não de algum republicanismo, que defendeu bandeiras liberais, tais como: [...] pedimos como urgente e primeira reforma, garantia necessária à conservação social – a abolição do poder moderador! Queremos a responsabilidade ministerial para todos os atos do poder – porque só assim teremos a verdade da fórmula sobre que assenta o xxxiii regime representativo: o rei reina, mas não governa. Foi com base na máxima de Thiers, já antes muito citado pelos progressistas, que Joaquim Nabuco prosseguiu nas críticas ao Poder Moderador, particularmente no que se refere à irresponsabilidade, inviolabilidade e sacralidade do imperador. Ainda seguindo os preceitos do Centro Liberal, Nabuco levantou também a bandeira das reformas, apresentando-as como se fossem demandadas pelo povo. A reforma constitucional seria imprescindível, uma vez que, para os conservadores, a Constituição é “o manto esfarrapado com que encobrem todos os arbítrios, todas as vergonhas”.xxxiv Outras “reformas demandadas” foram enumeradas nesta ordem: a eleição direta, a liberdade de cultos, a temporalidade do Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 63 Amanda Muzzi Gomes Senado, a abolição da Guarda Nacional e “por último resta o elemento servil”. Tais propostas foram apresentadas como o “programa” do Partido Liberal, partido de “popularidade grande pelo xxxv esplendor de suas ideias”. O jovem Nabuco apresentou este receituário político porque seguia a plataforma política do Centro Liberal, do qual se originou o Clube da Reforma e o (novo) Partido Liberal. Ainda que só viesse a fazer sua estreia parlamentar quase dez anos depois, esta foi à primeira inserção de Nabuco na política do Império. Os reveses do Primeiro Reinado, culminando com a independência de fato do Brasil, no 7 de abril de 1831, foram apresentados como lições ao Segundo Reinado. No traçado histórico de Nabuco, desde a Independência até a abdicação, observa-se uma exemplaridade negativa, ao estilo de Francesco Guicciardini. Por isso, o reinado de D. Pedro I era “fonte de grandes lições para os que governam” agora, porque seus erros seriam “conselhos sábios” capazes de ensinar que o trono só pode se manter com reconhecimento do povo. No último item, disposto por Nabuco como epílogo, a atenção voltou-se ao continente americano no tempo presente. Daí a frase que dá a entender que ele defende a “república” como forma de governo para o continente, embora o termo não apareça nenhuma vez no opúsculo. Embora Nabuco se reporte à maneira como a América do Norte se livrou “das cadeias da opressão”, sua atenção recaiu no grande acontecimento daquele momento: a guerra no Sul, com a tomada de Lomas Valentinas. Nabuco propôs que o Brasil deveria se livrar da tirania tal como o Paraguai, pois “ainda há outra vítima, além do Paraguai, é o Partido Liberal”. Assim, ele repetiu o eixo em torno do qual girou o panfleto: o Partido Liberal estava proscrito pelo trono, mas contava com o acolhimento do povo, que deveria ser o verdadeiro depositário da soberania. A própria analogia com o Paraguai teve esse sentido: era preciso livrar o Partido Liberal 64 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política dos grilhões que o aprisionavam. A motivação para a redação do panfleto era a situação brasileira e, mais particularmente, a condição de “proscrito” do Partido Liberal, pois “aqui estamos sob a influência xxxvi de uma crise que deve resolver-se”. Um opúsculo de expressão do (novo) Partido Liberal O Povo e o Trono de Nabuco foi redigido num momento de recomposição dos liberais; daí que apresentou propostas próximas à do Centro Liberal, de onde saiu o programa do (novo) Partido Liberal. Apesar de sua forma desabrida, O Povo e o Trono foi um livreto de expressão do (novo) Partido Liberal, então em formação. O panfleto foi escrito pouco antes da publicação do novo programa partidário, mas Nabuco se beneficiou do que ouvia nas reuniões políticas no Centro Liberal. No turbilhão de debates e novidades em que se via imerso em 1868, a sua experiência familiar e cotidiana lhe fornecia meios de expressar, e tornar inteligível para si mesmo, o que via pipocar no meio político. Portanto, O Povo e o Trono, escrito de iniciação de Nabuco na vida política, foi um manifesto crítico do autor sobre o seu momento. O jovem estudante, recém inserido em um mundo de políticos, presenciando uma grande crise política, resolveu se posicionar e chamar atenção. Daí algumas imprecisões, o exagero da retórica, certas diatribes e a farta tecedura de analogias. Agindo como um cronista, o panfleto foi uma estratégia de Nabuco, já versado na atividade jornalística universitária, para se fazer conhecido. O jovem, filho de notório político do Império, tentava se projetar. Sendo ator da narrativa que escreve, o autor acaba relatando um pouco da própria história.xxxvii No fundo, Nabuco falava da experiência mais próxima: do pai e seus co-partidários. Novo na idade, inexperiente na avaliação do panorama político, o texto não poderia deixar de ter exageros. Tratava-se de um reflexo do próprio choque da crise de 68 que impulsionara Nabuco em seu primeiro escrito político. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 65 Amanda Muzzi Gomes Notas e referências Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC Rio), orientada pelo Professor Doutor Marco Antônio Villela Pamplona. Contato: [email protected] i NABUCO, Joaquim. O povo e o trono – Profissão de fé política de Juvenal, Romano da decadência. Rio de Janeiro: Typographia e Litographia Franceza, 1869. In: SILVA, Leonardo Dantas. Joaquim Nabuco e a República. Recife, FUNDAJ, Editora Massangana, 1990. Série República, Fundação Joaquim Nabuco, vol. 6. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jn000026.pdf Acesso em 10 jan. 2012. ii O Ministério da Conciliação ficou sob a chefia de Paraná até a sua morte, em 3 de setembro de 1856. Foi substituído provisoriamente pelo titular da pasta da Guerra, Luís Alves de Lima e Silva, na época conde, depois marquês e duque, de Caxias, que ficou na chefia de gabinete até 4 de maio de 1857. O último presidente do Ministério da Conciliação foi Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, até 12 de dezembro de 1858. iii Apud NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 2 v. [1897-1899], p. 151-155. iv Os liberais históricos assim se autodenominavam porque reivindicavam para si a herança das glórias do 7 de abril de 1831 e do Ato Adicional de 1834. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do Império. Organização: Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 146. v Id., ibid., p. 105 e p. 111. O primeiro a empregar o termo emperrados foi o liberal Zacarias. vi BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império brasileiro: panorama político”. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 254. 66 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política vii Apud BRASILIENSE, Américo. Os programas dos partidos e o Segundo Império. São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878, p. 15-22. O programa reivindicava: divisão de poderes, responsabilidade dos ministros pelo poder moderador, liberdade individual, descentralização administrativa, representação de minorias, execução do Ato Adicional, reforma da lei eleitoral, reforma e organização judiciária, separação da polícia e justiça, reforma hipotecária, organização de um código civil, revisão do código comercial, organização do crédito territorial, revisão do código comercial, reforma municipal, reforma da guarda nacional, educação e regeneração do clero. viii CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 410. ix Seguiram os ministérios de: Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, até 15 de janeiro de 1864; Zacarias de Góis e Vasconcelos, até 31 de agosto de 1864; Francisco José Furtado, até 12 de maio de 1865; Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, até 3 de agosto de 1866 e Zacarias de Góis e Vasconcelos, até 16 de julho de 1868. x IZECKSOHN, Vitor. “Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai”. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 188. xi HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 145. xii De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., 75% dos deputados eram liberais ou progressistas, p. 118. xiii Apud MORAES, Evaristo de. Da monarquia para a república (1870-1889). 2ª ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985 [1936], p. 23-41 e CELSO, Afonso. Oito Anos de Parlamento. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981. Coleção Temas Brasileiros, vol. 8 [1901], p. 149-150. xiv Eram representantes do Centro Liberal: Nabuco de Araújo, Zacarias de Góes e Vasconcellos, Bernardo de Souza Franco, Antonio Pinto Chichorro da Gama, Francisco José Furtado, José Pedro Dias de Carvalho, João Lustosa da Cunha Paranaguá, Teófilo Benedito Otoni e Francisco Otaviano. A. Celso, op. cit., p. 159. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 67 Amanda Muzzi Gomes xv Transcrito em BRASILIENSE, Américo, op. cit., p. 33-54. xvi Esta plataforma reformista acabou se tornando o programa adotado pelo (novo) Partido Liberal e assim perdurou por vinte anos, até a elaboração de um novo programa, em maio de 1889. xvii BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Britânicos (Correspondência 1880-1905). Rio de Janeiro: Topbooks, 2008, p. 17. xviii VIANA FILHO, Luiz. A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, Instituto Nacional do Livro/MEC, 1973, p. 34-35. xix LOWENTHAL, David. “How we know the past”. In: ______. The past is a foreign country. Cambridge: New York, Cambridge University Press, 1988. Tradução em Revista Projeto História, n. 17, Trabalhos da Memória. São Paulo: PUC-SP. Programa de pós-graduação em História, nov. de 1998, p. 63-201. xx BOURDIEU, Pierre. “A Ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta M; AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 183-192. xxi Apud SCHMIDT, Benito Bisso. “Construindo biografias... historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos”. Estudos Históricos, vol. 10, n. 19, 1997, p. 17. xxii NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. 4ª ed. rev. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1958. Coleção Documentos Brasileiros, vol. 92, p. 27. xxiii Id., ibid., p. 30. xxiv Id., ibid., p. 11 e p. 79. xxv SILVA, Leonardo Dantas (org.). Nabuco e a República. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1990, p. X-XI. xxvi MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro, Access, 1999, p. 246. S. B. de Holanda, Capítulos de história do Império, p. 91-92. xxvii NABUCO, Joaquim. O povo e o trono, p. 7- 9. xxviii Id., ibid., p. 13. 68 ISSN 1414-9109 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política xxix KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p. 191-231. xxx NABUCO, Joaquim. O povo e o trono, p. 7-14. xxxi Id., ibid., p. 11. xxxii Id., ibid., p. 11-14. xxxiii Id., ibid., p. 15-16. xxxiv Id., ibid., p. 15-18. xxxv Id., ibid., p. 19-22. xxxvi Id., ibid., p. 28-31. xxxvii MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca. “O presente como questão: a República nas histórias do Brasil de João Ribeiro (1860-1934) e a proposição da uma „ética da atualidade‟”. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; MAGALHÃES, Marcelo de Souza; GONTIJO, Rebeca. A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2009, p. 374. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 69 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 Andrea Siqueira D‟Alessandri Forti Introdução Esta pesquisai tem como objetivo analisar as trajetórias de três artistas plásticos da década de 1960 que se tornaram militantes políticos: Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro. A investigação visa, ainda, problematizar as relações destes artistas plásticos entre as opções ligadas à produção artística e ao engajamento político ligado às organizações armadas, a partir da análise de entrevistasii. A década de 1960, para muitos artistas, foi o momento de engajar a arte. Aqui no Brasil, isso pode ser observado antes e após o golpe de 1964. Do Teatro de Arena aos Centros Populares de Cultura (CPC), o Cinema Novo, a Música Popular Brasileira, o show Opinião, entre outras manifestações colocaram a arte a serviço das causas de contestação da ordem vigente, buscando as raízes populares para valorizar a cultura brasileira iii. Nas artes plásticas, entretanto, “foram raros os exemplos de busca do povo em moldes parecidos com os das outras artes”iv. As artes plásticas não abriram mão da capacidade crítica do eruditov. Utilizaram elementos das diferentes inovações mundiais do campo, principalmente as francesas e as norte-americanas, adaptadas à realidade brasileira para se manifestarem. Seu engajamento é observado após o início da ditadura. A identificação com o show Opinião em sua resistência ao regime levou à organização das exposições Opinião no Rio de Janeiro e Proposta em São Paulo, ocorridas nos anos de 1965 e de 1966. 70 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 O início da atividade artística e os primeiros contatos com a política O carioca Carlos Augusto da Silva Zilio iniciou sua vida artística em 1962, quando ingressou para o Instituto de Belas Artes, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Zilio foi durante este período aluno do pintor Iberê Camargo, consequência de sua “relação natural com a modernidade”. Iberê era o único docente não acadêmico do instituto. Zilio era filho de militar e estudava no Colégio Militar. Durante o primeiro científico, ele frequentou as palestras do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, indicadas como uma de suas fontes formadoras na política. O jovem era também leitor dos jornais do Partido Comunista: Semanário e Novos Rumos. Com o golpe, Zilio respondeu ao seu primeiro Inquérito Policial Militar no Instituto de Belas Artes. Inquérito que não resultou em nada. Mas seu choque emocional com o golpe teve como consequência conflitos familiares. Em 1965, o impacto da primeira mostra Opinião e o contato com as obras de artistas argentinos fez com que Zilio rompesse com o ensino de Iberê que naquele momento já não era mais seu professor. Neste mesmo ano, o jovem prestou vestibular para Psicologia. Sua família exigia que cursasse uma faculdade. As duas atividades de Zilio durante os anos de 1966 e 1967 foram então estudar Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e continuar produzindo como artista plástico. O artista participou da exposição Opinião 66 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de outras mostras coletivas, apresentando trabalhos com caráter político. No ano seguinte, entrou para o diretório acadêmico do seu curso. Zilio não se sentia comprometido com a política inteiramente, era uma responsabilidade que tinha como cidadão. A política era uma necessidade, mas não era tudo para elevi. Por isso, ao mesmo tempo em que cursava a faculdade e era membro do diretório acadêmico, o artista frequentava o MAM e as rodas de amizade artística. Participou Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 71 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti da mostra Nova Objetividade Brasileiravii em abril de 1967, também no MAM do Rio de Janeiro, e da IX Bienal de São Paulo. O baiano Renato da Silveira passou sua infância e adolescência em Ilhéus. Em 1959, aos 15 anos, foi para Salvador. Sua luta para se tornar artista só foi finalizada quando foi estudar na Itália. Oriundo de uma família de fazendeiros do Sul, uma “família meio aristocrática, decadente”, impossibilitou Renato por algum tempo de seguir a vida artística. Em 1966, ganhou uma bolsa para estudar na Università per Stranieri di Perugia. Morou no exterior por quase um ano, cursou dois cursos trimestrais oferecidos pela instituição, onde aprendeu sobre História da Arte, Filosofia, Literatura e um pouco de História. Ao retornar foi selecionado para ser monitor da I Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador. Segundo o artistaviii, “foi a convivência – durante quatro meses de bienal – com os outros monitores que me levou para a esquerda, porque aqueles vinte jovens eram uma pequena elite da juventude baiana”; grande parte deles era de “militantes estudantis de esquerda, tinha alguns artistas de vanguarda jovem e também católicos de esquerda e evidentemente a gente passava o tempo todo discutindo”. Esse convívio não apenas o levou para a esquerda, mas o levou para a política. Antes da viagem, o artista disse ser um “alienado perfeito”, preocupado com o “sucesso social e ganhar dinheiro”. Após o trabalho na Bienal, Silveira produziu um trabalho artístico ligado ao surrealismo e à pop artix como linguagem, mas com um conteúdo contestatário. Por conta própria, estudava marxismo, principalmente um marxismo voltado para a cultura. O curitibano Sérgio Ferro Pereira se mudou com sua família para São Paulo em 1950, quando tinha apenas 12 anos. Cursou a Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, onde posteriormente começou a lecionar. Ainda como estudante da FAU se filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Tanto a arquitetura quanto a pintura que fazia, procurava adequá-las às preocupações políticas. Em relação à arquitetura, a crítica era devido ao esquecimento de 72 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 suas missões sociais mas também a exploração do trabalhador no canteiro de obra. Já na pintura, a ideia era que qualquer um pudesse entendê-la e com ela dialogar, além de pregar a “paleta do povo”, ou x seja, as cores que não levavam muito colorante, mais econômicas . O artista se refere à pintura como o seu meio de expressão, mais até do que a própria palavra. Após o golpe de 1964, sua pintura se transformou também numa arma, adotando uma frase do Picasso: “A pintura é uma arma, ofensiva ou defensiva, contra o inimigo”. Sua primeira exposição individual ocorreu em 1965, mas já havia exposto em mostras coletivas. Participou ativamente da vida artística de São Paulo, tendo sido um dos organizadores e expositores de Propostas 65 e 66. Expôs também na Nova Objetividade Brasileira em 1967, além de ministrar cursos no Museu de Arte de São Paulo e dirigir duas revistas – Teoria e Prática e Aparte - que, entre outros assuntos, tratavam de questões de arte. O envolvimento com as organizações de esquerda Acredito que, antes de apresentar a relação dos três artistas plásticos com as organizações armadas, seja importante pontuar algumas questões relativas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a criação de organizações dissidentes e independentes que se formaram ao longo das décadas de 60 e 70. Segundo Araujoxi, o conjunto dessas organizações que, em grande maioria, foram criadas entre 1962 e 1972, compartilhava uma posição e um sentimento político crítico ao PCB. Embora as organizações fossem, em diversos aspectos, diferentes entre si, elas se aproximavam no sentimento de negação em relação ao partido. Com o golpe de 1964, parte dessa esquerda atribuiu à estratégia e à tática do PCB a responsabilidade pelo acontecido. Essas organizações de esquerda tinham conquistado uma hegemonia entre jovens, estudantes, intelectuais e artistas. Para a Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 73 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti autora, isso pode ser explicado pelos acontecimentos ligados ao golpe, pelas manifestações estudantis pós-1964 e também pelo que ocorria em outros cantos do mundo, criando uma imagem positiva das experiências de luta armada. Por isso, os militantes brasileiros da década de 60 foram marcados pelo “desejo de rompimento, de radicalidade, e pelo sentimento crítico ao que era considerado, de forma geral, reformismo, passividade, conciliação”. O tema da democracia também era visto de maneira crítica. A democracia representativa era entendida como sinônimo de negociatas e vista como uma farsa liberal. Essa democracia era bem diferente à democracia proletária e esta só existiria com a revolução. Este sentimento em relação à democracia foi um dos motivos principais que levaram à opção pela luta armada, afirma a historiadora. Outro forte motivo foi a decretação do Ato Institucional n o 5. Contudo, a luta armada não foi consequência direta do ato institucional, essa opção já era discutida pela esquerda brasileira desde o início da década de 60. Como foi dito anteriormente, o jovem Zilio circulava no ambiente artístico e no universitário, inclusive tendo a experiência do movimento estudantil. Em determinado momento, sua atuação política fez com que ele não acreditasse mais no projeto artístico do xii movimento Nova Objetividade como algo eficaz para mudar a realidade. A tentativa de conciliar arte e política se deu com a obra LUTE: uma marmita com uma máscara sem rosto representando os milhões de trabalhadores. A ideia era panfletar a marmita em porta de fábrica, mas uma panfletagem compreendida como arte, uma performancexiii. A ideia não foi posta em prática. Em 1968, entrou xiv para o Diretório Central de Estudantes e “abandonou” a arte em função do diretório. Neste ano, a União Nacional dos Estudantes (UNE) organizou clandestinamente o Congresso de Ibiúna que, segundo Araujoxv, marcou o fim do “processo político, de confronto e radicalização, que estava sendo vivido pelo movimento estudantil”. O presidente do DCE da UFRJ, Franklin Martins, foi preso neste evento. 74 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 Zilio que era vice-presidente assumiu, então, a presidência do último diretório antes do AI-5. No ano seguinte, ingressou em uma organização, a DI-GB. Zilio viveu o processo de transformação da xvi dissidência em MR-8 . Em março de 1970 foi ferido em uma das ações e preso. Renato da Silveira assim como Zilio abandonou a arte em função da política. A diferença entre os dois está na trajetória de cada um, os motivos que levaram os dois a se tornarem militantes são distintos. No ano de 1968, Renato esteve novamente na Europa. Havia conhecido uma suíça quando morou na Itália, se casando logo em seguida. Participou das agitações do momento. Quando retornou ao Brasil, entrou para a dissidência da Bahia que, posteriormente, junto a DI-GB formaria o MR-8xvii. Essa escolha do artista pode ser em parte explicada pelo reflexo da edição do AI-5 no campo cultural baiano. A II Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador, recém inaugurada, foi fechada. Além de alguns organizadores e participantes terem sido presos. Com a desmobilização nos meios culturais, o artista se sentiu isolado, sem possibilidade de fazer exposições, com todas as portas fechadas, se aproximando dos militantes de esquerda do movimento estudantil xviii. Nesse período de militância deixou de produzir também pelo fato dos militantes baianos terem pouca formação e interesse cultural, ao contrário dos cariocasxix. Sérgio Ferro, diferente de Zilio e Renato, não abandonou a arte nem sua carreira de professor universitário para militar. Esta escolha possibilitou que Ferro se tornasse um grande articulador entre a guerrilha e o meio artístico e intelectual. O artista começou a se aproximar da tendência Marighella após o golpe. Não só motivado pelo distanciamento do PCB em relação à luta armada, mas também pela teoria. Segundo Ferro, o partido dava muito importância à evolução dos meios de produção, enquanto ele e outros faziam uma crítica maior das relações de produção. Ao entrar para a dissidência Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 75 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti paulistaxx, depois integrada à Ação Libertadora Nacional (ALN) xxi, Ferro contribuiu principalmente por estar na legalidade. Como professor universitário tinha acesso a informações e documentação de difícil acesso, além de contato com professores, profissionais de diferentes áreas e pessoas de outras organizações que podiam contribuir de diferentes maneiras. Entretanto, essa legalidade não impediu que o artista participasse de ações armadas. Ferro foi um dos autores do atentado à bomba no consulado dos EUA em São Paulo no dia 19 de março de 1968, uma das primeiras ações da xxii época , cujo objetivo era demonstrar a insatisfação com a guerra do Vietnã. A autonomia dada pela ALN aos seus grupos internos permitiu a aproximação com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Ferro e os outros arquitetos não podiam ir a Cuba para fazer cursos. Os ensinamentos sobre ações armadas foram passados por militantes desta outra organização. Ferro e os arquitetos da ALN foram presos em 1970. Do período da cadeia ao exílio O artista carioca ficou preso de 1970 a julho de 1972. Dentro da prisão, Zilio retornou à produção artística com os desenhos, feitos em bloco de papel com pilot. A princípio era apenas uma ocupação, mas logo passou a ter um caráter documental, retratando sua experiência no cárcere. Posteriormente, trocou os desenhos pelas pinturas. As pinturas eram feitas nos pratos de comida com tinta Revell, ideia que surgiu com um simples prato de comida esquecido pelos funcionários dentro da cela. Essa produção foi retirada da prisão aos poucos pela companheira de Zilio durante as visitas. Ao ser posto em liberdade, o artista tentou retomar sua vida, inclusive voltando a produzir – uma arte ainda muito militante –, a participar de exposições e de discussões sobre arte, atuando na organização da revista Malasartes. O artista foi convidado a participar da Bienal de 76 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 Paris de 1976, motivado pelo clima político, mas também pela experiência de morar fora do Brasil por algum tempo, Zilio não só aceitou como se mudou para a capital francesa. Renato da Silveira foi preso três vezes durante sua militância. No início de 1969, quando ainda era simpatizante e o MR-8 estava em formação, um carro capotou e dois jovens militantes morreram. O veículo tinha sido emprestado para um treinamento militar no interior. Renato foi preso por ser o dono do automóvel, mas como nada foi provado contra ele, pouco tempo depois o soltaram. Foi preso novamente em março de 1971, ficando na cadeia até maio de 1972xxiii. Em seu depoimento, Silveira conta que o MR-8 na Bahia estava armado, mas não fazia ações “para não sujar o pedaço”, evitando a atenção da repressão. Contudo, integrantes de outra organização começaram as ações na região, o que resultou na forte presença dos militares e no desmantelamento das organizações existentes na Bahia. A presença, em 1971, do ex-capitão Carlos Lamarca no estado contribuiu para a permanência da repressão. Em 1973, Renato passou outros sete meses no cárcerexxiv, retomando lentamente a atividade artística no final deste período. Sua produção, diferente de Zilio e Ferro, não é uma documentação de sua experiência prisionalxxv, mas resultado de seu estudo sobre Antropologia, mais especificamente o candomblé, iniciado dentro da prisão. Já em liberdade, Renato trabalhou no Instituto Cultural BrasilAlemanha de Salvador, instituição que conseguiu manter suas atividades culturais durante a ditadura. Se sentindo constantemente ameaçado, mudou-se para Paris em 1976, após dificuldades para conseguir o passaporte. Sérgio Ferro e os arquitetos da ALN foram condenados a dois anos de reclusão por atentados a bomba, pertencer a organizações terroristas e outros delitos. “A sentença foi branda; para isso pesou, além da influência da família de Ferro (seu pai era o secretário da Educação), a posição social privilegiada dos envolvidos, conhecidos Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 77 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti profissionais e artistas”xxvi. Dentro do Presídio Tiradentes, instituição na qual cumpriram a pena, já havia alguns pintores. Com a chegada deste grupo de arquitetos - e após o fim do período de tortura -, a arte xxvii prisional produzida passou a pretender um caráter mais artístico . A arte dos presos políticos era um meio de expressão. Quando Carlos Lamarca morreu, por exemplo, Ferro fez um quadro em sua homenagem. Sobre a sua produção, o artista afirmou que “escoava ali ataques de raiva ou desabafo”. Em relação ao trabalho artístico coletivo, Ferro apontou duas consequências positivas: uma no sentido educativo, uma atividade simples onde todos poderiam participar, e outra no sentido de integração dos presos. Estes trabalhos não documentaram apenas a repressão e a prisão, mas também a solidariedade entre os presos e o desejo de justiça. Ferro ficou apenas um ano preso. Convidado pelo Ministério da Cultura da França foi lecionar na Europa, onde reside até hoje. Considerações finais Apresentar uma trajetória de vida, mesmo que seja apenas uma parte desta, é uma tarefa difícil. Primeiro em relação às lacunas deixadas no trabalho, causadas pela impossibilidade de cobrir a vida de uma pessoa como um todo. O estudo sociológico de uma história de vida sugerido por Pierre Bourdieu me pareceu interessante para resolver este problema: a análise de pontos expressivos de uma trajetória individual e sua relação com as interações sociais xxviii. Procurei, neste artigo, problematizar estes momentos, relacionandoos com os contextos e com as redes de sociabilidade de cada um dos artistas. Além do mais, sempre que escrevo sobre a vida de um indivíduo, lembro da crítica de Giovanni Levi sobre este tipo de pesquisa que, segundo o autor, associa uma “cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões 78 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 sem incertezas”xxix. Por isso, busquei apontar aspectos que permitam ao leitor se questionar sobre a parcela de liberdade de escolha do indivíduo dentre as múltiplas possibilidades. Mas que, ao mesmo tempo, esse campo de possibilidades é historicamente construído, estabelecendo limites para a ação humana xxx. O estudo crítico e reflexivo de trajetórias de indivíduos que foram atingidos e/ou que lutaram contra a repressão é necessário para o conhecimento das possibilidades existentes, efetivamente, na vida destas pessoas, quais foram e o porquê das diferentes estratégias desenvolvidas como atores sociais. No caso da minha pesquisa, as escolhas de três artistas plásticos que tiveram como semelhança a relação direta com as esquerdas armadas, se distinguindo da maioria das pessoas do mesmo meio. Através deste trabalho, espero estar contribuindo um pouco para o conhecimento das artes plásticas durante a ditadura civilmilitar no Brasil: os seus personagens, a sua atuação e os reflexos do regime no campo. Acredito que isso seja importante porque, diferente de outras manifestações artísticas como, por exemplo, o teatro, o cinema e a música, sobre as quais existem diversos estudos, as artes plásticas durante este período permanecem ainda pouco exploradas. Notas e referências i Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Orientanda da Professora Doutora Icléia Thiesen, na Linha de Pesquisa Cultura, Poder e Representações. Contato: [email protected] O presente trabalho é baseado no segundo capítulo da minha dissertação que será defendida em abril do próximo ano. O artista plástico Renato da Silveira, entretanto, não fará parte do trabalho final do mestrado devido à insuficiência de fontes e à dificuldade de contato com o mesmo. Apesar disso, mantive a análise de sua trajetória neste Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 79 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti artigo, utilizando como documento a entrevista concedida ao professor Marcelo Ridenti (Unicamp) em 1996. ii Em relação aos outros dois artistas, faço uso de entrevistas já publicadas – entrevista de Sérgio Ferro pelo professor Marcelo Ridenti em 1997 e entrevista de Carlos Zilio pertencente ao catálogo da exposição Arte e Política: 1966-1976 de 1996 - e das duas realizadas durante a pesquisa. Cabe dizer que Sérgio Ferro foi entrevistado por email, devido ao artista residir em outro país. As entrevistas se encontram disponíveis para consulta no acervo do Laboratório de História Oral, Informação e Documentação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (LAHODOC/UNIRIO). iii RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. iv AMARAL in RIDENTI, 2000: 176. v SEVERO in ZILIO, Carlos. Arte e política: 1966-1976. Rio de Janeiro: MAM, 1996 (catálogo de exposição), p. 3. vi ZILIO, 1996: 15. vii A „Nova Objetividade‟ foi organizada por um grupo de artistas e críticos de arte, reunindo diferentes vertentes das vanguardas nacionais – arte concreta, neoconcretismo, nova figuração – em torno da ideia de „nova objetividade‟. A exposição não pretendia construir um grupo artístico, mas ser a confluência de diferentes tendências (Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fus eaction=marcos_texto&cd_verbete=3764) viii SILVEIRA in RIDENTI, 2000: 190. ix A arte pop se desenvolveu na década de 1960, principalmente, na Inglaterra e nos EUA. Sua matéria prima foi fornecida pela cultura pop, definida por Lucie-Smith (1966) como “(...) o produto da Revolução Industrial e da série de revoluções tecnológicas que lhe sucederam. Juntem-se moda, democracia e máquina, e a cultura pop é uma parte do resultado.” (LUCIE-SMITH, Edward. “Arte Pop”. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 282) 80 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 x Ridenti (2000: 177) aponta a presença de um romantismo revolucionário original na obra de Sérgio Ferro. Embora o artista não retrate as raízes populares brasileiras, Ridenti enfatiza a intenção de Ferro em buscar uma possibilidade de comunicação com o homem comum. xi ARAUJO, Maria Paula Nascimento. “Lutas democráticas contra a ditadura”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs.). As esquerdas no Brasil. Revolução e democracia, 1964... Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol.3, 2007, p. 323-353. xii Quando cito o grupo Nova Objetividade, me refiro às dezessete pessoas, entre artistas plásticos (incluindo o Zilio) e críticos de arte, que assinaram a Declaração de Princípios Básicos da Nova Vanguarda, idealizada por Hélio Oiticica em 1966 (in OITICICA, Hélio. Hélio Oiticica: Penetráveis. Rio de Janeiro: Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 2008 (catálogo de exposição), p. 32). Sobre alguns dos tópicos desta declaração, Alvarado (ALVARADO, Daisy Peccinini de. Figurações: Brasil anos 60. Neofigurações Fantásticas e Neo Surrealismo, Novo Realismo e Nova Objetividade Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural/EDUSP, 1999, p. 138) explica que “Os quatro últimos tópicos eram dedicados à preocupação com uma atividade criadora integrada na coletividade: na multiplicidade da proposta vanguardista, deviam utilizar meios capazes de reduzir à “máxima objetividade” o subjetivismo, tentando atingir o ser humano para despertá-lo para uma “participação renovadora e para a análise crítica da realidade”, podendo ser usados todos os métodos de comunicação com o público – como rádio, cinema, TV, jornal, panfletos.” (grifo meu) xiii A performance como modalidade artística foi criada na década de 1960. Ela requer a presença do artista, necessita de acessórios e de uma ação teatral mais estruturada, um cenário muito mais organizado. Coloca em cena acontecimentos inéditos e surpreendentes que mobilizam o corpo, o gesto, a palavra e desafiam os preconceitos e a resistência do público, não havendo a participação deste. É uma arte efêmera e pode, ou não, resultar em algum objeto como testemunho do ato. (Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fus eaction=termos_texto&cd_verbete=3646) Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 81 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti xiv Coloquei o verbo “abandonou” entre aspas porque, em depoimento, Zilio disse sentir fazer arte durante as ações armadas, como uma performance com uma eficácia transformadora. (ZILIO, 1996: 16) Ou seja, do ponto de vista existencial, não houve uma interrupção do processo criativo, mas apenas um deslocamento. (DUARTE in ZILIO, 1996: 6) xv ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Memórias estudantis, 1937-2007: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Roberto Marinho, 2007, p. 185. xvi Entre 1965 e 1968, as bases universitárias por todo o território nacional romperam com o PCB, constituindo as dissidências estudantis (RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª Ed. São Paulo: UNESP, 2010, p. 30). A transformação a qual Zilio se refere é a mudança de uma organização universitária estudantil que pretende se tornar uma organização revolucionária de luta armada (Entrevista de Carlos Zilio a Andrea Forti, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2012). Duas dissidências estudantis do Partido Comunista Brasileiro se denominaram MR-8: a do Estado do Rio de Janeiro (DI-RJ) e a do Estado da Guanabara (DI-GB). Elas não tinham nada em comum, exceto serem dissidências do “Partidão”, explica Ridenti (2010: 115). A DI-RJ já havia sido desbaratada pela polícia quando a segunda resolveu assumir o nome MR-8 “para desmoralizar o governo que anunciava o fim do MR-8 (DI-RJ)”. xvii Entrevista de Renato da Silveira a Marcelo Ridenti. Salvador, 25 de fevereiro de 1996. xviii RIDENTI, 2000: 192. xix RIDENTI, 2000: 193. xx Segundo Ridenti (2010: 30), a DISP foi posteriormente integrada à ALN ou à VPR e VAR-Palmares. xxi Foi a organização guerrilheira mais destacada na década de 60, encontrando apoio em diferentes setores sociais, principalmente por causa da liderança de Carlos Marighella. Ao deixar o PCB, levou consigo boa parte da seção do partido em São Paulo pela qual ele era responsável. Encontrou adesões em todo o território nacional, onde seu 82 ISSN 1414-9109 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 nome era popular pela combatividade e liderança exercida no período que pertencia ao PCB. No decorrer do processo armado, a ALN passou a atrair, sobretudo, estudantes e trabalhadores intelectuais (RIDENTI, 2010: 62). “A ALN baseava-se no „princípio de que a ação faz a vanguarda‟, ação revolucionária entendida como aquela „desencadeada por pequenos grupos de homens armados‟ (in Marighella, 1974: p. 23), que constituiriam a vanguarda guerrilheira do povo”. A estratégia dos militantes da ALN era partir diretamente para a luta armada, colocando a teoria revolucionária em segundo plano (RIDENTI, 2000: 166). xxii A primeira ação da ALN ocorreu em novembro de 1967 em São Paulo, marcando o início da luta armada. Cabe lembrar que, no início deste ano, uma nova Constituição incorporou os controles mais importantes dos dois atos institucionais anteriores e de uma série de atos complementares, perdendo seu caráter excepcional, ganhando poder constitucional. Esta constituição criava um Estado quase exclusivamente baseado no Poder Executivo. xxiii RIDENTI, 2000: 193. xxiv Idem. xxv O terceiro capítulo da minha dissertação será dedicado a análise desta arte prisional de Carlos Zilio e Sérgio Ferro como documento fundamental para o conhecimento de suas experiências no cárcere. xxvi RIDENTI, 2000: 181. xxvii SISTER, Sérgio in ALÍPIO FREIRE, Alípio; ALMADA, Izaías; GRANVILLE PONDE, J.A. de (org.). Tiradentes, um presídio da ditadura. Memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997, p. 210. xxviii BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. xxix LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 169. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 83 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti xxx 84 REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. In: Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, p. 15-38. ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos Camila Borges da Silva A indumentária – ou seja, o conjunto que engloba a roupa e os ornamentos e adereços que compõem o visual de uma pessoa – é um elemento constitutivo da cultura material de uma sociedade. Contudo, a cultura material não é descolada dos aspectos mentais e, dessa maneira, qualquer objeto que pertence a uma cultura dialoga com as representações simbólicas da mesma. A indumentária, como não poderia deixar de ser, é um objeto de análise complexo porque se insere em diferentes campos do tecido social. Assim, podemos estudá-la em suas relações com a arte, a economia (produção e comercialização), o social, as relações de gênero etci. Nesse trabalho, a indumentária é analisada em suas imbricações com o social, compreendendo-a como um elemento representativo do status de uma pessoa na sociedade. Neste sentido, a roupa atua na composição dos estamentos sociais por incutir honra e prestígio a toda pessoa que utiliza determinados símbolos distintivos reconhecidos no meio social, tornando-a membro de um grupo.ii A análise se foca no estudo da indumentária utilizada pelas elites que frequentavam a Corte do Rio de Janeiro tanto no período de permanência de D. João, quanto durante o governo de D. Pedro, após a independência. Entretanto, compreende-se que o estudo da indumentária desse período precisa atentar para o fato que esta participava de um duplo processo: de um lado a indumentária afetada pela moda – através da análise do mercado de moda instalado no Rio de Janeiro após 1808 – e de outro, a indumentária que compõe o que se denominou como cultura indumentária do Antigo Regime – ou 85 Camila Borges da Silva seja, os uniformes daqueles que participavam do aparato estatal e as insígnias distintivas das ordens honoríficas que se constituíam em mantos e medalhas dessas ordens. Pode-se dizer que o mercado de moda somente passou a existir após a chegada da corte portuguesa, facilitado primeiramente pela abertura dos portos e, após 1815, pelo fim da guerra com a França, que permitiu a vinda de inúmeros profissionais franceses desse ramo. A moda se tornou um fenômeno social nesse momento por conta do luxo com que se vestia a aristocracia portuguesa ostentando as últimas modas trazidas da Europa nos espaços abertos de exibição pública, ou seja, a rua. Esta era ocupada quando ocorriam cerimônias públicas que passaram a ser freqüentadas por membros da corte portuguesa. As mulheres da família real e as damas da aristocracia portuguesa também se faziam presentes nessas cerimônias, de modo que a saída da mulher do espaço fechado da casa se intensificou a partir desse momento. Dessa maneira, a indumentária exibida pela corte alimentava o mercado de moda devido à necessidade social gerada pela exibição do luxo. O depoimento de um cronista prussiano oferece a dimensão desse aspecto: O luxo das mulheres é indescritível. Jamais encontrei reunidas tantas pedras preciosas e pérolas de extraordinária beleza quanto nos beijamãos de gala e no teatro (...). Seguem o gosto francês, ousadamente decotadas. Os vestidos são bordados a ouro e prata. Sôbre a cabeça colocam quatro ou cinco plumas francesas, de dois pés de comprimento (...) e sobre a fronte, como em torno do pescoço e nos braços, diademas incrustados de brilhantes e pérolas de excepcional valor (...). Outro luxo considerável é o dos leques. Vi alguns que valem milhares de talers, ornados de brilhantes e pérolas, e um até provido iii de pequeno relógio verdadeiro. 86 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos A chegada de comerciantes sobretudo ingleses e franceses bem como o fluxo comercial instaurado pela abertura dos portos podem ser medidos tanto pela seção de entradas marítimas da Gazeta do Rio de Janeiro, onde se percebe um grande fluxo de navios vindos de portos ingleses e franceses, quanto pela seção de anúncios do mesmo jornal. Os anúncios apresentados por comerciantes e profissionais franceses do ramo da moda tinham um tom novo, até então, inexistente na cidade. Observa-se neles uma preocupação com a criação de uma imagem de novidade para atrair a atenção do comprador ou compradora. Eles buscavam chamar a atenção para a novidade da mercadoria, para o fato de seus produtos serem de “última moda” ou tratar-se do que “de mais recente” se utilizava na Europa. Desse modo, termos como “último gosto”, “última moda”, “mais moderno gosto” passaram a fazer parte do vocabulário instaurado por estes comerciantes, o que atentava para o sentido de modernidade de seus produtos. Um exemplo desses anúncios era o do comerciante Charles Durand que dizia: “Carlos Durand e Companhia, rua Direita nº 9, recebeu de França vestidos de filó bordados de ouro e de prata, no último gosto, vestidos de garça para baile, luvas de pelica e de seda, para homens e senhoras”iv. Outra estratégia utilizada era valorizar o fato dos produtos serem recém-chegados da Europa, como uma forma de adicionar o valor de modernidade aos mesmos. Afirmava-se, assim, que o produto havia chegado “proximamente”, “ultimamente”, “recentemente”, “novamente” ou que os comerciantes tinham “acabado de receber” suas mercadorias. Os sentidos atribuídos a “proximamente” e “ultimamente” nos dicionários de Moraes e Silva e Bluteau confirmam o sentido de “recentemente” desses termos. Para Bluteau, proximamente é “muito perto” e “imediatamente” v e para Moraes e Silva é “muito perto, imediato. Há pouco tempo, de próximo”.vi Já “ultimamente” significa para Moraes e Silva “em último Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 87 Camila Borges da Silva lugar”, “pela última vez” e “nos tempos últimos passados” vii e para Bluteau “pela última vez”, “em último lugar” e “estes dias atrás”. viii Informar que um tecido, um vestido ou qualquer outro objeto havia chegado recentemente, era dizer que esses objetos representavam aquilo que de mais novo se fabricara no país de origem, normalmente, França e, secundariamente, Inglaterra. Da mesma maneira, quando se informava que uma pessoa havia chegado “proximamente” ou “ultimamente” da Europa, implicitamente se dizia que ela estava apta a dizer o que de mais moderno se vestia por lá. Não eram apenas os comerciantes que enfatizavam a modernidade em seus anúncios. Cabeleireiros, alfaiates, modistas, sapateiros – a maior parte estrangeira – ressaltava constantemente a possibilidade de executar serviços de acordo com o “último gosto de Paris”. A França e, mais especificamente, Paris, apareciam com destaque nos anúncios, como ponto de referência da elegância e da modernidade. Se com a guerra empreendida por Napoleão era vergonhoso ou mal visto chamar a atenção para o fato de um produto ser francês, depois de 1815 isso era um fator de prestígio e uma maneira de valorizar o anúncio. Sem dúvida, isto estava ligado à memória dos tempos “áureos” da Corte francesa, que ditava a moda e a elegância para o resto da Europa. A referência à França era, portanto, um recurso utilizado recorrentemente e chamava-se a atenção não apenas para a origem francesa dos produtos, mas também para o saber fazer um vestido à moda francesa. Além disso, todos os profissionais franceses residentes no Rio de Janeiro não hesitavam em aludir à sua nacionalidade nos anúncios, simbolizando implicitamente o domínio do bom gosto e um suposto conhecimento do que de mais recente se estava ocorrendo na França em termos de moda. O emprego de vocábulos como “moderno” já começava a apontar para as transformações que viriam ao longo do século XIX, sobretudo, a conotação positiva dada àquilo que é novo. Tanto Raphael Bluteau, no início do século XVIII (1712), quanto Moraes e 88 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos Silvaix, no início do XIX, dão a moderno o sentido de algo que é “novo” e “recente”. No caso de Bluteau sua explicação é mais detalhada, para ele moderno era “coisa desta era, destes últimos anos, de pouco tempo a esta parte, respectivamente ao tempo antigo. Qualquer coisa novamente inventada, introduzida, posta em uso, &c”.x A descrição do termo “moda” em Bluteau, todavia, é reveladora de uma conotação negativa dada ao processo de transformação incessante e a constante criação de um “novo” ou de uma “novidade”, além da estranheza proporcionada naqueles que, como ele, possuíam uma visão mais antiga do fenômeno Esta perpétua variedade de ornatos não deixa de ter pernicidas conseqüências, os que a não seguem, parecem ridículos, os que com ela se conformam, desperdiçam patrimônios. Os antigos, como sempre seguiam no vestir o mesmo estilo, sendo ricos, tinham quantidades de vestidos sobressalentes. (...) Quando o vestido é cômodo para o uso do corpo, decente para a qualidade, & idade da pessoa, & bom contra as injúrias do tempo; o inventar outro, mais parece loucura, que bizarria. (...) o homem sisudo não deve abraçar logo no princípio toda a moda. Convém que proceda passo a passo, & como por degraus. Que é cousa ridícula passar logo de um extremo a xi outro (...). Verifica-se, simultaneamente ao estranhamento do autor, a novidade do fenômeno ao afirmar que “antigamente não existia moda nos trajos”, que para ele consistia em uma “uniformização” no vestir. De acordo com esse trecho, pode-se observar que a moda não foi uma invenção do século XIX, ao mesmo tempo que era ainda algo recente, passível de estranhamento, sobretudo em Portugal, onde as leis suntuárias eram bastante rígidas. Moraes e Silva descreveu o termo “moda” de maneira mais lacônica, como “o uso corrente, e adotado, de vestir, trajar, em certas maneiras, gostos, estudos, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 89 Camila Borges da Silva exercícios”xii, sem considerações de cunho moral, mas destacando o sentido daquilo que se veste “agora”, que está em voga. A cultura indumentária de Antigo Regime é aquela que atenta para a permanência e para a manutenção de práticas indumentárias antigas, processo paralelo à intensa aceleração do tempo-moda vivido no Rio de Janeiro. Estas práticas perpassavam o Estado, pois consistiam em uniformes utilizados no exercício de determinados cargos e veneras de ordens honoríficas, concedidas pelo governante em recompensa de serviços prestados à Coroa. Assim, esta cultura indumentária de Antigo Regime estava ligada ao Estado pois era regulada por ele, não sendo acessível a todos. Os uniformes utilizados nos serviços da administração pública são característicos do Antigo Regime, pois identificam seu portador e seu ofício. A toga identificava o magistrado, a espada identificava o nobre e a riqueza da farda distinguia o funcionário do escalão inferior e o alto funcionário (ministros, conselheiros e as pessoas que ocupavam as chefias do serviço do Paço). Se o Antigo Regime é compreendido como um sistema político e social em que cada pessoa é entendida como ocupante de um lugar na hierarquia da sociedadexiii, sua cultura indumentária expressa os lugares sociais a que cada um pertence. Evidentemente que este era um mundo em decomposição, não existindo um controle total sobre a utilização desses signos indumentários. Chamava-se farda toda a roupa utilizada no exercício de uma função. Assim, os empregados do Paço e os demais funcionários da administração pública, desde o nível mais alto até o mais baixo, eram obrigados a utilizar a farda. As roupas de gala, trajadas em cerimoniais, eram denominadas “fardas grandes”, ou seja, fardas de gala. As “fardas pequenas” eram os uniformes do cotidiano. Esses uniformes constituíam-se, desse modo, tanto numa prisão – pela obrigatoriedade – quanto no símbolo de uma função. xiv Dentre os chamados criados do Paço, encontravam-se, entre outros, as damas 90 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos da Corte e os titulados que ocupavam variadas funções. Os serviços do Paço eram muito visados porque, em alguns casos, aumentavam “a gradação social dos indivíduos que ali serviam” xv, através do recebimento de mercês e títulos. Os uniformes, no período de estadia da Corte portuguesa, seguiam as cores da casa de Bragança – o vermelho e o azul – compondo-se de casacas bordadas e calções utilizados com meias de seda. Existiam variações entre o que era azul e o que era vermelho. Algumas vezes, as véstias eram azuis, outras, vermelhas, e o mesmo acontecia com os calções. Os empregados do Paço, e algumas pessoas especialmente protegidas pelo monarca, recebiam uma ração de guarda-roupa, isto é, uma ajuda de custo em espécie para a compra dos uniformes denominada “vestiaria”.xvi As cores portuguesas utilizadas nos uniformes foram alteradas por D.Pedro em decreto de 20 de setembro de 1822, quando se adotou a cor verde para as casacas, ficando o amarelo nas bordaduras e presilhas de ouro e o branco para calções, coletes e meias. Neste decreto, passou a ser admitido o uso de botas e calças brancas no lugar das tradicionais meias e calções. Alegava-se no decreto que as mudanças foram ocasionadas pelo fato dos uniformes serem muito dispendiosos além de contrários ao clima do Brasil, mas a adoção de tal medida em meio ao processo de independência demonstra a preocupação em demarcar um rompimento simbólico com Portugal através das cores adotadas por todos aqueles que servissem ao novo governante.xvii As funções de chefia dos serviços do Paço eram indicadas nos uniformes por bordados específicos: o camareiro-mor, por exemplo, tinha uma chave de ouro no uniforme como insígnia de seu cargo, enquanto o reposteiro-mor tinha uma chave de prata e bordadura mais simples, apontando para sua posição inferior na hierarquia se comparado ao primeiro.xviii Da mesma maneira, sabe-se que os criados efetivos utilizavam um galão dourado preso ao uniforme, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 91 Camila Borges da Silva enquanto os criados honorários, um galão branco. A bordadura característica da Corte portuguesa era a pena costurada em várias posições distintas. No Império, a bordadura adotada foi substituída por um ramo de arroz entrelaçado com palma, para marcar o rompimento com Portugal. No caso das ordens honoríficas, esse controle parece ter sido muito mais rígido, pois apenas poderiam utilizá-las aqueles que haviam sido condecorados pelo governante. Três destas ordens honoríficas existiram por todo o Antigo Regime em Portugal e foram adotadas no Brasil não apenas enquanto colônia, mas mesmo após a independência. Eram elas - a Ordem de Cristo, de São Bento de Aviz e de São Tiago. Elas eram compostas de mantos, faixas e medalhas que deveriam ser utilizados publicamente por todos os membros das ordens. Eram divididas em três graus: cavaleiros, comendadores e grão-cruzes, além do grão-mestre das ordens que era o próprio governante. Todos esses graus eram organizados hierarquicamente. Os cavaleiros eram a base da pirâmide hierárquica e, por isso, eram em maior número. Já os comendadores estavam no meio da pirâmide, enquanto os grão-cruzes compunham o topo da mesma. Por conta da distinção hierárquica entre os membros de cada ordem, cada um dos graus era distinguido por um uso específico dos símbolos indumentários das ordens. Assim, os grão-cruzes deveriam usar, além do manto, uma faixa transversal ao tronco na qual seria pendurada a medalha da ordem a qual pertencia. Já os comendadores, deveriam utilizar a medalha em uma fita pendente do pescoço, enquanto os cavaleiros utilizariam suas medalhas penduradas diretamente no lado esquerdo de suas vestes. A medalha dos grão-cruzes e dos comendadores traria um coração acima da insígnia da ordem, o que era proibido para os cavaleiros.xix Os mantos dessas ordens deveriam ser usados em dias de festas e recebiam a insígnia da ordem ao lado esquerdo do peito. Jean Baptiste Debret fez uma descrição do manto utilizado na Ordem de Cristo: 92 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos O uniforme de gala dos cavaleiros de Cristo nas cerimônias religiosas constitui-se unicamente do manto da ordem com o crachá do lado esquerdo do peito; essa condecoração compõe-se de uma grande cruz branca, muito estreita, colocada no campo vermelho de outra mais larga de metal. O conjunto é cercado de raios de prata e encimado por um coração envolvido numa coroa de espinhos com uma pequena cruz vermelha. Este acessório pertence somente aos dignitários. O manto, fechado na frente por alamares desce apenas até o estômago, deixando de fora a metade dos braços. Embora de fazenda extremamente leve, pois é feito de crepe branco, usa-se para maior comodidade toda a parte inferior enrolada sobre o peito com um cinta de algodão branco (cordão) cujas enormes bordas pendem na xx frente. Toda essa passamanaria é cuidadosamente trabalhada . Seguindo o modelo dessas três ordens, tanto D. João quanto D. Pedro I criaram outras ordens honoríficas com o intuito de ampliarem ainda mais o número de condecorados e de angariarem os benefícios da vassalagem e da fidelidade utilizando um instrumento que capitaneava os desejos de ascensão hierárquica e de distinção dos luso-brasileiros. D. João restaurou no Brasil uma antiga ordem portuguesa, a Ordem de Torre e Espada, em 1808, em comemoração aos sucessos da viagem de transferência da Corte portuguesa xxi, e criou a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em 1818, em comemoração a sua aclamação xxii. Estas ordens, contudo, foram extintas após a independência. D. Pedro I, por sua vez, criou a Ordem Imperial do Cruzeiro, em 1822, em comemoração à sua coroaçãoxxiii, a Ordem de D. Pedro I, Fundador do Império do Brasil, em 1826, em comemoração à independênciaxxiv, e a Ordem da Rosa, em 1829, em comemoração ao seu segundo casamento com a princesa D. Amélia de Leuchtenberg. xxv Percebe-se a preocupação em inflar o número de condecorados, pois quase todas as ordens instituídas por D. João e por D. Pedro ampliaram o número de graus adotados pelas ordens portuguesas. A Ordem de Torre e Espada, tendo sido a primeira, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 93 Camila Borges da Silva manteve os três graus das demais, mas a Ordem da Conceição ganhou um quarto grau – o de servente. D. Pedro I, por sua vez, instituiu quatro graus na Ordem do Cruzeiro – cavaleiro, oficial, dignitário e grão-cruz – e seis graus na Ordem da Rosa – grão-cruz, grande dignitário, dignitário, comendador, oficial e cavaleiro. A Ordem de Pedro I, apesar de ter sido instalada por decreto no Primeiro Reinado, não teve seus estatutos publicados, tendo sido regulada apenas em 19 de outubro de 1842. Os estatutos originais, contudo, previam apenas três graus – o de cavaleiros, dignidades e grandes dignidades, transformados em cavaleiros, comendadores e grãocruzes em 1842. Seguindo o costume das ordens portuguesas, cada grau deveria ter um uso específico das medalhas, faixas e mantos para que as hierarquias entre os membros das ordens se tornassem visíveis. O modelo de faixa transversal com medalha para grão-cruz, medalha pendurada em faixa no pescoço para comendador e medalha presa do lado esquerdo da roupa para cavaleiros era a base para todas as ordens criadas nessas duas primeiras décadas do século XIX. A Ordem de Torre e Espada adotava esse modelo geral e tinha por insígnia uma chapa de ouro redonda com uma espada com os dizeres “valor e lealdade” para os cavaleiros, enquanto os comendadores e grão-cruzes trariam também uma torre acima da insígnia, costume que foi expandido para os cavaleiros em decreto de 1810xxvi. Estes últimos poderiam usar uma chapa na casaca com a insígnia da Ordem, sendo que os grão-cruzes, além da faixa transversal, usariam um colar formado de espadas e torres nos dias de gala. A Ordem da Conceição, por sua vez, diferenciava seus graus por meio do tamanho das medalhas, além dos usos das faixas. Assim, comendadores e grão-cruzes usavam um modelo maior, enquanto cavaleiros e serventes usavam o modelo menor. Os serventes, que eram a base da hierarquia, não poderiam utilizar ouro ou joias em sua medalha, que deveria ser fabricada em prata. A 94 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos insígnia da Ordem era uma “estrela grande de nove pontas, esmaltadas de branco e arraiadas de ouro, com nove estrelas pequenas do mesmo esmalte, colocadas sobre os raios entre cada uma das suas pontas, e decorada com a coroa real sobre a ponta superior”.xxvii Na Ordem do Cruzeiro, a única diferença em relação às ordens portuguesas era que os oficiais utilizavam, além da medalha dos cavaleiros, uma chapa. Já os dignitários dessa Ordem, apesar do nome distinto, mantinham o uso dos comendadores. A medalha do Cruzeiro era uma estrela esmaltada de branco que seria “decorada com [a] coroa imperial, e assentada sobre uma coroa emblemática das folhas de tabaco e café, esmaltadas de verde”. Além disso, teria “no centro, em campo azul celeste, uma cruz formada de dezenove estrelas esmaltadas de branco, e na circunferência deste campo, em círculo azul ferrete, a legenda – Benemerentium praemium – em ouro polido”. No verso da medalha estaria a efígie de D. Pedro em ouro. A Ordem de Pedro I manteve, em seus estatutos originais, os usos das ordens portuguesas, mas as dignidades e grandes dignidades, além do uso da medalha pendente da fita ao pescoço e da faixa transversal respectivamente, utilizavam uma chapa bordada com a insígnia da Ordem do lado esquerdo do peito. Já a Ordem da Rosa, por conta do número maior de graus, teve algumas mudanças maiores, misturando, em alguns casos, os usos das ordens portuguesas com os da Ordem do Cruzeiro. Optou-se nela por fazer uma distinção entre os grãos-cruzes efetivos e os honorários. Os efetivos deveriam usar nos trajes de corte e grande gala, além da banda compartilhada pelos honorários, um colar “formado de rosas de ouro e esmalte”. Os grandes dignitários e os dignitários usariam a medalha pendente do pescoço, como os comendadores das ordens portuguesas, e as chapas da Ordem na casaca. Os comendadores e oficiais usariam a medalha e a chapa pendentes nas casacas. Já os cavaleiros usariam apenas a medalha na casaca, não tendo direito a Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 95 Camila Borges da Silva chapa. As cores da Ordem eram rosa e branco e as medalhas possuíam todas um círculo de rosas ao redor de uma estrela branca, cujo centro possuía um círculo azul no qual se poderia ler os dizeres “amor e fidelidade”. Com a criação da Ordem do Cruzeiro, os símbolos utilizados nas medalhas – a coroa imperial, a estrela do Cruzeiro, as folhas de tabaco e café – tinham a função de representar o Brasil. Esta perspectiva expandiu-se para as medalhas das ordens portuguesas aplicadas ao Brasil no decreto de 1843 que, nas palavras de Poliano, visava a “nacionalizar” as insígnias dessas ordens, construindo uma diferenciação entre as ordens brasileiras e suas homônimas portuguesas. Poliano, contudo, admite a hipótese que estas modificações tenham ocorrido antes do decreto, seguindo as formulações de Artidoro Xavier Pinheiro. Este transcreve o decreto de 1843 retratando em pranchas as medalhas já com as alterações simbólicas das estrelas do Cruzeiro, do café e do fumo, embora o decreto de 1843 apenas admita a mudança nas cores das fitas das Ordens Militares. Poliano conclui que Pinheiro apenas teria formalizado em suas pranchas “mais de meio século de uso de tais insígnias”. O autor apoia-se ainda no “Viagem pitoresca e histórica” de Jean Baptiste Debret que retrataria a cruz da Ordem de Cristo ladeada dos ramos de café e fumo. Aventa ainda a hipótese de que a “fantasia dos ourives” levasse a modificações reais nas insígnias dessas ordens, a despeito da interdição legal para isso. xxviii A corte instalada no Rio de Janeiro, transformada depois em império independente, vivia o dilema de um Antigo Regime em crise, ameaçado que estava pela difusão das ideias liberais. Esse dilema é perceptível pela coexistência de dois padrões indumentários distintos: por um lado temos o rápido avanço das modas – sobretudo após 1815 com a “invasão” de franceses ligados ao comércio de moda –, de outro lado, a restrição do acesso aos signos distintivos que emanavam prestígio nessa sociedade, ou seja, os uniformes e insígnias das ordens honoríficas. Nestes dois padrões percebemos a 96 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos luta de dois mundos diferentes: um lutando pela sobrevivência - o Antigo Regime - e outro em rápida transformação. O estudo da indumentária nas duas primeiras décadas do século XIX permite-nos, assim, atentar para o processo de interpenetração de diferentes temporalidades em um mesmo recorte cronológico. Tradição e modernidade não eram elementos que coexistiam em esferas separadas e sim se combinavam de diferentes maneiras. Neste processo, a tradição acabava inserida na própria concepção de moderno, dando forma a essa modernidade e construindo as feições singulares dessa cultura. Notas e referências Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Universidade Pontifícia Católica (PUC-Rio), orientada pelo Professor Livre Docente Antônio Edmilson Martins Rodrigues. Bolsista Faperj Nota 10. Contato: [email protected] i MELLO E SOUZA, Gilda de. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; FREYRE, G. Sobrados e Mucambos. 6a edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981; ROCHE, Daniel. A Cultura das Aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. ii WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 2 vols. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999 iii LEITHOLD, T.Von. e RANGO, L.Von. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p.30. iv Gazeta do Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1818, nº 1 e 14 de janeiro de 1818, nº 4. Grifo meu. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 97 Camila Borges da Silva v BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, v.3, p.809. vi MORAES E SILVA, Antônio. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813, v.2, p.523. vii Idem, p.820. viii BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.4, p.542. ix MORAES E SILVA, Antônio. Op. cit., p.308. x BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.3, p.529. xi BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.3, p.526. xii MORAES E SILVA, Antônio. Op. cit., p.307. xiii SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Análise de Estratificação Social (O Rio de Janeiro de 1808 a 1821). São Paulo: USP. Departamento de História. Boletim n.07, 1975. xiv SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 21 e 22. xv SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2005, p.275. xvi SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Análise de Estratificação Social, p. 19. xvii Decreto de 20 de setembro de 1822. Arquivo Nacional. Códice 15, volume 9. xviii DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1978, tomo II, p. 215. xix Carta de Lei de 19 de junho de 1789. Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p. 553 e 554. xx DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p.169. xxi Decreto de 13 de maio de 1808 e Carta de Lei de 29 de novembro de 1808 transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Ordens honoríficas do Brasil (história, organização, padrões, legislação). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, pp.194-197. xxii Decreto de 6 de fevereiro de 1818 e Alvará de 10 de setembro de 1819 transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., pp. 200-204. 98 ISSN 1414-9109 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos xxiii Decreto de 1º de dezembro de 1822. Arquivo Nacional. Graças Honoríficas – códice 15, vol. 9. xxiv Decreto de 16 de abril de 1826. Arquivo Nacional. Códice 961. xxv Decreto de 17 de outubro de 1829. Arquivo Nacional. Códice 14 – vol.8. xxvi Alvará de 23 de abril de 1810 transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., p.200. xxvii POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., p.202. xxviii POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., p.81 e 82. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 99 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido Desirree dos Reis Santos “Quiseram que eu me calasse, mas eu falo. Quiseram que eu dissesse amém, mas eu digo não. Quiseram que eu morresse, mas estou vivo”. i (Augusto Boal, 1978) A trajetória de exílio do autor e diretor teatral Augusto Pinto Boal nos anos 1970 foi marcada por várias de suas criações, onde se criticava a ditadura militar brasileira, fazia-se denúncia da tortura nos regimes autoritários da época, falava-se sobre as vivências de milhares de exilados e as demais histórias de pessoas com quem encontrava no exílio. Quiseram que se calasse, mas o exílio, apesar de todas as dificuldades e da amarga experiência, foi a possibilidade de fala naqueles anos de ditadura no Brasil: “Escutem, escutem. Eu não me calo. Eu não me calo. Escutem” ii. Crônicas de Nuestra América (1977)iii e Murro em Ponta de Faca (1978) são exemplares no tocante às temáticas apontadas. A primeira é uma série de histórias, expressadas em crônicas, de pessoas que conheceu ou de que ouviu falar nos países latinoamericanos. São histórias de “Nuestros Americanos – aqueles que sofrem, pelejam e que um dia se libertarão”, como disse o dramaturgo. Já o Murro é uma peça teatral, em que a condição de estar exilado e as angústias de viver fora do ambiente comunal ganham foco. No presente artigo, propomos ir além da análise somente de suas produções exilares, verificando de que maneira o exílio influenciou as suas criações artísticas, quando comparadas aos projetos por ele realizados nos anos 1960, quando era diretor do Teatro Arena de São Paulo. Para tanto, dentre suas produções, optamos por um olhar direcionado ao Teatro do Oprimido iv, criação resultante das 100 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido descobertas coletivas de seus trabalhos no exílio latino-americano (sobretudo, Peru e Argentina) e aprofundada na Europa após o golpe de Estado argentino em 1976. A relação entre intelectual e povo é temática bastante presente tanto na sua atuação nos anos 1960 como no Teatro do Oprimido e será a partir dela que analisaremos como os projetos de Boal foram metamorfoseados quando passou a viver e produzir no exílio. O antropólogo Gilberto Velho, na análise das sociedades complexas – em particular, a brasileira – define a noção de metamorfose vinculada à questão da mudança individual em permanência com vivências anteriores, embora reinterpretadas com outros significados. Isso possibilita, “através do acionamento de códigos, associados a contextos e domínios específicos (...) que os indivíduos estejam sendo permanentemente construídos” v. No contexto específico do exílio, a vivência em outros países, as diferenças culturais, as novas visões de mundo, a angústia por estar longe de seu lar, a falta de reconhecimento no local que passa a viver, as novas oportunidades e possibilidades, tudo isso interferiu não somente nas trajetórias pessoais dos exilados, como também nos seus projetos políticos e nas próprias criações artísticas. Valendo-nos dos apontamentos do antropólogo, interessa-nos verificar o “jogo da permanência e da mudança” através das atividades e produções de Augusto Boal como contribuição para a amplitude e pluralidade relacionada à temática do exílio brasileiro predominante nos anos 1970. Este é o tema deste texto composto em duas partes. A primeira, uma breve análise sobre a relação entre intelectualidade e povo no teatro de Arena. A segunda, mais extensa, dá enfoque a sua trajetória de exílio e aos primeiros momentos de atuação com as propostas do Teatro do Oprimido. Boal só voltou a morar no Brasil em 1986. No entanto, o presente texto contemplará somente a década de 1970. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 101 Desirree dos Reis Santos 1 Teatro de Arena, Boal e a luta contra a ditadura brasileira Durante a maior parte dos anos 1960, houve a manutenção da posição hegemônica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre as expressões culturais, principalmente nas “artes de espetáculo” como o cinema, a música e o teatro. Com objetivo de ampliar seus públicos, a proposta do que seria arte engajada para essa esquerda estava direcionada à ideia do nacional-popular. Voltada especialmente para a plateia, essa concepção residia na tentativa de criar estratégias para conscientizá-la quanto aos problemas sociais brasileiros. Para Celso Frederico, as concepções de nacional e do popular tinham dois claros pontos traçados. Em primeiro lugar, era enfatizada a arte não-alienada através da tópica nacional, em que artistas e intelectuais de esquerda contribuiriam para que o público refletisse sobre a realidade brasileira e, a partir desse conhecimento, pudesse transformá-la. O viés popular, por outro lado, estava diretamente ligado à democratização da cultura, em detrimento de uma arte elitizadavi. No teatro, por exemplo, até o final da década de 1950 e durante uma parte dos anos 1960, as companhias teatrais restringiam-se em montar repertórios estrangeiros e com públicos elitizados. Foi a favor de uma revisão crítica a realidades como essa que viria a proposta do nacional-popular, sendo ela base intelectual para as montagens do Teatro de Arena de São Paulo. A questão da conscientização conduzida pelos intelectuais e artistas de esquerda ligados à hegemonia pecebista sofreu algumas releituras depois de 1964. O Arena, que até então, seguia essa proposta, começava a direcionar para outras perspectivas quanto ao uso do conteúdo da obra. Essa tomada de posição do Arena consistia no questionamento sobre a frente classista desejada pelo PCB, que teve seus primeiros sinais de extinção nas esquerdas com o golpe de 1964 e a considerada traição da burguesia naquele momento. 102 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido A proposta do Teatro de Arena na relação entre palco e plateia perpassava a iniciativa de conscientização para englobar a perspectiva do protesto. Como se vê, o enfoque dado ao público e à necessidade da mensagem política não era questionado. O que se pretendia, nessa nova abordagem, era utilizar a mensagem para alcançar um resultado prático imediato e não uma simples conscientização sem atitudes mais concretas. Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967) são exemplos dessa nova proposta. De acordo com Edélcio Mostaço, para Boal, uma peça passa, nesse momento, a ter validade somente nas obras que resultassem “em algum saldo político organizacional imediato, como os comícios e as assembléias”vii. O binômio emoção/consciência cede espaço ao espírito cívico do protesto/resistência, como nos mostra Marcos Napolitanoviii. Boal e os demais integrantes do Arena buscavam as discussões dentro da esquerda sobre as formas de se entender a realidade brasileira e suas lutas. O objetivo era atingir o público, mas na relação entre intelectual e povo, era o primeiro que detinha a informação, o que ensinava e que atuava, como num processo didático, para estabelecer as palavras de ordem para o povo. Como veremos, o Teatro do Oprimido retoma criticamente essa relação. De todo modo, qualquer forma de resistência à ditadura era reprimida pelo governo. Para Miliandre Garcia, a ofensiva sobre o teatro era explicada pela ideia de ser considerado pelas forças situacionais como o braço mais fraco do comunismo e, por essa razão, mais fácil de ser desarticuladoix. Preso em fevereiro de 1971, Boal permaneceu no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo por um mês em cela solitária e quase dois meses no presídio Tiradentes. Grupos de artistas e entidades profissionais do teatro pressionaram o governo para a libertação do dramaturgo, que conseguiu sair da prisão, alegando ter de acompanhar o Teatro de Arena durante o Festival de Teatro de Nancy, mas assinando um termo de compromisso de que voltaria ao Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 103 Desirree dos Reis Santos Brasil ao término do eventox. Seguiu para França para se juntar à excursão do Arena, mas decidiu deixar a Europa para viver em Buenos Aires com sua esposa de nacionalidade argentina xi Cecilia Thumin . 2 O exílio e o Teatro do Oprimido Viver no exílio implica ao exilado a condição de uma ruptura com o ambiente comunal em que convivia outrora e/ou a percepção de estar sempre fora do lugarxii, para utilizar a expressão de Edward Said. Essa vivência é marcada pela sensação de estar longe da pátria, por estar afastado de amigos, familiares, mas também pelas dificuldades de adaptação ao país que o acolheu, como o novo idioma, o não reconhecimento entre esses habitantes e os problemas por conta da criação de novas redes de sociabilidade. A segunda metade do século XX nos países latino-americanos é marcada por essas diversas vivências, fruto das políticas repressivas das ditaduras instaladas na região. Augusto Boal faz parte dessas experiências. O psicanalista uruguaio Marcelo Viñar, que viveu no exílio nessa época por conta do governo autoritário que se instaurou em seu país, escreveu em conjunto com sua esposa, Maren Viñar, um livro em que a ruptura cujo exilado político tem de enfrentar é analisada. Segundo Marcelo: O homem se constrói a partir de suas ilusões e de seus projetos, e uma das dimensões da existência é o fato de remodelar permanentemente este jogo de ilusões e de projetos, que se dá entre o ser e as pessoas de sua convivência. O exílio faz abortar este movimento e o destrói, para retomá-lo na estranheza do não-familiar. (...) Ele se apresenta como um tempo de inércia e contemplação, que emerge após a tormenta, o naufrágio e a catástrofe: propõe o desafio 104 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido do que podemos construir a partir da perda, da desilusão, do xiii desencorajamento, da derrota. A ruptura por conta do afastamento, o impedimento de voltar ao Brasil e continuar sua trajetória dentro do grupo teatral no qual atuava desde os anos 1950, as tentativas de manter sua identidade, a busca por oportunidades e as reflexões sobre o uso do teatro como novo tipo de ferramenta política são marcas do exílio de Boal. A chegada à Argentina, em 1971, e a dificuldade de adaptação foram narradas pelo dramaturgo em seu livro de memórias: Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não existisse, eu não faria falta. Na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. xiv Em Buenos Aires, nenhuma . Me sentia invisível. Me olhava no espelho vazio e todo mundo tinha ido embora – até eu! Difícil fazer a barba quando não se vê a imagem... Claro que o Brasil inteiro podia viver sem mim – por muito tempo viveu, diga-se – mas fiz diferença, sei. (...) Em Buenos Aires, senti o significado da palavra raízes... xv quando as perdi. Quando as tinha, não sabia. Perdidas, dei falta. Essas reflexões sobre o passado vivido expressas no livro de memórias de Boal nos mostra como o exílio é por ele representado e lembrado, principalmente quando se trata daquele primeiro momento de contato com o não-familiar. Essa sensação é também comentada por Marcelo e Maren Viñar: Para o exilado, a ruptura da ancoragem narcísica se faz em um conflito violento, sobretudo para quem outrora tinha um papel reconhecido por ele e pela comunidade. Perde o espelho múltiplo a partir do qual criava e nutria a sua própria imagem, seu personagem. No exílio ninguém o conhece, ninguém o reconhece. Aquele que eu era não existe mais. O personagem está morto, o cenário não é mais o mesmo, os atores Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 105 Desirree dos Reis Santos tampouco. E nos encontramos ali, sem olhar, sem palavra: comoção e crise radical de identidade. O homem está nu.xvi A crise radical de identidade traz inúmeras consequências ao exilado. No caso de Boal, a busca por uma nova linguagem teatral, incorporada a técnicas teatrais antes utilizadas por ele foi uma delas: seus projetos metamorfoseadosxvii. Surge o Teatro do Oprimido. O teatro, nessa perspectiva, é visto como instrumento político para reflexão e transformação social, mas tendo o espectador como sujeito ativo da produção. Através das expressões artísticas e do diálogo entre os oprimidos, podem-se questionar e transformar realidades opressivas em qualquer lugar, desde que tenha o oprimido e uma situação a ser superada. O oprimido age, não há, em espécie alguma, um aspecto de vitimização, pelo contrário, é o oprimido que tem a capacidade de lutar contra. Seguindo a lição de Paulo Freire, é aquele que melhor se encontra preparado e pode entender o terrível significado de uma sociedade opressora e seus efeitosxviii. Dentre as formas de Teatro do Oprimido, o Teatro-Fórum é uma possibilidade exemplar para entender essa proposta e perceber a relação entre intelectual e povo a partir dessa nova linguagem. Durante sua experiência com teatro popular no Peru, em uma das sessões, Boal não conseguia compreender o que uma espectadora dizia ao solicitar que os atores improvisassem suas ideias, então, resolveu convidá-la ao palco para que pudesse interpretá-las. Assim, “ela entrou em cena dividindo-se em duas: ela e a personagem”xix, um “espect-ator”, como passou a classificar, aquele que age e observa. Nesse sentido, percebeu que para “ver” o pensamento das pessoas era melhor que fosse através de seus atos e não de suas palavras. Só assim, o teatro passaria a ser um “teatro de perguntas”, de questionamentos. Não cabia ao intelectual, ao estudante de teatro, ao ator que fazia parte da montagem da peça conduzir e ensinar, era o povo que deveria deter os meios de produção do teatro. Na concepção de Boal, esses meios de produção 106 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido teatral têm de ser utilizados pelo povo de acordo com suas maneiras e para seus fins, “o teatro é uma arma e é o povo que deve manejála”xx. O público e os atores contratados para a peça agem tanto como espectadores e atores, em uma igualdade de posições. O Teatro-Fórum é divido em dois momentos. No primeiro, apresenta-se uma peça convencionalmente, mas apontando para um problema no qual o protagonista não tem uma solução. O problema deve constar a opressão que se deseja combater. Finalizada essa parte, começa um novo momento. A peça é novamente encenada, mas ganha outro sentido: a qualquer momento, o público pode interferir, dizendo para parar a encenação. Os atores congelam aquela cena e o “espect-ator” intervém, veste parte do figurino do ator em que escolhe para substituir, mantêm as ações físicas do mesmo, dando continuidade e um novo rumo para aquela história, junto aos demais atores. Através das ações desse novo integrante que se pode refletir e questionar aquela realidade posta em questão. O foco é na ação. Qualquer ideia pode ser proposta, mas não é permitido que o público dê sugestões sem encenar, acomodados nos seus assentos: Tenho visto espectadores sempre disconformes que revelam ser extraordinários revolucionários... porém sentados nas suas poltronas. Falar é muito fácil, é muito fácil sugerir atos heroicos e maravilhosos. O mais difícil é realizá-los. Esses mesmos espectadores se darão conta de que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensam se xxi tiverem que fazer eles mesmos os atos que preconizam. Naquele teatro popular, o povo é o protagonista, mas não somente do conteúdo da obra, em que ele é o tema central e sua realidade, discutida. Para o dramaturgo, a proposta era que o próprio povo conduzisse a encenação, reassumindo “sua função protagônica no teatro e na sociedade”xxii. Sendo assim, transformam a ação Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 107 Desirree dos Reis Santos inicialmente enunciada e oferecem sugestões modificadoras a partir de suas vivências e de seus desejos. Em outras palavras, a Poética do Oprimido propõe o aspecto transformador da ação dramática, em que, segundo Boal, o espect-ator “invadindo nosso espaço, concretizava sua verdade.” xxiii Possivelmente comparando a sua trajetória dos anos 1960 e à ideia do intelectual capaz de conscientizar e dar as palavras de ordem ao público, Boal comenta essa nova proposta: “Longe o tempo em que ensinávamos tudo, os sabichões. Quando violou as regras do jogo, senti alívio: eu não era obrigado a saber, sempre, o bom caminho. Não devia mais me sentir culpado!”xxiv A experiência no Peru e a estruturação do Teatro do Oprimido, a partir do Teatro-Fórum, foram realizadas numa época em que o governo peruano iniciava o denominado ALFIN, um plano nacional de alfabetização integral, por conta do alto índice de analfabetos que tinha naquele país. O ano era 1973. Esse Programa seguia o método de alfabetização de Paulo Freire e tinha como meta erradicar o analfabetismo em aproximadamente quatro anos, utilizando diferentes tipos de linguagemxxv. A Boal coube o trabalho com o teatro popular. Para trabalhar com os peruanos, o dramaturgo foi além do uso de métodos que já conhecia. O exílio possibilitou a Boal descobertas e, não deixando recair à posição mais cômoda para o exilado (ou seja, manter-se à margem e num estado melancólico devido à fratura obtida pelo afastamento do ambiente comunal), propôs mecanismos de libertação para povos oprimidos naquele contexto da segunda metade do século XX. A vivência no exílio fez parte dos estudos do intelectual palestino Edward Said. Refletindo sobre sua experiência pessoal, permanentemente “entre mundos” xxvi, e analisando o exílio num sentido mais amplo, identifica o exilado como um estado de ser descontínuo, uma vez separado da terra natal, de suas raízes e de 108 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido seu passado. No entanto, apesar da dor mutiladora do afastamento, Said nos fala dos “prazeres do exílio” que só são possíveis de acontecer, ao passo que o indivíduo percebe que não se deve ficar à margem de tudo nos lugares que passa a viver. Impedido da volta, cabe ao exilado buscar novas possibilidades e, se possível, tentar também uma nova vida que, mesmo minada pela perda, ganha um novo sentido em meio ao aprendizado e às descobertas nos países que o acolheram, como ocorreu no caso de Boal. Said demonstra essa alternativa que o exilado deve seguir, já que, “no final das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado se recuse a ficar à margem, afagando uma ferida, há coisas a aprender”xxvii. Tzvetan Todorov também percebe esse aspecto duplo do exílio de perda e descoberta. Classificando-se como um exilado circunstancial, nem econômico, nem político, discorre sobre a situação do homem desenraizado, que, “arrancado de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência.”xxviii Os trabalhos no Peru eram intercalados com a vida na capital portenha, onde sua esposa e filhos viviam. A onda de golpes de direita nos países latino-americanos ameaçava também a Argentina. Depois da morte do então presidente Juán Perón, em 1974, Isabelita, sua esposa e vice-presidente, assumiu o poder. Os anos em que Isabelita esteve na presidência foram marcados pela fragilidade política do governo, onde eram crescentes as ações tanto de grupos paramilitares de direita, como da extrema esquerda, demarcando uma fase de intensa radicalização política, que culminou na tomada do poder pelos militares em 1976. O golpe argentino foi decisivo para a partida de Augusto Boal e para estender os anos de exílio: a volta ao Brasil era inviável e permanecer em solo latino-americano, inseguro. Em 1976, junto com Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 109 Desirree dos Reis Santos sua família partiu para Portugal. Lá, viveu por dois anos. Foi nessa época que, no Brasil, surgiu a canção “Meu Caro Amigo”xxix de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime endereçada a Boal. A letra musical utiliza metáforas para dar notícias ao amigo exilado, mas também denunciar o regime autoritário, como muitas outras de autoria de Chico. De Portugal, passou a viver na França. O Teatro do Oprimido passou a ser mais difundido na Europa a partir desse momento, já que Boal foi convidado a lecionar sobre essa nova linguagem teatral na Universidade Sorbonne. Em Paris, Boal participou da fundação do Centre d’Étude et Diffusion des Techniques Actives d’Expression, que ensinava a Poética do Oprimido para centenas de pessoas. As técnicas foram ganhando repercussão internacional no final dos anos 1970. Entre as formas de Teatro do Oprimido, além do Teatro-Fórum, há o Teatro-Imagem, o Teatro-Jornal, o Teatro-Legislativo e o TeatroInvisível. O diretor teatral e os atores especializados (os “curingas” do Teatro do Oprimido) atuam, dentro dessa perspectiva, como aqueles que demonstram e ensinam os métodos e as técnicas para a libertação por meio do teatro para outros grupos ou, em cena, são os que estimulam os participantes, os “espect-atores”, a ousarem mais. O teor libertário capaz de romper uma situação de submissão ou, ao menos, causar estranhamento a ela são os vetores principais de todas essas formas de Teatro do Oprimido. Uma experiência que Boal presenciou e que narra no documentário de Zelito Viana, chamado “Augusto Boal e o Teatro do Oprimido”, demonstra esse estranhamento com a situação de ser oprimido e a possibilidade de os métodos utilizados e o teatro em si serem armas para reflexão desse indivíduo que vive uma forma de opressão. A história contada é sobre um grupo de empregadas domésticas que atuava sob a direção de Boal em sindicatos e praças e, certa vez, pediram ao 110 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido dramaturgo para encenar em um teatro convencional. Realizado o desejo, foi feito o espetáculo: sucesso. A peça acabou sob aplausos. Todas as atrizes estavam sorridentes, exceto uma que se encontrava chorando no camarim. Boal foi encontrá-la, questionou o motivo do choro e ela respondeu que eram ensinadas a serem mudas e que havia um homem pedindo para falarem bem alto para que todos da plateia pudessem ouvir. Ele perguntou, então, se foi por isso que ela chorou, ela negou e continuou, dizendo que foi criada para não ser vista e tinham luzes, holofotes a iluminando. Boal perguntou novamente: “Então, foi por isso que você chorou?” e depois de muito negar, ela disse que se emocionou, quando entrou no camarim, olhou no espelho e viu uma mulher. Antes o que via era uma empregada doméstica e explicou: “mas agora que eu estava iluminada, falei o que pensava, disse as minhas emoções, agora, eu olho no espelho e vejo uma mulher”. Boal conclui: “Não é só ela quem descobre isso, é todo mundo que entra em cena, diz o que pensa, conta suas emoções” descobre quem realmente é xxx. Essa é uma representação e uma das possibilidades de libertação do Teatro do Oprimido. Diante da lógica da Doutrina de Segurança Nacional na ditadura militar brasileira, o afastamento de Boal, assim como dos demais exilados, serviria para “diminuir a carga de indésirables do país”xxxi nos termos de Hannah Arendt. A saída dos “indesejáveis” era resultante de um longo caminho de perseguições, ameaças, interrogatórios e/ou prisões, por vezes, seguidas de torturas, inviabilizando a permanência no Brasil. As partidas, em geral, eram vistas como uma garantia de sobrevivência e maneira de escapar dessas perseguições. As decisões de sair decorriam de diversas situações, desde o banimento (principalmente ligado a iniciativas armadas que objetivavam a soltura de militantes presos) até a recusa de viver num país sob ditadura. Mas, para todos esses exilados, o lugar de chegada estava sempre vinculado a uma “utopia de paz”, já que nunca se quer um país mais belicoso do que aquele de origem. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 111 Desirree dos Reis Santos No caso dos exílios latino-americanos, essas representações dos países de chegada estavam diretamente ligadas às conjunturas dos mesmos, seja por serem favoráveis à efervescência política de esquerda ou, ao menos, que não estivessem tomados por governos militares autoritários. Em um primeiro momento, de maneira geral, Chile, Cuba e, em alguns casos, a Argentina foram os grandes focos dos exilados. Após isso, tendo Chile e Argentina vivido golpes militares em 1973 e 1976, respectivamente, a Europa, quando conseguiam refúgio, era a principal moradia. Boal não foge a essa evidência. Entendemos a vida no exílio de Augusto Boal como sendo determinante para que realizasse a linguagem teatral que sistematizou o Teatro do Oprimido. Foi o aprofundamento de métodos já utilizados, quando era diretor do Teatro de Arena de São Paulo. O exílio permitiu complementá-los, estruturá-los e divulgá-los a partir de novos ambientes culturais e novas redes de sociabilidade. Pensando a noção da contemporaneidade, o filósofo Giorgio Agambenxxxii analisa a perspectiva da fratura. Ao trazermos para a condição do exilado, os apontamentos do filósofo permitem uma compreensão sobre o significado do afastamento que, ao contrário do que pode parecer, não é lugar de fuga de seu tempo ou de sua realidade, mas sim a possibilidade de maior engajamento do indivíduo causado pelo desconforto e pelo distanciamento. Boal esteve fora do lugar, mas, ao mesmo tempo buscando seu lugar e, mais, as possibilidades no exílio de criar ferramentas políticas para libertação dos que estão submetidos a opressões. Suas produções não tinham mais como objetivo principal a luta contra a ditadura militar brasileira – apesar de ela ser tema bastante recorrente em suas obras. A militância ganha múltiplos sentidos. Militar era através da linguagem no intuito de provocar. A militância está ligada a pensar uma linguagem teatral que faça com que as pessoas que sejam oprimidas percebam e sintam um 112 ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido desconforto de estar naquela condição. Foi a partir das experimentações naqueles países durante os anos de exílio que se aperfeiçoaram as técnicas, que hoje são utilizadas por dezenas de países, sistematizadas no livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. E, por que esse título? Boal nos explica, através de seu livro de memórias: O Teatro do Oprimido, antes de editado, não se chamava assim. (...) Livreiros argumentavam que ninguém compraria um livro de Poéticas Políticas: poesia ou política? Mudei para Poéticas do Oprimido em homenagem a Paulo Freire. Outra recusa: em que estante colocar? (...) Quando, pela primeira vez, pronunciei Teatro do Oprimido, soou estranho. Ainda hoje, para alguns, soa Deprimido, embora se trate de Revoltado, do que quer lutar, ser feliz. Imaginem se eu o chamasse de Teatro da Felicidade, Teatro da Revolução, Teatro do Futuro Inventado! – pretensioso. Ficou como é, agora gosto: Teatro do xxxiii Oprimido!!! Notas e referências i Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Bolsista CAPES, orientada pelo Professor Doutor Mauricio Parada. Contato: [email protected] Trecho extraído do texto de Murro em Ponta de Faca (1978), peça de sua autoria que toca o tema do exílio. ii Idem. iii BOAL, Augusto. Crônicas de Nuestra America. Rio de Janeiro: Codecri, 1977. (Coleção Edições do Pasquim; v. 10) iv Os aspectos teóricos e técnicos desse teatro podem ser vistos em BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 113 Desirree dos Reis Santos v VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 29. A ideia de “metamorfose” ligada a exílio também é utilizada pela historiadora Denise Rollemberg quando estuda as memórias de exilados brasileiros da recente ditadura, cf. ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. Atualmente, o livro de Denise é uma das principais referências para o estudo sobre os exílios durante os anos 1960 e 1970. vi FREDERICO, Celso. "A política cultural dos comunistas". In: Quartim de Moraes, João (org.). História do marxismo no Brasil. Teorias. Interpretações. Campinas: Ed. da Unicamp, 1998, p. 277. vii MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 92. viii NAPOLITANO, Marcos. “A arte engajada e seus públicos (1955-1968)”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.28, 2001, p.7. ix GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2008, p. 137. x Depoimento de Boal no documentário de Zelito Viana, v. AUGUSTO Boal e o Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: MAPA, 2011. Diretor: Zelito Viana. Produção: Patrícia Chamon. Trilha sonora: Francis Hime. DVD, 62’. xi Sobre a trajetória da prisão até o exílio de Boal, v. MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.96-97. xii SAID, Edward. Fora do Lugar. São Paulo: Cia das Letras, 2003. xiii VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Escuta,1992, p.111. xiv Nessa parte do texto, Boal coloca em nota a seguinte passagem: “A personalidade do exilado corre sério risco de desintegração – é preciso que eu faça falta para saber quem sou: sou a falta que faço. Se não faço falto, não sou! É o pior que pode acontecer a alguém: tornar-se anônimo para si mesmo!”. V. BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro: Memórias Imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 289. 114 Maren. Exílio e tortura. São Paulo: ISSN 1414-9109 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido xv Idem, p. 289, 290,297. xvi VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Op. cit, p.71. xvii Metamorfose no sentido já explicitado a partir do conceito analisado por Gilberto Velho. VELHO, Gilberto. Op.cit. xviii FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. xix BOAL, Augusto, Op.cit., p. 298. xx BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 127. xxi BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. xxii Idem, p. 150. xxiii BOAL, Augusto. Op. cit., 2000, p.298. xxiv Idem. xxv BOAL, Augusto. Op.Cit., 1977, p.124. xxvi SAID, Edward. “Entre Mundos”. In: ___. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 57. xxvii xxviii TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 27. xxix Canção do álbum Meus caros amigos (1976) Philips 6349 398. xxx Trecho do documentário “Augusto Boal e o Teatro do Oprimido” de Zelito Viana. xxxi ARENDT, Hannah. Apud. GRECO, Heloísa. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2003. xxxii AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. xxxiii BOAL, Augusto. Op. cit., 2000, p. 299. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 115 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Gabriela Piai de Assis Este artigo trata de alguns aspectos dos documentos “Notícia Raciocinada sobre as aldêas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até à actualidade”i, do Brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, publicado pela primeira vez na Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro em 1846 e “Memoria sobre cathechese e civilização dos indigenas da provincia de S. Paulo” ii de Joaquim Antônio Pinto Junior, publicado em 16 de abril de 1862. Esses documentos compõem uma pequena parte das fontes que estão sendo utilizados na minha pesquisa de mestrado, ainda em sua fase inicial, que tem como objetivo verificar como o Estado agiu diretamente, através de leis e da Diretoria dos Índios da Província de São Paulo, e indiretamente, através do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para moldar a condição, as imagens e até mesmo as localizações dos grupos indígenas na Nação. Procurando, portanto verificar as relações entre a política indigenista e como o índio foi retratado na criação da História Nacional e regional da província de São Paulo. Machado de Oliveira foi um militar de carreira e político que chefiou a Diretoria Geral dos Índios da Província de São Paulo, na posição de Diretor Geral dos Índios, respondendo, nos termos da legislação, diretamente ao Imperador. Ao mesmo tempo, participou ativamente com inúmeros escritos como colaborador e, posteriormente, como sócio efetivo no IHGB. Joaquim Antonio Pinto Junior, por sua vez, ocupava o cargo de Advogado dos índios da província e de Diretor das aldeias de “Carapycuyba” e “Baruery”. 116 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Ambos trabalhavam em torno da Diretoria Geral dos Índios na Província de São Paulo, órgão que reúne importantes indivíduos e documentações. As Diretorias Gerais foram criadas pelo Decreto n° 426 de 24/07/1845, que contém o Regulamento das Missões de Catequese e Civilização dos Índios. O Regulamento dispunha que cada Província teria um Diretor Geral de Índios, nomeado pelo Imperador, arrolando-lhe diversas competências. Ele deveria interagir com o respectivo Presidente da Província para algumas questões, como por exemplo, requisitar os objetos que o Governo Imperial enviasse para os índios, a fim de distribuí-los pelos Diretores das Aldeias e pelos Missionários (§ 10 do artigo 1º). Com relação à Assembléia Provincial, deveria propor “a creação de Escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino” (§ 18 do artigo 1º). As Aldeias eram chefiadas por um Diretor, nomeado pelo Diretor Geral. Anote-se que não havia uma hierarquia burocrática entre o Governo Imperial e o Governo Provincial, mas, apenas, uma divisão de competências jurídicas e materiais entre ambos. Essa divisão aconteceu a partir do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, que a alterou e, dentre outros, criou as Assembleias Legislativas Provinciais, delegando-lhes competências legislativas e materiais, incluindo a de elaborar as leis orçamentárias (artigo 10, §§ 5º e 6º) e a de “[p]romover, cumulativamente com a assembléia e o governo geral, a organização da estatística da província, a catequese, a civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias” (artigo 11, § 5º). Na Província de São Paulo, o Diretor Geral dos Índios nomeado pelo Imperador foi José Joaquim Machado de Oliveira e, assim como previsto no artigo 11° desse Regulamento, foi-lhe concedido título militar de Brigadeiro. Machado de Oliveira, então, deveria nomear diretores para cada uma das aldeias da província. Pinto Junior, ficou responsável pelas de “Carapycuyba” e “Baruery”, ganhando por isso o título de Tenente Coronel. Burocraticamente, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 117 Gabriela Piai de Assis pode-se notar que estava prevista a criação dessas diretorias para servirem uma política mais ampla nacional, que pretendia usar como ferramentas, não apenas o próprio Governo Imperial, como também o Estado-Maior do Exército e a Igreja. A divisão menor de todo esse aparato seriam as referidas aldeias, ou aldeamentos, locais em que os indígenas deveriam ser estabelecidos, sob a tutela do Diretor para aprender a serem civilizados: sedentarização, agricultura e eventualmente treinamento militar. Mas não foi a primeira vez que se tentou criar aldeias para civilização dos indígenas, administrados por religiosos ou leigos, as aldeias existiram durante todo o século XVII e XVIII. Durante o período Pombalino, foram criados diretórios que deveriam desmontar essas estruturas. A política indigenista de Pombal tinha caráter assimilacionista e pregava indistinção entre os índios e os demais súditos do rei, buscando diferenciar negros e índios e proibindo a escravidão indígenaiii. Essa política objetivava a extinção dos aldeamentos, mas seus limites ficaram evidentes a partir da permanência e resistência dos grupos indígenas que utilizaram sua etnicidade como instrumento político.iv Essa etnicidade, já presente a partir da expulsão dos jesuítas, destaca-se após a Independência, momento em que orientações individualistas, liberais e crescentemente nacionalistas começaram a dirigir as expectativas, bem como a direcionar a política de Estado colocando os próprios grupos indígenas em focov. Desde o fim do século XVIII, mas oficializadas pelas Cartas Régias de D. João VI dos anos de 1808 e 1809, foram declaradas guerras justas aos índios, permitindo matá-los ou tomá-los em servidão temporária. Essa declaração evidencia uma política agressiva de controle e ocupação efetiva do território português vi e visava superar várias crises econômicas da metrópolevii. Elas apenas foram revogadas em 1831. 118 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo No entanto, é difícil identificar algum período em que os conflitos locais cessaram, apenas notou-se leis mais ou menos agressivas com relação aos nativos. O período durante a primeira metade do século XIX ficou conhecido por Manuela Carneiro da Cunha como vazio legislativo viii no que concerne à questão indígena. No entanto, esse vazio não significou que o indígena tivesse deixado de ser pensado. Havia muitas discussões e um grande impasse entre a decisão das Cartas Régias de fazer guerras justas aos índios e a de buscar incorporá-los, no período seguinteix. Um importante exemplo disso seriam os “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, de José Bonifácio de Andrada e Silva, que, apesar de não terem sido incluídos na Constituição de 1824, foram muito importantes, depois, para a escrita do Regulamento das Missõesx. A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, materializou a discussão de criação de uma história brasileira. Um dos grandes problemas para tal seriam os indígenas, por isso, discussões e publicações sobre suas as populações eram muito frequentes. Com certa postura iluminista, os intelectuais deveriam esclarecer as elites, topo da pirâmide social, para que esta depois esclarecesse o resto da sociedadexi. O Instituto Histórico também estava a serviço da educação da nova nação, mas se preocupava, principalmente, com a escrita da história que deveria servir às decisões políticas tomadas pela monarquia. O próprio Imperador passou a participar das seções de discussões e conceder prêmios para as melhores publicações. O Estado Nacional estava preocupado com a ocupação territorial e com a localização dos povos indígenas; estes, por vezes, eram aldeados em pontos estratégicos, para sair de terras a serem ocupadas por particulares ou para tentar trazer outros indígenas à civilização. Pensando em que lugar social o índio se encaixaria, o Regulamento das Missões, influenciado pela política de José Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 119 Gabriela Piai de Assis Bonifácio e pelas discussões no âmbito da RIHGB, não excluía aos indígenas o direito de acesso à plena cidadania, apenas dissertava sobre a cidadania para a população livre de acordo com critérios xii. de renda José Joaquim Machado de Oliveira publicou, na revista do IHGB, o artigo “Noticia Raciocinada sobre as aldêas de índios da provincia de S. Paulo”, que lhe valeu prêmio Imperial em 1852, mostrando o desenvolvimento das várias aldeias de índios na região de São Paulo e apontando a situação delas no momento em que escreveu. Ao longo de sua narrativa, dialogou, de maneira bastante clara, com a questão indígena de seu tempo, transformando a história em um mecanismo de compreensão de sua sociedade, mostrando eventos que ressaltassem os motivos ocultos da situação dos indígenas no período em que viveu, e pensando num projeto indigenista. Segundo John Monteiro, esse artigo é parte importante do que se pode chamar de narrativa da extinção, na qual o desaparecimento total dos índios demarcaria o triunfo do processo civilizatórioxiii. Já no início, afirmou: Na província de S. Paulo, como nas demais do Brasil, predominou nos conquistadores a idéa fixa de exterminar, trucidar e desolar homens e cousas que ahi deparassem, comtanto que sua ambição fosse satisfeita, seu domínio se estabelecesse, e suas idéas de exagerada crença religiosa prevalecessem, por qualquer modo que fosse, sobre xiv as que ahi existiam. Segundo ele, os colonizadores seriam comandados por Martim Afonso de Sousa e formariam um séquito armado e arrogante, o exato oposto dos indígenas. Se os primeiros cobiçavam o ouro, eram pérfidos e maliciosos, os últimos tinham natural abnegação aos bens mundanos, eram ingênuos, de boa fé e com costumes singelosxv. 120 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Em todo seu artigo, utilizou o passado para conversar e pensar o seu presente. Explicou o nomadismo e caráter bravio e feroz das tribos chamadas genericamente de bugres como conseqüências dos xvi maus tratos infligidos pelos antigos conquistadores . Segundo Guimarães, é muito comum, no período em que foi escrito o texto, tentar integrar o “velho” e o “novo” evitando rupturas, ao mesmo tempo em que se buscava evidenciar os novos tempos e apontar às possibilidades de mudanças. Machado de Oliveira pode ser inserido na vertente que conciliava o ideal iluminista supranacional da república das letras com a necessidade de fundamentar historicamente um projeto nacionalxvii. Para Machado de Oliveira, a origem da escravidão indígena seria um pretexto dos conquistadores a partir de inúmeros conflitos dos grupos indígenas em torno da povoação de Piratininga que tentava se expandir. Foi a pretexto d’esta desastrosa luta que originou-se a escravidão dos indígenas, que nos conflictos cahiam em poder das forças da colônia, ou que eram tomados em fuga: escravidão que, sendo um acto arbitrário e atrocíssimo dos conquistadores, fora ao depois saccionada por uma legislação especial, própria só do barbarismo de taes tempos, e conseqüência immediata da prepotência europêa que presidiu ao descobrimento da America... Que abusos se não seguiram d’esse acto xviii iníquo e feroz, revestido de autorisação do poder governativo! Nota-se o tom exaltado com que repudiava a escravidão indígena. Empregando juízos de valor e noções morais, mostrava os erros cometidos naquele tempo que foram autorizados pelo governo. Assim, posicionou-se defendendo uma vertente do pensamento imperial que explicava o desaparecimento dos índios pelos “fatos” da história e não pela índole natural dos nativosxix. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 121 Gabriela Piai de Assis Além dessa vertente, existia outra que colocava os colonizadores e conquistadores portugueses como responsáveis pelo início da história do Brasil, os indígenas como inimigos bárbaros e, por isso, apontava a necessidade de civilização forçada, se necessário através da escravidão ou do extermínio. De uma forma ou de outra, ambos posicionamentos tinham como plano de fundo um aspecto importante do projeto historiográfico do IHGB: ler a história para legitimar seu presente, dando a ela sentido políticoxx. Nesse mesmo sentido, Machado de Oliveira argumentou ainda que, no período colonial, a situação dos aldeamentos, administrados por missionários ou autoridades coloniais, era muito complicada. A escravidão indígena, desde seu início, seria mal vista pela Europa civilizada a ponto dos barbarismos cometidos pelo governo português não terem mais justificativa. Por isso, o governo português legislou sobre a liberdade dos índios, nos anos de 1609, 1611, 1680 e 1755, chegando a mudar a palavra de escravo para um epitheto menos odioso de administrado, sem que fosse alterada a situação das populaçõesxxi. Novamente, utilizou-se de oposições, no caso civilização/barbárie, para mostrar a culpa dos portugueses que nada fizeram para o histórico de extermínio indígena. Defendeu que os principais problemas das aldeias primitivas eram administrativos, pois os únicos usufrutuários dos produtos das aldeias acabavam sendo os administradores, que dificilmente prestavam contas à administração e se apropriavam das terras dos índiosxxii. Esses administradores podiam ser leigos ou padres superiores, no geral, capuchos ou jesuítas. Segundo Oliveira, os religiosos eram mais rigorosos e prejudiciais, pois não deixavam índios e brancos se misturarem. Também não isentou as administrações leigas de problemas. Contou então um caso de um Ouvidor da Comarca que queria aforar terras indígenas. Contra esta atitude, o Administrador Geral das Aldeias de São Paulo fez uma denúncia ao governo português. Em 122 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo 1713, uma Carta Régia foi enviada mandando o Ouvidor da Comarca devolver as terras e elas foram devolvidas. No entanto, as aldeias da região acabaram ficando em ruínas e nenhum administrador xxiii foi punido . Oliveira apontou a aldeia de São João de Queluz e, posteriormente, a de Guarapuava como as primeiras aldeias a terem bons resultados, já que haviam aprendido com os aldeamentos anteriores o que não fazer. A aldeia de Queluz organizava um grupo indígena chamado Puris, na região da Serra da Mantiqueira. Ela foi criada pelo Governador Antonio Maria de Mello, em 1800. Esse governador foi descrito como tendo qualidades necessárias que permitiram o sucesso do aldeamento: seria um homem zeloso e de amor à civilização. Essa aldeia deveria “servir de modelo às futuras concepções n’esse sentido”xxiv. Outro personagem importante para o sucesso desse aldeamento seria o Padre Francisco das Chagas Lima, conhecido por associar zelo cristão e abnegação das coisas mundanas. Essa última característica é a mesma utilizada por Machado de Oliveira para descrever indígenas no período inicial da colonização. Interessante notar, portanto, a caracterização dos indígenas com juízos de valor adequados não às tribos, mas à elite de sua sociedade. O padre seria exemplo paternal de como educar moral, religiosa e civilmente, esses homens da natureza: “Seria indubitavelmente proveitoso estudar o caracter, a índole d’esse zeloso catechista; os meios de que se serviu para tirar proveito da missão que se lhe confiou e que tão habilmente a desempenhara nos dois aldeamentos [Queluz e Guarapuava]”. Ao mesmo tempo, em nota de rodapé, indicou que foi publicado no tomo 4° da Revista do Instituto o método usado pelo padre. Mais uma vez, a preocupação evidente era de se escrever o passado pensando nos problemas de seu presente, não apenas de Machado de Oliveira, que buscava ser Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 123 Gabriela Piai de Assis nomeado Diretor Geral dos Índios da Província de São Paulo, como da própria Revista do IHGB. A preocupação com a política indigenista também está presente na memória de Joaquim Antonio Pinto Junior, escrita em 1862 e intitulada “Memoria sobre Cathechese e civilização dos indígenas da província de São Paulo”. Nesse período, a Diretoria Geral dos Índios de São Paulo já havia se estabelecido, sob direção de Machado de Oliveira. A critica à catequese e civilização feita na Província de São Paulo aparecia já no início do texto: “Há um ramo do serviço publico nesta Província, que tem passado desapercebido; nem uma palavra temos visto na imprensa sobre elle, se bem que seja um dos mais importantes do Império –queremos fallar da cathechese e civilisação dos indígenas (...)”xxv Pinto Junior considerava que a política indigenista vigente não levava em conta os diferentes grupos étnicos, pois em muitos aldeamentos moravam apenas alguns mestiços que se misturavam com a população, nem considerava as diferenças entre os índios aldeados e os “selvagens bravios” dos sertõesxxvi. Denunciou ainda “(...) a sorte dos infelizes indígenas, que ainda hoje, aos milhares, percorrem foragidos os sertões inóspitos, nus, mortos de fome e de miséria, dilacerando-se mutuamente, e acommettendo aqui e ali os últimos moradores da raça que se diz civilisada!”xxvii Como era comum à sua época, colocou o indígena como alguém que precisava aderir aos costumes brancos católicos e que precisava do civilizado para salvá-los de seu modo de vida. No entanto, sua crítica foi ao próprio homem branco, que teria a obrigação de retirá-los dessa situação, não por caridade, mas pela necessidade de trazer os povos foragidos dos sertões ao centro da sociedade nacional. 124 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Seu texto se aproximava dos relatórios a respeito das situações dos aldeamentos que circulavam o centro da Diretoria Geral em São Paulo, pois procurava diferenciar os aldeamentos que deveriam ser extintos, por não possuírem mais função, daqueles que deveriam ter mais atenção e dos que deveriam ser criados. Criticava as atitudes práticas dos Diretores em torno dos aldeamentos, pois dizia que muitos não se esforçavam para trazer indígenas à civilização. O aldeamento ideal deveria ter um professor de primeiras letras, pois o pensamento deveria ser fixado pela escrita, defendendo que vícios e crimes vinham da estupidez. Além disso, “um aldeamento sem um padre, sem um professor de instrucção primaria, sem uma officina ao menos de ferreiro, é uma utopia inconcebível” xxviii . Assim, criticava também aqueles aldeamentos que estavam administrados somente por religiosos ou por leigos, afirmando a necessidade de um aparato mais completo. Caso impossível, ao menos o religioso deveria se ocupar não apenas de batizar e casar os indígenas, mas também de ensinar a religião. Como havia no período muitos aldeamentos não regulares, os índios não poderiam compreender “a grande diferença que vae da vida nômade e bruta do homem das mattas, á vida estável commoda e civilisada dos grandes povos”xxix. Assim, nota-se em seu discurso o que Monteiro coloca como política aparentemente contraditória de agressão e assistência aos índios, que encontra sentido na legislação e política coloniais “onde a espada nunca estava muito distante da cruz” xxx. Enquanto advogado dos índios, o documento de Pinto Junior, nos mostra a estrutura burocrática da Diretoria Geral e as negociações feitas durante seu funcionamento. Ao fim de sua narrativa, o advogado anexou cartas enviadas por ele para o Presidente da Província pedindo verba para a criação de um aldeamento em Salto Grande, no Paranapanema. A Assembléia Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 125 Gabriela Piai de Assis Legislativa Provincial concedeu 800$000 (Lei N°.16 de 03/08/1861, artigo 7° § 5), mas os índios da região acharam a quantia pequena, negociaram e o advogado enviou outra carta para a Assembléia xxxi. Legislativa Provincial pedindo uma quantia maior Quando o texto foi escrito, Pinto Junior não sabia, mas um mês depois, lhes é concedido 1.200$000 (Lei N°8 de 19/05/1962). Essa atitude é demonstrativa de como a Diretoria Geral da Província de São Paulo tinha uma divisão de competências entre o Governo Provincial e o Imperial, apesar da estrutura burocrática da Diretoria Geral dos Índios de cada província pertencer ao Império. Concluiu seu escrito dizendo que o ensino catequético deveria começar pelo sul, onde havia hordas bárbaras que ameaçavam hordas pacíficas, e que estas últimas estavam pedindo socorro e providências. Localizou ainda pontos específicos para o avanço da civilização e do progressoxxxii, um deles entre os rios Paranapanema e Tietê e a Serra dos Agudos, lugar conveniente para se estabelecer um aldeamento, que funcionaria como barreira, para conseguir afastar os ataques das hordas do sertão. O próprio advogado acaba identificando, grupos que são mais avançados e pacíficos e grupos bárbaros que devem ser separados, no entanto, mesmo com relação aos últimos, entendeu que, com medidas pacíficas, os índios aprenderiam, através da catequese, de alguma instrução e do ensino da agricultura, seria possível chegarem a serem civilizados. Se mostrando contra atos violentos e a volta das bandeiras: (...) por mais terminantes que sejão as ordens do Governo, por mais sabias e humanitarias as instrucções dadas aos capitães ou chefes dessas forças, eles abusão sempre, e dest’arte, em vez de obterem-se os resultados pacíficos que se deseja, ao contrario produz-se no animo desconfiado do selvagem ignorante uma irritação difficil senão impossível de conter.” Finalizou dizendo que o discurso empregado em seu texto, por tratar dos indígenas, utilizaria as características dos 126 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo indígenas: “fallamos a linguagem do indígena, tosca, áspera e rude, 24 mas sempre natural e verdadeira . Pode-se notar que, tanto nos discursos de José Machado de Oliveira, quanto no de Pinto Junior, o índio era um errante que deveria ser inserido no interior da civilização branca católica, seguindo um modelo evolucionista social e monogenista xxxiii predominantexxxiv. É mostrada a uma preocupação em inserir na história um discurso do desaparecimento em que os indígenas sofreram maus tratos pelo governo português, mas agora, deveriam ser assimilados, branqueados, levados, portanto, à civilização sem as violências cometidas no passado. Os autores tentaram, portanto, romper com a lógica considerada por eles colonial ao mesmo tempo em que não consideraram violência o próprio ato de civilizar. Notas e referências Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), orientada pela Professora Doutora Leila Mezan Angranti. Contato: [email protected] i OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. “Notícia Raciocinada sobre as áleas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até à actualidade”, RIHGB, RJ: Typographia de João Ignácio da Silva, v.8, 1867. ii PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio In: Memoria sobre cathechese e civilização dos indígenas da província de S. Paulo. SP: Typographia Commercial, 1862. iii SPOSITO, Fernanda. In: Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845) Dissertação de Mestrado defendido pela USP. São Paulo, 2006. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 127 Gabriela Piai de Assis iv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “Política indigenista e etnicidade: estratégias indígenas no processo de extinção das aldeias do Rio de Janiero- século XIX”. (ORG.) OHMSTEDE, Antonio Escobar; MANDRINI, Raúl; ORTELLI, Sara. In: Sociedades em movimiento: los pueblis indígenas de America Latina em El siglo XIX. Argentina: Anuário Del IEHS Tandil, 2007. pp.219-233. v MOREIRA, Vânia.”O ofício do historiador e os índios: uma querela no Império”. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol. 30, n°59. p.58. vi SPOSITO, Fernanda. Op. Cit p.48. vii NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808.)SP: Hucitec,2002. viii CUNHA, Manuela Carneiro da. “Introdução”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org). Legislação indigenista no século XIX: Uma compilação (1808-1889). São Paulo: Edusp; Comissão Pró-Índio, 1992. ix SPOSITO, Fernanda. Op.cit. p.61. x VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na província do Mato Grosso: conflito, trama e continuidade. Tese de História para obtenção do título de Doutor pela Universidade de São Paulo. SP, 1995, p. 51. xi GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: O instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”.Estudos Históricos RJ: n°1,1988 P.6. xii MOREIRA, Vânia Maria Losada. In: Os índios e Império: história, direitos sociais e agenciamento indígena. Trabalho apresentado no XXV Simpósio Nacional de História. Ceará, 2009. xiii MONTEIRO, John M. In: Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do Indigenismo. Tese de Livre Docência na Área de Etnologia, Subárea de História Indígena e do Indigenismo. Campinas, 2001. p.127. xiv OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit. p.205. xv Idem. pp. 205-206. xvi Idem. pp.206-207. xvii GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p.7. 128 ISSN 1414-9109 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo xviii OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit.p. 208. xix MONTEIRO, John. Op.Cit. p.120. xx GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p.16. xxi OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit.p.209-210. xxii Idem. p. 213-214. xxiii Idem p.215. xxiv Idem p.236-237. xxv PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. p. 3. xxvi MONTEIRO, J. M. Op. Cit. p.150. xxvii PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. p.7. xxviii Idem p. 9. xxix Idem p.9-10. xxx MONTEIRO J.M. Op. Cit p. 151. xxxi PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. P.18 xxxii Idem p.23 xxxiii Doutrina antropológica segundo a qual todas as raças humanas derivam de um tipo primitivo único. xxxiv SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.112 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 129 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista Laila Luna Liano de León Introdução A partir da Revolução Gloriosa, em 1688, uma nova concepção política e econômica teve efeitos em diversos aspectos da sociedade, destacando nesse ambiente de relativa tolerância, um “movimento ilustrado” de sociabilidade e busca pela expansão do conhecimento. Podemos destacar que esses processos perpassaram diversos grupos sociais, dos mais baixos aos mais altos de maneiras variadas, mas principalmente nos setores médios da sociedade que ascendiam nesse novo momento político e econômico, não como grupo social coerente, mas alcançavam espaços e papéis que antes eram restritos à aristocracia e à corte, especialmente no que diz respeito ao consumo de cultura e de lazer. É importante compreender o significado do Ato de Tolerância i de 1689 e fim do Ato de Licenciamento ii em 1695, para fazer considerações acerca da cultura desse período. Ambos representaram liberdades relativas, porém, mais do que pensar as suas limitações, é interessante notar o seu impacto numa sociedade que passa a se entender como mais desenvolvida e tolerante, especialmente em comparação com o continente. Para Roy Porter, a derrubada do absolutismo, o aumento populacional e a revolução comercial foram acompanhados de uma mudança de consciência, que ajudou a se entender essas mudanças, e permitiu uma percepção da modernidade, tanto em seus prós quanto em seus contrasiii. E o que nos interessa aqui, é o impacto dessas novas 130 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista percepções na produção impressa do período, e também o impacto dessa produção numa sociedade que passava cada vez mais a valorizar o conhecimento com caminho para o seu entendimento de progresso e a civilização, presentes em jornais, panfletos, livros e também gravuras, como as de William Hogarth. Segundo Paul Langford, toda sociedade necessita de um código de conduta e maneiras. Num contexto feudal e agrário, por exemplo, existiam códigos de honra e vassalagem para sua ordenação. Já numa sociedade comercial e dinâmica, com a ascensão de setores médios, eram necessários meios mais sofisticados para sua regulação iv. Nesse sentido, de acordo com J.G.A. Pocock, que se desenvolveram as idéias de polidez e civilidade, com o intuito de ordenação e regulação das paixões através do comércio, que tinha nessa concepção, essa função de refinamento e que afastava a sociedade das paixões não socializadas do passado, logo da barbárie e selvageria v. Buscaremos, portanto analisar essa moralidade muito característica da Inglaterra setecentista, presente nas gravuras do artista William Hogarth, que entre a sátira e as lições morais, buscou com suas obras “tanto entreter quanto aperfeiçoar as mentes” vi. As gravuras moralizantes de William Hogarth William Hogarth nasceu em novembro de 1697, em Bartolomew Close, em Londres, numa família modesta, que pode ser encaixada na ampla definição de classes médiasvii do século XVIII. Seu pai, Richard Hogarth era professor escolar e escritor, e enfrentou muitas dificuldades financeiras durante a infância do filho ao tentar aproveitar as oportunidades e melhorar de vida: foi mal-sucedido no projeto de uma coffee house dedicada ao ensino de latim, fracassou na tentativa de lançar um Dicionário de Latim e um pouco depois foi preso na famosa Fleet Prison por dívidas, onde permaneceu entre Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 131 Laila Luna Liano de León 1710 e 1713, e seis anos depois, morreu. Hogarth foi sempre um crítico ferrenho da ambição da indústria das artes, especialmente a falta de respeito com os artistas, e parte desse seu ressentimento pode ser relacionada ao exemplo de seu pai: um homem de educação clássica que na tentativa de ser “chefe de sua própria caneta”, sofreu um cruel tratamento de livreiros e impressores viii. É de suma importância compreender as relações entre Hogarth e o mercado para a inserção de sua produção nesse contexto. Na nova dinâmica social da Inglaterra, “a expansão das classes médias fez com que a atividade da aristocracia fosse menos central para o mundo cultural” ix, ou seja, a cultura já não estava centrada nos valores da aristocracia – mesmo que não os tenha descartado por completo – e o progresso comercial permitiu uma participação mais ativa das classes médias na cultura, o que era visto como um meio de distinção social. Por não ter condições de efetuar a patronagem como indivíduos, essas classes buscaram desenvolver um mercado de artes e novas formas de lazer, próprios. Assim, a comercialização da cultura teve o papel de aproximar os artistas das demandas do mercado ao invés do patronato. A ascensão de uma cultura pública baseada no poder de compra das classes médias refletiu e sustentou uma série de práticas comerciais que se fortaleceram ao longo do século e trouxeram mudanças para certas atividades x. A pintura é um dos melhores exemplos de como isso ocorreu: antes, a aristocracia possuía uma cópia individual exclusiva, mas agora havia um crescimento considerável de acesso à arte com a produção em massa de gravuras. Porém, a arte contemporânea (e mais ainda a britânica) era pouco ou quase nada valorizada, e até 1768, com a fundação da Academia Real, nenhuma academia de arte havia durado tempo suficiente para formar artistas nativos. Assim, a produção artística na Inglaterra nesse período era dominada por estrangeiros franceses, italianos, e especialmente holandeses e alemães. E o Grand Tour xi reforçava o fato de que os padrões críticos eram desenvolvidos no 132 ISSN 1414-9109 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista continente, e a valorização da arte estrangeira, renascentista e principalmente italiana foi uma conseqüência. A ausência de um Estado centralizado também, segundo John Brewer xii, não contribuía para uma patronagem da monarquia ou da Igreja nos modelos continentais. Sobrava assim para os pintores ingleses trabalhos considerados menos elevados como retratos, paisagens e decoração, contratados por um mercado formado pelas classes médias prósperas e por membros da gentry. O papel dos pintores ingleses era então reduzido a uma “arte servil”, como trabalhadores mecânicos xiii a serviço de um patrão e de um mercado . Desse modo, se formava um mercado ávido para consumir arte em todos os setores da sociedade, mas os padrões estavam sendo estabelecidos de acordo com uma minoria que valorizava mais o estrangeiro, limitando as possibilidades dos artistas ingleses, desde sua formação até sua produção e venda. Nesse contexto, Hogarth, que nunca teve uma formação artística clássica, ao longo da carreira desenvolveu um método próprio de produçãoxiv. O seu ressentimento com a indústria dominante da arte, serve para pontuarmos sua rejeição ao Neoclassicismo. Seu combate certamente não foi contra os valores clássicos, mas sobretudo contra um método predominante que apenas treinava o estudante de arte a fazer cópias dos Grandes Mestres, mas não instigava os artistas a observar o mundo presente e através deste persuadir o publico moralmente. Além disso, ele notava uma supervalorização do estrangeiro, o que causava a desvalorização dos artistas ingleses, causada justamente por esse modismo. Por isso, podemos observar o uso de tantas referências clássicas em suas sátiras. Não era por desrespeito ao passado, mas zombaria com aqueles que o veneravam de forma exagerada e que assim se esqueciam das belezas do mundo contemporâneo, e as importantes questões a serem levantadas. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 133 Laila Luna Liano de León Foi partindo dessa crítica que ele formulou o “moderno objeto moral”, segundo ele, um campo inexplorado em qualquer época ou lugar, e que se encaixava no intermediário entre o grotesco e o xv sublime . Em resumo, se tratava da representação do cotidiano da sociedade londrina com uma perspectiva satírica e uma mensagem moralizante. Além disso, tinha consciência do poder imenso que as imagens têm em relação aos livros: “a demonstração ocular dará mais convicção para a mente de um homem sensível do que ele encontrará em cem volumes” xvi. Baseado nessa perspectiva, defendeu o aspecto pedagógico de sua obra, afirmando que seu objeto deveria entreter e melhorar a mente, sendo assim de grande utilidade pública. Apesar de estar combatendo uma tendência artística da época no que diz respeito ao estilo, Hogarth foi bastante coerente com um pensamento ilustrado mais amplo que percorreu o século XVIII na Inglaterra de difusão do conhecimento e educação dos sentidos. Os ideais de polidez, civilidade e sociabilidade estiveram presentes em grande parte da produção impressa desse período, mas sem dúvida o maior expoente foi o periódico The Spectator, de Joseph Addison e Richard Steele, publicado entre 1710 e 1711, mas reeditado inúmeras vezes ao longo do século. Nele era possível encontrar os novos valores ilustrados para um público maior e popularizou assim essa “nova filosofia”, com o objetivo de refinar as maneiras e os gostos xvii. Além disso, segundo Maria Pallares-Burke, o periódico tinha um intuito pedagógico de corrigir não apenas as maneiras, mas também os modos de pensar e redirecionar para a razão e a civilidade xviii. De acordo com Roy Porter, foi crucial para Ilustração Inglesa, o “modelo lockeano” de mente madurando através da experiência, da ignorância para o conhecimento, e o seu paradigma para o progresso xix. Em outras palavras, era a crença de que os erros humanos eram inevitáveis, mas suscetíveis de serem corrigidos, através do conhecimento e da razão, e esse processo era fundamental para o progresso da humanidade. 134 ISSN 1414-9109 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista E foi essa moralidade muito característica de um momento histórico que podemos inserir as gravuras moralizantes de Hogarth e sua eterna representação dos vícios e das virtudes. De acordo com J.G.A. Pocock, com o desenvolvimento do comércio e de novas formas de relacionamento social, “a virtude no sentido antigo se tornou arcaica” xx. Segundo o autor, o ideal de polidez surgiu pela primeira vez na Restauração, como parte da campanha Whig de substituir o profético pela religiosidade sociável. No século XVIII, não se podia mais defender a vida urbana em termos greco-romanos, e foi preciso conceber o cidadão sociável e refinado, que paga os outros para sua defesa, em oposição ao proprietário armadoxxi. Então segundo Pocock, a polidez funcionou assim como um “agente civilizador”, mas é preciso relativizar o seu efeito na sociedade: pois não implicava apenas um comportamento moral e refinado individual, mas também que esse comportamento fosse socializado e a motivação para seguir tal padrão era exatamente exibi-lo. Para tanto, surgiram manuais para instruir as pessoas como se comportar, o tipo de impressão que você provocava nas pessoas, como você aparentava para ele adquiriram nova importância e a moralidade era um elemento no mundo de aparências. Desse modo, a contrapartida da polidez era o risco da artificialidade e afastamento dos verdadeiros valores. E Hogarth era um grande defensor do progresso através do conhecimento e da educação dos sentidos, mas não se absteve de criticar a superficialidade que a concepção de polidez podia acarretar. Assim notamos em suas obras de variadas temáticas, uma certa coerência quanto à preocupação com a corrupção do ser humano, fosse através da política, do fanatismo religioso, da ambição financeira ou da luxuria. Isso justifica o fato de que nenhum setor da sociedade foi poupado de suas críticas bem humoradas. Selecionamos duas gravuras da obra de Hogarth, de fases diferentes da sua carreira, que exemplificam essa sua preocupação Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 135 Laila Luna Liano de León em discutir a corrupção e a virtude, e também que exprimem seu esforço pedagógico. A primeira, uma das suas primeiras gravuras publicadas, de 1724, se referiu ao escândalo financeiro da South Sea Company, fundada em 1711 pelos ministros Tories da Rainha Anne como uma alternativa ao Banco da Inglaterra, controlado pelos Whigs. Em 1719, já sob George I (1714-27) e a oligarquia Whig, foi montado um esquema para redistribuir a Divida Nacional em melhores termos. A grande dificuldade de sua administração era o número de interesses que envolvia, e era preciso garantir os lucros para toda sua base de apoio político como cortesãos e ministros, interessados em lucro rápido. Por conta do rápido crescimento das ações, a especulação foi generalizada, garantida por um regime corrupto e investidores ingênuos, crescendo uma “Bolha” que rapidamente inflacionou os preços. As consequências foram devastadoras, especialmente para aqueles que venderam seus bens xxii para comprar ações . Hogarth representou esse acontecimento, como muitos satiristas da época em The South Sea Scheme. Alguns dos elementos valem o destaque: no centro uma roda da fortuna com personagens que representam a sociedade como um clérigo, uma prostituta, uma senhora e um nobre. Nos versos abaixo da gravura é explicado que a Honestidade é torturada pelo Interesse Próprio, a Honra pela Vilania e alvo da zombaria de um macaco vestido de cavalheiroxxiii, e o Diabo arranca a pele da Fortuna vendada. Vemos assim, as virtudes serem maltratadas e punidas pelos vícios. Três religiosos: um judeu, um padre católico e um puritano jogam cartas, ignorando o caos ao seu redor, demonstrando que os religiosos tinham maior preocupação com seus próprios interesses do que com seu rebanho, e ao fundo a Igreja de St. Paul, símbolo da caridade cristã. O Monumento do Grande Incêndio de Londres de 1666 xxiv, é representado com a seguinte inscrição: “Esse monumento foi erguido em memória da destruição da cidade pelo South Sea em 1720”, com essa perspectiva, o artista compara o escândalo financeiro à um 136 ISSN 1414-9109 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista incidente de ordem natural e com consequências igualmente catastróficas. É interessante notar que ambos os “desastres” foram atribuídos no imaginário, à ambição e ao vício que infestavam Londres, tornando a comparação de Hogarth bastante coerente. No canto, o comércio, representado por uma mulher em trapos e miserável, é mais uma vítima de toda a corrupção e não a sua causa. A gravura sobre o caso South Sea foi produzida num momento em que a produção impressa na Inglaterra borbulhava em críticas políticas contra a corrupção, em especial num ataque direto ao primeiro ministro Robert Walpole. Mas de acordo com Jenny Uglow, as críticas feitas por Hogarth em seu conjunto tinham um caráter mais geral, e abordavam no fundo a questão da corrupção da sociedade e dos homens, ao invés de atacar individualmente um ou outro político, ainda que tenha feito inúmeras menções indiretas em suas obras acerca de personagens contemporâneosxxv. Se buscarmos uma coerência no seu conjunto de obra, o que encontramos é uma preocupação recorrente com a índole humana, e todos os meios que ela pode ser corrompida, não numa leitura puritana de pecado e redenção, mas numa moralidade desenvolvida no século XVIII que defendia o progresso através da educação e criticava a busca pelas riquezas e prazeres de forma individual e gananciosa, sem considerar o bem da sociedade. Na própria gravura acima descrita, que consiste em uma sátira política, é possível encontrar essa mensagem mais ampla, da ambição desmedida de alguns corrompendo toda uma sociedade e culminando no caos, que Hogarth buscou imprimir em sua produção ao longo de sua vida. Seu engajamento na campanha do amigo e magistrado Henry Fileding, contra o consumo de gim na década de 1750, talvez seja o exemplo que melhor elucide o seu pragmatismo e racionalidade, não tanto na mensagem que imprimiu em suas gravuras, mas na sua própria empreitada de “educar as massas”. No ano de 1751, quando Fielding publicou seu panfleto Inquiry into the Causes of Late Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 137 Laila Luna Liano de León Increase of robbery, etc, no qual culpava o gimxxvi, os jogos de azar e a luxuria como causas da miséria entre as classes mais baixas, e propunha também uma revisão das Poor Laws, Hogarth publicou dois conjuntos de gravuras inspirados por essa temática: Beer Street and Gin Lane, e Four Stages of Cruelty, esse último sobre o qual vale a pena fazer algumas considerações. Em ambos os casos, as gravuras tinham um objetivo prático de alcançar as massas, e o próprio Hogarth assumiu a técnica mais rudimentar que utilizou para que fossem vendidas a um preço acessível. Nelas, ele não imputou o seu senso de humor satírico tão característico e buscou uma mensagem mais direta de contraste entre o bem e o mal. Sobre a sua representação da crueldade para as massas, Hogarth justificou em sua autobiografia o uso de imagens grotescas e fortes, que imprimem agonia e medo: “o fato é que, paixões são mais forçosamente expressas por um forte, audaz golpe do que pela mais delicada gravura. Tendo as endereçado a corações duros, preferi deixá-las áspera, e dar o efeito de rápido toque, para uma representação apática e débil”xxvii. Aqui, fica bem claro também o pragmatismo do artista, em produzir de acordo com um objetivo e com o público alvo. Em Four Stages of Cruelty, Hogarth contou em quatro gravuras a trajetória de um jovem órfão que inicia sua carreira de crueldades torturando animais, para depois se tornar um assassino e por fim é recompensado como vítima da crueldade da lei. Em nenhuma outra obra ficou tão explicita a importância que Hogarth incutia à educação e ao “conserto” dos defeitos humanos desde cedo. Filantropo, defendia a caridade privada e foi patrono do Foundling Hospital, destinado a órfãos. Além da corrupção da sociedade pelos vícios e maus exemplos, aqui ele destacou o descaso do governo com os mais pobres, na questão das paróquias que detinham a jurisdição de aplicar o “alívio aos pobres” e coordenar a renda destinada a isso, mas eram consideradas ineficazes e gananciosas. Na primeira cena, meninos órfãos sem qualquer tipo de supervisão maltratam animais em pleno pátio da paróquia de St. Giles. O único menino que 138 ISSN 1414-9109 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista demonstra gentileza com os animais está mais bem vestido, indicando que pertence a uma boa família. Hogarth tentou sinalizar que a falta de atenção com uma educação apropriada na infância pode formar criminosos, mas ao mesmo tempo, com uma linguagem simplificada e através de figuras impactantes, tratou de fazer a sua parte em educar as classes mais baixas. A cena final mostra os horrores aos quais estão submetidos aqueles que agem como crueldade desmedida e desrespeitam a lei, pior que a morte era o terror de ter seu corpo dissecado. Considerações Finais O historiador Roy Porter se refere às séries de Hogarth como fábulas ilustradasxxviii, ou seja, nessa concepção, as séries narrativas de Hogarth eram ilustradas pois tinham um intuito didático de agir na sociedade de forma a melhorá-la através do conhecimento. Contextualizar Hogarth em seu século e sociedade, é importante porque apesar dele ser controverso e tentar se opor a uma estética vigente no mundo das artes, seu pensamento condiz com muitas das noções desenvolvidas no período e, além disso, ele foi parte integrante de todas as mudanças culturais que marcaram a Inglaterra nesse período. Parte das classes médias, era um artista mas também um empreendedor, e esteve atento ao espírito comercial de seu tempo para obter lucro e notoriedade, tendo alcançado um público que abrangia desde os setores mais altos aos mais baixos da sociedade. Também apreciava as noções de busca da felicidade terrena e dos “prazeres”, sendo um assíduo freqüentador da vida social londrina. Hogarth possuía uma moral que era muito mais racional e pragmática, do que puritana, e a defendia não com um objetivo conservador, mas por acreditar no melhoramento da sociedade. Suas críticas à corrupção se direcionam nesse sentido a uma concepção Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 139 Laila Luna Liano de León moderna de progresso através do reconhecimento dos defeitos humanos e o esforço de consertá-los através do conhecimento. Em suas gravuras, o destino da corrupção era trágico, e através de uma construção racional de que todo crime tem uma punição terrena, sinalizava a possibilidade de que se a sociedade se despisse dos valores morais, cedo ou tarde, também estaria condenada. Assim, para Hogarth, o progresso comercial só seria bem sucedido através do respeito das virtudes clássicas e cristãs, mas dentro de uma concepção de moralidade muito característica do século XVIII na Inglaterra, de educação dos sentidos através da experiência e refinamento das paixões, com a sociabilidade e civilidade. Notas e referências Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), orientada pelo Professor Doutor Luís Carlos Soares. Contato: [email protected] i O Ato de Tolerância se estendia apenas para os protestantes dissidentes. Católicos e não-cristãos não tinham o direito de culto público, sendo sujeitos às antigas leis penais. As cortes eclesiásticas ainda tinham poder de processar ateísmo, blasfêmia e heresia. Ver PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. 2ª Edição. Londres: Penguin Books, 2000, p. 107. ii O fim do Ato de Licenciamento significou o fim da censura prépublicação. De acordo com Roy Porter, ainda que houvesse leis contra a blasfêmia, obscenidade e caráter sedicioso, e que publicações ofensivas ainda pudessem ser processadas, a situação da imprensa na Inglaterra estava a partir desse momento com anos de avanço em relação ao restante da Europa. Ver Id. Ibid. p. 31. iii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. Op. Cit. p. 12. iv LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction. 1ª edição. New York: Oxford Press, 2000, p. 4. 140 ISSN 1414-9109 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista v POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Tradução: Fábio Fernandez, 1ª Edição. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 97. vi NICHOLS, JB (Org). Anecdotes of William Hogarth written by himself. Londres: J.B. Nichols and son, 1833, p. 3. vii As classes médias na Inglaterra do século XVIII não podem ser entendidas como um grupo social coerente e consciente. Mas o termo é útil para indicar os setores médios da sociedade em ascensão. Ver LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction. Op. Cit, pp. 52-66. viii NICHOLS, J.B.(org.) Anecdotes of William Hogarth written by himself. Op. Cit, p. 2. ix BLACK, J. A subject for taste: culture in eighteenth-century England. 2ª edição. Londres – Nova York: Hambledon and London, 2005, p. 79. x Id., Ibid., p. 104. xi Grand Tour era um hábito da aristocracia de viajar na juventude aos grandes centros de cultura da Europa, especialmente França e Itália, para obter instrução e refinamento. Ver PLUMB, J.H. Georgian delights. Londres: Weidenfeld & Nicholson, 1980, pp. 21-23. xii BREWER, John. The pleasures of imagination: English culture in the eighteenth century.1ª edição. Londres: Harper Collins, 1997, p. 208. xiii Id., Ibid., Op. cit., p. 211. xiv O método de Hogarth supunha era o da observação e memorização das fisionomias ao invés da prática de cópias de clássicos para desenvolver a técnica. O artista publicou em 1755 um livro sobre o seu método: HOGARTH, William. Analysis of the Beauty. xv NICHOLS, J.B. Anecdotes of William Hogarth Written by himself. Op. Cit., p. 9. xvi Id. Ibid. xvii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. Op. Cit., P. 80. xviii PALLARES - BURKE, Maria. The Spectator: o teatro das luzes. São Paulo: Editora Hucitec, 1995, p.17. xix PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. Op. Cit., p. 70. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 141 Laila Luna Liano de León xx POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Op. Cit., p. 154. xxi Id. Virtue, Commerce and History: essays on political thought and history, chiefly in the eighteenth century. 6ª edição. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 2002, p. 248. xxii LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction. Op. Cit., p. 16-18. xxiii A alegoria do macaco como cavalheiro é recorrente nas sátiras do século XVIII, e presente em mais de uma gravura de Hogarth, e se refere à imitação de algumas categorias sociais dos modos da aristocracia, de maneira exagerada que se torna ridícula. Em inglês o jogo de palavra fica mais evidente pois ape pode tanto significar símio quanto imitação. xxiv Sobre o Grande Incêndio que destruiu parte de Londres em 1666 e teve grande impacto no imaginário, como uma ação divina para punir pelos pecados Ver TINNISWOOD, Adrian. By Permission of Heaven: the story of the great fire of London. London: Pimlico Edition, 2003. xxv UGLOW, Jenny. Hogarth.Londres: Faber and Faber, 1997, p. 91. xxvi O consumo de gim pelas populações pobres era uma grande preocupação das autoridades. Barato e capaz de causar vício facilmente, foi alvo de diversas leis que tentaram regular e até proibir seu consumo. Sobre a Gin Craze e os Atos do Gim ver SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada: “ciência, religião, ilustração e comercialização do lazer na Inglaterra do século XVIII”. Rio de Janeiro: FAPERJ – Editora 7 Letras, 2007, pp. 176-181. xxvii NICHOLS, J.B (ed.). Anecdotes of William Hogarth Written by himself. Op. Cit., p. 68. xxviii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. Op. Cit., p. 20. 142 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português O caso emblemático de Araribóia Marcello Felipe Duarte As novas abordagens historiográficas que privilegiam o pacto político entre as monarquias europeias e seus vassalos ultramarinos contribuíram para um novo olhar sobre os povos indígenas ao valorizarem suas atuações nos processos de construção e desenvolvimento das sociedades coloniais. Estes foram capazes de se transformarem e de rearticularem seus valores e suas culturas à medida que a sociedade colonial foi sendo gestada ao longo dos séculos. No dizer da historiadora Maria Regina Celestino de Almeida os povos indígenas se metamorfosearam. i Essa metamorfose diz respeito ao enobrecimento das lideranças indígenas, denominadas como Principais, que se viabilizava pelo requerimento de mercês régias (concessão de favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio), tendo como respaldo os atos de bravura em campo de batalha e os diversos serviços prestados quando lutavam para defender os interesses da coroa portuguesa e sedimentar sua hegemonia política em seus domínios ultramarinos.ii Como bem observa Regina Celestino, esta prática já existia no Rio de Janeiro no século XVI.iii Depois de efetivada a conquista a implantação da ordem colonial em todo o território tornou-se prioridade. Os Principais seriam então peças fundamentais nesta tarefa devido à influência que tinham sobre os índios de suas aldeias. Nesse sentido, vale lembrar que as chefias indígenas, ao absorverem os novos símbolos de poder que 143 Marcello Felipe Duarte lhes eram conferidos pelo governo português, buscavam preservar sua posição de prestígio na nova situação em que se encontravam. iv Muitos se lançaram em viagens até a corte para solicitar ao rei tais privilégios. Um dos exemplos mais interessantes dessas representações foi o pedido de mercês do Hábito de Cristo e da tença correspondente, feito pelo principal da aldeia do Camucy, no Maranhão, à coroa portuguesa. O autor da petição utilizou como justificativa para seu pedido os atos de obediência e serviços prestados por ele e por seu pai. Mais interessante ainda é o alvitre dado pelo conselheiro do Conselho Ultramarino ao rei D. Afonso IV em 1º de agosto de 1659: Jorge Tajaibuna, Índio do Maranhão, fez petição a Vossa Majestade neste Conselho, em que diz que ele é filho de Domingos Ticuna, principal, e Capitão da sua nação, e Aldeias sitas na Capitania do Camucy do dito Estado; e que o dito seu pai, e outros Índios circunvizinhos o enviaram a esta Corte; a oferecer suas pessoas, e vidas ao serviço de Vossa Majestade, protestando de nunca lhe negarem obediência, como a seu Rei e Senhor, como sempre fizeram em tempos passados. Alega mais que obrigado, o dito seu Pai, de seu zelo, com seus amigos, e vizinhos, tomaram dos Holandeses a fortaleza do Ceará, e a conservaram no serviço de Vossa Majestade, até que se retiraram para o Sertão, por não poderem ser socorridos de Pernambuco; e que tendo depois notícia do cerco que as armas de Vossa Majestade puseram ao Recife, tornaram outra vez o dito seu Pai com os ditos Índios, a sitiar a mesma praça do Ceará, e lançaram dela aos holandezes, que a ocupavam, matando-lhes quarenta infantes – e que de [mãos] deste serviço franqueou ele Jorge Tajaibuna por mandado de seu Pai, o caminho do Maranhão, até Pernambuco, que são mais de quatrocentas léguas, para poder haver comunicação seguramente de uma parte a outra, em grande validade do serviço de Vossa Majestade, e daqueles moradores, de que também resultou viram muitos índios, e outra gente bárbara ao grêmio da Igreja, e receberam o Santo Batismo – e porque havendo visto, e falado a Vossa Majestade, prostando-se a seus reais pés, se quer 144 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia embarcar para a sua terra, e deseja ir contente, para manifestar aos seus as honras e mercês, que espera receber de Vossa Majestade para com isso se animarem cada vez mais a continuarem seu real v serviço. O episódio, que não é o único, revela-se importante por dois motivos. Primeiro, por ser uma representação direta ao rei em que o requerente, Jorge Tajaibuna, deixa os trópicos e se desloca à corte, demonstrando ter conhecimento dos meandros processuais em torno da solicitação da mercê, fato que por si só já é formidável, pois revela a capacidade de rearticulação de seus valores culturais com a ordem sociopolítica vigente na época. Em segundo lugar, pelo parecer do conselheiro para que o rei recompensasse o Principal a fim de “animá-lo” a continuar fiel. Tais recompensas limitaram-se à concessão de um ornamento, um sino e as charamelas, dois vestidos, uma espada, um chapéu, meias e duas medalhas de ouro que apenas serviriam para iludi-lo, sem que, no entanto, atendesse aos seus pedidos principais pois eram distinções “de mais valia”. Assim no lugar do Hábito e da tença, o conselheiro sugeriu: (...)em que se oferece inconvenientes, e escrúpulos, por Vossa Majestade os prover como governador, e mestre das ordens militares, sujeito às Bulas, e Breves, porque sua Santidade lhe dá este poder e jurisdição; lhe mande Vossa Majestade dar duas medalhas de ouro, com a sua efígie, que pesem ambas até trinta mil reis; e que também pelos armazéns, se lhe proveja o necessário para sua matalotagem, e vi de um criado que trouxe em sua companhia, de sua mesma nação. A partir da perspectiva político-cultural do Antigo Regime que se estende aos trópicos principalmente pela noção de pertencimento vivenciada pelos súditos ultramarinos, onde a exterioridade, marcada principalmente pela indumentária, era extremamente valorizada por ser sinal de distinção entre as pessoas, não é de se estranhar o Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 145 Marcello Felipe Duarte comportamento das lideranças indígenas no que tange as suas representações ao rei. O posto de chefia da aldeia, que na tradição tupi caberia a quem conquistasse a confiança do grupo para exercê-lo não sendo necessariamente transmitido de pai para filho, passava a ser hereditário provido pelo governador e às vezes remunerado, demonstrando uma alteração significativa na ordem social indígena, que se conformava à nova ordem colonial que estava sendo engendrada. O capitão-mor de um aldeamento colonial, deveria descender de uma linhagem direta a um ascendente enobrecido, que por seus feitos fora reconhecido e agraciado pelas autoridades coloniais. Na função de capitão-mor, cujo cargo nem sempre era remunerado, os principais buscavam, por meio de recursos jurídicos, obter soldos que consideravam justos para o exercício de suas funções. vii Os principais, entre as novas funções que adquiriram, podiam repartir os índios para o trabalho e puni-los, quando fosse necessário. Tais prerrogativas, que se pensadas sob a ótica de intermediação e de controle social são bem coerentes, revela-nos uma mudança significativa na tradição tupi, em que os chefes não tinham poder de coação. viii Outros privilégios outorgados aos principais eram o de não serem incluídos nos trabalhos, assim como o direito de possuir índios que trabalhassem para si, conforme nos mostra Almir Diniz, na extração de drogas do sertão. ix Pode-se afirmar que a política de enobrecimento das lideranças indígenas com a concessão de privilégios, títulos, e novas funções visava a introduzir hábitos, costumes e valores do mundo cristão-europeu para envolver estes homens na ordem colonial de forma a que conduzissem seus liderados à obediência e disciplina nas aldeias. Segundo o historiador Almir Diniz: 146 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia O cargo ou função de Principal correspondia naquele contexto a uma multiplicidade de papéis que iam desde aliados militares de grande prestígio nos primeiros anos da conquista, até simples chefes de grupos que não faziam mais do que gerenciar o processo de repartição dos trabalhadores indígenas sob seu comando. Esta suposta “elite indígena” estava mais para intermediários culturais do que aliados políticos. Cumpriam a sua função e defendiam seus interesses e de seu grupo. Usavam estratégias políticas variadas para se fazerem ouvir ou para conseguir benesses. Muitos foram forjados pelas autoridades coloniais, mas somente conseguiam vingar no grupo se, de alguma forma, cumprissem seu papel tradicional de liderança. Não fosse assim, não teriam razão para existir. O jogo era complexo e a nova ordem colonial impunha novos tipos de práticas. Ser Principal era constituir-se como fronteira e como ponte entre dois x mundos. Desta forma, desde os primórdios da colonização, tornou-se fundamental estabelecer postos de comando e de natureza militar entre os índios, que recebiam os ofícios de Principal, Capitão e Sargento-mor. O historiador Almir Diniz afirma que as técnicas militares tradicionais desses índios eram muitas vezes mais eficientes que aquelas originadas no velho mundo. Sem o apoio decisivo dos arqueiros indígenas, as tropas portuguesas não teriam conseguido implantar e conservar a sua hegemonia em território amazônico. Por outro lado, o conhecimento dos terrenos, o uso dos mais diversos tipos de venenos, e a estratégia de ataques de guerrilha atordoavam seus inimigos. Nas florestas os estrategistas europeus tinham que se curvar diante do guerreiro indígena. xi Em relação às técnicas de guerra, a mais eficiente sem dúvida era o assalto repentino, comumente hoje chamado de guerrilha. Como os europeus não estavam acostumados, esse tipo de estratégia era muito eficiente. Assim é que “muitas vezes, escondidos entre os arvoredos às margens dos rios atacavam as canoas que Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 147 Marcello Felipe Duarte tentavam revidar sem sucesso, uma vez que se mantinham camuflados à sombra das árvores e protegidos por seus troncos. Atacavam também seus inimigos tradicionais quando estes estavam xii em suas festas ou distraídos em suas canoas pelos rios.” Depois de estabelecida a hegemonia portuguesa, boa parte das técnicas militares indígenas ficaram a serviço dos brancos. Seus aliados guerreiros, os índios, passaram a compor as tropas nos combates aos inimigos europeus da Coroa e, por esse motivo, usufruíram um status diferenciado. A historiadora Luciana Gandelman faz uma oportuna referência a Damião de Lemos Faria e Castro, cuja obra referente à política moral e civil endereçada à doutrina e direção dos príncipes, pode servir como ponto de partida para estabelecer o liame entre a liberalidade régia e enobrecimento das lideranças ameríndias. Damião alertava no ano de 1749: “A força que vence não reina nos corações; a generosidade que obriga, domina nas vontades.” xiii Esse tratadista, tardiamente sem dúvida, ao aconselhar príncipes e reis a se esmerarem em atos de generosidade visava lhes dar uma direção segura para o que na época Moderna era chamado de “bom governo”. O bom governo do rei estava diretamente associado à ideia do quanto ele podia ser generoso. A generosidade, por sua vez, não podia ser entendida sem a ideia de obrigação, sendo que os dois elementos se articulavam e faziam parte de um “sistema de prestações econômicas”.xiv Qualquer monarca no Antigo Regime deveria operar dentro desse regime ético baseado no amor, na dádiva e na reciprocidade. Deveria ser alguém com capacidade e meios para proceder de forma afetiva na prática do favor, recompensando os serviços prestados por seus vassalos de forma a tornar pública sua gratidão. As dádivas, portanto, eram instrumentos do bom governo, pois se por um lado o dar tornava-se obrigação precípua da realeza (liberalidade régia), por outro lado, acabava por ensejar uma cadeia de obrigações que 148 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia vinculava ao rei os seus vassalos espalhados tanto em Portugal, quanto nos domínios ultramarinos. Em razão desse contexto, a governabilidade da monarquia portuguesa encontrou no estabelecimento de redes imperiais um importante mecanismo de construção das hierarquias sociais, econômicas e políticas sendo que cada um dos agentes que integravam as diversas redes, possuíam recursos e obrigações próprias, sendo, portanto, distintos um dos outros. xv É a partir dessa perspectiva de considerar a diferença que havia entre os diversos agentes que compunham as redes imperiais do vasto império português, que passamos a considerar as seguintes questões: Quais eram os limites da justiça distributiva real, através da concessão de mercês, em relação às lideranças ameríndias? Poderia o rei agraciar as lideranças indígenas com hábitos de Ordens Militares em detrimento às normas vigentes na época quanto aos defeitos de sangue? Entre os séculos XVI e XVIII a Ordem de Cristo era a insígnia mais procurada das ordens militares que estavam sob o controle da Coroa Portuguesa. Em 1551, D. João III, rei de Portugal, conseguiu do Papa a incorporação perpétua das Ordens de Cristo, Avis e Santiago à Coroa Portuguesa. Ao anexar os mestrados destas ordens, D. João III conseguiu para a Coroa recursos políticos e econômicos enormes. No entanto, depois de 1551 os bens e jurisdições das Ordens não mais se confundiam com os da Coroa. O monarca apenas ordenava e estabelecia algo relativo a estas milícias somente como o administrador perpétuo das mesmas. Ao mesmo tempo, os recursos financeiros da Ordem eram oriundos de um tributo pago à mesma. Recompensar os seus servidores foi uma das mais importantes razões da concessão das ordens militares, em particular a de Cristo. xvi Originalmente, os cavaleiros das Ordens Militares atuavam como defensores da cristandade e da monarquia. Após a Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 149 Marcello Felipe Duarte incorporação das três Ordens Militares, a monarquia passou a recorrer ao patrimônio dos três mestrados para “viabilizar a pacificação e centralização política do reino, além da manutenção do xvii império frente às ameaças dos infiéis.” Já no Reinado de D. Manuel, foram criadas novas comendas da Ordem Cristo que, conforme nos informa Raminelli, “eram uma honra concedida pela monarquia aos leais vassalos que se destacassem nos serviços militares no norte da África, durante as disputas contra os mouros.” xviii Em 1572, o regimento responsável por reformar as três Ordens admitia, pela primeira vez, a remuneração de serviços prestados na Índia e nas galés da costa do Algarves. Anos depois, em 1577 os serviços em armadas de alto bordo no Oceano contra turcos, piratas, heréticos e infiéis tornaramse equivalentes aos feitos realizados na África ou nas galés do Algarves. Assim o breve papal contemplava uma ampla área de xix atuação e expandia a luta contra os demais infiéis. Cabe ainda destacar que “embora os serviços na América não contassem para obtenção do hábito, no Regimento de Tomé de Souza (1548), o monarca concedia ao governador o poder de armar cavaleiros, mercê que era o reconhecimento dos bons serviços prestados nos navios das armadas ou nos campos de batalha.” xx O grande interesse por tais hábitos e comendas está no fato dos comendadores e cavaleiros terem direito às tenças e a foro privilegiado, caso fossem acusados de algum crime. Pelo foro privilégio eles eram, inicialmente, julgados pelos juízes dos cavaleiros, mas podiam apelar para corte de terceira instância. Mesmo depois de condenados pela Mesa de Consciência e Ordens e pelo rei não podiam receber punição pública.xxi No que diz respeito aos impedimentos legais é preciso dizer que não era qualquer um que podia alcançar o tão desejado hábito, pois sua concessão dependia de criteriosa investigação sobre a vida do requerente. O candidato não poderia apresentar “defeito de 150 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia sangue”, isto é, não deveria ter ascendência moura, judaica, indígena, não ter defeito físico ou incorrer em defeito mecânico, o que correspondia a ser filho ou neto de indivíduo que exercera atividade manual ou se vivia ele próprio desse mister. Caso se confirmasse quaisquer desses “defeitos” o candidato seria rejeitado. No entanto, o rei tinha o poder para dispensar tais defeitos, salvo para o caso de judeus onde somente o papa tinha autoridade para isso. xxii Conforme se pode observar, a não ser o sangue judaico que só o papa tinha autoridade para dispensá-lo, o rei tinha o poder de dispensar quaisquer defeitos, e se o fazia frequentemente era porque tinha interesse em estabelecer, como observa o historiador Ronald Raminelli, “uma rede clientelar para defender seu reino e os domínios ultramarinos.” xxiii Convém lembrar, no entanto, que desde a incorporação das Ordens Militares à Coroa em 1551, o órgão que administrava estes institutos era a Mesa de Consciência e Ordens. Ainda que o monarca remunerasse os serviços a ele prestados com um hábito, para se sagrar cavaleiro era necessário o aval da Mesa. As habilitações aconteciam através de inquéritos rigorosos mandados fazer a partir de 1597 nos locais de nascimento do requerente e ainda nas terras em que nasceram seus pais e seus quatro avós. Quanto ao fato do requerente ser índio, no entanto, como atestam os vários casos narrados por Evaldo Cabral de Mello, parece que tal defeito de sangue era atenuado pois o “chamado gentilismo, o sangue gentio de uma avó ou bisavô, nunca constituiu obstáculo de monta para o acesso às ordens militares, embora a Mesa da Consciência e Ordens se mostrasse intransigente quando se tratava de premiar um índio de quatro costados.” xxiv Nesse sentido, como afirma Regina Celestino, em graus mais remotos então, como o quinto ou sexto grau, o gentilismo não fazia qualquer impedimento. xxv Sob essa ótica então é possível considerar que se as lideranças indígenas e seus descendentes solicitavam mercês o Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 151 Marcello Felipe Duarte faziam na esperança de terem a dispensa, por parte do rei, de seu defeito de sangue, ainda mais se alegassem com provas cabais, que suas representações estavam respaldadas por atos de bravura em campo de batalha, pois tais “serviços de guerra e defesa da terra eram dos mais enobrecedores e muito importantes para a concessão de cargos, títulos, honrosos e dispensas de defeitos de sangue ou mecânico.”xxvi Sem falar que, como lembrou Schwartz, nos primórdios da colonização, ou melhor, no que ele denominou primeiro estágio de colonização, a discriminação contra os índios e mestiços era menor pela necessidade que se tinha deles e pela raridade da população branca. xxvii Tal é o caso emblemático do principal Arariboia, posteriormente, batizado com o nome cristão de Martim Afonso de Souza que se aliou aos portugueses na conquista de Guanabara, contra franceses e tamoios. A indesejada presença francesa no Rio de Janeiro mediante a fundação da França Antártica em 1555 representou uma ameaça a ser expurgada. Ameaça aos domínios da Coroa Portuguesa e também ao domínio espiritual da Igreja católica que, pelo Concílio de Trento, condenara o protestantismo como heresia contumaz. É bom lembrar que além de uma colônia, a França Antártica adquiriu posteriormente conotação de possível abrigo aos huguenotes, principalmente, para o almirante Coligny que os enviou ao Rio de Janeiro em atendimento às solicitações de reforço feitas por Villegagnon.xxviii Diante de tal ameaça era mister que os portugueses fizessem aliança com os nativos, que seriam arregimentados sob o comando dos chefes indígenas. É nesse contexto que se situa a figura de Arariboia, que após ter ajudado os portugueses na expulsão dos franceses no Rio de Janeiro, ali permaneceu como capitão-mor, em atendimento à solicitação de Mem de Sá para garantir a segurança da região, sendo criada, então, a aldeia de São Lourenço, que se tornou baluarte de defesa da recém fundada cidade. 152 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia Regina Celestino afirma que Arariboia foi agraciado com o hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo e uma tença de 12 mil réis. xxix No entanto, o historiador Ronald Raminelli sinaliza alguns contratempos que impediriam a efetivação de tais honrarias ao principal, o que não descarta a outorga de outros privilégios como de fato aconteceu. O primeiro empecilho é justamente a bula papal de 1570 que reafirmava a necessidade de lutar no Norte da África para alcançar as mencionadas mercês. “À época, foram revogadas as dispensas e os direitos a isenções de suplicantes que não apresentassem os serviços militares nos lugares estratégicos.” xxx Não obstante ao auxílio primordial dado por Arariboia à defesa da Baía de Guanabara, naquele momento, esta região encontrava-se muito distante da área prioritária estabelecida pela Coroa, que ainda tinha seu olhar voltado para África e Índia. Em segundo lugar, não há registros na Chancelaria da Ordem de Cristo da tão propalada mercê concedida ao referido chefe, o que reforça a hipótese de que Arariboia recebera apenas uma promessa do título.xxxi Por último, e não menos importante, devemos considerar o breve papal expedido em 1577 que, apesar de tornar equivalente aos feitos realizados na África e galés do Algarves os serviços em armadas de alto bordo no Oceano contra turcos, piratas, heréticos e infiéis, pela data, situava-se bem depois da concessão de mercê feita ao chefe temiminó. xxxii No entanto, para além da efetivação ou não da tença e do título de cavaleiro da Ordem de Cristo, é inegável que Arariboia passou a desfrutar de certos privilégios inerentes a um valoroso guerreiro, recebendo “patente de capitão-mor de sua Aldeia e sesmaria de uma légua de terras sobre a baía e duas para o sertão, situada à margem oposta da cidade de são Sebastião do Rio de Janeiro.” xxxiii Além disso, tornou-se proprietário de casas na rua Direita (atual Primeiro de Março), onde residiam os notáveis da cidade, incluindo o próprio governador. xxxiv Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 153 Marcello Felipe Duarte O prestígio alcançado por Arariboia pode ser melhor observado no evento de recebimento do governador Antonio Salema no Rio de Janeiro, narrado por frei Vicente de Salvador. Tal fato fato nos revela o nível de consciência que ele tinha sobre seu papel como importante chefe na defesa da terra e mediador entre dois mundos culturalmente distintos. Arariboia após ter sido advertido quanto a sua descortesia de ter “cavalgado” com uma perna sobre a outra segundo seu costume, respondeu ao governador: Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não tornarei xxxv mais à tua corte. Considerações finais Observa-se a metamorfose de tais índios em vassalos do rei. Tais homens que viveram na fronteira entre os mundos europeu e ameríndio, servindo de elo entre ambos, deram seu sangue e vida pela causa portuguesa. Em troca disso buscaram, como uma forma de recompensa pelos serviços prestados, privilégios que os capacitassem a manter suas posições de liderança nos aldeamentos, e, ao mesmo tempo, o status de vassalos cristãos, dignos, portanto, das mercês régias cujo objetivo precípuo era animá-los ao serviço da coroa portuguesa para a manutenção de sua hegemonia política e militar nos territórios ultramarinos. 154 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia Notas e referências Mestre do Programa de Pós-Graduação de História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientado pelo Professor Doutor Edgard Leite Ferreira Neto. Contato: [email protected] i ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas – identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. ii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso: lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais. In: VAINFAS, Ronaldo, SANTOS, Georgina Silva dos e NEVES, Guilherme Pereira das (orgs). Retratos do Império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006, p. 13. iii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas, p.150168. iv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso: lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais, p. 19. v AHU/ Maranhão, 009, Cx. 4, d. 418. vi AHU/ Maranhão, 009, Cx. 4, d. 418. vii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso: lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais. p. 21. viii Idem, p. 22. ix MOREIRA NETO, Carlos de A. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Rio de Janeiro: Vozes, 1988, p.187. x JÚNIOR, Almir Diniz de Carvalho. Índios cristãos: A conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653,1769). Tese de Doutorado. Unicamp. Campinas, 2005 p. 255 xi Idem, p. 248. xii Idem, p. 249. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 155 Marcello Felipe Duarte xiii GANDELMAN, Luciana. “As mercês são cadeias que se não rompem”: liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime Português. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda B. e GOUVÊA, Maria de Fátima S (orgs). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p.109. xiv Idem, p. 110. xv SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). op. cit., p. 79. xvi JÚNIOR, Almir Diniz de Carvalho. op. cit., p. 246. xvii RAMINELLI, Ronald. “Honra malograda dos chefes potiguar, 16301695”. Manuscrito, 2007, p.3. xviii Idem, p.2. xix Idem, p.4. xx Idem, p.2. xxi Idem, p.7. xxii MELLO, Evaldo C. de. O nome e o sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.23. xxiii RAMINELLI, Ronald. op. cit., p.3. xxiv MELLO, Evaldo C. de. op. cit., p.120-121. xxv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso: lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais, p. 16. xxvi Idem, p.16. xxvii SCHWARTZ, S. Brazilian ethnogenesis: mestiços, mamelucos, and pardos. In: GRUZINSKI, S. et. al. Les Nouveaux mondes. Paris: (s.n.), 1996, p. 10. xxviii MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. Villegagnon e a França Antártica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 107. xxix ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso: lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais, p. 14. 156 ISSN 1414-9109 Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia xxx RAMINELLI, Ronald. op. cit., p. 4. xxxi Idem, p.4. xxxii Idem, p.4. xxxiii Idem, p.5. xxxiv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Retratos do Império. p. 14. xxxv Vicente do Salvador, Frei. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatia, 1982, p.187. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 157 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) Maristela Santana Os primeiros meses de pesquisa sobre um grupo de fontes primárias levaram-nos a suspender provisoriamente a expressão Militante da Liberdade atribuída por nós ao Promotor Públicoi, que fez parte do título do projeto originalii2, em vista do material encontrado até o momento, sem, contudo, descartar essa possibilidade. Apresentamos a seguir algumas referências que motivaram o trabalho, seu desenvolvimento e o estágio atual em que se encontra. Militante da Liberdade é uma expressão, não exclusiva, mas utilizada pela historiadora Keila Grinbergiii para referir-se a bacharéis em Direito ou solicitadores, aqueles indivíduos que não tinham formação jurídica institucional, mas tinham autorização para atuar nos juízos de primeira instância em ações de liberdade e de manutenção de liberdade de escravos, entre outras. O historiador Eduardo Spiller Penaiv, por sua vez, utiliza o termo “militância política abolicionista” de forma genérica para advogados, solicitadores, curadores, e juízes que teriam auxiliado juridicamente escravos em ações judiciais da mesma natureza. Com cautela, estendeu a expressão para jurisconsultos e magistrados que alcançaram grande expressão social e política, ligados ao Governo Imperial por laços diversos, que utilizavam linguagem e militância abolicionista moderada. Numa conjugação do emprego da “militância” utilizada pelos dois autores, e com base em indícios legislativos, pareceu-nos desafiador empregar o termo como título da pesquisa em referência a outro ator social interativo, um sujeito apenas referenciado em 158 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) legislações e obras historiográficas relacionadas à justiça no Brasil, mas não objeto de estudos mais profundos. Esse sujeito aparece nas legislações em torno da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, exercendo função de extrema relevância. Trata-se do Promotor de Justiça, agente do Ministério Público, fiscal do cumprimento da lei. A Lei nº 2.040 de 1871 a despeito do que a alcunha de “Lei do Ventre Livre” sugere, foi editada objetivando a libertação de dois sujeitos: o filho de mulher escrava a partir daquela data, e o escravo adulto pertencente ao Império em conformidade com duas previsões: libertação anual de escravos de cada província de acordo com cotas reunidas em Fundos de Emancipação criados nos municípios para esse fim; e libertação individual por meio da formação de pecúlio para compra direta da alforria, ou para pagamento de indenização ao(s) senhor(es). A formação de pecúlio também estava prevista para o filho livre de mulher escrava e em ambos os casos o Governo regulamentaria as formas de proteção e de rendimento desses pecúlios. Outra disposição importante prevista era a matrícula ou registro especial que todos aqueles que detinham o poder ou a posse dos escravos do Império eram obrigados a realizar a partir de então, e no caso de não cumprimento dentro do prazo estabelecido, sujeitarse-iam a sanções de multa e de penas. E nesse particular, conforme estabelecido no Decreto n.º 4.835 de 1871, regulamento da Lei n.º 2.040 que disciplina “a matrícula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava” caberia ao agente ministerial e seus adjuntos, entre outros (Curadores Gerais de Órfãos e Juízes de Órfãos), a atribuição de intervenção para que a matrícula fosse realizada. Existe uma ampla produção na área da História do Direito enfatizando o desenvolvimento do Poder Judiciário no Brasil. Estudos relativos à perspectiva histórica do Ministério Público Estadual (Rio de Janeiro) baseados em fontes primárias, que não somente a legislação, são escassosv; limitam-se muitas vezes a um caráter Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 159 Maristela Santana introdutório em livros específicos sobre os princípios institucionais do órgão e a artigos esparsos em publicações temáticas, ora com mais, ora com menos detalhes. Trabalhos sobre a Instituição no Rio de Janeiro realizados por historiadores estão dando os primeiros passos. Tecemos nossa problemática a partir de afirmativas semelhantes de dois membros do Ministério Público contemporâneo que se propuseram em trabalhos acadêmicos sobre a Instituição, fazer constar a evolução histórica da mesma. São eles: José Eduardo Sabo Paes, Procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, no livro O Ministério Público na Construção do Estado de Direito, publicado em 2003, resultado da sua tese doutoral em Direito defendida em 2001 na Universidad Complutense de Madrid, Espanha; e Ronaldo Porto Macedo Jr., Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Pós-Doutor em Direito, Professor da Universidade de São Paulo-USP e da Fundação Getúlio Vargas – FGV/SP no artigo “Evolução Institucional do Ministério Público Brasileiro”, 1995. Ambos conferem importante destaque ao Promotor de Justiça no século XIX que com a promulgação da Lei do Ventre Livre teria como função proteger “fracos e indefesos” uma vez que lhe competia fiscalizar se os filhos livres das mulheres escravas eram registrados na forma da lei. Esse entendimento de “protetor dos fracos e indefesos” repete-se inclusive no portal do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) vi, no link sobre a “História do MP”. O impacto de tal afirmativa foi bastante expressivo, despertando nosso interesse de modo que a afirmação impôs-se irresistivelmente como objeto de investigação e ponto de partida para o nosso estudo. Ao consultarmos o corpo da Lei nº 2.040 de 1871 não encontramos disposições explícitas que justifiquem a afirmação contundente feita pelos membros do Parquet atual de o Promotor de Justiça como responsável: a) pela fiscalização da matrícula dos 160 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) ingênuos; e b) pela defesa de interesses dos escravos, ingênuos e libertos. Esses dispositivos são encontrados sim, nos Decretos n.º 4.835 de 1º de dezembro de 1871 e n.º 5.135 de 13 de novembro de 1872, respectivamente, que disciplinam e regulamentam a aplicação da Lei n.º 2.040. Entendemos que, na realidade, houve uma leitura jurídica enaltecedora da Instituição, especialmente ao referir-se aos promotores como “protetores” dos filhos livres de mulher escrava, ou ingênuos, termo como eram tratados à época; e nós a convertemos numa pesquisa histórica, a partir de inter-relações complexas entre legislação civil, criminal, processos judiciais cíveis de liberdade, inquéritos policiais, relatórios administrativos provinciais e relatórios relativos à administração da justiça imperial. A historiografia voltada para a escravidão no Brasil nas últimas duas décadas consolidou a interpretação de que as três principais leis sobre a questão: Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871 ou Lei do Ventre Livre; Lei n.º 3.270 de 28 de setembro de 1885 ou Lei do Sexagenário; e Lei n.º 3.353 de 13 de maio de 1888 ou Lei da Abolição da Escravatura, não foram processos isolados em torno de situações imediatistas visualizadas pelo Governo e pela elite escravocrata brasileira que teriam culminado na última lei como o fim derradeiro do sistema no país. Ao contrário, as três leis compunham um projeto de emancipação gradual e segura que não alterasse a ordem hierárquica social. Realidade há muito antevista, mas que não poderia ocorrer de qualquer forma, não poderia dar margem, por exemplo, a rebeliões escravas que ameaçassem as ordens econômica, social e política. No tocante à Lei n.º 2.040, tal preocupação parece justificar a quantidade de legislações correlatas cíveis e criminais: leis, decretos, regulamentos, avisos e alterações regulamentais, sempre procurando (em tese) conferir precisão àquele ordenamento jurídico, evitando brechas que possibilitassem a perda do controle em prol da manutenção da ordem estabelecida; e presente em todos os níveis da sociedade. Sendo a sociedade, em todos os seus segmentos, um elemento orgânico e dinâmico, é Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 161 Maristela Santana possível observar interações, tensões e reações que se refletem nas leis que, por sua vez, são empregadas em processos judiciais e provas utilizadas pelas partes envolvidas, e na retórica que faz dos dispositivos legais instrumentos manipuláveis contrários ou não segundo interesses escravistas e abolicionistas; permite senão a inversão, perceber os movimentos e as “vozes” reativas àquela ordem. No tocante à legislação cível e criminal, em especial a esta última destacamos: o Código Criminal (1830), o Código de Processo Criminal (1832) e suas reformulações referentes às disposições judiciárias, com destaque para a Lei n.º 2.033 de 20 de setembro de 1871 e o seu regulamento, o Decreto n.º 4.824 de 22 de novembro de 1871. Essa legislação criminal também faz importante referência às atribuições dos Promotores Públicos que analisadas em conjunto com a legislação cível relacionada à Lei n.º 2.040 de 1871 constituem fontes relevantes para pesquisar a atuação cível do Promotor de Justiça. Sendo assim, nossa problemática consiste em investigar esse agente histórico: quem era? Que espaço ocupava na sociedade? Como aparece nos processos judiciais e inquéritos? Que discurso utilizava para fazer cumprir suas funções legislativas? Teria sido um Militante da Liberdade? Diante dessas questões apresentamos algumas considerações, parte delas ainda a serem aprofundadas para apresentação futura. Segundo o Código de Processo Criminal de 1832, a função do cargo de Promotor poderia ser exercida por qualquer pessoa que reunisse as condições para ser jurado, preferencialmente “os que fossem instruídos nas Leis”, a aptidão para ser jurado derivava da condição de os indivíduos serem cidadãos e eleitores; ou seja, uma pequena parcela da população detentores de direitos civis e políticos, com reconhecimento social de serem sensatos e honestos. Esses critérios eram bastante subjetivos e eram eles que prevaleciam nas proposições e aprovações por autoridades superiores. A Lei n.º 2.033 de 1871 dispunha que, em caso de falta 162 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) do Adjunto do Promotor Público, qualquer pessoa idônea poderia ser nomeada pelo juiz para a causa específica (criminal) apresentada, disposição essa corroborada pelo Decreto n.º 4.824 de 1871 que regulamenta a lei citada. Disposto dessa forma pode-se afirmar que a princípio qualquer indivíduo poderia ser Promotor de Justiça, e não necessariamente bacharel em Direito, bastando apenas ser dotado de “boa índole”. Os critérios subjetivos eram determinantes, denotando que a escolha e nomeação para o cargo de promotor, essencial ao funcionamento da Justiça, era feita por critérios que faziam do promotor um agente político, de modo que o “fiscal da lei” do século XIX não corresponde exatamente ao “fiscal da lei” dos séculos XX e XXI, defensor dos direitos sociais individuais homogêneos e sociais difusos e coletivos. A grande inovação da Lei n.º 2.040 foi a interferência do público (Estado) nas relações privadas (entre senhores e escravos) em que o Estado passou a administrar a concessão de alforrias, fosse por meio da formação de pecúlio ou classificação pelo Fundo de Emancipação. Autores diversos concordam que com a promulgação da lei aumentou o número de escravos, libertandos e libertos que procuravam o Poder Judiciário para fazer valer seus direitos. Como não possuíam capacidade postulatória por serem considerados “incapazes”, recorriam a curadores, solicitadores, advogados abolicionistas e mesmo pessoas simples que sabiam ler e escrever para peticionarem suas ações. Dois trabalhos que consideramos relevantes para a perspectiva com que estamos trabalhando, constituem obras de referência para estudos do gênero, citadas no início do trabalho vii e enriquecidos com trabalhos afins como o artigo intitulado: “A Legislação de 1871, o Judiciário e a tutela dos ingênuos na cidade de Taubaté”, da autoria de Maria Aparecida C. R. Papali, e publicado na Revista História e Justiça; Todos os autores estão afinados com a corrente historiográfica História Social, e voltam-se para a análise de Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 163 Maristela Santana legislações combinadas com processos judiciais, jornais e atas de reuniões de grupos diretamente envolvidos com o Abolicionismo. Demonstram a riqueza de análises fornecidas pelas fontes que consolidaram a mudança de paradigma no estudo da escravidão no Brasil. Eduardo Spiller Pena foi orientado no doutorado por Sidney Challoubviii, um dos precursores no estudo de ações de liberdade na província do Rio de Janeiro. Challoub evidenciou a importância dos processos judiciais como fonte primária e expressão da busca de direitos de escravos e libertos, apontando a possibilidade do uso desse instrumental, bem como a relevância de advogados nos processos de libertação. Pena defende a tese de o direito “como campo previsível e devidamente orientado para a defesa dos interesses de uma determinada classe, passando a contemplar o direito como um campo possível de indeterminações e como uma ix arena de conflitos entre interesses diversos de classes”. O argumento do autor é de que haveria várias possibilidades de interpretação dos textos legais. Um campo amplo e privilegiado do Direito para a discussão da escravidão no país. Keila Grinbergx questiona essa autonomia interpretativa dos advogados. A quantidade de leis, decretos e regulamentos expedidos pelo Governo, no seu ponto de vista, constituíam formas de refrear a “criatividade jurídica” de advogados envolvidos com ações de liberdades que se utilizavam da legislação portuguesa (em especial as Ordenações Filipinas) e da doutrina, indiscriminadamente, de modo a convencer os juízes de seus argumentos. Uma informação fornecida por Grinbergxi, envolvendo a legislação nacional, e constatada na amostragem de processos cíveis envolvendo a Lei n.º 2.040 por nós consultada no da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com referências constantes a artigos dos Decretos n.º 4.835 de 1871 e n.º 5.135 de 1872, é de que a partir da promulgação da lei as Ordenações Filipinas praticamente deixaram de ser um recurso válido nas ações de liberdade reduzindo 164 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) consideravelmente a referência a elas nos processos. A autora concorda com Pena e Challoub que até por volta da década de 1850, advogados e juízes possuíam grande autonomia interpretativa, no entanto não faziam uso nos processos de referências a jurisprudências (julgados) anteriores e semelhantes; e menos, que o argumento com base na citação de leis e doutrinas fosse feita de qualquer forma, a retórica obedecia uma lógica do que era juridicamente aceito à época, argumento esse com a qual concordamos. Quanto aos Militantes da Liberdade, ao questionamento sobre quem eram ao certo estes indivíduos, Grinberg ressalta a importância do estudo sobre as conclusões, as interpretações e o senso político das atuações dos mesmos, por meio dos argumentos por eles apresentados. Tendo por base as reflexões já apresentadas e as disposições legislativas sobre as atribuições do Promotor Público, tem-nos intrigado bastante a dificuldade em encontrar documentos com a manifestação direta do promotor. Procedemos ao levantamento de processos judiciais de ações de liberdade disponibilizadas no Museu da Justiça. Numa amostragem significativa não encontramos nenhuma assinatura de Promotor Público, sendo vasta a assinatura de curadores. A identificação “curadores” era bastante abrangente, podendo referir-se a uma gama de postuladores legais. Procederemos ao cruzamento de dados fornecidos pelas fontes de modo a averiguar se promotores correspondiam a curadores nas petições. E em caso positivo, por que razão não assinavam em função do cargo? Segundo o Decreto n.º 4.824 de 1871 que alterou a legislação judiciária foi recriado o 2.º Juizado de Órfãos no Município neutro da Côrte onde tramitariam as causas relativas aos escravos, libertandos e libertos, podendo o cargo de Curador Geral de Órfãos da 2.ª Vara ser ocupado por Adjunto de Promotor e ainda segundo a norma, Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 165 Maristela Santana deveria existir junto aos Juízos Cíveis de Órfãos e Ausentes nas comarcas uma Curadoria de Órfãos, em que atuariam Promotores de Justiça e/ou Promotores Adjuntos. Os processos judiciais relativos aos juízos de órfãos da Côrte compõem o acervo do Arquivo Nacional, ainda a ser consultado.xii No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro com o auxílio da elucidativa obra recém publicada pela Instituição: A província fluminense: administração provincial no tempo do Império do Brasil (Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2012), encontramos dados mais reveladores. Na estrutura administrativa provincial havia a Secretaria da Presidência da Província, dividida em seções na qual, a 3.ª Seção cabia a segurança pública e a administração provincial da justiça em que o Promotor Público, exceto na Côrte, era nomeado pelo presidente provincial. Concluímos em parte que a dificuldade em encontrar material judicial em que apareça o promotor atuante, ocorre porque ele era um ocupante de cargo público criado e estabelecido pela legislação imperial, ligado ao exercício do Poder Judiciário (atribuições), mas controlado pelo Poder Executivo (nomeação, designação, exoneração etc). Importante ressaltar que o Poder Judiciário introduzido no ordenamento brasileiro com a Constituição de 1824 não tinha seus contornos bem definidos na prática, sendo a função judicial muito imiscuída com a função administrativa. A “novidade” trazida pela Lei do Ventre Livre, em que o Estado passou a administrar a concessão de liberdade aos escravos é referenciado em duas passagens que destacamos e mostram a relação dos promotores com o Executivo provincial: A Lei do Ventre Livre e a necessidade de normatizar, esclarecer e regulamentar os processos de emancipação de escravos cujas regras expostas na legislação nem sempre foram claras, desencadeou um grande volume de correspondência enviada ao Presidente da Província para dirimir dúvidas de juízes, delegados, párocos, 166 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) proprietários de escravos, integrantes das juntas de classificação de escravos e até mesmo de escravos sobre o processo de emancipação xiii previsto na lei. Os Promotores Públicos compunham com o Presidente da Câmara Municipal e o Coletor de Rendas as Juntas de classificação de escravos que eram anualmente libertados pelo Fundo de Emancipação nos municípios. Da mesma forma: Os ofícios dos juízes enviados à Secretaria [da Presidência da Província] mantinham o presidente informado sobre o número de juízes, promotores nos termos e comarcas da província, a nomeação xiv dos mesmos, além da divisão judiciária. Encontramos inquéritos policiais envolvendo crimes praticados por escravos e libertos e contra esses e ingênuos, fazendo menções ao Promotor Público da comarca para manifestar-se no pleito. Pouquíssimas vezes o nome é citado, mas os inquéritos revelam-se fontes importantes sobre a dinâmica das relações administrativas, policiais e judiciárias entre promotores, juízes de direito, juízes municipais e de órfãos, delegados e subdelegados nos municípios e comarcas e de todos com o chefe de polícia provincial, a serem esmiuçadas. Ainda sobre a função do promotor, pretendemos elucidar a vinculação ou adjetivação conferida a ele pelo exercício da “advocacia pública” no Império, tratamento esse, atribuído por estudos em andamento (vide nota n.º 5) e em trabalho sobre a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Nesse há a iniciativa de destacar o papel do Defensor Público, outro ator social ligado ao Estado, atualmente com exercício junto aos hipossuficientes, aqueles que não podem arcar com as custas processuais da justiça comum, definido-o como “advogado do povo”. Trata-se de a História da Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 167 Maristela Santana Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004) de autoria do historiador Jorge Luís Rocha. Na evolução histórica até a institucionalização oficializada em 1988, uma conquista na Carta Constitucional democrática, o autor, por meio da legislação desde o período colonial mostra que há várias menções ao que seria a função do defensor. Tais referências dizem respeito a concessões aos pobres, ou “miseráveis”, termo jurídico utilizado à época e são muito próximas às funções do Promotor de Público no Império. O discurso que prevalece é o da assistência judiciária direcionada aos pobres xv nas causas cíveis , enquanto ao promotor, como já citamos, nas causas criminais à assistência quando não houvesse representante legal do indivíduo miserável, cabendo ao promotor representá-lo. Desse modo, a nosso ver, a diferenciação manter-se-ia significativa marcada se, no contexto da promulgação da Lei nº 2.040 de 1871, o promotor também não tivesse se voltado para ação cível. Essa afirmativa constitui uma das nossas principais hipóteses de trabalho, melhor formulada como: a legislação em torno da Lei do Ventre Livre seria o marco da atuação cível do Ministério Público até então restrita à ação penal. Nossa problemática remete à questão do acesso à justiça, no caso por escravos e ex-escravos, portanto, recorremos aos sociólogos do Direito Boaventura de Sousa Santos e Luis Werneck Viannaxvi. Os conceitos de justiça e direito são contemplados pelos autores, configurando o que podemos chamar de uma sociologia institucional jurídica. Em Santos, a abordagem ocorre num contexto de desigualdade social contemporânea, alude às bases estruturais fincadas na formação da sociedade brasileira, calcada na escravidão, prejudicando o exercício da cidadania plena no âmbito, também, da justiça. Nesse sentido, entendemos que a pertinência em relação ao nosso objeto de estudo assenta na premissa de os promotores, segundo a legislação, atuarem a favor de partes autoras constituídas por escravos, libertos e cativos em vias de libertação, com atuação (entre outros atores sociais) para garantir o acesso desses à justiça, 168 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) sendo que como “fiscal da lei”, o agente do Ministério Público era o único que possuía esta atribuição.xvii A partir dessa perspectiva, afastamo-nos da abordagem predominante pela História Social seguida pelos autores que compuseram nossa bibliografia básica para elaboração do projeto de pesquisa (Keila Grinberg, Eduardo Spieller Pena, Maria Aparecida Papali e Adriana Pereira Campos, entre outros) em vista de nossa ênfase recair sobre uma História Institucional; o foco deles está na relação entre senhores e escravos utilizando processos judiciais como fontes primárias privilegiadas dentre outras. Os processos (e inquéritos) também constituem para nós fontes privilegiadas, mas sob outro olhar, oferecendo outra dinâmica de análise das relações entre escravos e ex-escravos com a justiça, e nesse particular, a atuação do Ministério Público. Nesse sentido, a percepção dos processos judiciais e inquéritos policiais como indícios de investigação cultural e social (Carlo Ginzburg, teórico da Micro-história) é corroborado. Em Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, de autoria de Sidney Chalhoubxviii, esse também faz referência ao instrumental teórico da Micro-históriaxix aplicado aos processos criminais sobre os quais trabalhou. Para tanto, a análise do discurso (o dito, o não dito e os silêncios nos processos e nas leis) assume fundamental relevância. Para o tratamento do discurso, recorremos à linguista Eni Orlandi, precursora da análise do discurso no Brasil. No livro Análise do Discurso: princípios e procedimentos encontramos a leitura da análise do discurso como teoria da interpretação em que os textos/objetos de estudo representam sentidos estabelecidos nas relações entre as dimensões política e simbólica a partir das condições de produção. Essas condições implicam a tecelagem entre o material, o institucional e o mecanismo imaginário produtor de imagens dos sujeitos, bem como do objeto do discurso insertos numa conjuntura sociohistórica.xx No nosso estudo, observamos tal configuração com a difusão crescente do acesso à justiça por Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 169 Maristela Santana escravos, libertandos e libertos para reinvidicar e garantir a liberdade após a promulgação da Lei n.º 2.040 de 1871, ou seja, a recorrência à instância jurídica estatal como autoridade institucional legitimadora daquele direito, sendo possível perceber as representações políticas e sociais das ideias políticas circundantes. Sendo assim, esperamos contribuir no avanço dos estudos históricos do Ministério Público no período imperial, com todas as potencialidades que ele oferece. Notas e referências Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora Maria Emília Prado. Contato: [email protected] i Os termos Promotor Público e Promotor de Justiça são encontrados nos documentos como sinônimos, sendo o primeiro corrente no período estudado. ii “Um Militante da Liberdade: A atuação do Ministério Público em Ações Cíveis na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)”. iii GRINBERG, Keila. O Fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. iv PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001, p. 23-28. v No II Seminário Internacional de História e Direito: instituições políticas, poder e justiça, realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF) nos dias 9, 10 e 11 de maio de 2012 foi apresentada a comunicação “O Ministério Público no Império” de autoria de Adriano Moura da Fonseca Pinto e Sandra de Mello Carneiro Miranda. A perspectiva adotada é de uma visão histórica sobre as origens e desenvolvimento da advocacia 170 ISSN 1414-9109 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) pública no Império (1822-1889) utilizando como fontes primárias a legislação imperial e publicações do Diário Oficial do Império do Brazil. Disponível em: <http://www.uff.br/sihd/images/stories/arts_2011/ARTIGO_SIHD__Adriano_M oura_da_Fonseca_Pinto_e_Sandra_de_Mello_Carneiro_Miranda.pdf> Acesso em 10/08/2012. vi Disponível em: < www.cnmp.gov.br> Acesso em 20.09.2012. vii PENA, 2001 e GRINBERG, 2002. viii CHALLOUB. Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ix PENA, op. cit., p.25. x GRINBERG, op. cit., p.235. xi Ibdem, p.251. xii O Arquivo Nacional vinculado ao Ministério da Justiça esteve em greve no período de julho a início de setembro de 2012, inviabililizando a consulta em tempo hábil para apresentação de resultados. xiii p. 78; grifos nossos. xiv p. 104; grifos nossos. xv Referências às Ordenações Manoelinas e Filipinas. (ROCHA, op. cit., p.123-124). xvi Os trabalhos utilizados para a reflexão são: o artigo “Introdução à sociologia da administração da justiça” (Revista de Processo 37, 1985, p. 121-139), e o livro Por uma revolução democrática da justiça (São Paulo: Cortez, 2007) da autoria de Santos; e de Vianna o título: Corpo e alma do magistrado brasileiro (et alli. Rio de Janeiro: Revan, 1997). xvii Conforme o Aviso Imperial de 16 de janeiro de 1838. xviii CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2011. xix CHALLOUB, p.15-31 xx ORLANDI, Eni. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes. 2012. p. 40. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 171 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque Priscila Gomes Correa Ao longo da obra da musical de Chico Buarque, destaca-se uma constante referência ao samba como um instrumento capaz de instaurar o tempo/lugar da festa, que surge como o extraordinário do cotidiano, ou seja, como uma possibilidade transformadora existente no seio de uma realidade repetitiva e maçante, em geral associada ao tempo/lugar do trabalho. Trata-se da cotidianidade tecida sob o processo de industrialização e urbanização desordenada, uma consolidação de espaços urbanos cada vez mais carentes de lugares de lazer e festa.i A sensibilidade para o drama contemporâneo das grandes cidades, voltadas para a exploração do trabalho e para o tempo regrado, caracteriza muitas das canções do artista desde seu primeiro disco, lançado em 1966. A música de maior sucesso, A Banda, já chamava atenção para as transformações operadas pela música, como um despertar para a vida, ainda que momentâneo, enquanto outras canções expunham contrastes desconcertantes, até mesmo “naturais”, de um dia-a-dia sem “festa”, então lançada à excepcionalidade, como uma transgressão consentida. Quando, por exemplo, o desatino do “eu” apenas revelava o desatino do “outro” (Ela desatinou), sob a festa do carnaval: “ela não vê que toda a gente/ já está sofrendo normalmente/ toda a cidade anda esquecida/ da falsa vida da avenida onde/ ela desatinou”.ii De tal modo a narrativa imbuída de gestos cotidianos traça com naturalidade o foco de tensão para o extraordinário da vida, ainda que sob os símbolos do desatino ou da obediência. Também Tamandaré (1965), primeira canção censurada de Chico, considerada uma 172 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque ofensa ao patrono da Marinha brasileira, compõe uma representação bastante significativa desse ponto de vista, digamos, do homem simples. Não se trata, no entanto, da vida de Zé qualquer como parte de uma esfera maior de sentido, mas sim da significação que esse protagonista atribui ao Marquês de Tamandaré, que sob seu contexto nada mais é que uma nota de um cruzeiro desvalorizada. Solidário ao Marquês, Zé qualquer promove o encontro e compartilha dor e samba com o novo amigo, cujo destino ingrato ao seu se assemelha ou vice-versa. Convém acompanhar esse breve encontro, sob essa canção que possui apenas um registro gravado na voz de Chico Buarque, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som (1966), mas também foi gravada pelo Quarteto em Cy em 1991, no disco Chico em Cy. Esta gravação aparece bastante similar à interpretação original de Chico, explorando com sutileza a interposição de vozes, do narrador ao Zé qualquer. A canção costuma ser interpelada como uma crítica ao poder militar, mas é substancialmente rica em valores contextuais de perspectiva social, revelando uma relação com o tempo capaz de absorver quaisquer destinos sob um contexto urbano. Eis que “Zé qualquer tava sem samba, sem dinheiro/ Sem Maria sequer/ Sem qualquer paradeiro/ Quando encontrou um samba/ Inútil e derradeiro/ Numa inútil e derradeira/ Velha nota de um cruzeiro”. Anuncia-se na vida de um homem simples, “perdido” sob tantas desventuras, um encontro (a festa) que só o samba pode trazer, mas essa interlocução se revela, na verdade, a consciência do poder do tempo, que passa sobre vidas, sonhos e valores, independentemente de status e posição social de cada indivíduo. Inaugura-se um samba ligeiro, sob o qual Zé qualquer tenta expor ao Marquês “de semblante meio contrariado” que, mesmo sabendo que “antigamente era bem diferente”, agora pode dispor da liberdade de lhe questionar de igual pra igual sobre suas glórias e nobreza: “Meu marquês de papel/ Cadê teu troféu/ Cadê teu valor/ Meu caro almirante/ o tempo inconstante roubou”. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 173 Priscila Gomes Correa O entrelaçamento de temporalidades envolve Zé qualquer, o Marquês e a nota de um cruzeiro na mesma sina de desvalorização irreversível: “Zé qualquer tá caducando/ Desvalorizando/Como o tempo passa, passando/Virando fumaça, virando/Caindo em desgraça, caindo/Sumindo, saindo da praça/Passando, sumindo/ Saindo da praça”.iii A repetição, reforçada pela aceleração rítmica, como aquela que aflige Pedro Pedreiro (1966), também envolve esses dois personagens, vítimas, quiçá, da lógica da mercadoria. Lógica que citamos aqui não objetivamente como conceito filosófico, mas como contexto sensível, quando a percepção do sujeito intui sobre determinados objetos o lócus de problemas mais amplos, que encontrará morada na relação com a modernidade. Pode-se dizer que são as temporalidades tecidas pela sociedade burguesa ao longo do século XIX e a consequente busca pelo “tempo perdido”, como em Marcel Proust, que permanecem presentes quando se está “assim debochando do tempo perdido” (Ela desatinou), quando a história se perde no consumo das coisas, como um “marquês de papel” (Tamandaré). Cabe notar que na obra intitulada Em Busca do Tempo Perdido (1914-27), Marcel Proust expôe um personagem que diante da angústia de uma temporalidade irreversível, diante da fugacidade da própria vida, encontra na memória um impulso criador capaz de superar a cisão entre o “eu” (artista) e o “mundo” (sociedade burguesa), quando o personagem consegue se “situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo”,iv uma reminiscência involuntária evocada pelos sentidos. Como observado por Walter Benjamim, essa experiência, no entanto, pauta-se pelo acontecimento lembrado e sem limites, pois o acontecimento vivido é finito.v Em meados do século XX, o pensamento sobre a modernidade, do qual Chico advém, encontrará a pulsão criadora também na fugacidade, no vivido. Aliás, os anos de 1960 caracterizam-se precisamente pelo descortinar das mais diversas “visões de mundo” (Weltanschauung), 174 ISSN 1414-9109 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque o despontar de percepções como a de Guy Debord, que aprofundando a reflexão sobre as consequências extremas da fetichização da mercadoria, identifica a “sociedade do espetáculo”, com seu tempo irreversível, com seu “tempo das coisas”. Tempo em que a “história que está presente em toda a profundeza da sociedade tende a perder-se na superfície”.vi Ora, é justamente a sensibilidade para esse contexto que permite ao artista sobrepor à crítica conceitual a experiência. Decerto a concepção buarquiana surge também como fruit de l´air du temps, mas sobretudo como busca estética, como parte de sua trajetória, formação e valores. Nesse sentido, cabe lembrar que a ideia de festa, em todas as suas virtualidades, pode ser considerada uma expressão por excelência de experiências transformadoras sob o cotidiano. O encontro da festa como transformação, como ação positiva do sujeito, tem sido uma das prerrogativas da música popular, que sendo urbana e comercial está inevitavelmente inserida no espetacular, exigindo do artista e do seu público o domínio dos meandros de determinadas linguagens. Na verdade, a festa da/na música popular se transfigura no exercício de identidades, possibilitando um processo socialmente criativo, embora substancialmente abstrato, pois prenhe de usos e práticas sociais e estéticas. Nesse exercício está inscrita naturalmente a interlocução com a tradição, seus temas, sonoridades e modos de dizer. São gestos frente à cultura, atitudes e posturas compartilhadas no âmago das mídias e do consumo, situações que o compositor popular procura, não raro, reverter a seu favor. Nesse sentido, outra canção bastante representativa desse período de ajustamento estético/narrativo de Chico Buarque é Olê, Olá (1965), pois a busca/espera pelo samba/música revela a dicotomia entre festa e cotidiano, como felicidade e tristeza. Assim o samba perde sua onipotência (“tem mais samba”), pois adquire tempo e lugar. A idealização do samba salvador acompanha, porém, uma Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 175 Priscila Gomes Correa construção de espaço popular propício, mas efêmero, para sua realização. Eis que ao longo das quatro primeiras estrofes da canção a dimensão negativa da cotidianidade fica em suspenso, pois ela abafa, mas não suprime a possibilidade do êxtase provocado pela música; resvalando em situações e conflitos que supostamente compõem esse potencial espaço urbano para o samba. Existe, por conseguinte, uma tensão constante anunciada pelas sonoridades, enquanto a esperança predomina ao longo da narrativa verbal, visto que a felicidade pode ficar, e até mesmo o tempo poderia parar: “Felicidade aqui/ Pode passar e ouvir/ E se ela for de samba/ Há de querer ficar (...). E um samba tão imenso/ Que eu às vezes penso/ Que o próprio tempo/ Vai parar pra ouvir”. Contudo, a diversificação sonora, a partir da segunda repetição do refrão, já começa a instaurar a tensão diante de uma interrupção iminente, “mas muito cuidado, não vale chorar”, sugerindo interferências, ou seja, o anúncio de que a esperança pelo samba/felicidade será minada. Deve-se notar que esta instável esperança está associada à possibilidade de transformação/festa em oposição à determinação da cotidianidade. O instrumento para a concretização dessa esperança é o violão, associado logo à percussão, mas dependente das circunstâncias. Tal esperança é primeiramente abortada pelo amanhecer: “Luar, espere um pouco/ Que é pro meu samba poder chegar”. Em seguida, o espaço urbano e o tempo cotidiano restringem o espaço/tempo do samba, uma tensão dialética e não excludente: “Não há mais quem cante/ Nem há mais lugar/ O sol chegou antes/ Do samba chegar/ Quem passa nem liga/ Já vai trabalhar”.vii Ora, “não há mais lugar”, pois não há mais tempo; o lugar assume, assim, diferentes papéis: a rua ao sol é lugar de passagem, agora sim de determinação. Em suma, percebe-se que a narrativa está calcada na fala, no coloquial, expressando as esperanças e possibilidades, ao passo que 176 ISSN 1414-9109 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque as variações de timbre e diversificação sonora imputam-lhe uma tensão a partir da aceleração do andamento da música e apesar da batida do samba reanimada após cada refrão, ou seja, exploram-se as temporalidades da própria música como recurso inibidor de sua continuidade. Portanto, a tensão sonora induz o canto à pressa, signo do novo tempo, por isso “seu padre toca o sino, que é pra todo mundo saber”, e a figura do “padre” aparece como uma referência ao contexto urbano, tradicional e popular da cidade pequena, no lado oposto do caminho apressado de quem vai trabalhar. Na verdade, tal açodamento do narrador advém da busca frustrada pela desaceleração do tempo, até que nem mesmo o violão, o samba e o clamor conseguem conter seu avançar, e no lugar (na rua, na cidade) uma cotidianidade se instaura quando na última estrofe é anunciada o fim de sua suspensão (“E você, minha amiga/ Já pode chorar”). Percebe-se, logo, que a incorporação de instrumentos de percussão em paralelo ao violão caracteriza a maioria das obras de Chico do período; o tempo rítmico aparece fortemente marcado, com ênfase na repetição, sobretudo nas canções referentes à temática do cotidiano. Característica cuja construção composicional fica patente nas interpretações realizadas por Chico no Depoimento para a posteridade do MIS. Ali temos a rara oportunidade de presenciar a performance solitária de Chico, só com o violão, o que permite a percepção de propostas de interpretação para suas composições, pois na ausência de outros instrumentos ele explora os silêncios, reduz e acelera o andamento das melodias e, sobretudo, expõe intuitivamente o seu projeto rítmico para a canção, justamente trabalhando com as possibilidades percussivas do violão. Contudo, não podemos deixar de observar que alguns elementos formais da música de Chico remetem intuitiva e propositalmente à estruturas musicais mais sedimentadas do samba. Intuitiva porque apreendida na prática como músico, proposital porque o compositor visa contribuir a partir e para a tradição do samba. A canção mais expressiva neste sentido é Pedro Pedreiro Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 177 Priscila Gomes Correa (do primeiro LP de Chico – 1966, mas que apareceu pela primeira vez em um compacto com Olê, Olá em 1965), na qual, aliás, desponta o tema do cotidiano suburbano que terá longevidade ao longo de sua obra. Com seu ritmado “martelar”, suas sonoridades e narrativa sugerem a ausência de novidades no dia-a-dia de um operário da construção civil, que espera como um gesto mecânico e desgastado pela repetição, mas que no mesmo gesto desenvolve a percepção de que sua espera é muito maior e infinita. Assim, a canção expõe uma representação acerca da vivência urbana de um trabalhador de baixa renda e de origem migrante, que espera o trem, como a sorte de melhorar de vida; e permanecendo errante, empurrado para longe, espera voltar para sua terra de origem, de onde, outrora, também fora expulso. Ou nem sequer isso, só espera a morte. Ao avaliarmos o registro fonográfico de Pedro Pedreiro de 1966, também com arranjo de Francisco de Moraes, percebe-se um samba com tempo fortemente marcado, enfatizando o efeito de repetição percussiva logo na introdução, simulando uma situação de ruídos comum ao canteiro de obras, um burburinho típico de centros urbanos. Por um lado, a percussão preponderante é acompanhada pela narrativa verbal calcada no recurso da aliteração (criando uma ambiência repetitiva, neste caso, expressão da cotidianidade);. É interessante notar que ao buscar o elemento popular, as sonoridades do dia-a-dia, Chico Buarque apresenta-nos a sensibilidade para aquela composição musical que estava sendo executada no “palco do mundo”, assim expressando uma paisagem sonora, como definiria Murray Schafer.viii A crítica buarquiana incide, portanto, sobre um problema social, daí a elaboração de uma realidade pressuposta, uma cotidianidade urbana que tem o trem como foco. Mas também sobre questões existenciais que afligem o próprio compositor em sua “missão” como artista-intelectual, o samba/festa aparece como grande elemento de transformação. Notese que a dicotomia básica que percorre a maioria de suas primeiras canções é samba/cotidiano, ora como negativa ora como positiva, na 178 ISSN 1414-9109 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque verdade uma profunda tensão. Em Tem mais samba, o cotidiano ainda propicia a festa, mas em Olê, Olá e Pedro pedreiro, essa relação se tensiona até que a cotidianidade não consegue se reconciliar com a festa. Por exemplo, em Com açúcar, com afeto (1965) Chico adota o eu lírico feminino, mas sob uma ótica crítica, expondo a cotidianidade de um casal que vive sob um conflito silencioso, mas reproduzido graças à passividade da mulher, visto que esta se sente preterida por um conjunto de hábitos de seu marido, mas, apesar da queixa, sua rotina repetitiva é aceita passivamente. Aí reaparece o operário pobre que vive a dicotomia samba/trabalho em seu dia-a-dia, sob o contexto urbano: casa/bar/trabalho. Já em Fica (1965), apresentam-se um conjunto de elementos de uma cotidianidade pressuposta, porém de um ponto de vista negativo (ironia), pois adaptada a um modo de vida em desajuste com o senso comum, mas sugerindo em oposição os hábitos desejados. Predomina a “vista de baixo”, da margem, da cidade pequena ou suburbana, em que alguns valores ainda norteiam a conduta pública, o receio à desmoralização: “Fale do nosso barraco/ Diga que é um buraco/ Que nem queiram ver/ Diga que o meu samba é fraco/ E que eu não largo o taco/ Nem pra conversar com você/ Mas fica”.ix O fato é que do conjunto de seus personagens conseguimos perceber a preocupação central com a temporalidade, vivida, suposta e imposta pela cotidianidade. Neste sentido, Lorenzo Mammi fez uma interessante observação: “toda a obra de Chico Buarque parece se estruturar entre esses dois tempos, um circular e obsessivo, outro cumulativo, que gera tensão crescente até um ápice que é ponto de volta ou de repouso”.x Ora, Chico também se identificava com tais angústias, citava paralelos com seus personagens, sua persona. Como se pode perceber em artigo de 1965, publicado no Diário da Noite: Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 179 Priscila Gomes Correa Nem sei se vou ser músico. Sei que toco. E a canção é tudo. „Pedro pedreiro‟ chegou esperando. [...] Eu também espero. Não sei o que, mas espero. Talvez um trem. O sonho, ou o Carnaval. A festa, a sorte. Ou, como Pedro, espero alguma coisa mais linda que o mundo, maior do que o mar. Não vou sonhar demais. Dá um desespero sonhar demais. Quero ser o Chico Buarque, nada mais, sem ficar esperando, xi esperando, esperando... Neste sentido, poderíamos citar uma série de exemplos presentes em seus dois primeiros LPs. Por exemplo, A Televisão, em que à reflexão sobre o cotidiano urbano é acoplada a crítica ao processo de expansão da indústria da cultura e seu principal recurso naquele momento, a televisão. As consequências do intenso processo de industrialização e massificação surgem na canção de um ponto de vista negativo, visto que estaria sobrepujando modos e vivências da cultura popular. Não só substituindo a festa popular, como também imobilizando o povo que humildemente abdica da confraternização popular ao aceitar passivamente a informação televisiva. Reproduzindo, assim, uma atitude de inércia não só frente a cotidianidade, como também em relação a festa. Em suma, a norma, a eficácia, a repetição, a disciplina e a obrigação, eis um tal cotidiano, que prescinde do lazer, da festa, ou que mesmo esta normatiza. A experiência do cotidiano passa a ser frequentemente associada à rotina e à exploração do trabalho. A opressão do cotidiano, que, na verdade, é uma opressão gerada por uma estrutura social específica, é traduzida em cotidianidade, aparecendo na espera do trem, nas filas, vilas, favelas. É nesse diaa-dia que aflora a sensibilidade para um tempo imposto, ou para um tempo livre esvaziado de sentido, pois que orientado e vigiado. Um cotidiano, ainda que equivocado, começa a se definir pela sensibilidade, como tantos artistas cantam, pintam e escrevem, pois, a arte, como as canções de Chico Buarque, já aponta a situação e, dentro dela, a saída. 180 ISSN 1414-9109 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque Esse desassossego que habita o fazer artístico, remete, portanto, ao fato básico para um encontro com a festa, a consciência de que “a vida cotidiana não está „fora da história‟, mas no centro do acontecer xii histórico; é a verdadeira essência da substância social”. De acordo com Agnes Heller, o artista se converte, em suas fases produtivas, em representante do gênero humano, aparecendo como protagonista do processo histórico global, mas “toda obra significativa volta à cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros”. xiii Por isso, não é difícil entender a relevância atribuída ao artista popular, como arauto de tantas vivências. Notas e referências i ii iii iv v vi vii viii ix Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade do Estado da Bahia. Contato: [email protected] LEFEBVRE, Henry. A Vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991. HOLLANDA, Chico Buarque. Chico Buarque de Hollanda Vol. 3. RGE, CD, (2001), 1968. CY, Quarteto em. Quarteto em Cy: Chico em Cy. Cia Industrial de Discos, CD, 1991. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: O tempo redescoberto. São Paulo, Editora Globo, 2004, p.152 BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1994, p.37 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.99 HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque de Hollanda. RGE, CD, (2001), 1966 SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo, Ed UNESP, 2001 HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque de Hollanda Vol. 2. RGE, CD, (2001), 1967 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 181 Priscila Gomes Correa x xi xii xiii 182 In ZAPPA, Regina. Cancioneiro Chico Buarque. Rio de Janeiro, Jobim Music, 3v, 2008, p.20 In ZAPPA, Regina. Cancioneiro Chico Buarque. Rio de Janeiro, Jobim Music, 3v, 2008, p.65. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo, Paz e Terra, 2008, p.34 HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo, Paz e Terra, 2008, p.43. ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: mercado e tradição (1980-2011) Sarah Teixeira Soutto Mayor Introdução Este artigo é fruto da dissertação de mestrado intitulada “O carnaval de Ouro Preto: mercado e tradição (1980-2011)”, que teve como objetivo principal compreender as recentes transformações do carnaval da cidade de Ouro Preto (MG), com especial atenção às relações construídas entre mercado e tradição i. Acompanhando um processo que se desenrolou em grande parte do país no final do século XX, a cidade de Ouro Preto vislumbrou uma grande e rápida transformação do seu carnaval, relacionada a um conjunto de fatores interligados e inseridos dentro de um contexto de progressivo reconhecimento da festa carnavalesca como um dos principais símbolos do país e, em contrapartida, do seu valor no crescente mercado do lazer e do entretenimento. O mais importante a ser constatado no processo de transformação do carnaval ouro-pretano não é a presença das iniciativas mercadológicas em si, fato bastante comum em várias cidades do Brasil e que, provavelmente, tenha se iniciado em período anterior, atendendo a especificidades e expectativas diferentes, pautadas por momentos históricos distintos. O que, de fato, fez com que a cidade se tornasse objeto desta pesquisa foi a relação estabelecida entre as diversas investidas mercadológicas/midiáticas e a ideia de tradição remetida à cidade e às suas manifestações, em 183 Sarah Teixeira Soutto Mayor especial, o carnaval. Nesse caso, a evocação a um passado remoto, abarcada por esta ideia, foi amplamente valorizada e veiculada à medida que as novidades, fundadas cada vez mais em um esquema “global” de festa carnavalesca, emergiam, enquanto as próprias manifestações tidas como tradicionais, declinavam frente aos novos interesses e às novas necessidades. Para pensar estas relações torna-se importante considerar o valor que o signo da tradição possui em Ouro Preto. Cidade histórica do interior de Minas Gerais, guarda importantes relações com o período colonial mineiro e com os movimentos de independência do país. Duarte (2009, p.9) ii considera a cidade de Ouro Preto uma “das maiores riquezas da história brasileira e um dos mais importantes acervos barrocos do mundo.” Com sua raiz no ciclo do ouro, o maior reconhecimento da importância da preservação de sua história veio com a elevação à Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1980. Nesta cidade, onde ruas e casarões ainda remetem ao século XVIII, o passado não é apenas um motivo de preservação, é um símbolo, uma especificidade que destaca Ouro Preto no cenário mundial e que se torna motivo de orgulho aos seus moradores. Esta forte relação com o passado contribui para que a ideia de tradição seja amplamente valorizada e incorporada a tudo o que se produz na cidade, incluindo o seu carnaval, uma de suas principais manifestações festivas. Remonta ao período de predominância do entrudoiii na capital mineira e em várias regiões do país. Silva (1969) iv relata tentativas de proibição deste festejo já nos anos de 1734 e 1735. Considerando que o surgimento da cidade remonta ao ano de 1698, tem-se uma noção da longevidade desta prática na cultura ouro-pretana. A noção de antiguidade das manifestações desempenhou, assim, um forte papel nas investidas mercadológicas/midiáticas em prol da promoção da festa ouro-pretana, demonstrado nas diversas 184 ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) reportagens e demais recursos jornalísticos coletados e analisados durante os trinta anos abarcados pela pesquisa. O jornal foi escolhido como fonte principal pensando nas incontáveis possibilidades que o estudo de suas produções, bem como de seu contexto de veiculação e disseminação de informações, poderia propiciar para o entendimento das transformações da festa. Foram analisados o Estado de Minas e O Liberal. O primeiro foi escolhido por ser considerado o jornal de maior representatividade no cenário mineiro na temporalidade proposta pela pesquisa; já o segundo, por se constituir como principal veículo de comunicação da cidade de Ouro Preto em sua história recente. Ambos possuem exemplares que abarcam, em conjunto, toda a temporalidade desse estudo. Quaisquer possibilidades de reportagens, de textos e de informações diversas foram selecionadas, observando-se variadas formas de apresentação e inserção nos jornais, como notícias, crônicas, colunas de opinião, notas informativas, propagandas, entre outros. Nos diferentes recursos jornalísticos, foram observados vários fatores, como a sua disposição no conjunto do jornal e da página onde se inseriam, a presença de fotos, as manchetes e o conteúdo geral de cada material selecionado. As décadas de 1980 e 1990: “carnaval, agora, mais do nunca, é um ato público altamente válido para promover as cidades” v No início da década de 1980 o carnaval ouro-pretano se caracterizou como uma festa essencialmente de rua. Duas eram as suas principais manifestações: o bloco Zé Pereira dos Lacaios e as escolas de samba, reunindo moradores e turistas na principal praça da cidade, a Tiradentes. Com pouca preocupação em relação à rigidez de um tempo cronometrado e a uma programação pré-estabelecida, desfilavam nas noites de carnaval. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 185 Sarah Teixeira Soutto Mayor O bloco Zé Pereira remonta ao período de predomínio do entrudo no Brasil e é considerado, nas diversas fontes consultadas, como o mais antigo bloco em atividade no país. Criado em 1867, ainda hoje conserva algumas de suas características originais, como os bonecões gigantes, os lampadários e os tocadores de bumbo, marcando, ao som da percussão, a sua passagem pelas ladeiras da cidade. Já as escolas surgiram em Ouro Preto na década de 1950. Embora com algumas similitudes com um modelo espetacularizado que já se observava no Rio de Janeiro, como a necessidade de eleição de uma vencedora e a premiação em dinheiro, as escolas ouro-pretanas ainda se caracterizavam por certa espontaneidade no início dos anos 1980, com a população acompanhando os desfiles gratuitamente na Praça Tiradentes. A festa ouro-pretana, neste momento, era pequena, contava com pouca participação de turistas e possuía um caráter mais local. O carnaval de Ouro Preto não vigorava entre as principais cidades mineiras destacadas nos jornais e a frequência de reportagens, assim como a ênfase na abordagem desta festa, era bem pouco expressiva em relação a outros locais, como São João Del Rei e Juiz de Fora. A cidade também não se destacava entre os destinos mais procurados pelos turistas. Porém, ainda no início da década, comerciantes locais manifestaram o desejo de que a festa fosse deslocada da Praça Tiradentes para as principais ruas comerciais da cidade, a Direita e a São José, com a justificativa do “resgate” das manifestações que ali aconteciam em outros carnavais. A São José foi mencionada como o “antigo quartel-general dos foliões do século passado” vi. No entanto, o saudosismo não pode ser desconectado de outros interesses. O deslocamento da centralidade do carnaval para as ruas citadas possibilitaria não apenas a vivência das manifestações naqueles lugares, mas também, o deslocamento do público para as portas dos comerciantes. 186 ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) Concomitante às reivindicações, não atendidas plenamente, foi criada em 1982, a “janela elétrica”, uma inovação no carnaval da cidade que, até então, concentrava-se nos desfiles de blocos, nas escolas e em bailes populares. A janela consistia na instalação de caixas de som nas janelas e na sacada de um dos estabelecimentos comerciais da Rua São José. Com uma clara menção aos trios elétricos baianos, foi responsável em levar a Ouro Preto os grandes sucessos do axé music de Salvador, contribuindo para tornar as ruas comerciais, os novos redutos da folia ouro-pretana. Neste momento, observava-se o início de uma mudança referente não apenas aos espaços da festa, que se descentralizou, mas à suas manifestações, aos investimentos públicos e privados e à sua divulgação pelos impressos. Em 1984 já era possível perceber a grande mudança de enfoque no carnaval de Ouro Preto nas publicações do Estado de Minas. De pequenas notícias do início da década de 1980 para grandes manchetes e reportagens com expressivo número de fotos e com conteúdo mais elaborado, em que já era perceptível o aumento do número de turistas, o esgotamento de vagas na rede hoteleira, a crescente preocupação com a organização e estruturação da festa e a sua promoção. Nesse ano, algumas importantes iniciativas, ainda não percebidas nos anos anteriores, foram bastante ressaltadas, como a realização da abertura da festa em dos maiores hotéis da cidade, a participação de empresas privadas como patrocinadoras ou apoiadoras do carnaval, a divulgação do mesmo pela Prefeitura em eventos específicos, bem como, o anúncio do expressivo aumento da verba destinada à realização da festa: Logo mais, no hotel Estrada Real, do empresário Carvalho, o coquetel de abertura do carnaval deste ano, iniciativa do citado empreendimento e da Prefeitura. Foram convidados empresários, agentes de viagens, políticos, autoridades e jornalistas, pois é desejo do hotel e da municipalidade dar nova dimensão ao carnaval, bem Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 187 Sarah Teixeira Soutto Mayor como, outras promoções que a histórica e turística cidade comporta. Taí uma deliberação digna de aplausos, pois, até então, nada praticamente se fazia para ativar o sistema promocional da cidade, ficando naquela de esperar ou confiando demasiadamente no seu potencial. Hoje em dia existe concorrência, oferecimento e tudo mais para se buscar os turistas, exigindo-se, portanto, projetos nesse vii sentido . A combinação dos fatores citados pode ser considerada um importante marco para pensar as transformações do carnaval ouropretano, haja vista a constatação de certa regularidade na divulgação da festa em anos anteriores, com o foco nas escolas e blocos e com as vivências acontecendo especialmente, na Praça Tiradentes. Do mesmo modo, nenhuma menção a patrocínios ou políticas de divulgação da festa havia sido veiculada anteriormente. As reivindicações dos comerciantes locais a favor do deslocamento da festa contribuiu para retirada da centralidade das escolas e dos blocos, principalmente o Zé Pereira. A criação da janela elétrica reforçou este aspecto, contribuindo, também, para a incorporação de uma nova forma de brincar o carnaval, levando a Ouro Preto a moda da festa baiana em ascensão naquele momento. Ficaram claras as intenções por trás do considerável aumento dos investimentos públicos e privados na festa, com a veiculação explícita da necessidade de se promover a festa. As mudanças iniciadas nos anos 1980 chegaram com força total na década seguinte. Os anos 1990 vislumbraram o auge da janela elétrica, com a música baiana tornando-se uma marca do carnaval ouro-pretano. Nesse momento, a festa já era veiculada como a principal do estado mineiro e uma das mais importantes do interior brasileiro. Os investimentos privados tornaram-se comuns, com o aumento significativo do número de empresas, como demonstrado na seguinte reportagem: 188 ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) O carnaval 97 deverá ser promovido em Ouro Preto sob o patrocínio de um pool de empresas (destacando-se Samarco, Alcan, Vale do Rio Doce, Brahma e Sesc). Com a participação empresarial que garanta os recursos, a alegria espontânea dos foliões poderá voltar a ser a grande energia na propulsão de um grande carnaval com sabor local viii [...] . No entanto, a principal mudança viria com a alteração das possibilidades de participação na festa que, até meados da primeira década dos anos 2000, acontecia de forma prioritariamente gratuita, nas ruas da cidade, mesmo considerando uma participação já mediada pelos interesses mercadológicos abordados anteriormente. A criação do Espaço Folia: “tá se vendendo um carnaval que não de Ouro Preto mais” ix Em 2006, dado o grande crescimento da festa ouro-pretana e o reconhecimento do seu valor de mercado aliado ao aumento da veiculação midiática, foi criado o Espaço Folia. Com um misto das influências da janela elétrica e do sucesso que o carnaval das repúblicas estudantis alcançava nesta década, um espaço que servia de estacionamento do Centro de Convenções da cidade foi fechado para abrigar shows de bandas de renome nacional no período do carnaval. Com a entrada paga e simbolizada pelo uso do abadá, o Espaço Folia inaugurou um momento importante para a festa, ao delimitar outras formas de participação e pertencimento ao carnaval. Idealizado pela prefeitura, contou com o apoio dos moradores das inúmeras repúblicas estudantis de Ouro Preto, que passaram a realizar a concentração de seus blocos também neste espaço, no mesmo esquema de utilização do abadá. Neste momento, o carnaval produzido pelas repúblicas alcançava grande expressão na cidade. A grande representatividade que já possuíam como um dos símbolos Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 189 Sarah Teixeira Soutto Mayor de Ouro Preto aliou-se à supervalorização de estilos de festejar relacionados a uma cultura jovem, a exemplo do sucesso das músicas baianas possibilitadas pela janela elétrica e à própria constatação do poder lucrativo que a festa ouro-pretana evidenciava nas últimas décadas do século XX. Com um explícito apelo comercial, as repúblicas passaram a vender a participação nos seus blocos que, como às demais manifestações anteriores, também aconteciam nas ruas da cidade com a participação gratuita dos foliões. Assim, o Espaço Folia contribuiu para que o Ouro Preto se consolidasse no circuito nacional de festas carnavalescas, alcançando, nos anos finais desta pesquisa, enorme projeção midiática. O carnaval possibilitado por este espaço em quase nada se diferenciava dos grandes eventos da moda, destinados ao público jovem, que se espalhavam pelo país, como o Axé Brasil, realizado anualmente em Belo Horizonte. Desta forma, percebeu-se a progressiva construção de uma festa com características globais, criada por meio de signos consumíveis por um público cada vez mais crescente. Em meio a essas transformações, inúmeras foram as campanhas promocionais dedicadas a tornar Ouro Preto um destino turístico no carnaval. Porém, o que mais chamou a atenção foram os estratégicos apelos de uma publicidade preocupada em, ano após ano, consolidar a festa como uma das principais do Brasil, ressaltando a sua especificidade. Por exemplo, no ano de 2002 foi noticiada a inserção de Ouro Preto a uma proposta da Secretaria de Estado de Turismo chamada Minas Folia, que tinha o objetivo de “resgatar o autêntico carnaval mineiro” x. Em 2009, Ouro Preto também passou a integrar o projeto “Carnaval das Cidades Históricas”, do Governo de Minas, com o intuito de divulgar o evento nas cidades de Ouro Preto, Mariana e São João Del Rey nos moldes “tradicionais” xi. 190 ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) Diante de tantos outros carnavais espalhados pelo país, algo precisava tornar a significação global, impressa nas manifestações festivas ouro-pretanas por meio dos grandes eventos, um pouco mais específica para pontuar diferenciais daquela cidade, justificando, assim, a sua divulgação como algo especial. Neste caso, a venda da inovação, assim como a sua aceitação, precisava se aliar a símbolos do passado, capazes de conferir uma ideia de originalidade e autenticidade e, ao mesmo tempo, permitir a possibilidade de participação em algo exclusivo, que só existe naquele lugar. A tradição, assim, tornava-se também um produto diferenciado, o valor simbólico de uma materialidade que era, na verdade, efêmera, criada por meio dos símbolos de uma moda reciclável. O reconhecimento de que o carnaval de Ouro Preto precisava aliar as novidades ao passado histórico, fez com que a ideia de tradição ocupasse um lugar de destaque na veiculação da festa, mesmo quando totalmente desconectada dos objetivos e do formato que o carnaval já adquiria nos anos 2000. Como exemplo, um integrante de uma das escolas de samba da cidade, já bastante enfraquecidas naquele momento, fez a seguinte denúncia no jornal O Liberal, no ano de 2009: tá se vendendo um carnaval que não é de Ouro Preto mais. O carnaval de hoje é o da república e do abadá, sendo “em mais de 70% badalação, abadá e barulho”. Quem chega de fora, não encontra xii “esse carnaval tradicional que está sendo anunciado na mídia” Segundo o entrevistado, apesar das iniciativas de promover o carnaval tradicional por meio do projeto do Governo do Estado voltado às cidades históricas, “o axé, funk, rock ou sertanejo continuariam sendo os grandes destaques durante os cinco dias de festa” xiii. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 191 Sarah Teixeira Soutto Mayor Da mesma forma, o bloco Zé Pereira dos Lacaios, em meio aos abadás, aos shows fechados, aos grandes sucessos do axé e do funk que vigoravam naquele momento, foi amplamente veiculado como legitima expressão do carnaval ouro-pretano. A divulgação de sua existência centenária e de seu desfile pelas ruas da cidade, não raro, remetia ao entrudo do século XIX e a outras formas de participação popular, já quase inexistentes naquele momento. Em 2011, o carnaval foi, assim, anunciado: “No ano em que são comemorados os 300 anos da criação de Vila Rica, a folia em 1 Ouro Preto faz jus à memória e à tradição dos antigos carnavais” . A imagem promocional da festa retratava os personagens do Zé Pereira nas ruas, junto a outras manifestações da cultura ouro-pretana. Nesse ano, a Praça Tiradentes foi decorada com os bonecos do bloco centenário, porém em meio a um grande palanque e aos mesmos estilos de shows do Espaço Folia, desconectados do que acontecia naquele espaço na maior parte do tempo. O “real” carnaval, indiscutivelmente lucrativo, era, na verdade, outro, mas presente na mesma moldura barroca. A grande menção ao Zé Pereira contrastava também com a pouca importância dada a sua passagem nas ruas da cidade, denunciada inúmeras vezes por ouro-pretanos que temiam o encerramento: “Abadás para todos os bolsos e gostos. Mc‟s para lá. „Bundinha‟ para cá. E a gente fica pensando até quando ainda existirá o Zé Pereira [...]” xiv. A contínua menção ao passado servia, assim, para veicular uma noção de legitimidade daquela festa, como se fosse possível estabelecer uma relação de continuidade entre as vivências do século XIX e as que se faziam presentes no final do século XX e início do século XXI. Um fato importante a ser destacado é que a menção ao passado quase nunca era datada, o que contribui para o 1 TUPINAMBÁS, Glória. Bandalheira nas ladeiras. Estado de Minas, Belo Horizonte, 06 mar. 2011. Especial, p.6. 192 ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) estabelecimento desta noção de um passado remoto, romântico, idealizado e, ao mesmo tempo, intocável. A tradição, vinculada a uma ideia de antiguidade longínqua, tornou-se assim, o principal produto vendido no carnaval ouropretano, servindo aos mais diversos interesses. A realização desta pesquisa evidenciou as ambiguidades de seu uso, pautadas na distinção de uma festa que se pretendia veicular como única e legítima, com base em suas especificidades históricas, e como diferencial de um carnaval que precisava se destacar no cenário nacional. Como observam Hall; Tucker (2004) xv, a criação de um destino turístico envolve dar lugar ao desenvolvimento de uma representação deste destino dentro de um contexto de consumo e de produção de lugares, incorporados no sistema de capital global. Os autores ajudam a pensar a importância da veiculação de discursos sobre o passado histórico da cidade de Ouro Preto, ao afirmarem que as representações criadas passam a ser vendidas mais do que qualquer outro produto regional. Considerações finais As décadas estudadas (1980-2011) podem ser consideradas marcos importantes para compreender as transformações da festa ouropretana, haja vista a multiplicidade de fatores que, em um período tão curto de tempo, visaram a sua transformação e a sua incorporação ao cenário carnavalesco nacional. Por meio da pesquisa, pode-se inferir que o sucesso alcançado por este processo foi facilitado, em grande medida, pela incorporação da ideia de tradição às novidades que emergiam, pautadas, sobremaneira, pelas iniciativas mercadológicas que surgiram na década de 1980 e que se consolidaram nos anos 1990 e na primeira década dos anos 2000. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 193 Sarah Teixeira Soutto Mayor Para Canclini (2008) xvi, a referência à tradição pode ser um esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora, em relação à qual deveríamos atuar hoje, um referente histórico e um recurso simbólico contemporâneo, que possa estabelecer, assim, uma conexão com o passado. No caso da pesquisa, pôde-se perceber a tradição como uma ideia fundada em uma produção discursiva que, na sua aparente imutabilidade e por seu valor conferido a um passado intangível, transformou-se para atender a diversos interesses. O trabalho demonstrou, assim, a necessidade de desnaturalizar a ideia de tradição, compreendendo seu caráter construído e teatralizado (CANCLINI, 2008) xvii, apontando duas funções principais: elo com o passado, já que diante das transformações que visavam promover o carnaval e torná-lo um atrativo turístico com signos globais, a recorrência à tradição conferia legitimidade histórica; valor aos novos produtos criados, pois o novo formato da festa precisava se diferenciar no mercado em que se inseriu, servindo a ideia de tradição como uma qualidade, um símbolo de status. Pode-se concluir que a ideia de tradição foi essencial para as mudanças percebidas no carnaval da cidade, justamente (e, paradoxalmente) pela imutabilidade conferida ao passado e por certo consenso de que tradição não se discute. Notas e referências Mestre em Lazer pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista CAPES, orientada pelo Professor Doutor Victor Andrade de Melo. Contato: [email protected] i 194 Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Victor Andrade de Melo (UFMG/UFRJ) e financiado pela CAPES (2010-2012). ISSN 1414-9109 O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) ii DUARTE, Antônia Reis. Desenvolvimento do turismo cultural da cidade histórica de Ouro Preto (Minas Gerais – Brasil), Patrimônio da Humanidade. 2010. Tese (Doutorado em Geografia). Universidad de Las Palmas de Gran Canaria . Las Palmas de Gran Canaria. iii Segundo Araújo (2008), o entrudo pode ser considerado a primeira manifestação carnavalesca no Brasil. O seu significado seria “entrada” e uma hipótese de sua criação é que estaria ligado a festejos portugueses como forma de comemoração do início da primavera, antes do Cristianismo. Com o tempo, foi incorporado ao calendário cristão, atendendo aos próprios interesses da igreja, e recebeu uma data fixa, passando a designar os dias de despedida da carne e o início do período quaresmal. Uma das brincadeiras comuns, nesse momento, consistia em jogar água e farinha nas pessoas que passavam nas ruas, incrementada no século XIX pelos limões de cheiro. O entrudo, considerado por muitos o precursor do que chamamos hoje de carnaval, era, na verdade, uma manifestação diferente, embora com princípios comuns pautados pela característica do “carnavalesco”, descrita por Bakhtin (2008, p.9) como uma paródia da vida ordinária e uma “lógica original das coisas ao avesso”. Ambas as manifestações, assim, coincidiram no tempo, passaram a ser comemoradas em um mesmo período do ano e se misturaram em alguns momentos históricos com interesses diversos. iv SILVA, Henrique Barbosa da. Ouro Prêto. Belo Horizonte, 1969. v NETO, Nicolau. Sociedade do interior. Estado de Minas. Estado de Minas, Belo Horizonte, 08 mar. 1981. 15.340, Primeiro caderno, 1981. vi OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas, Belo Horizonte. Carnaval em Ouro Preto. 15.327, Caderno Turismo, p.1 vii NETO, Nicolau. Sociedade do interior: Ouro Preto. Estado de Minas, Belo Horizonte, 18 fev. 1984. 16.141, Primeiro caderno, p.12. viii TRÁFEGO em Ouro Preto durante o carnaval. O Liberal, Ouro Preto, 27 jan. a 02 fev. 1997. 284, p.8. ix CARNAVAL 2009 de Ouro Preto „será embalado pelo axé e funk‟. O Liberal, Ouro Preto, 16 fev. a 22 fev. 2009. p.11. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 195 Sarah Teixeira Soutto Mayor x MINAS folia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 20 jan. 2002. Caderno Gerais, p.24. xi SECRETARIA de Cultura e Turismo de Ouro Preto faz balanço positivo do carnaval 2009. O Liberal, Ouro Preto, 02 mar. a 08 mar. 2009, p.7. xii CARNAVAL 2009 de Ouro Preto „será embalado pelo axé e funk‟. O Liberal, Ouro Preto, 16 fev. a 22 fev. 2009. p.11. xiii Idem. xiv MEDEIROS, Neto. Geléia Real. O Liberal, Ouro Preto, 02 mar. a 08 mar. 2009. p. 9. xv HALL, Michael, TUCKER, Hazel. Tourism and postcolonialism: an introduction. In: _______ (orgs). Tourism and postcolonialism: contested discourses, identities and representations. Nova Iorque: Routledge, 2004. xvi CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. xvii Idem. 196 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós Welinton Serafim da Silva Membro do IHGB, e celebre estadista do Império, Eusébio de Queirós faleceu no Rio de Janeiro em 1868. E, conforme previa os estatutos da instituição encarregada de tecer a teia da história nacional, à memória do finado conselheiro foi oferecido um elogio fúnebre, declamado pelo orador oficial, à época, o romancista Joaquim Manoel de Macedo. De sua transcrição, na revista do instituto, é possível extrair uma singular representação acerca de Eusébio de Queirós; um relato dos anos que antecederam a sua morte, pouco difundida e em muito dissonante da memória construída ainda no século XIX: Os habitantes desta capital viam as vezes um homem que vagaroso passava apoiado em braço amigo; não era velho, e seus passos dúbios se arrastavam, seus olhos tinham perdido o brilho antigo, em seu rosto estampavam-se dor e a paciência, em seus lábios triste sorriso, sorriso irmão de lagrimas alguém acaso perguntava: “Quem é?...” Todos respondiam compungidos: Euzebio em ruínas. i No necrológio, o orador acrescenta à imagem paradigmática construída acerca de Eusébio de Queirós, a figura de um homem desprovido de suas capacidades, condenado às dores de uma enfermidade que havia lhe paralisado o corpo, e o destituído do sentido imputado a sua vida: a de servidor dos interesses da nação. 197 Welinton Serafim da Silva Em Macedo, a narrativa dos últimos anos do “ilustre cidadão” se contrapõe a enumeração dos feitos pródigos de um hábil e estimado magistrado, político e gestor, que obtivera na tribuna parlamentar memoráveis triunfos em virtude de uma oratória privilegiada. A passagem reproduzida acima, obscurecida pelo tempo, é bastante sugestiva quanto às vicissitudes e pluralidades do processo de construção identitária no âmbito do discurso biográfico. Neste sentido, acreditamos que a busca pelos contornos pelos quais Eusébio de Queirós foi representado em vida, e na morte, pode permitir a compreensão das concepções ideológicas e dos modos políticos empregados no Brasil no século XIX, como também das características normativas dos relatos biográficos oitocentistas. Para esses propósitos, comecemos nossa abordagem pelo fim, comecemos pelas ruínas: “Mal terrível cahira como um raio sobre o ilustre varão: profunda enfermidade que punha ruína a sua organização manifestou-se ainda mais cruel na paralysia mais ou menos completa da língua.”ii A queda de Eusébio de Queirós, exprimidas nas últimas páginas do necrológio, é marcada, sobretudo, pela perda da principal faculdade atribuída a sua figura, a fala. Segundo Macedo, Eusébio fora: “orador doutrinário, de palavra fácil e amena, de dialectica cerrada, moderada ainda nas mais fervorosas discussões, sempre cortez na forma, sempre vigoroso na matéria possuindo condão apreciável”iii. De maneira geral, podemos afirmar que o necrológio suscita uma interpretação marcada pela não correspondência entre memórias sobre um mesmo sujeito; ele marca uma contraposição que engendra a existência de dois Eusébio de Queirós: um, ativo, projetado pela palavra; o outro, passivo, recolhido pelo silêncio imposto pela sua doença. Essa disjunção parece ser um importante recurso retórico. A realização de uma dicotomia entre o “ilustre varão”, atuante até 1863, e a desolada figura descrita para o período compreendido 198 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós entre 1863-1868, aparece como artifício para resgatar e fixar uma imagem que a memória, então recente, negava; em seus últimos anos, o político teria sido apenas uma sombra pálida daquilo que fora um dia; a viva lembrança não fazia justiça à memória que deveria ser legada à posteridade. O necrológio estabelece essa distância, daí a importância da dúvida, enunciada pela sentença: “Quem é?”. Essa perda da notabilidade, pela indeterminação da identidade, e posteriormente pela construção de uma nova –“Eusébio em ruínas” – tem como finalidade destacar o oposto: o Eusébio monumento, cujo fomento podemos perceber no esboço biográfico publicado na Galeria dos Brasileiros Ilustres de Sébastien Sisson. Síntese da produção de uma multiplicidade de autores, a Galeria de Sisson teria o intuito de constituir um panteão nacional, tendo como elemento de uniformidade a premissa da representação do homem público em seu perfil virtuoso, coadunando representações litográficas e biográficas em nome do soerguimento dos ideais defendidos pelo governo imperial brasileiro.iv As proposições presentes na introduçãov da obra já explicitam as escolhas dos objetos e os graus de entonação que pesariam sobre o conjunto descritivo. Os biografados seriam os estadistas, diplomatas, sábios, poetas e artistas que tivessem relação com o ideal civilizatório e com a marcha para o progresso. Esses personagens mereceriam os louros da glória porque, embora a história apontasse o caminho da civilização, o percurso até ela não seria uma certeza; a posição de destaque no rumo dos acontecimentos políticos – responsabilidade que estava depositada sobre seus ombros –, poderia levar a gloria, mas também culminar na decadência de uma nação. Por isso sua ação triunfante exigia a gratidão nacional, então, convertida em monumento de papel pela Galeria dos Brasileiros Ilustres. O estabelecimento do marco inicial na independência do Brasil, segundo consta na introdução, tinha como causa dois fatores: Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 199 Welinton Serafim da Silva primeiro, a dificuldade em estabelecer uma obra que abarcasse do descobrimento à época da produção, “dilatando-se pelo espaço imenso de mais de três séculos”; o segundo aspecto é igualmente importante: a Galeria dos Brasileiros Ilustres não é uma produção meramente biográfica, e como litografia, ela acrescenta à descrição, as gravuras dos “ilustres varões”, a fim de transmitir-lhes vivacidade, recurso que muitos dos finados do Brasil colonial não poderiam fornecer. Quanto aos intuitos da Galeria, sua finalidade pedagógica era clara: legar a posteridade o caráter exemplar daquelas vidas, tanto daqueles que já haviam se tornado sombras ilustres a serem seguidas, como daqueles que ainda vivos, fossem capazes de aconselhar os jovens sobre os caminhos e descaminhos do progresso, da civilização, e da ordem monárquica. A narrativa biográfica dos “ilustres” vivos teria duas importantes limitações: o olhar ao “lar doméstico” – ao “proceder particular” –, pois “não pertence ao escritor a vida íntima do cidadão somente à tradição cabe revelar esses detalhes para completar o caráter dos homens celebres”vi; e o juízo contemporâneo, pois só a posteridade caberia conceder a justa fama. A missão da Galeria dos Brasileiros Ilustres, nesse sentido, seria apenas a de fixar os traços públicos dos heróis para as futuras gerações, fomentando uma identidade do biografado alinhado aos interesses da nação. A reprodutibilidade e longevidade da narrativa produzida na obra acerca de Eusébio de Queirósvii são, de fato, marcantes. Nenhum ensaio biográfico anterior é mais conhecido, e nem foi tão repetido. Publicado em 1859, ano em que Eusébio completou 47 anos de vida, e 27 anos de carreira no serviço público, o ensaio biográfico fixa a contemporaneidade do estadista a partir da sua gestão no ministério da Justiça (1848-1852) e prossegue com o exercício da “vida parlamentar”, sendo esta possivelmente posterior ao ministério, posto que os fatos desenvolvidos em seu exercício 200 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós seriam “muito recentes e públicos”, sendo então relegados na rememoração. A organização, e exposição, dos acontecimentos distantes e de domínio de poucos sugere a orientação a nortear a construção do monumento: uma biografia que procura esboçar ao menos quarenta anos de vida, dedica metade de suas linhas ao cargo de chefe de polícia (1833-1844). O cânone estabelecido por Sisson consiste em uma narrativa que abrange da carreira do pai à sua atuação no senado. Para um melhor entendimento, é interessante discorrer rapidamente sobre seus pontos principais. Em síntese: o estadista nascera no exterior em virtude dos serviços do pai, sendo o terceiro em ordem, e o primeiro, dentre cinco filhos, a resistir aos “efeitos deletérios da África”. Em sua formação educacional, uma laureada trajetória: estudo das primeiras letras aos seis anos; latim aos dez, sob a tutela do padre Francisco do Rego Barros; filosofia racional e moral, grego e retórica no Seminário de São José, entre quatorze e quinze anos, agora orientado pelos padres mestres Fr. Peres e Fr. Custodio Faria; o título de bacharel viria da recém inaugurada faculdade de Direito de Olinda, chegando Eusébio à instituição acompanhado do desembargador Lourenço José Ribeiro. É possivel apontar a preocupação em demonstrar que a sua trajetória se deu em um meio de indivíduos também virtuosos. No seminário, o reconhecimento viria pelo professor Fr. Custódio de Faria e por seus pares, que teriam proclamado que a ele os prêmios eram merecidos. Na faculdade de Direito o mesmo teria se repetido: Tinha acabado de fazer 15 anos, teve por condiscípulos homens feitos e alguns dos que mais se têm distinguido. Entretanto coubelhe a honra de ser premiado com o atual bispo do Rio de Janeiro, o Sr. Conde de Irajá, que já era sacerdote e lente de teologia moral no seminário de Olinda. Foi premiado ou proposto a prêmio em todos os viii quatro anos desse curso em que houvera prêmios. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 201 Welinton Serafim da Silva Grande entre os grandes, Eusébio teria todas as virtudes para despontar no cenário nacional e receber sobre os ombros responsabilidades que a juventude convencionalmente negava, daí a exclamação: “foi nomeado juiz do crime do bairro do Sacramento nesta corte, lugar que começou a servir como juiz de fora no dia 24 de novembro de 1832. Ia fazer 20 anos em 27 de dezembro!”ix (grifo meu). Em Sisson, Queirós é um jovem prodígio, e herdeiro de uma tradição de distanciamento das questões políticas, o que teria lhe imposto amplos desafios em uma “época melindrosa”. As páginas dedicadas a polícia da Corte, são, talvez, as de maior apropriação na historiografia sobre Eusébio de Queirós. x O seu grau de responsabilidade sobre as feições que a polícia teria adquirido é um dos paradigmas da historiografia sobre o período; nesta perspectiva, a Eusébio teria cabido a função de conformar as especificidades do cargo de chefe de polícia, ampliando suas atribuições e superando as deficiências do Código Criminal (1830), marcada por uma conduta eficiente em seus propósitos, e prestigiada no círculo político. Na descrição de sua atuação frente à instiuição, podemos ver a preocupação em classificá-lo como um sujeito idôneo. Entre a rápida narrativa de sua ação em diversos outros cargos, e uma detida reflexão de sua gestão à frente da polícia da Corte, o grau de sua inserção com os assuntos políticos é utilizada para balizar as suas ações. Para retirar a nódoa de sua trajetória uma suposta negligência diante dos distúrbios da Sociedade Militar de 1833, considerada de motivação partidária -, a sua “nulidade em política” o isentava de responsabilidade; já posteriormente, quando partícipe do jogo político, o elogio dos contrários seria a prova de sua retidão nos negócios do Estado.xi Os termos em que se apresenta o esboço biográfico de Eusébio de Queirós na Galeria dos Brasileiros Ilustres, e a sua prevalescência como discurso oficial sobre a vida do estadista, enseja uma série de comparações com o necrológio dedicado à sua 202 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós memória, onde a disjunção entre as imagens ativas e passivas do biografado são marcantes, como já salientado. E, embora ambicionassem legar lições de vida ao futuro da nação, enquanto genêro discursivo, o elogio fúnebre guarda consideráveis diferenças em relação à biografia. Discutindo os termos da oração fúnebre ateniense, Nicole Lorauxxii demonstrou a necessidade de se perceber como o elogio fúnebre é pautado em uma específica relação entre o tempo vivido e a temporalidade da comemoração (cerimônia); a peculariedade da solenidade que insere o tempo presente em uma tradição. Neste sentido, em termos de forma, na oração fúnebre a narrativa é atravessada por uma dupla relação temporal, a do orador, circunscrito à contemporaneidade, e a de um tropos discursivo, de profundidade histórica. A tradição, que respaldava os discursos fúnebres constituídos no interior do IHGB, não apenas transmitia a forma, como também delimitava seu conteúdo. Os pontos que diferenciavam o gênero epidítico em questão, da biografia, foi talhada pelo próprio Joaquim Manoel de Macedo em um discurso de 1863: O elogio acadêmico de um finado não pode ser uma biografia escrita com toda severidade dos preceitos da história, porque nesta deve somente falar a justiça e naquela podem desafogar-se a estima e a saudade; em uma a imparcialidade setencia, na outra a gratidão paga xiii tributo. Se ambos os gêneros primavam pela perpetuação de uma memória pautada nos serviços prestados à nação, no necrológio abria-se espaços para os afetos; e eles estiveram presentes na oração fúnebre prestada a Eusébio de Queirós: Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 203 Welinton Serafim da Silva Julgue de seus acertos ou de seus erros a posteridade; pela nossa parte somos duas vezes suspeito: havia vinte anos que eramos seus adversários políticos, havia dezoito annos que eramos seu estimado amigo. O adversário não pode julgá-lo: o amigo se xiv lembrará d’elle sempre com saudade. Percebem-se, então, propósitos distintos entre biografar um indivíduo, e lhe prestar um elogio fúnebre nas concepções dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em “O Culto aos mortos no século XIX: os necrológios”,xv Nanci Leonzo aborda estes aspectos, e indica como premente: “a preocupação com reabilitação da memória do falecido”, que teria como diretrizes, a ilustração do caráter e a refutação das supostas acusações. No caso de Eusébio de Queirós, Macedo volta ao episódio de 1833 na tentativa de remover qualquer mácula de sua trajetória. O orador ressalta a honradez da palavra de Queirós, e a persistência da calúnia, sugerindo um método interessante para evitar problemas semelhantes: não ser apenas ator, mas também autor, e um autor de si, resguardando a própria memória com a prática da escrita. Joaquim Manoel de Macedo acreditava na função de juiz exercido pela posteridade, mas suspeitava de suas fontes de informação. Se suas vidas eram páginas constantemente assimiladas pelo livro da história da nação, convinha ao “ilustre” oferecer uma versão da sua trajetória à historiografia, como uma garantia diante da certeza da finitude da vida: “podeis advogar a própria causa diante dos futuros historiadores; escrevei e deixai memórias: ellas aproveitarão à pátria e a nos mesmos.” xvi A posteridade aparece, então, na perspectiva do século XIX, como um ente responsável pelo parecer justo e desapegado sobre um indivíduo, afastado das turbulências políticas caras à contemporaneidade do biografado. Em “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade”,xvii temos uma análise aprofundada das interdições da posteridade à emissão de um parecer justo a uma trajetória de vida. A partir de uma 204 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós pesquisa da seção “Biografias de Brasileiros Distintos por Letras, Armas, virtudes, etc.”, da Revista do IHGB, Maria da Glória de Oliveira buscou entender como o gênero biográfico se articulava ao projeto político da instituição. A autora problematizou a questão de o ímpeto memorialista das produções biográficas serem respaldados por específicos estatutos de verdade e de imparcialidade, relacionados à passagem do tempo, conforme a concepção do século XIX. Utilizando o escopo teórico de Reinhart Koselleck,xviii Maria da Glória de Oliveira asseverou que a escrita da história oitocentista seria perpassada pela mudança de entendimento sobre o significado da história, saindo dos relatos particulares para uma perspectiva de representação de um tempo coletivo singular, dotado de um sentido progressivo. Entrementes, a autora sugere que no Brasil, a alteração não teria correspondido a dissolução do tropos da História Magistra Vitae, e que, antes, teria engendrado uma concepção em que a ideia de uma ordenação da história em direção ao futuro – uma aceleração à civilização – se daria pautada na exemplaridade do passado.xix O fazer biográfico, portanto, seria perpassado pelo respaldo na exemplaridade legada pelo passado. É neste contexto que se alinhariam as biografias dos sujeitos considerados ilustres, tomadas como metonímias da biografia da nação; mas a referência ao passado não se daria no sentido de uma repetição, tal qual supunha a História Magistra Vitae, e sim como uma orientação ao exercício e a adoção de práticas e posturas “virtuosas”: É o passado que assim se torna mestre do futuro. São as sombras venerandas de alguns mortos que parecem surgir incessantemente do abismo das sepulturas para mostrar aos vivos a estrada do dever, do patriotismo e da honra, como as nuvens de fumo e de fogo, que dia e xx noite dirigiram o povo escolhido de sua retirada do Egito. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 205 Welinton Serafim da Silva Eusébio de Queirós fora mais ator que autor, e embora conste como relator de leis significativas, não deixou nenhum testemunho vigoroso de si. Restara à sua memória o testemunho de seus contemporaneos sobre seus atos e o julgamento da posteridade. Dos dois relatos aqui analisados percebemos uma interessante interação: o necrológio apontava os sucessos e diminuia sua responsabilidade nos erros, consolidando o canône estabelecido pela Galeria dos Brasileiros Ilustres, e adicionando interessantes metáforas. O que se verifica na homenagem prestada por Joaquim Manoel de Macedo, é que a trajetória heróica do finado não apenas se vincula à história da nação, como estabelece também uma correspodência com outros casos modelares de sagacidade, justiça e coragem. Assim, a junventude que suportara o peso da responsabilidade da magistratura, seria a mesma de Metternick, Louis II de Bourbon-Condé, e do inglês William Pitt, quando estes xxi experimentaram suas maiores conquistas. A perícia na condução da polícia da Corte também suscitava espanto em Macedo: “Euzebio de Queiroz parecia ter dois privilégios: o de não dormir e o de adivinhar: o crime ou era prevenido, ou de prompto seguido e apanhado nos reconditos da mais profunda obscuridade.”xxii Segundo o romancista, a sagacidade de Queirós era equiparável a de Joseph Fouché, considerado por muitos como o principal fomentador do moderno “Estado policial”, constituído em sua experiência de anos à frente da policia francesa durante e após a Revolução iniciada em 1789. Medida à luz de sua utilidade aos propósitos da nação, a trajetória do Eusébio-monumento se encerra no momento em que, devido a doença, necessita se afastar da vida pública. Neste ponto inicia-se uma vida desprovida de sentido: Eusébio de Queirós é relegado “aos martyrios de um longo viver moribundo” xxiii. Em relação a designação de um sentido para a vida, parâmetro mediante a qual é traçado um curso para a trajetória pessoal, é interessante 206 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós percebemos as ponderações de Norbert Elias, pois o autor modifica a maneira como habitualmente compreendemos a concepção de indivíduo, e nos ajuda a enteder a maneira como o formato dos panegíricos e necrologios são importantes para compreendermos as idéias de nação e cidadão no século XIX. Elias asservera que aquilo que chamamos de sentido: “é uma categoria social, [...] o sujeito que lhe corresponde é uma pluralidade de pessoas interconectadas.” xxiv Ao explicitar o caráter social da atribuição de sentido para a vida, Elias tem a intenção de denunciar uma cisão fictícia entre o “self íntimo” e o “mundo externo” em relação a apreensão da experiência de si, e a construção de uma individualidade completamente independente, autocentrada, isolada de uma coletividade; de um “eu enclausurado.”xxv Quando Nobert Elias recoloca o indivíduo em uma coletividade, subordina a essa comunidade a imputação dos sentidos para a vivência, e também torna explícito que esses sentidos são conjugados no interior de um universo comum de signos e simbologias; então, o sentido de vida é sempre constituído por significados partilhados por um grupo específico. Para a nossa análise essa perspectiva é esclarecedora. Antes de tudo, biografia, necrológio, e outros relatos de trajetória vivênciais, tem como premissa uma articulação concatenada de significados à experiência; tem como fundamento a atribuição de uma ordem ou sentido para vida. Esse postulado também está presente nas elaborações biográficas oitocentistas, e no Brasil podemos afirmar que se coaduanava com um ideário que respaldava a formação de uma comunidade nacional. Dentro desta concepção, Temístocle Cezar ressaltou a congruência entre a escrita da história do Brasil e a composição de biografias na organização de “um tempo da nação”. xxvi Podemos inferir que a elaboração de relatos biográficos de brasileiros ilustres no século XIX, com as suas finalidades pedagógicas e portadora de um ideal de nação, dedicadas aos Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 207 Welinton Serafim da Silva futuros gestores, procuravam manter e alargar as fronteiras de significação de uma comunidade em construção; e que tinham o intuito de demonstrar a maneira de como se deveria dedicar a vida para o engradecimento Estado-nacional. Então, a produção de sentido da vida de Eusébio de Queirós nas formulações biográficas aqui analisadas operou pautada em valores cultuados pela comunidade política em que ele se inseriu, e pelas condições normativas que os gêneros discursivos em questão impunham. Já foi salientado nesta digressão, as diferenças nas formas de representação entre o ensaio biográfico (e litográfico) e o elogio fúnebre quanto aos seus objetivos e limitações. Ocorre que essas delimitações significaram também permissões e interdições ditadas - para além dos elementos derivados de projetos políticos e ideologias – por aspectos formais de tradições discursivas. Com esta colocação procuro inserir a análise em uma abordagem similar à empreendida em “O Espaço biográfico” por Leonor Arfuch. Nesta obra, a autora expõe a ideia de se circunscrever os aspectos narrativos da biografia em uma dupla dimensão: a intertextual, e a interdiscursiva, o que, em síntese, traz como consequência, a concepção do biográfico como um procedimento tanto retórico (modelar), quanto interativo (varia em função dos discursos envolvidos), e, portanto, como um artefato inseparável das contingências históricas. Subjazeria desta relação de fatores, a constituição de um “valor biográfico” expresso pelo correlacionamento entre uma ordem narrativa e uma orientação ética, ou seja, o valor corresponderia a uma apreciação histórica e social.xxvii Assim, podemos considerar que o Necrológio concebido por Joaquim Manoel de Macedo e a “Galeria dos Brasileiros Ilustres” de Sisson, foram perpassadas por elementos que delinearam seu conteúdo e definiram a sua forma edificando uma imagem de Eusébio de Queirós segundo critérios de uma época e configuração social específica. Outros elementos, e distintos grupos e lugares sociais, 208 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós propiciariam discursos embasados em outras concepções, em outros valores. Como exemplo temos o caso do próprio Eusébio de Queirós e a ressignifação e profundidade que as leis de limitação e abolição xxviii da escravidão trouxeram para sua memória. Notas e referências Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista CAPES, orientado pela Professora Doutora Márcia de Almeida Gonçalves. Contato: [email protected] i Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. R.I.H.G.B., Rio de Janeiro, Tomo XXXI, 1868. p. 429-435. . ii . Ibid. p. 435. iii Ibid. p. 434. . iv . CEZAR, Temístocles. “Livros de Plutarco: biografia e escrita da historia no Brasil do século XIX”. Métis: Historia & Cultura, Caxias do Sul – RS, 2003, v.2, n.3, p. 85; MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Galeria de Ilustres: Escrita Biográfica e Formação da Nação no Império do Brasil (1840-1860). 2011. In: http://www.snh2011.anpuh.org/ v . SISSON, Sébastien A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. Brasília: Senado Federal, Vol I, 1999. p. 13-16. vi . vii Ibid. p. 15. . viii . Ibid. p. 27-31 Ibid. p. 28. Grifo nosso. ix . Idem. x . Um estudo clássico que reproduz esse discurso é HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. xi . Ibid. p. 31. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 209 Welinton Serafim da Silva xii . LORAUX, Nicole. Invenção de Atenas. São Paulo: Editora 34, 1994. (Coleção Trans) xiii Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1863. R.I.H.G.B., Rio de Janeiro, tomo XXVI, 1963. apud LEONZO, Nanci. “O culto aos mortos no século XIX: os necrológios”. In: MARTINS, José de Souza (org.). A morte e os mortos na sociedade na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983. p. 78. . xiv . Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op. Cit. p. 435. Grifo nosso. . LEONZO, Nanci. Op. Cit. p. 76-84. xv xvi Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op. Cit. p. 433 . xvii . OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade biografia, memória e experiência da história no Brasil oitocentista”. Varia Historia, Belo Horizonte, 2010, v. 26, nº 43, p.283298. xviii . Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. xix . OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. Cit. p. 289. xx . Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1861. R.I.H.G.B. Rio de Janeiro, Tomo XXIV, 1861. apud LEONZO, Nanci. Op. Cit. p. 77. xxi . Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op. Cit. p. 431- 433. xxii . Ibid. p. 433. Para uma versão da maneira como funcionava o sistema de informação de Eusébio ver CHALHOUB, Sidney. “Costumes senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império”. In. AZEVEDO, Elciene; et al. (org.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009. xxiii . Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op. Cit. p. 434. 210 ISSN 1414-9109 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós xxiv xxv . ELIAS, Nobert. A Solidão dos Moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 63. . Idem. xxvi . CEZAR, Temístocles. Op. Cit. p. 75. Cf. também: GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1988, nº 1, p. 5-27. xxvii . ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. Arfuch desdobra o valor do biográfico em heróico, cotidiano, fábula. xxviii . Cf. Para uma impressão de como repercute a Lei do Ventre Livre, por exemplo, confira SANTOS, Prezalindo Lery. O Pantheon fluminense. Esboços biographicos. Rio de Janeiro, Typ. G. Leuzinger & Filhos. 1880. pp. (295-302).; para a abolição, veja a notícia biográfica publicada na edição do jornal do commercio de 25 outubro de 1888. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 211 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram William Geraldo Cavalari Barbosa A ANCINE foi criada a partir da Medida Provisória 2.228-1 de 6 de setembro de 2001, assinada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em fins do seu segundo mandato. A MP foi ápice das discussões que entremearam o meio cinematográfico brasileiro na década de 1990 e em 2000, sobretudo as que resultaram do 3º. Congresso Brasileiro de Cinema. A criação da Agência, como já mencionado anteriormente, foi uma proposição do Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria do Cinema (GEDIC). O GEDIC, formado logo após o fim do 3º. CBC, propôs mudanças significativas na estrutura de concessão de incentivos fiscais, sobretudo no que tange à fiscalização, às taxações e aos encaminhamentos dos projetos apresentados. Essas funções estavam a cargo, até então, da Secretaria do Audiovisual, vinculada ao Ministério da Cultura, acusada pelo meio cinematográfico como ineficiente e com pouco peso institucional. Era necessário um órgão forte que garantisse a sobrevivência da atividade no Brasil. As propostas foram baseadas na situação em que se encontrava o cinema nacional naquele período – de um lado estava o processo de retomada e, de outro, a crise do modelo de captação inaugurado pelas Leis Rouanet e do Audiovisual. No entanto, o histórico de atuação do Estado e os problemas enfrentados pelo Brasil em termos de cinema não foram desprezados, tanto para refutar práticas fracassadas como para restabelecer medidas importantes que, porventura, foram paralisadas. 212 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram Entretanto, um dado merece destaque: o modelo escolhido para o gerenciamento do setor, qual seja o de Agência. No âmbito do governo de Fernando Henrique Cardoso, outras agências foram criadas, como a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Embora elas sejam do mesmo tipo, tais instituições tiveram desdobramentos diferentes, pois, no caso do cinema, não se tratava de um serviço público essencial antes gerido por empresas estatais, então privatizadas, mas uma atividade que se constitui como indústria em processo de desenvolvimento e que tem como um de seus objetivos, o de promover a cultura nacional e a língua portuguesa. Reforça essa constatação o fato de que a Agência é herdeira de um problema que se arrastava por décadas e que incide exatamente na manutenção da atividade cinematográfica do país e no seu fortalecimento, freado pela concorrência internacional e por medidas de “desmantelamento” do arcabouço legal e institucional da cultura e do audiovisual. Nesse sentido, far-se-á nesse momento um percurso histórico através das medidas legais primordiais para este setor em diferentes períodos da História do Brasil. O objetivo é estabelecer um comparativo identificando rupturas e permanências de modelos e formas de intervenção do Estado no audiovisual. Como a Agência Nacional de Cinema se constituiu como uma instituição fomentadora, reguladora e fiscalizadora do setor audiovisual, optou-se pelos dispositivos legais que correspondessem a instituições congêneres. O INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo O Decreto nº. 20.301 de 2 de janeiro de 1946 aprovou o regimento do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Ele havia sido criado em 1936, em meio ao governo de Getúlio Vargas, e expressa a ideia clara de cinema “especialmente como processo auxiliar de ensino e Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 213 William Geraldo Cavalari Barbosa ainda como meio de educação em geral (Art. 1º. do Regimento). Tanto é verdade que o órgão estava vinculado ao Ministério da Educação e Saúde. O INCE era responsável pela edição de filmes educativos, discos para a documentação artística e cultural do país e assistência técnica à iniciativa particular desde que sua produção tenha fins educativos. Para tanto, a própria instituição deveria manter uma filmoteca e publicaria uma revista como forma de dar vazão à sua atividade. O Instituto contava, para manter seu funcionamento, com Serviço de Orientação Educacional, Serviço de Técnica Cinematográfica e Serviço Auxiliar. Na estrutura administrativa, existia um diretor a quem estariam subordinados os chefes dos serviços. Estava prevista a criação, por parte do diretor e aprovada pelo Ministro, de uma Comissão Consultiva “composta por cientistas e artistas de reconhecida autoridade, à qual serão submetidos, sempre que necessários, os projetos dos filmes a serem editados ou os originais concluídos” (Art. 5º. do Regimento). Entre suas competências estava a de estudar os filmes a serem editados, pesquisar a demanda nas escolas, censurar filmes a serem adquiridos pelo Instituto, traduções de artigos especializados, emissão de pareceres, execução dos trabalhos de filmagem, execução das cópias, fazer a manutenção dos aparelhos de propriedade do Instituto, zelar pela conservação dos originais, entre outras. Sua atuação se dava, sobretudo, como fica expresso no Regimento, na produção e no gerenciamento de materiais educativos. O INC – Instituto Nacional de Cinema O INC foi criado em 1966 e teve seu Regulamento aprovado e publicado em 15 de fevereiro de 1967 pelo decreto nº. 60.220. Nesse momento, já existia o Ministério da Educação e Cultura, ao qual o 214 ISSN 1414-9109 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram Instituto estava subordinado. Ele tinha funções mais abrangentes que o INCE, já que suas funções não residiam exclusivamente no aspecto educativo do cinema e muito menos se concentrava na produção direta de filmes, ao contrário, envolvia importação, distribuição, etc. (Art. 1º.). O Regulamento deixa claro que o objetivo é fomentar uma atividade que se alça ao status de industrial. Era preciso formular e executar uma política governamental para o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, inclusive promovendo-a no exterior. Além disso, a regulação da importação de filmes estrangeiros fica ao seu encargo, o que demonstra a preocupação com a concorrência estrangeira. Parece insignificante mencionar a passagem da noção de cinema auxiliar da educação para atividade industrial na década de 1960. Ou mesmo, parece um contrassenso, já que anos antes os grandes estúdios como Cinédia e a Atlântida já viam a produção cinematográfica sob a ótica do audiovisual. Contudo, o que se percebe aqui não é uma mudança na perspectiva no interior da indústria em si, mas, especificamente, uma alteração da interferência governamental nas questões de cinema: de gerenciadora de produções educativas, passou a formular políticas voltadas a uma atividade pretensamente industrial. Essa alteração carrega em si uma série de consequências, entre as quais a conexão do poder público com a iniciativa privada, já que o Estado se associaria aos produtores independentes. Além disso, a interferência em áreas como a da distribuição e a da exibição tem como consequência a ingerência sobre o mercado, o que, por vezes, se faz conflituosamente. Trazer para o âmbito governamental tais questões indica a necessidade de fazer frente aos interesses dos grandes conglomerados internacionais que já nesse momento abarcavam parcela substancial do mercado exibidor no Brasil. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 215 William Geraldo Cavalari Barbosa Além das citadas, outras funções estão previstas no regulamento, tais como: regular condições de locação de filmes estrangeiros; formular política nacional de preços de ingressos; conceder financiamento e prêmios a filmes nacionais, manter um registro de produtores, distribuidores e exibidores e seus estabelecimentos; aprovar a concessão de estímulos a projetos de desenvolvimento da indústria cinematográfica; selecionar filmes para participar de certames internacionais; estabelecer normas de coprodução com outros países; regulamentar a realização de produções estrangeiras no país; fiscalizar o cumprimento de leis e regulamento da atividade; aplicar multas e outras penalidades; e, por último, uma herança do INCE que é produzir e adquirir filmes educativos ou culturais sem finalidade lucrativa. O que pode ser destacado dessa descrição de atividades é a abrangência das ações previstas para o INC, muito maior que o INCE. Este, por sua vez, foi incorporado, segundo o Art. 42 do Regulamento, ao INC juntamente com o Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica, do Ministério da Indústria e Comércio. Pode-se, inclusive, inferir que as duas instituições se diferenciam na sua própria substância, já que a da década de 1930 se voltava a um aspecto do setor, enquanto que o Instituto criado em 1966 tocava diretamente no campo cinematográfico como um todo. A estrutura organizacional do INC revela dois aspectos importantes a considerar. Primeiro, a preocupação em estabelecer um órgão interministerial, o que significava o reconhecimento de que a área do cinema era complexa e abrangia diversos segmentos da economia e da política do país, inclusive relações exteriores. De outro lado, vale ressaltar a falta de representatividade da própria área, já que a instituição, no seu Conselho Deliberativo, não contava com membros da produção, distribuição e exibição, por exemplo. A representatividade dos segmentos da área do cinema se limita ao Conselho Consultivo, composto de representantes dos 216 ISSN 1414-9109 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram produtores, distribuidores, exibidores, crítica e diretores. As suas decisões seriam tomadas sob a forma de indicações ao Conselho Deliberativo. Sua função é, basicamente, elaborar propostas de matérias submetidas ao Conselho Deliberativo, e nas reuniões destes, manifestar-se, facultativamente, sem direito a voto, sobre assuntos que dissessem respeito ao segmento que representavam. Quando se observa o organograma do INC, podemos perceber, além da preocupação com o cinema educativo, o foco no fomento à produção. Sabe-se, no entanto, que um dos grandes problemas do cinema nacional é a capacidade de distribuição, mesmo quando se considera a década em que o regulamento foi formulado. O pouco espaço dado no regulamento i e as omissões sobre critérios e possibilidades de vinculação com empresas estrangeiras são indícios desse aparente “desinteresse” Embora poucos anos depois, em 1969, o INC tenha as suas funções esvaziadas com a criação da EMBRAFILME S. A. e, mais tarde, incorporado a ela, a concepção do Instituto demonstra que, nesse período, houve uma forte inclinação para a capacidade industrial do cinema no Brasil. Além disso, a formação de um conselho interministerial e a abrangência de atuação do órgão são indícios de uma mudança de postura, mesmo que, na prática, as funções não tenham sido totalmente implementadas. A EMBRAFILME S. A. – Empresa Brasileiro de Filmes A EMBRAFILME, sociedade de economia mista de direito privado vinculada ao Ministério da Educação e Cultura, foi criada em 1969, pelo Decreto-Lei nº. 862. O objetivo inicial era difundir a produção nacional. Para tanto foi criada como uma empresa de capital aberto com o foco na lucratividade, dada a capacidade de distribuição, e, como órgão de cooperação do INC, poderia executar Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 217 William Geraldo Cavalari Barbosa atividades de comercialização de filmes, tornando a atividade essencialmente industrial. A EMBRAFILME se caracterizou por iniciar suas atividades já com a previsão de um capital da empresa, além de elencar outras fontes de recursos, inclusive as provenientes da comercialização de películas. O Diretor-Geral, responsável pelo gerenciamento desses recursos e da empresa como um todo teria mandato de quatro anos podendo ser reconduzido e nomeado pelo Presidente da República. Em 1975 as atribuições da empresa se ampliaram, pois pela Lei nº.6.281 de 9 de dezembro de 1975 foi extinto o INC. A maior parte das atribuições do último passaram para a EMBRAFILME. Esse processo de esvaziamento já vinha ocorrendo desde 1969, mas se concretizou nessa data. O parágrafo primeiro do Art. 2º da Lei acrescenta novidades importantes, que vão na contramão da constituição do INC: a participação de três representantes de setores da atividade cinematográfica para integrar o órgão a ser criado juntamente com aqueles indicados pelo Poder Executivo. Quando se observa a Lei que a criou, é possível concluir que o escopo de ações a que Empresa Brasileira de Filmes estava comprometida ia desde as questões de fomento e exibição das produções nacionais até a formação profissional e a pesquisa científica concernente ao cinema. Com o Decreto nº. 77.299, de 16 de março de 1976, foi criado o CONCINE – Conselho Nacional de Cinema, órgão já previsto na Lei que criou a EMBRAFILME. Subordinado diretamente ao Ministro de Estado de Educação e Cultura, ele era de orientação normativa e de fiscalização das atividades relacionadas ao cinema. Entre suas competências estava a formulação de uma política de desenvolvimento do cinema nacional; baixar normas reguladoras de importação e exportação de filmes; formular a política nacional de preços e ingressos; estabelecer normas de coprodução; regular as 218 ISSN 1414-9109 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram condições de realização de produções estrangeiras no país; estabelecer normas de registro de produtores, distribuidores e exibidores, além de laboratórios de som e imagem; fixar o número de dias de exibição obrigatória de filmes nacionais e a exibição compulsória; dispor sobre a forma de concessão pela EMBRAFILME de prêmios e incentivos a filmes brasileiros; conceder o certificado de produto brasileiro; e, por fim, estabelecer normas sobre a contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. Fazia parte de suas competências, ainda, fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos relacionados à cinematografia em território nacional, assim como aplicar multas e sansões, o que poderá ser feito em colaboração com a EMBRAFILME. A estrutura inaugurada pela criação do CONCINE e pela ampliação da atuação da EMBRAFILME denota uma preocupação não só com a produção fílmica, mas a distribuição e a exibição, para que sejam geradas receitas e o cinema brasileiro possa gerar dividendos. Diferentemente do INC, os órgãos, além de representantes dos ministérios, sobretudo o MEC, são compostos por representantes do setor objeto das normatizações legais. Quanto à composição administrativa, inaugura-se, nessa área, a diretoria composta por mais de um membro, com mandatos previstos em lei. Pode-se inferir que uma relativa autonomia é concedida ao setor, a despeito de todas elas terem sido criadas no Regime Militar. É claro que não podemos levar essa autonomização às últimas consequências, já que o foco nas questões culturais, que não era exclusividade do cinema, fazia parte de um projeto político com objetivos bem específicos. A EMBRAFILME passou por uma forte crise na década de 1980 ao que se somou a crise política e financeira do próprio país. A atividade cinematográfica ficou, então, em um rigoroso ostracismo, situação agravada pela dissolução definitiva da empresa em 1990, durante o governo Collor. O cinema só terá um breve fôlego com Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 219 William Geraldo Cavalari Barbosa a promulgação das leis Rouanet e do Audiovisual, em 1991 e 1993 respectivamente. A ANCINE – Agência Nacional de Cinema Enfim chega-se à Medida Provisória 2.228-1 que criou a Agência Nacional de Cinema – ANCINE, publicada em 6 de setembro de 2001, durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, resultado dos estudos do GEDIC. Além da criação da Agência, a MP 2.228-1/01 (ANEXO C) criou o Conselho Superior de Cinema, instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (PRODECINE), autorizou a criação dos FUNCINES – Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional, além de alterar as regras para a cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE). A MP sofreu sucessivas alterações e inclusões, sobretudo em 2006, com a Lei nº. 11.437, que altera, entre outras coisas, a destinação de recursos provenientes de projetos não executados ou arrecadações da própria ANCINE para o Fundo Nacional da Cultura (FNC), alocado em uma categoria específica denominada Fundo Setorial do Audiovisual. Além das definições setoriais das quais o Capítulo I da MP trata, o Capítulo II estabelece princípios gerais da política nacional de cinema: promoção da cultura nacional e da língua portuguesa mediante estímulo a indústria cinematográfica e ao audiovisual nacional; garantia da presença do produto brasileiro nos diversos segmentos de mercado; programação e distribuição de obras audiovisuais nos meios eletrônicos de comunicação de massa; e respeito ao direito autoral. Embora, à primeira vista, pareça não haver muita novidade nos itens da política nacional de cinema, duas coisas chamam a atenção. A primeira delas refere-se a menção, no inciso I do Art. 2º., à indústria 220 ISSN 1414-9109 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram cinematográfica e audiovisual nacional. O que pode ser considerado uma repetição guarda um significado profundo: a alteração da perspectiva empregada no tratamento do setor no país. Em outras palavras, não havia como dissociar a produção de cinema dos outros segmentos do mercado audiovisual – como confirma o inciso II do mesmo artigo, ao estabelecer a garantia da presença de obras cinematográficas e videofonográficas nacionais nos diversos segmentos de mercado – quando se pretende construir uma indústria autossustentável, que precisa variar suas fontes de recursos. A segunda questão a ser destacada é a menção, no inciso III, dos diversos meios de comunicação de massa, o que ampliaria o campo de atuação das distribuidoras, abrindo um amplo canal de escoamento da produção cinematográfica nacional. Em suma, a diferença marcante dessa política de cinema que está posta na legislação é a preocupação com o mercado, mais especificamente, com a presença do nacional no mercado exibidor, seja ele salas de cinema propriamente ditas, festivais nacionais e internacionais, vídeo, meio digital ou TV. Tal ênfase denota a necessidade de se pensar um cinema que se pague, efetivamente, no curso de algumas décadas. No capítulo que versa sobre o Conselho Superior de Cinema, órgão integrante da Casa Civil da Presidência da República, formado pelos ministros de Estado da Justiça, Relações Exteriores, Fazenda, Cultura, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e pela própria Casa Civil, além de representantes da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional, fica claro que entre as suas competências está a aprovação de políticas e diretrizes visando a autossustentabilidade do setor. O Capítulo IV, que cria a ANCINE, agência de fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográficaii, reforça essa inclinação para a diversificação do mercado. O inciso III do Art. 6º. expressa o objetivo de aumentar a competitividade da indústria de cinema por meio do fomento não só à Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 221 William Geraldo Cavalari Barbosa produção, mas à distribuição e à exibição. O seguinte propõe a sustentabilidade associada ao aumento da produção e da exibição. Embora a insistência no aspecto mercadológico e a autossustentabilidade sejam temáticas recorrentes nos objetivos da Agência, os incisos citados resumem de maneira contundente o conteúdo principal da política a ser implantada: a competitividade e a autossustentabilidade propiciadas por uma política pública efetiva encampada por um órgão de atuação ampla, responsável pela articulação das diversas variáveis que compõem o ramo da produção fílmica no Brasil e no exterior e seus canais de distribuição e exibição. O rol de competências da ANCINE é bastante amplo, mas podemos destacar algumas de suas principais atribuições que se relacionam a três aspectos primordiais: regulação, fiscalização e fomento. É de responsabilidade dela fiscalizar o cumprimento da legislação, aplicar multas e sanções, regular as atividades de fomento, coordenar atividades e ações governamentais referentes à indústria cinematográfica e videofonográfica, articular-se com os órgão competentes do entes federados para a execução de suas atividades finalísticas, gerir programas e mecanismos de fomento, estabelecer critérios para a aplicação de recursos de fomento e financiamento do setor, aprovar e controlar projetos de toda ordem referentes ao cinema nacionaliii feitos com recursos públicos e incentivos fiscais, além de gerir um sistema de informações para o monitoramento das atividades da indústria cinematográfica e videofonográfica no que diz respeito à produção, distribuição, exibição e difusão. A própria estrutura da diretoria denota uma preocupação com a continuidade das políticas, já que o colegiado foi composto por quatro diretores com mandatos não coincidentes, sendo um deles Diretor-Presidente. Vale destacar que a Medida Provisória guarda em si um prognóstico para a autossustentabilidade do cinema nacional já que seu Art. 55º. estabeleceu um prazo de vinte anos, a contar de 2001, 222 ISSN 1414-9109 A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram para a exibição de obras cinematográficas brasileiras por um número de dias fixado por regulamento. Isso nos permite inferir que após esse período não haverá necessidade de estabelecer cotas de tela para o filme brasileiro já que ele será comercialmente viável no mercado exibidor, medida que se estende a empresas de distribuição. No Art. 57º. abriu-se a possibilidade de se estabelecer cotas de veiculação em outros segmentos além do distribuidor e exibidor, como a TV, por exemplo. Embora o assunto seja polêmico, e até mesmo por esse motivo, a MP abre essa possibilidade sem, no entanto, apresentar detalhes. A medida legal ainda autorizou a transferência para a ANCINE dos acervos técnico e patrimonial, além das obrigações e os direitos da Divisão de Registro da Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, ligado ao MinC. Todos os processos, dessa forma, elaborados a partir de mecanismos de incentivos presentes nas Leis Rouanet e do Audiovisual passariam para as mãos da Agência. Mais do que uma política cultural, então, o que se viu na primeira década do século XXI foi a formatação de uma “política pública”iv voltada para o audiovisual. Ela se valeu da constatação de que a produção era uma das etapas, apenas, e que a distribuição e exibição deveriam ser consideradas. Além disso, a concorrência desleal não poderia ser enfrentada apenas pela instituição de cotas de tela, mas pela melhoria na qualidade dos produtos oferecidos, no aprimoramento técnico, na construção de novos espaços de exibição e na restauração dos já existentes. E, por fim, considerando a TV e outras mídias como elementos necessários para se pensar uma indústria autossustentável. Notas e referências Mestre em História. Secretaria Municipal de Educação/ PMCG/ Campo Grande – MS. Contato: [email protected] Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 223 William Geraldo Cavalari Barbosa i A distribuição é tratada no Capítulo IX do Regulamento e fala sobre a contratação de distribuição de filmes nacionais a partir de percentagens máximas fixadas pelo INC e ressalta a necessidade de registro para validação dos contratos. O capítulo é composto de apenas um artigo e dois parágrafos. ii A menção à indústria videofonográfica reforça a ideia de ampliação do mercado exibidor, não limitando-se às salas de exibição. iii Isso significa projetos de co-produção, produção, distribuição, exibição e infra-estrutura técnica. iv “[...] a formulação de uma política pública é a formulação, no caso pelo governo federal, de uma série de decisões articuladas e fundamentadas que se transformam em programas e práticas institucionais [...]” (FALCÃO, 1984, p. 24). 224 ISSN 1414-9109 Resumos | Abstracts O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e Machado de Assis Alexandre Raicevich de Medeiros Resumo: Nessa comunicação que é segmento de uma pesquisa em andamento sobre a sociabilidade musical no Rio de Janeiro do fim do século XIX, pretendemos discutir como as trajetórias do pianista português Arthur Napoleão (1843-1925) e do escritor Machado de Assis (1839-1908), se entrecruzaram devido a existência de pontos em comum, como a paixão pela música, o xadrez, e a poesia; e vieram a criar um profundo sentimento de afeto e admiração entre essas duas importantes personalidades da história sociocultural carioca. Palavras-chave: Sociabilidade, Personalidades, Cultura. Abstract: In this communication, which is a segment of the ongoing research on the musical sociability in Rio de Janeiro in the late 19th century, we intend to discuss how the trajectories of the Portuguese pianist Arthur Napoleon (1843-1925) and the writer Machado de Assis (1839-1908), if got due to the existence of points in common, such as the passion for music, chess, and poetry; and later came to create a deep sense of affection and admiration between these two important personalities of socio-cultural history. Keywords: Sociability, Personalities, Culture. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 225 Resumos | Abstracts Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura em Maurice Blanchot Aline Magalhães Pinto Resumo: O artigo propõe uma análise do ensaio La Littérature et Le droit à la mort de Maurice Blanchot. Imerso num cenário em que definir a posição da literatura e das artes é uma questão de importância política, Blanchot lança, a partir de uma interpretação sobre a ação revolucionária e sobre a filosofia hegeliana, uma maneira de compreender a tradição literária da Alta modernidade. Palavras-chave: Maurice Blanchot, Teoria e crítica literária, Pósguerra francês. Abstract: The article proposes an analysis of the critical essay La Littérature et Le droit à la mort de Maurice Blanchot. The French author, immersed in a scenario in which define the position of literature and the arts is a matter of political importance, presents a way of understanding the literary tradition of high modernity based on an interpretation of revolutionary action and the Hegelian philosophy. Keywords: Maurice Blanchot, Literary theory and criticism, Postwar French. 226 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937) Aline Santos Costa Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre a disciplina Literatura Infantil, criada no Instituto de Educação do Distrito Federal, na década de 1930. A criação dessa disciplina está ligada ao processo chamado de 'Escolarização da Literatura Infantil', que no Brasil já ocorria desde o início do século XX. Contudo, foi possível perceber que a criação dessa disciplina faz parte de um projeto mais amplo, implementado pelo movimento da Escola Nova de difusão de uma nova relação com a leitura e com a literatura. Palavras-chaves: Literatura Infantil, Escola Nova, Formação de professores. Abstract: This paper presents a study on the subject Children's Literature, founded the Institute of Education of the Federal District, in the 1930s. The creation of this discipline is linked to the process called 'Schooling of Children's Literature', which has already occurred in Brazil since the early twentieth century. However, it was revealed that the creation of this discipline is part of a larger project, implemented by the New School movement diffusion of a new relationship with reading and of the literature. Keywords: Children's Literature, New School, Teacher. 227 Resumos | Abstracts “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política Amanda Muzzi Gomes Resumo: Neste artigo analisamos O Povo e o Trono, opúsculo publicado por Joaquim Nabuco em 1869 e escrito no final do ano anterior, quando ele participou das reuniões do Centro Liberal, agremiação política criada, entre outros líderes da dissidência progressista, pelo seu pai, o senador e conselheiro Nabuco de Araújo. Defendemos que, apesar de praticamente desprezado pelos seus principais biógrafos e pela historiografia, O povo e o trono foi o texto de iniciação de Nabuco na vida política. Palavras-chave: Joaquim Nabuco, “O povo e o trono”, Brasil Império. Abstract: In this article we analyze “O Povo e o trono”, pamphlet published by Joaquim Nabuco in 1869 and written at previous year. In that time, Nabuco participated in the meetings of Centro Liberal, political association created by his father, Senator and counselor Nabuco de Araújo, and other leaders of progressive dissent. We argue that the text “O povo e o trono”, although virtually ignored by their main biographers and by historiography, was the initiation of Nabuco in political life. Keywords: Joaquim Nabuco, “O povo e o trono”, Brazil Empire. 228 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts Artes Plásticas e Política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960 Andrea Siqueira D’Alessandri Forti Resumo: A pesquisa tem como objetivo analisar as trajetórias, artísticas e políticas, de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro nas décadas de 1960 e 1970, tendo como foco a relação destes artistas plásticos com as esquerdas armadas. Utilizo as categorias de “campo de possibilidades” de Jacques Revel, conceito que indica a historicidade das escolhas individuais, e de “trajetória” tal como é entendida por Pierre Bourdieu, procurando relacionar a trajetória individual com as interações sociais. Palavras-chave: Ditadura militar, Trajetória, Artista plástico. Abstract: The research aims to analyze the political and artistic trajectories of Carlos Zilio, Renato da Silveira and Sérgio Ferro during the sixties and seventies, focusing on the connection between these visual artists and the left-wing politics. I used two categories: “space of possibilities” of Jacques Revel which analyzes the presence of history in individual choices, and “social trajectory” which is understood by Pierre Bourdieu, in order to connect the individual trajectory and the social interaction. Keywords: Military dictatorship, Social trajectory, Visual artist. 229 Resumos | Abstracts Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro do início do oitocentos Camila Borges da Silva Resumo: A indumentária é um importante elemento de entendimento da sociedade. O objetivo do trabalho é analisar como, após a transferência da corte portuguesa para o Brasil, é possível perceber um processo simultâneo de aceleração da temporalidade, através da maior penetração da moda europeia no Rio de Janeiro, e de permanência de um imaginário de Antigo Regime, devido à manutenção de práticas indumentárias como uniformes e ordens honoríficas. Palavras-chave: Moda, Indumentária, Antigo Regime. Abstract: The clothing is an important element for understanding society. The objective of this study is to examine how, after the transfer of the Portuguese Court to Brazil, it is possible to see a simultaneous process of acceleration of the time through the presence of European fashion in Rio de Janeiro, and the maintenance of an imaginary of Old Regime due to clothing practices such as uniforms and honorary orders. Keywords: Fashion, Clothing, Old Regime. 230 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido Desirree dos Reis Santos Resumo: Esta pesquisa insere-se na análise das experiências exilares da segunda metade do século XX, onde ditaduras latino-americanas ocuparam o cenário político e promoveram a saída de milhares de vozes dissidentes. Entendendo o exílio como a possibilidade de mudanças nos projetos políticos e culturais, enfocaremos a trajetória do dramaturgo Augusto Boal nos anos 1970. Para pensar como a condição de exilado influenciou suas propostas de teatro engajado, analisaremos o Teatro do Oprimido (1976), criação resultante das descobertas coletivas durante o exílio. Palavras-chave: Augusto Boal, Exílio, Teatro engajado. Abstract: This research is inserted in the analysis of exile’s experiences in the second half of the twentieth century, when Latin Americans dictatorships have occupied the political scene and promoted the departure of thousands of dissenting voices. Considering the exile as the possibility of changes in political projects and culturals, we will focus on the trajectory of the dramatist Augusto Boal during the 1970s. In order to think how the condition of exile influenced their proposed engaged theater, we will analyze the Theatre of the Oppressed (1976), creation resultant of collectives discoveries during the exile. Keywords: Augusto Boal, Exile, Engaged theater. 231 Resumos | Abstracts Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo Gabriela Piai de Assis Resumo: Este artigo abrange notas iniciais sobre a política indigenista principalmente na Província de São Paulo e suas relações com a escrita da história a partir dos documentos “Notícia Raciocinada sobre as aldêas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até à actualidade”, de José Joaquim Machado de Oliveira, de 1846 e “Memoria sobre cathechese e civilização dos indigenas da provincia de S. Paulo” de Joaquim Antônio Pinto Junior, de 1862. Palavras-chave: Política Indigenista, Diretoria Geral dos Índios de SP, Segundo Reinado. Abstract: The paper encompasses early notes on the indigenist policy especially in the Province of São Paulo and its relationship with the writing of History based on the documents “Notícia Raciocinada sobre as aldêas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até à actualidade”, by José Joaquim Machado de Oliveira, from 1846, and “Memoria sobre cathechese e civilização dos indigenas da provincia de S. Paulo”, by Joaquim Antônio Pinto Junior, from 1862. Keywords: Indigenist Policy, Diretoria Geral dos Índios de SP, Second Reign. 232 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade na Inglaterra setecentista Laila Luna Liano de León Resumo: O trabalho se baseia nas gravuras de William Hogarth com temática moralizante no período de 1720-1764, destacando o seu intuito pedagógico e a discussão dos valores, na Inglaterra setecentista, em pleno desenvolvimento de uma sociedade comercial e do pensamento ilustrado. As “críticas” imagens de Hogarth demonstram um novo código de maneiras e costumes, relacionados às classes médias em ascensão, de polidez, sociabilidade e civilidade, inserido num momento de enorme preocupação com a corrupção tanto do governo quanto da sociedade. Palavras-chave: Inglaterra, William Hogarth, Moralidade. Abstract: The paper is based on the engravings of William Hogarth with a moralizing theme published between 1720-1764, highlighting his pedagogical purpose and the discussion of values at eighteenth century England, in full development of a commercial society and enlightened thought. The “critical” images of Hogarth show a new code of manners and costumes, related to the arising middle classes, of politeness, sociability and civility, at a time of great concern with corruption both in government and in society. Keywords: England, William Hogarth, Morality. 233 Resumos | Abstracts Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império português O caso emblemático de Araribóia Marcello Felipe Duarte Resumo: O enobrecimento das lideranças indígenas na América portuguesa, viabilizado pelo requerimento de mercês régias, configurou-se como uma estratégia importante no processo de consolidação do domínio português no ultramar, principalmente, nos dois primeiros séculos de nossa colonização. É a partir desse contexto histórico que procuramos pôr em relevo a trajetória de Arariboia, posteriormente batizado com o nome cristão de Martim Afonso de Souza, líder indígena, que se aliou aos portugueses na luta contra franceses e tamoios pela conquista da Guanabara. Palavras-chave: Lideranças indígenas, Mercês régias, Araribóia. Abstract: The ennoblement of indigenous leaders in Portuguese America, made possible by the application of royal favors, configured as an important strategy in the process of consolidation of the Portuguese domain overseas, mainly in the first two centuries of our colonization. It is from this historical context that we will highlight the trajectory of Arariboia, later baptized with the christian name Martim Afonso de Souza, indigenous leader, who has joined the portugueses in the fight against the french and tamoios, in the conquest of Guanabara. Keywords: Indigenous leaders, Royal favors, Araribóia. 234 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888) Maristela Santana Resumo: No Brasil Império, ao Promotor Público fora atribuída a função de “fiscal da lei”. No contexto da promulgação da “Lei do Ventre Livre” (1871), encontramos nos atos normativos que disciplinam e conferem aplicabilidade à mesma, referências ao promotor como um dos agentes públicos responsáveis pelo cumprimento de determinados direitos de escravos, libertandos e libertos. Nessa perspectiva, defendemos que a Lei constitui o marco da atuação do Ministério Público brasileiro na área cível, até então com atribuições restritas à área penal. Palavras-chave: Brasil Império, Justiça, Lei do Ventre Livre. Abstract: In Brazil Empire, to the Public Attorney was assigned the role of "law supervisor". In the context of the promulgation of the "Law of the Free Womb" (1871), we find in the normative acts that discipline and confer applicability of the same, references to the Public Attorney as one of the officials responsible for compliance with some rights of slaves, freed men and slaves in the emancipation process. In this perspective, we argue that the Act is the landmark work of Brazilian Public Ministry in the civil area, until then with powers restricted to the area of criminal law. Keywords: Brazil Empire, Justice, Law of the Free Womb. 235 Resumos | Abstracts Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque Priscila Gomes Correa Resumo: Na obra de Chico Buarque é constante a referencia ao samba como instrumento basilar para a instauração do tempo da festa/carnaval, que surge como o extraordinário do cotidiano; a festa se defronta com um cotidiano maçante, aparecendo como foco de esperança. A abordagem da canção Olê Olá permitirá a identificação das principais referencias que nortearam a reflexão do artista sobre o tempo/lugar da festa na sociedade contemporânea, apontando para um debate mais amplo sobre o potencial transformador da música. Palavras-chave: Festa, Cotidiano, Chico Buarque. Abstract: In the work of Chico Buarque it is constant the references to samba as a basic tool for establishing the time of the feast / carnival, which appears as the extraordinary of daily life, the feast faces a dull routine, appearing as a beacon of hope. The approach of the song Olê Olá will allow identifying the major references that guided the artist's reflection on the time / place of the feast in contemporary society, pointing to a broader debate about the transformative potential of music. Keywords: Feast, Daily Life, Chico Buarque. 236 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011) Sarah Teixeira Soutto Mayor Resumo: Este artigo objetiva analisar as principais transformações do carnaval de Ouro Preto (MG), entre os anos de 1980 e 2011, relacionadas ao mercado e à ideia de tradição. Por meio da análise de jornais, conclui-se que o discurso da tradição serviu como elo entre um passado global que se consolidava na festa e a história que a legitimava, sendo essencial para as mudanças observadas, justamente pela imutabilidade conferida ao passado e por certo consenso de que tradição não se discute. Palavras-chave: Carnaval, Mercado, Tradição. Abstract: This article pretends to analyze the main changes of Ouro Preto’s (MG) carnival, between the years 1980 and 2011, related to the market and the idea of tradition. Through the analysis of newspapers, concluded that the discourse of tradition served as a link between a past that was consolidated in the global celebration and the history that legitimized and is essential for the changes observed, the immutability just conferred the past and a certain consensus that tradition is not discussed. Keywords: Carnival, Market, Tradition. 237 Resumos | Abstracts O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de Eusébio de Queirós Welinton Serafim da Silva Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos normativos dos relatos biográficos oitocentistas, buscando entender sua relevância e especificidade na construção da memória do estadista Eusébio de Queirós Coutinho Mattoso Camara. Como fontes, utilizaremos dois relatos biográficos sobre a personagem em questão: um fragmento da Galeria dos Brasileiros Ilustres, organizada por Sébastien Sisson, e o necrológio de Queirós, composto por Joaquim Manoel de Macedo na função de orador oficial do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Palavras-chave: Eusébio de Queirós, Biografia, Século XIX. Abstract: This article aims to analyze some normative aspects of biographical accounts nineteenth century, seeking to understand their relevance and specificity in the construction of memory the statesman Eusébio de Queiros Coutinho Mattoso Camara. As sources, we use two biographical accounts about the character in question: a fragment of the Galeria dos Brasileiros Ilustres, organized by Sébastien Sisson, and the necrologio of Queiroz, composed by Joaquim Manoel de Macedo as valedictorian of the Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Keywords: Eusébio de Queiros, Biography, Nineteenth Century. 238 ISSN 1414-9109 Resumos e abstracts A Criação da Ancine e as Instituições de Cinema no Brasil a partir das legislações que as criaram William Geraldo Cavalari Barbosa Resumo: O cinema nacional, com poucas exceções, ao longo do século XX, se tornou possível graças aos incentivos governamentais e as legislações que deram origem a estes. Além disso, algumas dessas leis foram responsáveis pela criação de instituições governamentais que geriram a indústria cinematográfica do país. A mais recente é a ANCINE – Agência Nacional de Cinema. O objetivo deste trabalho é analisar o processo de criação dessa agência a partir da legislação, comparando-a com outras instituições de cinema do passado. Palavras-chave: Indústria Cinematográfica, ANCINE, Regulação. Abstract: The national cinema, with few exceptions, throughout the twentieth century, became possible thanks to government incentives and legislation that gave rise to these. Moreover, some of these laws were responsible for the creation of government institutions that managed the country's film industry. The latest is the ANCINE – Agência Nacional de Cinema. The objective of this paper is to analyze the process of creating this agency from the legislation, comparing it to other institutions of cinema past. Keywords: Film Industry, ANCINE, Regulation. 239 Normas editoriais 1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pós-graduados que tenham sido aceitos, apresentados e entregues de acordo com as regras estipuladas pela Semana de História Política da UERJ. 2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a Semana de História Política, onde os contemplados terão seus textos publicados na Revista Dia-Logos. Os trabalhos serão apreciados por dois pareceristas, que poderão solicitar modificações nos artigos aceitos. Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão encaminhados a um terceiro parecerista. Será garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação dos artigos. O Conselho Editorial compromete a não enviar artigos de orientandos para orientadores e direcionar os artigos de acordo com a especialidade do parecerista. 3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para o e-mail da Semana de História Política divulgado no endereço eletrônico www.semanahistoriauerj.net, no qual deve conter título do trabalho, nome completo do autor, títulação, vínculo institucional, identificação do orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para correspondência. Também deve ser enviado duas cópias impressas em papel que não exibirão os dados de identificação do autor, para o endereço: Semana de História Política, Programa de PósGraduação em História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar, bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 20550-900. 4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas, digitados na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e margens de 2,5cm. As notas devem ser colocadas, numeradas, no final do texto. O arquivo deverá ser enviado no formato word. A revista não publica bibliografias. 5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em português e inglês), com no máximo oitenta palavras e três palavras-chave (em português e em inglês). Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição esta deverá ser mencionada. Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 240 Resumos e abstracts 6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar tabulação a 3,5cm da margem esquerdas, corpo 10, espaço simples. As citações com menos de três linhas deverão estar incorporadas, com aspas, ao texto. 7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a seguinte apresentação: 7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. 7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do livro”. In: Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. 7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do periódico em itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00, ano, p. 8. O número de artigos em cada edição será definido pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial de acordo com a disponibilidade de verbas. 9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos autorais sobre os originais publicados são automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma autorizada a republicá-la em diferentes mídias. 10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do número da revista com o seu artigo. 11. Um mesmo autor não consecutivas da revista. poderá publicar em duas edições 12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos. 13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos que não se adequarem às normas de publicação, incluindo os artigos cujos autores não se apresentaram na Semana de História Política (proponente de comunicação faltoso). 241 ISSN 1414-9109