ISSN 2175-8255 TRANSFORMAR Revista do Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) Novembro – 2008 FUNDAÇÃO EDUCACIONAL E CULTURAL SÃO JOSÉ Faculdades Integradas Padre Humberto – EAP – CenPE Transformar Itaperuna n. 5 Pág. 1-142 2008 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. A Transformar é publicada anualmente pelo Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) e pelas Faculdades Integradas Padre Humberto da Fundação Educacional e Cultural São José. © Copyright: Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) Esta revista ou parte dela não pode ser reproduzida por qualquer meio sem autorização por escrito do Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) Distribuição Fundação Educacional e Cultural São José Rua Major Porphírio Henriques, 41 – Centro Itaperuna – RJ – CEP: 28.300-000 Tel: (22) 3824-8181- Fax (22) 3824-3202 CenPE @fsj.edu.br Editores Juçara Gonçalves Lima Bedim Leandro Garcia Pinho Lucia Alvim Couto Ficha catalográfica _____________________________________________________________________________________ TRANSFORMAR – Revista do Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) / Fundação Educacional e Cultural São José – Faculdades Integradas Padre Humberto. - - v. 5, jan./dez. 2008 - - - Itaperuna, RJ: Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE), 2008, www.fsj.edu.br. ISSN 2175-8255 Ciência-Periódicos. 2. Conhecimento-Periódicos. 3. Pesquisa – Periódicos. 4. Extensão - Periódicos _____________________________________________________________________________________ Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 2 PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL E CULTURAL SÃO JOSÉ José Carlos Mendes Martins FACULDADES INTEGRADAS PADRE HUMBERTO DIRETORA Suely de Paula Coutinho VICE-DIRETOR Leandro Garcia Pinho SECRETÁRIO José Maria Cardozo CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA TRANSFORMAR Profª Drª Speranza França da Mata (UFRJ) Prof. Dr. Mário Eduardo Toscano Martelotta (UFRJ) Profª. Drª Maria Moura Cezário (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA DA REVISTA TRANSFORMAR Juçara Gonçalves Lima Bedim Leandro Garcia Pinho Lucia Alvim Couto REVISÃO TEXTUAL DESTE NÚMERO Dulce Helena Pontes-Ribeiro Juçara Gonçalves Lima Bedim Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 3 Seções Sumário 6 Apresentação Da construção do conceito à formalização: operações matemáticas sem traumas, com apoio de tecnologias educacionais 10 Natercia de Souza Lima Bukowitz 9 Educação 24 Lingüística e Literatura 94 Política e Sociedade O Tempo (cronos) e os tempos verbais 25 Dulce Helena Pontes-Ribeiro O ensino de Língua Portuguesa e as concepções de Linguagem Eliana Crispim França Luquetti 36 Modo de Comunicação Gramaticalizado e Aquisião de L2: associações 39 Roberto de Freitas Junior Maria Maura da Conceição Cezario Crônica: nos limites da Literatura Lenise Ribeiro Dutra 52 Imprensa, memória e variação lingüística: uma leitura diacrônica no Monitor Campista 61 Carla Cardoso Silva “O Corvo” de Poe visita o Brasil: a tradução criativa e genial de Machado de Assis 74 Ana Lúcia Lima da Costa O Auto da Compadecida: uma Rosa no Sertão de Guel Arraes 87 Eusébio Dornelles Mimetismo: uma tática de sobrevivência adolescente? 95 Francineide Silva Sales Parceiros no olhar sobre a memória do Exército Brasileiro 104 Rogério Ribeiro Fernandes e José Francisco Melo Laurindo Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 4 Propaganda Nazista: Análise de discurso de cartaz do Projeto Aktion T4 112 Marcos José Vieira Curvello Ética jornalística: entre a evocação e a conciliação de interesses 121 Jacqueline da Silva Deolindo Imprensa e discurso político: o caso do Jornal Brasil Novo, em Itaperuna, e o Golpe de 1937 132 Jacqueline da Silva Deolindo Emerson Tinoco Normas para publicação Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 140 5 Apresentação A preocupação com a divulgação democrática do saber deve ser premissa fundamental para o universo acadêmico. É neste intuito que o presente número da Transformar inaugura uma nova etapa de uma iniciativa iniciada no ano de 2003. Com a publicação de quatro números de nossa Revista, passamos agora com este para nossa quinta tentativa de contribuição com a produção do conhecimento acadêmico-científico que tem por base o Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) da Fundação Educacional e Cultural São José (FSJ). A chegada dessa nova iniciativa, qual seja, a divulgação em meio eletrônico da Transformar, vem no sentido de propagar com o mesmo crivo e preocupação editoriais os resultados de trabalhos de pesquisadores das Faculdades Integradas Padre Humberto (FIPH) mantidas pela FSJ e de diferentes instituições de Ensino Superior de todo o Brasil. Por meio desta nova proposta almeja-se levar o conhecimento aqui selecionado a um público cada vez maior, oportunizando a muitos, através da internet, o acesso irrestrito ao conhecimento veiculado pela Transformar. Mantendo uma estrutura organizacional semelhante aos números anteriores, o presente número da Transformar inicia-se com a seção Educação. Nesta, o artigo de Natercia de Souza Lima Bukowitz discute aspectos acerca “Da construção do conceito à formalização: operações matemáticas sem traumas”. A idéia da autora é propor oficinas na formação inicial e continuada de professores objetivando atender à demanda dos docentes das séries iniciais do Ensino Fundamental e dos cursos de formação de professores, no que se refere às estratégias didáticas que favoreçam a construção de conceitos necessários à aquisição das técnicas das operações fundamentais da matemática. A segunda seção, Lingüística e Literatura, abre-se com o texto “O Tempo (cronos) e os tempos verbais”, de Dulce Helena Pontes-Ribeiro. Sua idéia é apresentar uma interpretação semântica dos tempos verbais, restritos ao modo indicativo, com foco na situação do presente. Sua proposta envolve, dentre outros aspectos, a reflexão sobre os tempos verbais como uma das vias de redirecionamento de análises e interpretações de textos, até mesmo para se reavaliar a própria tipologia do discurso. Roberto de Freitas Junior e Maria Maura da Conceição Cezario são autores do segundo texto desta seção. Discutindo o “Modo de Comunicação Gramaticalizado e Aquisição de L2” em suas associações, os autores apresentam a relação existente entre modos de comunicação, com base na concepção da lingüística funcionalista, e aquisição de L2. “O Ensino de Língua Portuguesa e as concepções de Linguagem” é o título do artigo de Eliana Crispim França Luquetti. Neste texto, a autora, motivada por suas observações em prática da sala de aula, discute a relação entre o ensino de Língua Portuguesa e as concepções de linguagem. Lenise Ribeiro Dutra reitera a importância da análise sobre a crônica em seus limites com a literatura, no terceiro artigo da seção Lingüística e Literatura. Em sua perspectiva, pode-se perceber a presença significativa da crônica na literatura brasileira, observando-se suas origens, a relevância que o gênero assume na imprensa, a posição da crítica literária em Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 6 relação ao texto cronístico e a verificação da presença da expressividade poética num texto considerado, por muitos, apenas de caráter jornalístico. “Imprensa, memória e variação lingüística: uma leitura diacrônica no Monitor Campista” é o título do estudo de Carla Cardoso Silva. Tendo como fonte de pesquisa recortes de textos do jornal Monitor Campista, terceiro mais antigo em funcionamento no país – quinto, neste patamar, na América Latina – que, com 173 anos de existência, desde 1936 pertence ao grupo dos Diários Associados, a autora analisa comparativamente as reportagens do referido jornal, evidenciando algumas das variações que assumiu a língua portuguesa, em sua versão escrita, ao longo de mais de um século e meio. Em seu texto “O Corvo de Poe visita o Brasil: a tradução criativa e genial de Machado de Assis”, Ana Lúcia Lima da Costa observa a tradução criativa que o genial escritor brasileiro Machado de Assis fez da poesia O Corvo, de Edgar Alan Poe, tratando-a com a reverência que um texto canônico como o de Poe merece, mas sem servilismo. Preocupada em perceber o Machado tradutor, a autora discute a relação entre tradução e processos criativos como prática fecunda capaz de possível revelação de talentos nacionais. A obra de Guel Arraes, versão cinematográfica de “O Auto da Compadecida” é foco de análise de Eusébio Dornellas, tendo por objetivo refletir sobre a intertextualidade no filme em questão, ao inserir em um novo contexto a obra do escritor Ariano Suassuna. A terceira e última seção, Política e Sociedade, é aberta pelo instigante texto “Mimetismo: uma tática de sobrevivência adolescente?” de autoria de Francineide Silva Sales. Por um trabalho campo original, a autora identifica aspectos que envolvem a relação entre adolescentes cariocas e o consumo no processo de construção da imagem que têm de si. O segundo texto dessa seção traz a assinatura de Rogério Ribeiro Fernandes e José Francisco Melo Laurindo, que discutem aspectos referenciados à construção da memória pelo do Exército Brasileiro. O texto resulta de um trabalho de parceria realizado entre professor e ex-aluno do curso de Graduação em História da Fundação Educacional e Cultural São José e levanta elementos que nos fazem pensar a forma com a qual o Exército legitima sua memória institucional a partir de sua inserção em momentos marcantes da História do Brasil, em particular a participação de nossas tropas na 2ª Guerra Mundial. Marcos José Vieira Curvello, em “Propaganda Nazista: Análise de discurso de cartaz do projeto Aktion T4”, desenvolve uma análise do discurso contido em uma peça de propaganda do projeto Nazista Aktion T4, mostrando como valores e idéias subentendidas alcançam o público alvo sem que seja necessário explicitá-las; e como o “não dito” pode ter grande importância na construção e respaldo do discurso presente numa peça publicitária. “Ética jornalística: entre a evocação do ideal e a conciliação de interesses” é o título do artigo de Jacqueline da Silva Deolindo que também compõe a presente seção. O artigo apresenta os resultados da pesquisa de campo realizada com jornalistas, estudantes de jornalismo e outros profissionais da área, para verificar sua convicção pessoal acerca da ética jornalística. A análise dos resultados é amparada por uma fundamentação teórica pautada no entendimento do jornalismo enquanto um serviço público e no código de ética dos jornalistas Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 7 brasileiros. Também co-autora do artigo “Imprensa e discurso político: o caso do Jornal Brasil Novo, em Itaperuna, e o golpe de 1937”, Jacqueline da Silva Deolindo divide com Emerson Tinoco a assinatura do último artigo deste número de Transformar. Neste texto, os autores fazem uma breve revisão bibliográfica sobre a imprensa política da primeira metade do século XX e refletem sobre a formação da opinião pública nesse período. Caracterizada principalmente pela adesão a partidos políticos e pela defesa declarada de ideologias, essa imprensa guarda características peculiares relacionadas à temática das peças jornalísticas, à abordagem dos fatos, à linguagem empregada nos textos e ao relacionamento com os leitores. Assim, como proposta inovadora para o contexto histórico-geográfico no qual se insere o CenPE, o veículo que agora se disponibiliza faz com que possamos atingir um público cada vez mais amplo oferecendo uma porta aberta ao diálogo entre a produção do conhecimento e a recepção do mesmo. Aguardamos novas contribuições, na certeza de estarmos trilhando um caminho por vias cada vez mais democráticas. Itaperuna, 30 de novembro de 2008. Juçara Gonçalves Lima Bedim Leandro Garcia Pinho Lucia Alvim Couto Comissão Editorial Executiva Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 8 EDUCAÇÃO Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 9 W a construção do conceito à formalização: operações matemáticas sem traumas, com apoio de tecnologias educacionais Natercia de Souza Lima Bukowitz∗ ____________________________________________________________________Resumo O artigo apresenta proposta de oficinas na formação inicial e continuada de professores objetivando atender à demanda dos docentes das séries iniciais do Ensino Fundamental e dos cursos de formação de professores, no que se refere às estratégias didáticas que favoreçam a construção de conceitos necessários à aquisição das técnicas das operações fundamentais da matemática. Para tanto, foram considerados os aportes teóricos de Bruner e Piaget em relação ao cognitivismo, assim como as concepções de Lacerda acerca da tecnologia educacional. Palavras-chave: Formação inicial e continuada de professores. Oficinas. Operações matemáticas. Construção de conceitos. Formalização. __________________________________________________________________________ 1 INTRODUÇÃO Pesquisas educacionais realizadas em todo o mundo, na última década, têm revelado a necessidade e a relevância da formação continuada dos professores: “Para a implantação de qualquer proposta que se proponha uma renovação das escolas e das práticas pedagógicas, a formação continuada dos professores passa a ser um aspecto essencialmente crítico e importante.” (CANDAU, 1997, p. 51). Dados desses estudos evidenciam a precariedade dos cursos de formação de professores, tanto em nível médio, quanto nos cursos de graduação em pedagogia. A queda da qualidade do ensino, oferecido tanto pelas instituições públicas quanto pelas privadas, tem sido atribuída ao descaso e sucateamento das primeiras, como também causada pela expansão das características mercantilistas das últimas. Tais fatores têm conduzido ao aligeiramento dos cursos em discussão, que passam a visar quase que exclusivamente a concessão de titulação aos graduandos, preocupados tão somente com a obtenção do diploma para ingressar no mercado de trabalho. Face ao exposto, verifica-se freqüentemente nestes espaços de formação a abordagem superficial dos conteúdos curriculares, e consequentemente, a dicotomia teoria e prática, concorrendo para que os objetivos desses cursos não sejam satisfatoriamente atingidos, isto é, formam-se docentes que, em sua maioria, não se encontram aptos para exercer o magistério dessas disciplinas na educação básica. No que se refere ao ensino da matemática direcionado às séries iniciais do Ensino Fundamental, o quadro se agrava, o que pode ser comprovado não só por pesquisas internacionais (PISA, 2003) como principalmente pelos resultados das Avaliações do SAEB (2005). Tais avaliações têm demonstrado que mais de 50% das crianças, ao concluírem a 4a ∗ Parte deste artigo é fragmento da tese de doutoramento da autora (BUKOWITZ, 2005). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.Email: [email protected] Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 10 série do Ensino Fundamental, não conseguem resolver problemas simples que envolvem as quatro principais operações matemáticas. Sabe-se do expressivo volume de estudos nessa área, no entanto, quando se observa a matemática nas escolas, constata-se que poucas modificações têm havido neste campo (BUKOWITZ, 2005). A partir destas considerações, percebe-se a importância da formação continuada de professores, em diferentes âmbitos, objetivando a renovação da prática pedagógica desses docentes, para que possam promover a tão propalada revolução copernicana a que se refere Kamii (2002) em sua obra “Crianças pequenas reinventam a aritmética”. É nesta direção que a presente proposta se encaminha, visando especificamente apresentar estratégias e oferecer recursos que favoreçam a construção de conceitos matemáticos necessários à aquisição de técnicas diversificadas para as quatro operações matemáticas fundamentais. 2 APORTES TEÓRICOS 2.1 O COGNITIVISMO A consecução dos objetivos traçados para esta proposta pressupõe a busca por respostas à indagação de como ocorre a aprendizagem. Esta busca tem suscitado incontáveis pesquisas desenvolvidas por cientistas das mais diversas procedências e de distintas áreas de estudo. Conhecer e aprender implica um movimento de constante investigação e esta afirmação por si só já representa uma posição epistemológica, a de que o conhecimento não é um bem herdado ou doado. Neste trabalho, assumiu-se esta posição e para fundamentá-la recorreu-se ao cognitivismo, que entre tantas outras teorias psicológicas, representa oposição às correntes inatistas1 e às vertentes ambientalistas2. Nesta parte, serão apresentados os princípios básicos do cognitivismo e em seguida será feita uma exposição da teoria de aprendizagem de Bruner. As posições cognitivistas surgiram no início da segunda década do século XX como reação ao behaviorismo de Watson, rejeitando o condicionamento e a perspectiva atomista, isto é, a compreensão do universo mediante o estudo de elementos individuais. Chadwick e Rojas (1980) destacam duas tendências dentro da corrente cognitivista: a do behaviorismo cognitivista de Tolman (EUA), e a do gestaltismo alemão, citando Wertheimer, Kholer, Kokfa e Lewin como seus representantes principais. Nos EUA, os cognitivistas enfatizaram que os indivíduos não respondem tanto aos estímulos, mas atuam com base em crenças, atitudes e desejos de alcançar metas (compreensão do universo por meio de princípios de ordem); a pessoa aprende conceitos, signos especiais, programas, mapas, cursos de ação. Partindo de elementos e problemas perceptuais, elaboram uma teoria que inclui todos os conhecimentos possíveis. O termo cognoscere origina-se do latim e significa conhecer. Para os cognitivistas – primeiro a pessoa conhece o ambiente que a rodeia e si mesma, depois, utilizando-se desse conhecimento, relaciona-se com o meio. As relações, a estrutura e a ordem devem ser impostas pela pessoa sobre o material caótico da experiência sensível. Cognitivistas definem inteligência como a capacidade de responder a situações reais com base em uma antecipação das possíveis conseqüências com o objetivo de controlar os 1 Correntes inatistas ou aprioristas consideram exclusivamente a razão como fonte do conhecimento. Correntes ambientalistas ou empiristas consideram que toda a fonte do conhecimento procede apenas das informações do ambiente, captadas pelos sentidos. 2 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 11 efeitos e resultados da conduta. Para o gestaltismo, a segunda influência à teoria cognitivista, há algo mais que simples relações “estímulo-resposta”. Gestalt significa aproximadamente “configuração”. A tese fundamental da Gestalt consiste em afirmar que o que ocorre em uma totalidade não pode ser derivado das características de pequenos fragmentos separados. O que ocorre a uma parte da totalidade é determinado pelas leis da estrutura dessa mesma totalidade. Dessa forma, pode-se concluir que aprendizagem é uma mudança na estrutura cognitiva, na motivação, no conceito de ideologia, podendo ser vista também como alcance de um controle voluntário sobre a coordenação física, tal como defendido por Piaget (1976). O nome de Jerome Bruner, psicólogo, eclético e evolutivo, encontra-se associado tanto ao campo cognitivista quanto à posição evolucionista de Jean Piaget. Bruner (1973) desenvolveu uma teoria na qual o aprendizado é um processo ativo: os aprendizes constroem novas idéias, ou conceitos, baseados em seus conhecimentos passados e atuais. O aprendiz seleciona e transforma a informação, constrói hipóteses e toma decisões, contando, para isto, com uma estrutura cognitiva. A estrutura cognitiva, constituída por esquemas e modelos mentais, fornece significado e organização para as experiências e permite ao indivíduo “ir além da informação dada”. Definindo a aprendizagem como “um processo essencialmente social”, Bruner (1973, p. 50) focaliza os fatores sociais, motivacionais e pessoais que interferem no desejo de aprender e de solucionar problemas. Tais considerações remetem a valorizar a relação professor-aluno e o contexto cultural onde ocorrem os procedimentos instrucionais. Por este motivo, professores e alunos devem se engajar em um diálogo ativo. A tarefa do professor consiste em traduzir a informação a ser aprendida em um formato apropriado ao estado verdadeiro de compreensão do aluno. Diz Bruner (1973, p. 51) que: “toda idéia, problema ou conjunto de conhecimentos pode ser suficientemente simplificada para ser entendida por qualquer estudante particular, sob forma reconhecível”. O currículo, organizado em espiral, constitui-se em outro recurso para que o aluno construa continuamente sobre o que já aprendeu. A teoria cognitivista de Bruner oferece uma estrutura geral para o ensino referenciada em Piaget. Orientando-se para a pesquisa do desenvolvimento infantil, estabeleceu-se sobre quatro pilares principais: (1) predisposição na direção do aprendizado, (2) modos nos quais um corpo de conhecimento pode ser estruturado, para que seja facilmente compreendido pelo aluno, (3) seqüências mais efetivas para apresentar o material e (4) recompensa e motivação intrínsecas. Métodos eficazes para estruturar o aprendizado devem resultar em simplificação, geração de novas proposições e aumento da manipulação da informação. Em trabalhos mais recentes, Bruner (1997) expandiu sua estrutura teórica para abranger os aspectos sociais e culturais do aprendizado, o que representa uma interessante inovação para a aprendizagem nos países em desenvolvimento, dentre os quais o Brasil, por apresentarem vasta diversidade cultural. A abordagem ao ensino da matemática, por meio de oficinas, é uma estratégia que se adequa às formulações teóricas de Bruner (1973) e Piaget (1976). Para Bruner, a dificuldade ou facilidade na aprendizagem de determinado conteúdo depende não só das diferenças individuais, da natureza da matéria e das informações de que o aprendiz dispõe, mas também do estágio de desenvolvimento em que o sujeito se encontra. Por isso, argumenta que há necessidade de apoios concretos para se chegar à abstração: Chegamos à conclusão de que provavelmente seria necessário à criança que aprende matemática ter não só um sentido firme da abstração subjacente à sua Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 12 tarefa, mas também uma boa coleção de imagens para ilustrá-la; sem tal coleção é difícil achar correspondências e verificar o trabalho simbólico (BRUNER, 1973, p. 70). Sendo assim, a conscientização de que “o processo normal do desenvolvimento intelectual passa da representação ativa do mundo para a icônica e depois para a simbólica” (BRUNER, 1973, p. 56), oferece subsídios para o desenvolvimento de uma prática docente mais criativa e com resultados mais positivos no ensino da matemática. CONTRIBUIÇÕES DE BRUNER E PIAGET As contribuições de Bruner têm sido expressivas para os que se interessam e se dedicam ao estudo e ensino da matemática. Como teórico da aprendizagem, Bruner realizou inúmeras pesquisas em parceria com físicos e matemáticos, dentre os quais Dienes3 e Polya, em Harvard, opondo-se frontalmente aos preceitos próximos aos das “teorias do condicionamento estímulo-reação, quer as baseadas na idéia de contigüidade, quer na de reforço, como forjadores dos elos entre estímulos e respostas” (BRUNER, 1973, p. 27). Bruner aproximou-se do pensamento de Piaget no que diz respeito “à idéia da necessidade lógica, um processo de tratar com a natureza de proposições ao invés de fazê-lo diretamente com a experiência, uma maneira de ir além das propriedades empíricas”, possibilitando à criança “passar do comportamento de adaptação para o uso consciente da lógica e do raciocínio” (p. 29). Bruner (1973, p. 30) atribui relevância aos significados e aos contextos culturais sugerindo que “o crescimento mental depende em grau considerável do crescimento de fora para dentro – em dominar técnicas que estão incorporadas na cultura e que são comunicadas em um diálogo contingente com agentes da cultura”. O que de mais substancial e basilar Bruner ensina aos professores de matemática é a noção de que a estrutura didática da matemática deve respeitar sua estrutura histórica e epistemológica. Diz Bruner (1973, p. 75) que: “a simplicidade do currículo de matemática se baseia na história e no próprio desenvolvimento da matemática”. Isto significa que, a transposição didática, para possibilitar o real aprendizado do aluno deve seguir um percurso processual, não pode ser meramente uma transmissão de conhecimentos já formalizados e processados. Podem ser usados dois exemplos da matemática básica que esclarecem este argumento – referem-se à compreensão do Sistema de Numeração Decimal e do algoritmo da divisão. Os professores precisam conhecer a gênese da construção dessas estratégias de cálculo de modo a permitir que o aluno tenha a possibilidade de percorrer o mesmo caminho dos elaboradores dessas técnicas: Um corpo de conhecimentos, entesourado numa universidade e corporificado numa série de competentes volumes, é o resultado de intensa atividade intelectual anterior. Instruir alguém nessa matéria não é levá-lo a armazenar resultados na mente, e sim ensiná-lo a participar do processo que torna possível a obtenção do conhecimento: ensinamos não para produzir minúsculas bibliotecas vivas, mas para fazer o estudante pensar, 3 Dienes, (1975, p. 19-20) matemático húngaro, pesquisador e criador dos “blocos lógicos”, afirma que “na grande maioria dos casos, o que os estudantes comunicam, anotando ou expressando sinais matemáticos, é meramente os sinais em si, e não as estruturas para as quais os sinais são supostos símbolos”. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 13 matematicamente, para si mesmo, considerar os assuntos como o faria um historiador, tomar parte do processo de aquisição de conhecimento. Saber é um processo, não um produto (BRUNER, 1979, p. 75). Sobre essa temática, torna-se obrigatório evocar teses de Piaget. Este epistemólogo desenvolveu em sua teoria, o princípio de que todo o conhecimento é construído. Argumenta que para haver esta construção, há necessidade de a inteligência passar por constantes desafios. Além de ter pesquisado em profundidade questões epistemológicas relativas ao “desenvolvimento das quantidades físicas na criança”, Piaget (1975) esteve, tal como Bruner, em diversos momentos de sua vida, buscando informações ou realizando pesquisas conjuntas com cientistas de outras áreas do conhecimento, físicos e matemáticos tais quais Einstein e Abele. Dessa forma, Piaget observando e acompanhando o desenvolvimento de crianças, pôde contribuir para o esclarecimento de aspectos ignotos da ciência. Distinguir e caracterizar as fases ou estágios do desenvolvimento infantil é, dentre tantos outros contributos da teoria de Piaget, essencial para nortear as ações do professor no que diz respeito ao conhecimento de como se constrói a noção de número na criança. São assim apresentados por Piaget (1976, p. 13) estes estágios: [...] período da lactância até por volta de um ano e meio a dois anos, isto é, anterior ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento. O estágio da inteligência intuitiva, [...] (de dois a sete anos, ou segunda parte da “primeira infância”). O estágio das operações intelectuais concretas (começo da lógica) e dos sentimentos morais e sociais de cooperação (de sete a onze-doze anos). O estágio das operações intelectuais abstratas, da formação da personalidade e da inserção afetiva e intelectual na sociedade dos adultos (adolescência). Apesar de toda a divulgação da teoria piagetiana, nos meios acadêmicos, assim como dados da pesquisa realizada pela autora desta proposta, é possível constatar que estes fundamentos teóricos ainda não se incorporaram ao repertório de conhecimentos e à prática de um universo expressivo de docentes do Ensino Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental. Sobre a construção do número, Piaget assevera: Sabe-se que durante a primeira infância, apenas os primeiros números são acessíveis ao sujeito, porque são números intuitivos, correspondentes a figuras perceptivas. A série indefinida dos números e, sobretudo, as operações de soma (e seu inverso: a subtração) e de multiplicação (com seu inverso: a divisão), ao contrário, só são acessíveis, em média, depois dos sete anos. O motivo é simples: na verdade, o número é um composto de certas operações precedentes e supõe, em conseqüência, sua construção prévia (PIAGET,1976, p. 55). Piaget explica que as correspondências termo-a-termo permanecem intuitivas durante a primeira infância. Somente passam a constituir-se em operações numéricas a partir do momento em que a criança é capaz de perceber simultaneamente as relações das partes nos todos, quando então elabora os números. Sobre essa questão, Piaget (1976, p. 56) conclui que: “a passagem da intuição à lógica, ou às operações matemáticas, se efetua no decorrer da segunda infância pela construção de agrupamentos e grupos”. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 14 Estes aportes são relevantes para mostrar a importância da utilização de estratégias de trabalho, a partir de agrupamentos, em situações problematizadoras. Pode-se admitir então que o êxito ou fracasso do ensino da matemática se prende não apenas ao fato de o professor ser ou não profundo conhecedor da matemática. Além desse aspecto, é necessário contemplar se o professor dispõe também de conhecimentos referentes às diversas expressões e manifestações da mente humana. Sobre essas manifestações, cabe mencionar o estudo desenvolvido por Piaget (1976) sobre a capacidade operativa e adaptativa da inteligência. Ghiraldelli (2004, p. 20) enfatiza estas características intelectivas quando demonstra compreender a criança piagetiana como um “ser práxico”: O que Piaget conclui, passando da psicologia à pedagogia é que, além de colocar as crianças em ação com a manipulação de materiais, deve-se também levá-las a “tomar consciência” da ação. 2.2 TECNOLOGIA EDUCACIONAL: CONFLUÊNCIA DE UM DOMÍNIO INTERDISCIPLINAR Para conferir legitimidade às argumentações apresentadas na seção precedente, cabe enfatizar que a aprendizagem não decorre apenas de fatores biológicos e sócio-culturais, mas que as funções psicológicas se articulam com esses fatores, desempenhando papel relevante nessa interação. Coerente com esta posição, considera-se a tecnologia educacional como confluência de um domínio interdisciplinar que abriga contribuições dos mais diversos campos do conhecimento, dentre os quais, a informática, a psicologia e a educação, ultrapassando o mero “contexto da aplicação pedagógica de meios áudio-visuais” (LACERDA, 1992, p. 23). A publicação da obra “The science of learning and the art of teaching”, de Skinner, em 1954, constituiu-se num marco para que emergisse uma concepção renovada e ampliada da tecnologia educacional. De início, essa área de estudo restringiu-se aos materiais e aos produtos tecnológicos. O crescente avanço de pesquisas sobre cognição e aprendizagem, dentre elas destacando-se as de Bruner (1973) e Lapointe (1989), deslocou, porém o foco da atenção sobre os recursos e as máquinas, direcionando-se para relações mais humanizadas entre professor-aluno-produtos tecnológicos. Desta feita, passou a ser enfatizada a atividade do sujeito que aprende e a mediação do professor nesse processo interativo entre o homem e a tecnologia. As novas tecnologias possibilitam superar modelos tradicionais, mudando o foco da instrução para o processo de aprendizagem, colocando em suas prioridades a adoção de formas inovadoras de relacionamento e interação entre os participantes, que enfatizem a aprendizagem contextualizada, a solução de problemas, a construção de modelos e hipóteses de trabalho e, especialmente, o domínio do estudante sobre o seu próprio processo de aprendizagem (STRUCHINER, et. al, 1998, p. 4). Concebe-se então, neste trabalho, uma visão próxima à de Lacerda (1992, p. 23) para quem o processo de ensino “pode então ser definido como a organização de todos os meios humanos e tecnológicos disponíveis para facilitar a aprendizagem”, identificando-se “com o objetivo de resolver problemas concretos ligados à aprendizagem e ao ensino”, conforme sugestão das oficinas descritas na seção subseqüente. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 15 3 AS OFICINAS A oficina4, uma forma de trabalhar simultaneamente conteúdo e metodologia do ensino da matemática, encontra-se descrita por Carvalho (1990, p. 24), que a caracteriza por: colocar o aluno diante de uma situação-problema cuja abordagem o leve a construir o seu conhecimento. É desejável que a situação desencadeadora seja suficientemente rica e aberta, de maneira que o próprio grupo-classe possa levantar inúmeros problemas cuja resolução permita abordar, num sentido amplo, os conteúdos que se deseja estudar. Nesses momentos de diálogo e problematizações, sobressai o aspecto investigativo da proposta: emergem questões esclarecedoras quanto ao nível de conhecimentos matemáticos do grupo, propiciando o surgimento de alternativas para fazer a turma avançar. 3.1 OFICINA: DIVISÃO A abordagem ao cognitivismo de Bruner, fundamentação teórica desta proposta, enseja a realização de oficinas em que são utilizadas tampas de garrafa PET, em substituição à idéia original dos feijões sugeridos por Bruner (1973, p. 60). A proposta do autor, conforme indicado em seu texto, consistiu em favorecer a construção de conceitos, tais quais, os de números primos, múltiplos, divisores, fatores e fatoração. Além da construção destes conceitos, é possível não só resgatar, mas até mesmo oportunizar uma perspectiva distinta das usuais para a apreensão dos princípios das operações de multiplicação e divisão. O aprendizado da “técnica operatória” da divisão é um desses estigmas, responsável pela evasão e pela reprovação, principalmente na segunda metade do primeiro segmento do Ensino Fundamental. Isto pode ser observado em reportagem de Letícia Lins (O Globo, 03/06/2004), por intermédio do depoimento de Railson Silva, de 15 anos, estudante de 5ª série em Recife, como bolsista no Colégio Marista. Ele já foi reprovado duas vezes e afirma: “divisão é muito complicado”. Devido a todas essas considerações precedentes, o trabalho a ser realizado na oficina com as tampinhas PET faz emergir um estudo aprofundado e abrangente da “técnica operatória” da divisão. Uma abordagem histórico-cultural torna-se necessária para responder às indagações do grupo sobre como teria sido o início desse processo, e não apenas isso, mas também conduz à pesquisa da origem das dificuldades das crianças quando precisam realizar estas operações. Sabe-se hoje que os processos históricos que originaram a “técnica da divisão” são similares aos processos que facilitam a elaboração individual para a compreensão dessa 4 Para que no registro das oficinas possam ser identificadas as vozes dos participantes, adotou-se a seguinte formatação: - elaboração teórica da autora: a mesma fonte utilizada no desenvolvimento do texto; - citações dos autores fundamentadores: a fonte recomendada para tal fim, de acordo com as normas da ABNT; - intervenções da autora do trabalho: mesma fonte do texto, em itálico; - participantes e reflexões da autora: mesma fonte do texto, porém em itálico, tamanho menor e com recuo. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 16 operação e dessa técnica. Admite-se, portanto, ser fundamental conhecê-los para realizar esta abordagem5 no ensino da matemática na Escola Básica. Desta feita, oferece-se à turma uma sacola contendo um número desconhecido de tampinhas, propondo-se a seguinte problematização: – Como distribuir estas tampinhas para todos, de modo que cada um receba a mesma quantidade, sem que se efetue nenhum cálculo? Sem que haja demora, a solução, em geral, surge simultaneamente de alguns alunos ali presentes. – É só ir dando uma para cada um, de cada vez, até esgotar todas as tampinhas. A partir desta resposta, a sacola vai sendo passada, de mão em mão, cada um retirando uma tampinha por vez. Como há um volume de tampinhas consideravelmente grande, em relação ao número de participantes da oficina, em determinado momento formula-se uma outra questão: – Será que para agilizar a distribuição, poderiam ser retiradas duas tampinhas de uma só vez? Ao que geralmente respondem: – Poderiam. – E se faltar para alguém? – Então devolvemos para a sacola e voltamos de novo a tirar uma tampinha de cada vez. (Nesta oportunidade, a pesquisadora propõe a inserção do tema transversal “ética e cidadania”, fundamentando-se na teoria do desenvolvimento moral6 de Piaget. O tópico divisão presta-se para este tipo de convergência e deve ser aproveitado pelos educadores para despertar nos educandos noções de justiça e respeito ao outro). Na próxima rodada, são retiradas então duas tampinhas de uma só vez, sobrando tampinhas ou não. Pergunta-se então: – Quantas tampinhas cada um recebeu? Sobrou alguma? Com estas que sobraram (no caso de ter havido sobra), poderia haver uma nova distribuição igualitária? – Não, porque nem todos irão receber as tampinhas (uma possível resposta). – Pode-se agora saber quantas tampinhas havia? – Sim, efetuando adições do número de participantes, repetidamente em parcelas, tantas quantas foram as tampinhas recebidas por cada um e somando com as que restaram. Ou ainda, efetuando a multiplicação do número de tampinhas de cada um pelo número de participantes e somando com o resto. Este procedimento serve para mostrar como os egípcios deram início ao processo de construção da “técnica operatória” da divisão. Este processo sofreu várias evoluções ao longo da história, sendo possível distinguir 3 etapas principais. Estas etapas podem ser vistas e vivenciadas nesta oficina quando se propõe que seja reiniciado o processo da distribuição das tampinhas. Já sabida a quantidade das tampinhas, este registro é possível da seguinte forma, caso o número de tampinhas tenha sido, por exemplo, 230, e 53 o número de participantes. 5 “Piaget chega mesmo a supor que para se explicarem os fenômenos às crianças, talvez a melhor forma seja fazê-las percorrer os modelos explicativos históricos, uma vez que, provavelmente seja esse o caminho das equilibrações que ocorrem ao longo do desenvolvimento da criança” (LIMA, 1998, p. 44). 6 “O respeito, [...] está na origem dos primeiros sentimentos morais. Com efeito, é suficiente que os seres respeitados dêem aos que os respeitam ordens e, sobretudo avisos para que estas sejam sentidas como obrigatórias e produzam assim o sentimento do dever”. (PIAGET, 1976, p. 40). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 17 230 -53 177 -53 124 -106 18 | 53___ 1+1+2 Resultado: 4 tampinhas para cada um e sobram 18. Este registro se constitui na primeira etapa do processo de construção da “técnica operatória” da divisão. Hoje se denomina esta estratégia de cálculo de “divisão por estimativa”. A vivência desse processo possibilita ao grupo derrubar “mitos”, dentre eles o de que, “para dividir, é preciso saber todas as tabuadas de multiplicar”. Percebe-se que é possível realizar qualquer operação de divisão bastando utilizar, nesse cálculo por estimativa, os quocientes 1 e 2 de acordo com o desejo do operador. Além disso, pode-se entender a lógica interna da operação divisão. A segunda etapa da evolução da construção dessa técnica origina-se da primeira, exigindo porém do operador um conhecimento mais sofisticado da “técnica operatória” da multiplicação. Assim, realizam-se sucessivas multiplicações para saber quantas vezes o 53 “cabe” no 230: 230 | 53__ -212 4 18 Cálculos auxiliares: 53 x1 53 53 x2 106 53 x3 159 53 x4 212 53 x5 265 Esta segunda etapa (ou processo) tornou-se conhecida como ”técnica operatória da divisão pelo processo longo”. Durante a elaboração desse registro, surgem freqüentemente questionamentos de participantes da oficina, como o que segue, argumentando que: – Ah! Mas muitos pais vão dizer que isso está errado! E também muitos professores da 5ª série que não irão aceitar estas maneiras de fazer a conta. Tais comentários caracterizam os embates enfrentados por professores de matemática quando se empenham em propor inovações ao seu ensino. A terceira etapa (ou processo), como mostrado a seguir, é uma evolução da segunda, é a “técnica” usualmente “ensinada” nas escolas, sem que seja dada à criança a oportunidade de participar das etapas anteriores: 231 | 53__ 18 4 3.2 OFICINA COM AGRUPAMENTOS, A BASE DO PRINCÍPIO MULTIPLICATIVO Como exemplificado na seção anterior, as tampinhas de garrafa PET constituem tecnologia das mais acessíveis ao professor e das mais apropriadas ao universo infantil, por serem atraentes, tátil e visualmente, e porque possibilitam a manipulação em atividades diversificadas de quantificação. Porém, como já enfatizado nas discussões teóricas precedentes, a tecnologia educacional transcende os materiais, valoriza o processo e a atividade do aprendiz nas interações que estabelece com o objeto do conhecimento. Para tanto, são essenciais as intervenções do professor na problematização de situações instigantes que favoreçam a construção do raciocínio lógico matemático. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 18 Coerente com Piaget (1976), torna-se relevante o trabalho proposto a seguir para a construção do conceito de multiplicação e de outros conceitos correlatos como os de múltiplos, divisores, pares, ímpares, números compostos e números primos. • Distribui-se um número aleatório de tampinhas para cada criança e em seguida, problematizam-se as situações: formem grupos de duas tampinhas com as que recebeu. • • Questione os alunos: quantos grupos você formou? Sobrou alguma? No caso dos grupos de 2, solicite aos alunos para observarem que nem todas as quantidades possibilitam formar grupos de 2, sem que sobre resto. Faça os alunos chegarem à conclusão de que o número é ímpar quando sobra uma tampinha depois de formados os grupos de 2. Ao final dessas problematizações, solicite que seja feito um registro dessas situações observadas. O registro pode ser iniciado com desenhos, evoluindo para um registro “formal”, isto é, uma expressão aritmética elaborada pela própria criança. Exemplo: se forem 15 tampinhas, são 7 grupos de 2 sobrando uma (2 x 7 + 1 = 15). A seguir, proponha que com as mesmas tampinhas sejam formados grupos de 3, questionando: quantos grupos foram formados? Sobrou alguma? Há mais grupos ou menos grupos do que os que foram formados na situação anterior? • • • • • Em seguida, solicite o registro como na situação anterior, objetivando o desenvolvimento do pensamento reversível em operações simultâneas e reversíveis, isto é, a multiplicação e a divisão. Continue com o mesmo procedimento com quantidades progressivamente maiores, solicitando a formação de grupos até 10. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 19 Nestas oficinas com agrupamentos, o professor aproveita para explorar outros conceitos como o de divisores, propondo, por exemplo, a seguinte situação-problema para a criança que receber 12 tampinhas: quais são todas as maneiras possíveis de formar grupos iguais, sem que sobrem tampinhas? Ao final da formação dos grupos de 2, 3, 4, 5, etc. e com quantidades diferentes, cada aluno, ao fazer seu registro pessoal, poderá montar sua própria tabuada, que será significativa por ter sido elaborada no contexto de situações problematizadoras. 3.3 OFICINA DE ADIÇÕES E SUBTRAÇÕES COM USO DO MATERIAL DOURADO O material dourado foi criado por Maria Montessori, nascida em 31 de agosto de 1870, em Ancona, na Itália. Foi a 1ª mulher a se formar médica em seu país, doutorando-se em 1896. Antes disso, ingressou em um curso de matemática e ciência da Universidade de Roma. O trabalho realizado com crianças, na época chamadas “retardadas”, em hospital psiquiátrico, fez com que se aproximasse da educação, e em 1901, cursa Pedagogia, Higiene e Psicologia, também na Universidade de Roma. Conhecedora e apaixonada por matemática, interessou-se por criar materiais que facilitassem, nessa ciência, o aprendizado de crianças com as mais diversas deficiências, entre elas, motoras, visuais e auditivas. Observando e pesquisando atentamente sobre como ocorria a aprendizagem das crianças na “Casa dei Bambini”, começa utilizando objetos coloridos, brilhantes, de fácil manipulação e resistentes para atividades de quantificação. Chega assim à invenção do Material Dourado, dessa maneira chamado porque no princípio era confeccionado com macarrões pintados de dourado (POLLARD, 1993). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 20 Um dos objetivos desse material é facilitar a compreensão do Sistema de Numeração Decimal, cujos princípios fundamentais são a base 10 e o valor posicional. Uma das características essenciais dessa tecnologia é a versatilidade, já que, além do sistema de numeração decimal, favorece a construção de inúmeros conceitos e operações matemáticas, como: adição, subtração, multiplicação, divisão, potenciação, perímetros, áreas, volumes e números racionais, dentre estes, a porcentagem. No caso das adições e subtrações, o que há de mais substancial a ressaltar é a facilidade do entendimento dessas operações com reservas. O trabalho deve ser iniciado com subtrações simples, sem reservas, isto é, com números cuja junção de suas unidades seja inferior a 10, ou que a junção das dezenas seja inferior a 100, e assim por diante. • Solicite à criança que, com as peças do material dourado, some 35 com 24, registrando a operação no caderno com desenhos, se assim o desejar, e posteriormente, com a simbologia matemática. • Depois solicite que realize a operação inversa, isto é, subtraindo do resultado da adição anterior, uma de suas parcelas. Neste processo de abstração, é fundamental que a cada operação proposta pelo professor, e realizada pela criança, seja imediatamente registrada para dar início à formalização. Nas adições e subtrações com reservas, a criança entrará em contato, de forma mais aprofundada, com o princípio da “troca”, noção subjacente às normas do sistema de numeração decimal, ou seja, a base 10 e o valor posicional. • Proponha por exemplo a adição de 28 com 12, com o uso do material dourado, para a compreensão da troca, ou valor posicional na base 10. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 21 Como visto na foto, as unidades foram trocadas pela barrinha de uma dezena, simbolizando o que os professores tradicionalmente e erroneamente ensinam e chamam de “vai um”. Dando seqüência à problematização anterior: • Solicite a realização das operações inversas, isto é, que do resultado 40, sejam retiradas 12 unidades, em um primeiro momento, e 28 unidades em um segundo momento. Fotos: Beatriz Bukowitz Este problema pode e deve ser proposto de formas variadas, para que a noção de subtração possa ser adquirida não apenas como resto, mas também como diferença entre 2 quantidades, ou como excesso de uma quantidade maior sobre uma quantidade menor. A compreensão dessas três noções é essencial para que a criança domine de forma significativa, e não apenas mecanicamente, a técnica operatória da divisão, que também pode ser vista como uma sucessão de subtrações, como aconteceu na oficina da divisão com tampinhas. Para finalizar, cumpre ressaltar que o uso da calculadora, além de permitido, deve ser estimulado pelo professor, tão logo os alunos tenham construído os conceitos fundamentais necessários à aquisição das técnicas operatórias. Defende-se, portanto, que a sala de aula de matemática não se restrinja à “calculeira”. A aula de matemática é lugar para desenvolver o pensamento numérico e o cálculo mental na resolução de problemas. As inovações tecnológicas se prestam então para que o tempo dedicado à repetição de cálculos inúteis seja economizado e substituído por estratégias didáticas diversificadas, no sentido de estimular o raciocínio lógico, como aqui sugerido. REFERÊNCIAS BRUNER, Jerome. Uma nova teoria de aprendizagem. Rio de Janeiro: Bloch, 1973. _____. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 22 BUKOWITZ, Natercia de Souza Lima. Práticas Investigativas em Matemática: uma proposta de trabalho no Curso de Pedagogia. Rio de Janeiro, 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. CANDAU, Vera Maria. Formação continuada de professores: tendências atuais. In: _____. (Org.). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1996. CARVALHO, Dione Lucchesi de. Metodologia do ensino da matemática. São Paulo: Cortez, 1990. CHADWICK, Clifton B.; ROJAS, Alicia Mabel. 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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 23 INGÜÍSTICA ITERATURA A ÍSTICA E LITERATUR LINGÜ Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 24 b Tempo (cronos) e os tempos verbais Dulce Helena Pontes Ribeiro7 ____________________________________________________________________Resumo Este estudo é uma interpretação semântica dos tempos verbais, restritos ao modo indicativo, com foco na situação do presente. Faz-se uma reflexão sobre a filosofia existencial, fundamentando-se em Santo Agostinho (1999) para se chegar ao lingüístico. Retoma-se Reichenbach (1947), interpretado por Corôa (2000), nos três momentos: o da fala (MF) – correspondente ao acontecimento discursivo; o do evento (ME) – quando ocorre o evento, tempo da predicação; e o da referência (MR) – momento dos acontecimentos naturais ou históricos, o chamado tempo do relógio. Comparam-se esses pontos com a abordagem tripartida (presente/ passado/ futuro) encontrada nas gramáticas e com a distinção binária (tempo do comentário/ tempo da narração), no dizer de Weinrich (1964), à luz de Koch (2000), ou tempo da história/ tempo do discurso, para Benveniste (1989), ou ainda, segundo a terminologia de Fiorin (1996), sistema enunciativo/ sistema enuncivo. Conclui-se que a falta de correspondência biunívoca entre necessidade semântica e solução gramatical gera uma intrincada polissemia das formas verbais, ou o seu contrário: uma só forma verbal representando diversas situações comunicativas. Discute-se também a inexistência do presente, já que é fluxo ininterrupto. Refletir sobre os tempos verbais é uma das vias de redirecionamento de análises e interpretações de textos, até mesmo de se reavaliar a própria tipologia do discurso. Palavras-chave: verbo; presente/ não-presente; agora/ antes/ depois. ___________________________________________________________________________ 1 Introdução O homem é um ser de linguagem. Agindo nela e por ela, constitui-se como sujeito na ação do discurso, o qual ocorre em determinado tempo e espaço e se forma na prática social e histórica. Para expressar-se, tornando-se mais competente na persuasão de seu interlocutor, esse homem enunciador recorre a tempos verbais e a verbos modais que melhor se engajam em seu discurso, resultando em maior expressão de transparência. Pondera-se que o tempo, antes de ser uma preocupação dos estudiosos da língua, já o era dos lógicos e filósofos das idades antiga e média. Entendê-lo sempre foi (e ainda é) interesse dos homens. Para Fiorin (1996, p. 127), “[...] pensá-lo significa ocupar-se da fugacidade e da efemeridade da vida e da inexorabilidade da morte”. Para compreender a natureza, um dos renomáveis gênios da história, Galileu Galilei, preocupou-se em medir e utilizar o tempo. Mais tarde, um dos pilares da física clássica, Isaac Newton, mostrou que o tempo passa como um rio que flui uniforme e sempre em caráter prospectivo, independente do ponto de vista. Inclusive, “[...] a fatalidade da morte mostra a irreversibilidade do tempo”. (VERNANT, 1973, p. 89-90, apud FIORIN, 1996, p. 128). Com o século XX, o conceito de tempo, em especial na física, sofre uma brusca transformação. Albert Einstein sustentou a idéia da indissolubilidade entre tempo e espaço, na formação de uma unidade. 7 Doutoranda em Língua Portuguesa. Mestre em Educação. Pós-graduada em Língua Portuguesa. Graduada em Letras. Professora universitária de Metodologia da Pesquisa, Língua Portuguesa e Literatura Infanto-Juvenil. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 25 Retomando, entretanto, o último século da Antigüidade, é Santo Agostinho (1999) quem faz uma reflexão psicológica de tempo, fonte na qual os gramáticos vão beber para construir as definições dos tempos verbais – tema deste estudo, com maior destaque para o presente. 2 O que é o tempo? Em busca da gênese do conceito de tempo, Lyons (1979, p. 320) presta valoroso esclarecimento: O termo gramatical “tempo” deriva-se do lat. tempus, que é a tradução do gr. Khrónos. A categoria do tempo diz respeito às relações temporais na medida em que estas são expressas por contrastes gramaticais sistemáticos. Três contrastes dessa natureza foram conhecidos pelos gramáticos tradicionais na análise do grego e do latim: “passado”, “presente” e “futuro”. Supõe-se freqüentemente que a posição tripartida seja um traço universal da linguagem. Isso é inexato. Na realidade, o “tempo” se encontra em todas as línguas e, como veremos, a oposição de “passado”, “presente” e “futuro” não é simplesmente uma questão de tempo, mesmo no grego e no latim. A característica essencial da categoria de tempo é que ela relaciona o tempo da ação, do acontecimento ou estado referido na frase ao momento do enunciado, que é “agora”. O tempo gramatical é, pois, uma categoria dêitica, é simultaneamente uma propriedade da frase e do enunciado. Muitas análises do tempo gramatical são viciadas pela hipótese de que a divisão “natural” do tempo em “passado”, “presente” e “futuro” se reflete necessariamente na língua. Embora a noção de tempo permeie, de modo geral, o vocabulário nas línguas indoeuropéias, é no sistema verbal que essa noção aparece fortemente impregnada, e o verbo pode, ainda, reter em si outros matizes não-temporais. Aliás, há línguas em que o verbo realmente não incorpora a noção de tempo. Nas línguas românicas, todavia, as desinências de modo e de tempo são capazes de situar os interlocutores, são categorias dêiticas. Entretanto não é só o verbo, em português, que dá informação de tempo. Há outras classes como advérbio, adjetivo, conjunção, numeral que também podem fazê-lo. Dessa forma, para responder ao questionamento – Quando aconteceu? Agora? Ontem? Há muito tempo? –, uma interpretação meramente temporal não basta. Há de se considerar aspecto e distinção entre descrição estrutural e descrição comportamental do mundo – contribuições imprescindíveis para melhor entender os tempora8 nos verbos. Sobre o conceito de perspectiva da comunicação, Weinrich (1964 apud KOCH, 2000, p. 40) assim se expressa: Não creio que os tempos – na perspectiva comunicativa – sejam formas mais temporais (de Tempo) que em suas outras características. Ao dizer que os tempos da linguagem nada têm a ver com o Tempo, isso não quer significar que os tempos neguem o fenômeno extralingüístico do Tempo, e inclusive o próprio discurso é um desses processos. Esse tempo físico, mensurável, já está pressuposto na linguagem ao mesmo tempo que o mundo real. É a coisa que não tem nada de particular; afinal, a palavra “hora” também pressupõe 8 Tempus (s.), tempora (pl.) – termos empregados aqui para a expressão gramatical de tempo, estabelecendo, assim, a distinção do tempo, que é o tempo presente na consciência do homem. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 26 Tempo. Da mesma maneira, também as perspectivas de retrospecção e de prospecção, em alguns tempos, pressupõem Tempo. Weinrich (1964), interpretado por Koch (2000, p. 37), constatou que as marcas dos tempos verbais em francês são redundantes. Tais tempora não têm vinculação com o tempo (cronos); são distribuídos em dois grupos: 1º) indicativo – presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente composto e locuções verbais com esses tempos; 2º) indicativo – pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito, pretérito mais-queperfeito, futuro do pretérito e locuções verbais com esses tempos. As situações verbais comunicativas também se vinculam a dois grupos, conforme os grupos temporais: a) Mundo comentado – a ele “pertencem a lírica, o drama, o ensaio, o diálogo, o comentário”; estabelece-se uma atitude tensa, tornando o discurso dramático. É o falante comprometido. Nas palavras de Weinrich (1964), “Comentar é falar comprometidamente”. O comentário afeta o ouvinte exigindo dele uma reação. São empregados tempos do 1º grupo. b) Mundo narrado – pertencem os relatos; estabelece-se entre os interlocutores uma atitude mais relaxada. São empregados tempos do 2º grupo. O destinatário é simples ouvinte. Pode-se passar do mundo narrado ao mundo do comentário e vice-versa, no entanto isso não se concretiza bruscamente. Quando se introduz tempo do mundo narrado no mundo comentado ou vice-versa, ocorre uma metáfora temporal, que consiste em comentar como se estivesse narrando ou narrar como se estivesse comentando. Em geral, os gramáticos definem verbo sob o viés semântico, reconhecendo nele uma dinamicidade que contrasta à estaticidade dos nomes e de outras categorias. Essa posição é, contudo, falha, pois há substantivos deverbais (o mergulho, por exemplo) muito mais dinâmicos do que certos verbos, tais como os chamados verbos de ligação (ser, estar, permanecer...). A título de ponderação, a seguir serão apresentados três conceitos de verbo. O verbo expressa um fato, um acontecimento: o que se passa com os seres, ou em torno dos seres. É a parte da oração mais rica em variações de forma ou acidentes gramaticais. Estes acidentes gramaticais fazem com que ele mude de forma para exprimir cinco idéias: modo, tempo, número, pessoa e voz. (ROCHA LIMA, 1999, p. 122). Verbo é uma palavra de forma variável que exprime o que se passa, isto é, um acontecimento representado no tempo. (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 366). Verbo é a criação lingüística destinada a expressar a noção predicativa. Denota ação ou estado e nas línguas do grupo ariano possui sufixos próprios, com que se distingue a pessoa do discurso e o respectivo número (singular ou plural; em alguns idiomas até o dual), o tempo (atual, vindouro ou pretérito) e modo da ação (real, possível, etc.). (SAID ALI, 2001, p. 101). Como se percebe, “[...] a gramática tradicional aprisiona os verbos portugueses em compartimentos estanques e impróprios demais para captar toda a sua significação: os paradigmas verbais.” (CORÔA, 2005, p. 17). Para Santos (1974, p.56), verbo é “[...] uma significação em trânsito por determinadas categorias: voz, modo, tempo, aspecto, pessoa e número caracterizam o verbo como um todo, Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 27 pois individualmente podem ocorrer fora dele. [...] Oposições modais e temporais também se encontram nos nomes”. As interpretações temporais sugeridas pela gramática prescritiva são insuficientes para estabelecer distinção entre verbo e nome, haja vista que as categorias tempo, modo, número e pessoa presentes no verbo podem existir, mas separadamente nos nomes, nos advérbios, entre outras, contudo somente nos verbos tais categorias aparecem simultaneamente: tempo/modo, número/pessoa, voz, aspecto. De qualquer forma, é inegável que a definição de verbo (palavra em trânsito) está relacionada à noção de tempo, a qual se entrelaça à de aspecto com considerável freqüência. Pelo fato de certos nomes até expressarem ação ou estado, as definições supracitadas tornam-se alvo das críticas de Santos (1974). Para ele o verbo não pode ser definido apenas pelo seu significado nem só pelo seu significante, mas pelo seu signo como um todo, “[...] em função de um relacionamento entre seu significante e significado [...]”. Reichenbach (1947 apud CORÔA, 2005, p. 19-20) foi quem primeiro formalizou “uma interpretação temporal das línguas naturais”, apontando três pontos teóricos na linha do tempo: momento da fala (MF), momento do evento (ME) e momento da referência (MR). É a partir de Reichenbach, portanto, que se têm analisado os tempos verbais em torno do MF, ME, MR. Relevante se faz entender que uma interpretação temporal pode ser adequada para uma determinada língua e não ser para outra, isso porque não há sob esse ponto uma verdade universal. No português, por exemplo, que correspondência há entre o conceito de tempo e sua expressão gramatical? Mais importante que a idéia de tempo na categoria verbal é a categoria dêitica, uma vez que o verbo relaciona o tempo em que ocorre o evento ao tempo da enunciação, havendo, pois, uma relação de dependência do verbo para com o sujeito enunciador. Santos (1974) postula que a noção de tempo, dependendo do percurso interpretativo tomado, pode ser orientada para três domínios: a) cronológico: irreversível, desloca-se de um ponto a outro incessantemente; b) psicológico: não é linear, é proveniente do interior do sujeito, podendo seguir adiante (depressa ou devagar), parar e até retroceder; c) gramatical: expressão formal (radical + morfemas típicos). Quando se fala de tempo como a mais especial categoria do verbo, pensa-se em termos de categorias cronológicas (presente/ passado/ futuro). Para os lingüistas (estruturalistas e seguidores, pelo menos), não há uma correlação necessária entre as categorias cronológicas de presente, passado e futuro e as categorias gramaticais. John Lyons (1979) insiste nesse ponto de vista. Salienta que, dependendo da língua, a divisão deve ser entre duas grandes proporções: a idéia de presente/ não-presente, ou então de passado/ não-passado (uma oposição binária). Assim, John Lyons é ainda um lingüista adepto do enfoque binário, característico do estruturalismo. Em Bechara (2000, p. 221), os tempos do verbo são estes: a) Presente – em referência a fatos que se passam ou se estendem ao momento em que falamos: eu canto; b) Pretérito – em referência a fatos anteriores ao momento em que falamos e subdividido em imperfeito, pretérito-mais-que-perfeito: cantava (imperfeito), cantei (perfeito) e cantara (mais-que-perfeito); Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 28 c) Futuro – em referência a fatos ainda não realizados, subdividido em futuro do presente e futuro do pretérito: cantarei (futuro do presente) e cantaria (futuro do pretérito). Como em Bechara, a abordagem tripartida (presente/ passado/ futuro) nas gramáticas escolares é voz de consenso entre os gramáticos. O presente é conceituado como tempo atual, que coexiste com o momento da enunciação, o agora; o passado, como aquilo que precede ao enunciado; o futuro, como o que se segue ao momento da enunciação. Harald Weinrich (1964) faz uma distinção binária, não em termos da própria estrutura do tempo, mas da sua espécie de discurso: distingue o tempo do comentário do tempo da narração. Nessa mesma linha de raciocínio, Benveniste (1989) fala em tempo da história e tempo do discurso. Fiorin (1996), utilizando uma terminologia da lingüística do texto, distingue o sistema enunciativo e o enuncivo. O enunciativo tem obviamente no aqui e agora da enunciação o seu eixo, e o enuncivo, tudo o que é permitido para o momento que não é o aqui e agora da enunciação. “Como o agora é um tempo em que um eu toma a palavra, a organização lingüística do tempo, como a das demais categorias da enunciação, é [...] egocêntrica. [...] O agora do enunciador é o agora do enunciatário.”. (FIORIN, 1996, p. 143). Trata-se, pois, da distinção entre o tempo do comentário (sistema enunciativo) e o tempo da narração (sistema enuncivo). Já Benveniste (1989) utiliza as terminologias tempo da história (sistema enuncivo) e tempo do discurso (sistema enunciativo). A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) atentava para essa distinção. Afinal, o que é futuro do pretérito? O que é futuro do presente? De certo modo, as nomenclaturas “futuro do pretérito” e “futuro do presente” mostram que são precisos dois eixos: de um lado, um sistema que gira em torno do presente: presente do indicativo, futuro do presente, pretérito perfeito (como se fosse o da enunciação); de outro lado, o sistema do passado: pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito, futuro do pretérito (o tempo da história). São, pois, dois subsistemas bem definidos. No livro As marcas lingüísticas da enunciação histórica, de Milton José Pinto (1994), por exemplo, aparecem três sistemas: experiencial (da experiência, enunciativo, do tempo presente), narrativo (tempo da história, passado, do mundo narrado) e do relato (é o que envolve as três espécies de discurso: direto, indireto e indireto livre, mais especificamente o indireto). Este último sistema provém de quando eu relato, eu trago o discurso de outra pessoa para o meu. Dou a conhecer ao meu interlocutor o discurso de outra pessoa através do meu. Existem, pois, referências importantes entre o tempo do comentário (encontrado nos editoriais dos jornais e nos artigos científicos, em que o tempo presente é o eixo básico da constituição do discurso) e o tempo narrado, como o encontrado nas obras de ficção (Vidas secas, nas fábulas, nas lendas, nas narrativas tradicionais). São raros os casos em que a narrativa se desenvolve no presente, sobretudo a narrativa escrita, ou, então, narrativa na 2ª pessoa, em que há uma interlocução (como, no caso, em Grande sertão: veredas). Trata-se de um sistema muito complexo, uma vez em que a certeza da existência dos tempos está muito mais na linguagem do que na estrutura propriamente dita. Daí surge um vasto elenco de variações. Exemplos: Ele prometeu que virá amanhã / Ele prometeu que viria amanhã. Há uma diferença de modalidade, isto é, há duas atitudes: um distanciamento e um envolvimento. No primeiro exemplo (virá), eu me engajo com esse fato, assumo-o como um compromisso, com a realização disso. É uma ancoragem no presente. Eu (produtor dessa Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 29 enunciação) estou no presente e ele, no passado. O personagem da enunciação sou eu. Eu me coloco como um fiador dessa promessa: ele prometeu e eu afianço o que ele falou. Muda-se aí o ponto de referência, a ancoragem. No segundo caso (viria), é só a palavra dele, só um ponto de referência dele; eu como enunciador não tenho nada com isso. Inclusive, a ancoragem é só no passado. Há um distanciamento, uma neutralidade do locutor na realização desse fato. Se na oração principal houver um verbo que exige um subjuntivo, como Ele me pediu que viesse / Ele me pediu que venha, tem-se o seguinte: no último caso, uma ordem; eu não sou mais o fiador, já que há uma imposição, portanto sou obrigado a vir. O primeiro exemplo é mais tênue, não tem o tom de obrigação. O tempo do “viesse” pode ser ontem, hoje ou amanhã. Há uma flexibilidade. O imperfeito do subjuntivo denota um fato posterior a outro, o qual é o ato de pedir. Pode ser: Na semana passada ele me pediu que viesse ontem / Na semana passada ele me pediu que viesse hoje / Na semana passada ele me pediu que viesse amanhã. Como o tempo pode ser ontem, hoje, amanhã, não há mais compromisso algum. Isso pode acontecer / ter acontecido ou não. O pretérito imperfeito do subjuntivo não é pretérito em relação ao momento em que o fato acontece, mas em relação a seu ponto de ancoragem, que é passado. Ele me pediu que viesse, e eu não pude (frase gramatical), mas Ele me pediu que venha, e eu não pude (frase agramatical porque o ato de vir ainda está em aberto). Poderia ser: Ele me pediu que venha, e eu não posso. No caso, a ancoragem de posso é a mesma de venha. Venha não pode ser anterior a pediu. O português é uma língua que distingue o futuro do pretérito do indicativo e do pretérito imperfeito do subjuntivo. Na verdade, eles não estão em oposição, mas em distribuição complementar: um não ocorre no contexto do outro. Pediu que viesse / Prometeu que viria. Prometer é um verbo cujo complemento fica no modo indicativo. Já pedir é um verbo cujo complemento fica no subjuntivo. Daí a correlação: Se eu pudesse viria (pretérito imperfeito do subjuntivo + futuro do pretérito do indicativo) / Se eu puder virei (futuro do subjuntivo + futuro do presente do indicativo, os dois são futuros). O futuro do pretérito nem sempre remete à noção de futuro, pode ser a hipótese. Por exemplo, em Quem diria? O que você faria nessa situação?, as formas verbais empregadas não são de futuro. Segundo os cognitivistas, o futuro do pretérito é um espaço mental, instaura domínios conceituais, de onde se originam as metáforas (transferência de um domínio conceitual para outro). O futuro é um adjetivo derivado de uma das formas do verbo latino esse, que quer dizer o que há de ser (futurus, antiga forma verbal no latim). A designação presente / passado / futuro é pertinente. O passado é o particípio do verbo passar. Presente é a forma que processa: -nte. Futuro: o que há de ser. Quando se trata dos tempos dos verbos, está se priorizando os do modo indicativo. Mas, no futuro do pretérito e mais-que-perfeito, tem-se que introduzir a noção de um ponto de referência, no entanto as nossas gramáticas não trabalham com isso, ainda que nosso sistema temporal o trabalhe. O futuro do pretérito e o pretérito mais-que-perfeito têm como ponto de referência o passado. O primeiro, um momento posterior ao passado; o segundo, um momento anterior ao passado. Então, o sistema temporal trabalha com um sistema de categorias, com um ponto de referência, com um momento de enunciação e um momento do acontecimento, do fato. Nesse momento do fato, temos a idéia da anterioridade, da sobreposição e da posterioridade. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 30 O futuro do pretérito não tem ponto de referência em frases como Quem diria?. É aí o emprego modal do tempo verbal, ou seja, essa forma está sendo usada apenas para projetar uma situação hipotética, resultando num universo alternativo de raciocínio. Subjuntivo, imperativo, infinitivo, gerúndio e particípio são considerados por Weinrich (1964) semitempos, já que não se constituem formas verbais em sua totalidade, ligam-se a um tempo pleno (indicativo) para lhe determinar a situação comunicativa, uma vez que tais semitempos não se apresentam isolados, não se sustentam, apóiam-se em formas completas, isto é, dependem de outras fontes ligadas ao contexto lingüístico. A idéia de tempo, portanto, não se transmite para as formas de subjuntivo. O que se chama aí de futuro não é futuro; o que se chama de pretérito imperfeito do subjuntivo não é necessariamente passado, é um universo alternativo, hipotético, é algo que se afasta não no tempo, mas em termos de alcance do domínio, do controle, da possibilidade. Em Se eu tivesse dinheiro não há passado. A diferença entre Se eu tivesse dinheiro e Se eu tiver dinheiro é de graus, de possibilidades de ter dinheiro. Em Se eu tivesse dinheiro, já estou dizendo de antemão que não tenho dinheiro, sem possibilidades. Mas, em Se eu tiver dinheiro, há possibilidades. Em Se eu tivesse dinheiro ontem, é o ontem que está dando a idéia de tempo passado. Foi preciso a expressão adverbial de tempo para se ter a idéia de passado. Em Se eu tivesse dinheiro viajava agora, a idéia é de presente, é uma forma de negar a falta de dinheiro. Com isso, a idéia do tempo da história corresponde à do tempo narrado, e a idéia do tempo do discurso corresponde à do tempo do comentário. Essa distinção é muito interessante porque não é estrutural, ela toma como referência os tipos de textos, os focos de organização do discurso. O discurso da opinião obviamente é o tempo do comentário. Por sua vez, o relato dos fatos é o tempo da história. Há o tempo intrínseco (duração do processo) e o tempo do evento (momento em que ocorre o processo) em relação ao agora do falante/ ouvinte. Por exemplo, entre acordar e dormir, o tempo intrínseco é menor no primeiro do que no segundo. O tempo intrínseco, necessário ao desenvolvimento do processo (tempo implicado, interno, objetivo), é chamado de aspecto, é independente do ato da fala (MF, MR, ME) e inerente ao desenrolar do evento. Por sua vez, há o tempo da ocorrência do evento (tempo explicado, externo, subjetivo) que, também chamado tempus, aparece “quando” o processo ocorre, em relação ao sujeito no momento da enunciação. Falante e ouvinte controlam os tempora, os quais se comportam como advérbios e pronomes. No verbo, a categoria de tempo (responsável pela gramaticalização) é a dêitica – o que não se dá com a categoria de aspecto (não-dêitica). 3 O que é o tempo “presente”, afinal? Se as coisas só podem existir no presente, como fica a existência delas se o presente não existe? Esta é, pois, uma questão que não se cala. Santo Agostinho (1999) salienta que, Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço. Nas gramáticas normativas do português e, curiosamente, nas línguas em geral, o presente é uma forma não-marcada (sem morfemas de presente), é o não-tempo. A noção do Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 31 presente é extremamente fugidia e, ao mesmo tempo, é uma idéia óbvia, pois, no momento mesmo em que eu estou falando do presente, eu estou nele, é o tempo em que me insiro como falante. Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei, todavia, que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá não estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória. (SANTO AGOSTINHO, 1999). O tempo presente são as minhas circunstâncias, “[...] indica a contemporaneidade entre o evento narrado e o momento da narração.” (FIORIN, 1996, p.142). Gerado pelo ato de fala, instaura-se um agora (do enunciador e do enunciatário), reinventado pelo enunciador, que se organiza num eixo (ordenador do tempo) de concomitância X não-concomitância. E esta última se articula em anterioridade X posterioridade. A organização lingüística do tempo fica por conta de um eu, independente do tempo crônico. Quando, porém, a enunciação e a recepção não são simultâneas, estabelece-se um ponto de ancoragem (uma data, por exemplo). Os tempos verbais estão dispostos em tempos enunciativos e tempos enuncivos. Salienta-se que, enquanto o presente é uma abstração do espírito, uma vez que se compõe de instantes que acabaram de passar e instantes prestes a acontecer estando desprovido de marcas desinenciais de temporalidade, o pretérito perfeito apresenta desinências específicas de número e pessoa que, embora sejam DNPs, são desinências características do tempo pretérito perfeito. Nos verbos irregulares, pode-se, inclusive, ter uma marca mórfica no radical: saber/ soube, fazer/ fiz. Há neles, portanto, desinências de número específicas. Quanto ao futuro, em português, existem as desinências modo-temporais (DMT) específicas. Elas resultam de uma evolução em que uma parte do infinitivo do verbo e uma parte do verbo auxiliar se aglutinaram originando essa DMT de futuro. Na língua corrente, praticamente não usamos o futuro do presente. No caso da língua falada, é mais comum a utilização do futuro do pretérito do que a de futuro do presente. Nos atos de comunicação, por seu turno, tempo e espaço são dois elementos fundamentais da relação do homem com o mundo, como se observa abaixo: Presente – Tudo que não é passado nem futuro. Passado – Tudo que não é passado nem futuro. Futuro – Universo do projeto, promessas, perspectivas. Coloca-se no presente aquilo que se está deixando de situar no passado e no futuro. É até possível se dizer o que é passado: é tudo que deixa de ser. E, aquilo que ainda não é é futuro. Nesse caso, só o passado é concreto. Portanto, É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 32 passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. (SANTO AGOSTINHO, 1999). Para Santo Agostinho, o que há são três modalidades de presente: a do passado (a memória), a do presente (o olhar, a visão) e a do futuro (a espera). São três modalidades que se instalam no espírito e têm sua existência na linguagem, a qual, embora repleta de impropriedades e imprecisões, “[...] propicia ao homem a experiência temporal, na medida em que só quando o tempo é semiotizado pode o ser humano apreendê-lo e medi-lo”. (FIORIN, 1996, p. 139). É na discursivização das ações (na narração: simulacro da ação do homem no mundo) que a temporalização se manifesta. Melhor dizendo: tudo se presentifica na linguagem. As categorias da enunciação surgem ao serem enunciadas. É enunciando que o homem cria tempos, espaços, pessoas. O tempo é, pois, uma categoria da linguagem que se manifesta diferentemente em cada língua, portanto situar um acontecimento no tempo (cronos) é diferente de inseri-lo no tempo da língua (organicamente ligado ao exercício da fala). O tempo presente pode designar: o próprio presente; um hábito; ações atemporais; coisas passadas; coisas futuras. Para Weinrich (1964), citado por Koch (2000, p. 39), a forma verbal presente não tem nada a ver com o Tempo: “[...] ela constitui, justamente, o tempo principal do mundo comentado, designando uma atitude comunicativa de engajamento, de compromisso”. Ao narrar uma história, é comum se utilizar o pretérito imperfeito ou perfeito simples, entretanto se utiliza o presente (junto ou não de outros tempos do 1º grupo9) para se fazer o resumo, o qual pode servir de base para a crítica, para o comentário da obra ou para facilitar ao leitor de fazê-lo. O resumo constitui-se numa situação do mundo do comentário, como é o caso também das manchetes de jornais. É, pois, a partir dos resumos e das manchetes que vêm, de fato, os comentários. O presente constitui o tempo zero (sem perspectiva) do mundo comentado; o imperfeito e o perfeito simples constituem os tempos zero do mundo narrado. O presente não está sujeito à temporalidade, é abstrato. Enunciamos as verdades científicas no presente porque são atemporais (A terra gira em torno do Sol). O passado são os fatos; para ser passado tem que ser fato. O presente não tem que ser fato, pode até ser. Em A manga é a melhor fruta tropical, o falante enuncia uma opinião sobre algo. Neste exemplo e no anterior, o enunciador não situa tais proposições na linha do tempo; na verdade, ele simplesmente enuncia algo de modo genérico. Em Ele vive com os pais e O presidente toma posse na próxima semana, o presente é um fato não concluído. Já o presente histórico é fato, é um processo que ocorre antes do MF. Exemplo: Em 1888, a princesa Isabel assina a Lei Áurea. Nesse caso, foi uma ação pontual, mas poderia não o ser, como em E assim aconteceu: o menino entra sorrateiramente no quarto dos pais e os flagra num beijo ardente. Em ambos os casos o passado foi presentificado. “A noção de presente como tempo gramatical não pode, portanto, ser definida [simplesmente] como ‘momento em que se fala’.” (AZEREDO, 2000a, p. 127). Também se usa o presente para expressar ações pontuais e simultâneas ao MF: Vejo bem na minha frente 9 Relembrando os tempos do 1o grupo: presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente composto e locuções verbais com esses tempos. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 33 uma bela tela de Portinari. Usa-se com freqüência o presente em ação contínua ou periódica: Ele estuda matemática todos os dias. Ações prestes a acontecer (futuro breve) costumam ser expressas no presente: Daqui a pouco vou ao médico. A idéia de presente não existe nitidamente, já que é fluxo o tempo todo. Os gramáticos, contudo, induzem “[...] o aluno a identificar os conceitos de presente, passado e futuro com as noções de tempo cronológico [...]”. É um agora, um antes e um depois – posição esta refutada pelos lingüistas, para quem tal noção é “[...] uma complexa rede de atos de significação que têm no eu, no aqui, e no agora do discurso seus pontos de referência”. (AZEREDO, 2000b, p. 203). Como tudo se relaciona segundo o ponto de vista do falante, para Lyons (CORÔA, 2005, p. 43), a enunciação canônica é egocêntrica, o que Fiorin (1996) também corrobora. 4 Conclusão Enquanto o presente não traz em si (nem mesmo no latim) marca morfológica, o nãopresente manifesta-se com marca: se for morfológica é passado, se for locucional (sintática) é futuro. Como forma não-marcada no tempo, o presente é o não-tempo, só se caracteriza negativamente: não-passado e não-futuro. Por isso, a idéia de presente não existe, é fluxo ininterrupto. Hoje é o instante absoluto em que se vive, em que se é, em que os acontecimentos são passíveis de enunciação pela língua que lhes dá sentido. Afinal, as categorias estão muito presentes na maneira como se percebe o mundo, razão pela qual, mesmo que existam tempos verbais relativos ao passado e ao futuro, tais formas verbais não são capazes de precisar o tempo em que ocorreu cada ação. Só se tem essa precisão no contexto, pela utilização de advérbios/ locuções adverbiais e outras categorias. E, nessa contextualização, o ontem e o amanhã se tornam, respectivamente, memória e esperança, presentificadas na força do aqui e do agora, tomados como ponto de referência pelo falante. Há, pois, um grande descompasso entre forma e sentido no que diz respeito às flexões do verbo e dos respectivos tempos. Temos, inclusive, casos de polissemia das formas gramaticais (do pretérito imperfeito, do futuro do subjuntivo e, sobretudo, do presente). Não raro, as formas são limitadas, devido a um sistema (econômico) com poucas ferramentas para infinitas ocasiões de uso. Aliás, entre necessidade semântica e solução gramatical inexiste uma relação de exata correspondência. Adverte-se que, mesmo nesse sistema econômico, há várias soluções gramaticais para uma só necessidade; ora uma única solução atende a várias necessidades. Pelas considerações expressas neste estudo, depreende-se que refletir sobre os tempos verbais poderá, com certeza, redirecionar análises e interpretações de textos, incorporando até a própria tipologia do discurso. REFERÊNCIAS AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000a. ______. Uma abordagem textual das categorias do verbo. In: ______. (Org.). Língua portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000b. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Revistada e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 34 BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et alli. Campinas, SP: Pontes, 1989. CORÔA, Maria Luiza Medeiros Sales. O tempo nos verbos do português: uma introdução à sua interpretação semântica. São Paulo: Parábola: 2000. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996. GOUVÊA, Lúcia Helena Martins. Função dos tempos verbais. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno14-09.html. Acesso em fev. 2007. KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2000. LYONS, John. Categorias gramaticais. In: ______. Introdução à lingüística teórica. Trad. 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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 35 b Ensino de Língua Portuguesa e as concepções de Linguagem Eliana Crispim França Luquetti* ____________________________________________________________________Resumo O artigo discute a relação entre o ensino de Língua Portuguesa e as concepções de linguagem. Nesse sentido, a motivação para a discussão apresentada surge com a observação da prática na sala de aula de Língua, que muitas das vezes não reflete o verdadeiro exercício e aquisição do conhecimento da língua. Palavras-chave: Língua, Linguagem, Ensino, Gramática Tradicional, Lingüística ___________________________________________________________________________________ 1 Introdução O presente artigo tem como objetivo discutir a relação entre o ensino de Língua portuguesa e as concepções de linguagem, visando promover uma reflexão sobre esta relação que tanto inquieta os estudiosos da língua. Além disso, repensar as estratégias pedagógicas utilizadas na viabilização do ensino-aprendizagem de língua. 2 Relação entre as concepções de linguagem e o ensino de língua portuguesa Segundo essa concepção de linguagem, a Gramática Tradicional ou Normativa se constitui no núcleo dessa visão mais conservadora do ensino da língua, pois vê nessa gramática uma perspectiva de normatização da língua, tomando como modelo de norma culta as obras dos nossos grandes escritores clássicos. Portanto, nessa corrente do pensamento lingüístico, saber gramática, teoria gramatical, é a garantia de se chegar ao domínio da língua oral e escrita. Outra concepção corrente no ensino da língua é a que considera a linguagem como instrumento de comunicação. A língua - como diz Luiz Carlos Travaglia(2003, p.31) - "é vista como um código, ou seja, um conjunto de signos que se combinam segundo regras e que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor". Francis Vanoye (1981), em Usos da Linguagem: Problemas e Técnicas na Produção Oral e Escrita, por exemplo, explora a teoria da comunicação no ensino de redação segundo as funções da linguagem: emotiva, apelativa, referencial, poética, metalingüística e fática. Sob a influência da Lingüística Estrutural (de Saussure e Jakobson, entre outros), essa concepção de linguagem vê no trabalho com as estruturas lingüísticas - separada do homem no seu contexto social - a possibilidade de desenvolver a expressão oral e escrita. Portanto, para os estruturalistas, saber a língua é, sobretudo, dominar o código. Ainda dentro dessa concepção de linguagem, pode-se incluir o transformalismo (de Chomsky e seus seguidores) que se preocupa com as formas abstratas da língua. Devido a essa vertente do estruturalismo americano não ter, entre suas preocupações, explicar como o falante aplica sua competência lingüística em situações concretas de fala e escrita, poucas conseqüências trouxe para o ensino de Português. A terceira concepção considera a linguagem como processo de interação. Essa perspectiva interacionista tem suas origens na abordagem pragmática dos estudos lingüísticos: * Doutora em Lingüística pela UFRJ-RJ. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 36 há preocupação com os usos da linguagem, ou seja, o que se faz com ela, em que circunstâncias e com que finalidades. Segundo essa concepção, o indivíduo emprega a linguagem não só para expressar o pensamento ou para transmitir conhecimentos, mas também para agir, atuar sobre o outro e sobre o mundo. Segundo Elisiani Vitória Tiepolo (2003,p.35): "Perceber a natureza social da linguagem, enquanto produto de uma necessidade histórica do homem"(...) leva-nos à compreensão do seu caráter dialógico, interacional". E, considerando o componente pragmático, essa concepção de linguagem privilegia o estudo da literatura, da leitura e da produção de texto, uma vez que são explicitadas as condições de produção e recepção de textos de autores e leitores históricos. As modernas correntes e teorias sobre o estudo da língua, como a Lingüística Textual, a Análise do Discurso, a Semântica Argumentativa e a Pragmática, podem oferecer grandes contribuições para o ensino de língua portuguesa, segundo essa abordagem dialógica/interacional. Essas concepções de linguagem estão filiadas a correntes filosóficas mais abrangentes no âmbito educacional. O ensino de Português - segundo a visão de linguagem como representação do mundo e reprodução do pensamento - está relacionada à Escola Tradicional. A partir da Reforma do Ensino, com a Lei 5.692/71, que implantou a Escola Tecnicista, de cunho positivista, preponderaram a influência do estruturalismo lingüístico e a concepção de linguagem como instrumento de comunicação. No entanto, o exame do material didático e das práticas do ensino da língua, a partir dessas duas tendências educacionais, tem demonstrado que não se conseguiu superar um ecletismo pedagógico no ensino de Português. Com a nova LDB, Lei 9.394/96, que prega a formação do aluno para viver em sociedade, enfatizam-se os métodos interacionistas de ensino da língua, em que a linguagem é vista como forma de ação sobre o outro e sobre o mundo. 3 Uma outra perspectiva de ensino de língua portuguesa Uma outra perspectiva em relação ao ensino de língua portuguesa, ou ainda, há uma preocupação cada vez mais acentuada com leitura e escrita, decorrente de uma visão mais crítica e seletiva da gramática normativa, cujo estudo, há algum tempo, dominava as aulas de Português, como já vimos anteriormente. O estudo mais sistemático dos diversos níveis sociolingüísticos e a aceitação do princípio segundo o qual se deve respeitar a língua que o aluno já domina e que traz para a escola, além de eliminar preconceitos de natureza lingüística, fato bastante positivo, têm obrigado o professor a refletir mais profundamente sobre o caráter dinâmico da língua e sobre a realidade lingüística regional da realidade em que atua. Outra tendência que parece firmar-se cada vez mais é a eleição de um lugar privilegiado para o trabalho interdisciplinar, o que provoca um redimensionamento de toda a grade currricular da escola em nome de um projeto maior e com objetivos mais amplos e claros. Finalmente, para ficar em apenas três fatos, a ampliação do conceito de linguagem: hoje, nas aulas de Português, estudam-se muitos tipos de linguagem, não só a verbal (língua), incorporando-se temas tratados na linguagem dos quadrinhos, do cartum, do cinema, da televisão. A amplitude do universo de informações disponíveis hoje é de uma vastidão assustadora e cresce com uma velocidade tão surpreendente que a competência mais importante do indivíduo que busca informação é saber como fazê-lo e como selecionar o que lhe interessa. Se o professor conseguir levar o aluno a adquirir essas competências básicas (busca e seleção), metade do caminho terá sido percorrida. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 37 Como última observação, mas não menos importante, já é tempo de a escola assumir seriamente que capacitar o aluno para bem ESCREVER e LER não é tarefa exclusiva do professor de Português, mas envolve todas as disciplinas, tem de fazer parte de todos os planejamentos e deve ser prioridade no projeto pedagógico da escola. 4 Conclusão Abordadas essas concepções e feitas essas observações, pode-se concluir que o desenvolvimento do domínio da língua oral e escrita depende, dentre outros fatores, da lógica, do bom-senso, dos conhecimentos lingüístico, referencial e do mundo, para o qual podem concorrer as contribuições dessas diversas vertentes do ensino de Português. Nesse sentido, é importante que se evite ser - como diz Moita Lopes (2001) - um professor dogmático, adepto de certos modismos de como ensinar a língua, em favor de um envolvimento maior na reflexão crítica sobre o seu próprio trabalho 4 Referências Bibliográficas BAGNO,M. 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A motivação para a pesquisa apresentada surge com a percepção do uso da ordem VS no discurso narrativo escrito de alunos brasileiros aprendizes de inglês como L2 (EL2), língua que restringe a posposição do sujeito, ao menos nos contextos observados. Tentou-se verificar se este fenômeno sinalizaria transferência de uso da língua materna (L1) para a língua alvo (L2). A hipótese da pesquisa foi a de que o uso desta estrutura nas narrações inglesas seguiria a mesma motivação discursiva que explica seu uso na língua portuguesa, confirmando a hipótese funcional apresentada em Naro e Votre (1999), com base em Hopper & Thompson (1981). Associada a esta hipótese, está a de Givón (1979), que abarca fenômenos de estruturas lingüísticas em L2, a partir de motivações comunicativas da L1, em especial em estágios iniciais de aquisição com sua diminuição em estágios mais avançados de uso da língua, em outras palavras, a de que há, no processo de transferência L1-L2, questões acima do nível sintático-estrutural. Palavras-chave: Funcionalismo. Planos discursivos. Modo pragmático e sintático. Aquisição de L2. ___________________________________________________________________________________ 1) Introdução O artigo discutirá o uso da ordem Verbo-Sujeito (VS) em inglês como L2, com base na distinção entre modo de comunicação pragmático e modo de comunicação sintático da lingüística funcionalista americana e com base nas pesquisas de Votre e Naro com relação ao uso da ordem VS em português. A abordagem funcionalista estuda a estrutura gramatical inserida na situação real de comunicação, considerando o objetivo da interação, os participantes e o contexto discursivo. Procura, nesses elementos, a motivação para os fenômenos investigados. Segundo essa linha de estudo, cada porção do comportamento lingüístico tem um propósito comunicativo específico que o ativa; [...] a forma é determinada por sua adequação para expressar esse propósito no interior da organização pragmática geral da comunicação” (NARO & VOTRE, 1986, p. 454). Essa citação refere-se ao princípio universal da iconicidade, segundo o qual a forma lingüística tende a ser motivada pela função. Isto não quer dizer que não haja arbitrariedade lingüística, mas que o usuário molda o seu discurso de acordo com os seus propósitos comunicativos, o que pode explicar desvios de uso de estruturas no discurso de L2. Para explicarmos determinadas transferências da gramática de L1 para a de L2, utilizaremos (a) a concepção de plano discursivo, conceito definido por Hopper (1979), (b) a de transitividade, segundo Hopper & Thompson (1981) e (c) a concepção apresentada por Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 39 Givón (1979 e 1995) de que existe um modo pragmático e um modo sintático ou gramaticalizado de comunicação, que estão estritamente ligados ao princípio da iconicidade. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 40 2) A noção de planos discursivos Hopper (1979), baseado em pesquisas feitas por psicólogos e em observações de um grande número de línguas, postulou que, ao contar uma história, seus usuários embalam as informações de acordo com suas percepções acerca do fato, acerca das necessidades do ouvinte e dos objetivos comunicativos. Nessa perspectiva de registro da realidade perceptual, os pontos principais de uma história, ou seja, as ações, são vistos no plano de figura (foregrounding) e os comentários, as avaliações ou ações secundárias, compõem o plano de fundo (backgrounding). As orações figura aparecem ordenadas numa seqüência temporal, pois a mudança de ordem alteraria a informação sobre o que ocorreu no mundo real. Isso já não ocorre com as orações de fundo. Inúmeras línguas apresentam morfossintaxe para distinguir esses planos. Em swahili10, por exemplo, há um prefixo de tempo (ka), que marca as orações figura, indicando o caminho da linha principal da história. As orações que apresentam ações simultâneas ou comentários recebem outro prefixo (ki) no verbo. O prefixo sinaliza ao ouvinte que os eventos assim marcados fogem da linha principal da história. Também no chinês coloquial da Indonésia, em certos verbos, há diferentes prefixos para marcar os planos: di indica figura e ng, fundo, por exemplo. Em línguas como o português, a figura não é marcada morfologicamente, mas as orações figura também têm características típicas em contraste com as orações fundo. A seguir, apresentamos as principais características desses dois planos, segundo Hopper, 1979: FIGURA (FOREGROUND) Seqüência cronológica. Eventos reais, dinâmicos, pontuais e completos. Sujeitos previsíveis (tópicos), humanos e agentivos. Codificação morfossintática: orações coordenadas, principais ou absolutas; formas verbais perfectivas. FUNDO (BACKGROUND) Eventos simultâneos. Eventos não necessariamente completos, irreais e nãopontuais. Situações estáticas, descritivas. Situações necessárias para compreensão de atitudes (subjetividade). Freqüentes trocas de sujeitos. Estrutura sintática: orações subordinadas (mas o fundo também pode ser codificado por orações coordenadas, absolutas ou principais), verbos nãoperfectivos. Quadro 1: Características das cláusulas figura e fundo. As orações figura são mais simples, em nível morfossintático, do que as orações fundo. Além disso, estas são de diferente ordem, pois podem expressar causa, concessão, tempo, dúvida, hipótese, além de avaliações com simples predicados nominais. Enquanto as orações figura se referem a situações objetivas, ou seja, ações que aconteceram, as orações fundo muitas vezes se referem a elementos subjetivos, ligados a comentários do narrador e a 10 Língua banta da família nigero-congolesa, falada na costa oriental e em ilhas da África. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 41 suas avaliações diante das atitudes dos participantes da história. Vale ressaltar que as orações figura não são necessariamente mais importantes do que as orações fundo. As primeiras são importantes para o esquema narrativo, mas não propriamente para o objetivo da narrativa. Podemos contar uma história para avaliar as atitudes de um participante, ou para argumentar a favor de uma tese, e assim as orações fundo tornam-se mais importantes para atingir os objetivos comunicativos. Dentre os diferentes modos de expressar a diferença entre figura e fundo, Naro & Votre (1999) descobriram que a ordem VS11 está a serviço do fundo em português, em contextos em que o sujeito não é tópico e é apresentado como novo no discurso. Com relação à pesquisa aqui apresentada, nossa hipótese principal é a de que os falantes transfiram para a segunda língua o uso de VS (pelo menos nos níveis mais básicos de aprendizagem de L2) no mesmo contexto em que a utilizam em português, ou seja, em situações específicas de fundo12. 3) Modo pragmático e modo sintático/gramaticalizado Givón (1979 e 1995) postula a existência de dois modos de comunicação: o modo pragmático e o modo sintático ou modo gramaticalizado. O modo pragmático é mais icônico, vinculado ao contexto de comunicação, apresenta orações mais justapostas ou coordenadas, apresenta estrutura de tópico-comentário e ordem de palavras controladas por princípios pragmáticos. O modo sintático ou gramaticalizado, por outro lado, é menos vinculado ao contexto imediato de comunicação, apresenta mais coesão, com orações encaixadas, conectivos variados, estrutura sujeito-predicado e ordem de palavras mais fixa. Segundo o autor, os falantes utilizam os dois modos de comunicação depois que adquirem totalmente sua língua materna, mas cada modo tem um contexto específico para uso. Quando a criança está aprendendo a língua materna, por exemplo, usa mais o modo pragmático, com estruturas menos subordinadas, ordens de palavras mais livres, etc. À medida que se insere na cultura dos adultos, aprende a usar o modo sintático, mas não abandona o modo pragmático. Quando adulto, controla uma escala que vai do extremo pragmático a um extremo sintático, gramaticalizado. Tal calibragem se dá de acordo com a tensão comunicativa envolvida no processo comunicativo interacional (cf. Ochs, 1979)13. Assim, o modo pragmático é retomado em diferentes situações: no uso de um pidgin, na aquisição de L2 e nas situações mais informais de fala. No caso da aprendizagem de L2, em cursos de línguas, as regras são, em geral, claramente expressas, são repetidas e o aluno já tem um conhecimento metalingüístico aprendido nas aulas de L1. No entanto, mesmo sendo apresentado formalmente às regras, o indivíduo, ao falar a L2, utiliza o modo pragmático, ao produzir orações soltas, sem conectivos, ordem de palavras mais livre e mais icônica (do tipo tópico-comentário), repetição de palavras, pouca flexão, tudo isso por estar 11 Como em “Aí ... vinha outra Kombi” Vale ressaltar que, com exceção de algumas expressões fixas, ou de contextos específicos de língua escrita, em inglês apenas a ordem SV (O) é gramatical (ou seja, mesmo em construções de fundo, sempre se usa o sujeito anteposto ao verbo). 13 A autora sugere que “quando falantes não planejam seu discurso, eles se baseiam mais fortemente em habilidades morfossintáticas e discursivas adquiridas nos primeiros 3-4 anos de vida” e não apresentam as características do discurso planejado, por sua vez, adquiridas mais tarde, em geral, transmitidas via educação formal. 12 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 42 numa situação de estresse comunicativo mais acentuado. Quanto à escrita, apesar de Givón não expressar isso claramente no seu trabalho, podemos dizer que a língua escrita do aprendiz de L2 se assemelha à língua oral de uma criança aprendendo a escrever em L1: com uso de frases soltas, com poucos elementos de ligação e pouca subordinação, dentre outras características; os elementos de ligação existentes são coordenativos e bastante previsíveis (em português as conjunções e, mas, então, aí e porque são muitos freqüentes). À medida que imerge nos estudos da L2, este indivíduo adquire o modo sintático daquela língua. Givón afirma que a diferença entre os modos pragmático e sintático também pode ser vista na comparação entre a fala informal e a fala formal. Quanto mais planejado o discurso, menos orações justapostas, menos repetições, menos construções tópico-comentário há no discurso e vice-versa. Podemos, assim, dizer que sendo a escrita mais planejada que a fala, na escala que vai do modo mais pragmático ao modo mais gramaticalizado, a fala informal está em um dos pólos e a escrita formal no outro. Apresentamos a seguir as hipóteses relacionadas aos modos de comunicação que estão sendo testadas nessa pesquisa: (a) como a aquisição de L2 pressupõe o uso do modo pragmático, a ordem de palavras dos textos dos indivíduos que estão iniciando a aprendizagem de EL2 (Inglês como L2) é mais livre do que a de um nativo de inglês; (b) além disso, como a ordem VS é motivada em português, os indivíduos tendem a usar a ordem VS em EL2 nos mesmos contextos semântico-pragmáticos que a utilizam em português. 4) Contribuições funcionalistas para o estudo da aquisição de L2 Como vimos, Givón (1979) apresenta uma proposta sobre o desenvolvimento dos processos de aquisição de L1 e L2, que consiste na passagem de uma língua com estruturas discursivas, ditas, frouxas e paratáticas, que evoluem, em estruturas sintáticas, compactas e gramaticalizadas. Para Givón, as línguas iniciais de L1 e L2 passam de um estágio mais suscetível a pressões pragmáticas e discursivas, para um estágio de maior estabilização sintática. Slobin (1991), referindo-se também à aquisição de L2, afirma que a fala é determinada por nossas experiências, intuições comunicativas e pelas distinções de sentido definidas nas gramáticas das línguas. Ou seja, cada língua natural treina seus usuários a atentar de modo diferenciado para eventos e experiências ao codificá-los lingüisticamente. Tal aprendizado é de difícil reestruturação no processo de aquisição de L2, por se tratar da forma como nossa mente se comporta a partir da exposição à L1. 5) A questão da aquisição de língua e da ordenação vocabular: implicações Com base na hipótese givoniana de que o adulto em processo de aquisição de L2 retorna ao modo pragmático de comunicação e com base na teoria de Slobin a respeito da fixação da expressão da experiência especificada de língua para língua, desenvolvemos uma pesquisa funcionalista sobre o uso agramatical da posposição do sujeito (VS) em contextos narrativos escritos de aprendizes de EL2, como os apresentados nos exemplos (1) e (2) a seguir, retirados das redações que compõem o nosso corpus: (1) When we were coming back appeared a thief and stilling the Bank Itaú the police arrived and arrested them (BAS) Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 43 (2) On the day 21 december, 2001, happened one thing that changed all their lives. The father was fired from work (BAS)141516. Vemos que os alunos colocaram os sujeitos “a thief” e “ one thing that changed all their lives” na posição pós-verbal, o que é permitido em português, mas não no inglês (pelo menos não em contextos como esses, sem a presença de um sujeito expletivo there). Acreditamos que os alunos transfiram a posposição do sujeito, fenômeno discursivamente motivado na sua língua materna, para o inglês como L2, segundo os mesmos princípios funcionais que direcionam o surgimento de VS na sua prática discursiva diária em L1. Para compreendermos o fenômeno, utilizamos os estudos funcionalistas de Naro e Votre (1999) sobre a co-ocorrência das ordens VS / SV no Português do Brasil (PB). Para esses autores, a ordem VS possui papel funcional importante, no que diz respeito ao relevo discursivo do texto do falante por estarem organizadas no plano de fundo das narrativas, enquanto a ordem SV tende a surgir em trechos discursivos de maior relevância – pertencentes ao plano de figura – compondo a linha principal de progressão do discurso, não estando, contudo, restrita a este contexto. Segundo Pezatti (1994), o pensamento e a comunicação humana registram o universo individual do falante como “uma hierarquia de graus de centralidade / perifericidade a fim de facilitar tanto a representação interna quanto a exteriorização para as pessoas”. São os objetivos comunicativos do falante que determinarão a organização textual: da escolha de palavras à construção de sentenças específicas, chegando ao texto como um todo. O uso das cláusulas VS nas narrativas em PB caracteriza tal representação, o que, nas palavras de Slobin, significaria um tipo de treinamento mental específico da língua portuguesa. A respeito da associação do uso da ordenação VS com a questão do modo pragmático, podemos afirmar que o uso da ordem contempla a proposta de Givón apresentada, visto que, segundo ele, é típico de aprendizes de uma L2 o uso, como já dito, de uma ordenação de palavras mais frouxa e com reflexos pragmáticos de comunicação. Sendo o inglês uma língua SV(O), o uso de construções de sujeito posposto seria, a priori, inadequado, se os informantes, em questão, não fossem aprendizes de um segundo idioma. Em outras palavras, podemos dizer que o uso agramatical da ordenação verbo-sujeito se deve a motivações pragmáticas, tais como: a) a ordem VS apresenta um referente novo no discurso codificado através de sujeito posposto, e este referente novo não é tópico. b) a ordem VS, por conta disso, representa o comentário do fluxo de informação – função discursiva específica do PB de determinar orações de fundo. Acreditamos que, graças a estas características da cláusula VS, seu uso seja possível na produção discursiva de brasileiros aprendizes de EL2 (inglês como L2). Teríamos, desta forma, a associação de dois fatores propiciadores do uso: a transferência comunicativa de um recurso discursivo típico da L1 para a L2 e a tendência universal de falantes de um segundo idioma reverterem o modo pragmático de comunicação para dar conta de suas necessidades comunicativas. 14 Os dados estão apresentados na sua forma original, respeitando-se a produção do aluno, independentemente de possíveis erros. 15 BAS – nível básico, INT – nível intermediário, AVD - nível avançado 16 (1) Quando estávamos voltando apareceu um ladrão e roubando o Banco Itaú a polícia apareceu e os prendeu. (2) No dia 21 de dezembro de 2001 aconteceu algo que mudou suas vidas. O pai foi demitido. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 44 6) Análise dos dados O corpus desta pesquisa foi construído com dados retirados de testes de julgamento de gramaticalidade (TJG) e de redações feitas por alunos de uma instituição de ensino de idiomas na cidade do Rio de Janeiro. A amostra final foi composta por 255 testes de aceitabilidade e 255 redações (narrações), sendo 85 de cada um destes aplicados em informantes do ciclo básico, 85 em informantes do ciclo intermediário e 85 em informantes do ciclo avançado. O teste de aceitabilidade consistiu em um primeiro exercício em que apresentamos 21 frases descontextualizadas, em inglês, todas com algum tipo de erro gramatical. Desse grupo, apenas 6 sentenças tratam especificamente do fenômeno da VS. Caberia ao aluno classificar cada frase do exercício como correta ou incorreta. Se o aluno julgasse determinada sentença como inaceitável, ele deveria corrigir as frases, que, por sua vez, foram cláusulas de cunho narrativo e possuiam características de orações de fundo, com verbos apresentativos, do tipo to appear, to arrive17 etc. Neste mesmo teste, foi aplicado um segundo exercício apenas aos 85 informantes do ciclo intermediário e aos 85 do ciclo avançado, compondo outra amostra de 170 testes. Neste exercício, encontramos uma pequena narração,18 de onde foram separadas sentenças contendo palavras, expressões ou orações assinaladas para que o aluno pudesse identificar alguma estrutura considerada errada naqueles contextos. Novamente, foram registrados problemas diversos, sendo que apenas duas sentenças tratavam do fenômeno da inversão de sujeito, são elas: a) Agitated, shouted the woman to the man: “The house is in the garage” b) Ten minutes later, returns the man from the garage with the hose19 Com relação à produção dos alunos, encontramos 23 ocorrências de uso de VS com verbos intransitivos e 14 com verbos cópula, como nos exemplos (3) e (4) a seguir: (3) When I went there and opened the door I saw all my friends that was playing with me, all my family, my friends at school. For me it was a big surprise because I didn’t imagine that they did one party. When I was talking to my friends on the street, passed a motorcycle and splilled water all over my body. That day I will never forget. (INT) (4) For some minutes I thought about their’s opinions, but sudanly appered a man to show me many aparts at that area, so I became almost convinced, but after the man told me about the price I became worried and I spoke with the man that the price were very high, after that I decided to look for other’s apartments to compare with those one. (AVD) 2021 17 18 Aparecer e chegar Em se tratando de um trabalho de lingüística funcional, a preocupação com o contexto e a situação comunicativa foram contempladas no teste 2, por se tratar de um texto. 19 a) Agitada, gritou a mulher para o homem: “A mangueira está na garagem” b) Dez minutos mais tarde, retorna o homem da garagem com a mangueira 20 Só estão numerados no artigo os exemplos de dados produzidos nas redações. 21 (3) Quando eu fui para lá e abri a porta, vi todos os meus amigos que estava brincando comigo, toda minha família, meus amigos de escola. Para mim, foi uma grande surpresa porque eu não imaginava que eles fizeram uma festa. Quando eu estava conversando com meus amigos na rua, passou uma bicicleta e espirrou água por Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 45 Nos dados acima, os alunos usaram a ordem VS, ao invés de SV, em ‘passed a motorcycle’ e appered a man’. O nivelamento destes alunos foi definido pelo critério de tempo de exposição ao idioma, conforme o quadro: Nível Tempo de Exposição ao idioma Básico exposição de até 2,5 anos à língua Intermediário exposição de até 4,5 anos à língua Avançado exposição de até 7 anos à língua Quadro 2 – Classificação dos grupos por tempo de exposição à língua Como dissemos, a expectativa era a de que o tempo de exposição ao input da L2 definisse a percepção de aceitabilidade e o uso de VS por falantes não nativos de inglês. Em outras palavras, esperava-se que a ordem SV prevalecesse nos discursos de sujeitos fluentes, o que apontaria para o desenvolvimento do modo de comunicação sintático (Givón 1979). Assim, o modo pragmático, mais icônico e que atende as necessidades discursivas mais imediatas do usuário, passaria a ser menos presente na gramática do falante de L2, a qual apresentaria sintaxe mais fixa, regular e menos sujeita a pressões discursivas típicas da L1. Da mesma forma, postulou-se que o uso inapropriado da ordem VS em contexto de aquisição escrito de L2 diminuísse também nas redações numa relação inversamente proporcional a um maior tempo de exposição ao input. Em termos práticos, este fato refletiria o encaminhamento do modo sintático em detrimento ao modo pragmático. O falante, por não mais precisar de estratégias comunicativas que facilitem a expressão de suas vontades, passa a apresentar um modelo comunicativo de menor variação interna, sintaxe mais estável e com ordenação vocabular mais consistente e coerente com o sistema adquirido. Logo, o encaminhamento gramatical do discurso em L2 se reflete pela diminuição de uso da posposição do sujeito em função da ordem fixa SV. Para verificar a diminuição do número de ocorrências de cláusulas VS nos textos escritos pelos alunos em L2, utilizamos um cálculo que verifica a regularidade de ocorrências do fenômeno dentro de um dado campo amostral, aqui o número de palavras. Verificamos a ocorrência de VS em cada 1000 palavras produzidas por cada grupo de alunos (cada nível de aprendizagem). Não era esperado um grande número de dados devido à baixa proficiência de alunos do nível básico, que representaria uma limitação à produção como um todo22. Na Tabela 1, encontramos o número de ocorrências de VS por ciclo e sua média a cada mil palavras de representatividade dentro da amostra: todo meu corpo. Aquele dia eu não esquecerei. (4) Por alguns minutos eu pensei sobre suas opiniões, mas de repente apareceu um homem para me mostrar muitos aparts naquela área, então eu fiquei convencido, mas depois que o homem me falou do preço, eu fiquei preocupado e falei para o homem que o preço estavam muito altos, depois disso eu decidi procurar outros apartamentos para comparar com aqueles (sic) 22 Vale ressaltar que o fato de estarmos lidando com um fenômeno de cunho sintático e de ordem marcada limitou o número de achados de dados reais, que foi de 23. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 46 Básico Avançado Intermediário Ocorrências de VS N MP N MP N MP 10 1,3 6 0,5 7 0,06 5 0,65 3 0,24 6 0,41 V1 V2 Tabela 1 – Ocorrência de VS por nível23 Observando apenas os dados com verbos intransitivos (V1), identificamos a média de 1,3 ocorrências de VS a cada 1000 palavras no ciclo básico, 0,5 no ciclo intermediário e 0,06 no avançado24. Os resultados revelam que, na passagem do nível básico para o intermediário, há diminuição de ocorrência de uso VS que passa de 1,3/1000 palavras para 0,5/1000. O mesmo ocorre na passagem do ciclo intermediário para o avançado, onde se percebeu diminuição de uso de 0,5/1000 palavras para 0,06/1000. Tais dados mostram, assim, importante diminuição de uso da estratégia da inversão do sujeito, na passagem entre os três ciclos. Pode-se inferir que, numa abordagem longitudinal de estudo de aquisição de L2, a força desta estratégia pragmática diminui em função do domínio da gramática e das estratégias pragmáticas da L2 adquirida. Pelos dados, observamos então que a estratégia discursiva de uso da ordem VS diminui, conforme esperávamos, ao longo do período de exposição à L2, chegando ao índice de uso mais baixo no ciclo avançado (0,06 /1000) e confirmando a hipótese de Givón sobre o processo de sintaticização, presente não apenas na passagem de pidgins a crioulos, na aquisição de L1 e no domínio da linguagem formal, mas também na aquisição de uma L2. O resultado da análise dos dados das redações converge para a hipótese principal desta pesquisa de que, ao manifestar a inversão do sujeito em inglês, o aluno aprendiz está transferindo da L1 uma estratégia discursiva específica. As características do item verbal e sujeito das cláusulas VS verificadas correspondem àquelas verificadas na pesquisa de Naro e Votre (1999). Quanto ao item sujeito, vimos que este geralmente é um dado novo dentro do discurso, além de (-) volitivo, (-) individuado e extenso. O item verbal, por sua vez, reflete o uso freqüente dos verbos intransitivos ‘to appear’ e ‘to happen’ nas cláusulas VS em inglês e apresenta manutenção de tempo e aspecto de forma coerente com a função de informação de fundo a que se constitui a cláusula VS. Além do mais, percebemos a tendência de que estes verbos não denotem a informação semântica que isoladamente representam, o que 23 N- Número de Palavras; MP – Média em 1000 palavras; V1 – verbos intransitivos; V2 – verbos cópula Dados referentes aos verbos intransitivos. Devido as idiossincrasias do verbo cópula, ele foi descartado desta análise. 24 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 47 também contribui para o aspecto difuso da cláusula25. Tais características estão também presentes na cláusula (5), produzida por aluno, apresentada a seguir: (5) I had dinner and go out with my mom […] but, suddenly, appeared the most beautiful and perfect boy in the world. Wow! What a boy! (BAS)26 Em suma, há uma tendência geral, de que, no discurso em L2, a ordenação VS também corresponda às circunstâncias fora da seqüência narrativa, ou seja, do plano de fundo, conforme seu condicionamento em PB como L1 e compondo a porção de comentário do conjunto textual. Os resultados dos testes de aceitabilidade também favorecem a hipótese da transferência do uso motivado de VS e da implicatura da presença do modo pragmático comunicativo de Givón. Os resultados gerais mostram que a posposição do sujeito passa a ser mais percebida como uma estrutura não comum no inglês à medida que o aluno internaliza a gramática deste idioma e identifica a forma SV como a mais recorrente nesta L2. Na Tabela 2 apresentamos os resultados referentes à percepção dos alunos quanto ao uso de VS em Níveis Nível Básico Nível Intermediário Nível Avançado Percepção do aluno Nãopercepção Percepção Nãopercepção Percepção Nãopercepção Percepção Totais 92% 8% 84% 16% 73% 27% inglês. Tabela 2 – Percentuais de Percepção da ordem VS como gramatical no inglês Estes resultados comprovam nossa hipótese sobre a transferência do uso discursivo da ordenação VS no processo de aquisição de EL2, visto que, nos três níveis testados durante o experimento, predomina a percepção de cláusulas VS como gramaticais por parte dos alunos, já que eles não reconhecem que essas orações estão incorretas. Percebemos, em linhas gerais, que 92% da totalidade de informantes do ciclo básico, 84% dos alunos do ciclo intermediário e 73% dos alunos do nível avançado aceitam a ordenação VS como construção do inglês. Consideramos que tal informação indica um alinhamento com nossa hipótese quanto à relação inversamente proporcional de que quanto mais alto o nível do aluno, maior exposição ao input da língua inglesa e menor necessidade pragmática de usos lingüísticos de situações comunicativas específicas, no caso, próprios de sua L1. Verificamos que os alunos de nível básico e intermediário tendem a reconhecer a agramaticalidade da cláusula na L2 em menor escala que o aluno de nível avançado. De qualquer modo, os dados iniciais também nos surpreendem por revelar uma ampla aceitação 25 Cf. Naro e Votre (1999) (5) Eu jantei e sai com minha mãe […] mas, de repente apareceu a menino mais bonito e perfeito do mundo. Uau! Que menino! 26 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 48 da ordem por alunos com tempo mais longo de exposição à língua. Isso parece indicar que, como eles não estão totalmente expostos à cultura de falantes de inglês como L1, esses alunos levam mais tempo para adquirir o modo gramaticalizado (de um modo mais completo) da língua em questão. Além disso, investigando as cláusulas VS manipuladas nos testes de aceitabilidade, encontramos evidências de que o grau de transitividade das sentenças foi fator determinante para a aceitabilidade maior ou menor das orações como estruturas inglesas. As cláusulas que, segundo Hopper & Thompson (1980), apresentaram menor grau de transitividade detiveram os resultados de aceitabilidade mais altos (ou seja, os alunos não as viram como incorretas, na maior parte das vezes), posto que as propriedades de transitividade destas orações revelam cláusulas mais próximas da VS prototípica que funciona no plano de fundo das narrativas em PB, como a frase ‘I was in the bank line when crashed two cars in front of the bank’27 que inclusive foi pouco reconhecida como errada até mesmo pelos alunos do nível avançado. Por outro lado, as cláusulas que apresentaram os menores índices de aceitabilidade, ao contrário das primeiras, apresentam graus de transitividade maiores, o que as aproxima mais das cláusulas do plano de figura. As características de transitividade que se sobressaem quanto à diferenciação de resultados são as que dizem respeito ao traço de cinese dos verbos, e as características de volição e agentividade do item sujeito. Cabe ressaltar, no entanto, que todas as cláusulas foram amplamente aceitas pelos alunos testados nos três níveis de aprendizagem considerados neste experimento, embora umas tenham apresentado média de aceitabilidade maior que outras. Assim, esta pesquisa constata que a transferência de VS existente entre o PB como L1 e o inglês como L2 não fica estanque ao nível sentencial, mas extrapola a questão estrutural em função das necessidades comunicativas requeridas a um falante aprendiz de L2. Ou seja, ao aceitar que cláusulas VS de transitividade mais baixa se constituam como integrantes da estrutura inglesa, o falante de L2 mostra que o uso da estratégia relacionada à ordem VS na sua língua materna permanece latente durante o processo de aquisição de L2. 7) Conclusão Como podemos ver, os pressupostos teóricos do funcionalismo americano se alinham com a pesquisa aqui apresentada, relacionada ao desenvolvimento (ou dificuldade de desenvolvimento) do modo sintático ou gramaticalizado. Os indivíduos que aprendem o inglês como L2, quando estão nos níveis iniciais, apresentam ordens de palavras mais frouxas e usam a ordem VS nos mesmos contextos em que a usariam em português, ou seja, em situações de fundo quando o sujeito não é tópico, quando o verbo é não-cinético, etc. À medida que os alunos aprofundam o estudo da língua estrangeira, deixam de usar o modo mais pragmático e diminuem sensivelmente o uso de estratégias agramaticais como o uso da ordem VS. Entretanto, apesar da tendência universal do modo sintaticizado (gramaticalizado) se sobrepor ao modo comunicativo pragmático nas línguas estabilizadas, o modo pragmático permanece latente na competência lingüística do falante o que favoreceria o surgimento de VS em níveis mais avançados, embora com menor destaque. Postulou-se, então, que a questão da transferência de aspectos oriundos da L1 para a aquisição de L2 extrapola desdobramentos lingüísticos sentenciais. Verificou-se, a partir dos estudos funcionalistas de Naro e Votre (1999), que (a) o uso da inversão do sujeito em inglês 27 Eu estava na fila do banco quando bateram dois carros na frente do banco Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 49 reflete características da posposição do sujeito no português brasileiro, ordenação que, nesta língua, representa uma estratégia pragmática de construção do relevo discursivo narrativo; e (b) o uso da inversão em contexto escrito de aquisição está de acordo com o princípio da iconicidade, segundo o qual formas lingüísticas devem ser explicadas, dentre outros aspectos, pelas motivações cognitivas que levam o usuário daquela língua a usá-las. Os resultados favorecem a hipótese principal desta pesquisa sobre a transferência deste recurso pragmático da L1 para a facilitação da comunicação em L2. Em outras palavras, ao apresentarem índices de aceitabilidade diferenciados para as diversas cláusulas dos TJG, os resultados confirmam a hipótese da transitividade de Hopper & Thompson (1980), que apontam para a tendência de orações intransitivas constituírem porções do plano de fundo da narrativa. O uso da ordenação VS, já descrito por Naro e Votre (1999), exerce no PB esta mesma função comunicativa, e, ao transferir seu uso para o inglês, o aluno também sinaliza, para seu interlocutor, que a porção de informação assim codificada pertence ao plano de fundo. Sobre o uso do modo pragmático por aprendizes de uma L2, proposto por Givón (1979), podemos dizer que este também é verificado nos resultados, visto que, em todos os três níveis de aprendizado, houve aceitabilidade da ordenação VS. Isto mostra que, embora o nível avançado tenha apresentado aceitabilidade menor para todas as cláusulas, o uso do recurso da ordenação vocabular frouxa e que reflete a função comunicativa das formas permanece nos três níveis de aprendizado da testagem. Segundo a perspectiva de estudos de transferência lingüística, temos, então, um processo de transferência que está além do plano sintático-estrutural, mas no plano pragmático-discursivo, ou seja, no campo de uso de estratégias eficazes de comunicação. 8) Referências FREITAS Jr, R. Reflexos pragmático-discursivos da L1 na aquisição de inglês como L2: um estudo sobre o uso da cláusula VS. Rio de Janeiro, 2006. 128 p. Dissertação (Mestrado em Lingüística). Faculdade de Letras, UFRJ. FURTADO DA CUNHA, M. A.; RIOS DE OLIVEIRA, M. MARTELOTTA, M. (Orgs.). Lingüística Funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. GIVÓN, T. Functionalism and Grammar. Armsterdan: John Benjamins, 1995. _____. On understanding grammar. 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Palavras-chave: crônica, crítica literária, literatura. __________________________________________________________________________________________ Lembrar e escrever: trata-se de um relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica vivido – uma definição que se poderia aplicar igualmente ao discurso da História, a que um dia ela deu lugar. (ARRIGUCCI, 1987, p.51). A crônica, na modernidade, exige uma visão bastante atenta para a apreensão tanto de seus limites quanto de seus alcances. O cronista, desde a Idade Média, na narrativa de caráter documental à documentação do cotidiano, na modernidade, é dotado do que se pode considerar livre arbítrio que faz com que sua abordagem temática ultrapasse esses limites do cotidiano. Este processo de liberdade do escritor tem proporcionado uma visão subjetiva para a narrativa que assumiu, entre nós, o papel de texto que prima pela linguagem coloquial e cujos assuntos voltavam-se para as amenidades da vida cotidiana. Candido (1992) questiona a expressão “gênero menor” e assinala “para os milagres operados pela simplificação e naturalidade”. Apoiado nestes dois aspectos, este estudo verifica que a questão da simplicidade, lingüística e temática, e até mesmo o caráter breve do texto cronístico têm sido elementos propiciadores ao acesso do leitor à visão humana no que diz respeito ao seu cotidiano. O que Candido propõe, ao dizer que ao não lançar mão da grandiloqüência e que ainda que a perspectiva do cronista não “seja a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do chão”, é que a crônica pode assumir caráter de texto literário e seu comprometimento com a temática cotidiana poderá vir impregnado de elementos expressivos, que possibilitam perceber outros pactos do texto com aqueles não préestabelecidos. Segundo Portella (1975) “o que interessa é que a crônica acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário”. Este estudo procurará registrar um percurso determinado da crônica para chegar ao foco principal: o olhar do cronista; o nascimento do folhetim; o espraiamento do gênero pela literatura na modernidade e a percepção de sua importância como objeto literário. * Mestre em Letras, pelo CES-JF-MG. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 52 Cronistas e viajantes: um olhar subjetivo Na Idade Média aparece a crônica, uma espécie de texto de que se utilizavam os cronistas para organizar os documentos e as narrativas sobre a história do Reino, em ordem cronológica. A etimologia do vocábulo pressupõe a marca temporal do texto que não passava de mero relato sobre uma ou outra personagem, sendo o objetivo primeiro o registro histórico e a documentação. No universo da documentação, constitui-se, assim, o surgimento da crônica. Em 1434, Fernão Lopes, além de pesquisador, promovido a cronista-mor do reino português, incluía em seus relatos não só as ações de reis e nobres, mas submetia os dados a um criterioso exame. Vivia-se, a partir deste momento, o limite entre as teorias do Antropocentrismo e do Teocentrismo: o homem dispôs-se a interferir objetivamente no mundo em que vivia. Passou a valorizar a própria capacidade intelectual e artística, tornando-se autor de descobertas científicas e criador de obras que seriam admiradas por séculos. A visão medieval de Fernão Lopes, entretanto, não impede a inscrição humanística que ele faz da História. A preocupação analítica, no sentido de colocar o leitor a par dos mínimos detalhes que caracterizam a história e até a valorização do aspecto plástico que o texto proporciona, faz de Fernão Lopes um instaurador de um status literário ao texto cronístico. O estilo elegante e coloquial, entremeado de narrações e descrições faz do texto cronístico, a partir de Fernão Lopes, um espaço que pode levar o cronista à recordação e a impressões pessoais ao narrar o fato histórico, registrando, portanto, uma nova espécie narrativa. Sobre a crônica de Fernão Lopes, Massaud (1990, p.32) registra: a atividade historiográfica evolui desde o frio e árido rol de nomes até à narração e interpretação dos fatos. Todavia, somente com Fernão Lopes adquire superior relevância, graças ao sentido duplo com que é praticada: o literário e o histórico propriamente dito. Os primeiros escritos de informação sobre o Brasil têm cunho notadamente descritivo e objetivam-se em fazer levantamentos gerais da terra nova descoberta. O escrivão, Pero Vaz de Caminha, imortaliza-se pela Carta ao rei D. Manuel a fim de comunicar a descoberta e descrever os primeiros contatos entre os europeus e os nativos. Muitos outros relatos foram feitos, no entanto, é o texto de Caminha que melhor registra a terra brasileira, e ao acrescentar ao texto impressões pessoais, elementos mágicos, características fantásticas, manipular a linguagem, por não se limitar ao simples relato impessoal, e por deixar demonstrar o entusiasmo provocado pelas novas imagens que se apresentam na descrição do novo mundo e na visão edênica da nova terra, Caminha propicia o caráter literário de seu texto. É pertinente apresentar um conceito da função poética cujo objetivo é a mensagem por ela própria para detectar a função literária do texto de Caminha, que ao relatar a história do descobrimento do Brasil o faz com olhar bastante subjetivo: De ponta a ponta é toda praia rasa e bem formosa. Pelo sertão, pareceu-nos do mar muito grande, porque a estender a vista não podíamos ver senão terra e arvoredos, parecendo-nos terra muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro (...) Mas a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados (...) Águas são muitas e infindas.(...) Mas o melhor fruto que nela se pode fazer, me parece que será salvar essa gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar. (1982, p.12-13). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 53 A esta época a ausência de uma atividade literária que fosse responsável pela construção da identidade brasileira, fez a crônica, além de registrar o chronos e as imagens grandiosas fotografadas pelas retinas de seus cronistas, servir de legítima representante para a instauração do espírito brasileiro. A crônica assenta suas raízes Na segunda metade do século XIX, em virtude da situação política por que passava o país, a imprensa brasileira apresenta uma atividade jornalística bastante conservadora - entre 1830 e 1850, os pasquins começam a desaparecer, visto que desempenhavam papel importante na realidade política, que a partir daquele momento toma outro rumo: visa à consolidação do regime escravagista e feudal que se sustenta no latifúndio. Ausente de motivos desaparece a imprensa de caráter político. A partir dessa época, surge a fusão da literatura com o jornalismo; a comunhão de homens das letras e de homens do jornal. A literatura que mantinha, até então, ligação com revistas e jornais especializados, com a decadência da imprensa política funde-se a esta. As transformações que se faziam acontecer eram bastante significativas; a burguesia é a classe consumidora da leitura de emoção e de entretenimento. Chega, até nós, o folhetim que atende às exigências da democratização do jornal, e divulga de maneira mais ampla o que antes era restrito a apenas um grupo social. Das duas espécies de folhetim - folhetim-romance e folhetim-variedades – este último será o responsável pela origem da crônica, tal como surgiu entre nós. A nova entidade literária, que aparece no Brasil, incorpora-se ao espírito da imprensa periódica, seu espaço, no jornal, surge fundamentalmente dedicado à amenização, ao entretenimento, às questões cotidianas. Todas as formas e modalidades de entretenimento de leitura são absorvidas pelo novo espaço. Ali, registra-se de tudo. Ao folhetinista cabe a tarefa de preencher seu folhetim, o ofício de registrar os acontecimentos, emprestando-lhes sua sensibilidade, num exercício de liberdade expressional. De início – começos do século XIX – le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé, geralmente de primeira página. Tem uma finalidade precisa: é um espaço vazio destinado ao entretenimento. E já se pode dizer que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal. ( Meyer, 1992, p. 93). Ao nascimento da crônica e ao exercício do folhetinista, Machado de Assis faz em 1859, na revista O Espelho, observa: Mas comecemos por definir a nova entidade literária. O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu no jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. (...) O folhetinista é a fusão agradável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 54 Brayner (1992, p.416), sobre a produção cronística de Machado de Assis, mostra um escritor que valeu-se da crônica durante quarenta anos que contribuiu para a sedimentação de sua produção literária: “Na obra machadiana a crônica não é um texto-ponte para outros, os ‘maiores’. É a solda capaz de unir uma produção literária de mais de quarenta anos”. Ao participar, durante muito tempo, como cronista do Diário do Rio de Janeiro, Semana Ilustrada, O Futuro, Ilustração Brasileira e em O Cruzeiro, a parceria entre a literatura e o jornal traduz a opinião de Machado de Assis sobre a atividade do jornalista e do folhetinista: ao primeiro reserva “a luz séria e vigorosa, a reflexão, a observação profunda; ao segundo, o devaneio e a leviandade”. A obra de Machado de Assis, entretanto, valeu-se enormemente deste novo veículo de transição, por utilizar-se dela como experimento para o exercício da narrativa. E desde as frivolidades e amenidades aos assuntos polêmicos e nobres, Machado emprestou seu olhar de cronista maior. A referência à novidade que circula nos jornais feita nos textos de grandes escritores vale como análise da importância que o folhetim toma ao assumir, paulatinamente, um lugar de atenção entre os espaços dedicados até então a publicações jornalísticas ou literárias, o que gerou enorme repercussão. O folhetim representa um signo literário diferente. E é Machado de Assis um dos escritores que talvez mais tenha usado referências sobre o novo objeto em seus romances e contos. O gênero ganha espaço: a delícia de ser o que é Coutinho (1997, p.118) apresenta-nos o ensaio, do inglês essay como uma modalidade que exige delimitação de significação para o estabelecimento da diferença entre tal objeto e crônica, visto que, muitas vezes, as definições podem causar confusão – “a essência do ensaio reside em sua relação com a palavra falada e com elocução oral”. Informal essays e formal essays definiam a natureza dos ensaios. O primeiro ficava caracterizado pela linguagem oral, familiar, pela impressão pessoal do ensaísta de suas experiências, lembranças, recordações, fatos de seu tempo; o segundo, o conceito de estudo de reflexão. Entre nós, o sentido de ensaio transpôs a significação antes estabelecida: os informal essays, que exprimem o espírito livre, revelam reações pessoais, tornou-se a crônica. A crônica é, portanto, o texto leve, a expressão do cotidiano. Não obstante, entende-se facilmente por que a crônica tenha se aclimatado tão bem no jornal – “fusão admirável o útil ao fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo”, segundo Machado de Assis, não excluindo a marcada expressão lírica. A crônica propaga-se e o folhetim passa a designar o espaço, a seção na qual eram publicadas as crônicas e outras formas literárias. Neste espaço são publicados, em capítulos, os textos de ficção. Alencar, que estreou como folhetinista do Jornal do Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, em 1854; Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto são exemplos de escritores que usaram o espaço para seus exercícios de literatura. Nessa trajetória, tantas vezes intrincada, e que coloca a crônica como objeto de discussão, ao se pesquisar sua origem e função, é que o gênero assume um papel de texto independente, suscitando uma investigação para o questionamento que tantas vezes fica à deriva de análise: o que seria a crônica. E numa observação mais cuidadosa verifica-se o que vai representar em termos literários esta nova entidade literária. O desenvolvimento notadamente técnico e científico marca as primeiras décadas do século XX. Novas idéias, ao sabor da ciência, ganhavam espaço na vida cotidiana do homem. Sinais da nova civilização que surgia manifesta-se, na busca, sobretudo na valorização de Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 55 outros modos de expressão. Além da tentativa de ruptura com os valores tradicionais, o espírito moderno busca uma reinterpretação da vida presente e do progresso; incorporação do cotidiano e do popular à literatura. O desejo de buscar novos horizontes e caminhos para as manifestações artísticas e resgate da identidade nacional, o sentimento íntimo brasileiro, revela ser a crônica um dos recursos narrativos caracterizadores deste momento. Do espaço reservado ao espírito do jornal, a crônica ganha asas, liberta-se e passa a viver por si mesma. Com o advento do Modernismo, um grupo substancioso de escritores adere ao novo prazer e escrevem crônicas: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Vinícius, Drummond. Cada um deles emprestando ao texto cronístico seu estilo; imprimindo ali suas emoções, sua visão de mundo, seu olhar bastante subjetivo da realidade, dos fatos e dos acontecimentos. O plano expressivo do escritor será o elemento que irá traçar a diferença na maneira de abordar os assuntos. Mais uma vez a crônica servirá de laboratório literário, de experimentação para a impressão do escritor sobre os acontecimentos que cercam a vida do homem do século XX. Seguindo a tendência do momento e de outros e de outros gêneros, a crônica se convertia num meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprios habitantes, caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual, de modo que o processo de modernização podia ser acompanhado pelos contrastes entre os bolsões de prosperidade e vastas áreas de miséria, e o próprio mundo moderno parecia nascer de mistura com traços remanescentes de velhas estruturas da sociedade tradicional. É assim que uma consciência mais abrangente do país passa a reger o espírito da crônica modernista. (Arrigucci, 1987, p.63). “A vida além da notícia” como salienta o crítico Portela (1985) vai oferecendo à crônica outros caminhos a serem trilhados. Do espaço reservado às amenidades, o texto vai ganhando a força e transcendência e o que era de cunho jornalístico e urbano espraia-se, proporcionando que a subjetividade do escritor supere a objetividade do cronista. E ela, a crônica, assume caráter de gênero literário autônomo e substitui, tal como se estabelece entre nós, o essay dos ingleses. O espírito de independência e de autonomia da crônica leva Coutinho (1997) a inserila em diversas categorias: a crônica narrativa; a crônica comentário, aquela que visa à divulgação de fatos, à informação; a crônica metafísica, que possibilita as reflexões filosóficas e a crônica poema em prosa, em cuja natureza reside o principal enfoque deste trabalho. De natureza ensaística ou de natureza literária, outros elementos envolvem a crônica e exigem esclarecimentos e atenção. Crônica e linguagem, crônica e caráter literário, crônica e livro são reflexões que permeiam a anatomia que o texto assumiu a partir do momento que ganha adeptos entre a literatura. Num primeiro olhar é preciso investigar o que está estabelecido como padrão lingüístico da crônica: nela deve-se buscar linguagem da atualidade, sem, no entanto, desviá-la de expressões características do momento em que é produzida, são as marcas temporais que a conectam com o chronos, a noção de contemporaneidade do escritor com seu tempo. A relação entre a sua origem jornalística tem muitas vezes desviado a crônica do papel literário que ela pode, legitimamente, desempenhar. Considerada por alguns gênero anfíbio, que tanto vive das páginas efêmeras de um jornal quanto da “imortalidade” que o livro pode oferecer, a crônica tem escorregado por entre tantos estudos e definições. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 56 A definição de crônica e suas relações com outros campos do conhecimento atestam a sua importância no cenário cultural e literário brasileiro, responsável pela importância que a nova entidade representa, ocupando um lugar tão relevante quanto de outras espécies literárias de tradição. Esta mobilidade que a crônica se permite somada ao espírito da modernidade a faze incorporar o status de objeto literário, feito para permanecer: Então, a uma só vez, ela pode penetrar agudamente na substância íntima de seu tempo e esquivar-se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelando-se na direção do passado. (Arrigucci, 1987, p.53). A qualificação literária da crônica Acreditando não estar a crítica literária presa à investigação subjetiva, nem proceder ao julgamento insensível do autor e de sua obra, e entendendo estar ela ligada a métodos, o olhar do crítico parece ter evoluído ao receber a abertura teórica da reflexão contemporânea, incorporando uma série de orientações que se coadunam em um mesmo pensamento, embora rigoroso frente ao fenômeno literário. O crítico Portella (1985:42-44) verifica que “quando o conhecimento da literatura começou a se constituir criticamente, reflexivamente, ele instaurou uma ampla controvérsia metodológica”, a qual se apoiou em bases científicas: “ a crítica deixava de ser uma leitura vertical para se converter num levantamento topográfico de emoções fáceis”(op.cit., 44). A crítica literária de bases científicas encontrava obstáculos. Entretanto sua evolução tornou-se conseqüência no desenvolvimento no universo da criação literária. A crítica literária tradicional mantinha aprisionadas nos porões da não-literatura aquelas obras de maior receptividade da massa leitora. Benjamim (1969:15-47) quando apregoa a queda da “aura de sacralidade” do objeto estético, favorece a dessacralização da Arte, abrindo uma trincheira para a penetração de uma literatura não mais pertencente apenas a uma elite produtora da obra literária. A atividade de consumo proporcionou o estabelecimento de uma separação entre o que era considerado literário pela crítica e o que privilegiava a estrutura de consumo, qualificada de não-literatura, sub-literatura. Nesse universo as reflexões recaem na classificação de literatura e paraliteratura. Portella (op.cit.,:150) mostra que O espaço vazio que separa a literatura exaurida da literatura por vir, é freqüentemente preenchido por variadas modalidades expressivas a que se procura denominar paraliteratura ou se poderia chamar preliteratura, semiliteratura, antiliteratura ou mesmo posliteratura. (...) A paraliteratura ou literatura de massa é assim qualquer texto de efeito sem ou com reduzida literariedade. Mais adiante salienta, Essa realização imprecisa ou fluida faz a felicidade e ocupa as horas de lazer do grande auditório do mundo. De um lado porque o fazer literário artificializado e ocioso assistiu passivamente à sua derrocada. De outro lado porque os produtos paraliterários emergente foram adquirindo uma total vibração expressiva (...) Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 57 Assim, a classificação de literatura e paraliteratura parecia observar critérios subjetivos do crítico e da crítica literária. Em nossa história literária, em virtude de um momento de crise, a chamada paraliteratura tenha marcado presença pela ausência de um signo poético legítimo, como já observado anteriormente nos textos dos viajantes. Sermões, anedotas, o jornal, as revistas constituem a produção paraliterária, exercendo notadamente influência na massa, amparados pela engrenagem do consumo, despertando aí, talvez, seu caráter de nãoliteratura. A crônica brasileira, apoiada na produção voltada para a massa, disputa espaço junto ao romance, o poema e o conto. O caráter transitório deste gênero tem levado a crítica a refletir sobre a permanência deste objeto estético. Entretanto, ao entender que o discurso literário se resolve no nível da linguagem e que ela é a fonte da criação, quando rompe as relações exatas entre o significante e o significado, o signo poético se estabelece. Portanto, quando o cronista instaura em seu texto a transgressão da linguagem, ele retira a crônica, antes confinada à paraliteratura, do universo do não-literário. O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por culpa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia a dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses transcendem e permanecem. ( Portella, op.cit.,156-157). A Poética ensina que a essência da poesia consiste nas dimensões translingüísticas abarcadas pela linguagem literária, refutando uma visão de linguagem como apenas uma relação de significado e significante. A linguagem poética encontra na Lingüística os moldes para sua criação, o instrumento que possibilita o estabelecimento do ser literário, entretanto a linguagem literária rompe o modelo lingüístico e projeta a linguagem a uma outra dimensão. Para se entender o ser da literatura e o que lhe é inerente, é necessário investigar a linguagem que alimenta a literatura, na qual ela cria novos significados. A chave já não é mais a dicotomia saussureana, mas uma relação tridimensional que estabelece o fenômeno literário e que possibilita o entendimento da literatura: “A expressividade da obra de arte, a novidade de sua estruturação, reside precisamente nessa força de apresentar dimensões heterogênicas, deixando sempre transparecer a unidade”. (Portella, op.cit.,67). A linguagem literária tem-se voltado, cada vez mais, para a natureza do discurso; a literatura da modernidade descobriu sua função lúdica, afastando-se da pureza estética dos clássicos e da importância semântica dos românticos, e encontra assim, sua especificidade poética no Modernismo. Os gêneros e as espécies literárias transpuseram seus limites metodológicos e são concebidos pelo escritor cada vez mais faminto de novidade. É o que assinala Teles(1989:331): (...) Quer dizer, todo o peso das convenções literárias se tornará insuficiente para redimir a literatura, que começa a reduzir-se a si mesma para a natureza do discurso. (...) todos os gêneros, todas as espécies – tiveram de uma hora para outra o seu papel invertido: em vez de serem (...) o ponto de partida da linguagem, passaram a ser o ponto de chegada. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 58 Considerações Finais Na descrição dos gêneros literários, a teoria clássica apóia-se na afirmação de que cada gênero é único e difere quanto à natureza e ao prestígio, e que sua fusão não deve ser permitida. Já uma teoria moderna acredita na miscigenação dos gêneros. A crônica revitaliza a segunda teoria, talvez se inserida num posgênero em função de seu transitar pelo universo literário consagrado pelas grandes obras. Ao apresentar um texto para a apreciação de um estudo crítico, este procedimento irá suscitar um princípio ordenador, uma aplicação da teoria dos gêneros para organização de sua estrutura. Contudo, inserir a crônica numa espécie literária apenas levará tal atividade para um terreno inóspito – o caráter ambíguo da crônica, sua aproximação com outras espécies, e sua própria caracterização no território dos gêneros, provará que essa delimitação de cunho didático verificará a certeza de que os gêneros literários não se excluem, antes, se completam e se miscigenam. Essa é uma característica da literatura da modernidade e da moderna teoria dos gêneros que não impõe limite às espécies literárias, nem coloca o autor preso em regras. O prazer do texto literário está ligado à dilatação das sensações e como fundamenta Wellek (p.299) “O gênero representa, por assim dizer, uma soma de processos técnicos existente, de que o escritor pode lançar mão e dispor (...) o bom escritor observa o gênero (...) estende-o, dilata-o”. Qualquer historiador da fase contemporânea da literatura brasileira que desconheça a crônica como um fato literário peculiar desse período, estará sujeito a nos apresentar apenas uma visão mutilada ou incompleta. A crônica, que invadiu ou foi invadida pela poesia, e se instalou no coloquial modernista, multiplicando a sua força expressiva, que, mais do que tudo, desenhou o seu próprio perfil autônomo, é, em face mesmo daquela ambigüidade congênita, uma manifestação superlativa de literatura. (Portella, 1985: 158) No universo da validade e da valoração como observa Wellek (IBIDEM p.302 ) “ os homens devem dar valor à literatura por ela ser o que é; devem valorá-la em função e no grau do seu valor literário”, e compreendida desse modo, a crônica como instrumento responsável pela formação da identidade brasileira, conquistou seu caráter de objeto permanente, sobretudo com as propostas do Modernismo, alcançando, assim no dizer de Arrigucci (1987:53) “ a espessura de texto literário, tornando-se, pela elaboração da linguagem, pela complexidade interna, pela penetração psicológica e social, pela força poética ou pelo humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história”. O estilo coloquial, deliciosamente espontâneo e vivo tornará a crônica fonte prazerosa de leitura bem apropriada ao espírito do grande público consumidor, que parece preferir tal formato pela simplificação dos personagens, pela movimentação semântica que a linguagem oferece à leitura exigente de textos literários mais complexos. Assim o estilo superficial, o grande acesso e o caráter efêmero aglutinam-se à seriedade e ao cunho literário, transformando a crônica, sobretudo aquelas de consistência lírica, numa espécie literária de grande valor. Referências ARRIGUCCI, Davi Jr. Fragmentos sobre a crônica. In: ---. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. BENJAMIN, Walter. Sociologia da Arte et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 59 BRAYNER, Sônia. Machado de Assis: um cronista de quatro décadas. In: CANDIDO, Antonio. A crônica, o gênero e suas fixações no Brasil. 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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 60 \ mprensa, memória e variação lingüística: uma leitura diacrônica no Monitor Campista28 Carla Cardoso Silva29 __________________________________________________________________________Resumo O aspecto variante da língua, alvo de estudo da sociolingüística, é a temática deste artigo, que buscou sua fonte de pesquisa em recortes de textos do jornal Monitor Campista, terceiro mais antigo em funcionamento no país – quinto, neste patamar, na América Latina – que, com 173 anos de existência, desde 1936 pertence ao grupo dos Diários Associados. Analisando-se comparativamente as reportagens do referido jornal, encontram-se algumas das variações que assumiu a língua portuguesa, em sua versão escrita, ao longo de mais de um século e meio. Para este artigo, apresentam-se exemplos de reportagens publicadas nas décadas de em 1830, 1910, 1960 e 1990. Palavras-chave: Jornalismo, Sociolingüística, Variação lingüística, Memória ___________________________________________________________________________ Introdução Em diferentes sociedades, com o passar do tempo, as linguagens, híbridas e mutáveis, passam por transformações que, graças a registros históricos escritos, são possíveis de serem analisadas atualmente. Com isso, enigmas podem ser decifrados e partes obscuras de um determinado estado lingüístico são trazidas a lume. Para introduzir o tema, os apontamentos sobre a variante diacrônica em textos do Monitor, é oportuno, neste referido estudo, ressaltar que os profissionais de imprensa, de um modo geral, utilizam de forma acessível a linguagem, sendo esta uma fundamental ferramenta de trabalho. (CALDAS, 2004, p.41) Assim, para se noticiar um fato, comunicar e se fazer compreender, é necessário que essa notícia seja registrada numa linguagem concisa, clara, objetiva. Cabe ressaltar que questões históricas, como o desenvolvimento do discurso jornalístico, não são o foco dessa pesquisa, e sim, as variações da língua registradas por jornalistas em alguns textos colhidos, no periódico campista em questão, o qual apresenta, em seus arquivos históricos, reportagens sobre fatos importantes no desenvolvimento social da Região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, além de noticiar assuntos de âmbito nacional e até mesmo internacional. Vale lembrar, ainda, que não cabe a este estudo adentrar em questões como o desenvolvimento dos canais de informação atrelado a interesses econômicos ou políticos, mas registrar questões quanto à transformação variacionista na linguagem nos textos retirados do Jornal e sua função de registro memorístico. Também será discutido, a partir dos registros jornalísticos, o conceito de memória social30. 28 Este artigo é uma versão resumida da monografia de pós-graduação lato sensu da autora, defendida em março de 2008 no Cefet/Campos. 29 Jornalista e especialista em Assessoria de Comunicação pela Faculdade de Filosofia de Campos e especialista em Literatura, Memória Cultural e Sociedade pelo Cefet/Campos. 30 Sobre este assunto específico, recomendamos a leitura de História e memória, de Jacques Le Goff (1996). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 61 1 Da evolução da língua É Ferdinand Saussure (2004, p. 161) que introduz a distinção entre a lingüística diacrônica, ou histórica (que lida com mudanças ocorridas na língua), e lingüística sincrônica (que estuda o estado da língua em um determinado período do tempo), nas quais se baseia esta pesquisa. Para o lingüista, há distinção entre língua (langue), de natureza social, externa ao falante e coercitiva; e a fala (parole), que seria o exercício individual e pessoal do código da língua, sendo esta última a verdadeira responsável pelo caráter dinâmico e mutável da linguagem. A aquisição da linguagem é tema de especulações e estudos, sendo “pelas suas indagações, uma área híbrida, heterogênea ou multidisciplinar”, (MUSSALIM; BENTES, 2001, p. 205). Teorias lingüísticas e sociais se complementam, portanto, neste estudo, uma vez que se baseia na Sociolingüística, um dos ramos da ciência, cujo foco de estudo é a relação entre língua e sociedade. Sobre a evolução da língua e sua variação, Bakhtin (1989, p.124) diz que “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua, nem no psiquismo dos falantes”. As manifestações lingüísticas estão, portanto, em contínuo processo de mudança. No entanto, a língua não evolui aleatoriamente e, sim, segundo defende André Martinet (1955 apud MAINGUENEAU, 1997, p. 40), “pela necessidade de seu sistema encontrar uma estabilidade óptima”, ora procurando reduzir desequilíbrios, ora buscando o prestígio em outros modelos lingüísticos, considerados superiores, de alguma forma. Dominique Maingueneau (1997, p. 41) lembra que “os locutores confundem certas formas foneticamente muito próximas, simplificam as construções sintácticas complicadas”, tudo para o menor esforço do ouvinte. Esse processo de mudança lingüística acontece de maneira gradual, em várias dimensões, como defende Naro (2003, p. 43). Segundo este sociolingüista, as formas mais antigas da linguagem costumam ser preservadas pelos falantes mais velhos, “o que pode acontecer também com as pessoas mais escolarizadas, ou das camadas da população que gozam de mais prestígio social, ou ainda de grupos sociais que sofrem pressão social normalizadora.” É possível, portanto, acrescentar a esses grupos o jornal impresso, nosso objeto. A imprensa pode ser considerada uma das ferramentas para o registro da memória social. Portanto, são os profissionais da imprensa31 narradores que cumprem as funções de mediação entre o passado e o presente. A eles cabe “atualizar e dar sentido ao acontecimento fundador, ao mesmo tempo em que informar o modo como a sociedade recupera e celebra o passado, produzindo novos acontecimentos.” (BRAGANÇA; MOREIRA, 2005, p. 65). 31 Um dos aspectos da atividade jornalística é o de fazer e ser um testemunho da História. Desde que se inventou a imprensa o repórter passou a ser um figurante, quando não entra, ele mesmo, para a História. Como uma espécie de representante privilegiado da sociedade, ele está lá, no palco dos acontecimentos, com a obrigação de nos contar o que viu. (CALDAS, 2004, p.36). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 62 2 Análises descritivas dos textos O aspecto literário tem presença marcante em textos jornalísticos registrados no século XIX, e seu reflexo pode ser também notado nas matérias do Monitor Campista, não apenas na linguagem, mas também em outras discussões documentadas pelo periódico. 32 Como sabemos, a língua – neste caso específico, a Língua Portuguesa, oriunda do Latim – está em constante processo de mudanças que não são sentidas imediatamente por seus falantes nem estes são obrigatoriamente conscientes dessas (MUSSALIM; BENTES, 2001). Tais mudanças, que podem acontecer em nível fonético-fonológico (sons), por analogia, gramaticalmente ou na semântica (significado), são caracterizadas pelos seguintes fatores: “a) as mudanças são lentas e graduais; b) elas são parciais, envolvendo apenas partes do sistema lingüístico e não o seu todo; c) elas sofrem influência de uma força oposta, a força de preservação da intercompreensão” (Ibid., p. 81). A duplicação de letras, apagamento de outras e surgimento de tantas são alguns fenômenos apontados nos textos, que registram partes do processo de transição da língua no decorrer desse último século. A perda, a adição de fonemas (aférese e epêntese, respectivamente) e a assimilação são as variações mais freqüentes nos textos analisados. Ao compararmos as mudanças da Língua Portuguesa, observando o registro antigo e o atual, pudemos observar diferentes marcações como o plural de algumas palavras feito diferentemente de hoje, e até mesmo as formas escritas de alguns tempos verbais, sendo grafadas de maneira bem distinta em relação ao que é praticado atualmente. Segundo Mussalim; Bentes (2001), um item lexical deixa de existir em certa comunidade lingüística devido, principalmente, à sua baixa freqüência de uso. Em textos antigos – como é o caso dos textos analisados neste trabalho – não é possível estabelecer com precisão quando o item não faz mais parte do vocabulário da língua analisada. 2.1 Da inauguração do Monitor a Nilo Peçanha – 1834 O exemplar que marca a inauguração do jornal Monitor Campista, em 4 de janeiro de 1834, apresenta como manchete o editorial “Prospecto”, assinado pelos redatores, que demonstrava a linha editorial com a qual a equipe do jornal passaria a atuar33: A tarefa de escrever para o publico, que em todos os tempos foi árdua, torna-se mais que nunca agora, que passa como por moda calunniar-se, diser invectivas em vez de admoestar, e combater com decência doutrinas oppostas. Tal objetivo propõe combate ideológico levando em consideração as regras da moral, prometendo um jornalismo sem calúnias, como já era comum à época, conforme demonstra o recorte: “Censuraremos com energia os actos públicos dos Cidadãos, e com especialidade os dos Empregados no exercício de suas obrigaçoens, huma vez que não forem conformes com a ley...” 32 Quanto à história do Monitor, é importante frisar que a marca “Monitor Campista” foi cunhada em 1846, 12 anos após a fundação do jornal que surgiu como “O Campista”, e era bissemanário (publicado às quartas e sábados). Segundo consta a cronologia do jornal, em 1835, o periódico tinha como título “O Recopilador Campista”, publicado numa continuação ao anterior. Em 1838, “O Monitor” e em 1839, “o Novo Recopilador Campista”, também publicado nos mesmos dias. Em 1840, era publicado como “O Monitor Campista”, até chegar 1846, com o nome atual, “Monitor Campista”, também bissemanário, mas com edições às terças e sextas. (Arquivo do Monitor Campista, sediado à Rua João Pessoa, 202, Campos, RJ). 33 Ver Anexo 1. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 63 Analisando a linguagem escrita utilizada no texto, é possível destacar variantes diacrônicas em relação ao registro atual de nossa língua. Notam-se variáveis como os plurais em “õens”, que, na Língua Portuguesa, passaram por transformações, como registram as palavras obrigaçoens, produçoens, modificaçoens e paixoens. Neste processo, a letra “N” foi apagada, ficando a nasalização marcada somente pelo til. Vale ressaltar que os ditongos decrescentes “EU” e “AI” eram grafados com “EO” e “AE”, respectivamente. O registro gráfico coincide com o fonológico. Como exemplos desse fenômeno lingüístico, temos o sintagma nominal “seos principaes”. Algumas palavras continham letras duplicadas e o encontro “CT”, atual em Portugal, era vigente, no nosso idioma, no século passado. Vejamos esses fenômenos no fragmento a seguir. “[...] nosso periódico será composto de matérias variadas. Politica, economia publica, ou domestica, commercio, agricultura, e artes serão seos principaes objectos”. 2.2 Da “Viagem Presidencial” às duas grandes guerras – 1910 a 1945 Quanto ao aspecto memorialístico, ressaltamos um fato da história política de Campos dos Goytacazes e região: a visita do presidente Nilo Peçanha a Campos dos Goytacazes, sua terra natal, e ao Espírito Santo, registrada no jornal, com destaque, em 28 de junho de 1910, na matéria “Viagem Presidencial”34. Apontamos os costumes nas realizações dos festejos campistas, registrando, por exemplo, a importância da Ferrovia Leopoldina, um dos principais meios de condução da época na região. A estrutura lingüística textual do material que pesquisamos marca, neste momento, a grafia da palavra “ontem” com H e a duplicação do L, como se lê neste fragmento e em outros: “Na notícia que demos hontem dos brilhantes festejos realizados nesta cidade em honra ao Sr. Dr. Nilo Peçanha, illustre presidente da Republica, por omissão deixámos de mencionar que a banda musical...” Um outro registro curioso foi o da palavra “hino”, encontrada dessa forma no texto: “Ao chegar o comboio presidencial, executado o Hynno Nacional pela apreciada banda musical da Sociedade União Operária, sendo ao terminar levantados enthusiasticos vivas ao Dr. Nilo Peçanha”. Em 1914, exatamente em 23 de agosto, o periódico publicava “Conflagração Européa – Guilherme II”.35 O mundo era vítima de sua Primeira Grande Guerra. Em Campos e região, as notícias sobre o fato podiam ser acompanhadas pelo jornal que, com a linguagem empolada, demonstrava sua linha editorial e política, com elogios, críticas e, neste caso específico, com louvor à Alemanha. A adjetivação, portanto, foi a determinante semântica neste texto: Eis uma figura que encherá o século XX. O patriotismo do imperador allemão, fazendo-o desejar fronteiras vastas e dilatadas para a sua pátria, o domínio dos mares para a sua esquadra, atirou-se numa partida de sahida duvidosa... Todos viam com interesse o seu progresso estupendo em todos os ramos da actividade humana, respeitando-a e admirando-a, como representante perfeita da civilisação...Por isto dizemos que a figura de Guilherme há de passar pelo século XX como um soberano temerário, ou de um guerreiro que tornará sua pátria senhora do mundo. 34 35 Ver Anexo 2. Ver Anexo 3. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 64 Na época da Segunda Guerra, as fotografias já eram publicadas junto com as notícias. No caso do Monitor Campista, um correspondente cobria a guerra e os campistas podiam acompanhar o que estava acontecendo em outra parte do mundo, como pôde ser observado na publicação de 25 de agosto de 1944, na matéria “Tanques americanos penetraram em Paris”.36 Paul Ghali, correspondente dos Diários Associados e do Chicago Daly News, estava na fronteira francesa nas imediações de Genebra, quando registrou, por via radiotelegráfica, como os guerrilheiros eram capturados. Neste caso, já notamos a transformação da língua através de palavras como “pano” que, em 1914 grafava-se como “panno”, com duas letras N. A palavra “alemã”, também vem na forma atual de sua grafia, sem os dois L, como também em 1914, quando era grafada como ‘allemã’. O mesmo ocorre com as palavras “anos” (grafada antes como “annos”): Os guerrilheiros são fuzilados no local, quando capturados pelas tropas nazistas, mas os ‘maquis’, que viram franceses passarem por torturas indescritiveis nos quatro anos de ocupação alemã, tratam os prisioneiros nazistas humanamente [...]. Os franceses sofreram tanto em mãos dos nazistas, que é difícil para eles não estarem imbuídos do ódio e desejo de vingança. Mas no seu novo papel de vencedores, eram de vez em quando a admirável restrição que se impõe [...]. Na década de 40, com as variações pelas quais a Língua Portuguesa e, conseqüentemente, a linguagem jornalística escrita37, estavam passando – há registros feitos com características literárias como, por exemplo, o uso da primeira pessoa. Este procedimento cumpre funções, tipicamente da literatura, como a emotiva e a poética. Quanto às variações, já encontramos as palavras ‘um’ (anteriormente hum), ‘três’ (anteriormente tres, sem acento) e ‘eles’, que em 1888, por exemplo, grafava-se ‘elles’. Encontrei-me, por exemplo, com o tenente Breton e o capitão Charles. O primeiro disse-me que sua esposa, esperando filho, foi arrastada pelos cabelos nas ruas de Annec pelos nazistas, simplesmente porque ele era um oficial dos ‘maquis’. Pela mesma razão a casa do capitão Charles foi arrasada em Vallary, e sua esposa e um de seus três filhos mortos. Esses dois combatentes são senhores das vidas de centenas de nazistas, e os cativos são ´bem tratados´- conforme eles mesmos declaram. 2.3 Variações em reportagens da década de 60 e fim do século XX – Ditadura Militar e Governo Garotinho No exemplar de 07 de abril de 1964, o Monitor publicava a matéria “Marcha da Família com Deus constituiu verdadeira consagração à democracia”.38 Num período em que o país foi marcado por perseguições políticas – a cidade inclusive –, na era da Ditadura Militar, 36 Ver Anexo 4. Até os anos 40, no Brasil, as matérias jornalísticas eram marcadas por elementos retóricos, presença de opinião e digressões narrativas, mas, a partir dessa data, por influência do jornalismo americano, que desde o início do século já havia implantado técnicas de redação mais objetivas, os jornais brasileiros introduzem o lead e o sublead, que representam uma revolução lingüística e uma nova representação da notícia. (PENA, 2005; GENRO FILHO, 1987; CORRÊA, 2003; AMARAL, 1997; ERBOLATO, 1992; SCHUDSON, 1978). 38 Ver Anexo 5 37 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 65 o jornal registrava manifestações em busca de paz. O primeiro parágrafo do texto já registrava as modificações na linguagem, como a palavra ‘um’, que já fora escrita da forma ‘hum’. Constituiu verdadeira consagração à democracia e às tradições cristãs do povo a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, realizada domingo em Campos. O movimento galvanizou a atenção e os sentimentos da população campista, oferecendo um espetáculo de fé e confiança nos destinos do Brasil. No mesmo exemplar, complementando o primeiro texto, o jornal registrava como o período de perseguição política marcou o município, na matéria “Polícia efetuou ontem em Campos cerca de 30 prisões.” Cumprindo ordens superiores, a Polícia de Campos iniciou ontem uma série de diligencias para prender varias pessoas comprometidas com os ultimos acontecimentos, notadamente lideres sindicais suspeitos de vinculação com o comunismo. As prisões estão sendo efetuadas à base de uma lista fornecida pelo Departamento de Polícia Social. Os presos estão sendo recolhidos ao quartel do 2º Batalhão de Polícia Rural, onde também se encontram varias pessoas detidas pelos mesmos motivos. Foram presos ontem os lideres sindicais João Carneiro, dos SINE, Almirante Costa, da Industria de Açúcar, Amaro Maciel, dos Ferroviários. O texto apresenta as palavras “ontem”, que em 1883 e em 1910, como comprovam os exemplos dos textos, grafavam-se como “ontem”. Foram retiradas ainda como exemplos, as palavras “uma”, anteriormente registradas como “huma” e “açúcar”, que em 1878 grafava-se “assucar”. O verbo “foram” também foi selecionado, pois em 1878, grafava-se “forão”, assim como a palavra “locais”, que em 1883 e 1910 era escrita da seguinte forma: “locaes”. Para a mostra da linguagem, já na década de 90, foi selecionado o texto intitulado “Garotinho negocia desfiles de carnaval no mês de julho”, de 23 de janeiro de 1997, noticiando um fato que marcou o governo de Anthony Garotinho no município de Campos dos Goytacazes. O texto fala sobre a mudança na data da programação do Carnaval na cidade.39 Os desfiles de Bois Pintadinhos, blocos e escolas de samba poderão ser realizados no próximo mês de julho, período de férias escolares e época previstas pelo prefeito Anthony Garotinho em que as dívidas da Prefeitura deverão estar sanadas. No momento, ao fazer sua exposição de motivos, justificando a impossibilidade de ajudar as agremiações, por absoluta falta de recursos, o prefeito enumerou itens da relação de dívidas do Governo Municipal, herdadas da gestão passada, totalizando em cerca de R$50 milhões de reais. 39 Ver Anexo 6. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 66 Para exemplificar a mudança, foram selecionadas as palavras “realizados”, que em 1883, era grafada com a letra S ao invés da Z, como na palavra “realisaria”. As palavras ontem, sem a letra H, e “público”, já acentuado, também podem ser usadas como exemplos. Este recorte material nos oferece um extrato do desenvolvimento da língua escrita – e conseqüentemente, a falada – com o passar dos anos. Nosso objetivo, nesta pesquisa, é demonstrar que o jornal é um veículo que, legitimamente, apresenta um retrato da memória de um povo, num dado momento, e esta memória é desenhada por um estágio peculiar na trajetória de uma língua40. 3 Considerações finais Um texto é uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma função definida em qualquer jogo de atuação sociocomunicativa. Dessa afirmação, obtém-se uma premissa: a palavra será sempre o fator de comunicabilidade, e o texto deve ser visto tanto como uma rede de informações, organizado e estruturado, quanto um objeto de comunicação, fruto de um contexto histórico e social. O idioma que chegou ao Brasil, no século XVI, tinha traços próprios e marcantes e, através de uma natural evolução temporal ou uma tendência à mistura e sobreposição de outros idiomas, foi sendo inovado. Vimos, portanto, que a tematização e a abordagem jornalísticas dos fatos socioculturais de uma sociedade ao lado do seu registro estão de certa forma associados a esse desenvolvimento da linguagem e suas variantes, de acordo com o passar do tempo. O Monitor Campista, por meio de sua linguagem jornalística e sua atuação, em 173 anos, contribui para o registro histórico de Campos dos Goytacazes e região. O texto jornalístico do veículo vai refletindo a força da indústria e suas letras vão acompanhando esse traçado; portanto, as mudanças lingüísticas vão se fazendo notar, o que serve como uma rica fonte para esta, e muitas outras pesquisas sobre o assunto referente à língua. Entendemos que, se os fenômenos se repetem, existem peculiaridades que podemos destacar. Para tal análise, recorremos ao pensamento de Paiva; Duarte (2003, p. 81-88), que concluem haver no passado uma variação sensível de um determinado fenômeno em diferentes gêneros literários. É de se esperar que o mesmo ocorra hoje. Referências AMARAL, Luiz. Jornalismo: matéria de primeira página. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 40 Entre outros fenômenos lingüísticos, localizamos na pesquisa, entre outros, epêntese do fonema /k/ grafado com c, quando antecedido pelo fonema /t/; duplicação de consoantes; ausência da acentuação gráfica nas paroxítonas; grafia da letra s para o fonema /z/ em palavras que atualmente se escrevem com z; ausência do acento gráfico em proparoxítonas; epêntese da letra h quando não correspondente a um fonema; grafia de aes para o encontro atual ais; registro gráfico do y para o fonema /i/ (vocálico ou semivocálico); nasalização registrada com n/m em vez do til em encontros como oens/ões e o contrário como em ão/am; grafia de eo para o encontro em seus; ausência de acento gráfico em oxítonas terminadas em em; fonema /k/ grafado com ch em palavras que, hoje, grafam-se com q; acentuação gráfica do ditongo ôa; registro do ditongo ou em vez de oi; supressão do fonema /i/ no encontro ei; grafia do z para o fonema /z/; “enfim” grafado com m; epêntese do fonema /k/ grafado com c em predilecção; epêntese do g em signal. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 67 BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1989 BRAGANÇA, Aníbal; MOREIRA, Sonia Virgínia Moreira (org.). Comunicação, acontecimento e memória. Intercom, Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, São Paulo, 2005 CALDAS, Álvaro. O desafio do velho jornal é preservar seus valores. In: CALDAS, Álvaro (org). Deu no jornal: o jornalismo impresso na era da internet. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2004 CALDAS, Álvaro. Deu no jornal: o jornalismo impresso na era da internet. São Paulo: Loyola, 2ª edição, 2004 CORREA, João de Deus. Pesquisa em jornalismo. Rio de Janeiro: Mimev, 2003 ERBOLATO, Mario. Técnicas de codificação em jornalismo. São Paulo: Ática, 1991 GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide: Para uma Teoria Marxista do Jornalismo. 1987. Disponível em www.adelmo.org LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução: Bernardo Leitão. 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São Paulo: Cultrix, 2004 SCHUDSON, Michael. Discovering the news: a social history of American newspapers. New York: Basic Books, 1978. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 68 ANEXOS Anexo 1 Jornal O Campista Exemplar 01 Ano - 1 Data: Vila de São Salvador de Campos, 4 de Janeiro de 1834 Matéria analisada: Prospecto Se emprehendendo a redação deste periódico consultássemos unicamente nossas forças intelectuaes, sem duvida nunca se realisaria esse projecto: tal [...] a convicção que temos de nossas poucas luzes! [...] huma consideração maior [...], qual o dever que tem todo o cidadão de concorrer com o que poder para utilidade commum. A tarefa de escrever para o publico, que em todos os tempos foi árdua, torna-se mais que nunca agora, que passa como por moda calunniar-se, diser invectivas em vez de admoestar, e combater com decência doutrinas oppostas. Nossa conducta será inversa. Censuraremos com energia os actos públicos dos Cidadãos, e com especialidade os dos Empregados no exercicio de suas obrigaçoens, huma vez que não forem conformes com a ley; porem nisto não perderemos de vista os preceitos de moral e as regras de huma boa educação, cujos limites não ultrapassaremos. [...] O nosso periódico será composto de matérias variadas. Politica, economia publica, ou domestica, commercio, agricultura, e artes serão seos principaes objectos. [...] Desde já observamos que, além dos annuncios sobre commercio, [...] e alguma exposição suscinta, e decente sobre factos, de cuja historia possa resultar algum bem para o público, não inseriremos em nossa folha outras produçoens alheias, e mesmo aquellas ficarão subjectas as modificaçoens, que julgamos útil fasermos. Polemicas sustentadas para satisfazer paixoens particulares serão absolutamente banidas della. (Os Redactores)” Anexo 2 Jornal Monitor Campista Exemplar nº 152 Anno 74 Data: 28 de junho de 1910 Matéria analisada: Viagem Presidencial Na notícia que demos hontem dos brilhantes festejos realizados nesta cidade em honra ao Sr. Dr. Nilo Peçanha, illustre presidente da Republica, por omissão deixámos de mencionar que a banda musical União dos Operários de S. João da Barra, também tomou parte nas festas, toando em diversos pontos e a bordo do vapor Cachoeiro, quando conduzia o chefe da nação a Guarulhos [...]. CACHOEIRO DE ITAPEMERIM Chegou hoje 27 a esta cidade, as 7 horas e dez minutos da manhã o Exmo. Sr. Dr. Nilo Peçanha, acompanhado da sua comitiva. Desde ás 5 ½ horas da manhã começaram a fluir á gare da Leopoldina innumeras Exmas, famílias, commissões, associações locaes, grupos Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 69 escolares e grande massa popular. A cidade achava-se caprichosamente enfeitada desde hontem reinando indisivel enthusiasmo na população pelo grande e auspicioso acontecimento de hospedar, embora por poucos momentos, o eminente chefe da nação. Ao chegar o comboio presidencial, executado o Hynno Nacional pela apreciada banda musical da Sociedade União Operária, sendo ao terminar levantados enthusiasticos vivas ao Dr. Nilo Peçanha. Pelo orador da Commissão encarregada da recepeção, Dr. Manuel Alves de Barros Junior, foi [...] saudado em vibrante discurso, logo ao saltar do carro. O orador disse sentir-se emocionado pela satisfação que lhe proporcionava a opportunidade de saudar ao eminente chefe do Estado, cujas qualidades de verdadeiro republicano e abnegado estadista o emmendam á gratidão de todos os brasileiros patrióticos; disse que a sua visita a este Estado constitue um facto memorável para a historia do Espírito Santo. Anexo 3 Jornal Monitor Campista Exemplar nº 197 Anno 78 Data: 23 de agosto de 1914 Matéria analisada: Conflagração Européa – Guilherme II Eis uma figura que encherá o século XX. O patriotismo do imperador allemão, fazendo-o desejar fronteiras vastas e dilatadas para a sua pátria, o domínio dos mares para a sua esquadra, atirou-se numa partida de sahida duvidosa. Lançou um cartel de desafio a todo o mundo, a quem fez dizer pelo principal de Von Bulow: ‘inda que o mundo esteja cheio de diabos a Allemanha conservará o seu logar ao sol’. O logar da Allemanha. Ninguém se lembrava de disputar a florescente nação o seu justo prestigio. Todos viam com interesse o seu progresso estupendo em todos os ramos da actividade humana, respeitando-a e admirando-a, como representante perfeita da civilisação. Mas um momento houve em que esse progresso foi dirigido, não para o aperfeiçoamento interno, para a manutenção do seu logar entre as demais potencias. Passou a ser feito contra ellas. O governo de Kaiser, quando o seu exercito era um perigo, já um colosso sem falhas, entendeu de augmental-o demais um terço quasi! Um imposto sobre a renda, cobrão immeditamente, o que apenas um perigo nacional autorisaria, foi lançado. Em verdade os patriotas allemães prestamente pagaram. Foi toque de alarma que assombrou os outros paizes. Difficilmente se poderia acompanhar a formidável Allemanha, que de um desemedido accrescia as suas forças terrestres e marítimas. Em poucos annos o mundo seria um vasto feudo allemão. Atemorisadas com essas forças maravilhosas, que tanto custavam e de certo não eram mantidas para o simples praser das paradas, as potencias européas uniram-se e offereceram luta ao colosso. Guilherme acceitou, ou antes provocou-as todas, uma a uma. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 70 Estará elle cônscio da força gigantesca que se lhe vae oppor, da tempestade de ferro e fogo que soará sobre os seus exércitos? Poderá a Allemanha, atacando a pequena e estupendamente valorosa Bélgica, resistindo á França, e á Inglaterra, oppor algum embaraço á avalauche rusra, que virá feroz, em furacão tudo nivelando em sua passagem? E ella está só porque o auxílio da Áustria é muito precário. O que em realidade veremos, há de ser a luta de uma nação contra quatro ou cinco congregadas. Por isto dizemos que a figura de Guilherme há de passar pelo século XX como um soberano temerário, ou de um guerreiro que tornará sua pátria senhora do mundo. Anexo 4 Jornal Monitor Campista Exemplar nº 204 Anno 110 Data: 25 de agosto de 1944 Matéria analisada: Tanques americanos penetraram em Paris Roma, 24 (U.P) – O comando aliado emitiu o seguinte comunicado pessoal sobre as operações da França: ‘No Zona de Toulon, continua a luta na área do porto e algumas partes da cidade. O inimigo continua sua resistencia desde a península a sudeste da cidade e ao sul de Olliules, na zona oriental do porto, onde está situado o forte de Saint Louis, e desde a península fortificada, ao sul de La Pradet. Em Marselha embora quase toda a cidade se ache em poder dos franceses, bolsões de resistência inimigos continuam lutando na zona portuária. Ao nordeste, elementos de avançada se aproximaram a menos de 16 quilômetros do rodano, na direção de Arles. Foram feitos novos avanços também pata o norte’. Neutralizados objetivos Germânicos Roma, 24 (U.P.) – Anunciou-se que navios de guerra norte-americanos, britanicos e franceses voltaram a canhonear intensamente a zona de Marselha até o golfo de Napoule. Informa-se mais que um cruzador norte-americano e o francês ‘Goire’ apoiaram eficazmente as tropas nas cercanias de Toulon. Outro cruzador norte-americano neutralizou os objetivos alemães nas proximidades de Giens. [...] São fuzilados os ‘maquis’ Quando presos, não escapam á morte Paul GHALI (correspondente dos Diários Associados e do Chicago Daly News) FRONTEIRA FRANCESA NAS IMEDIAÇÕES DE GENEBRA, 22 (via radiotelegráfica) – Os guerrilheiros são fuzilados no local, quando capturados pelas tropas nazistas, mas os ‘maquis’, que viram franceses passarem por torturas indescritiveis nos quatro anos de ocupação alemã, tratam os prisioneiros nazistas humanamente. Os próprios cativos nazistas confirmaram isto durante uma visita que fiz domingo último á cidade libertada de Annecy. Os prisioneiros tomavam calmamente uma sopa, enquanto os ‘maquis’ os vigiavam. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 71 Os guerrilheiros falaram sobre as varias vezes – que as guarnições nazistas levantaram bandeira branca, em pretensa rendição, lançando depois granadas quando os patriotas se aproximavam. Os franceses sofreram tanto em mãos dos nazistas, que é difícil para eles não estarem imbuídos do ódio e desejo de vingança. Mas no seu novo papel de vencedores, eram de vem em quando a admirável restrição que se impõe. Encontrei-me, por exemplo, com o tenente Breton e o capitão Charles. O primeiro disse-me que sua esposa, esperando filho, foi arrastada pelos cabelos nas ruas de Annec pelos nazistas, simplesmente porque ele era um oficial dos ‘maquis’. Pela mesma razão a casa do capitão Charles foi arrasada em Vallary, e sua esposa e um de seus três filhos mortos. Esses dois combatentes são senhores das vidas de centenas de nazistas, e os cativos são ´bem tratados´- conforme eles mesmo declaram. Anexo 5 Jornal Monitor Campista Exemplar nº 74 Ano 120 Data: 07 de abril de 1964 Matéria: Marcha da Família com Deus constituiu verdadeira consagração à democracia Constituiu verdadeira consagração à democracia e às tradições cristãs do povo a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, realizada domingo em Campos. O movimento galvanizou a atenção e os sentimentos da população campista, oferecendo um espetáculo de fé e confiança nos destinos do Brasil. A partir das 15 horas, grande massa popular, incluindo pessoas de todas as classes sociais, concentrou-se na praça São Benedito, de onde partiu o desfile, percorrendo as ruas centrais da cidade até à Praça do Salvador. BANDEIRAS E LENÇOS BRANCOS Os participantes da Marcha empunhavam bandeiras ou acenavam lenços brancos que deram um tom festivo e cívico ao comício que se realizou, ao fim do desfile, na Praça do Salvador. [...] Anexo 6 Jornal Monitor Campista Exemplar nº 18 - Ano 164 Data: 23 de janeiro de 1997 Matéria: Garotinho negocia desfiles de carnaval no mês de julho Os desfiles de Bois Pintadinhos, blocos e escolas de samba poderão ser realizados no próximo mês de julho, período de férias escolares e época previstas pelo prefeito Anthony Garotinho em que as dívidas da Prefeitura deverão estar sanadas. No momento, ao fazer usa exposição de motivos, justificando a impossibilidade de ajudar as agremiações, por absoluta falta de recursos, o prefeito enumerou itens da relação de dívidas do Governo Municipal, herdadas da gestão passada, totalizando em cerca de R$50 milhões de reais. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 72 Ao receber os representantes das agremiações de carnaval, na tarde de ontem na sede do Governo Municipal, Garotinho deixou também ventilada a possibilidade de Campos fazer um carnaval patrocinado, assim como a programação de verão no litoral, em que a Prefeitura nada desembolsou. Por outro lado, destacou ainda a novidade de se promover a maior festa popular, extraordinariamente este ano, durante o mês de férias escolares, esperando contar com um público maior na avenida. Até lá, as agremiações deverão procurar fazer promoções em suas quadras ou clubes, para começar a fazer um fundo de custeio para o Carnaval. O prefeito começou respondendo ao presidente da Associação de Escolas de Samba de Campos – Aesc, Ariel Chacar, que encontrou a prefeitura falida, devendo cerca de R$ 3 milhões e 600 mil reais da folha de dezembro dos servidores, cerca de R$2 milhões de reais contraídos pelo Hospital Ferreira Machado além do rateio de 96 parcelas de R$185 mil reais por mês, para abater o débito da Prefeitura com o INSS, entre outros itens. [...]. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 73 “ b CORVO” de Poe visita o Brasil: a tradução criativa e genial de Machado de Assis Ana Lúcia Lima da Costa* ____________________________________________________________________Resumo Este ensaio observa a tradução criativa que o genial escritor brasileiro Machado de Assis fez da poesia O Corvo, de Edgar Alan Poe, tratando-a com a reverência que um texto canônico como o de Poe merece, mas sem servilismo. O cotejo entre os dois textos foi fundamental para confirmarmos como a tarefa do tradutor, numa literatura periférica como a nossa, pode funcionar como releitura da dependência cultural, diluição de modelos exclusivos de referência, revisão de conceitos de cópia, imitação e plágio. A relação entre tradução e processos criativos é fecunda e atua como possível reveladora de talentos nacionais. Neste ano em que comemoramos o Ano Nacional Machado de Assis é ainda mais relevante debruçarmos sobre a obra do escritor oitocentista. Palavras-chave: tradução- poesia- Machado de Assis - transcriação ___________________________________________________________________________ A literatura como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de sua vitalidade. Machado de Assis Introdução Quando lidamos com tradução de textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua mensagem conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o leitor e a obra, fica ainda mais difícil abarcar toda a riqueza de significados e transpô-la para uma outra língua. Diante desse impasse e de sentenças taxativas quanto à impossibilidade da tradução de textos literários, chega-se a uma saída possível: assumir a falta e transformá-la em trampolim para a criação. Esse é o caso da transcriação. Transcriação é um neologismo cunhado pelo crítico Haroldo de Campos para nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limites do significado e se propõe a fazer funcionar o próprio processo de significação original numa outra língua. Essa proposta retoma criativamente o “modo de intencionar” do original e o recria de modo artístico, através de sutilezas da forma e da linguagem em português. Nessa tarefa, a voz do tradutor, afônica antes, ganha timbre novo e autonomia dentro do texto em oposição a uma tentativa de transparência frustrada porque nunca conseguida. O nosso Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor e, respeitando o original, sem servilismo, exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária . Machado de Assis principiou sua atividade tradutória escrevendo duas imitações: Minha Mãe (imitação de Willian Cowper) – poesia, em 1856 e Hoje Avental, Amanhã Luva ( La chasse au Lion, de Vattier et De Najac) – teatro, em 1860. Aqui neste ensaio trataremos de sua tradução mais famosa O Corvo, poema de Poe escrito em 1845, traduzido por Machado de Assis em 1883. Torna-se necessário tomarmos, então, tanto o “original” de Poe quanto O Corvo de Machado para melhor * Pós-Doutoranda em Ciência da Literatura/ Literatura Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ) Doutora em Ciência da Literatura/ Literatura Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ), Mestre em Letras/ Teoria da Literatura (Universidade Federal de Juiz de Fora- MG). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 74 exemplificarmos as alterações criativas na tradução do escritor brasileiro a fim de confirmarmos a genialidade de sua transcriação: The Raven Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, Over many a quaint and curious volume of forgotten lore, While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of some one gently rapping, rapping at my chamber door. “ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber doorOnly this, and nothing more.” O Corvo Em certo dia, à hora, à hora Da meia-noite que apavora, Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, Ao pé de muita lauda antiga, De uma velha doutrina agora morta, Ia pensando, quando ouvi à porta Do meu quarto um soar devagarinho, E disse estas palavras tais: “É alguém que me bate à porta de mansinho; Há de ser isso e nada mais.” No texto de Edgar Allan Poe podemos observar já na primeira estrofe um denso cruzamento de rimas finais e internas, completado por abundantes aliterações e todo tipo de assonâncias, constituindo um absorvente desafio a sua tradução. O nosso Machado traduziu com perfeita transposição do sentido e do clima, além de algumas artimanhas sonoras, como por exemplo retomar o som “or” de “more” e “Lenore” de Poe nas rimas “morta”/ “porta”. Ah, distinctly I remember it was the bleak December, And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor. Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow Form my books surcease of sorrow – sorrow for the lost Lenore – For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore – Nameless here for everymore. Ah! Bem me lembro! Bem me lembro! Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 75 Era no glacial dezembro; Cada brasa do lar sobre o colchão refletia A sua última agonia. Eu ansioso pelo Sol, buscava Sacar daqueles livros que estudava Repouso (em vão) à dor esmagadora Destas saudades imortais Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora, E que ninguém chamará mais. Quanto à metrificação, verificamos que Poe utiliza versos de 16 sílabas, enquanto Machado de Assis alterna entre versos de 8, 10 e 12 sílabas. And the sliken sad uncertain rustling of each purple curtain Thrilled me- filled me with fantastic terrors never felt before; So that now, to still the beating of my heart. I stood repeating, ‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber doorSome later visitor entreating entrance at my chamber door;This it is, and nothing more.” E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordando Dentro em meu coração um rumor não sabido, Nunca por ele padecido. Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito, Levantei-me de pronto, e “Com efeito, (Disse), é visita amiga e retardada “Que bate a estas horas tais. “É visita que pede à minha porta entrada: “Há de ser isso e nada mais”. Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer, “Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore; but the fact is I was napping, and so gently you came rapping, and so faintly you came tapping, tapping at my chamber door, Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 76 that I scarce was sure I heard you”-here I opened wide the door;Darkness there, and nothing more. Minh’alma então sentiu-se forte; Não mais vacilo, e desta sorte Falo:“Imploro de vós – ou senhor ou senhora, Me desculpeis tanta demora. “Mas como eu, precisando de descanso “Já cochilava, e tão de manso e manso, “Batestes, não fui logo, prestemente, “Certificar-me que aí estais”. Disse; a porta escancar, acho a noite somente, Somente a noite, e nada mais. Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing, Doubting, dreamind dreams no mortals ever dared to dream before; But the silence was unbroken, and the stillness gave no token, And the only word there spoken was whispered word, “Lenore!” This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” – Merely this, and nothing more. Com longo olhar escruto a sombra Que me amedronta, que me assombra. E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, Mas o silêncio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta; Só tu, palavra única e dileta, Lenora, tu, com um suspiro escasso, Da minha triste boca sais; E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais. Back into the chamber turning, all my soul within me burning, Soon again I heard a tapping somewhat louder than before. “Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice: Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 77 Let me see, then, what thereat is, and this mystery exploreLet my heart be stiil a moment and this mystery explore;‘Tis the wind and nothing more.” Entro co’a alma incendiada, Logo depois outra pancada Soa um pouco mais forte eu,voltando-me a ela: “Seguramente, há na janela Alguma coisa que sussurra. Abramos, “Eia, fora o temor, eia, vejamos “ A explicação do caso misterioso dessas duas pancadas tais, “Devolvamos a paz ao coração medroso, “Obra do vento, e nada mais”. Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately raven of the saintly days of yore; Not the least obeisance mede he; not a minute stopped or stayed he; But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door – Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door – Perched, and sat, and nothing more. Abro a janela, e de repente, Vejo tumultuosamente Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. Não despendeu em cortesias Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, Movendo no ar as suas negras alas, Acima voa dos portais, Trepa, no alto da porta em um busto de Palas: Trepado fica, e nada mais. Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 78 “Though thy crest be shorn and shaven, thou, “I said, “art sure no craven, Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore – Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!” Quoth the Raven, “Nevermore.” Diante da ave feia e escura, Naquela rígida postura, Com o gosto severo, - o triste pensamento Sorriu-me ali por um momento, E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas “Vens, embora a cabeça nua tragas, “Sem topete, não és ave medrosa, “Dize os teus nomes senhoriais; “Como te chamas tu na grande noite umbrosa?” E o corvo disse: “Nunca mais”. Aqui, Poe atribui a origem do corvo ao submundo infernal relacionando-o com a figura mitológica de Plutão; já Machado não cita tal figura mas em contrapartida acrescenta a expressão “noite umbrosa” ao seu texto. Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, Though its answer little meaning – little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door – Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door, With such name as “Nevermore.” Vendo que o pássaro entendia A pergunta que eu lhe fazia, Fico atônito, embora a resposta que dera Dificilmente lha entendera. Na verdade, jamais homem há visto Coisa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta Num busto, acima dos portais, Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 79 Ouvir uma pergunta a dizer em resposta Que este é seu nome: “Nunca mais”. But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only That one word, as if his soul in that one word he did outpour. Nothing further then he uttered – not a feather then he flutteredTill I sacracely more than muttered, “other friends have flown before.” Then the bird said, “Nevermore.” No entanto, o corvo solitário Não teve outro vocabulário. Como se essa palavra escassa que ali disse Toda sua alma resumisse, Nenhuma outra proferiu, nenhuma. Não chegou a mexer uma só pluma, Até que eu murmurei: “Perdi outrora “Tantos amigos tão leais! “Perderei também este em regressando a aurora” E o corvo disse: “Nunca mais!” Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken, “Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store, caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster followed fast and followed faster till his songs one burden boretill the dirges of his Hope that melancholy burden bore Of ‘Never – nevermore’.” Estremeço. A resposta ouvida É tão exata! É tão cabida! “Certamente, digo eu, essa é toda a ciência “Que ele trouxe da convivência “De algum mestre infeliz e acabrunhado “Que o implacável destino há castigado “Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga, “Que dos seus cantos usuais Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 80 “Só lhe ficou, na amarga e última cantiga, “Esse estribilho: “Nunca mais”. But the Raven still beguiling all my fancy into smiling, Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;Then upon the velvet sinking, I bettok myself to linking Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yoreWhat this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of yore Meant in croaking “Nevermore.” Segunda vez nesse momento Sorriu-me o triste pensamento; Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; E, mergulhando no veludo Da poltrona que eu mesmo ali trouxera, Achar procuro a lúgubre quimera, A alma, o sentido, o pávido segredo Daquelas sílabas fatais, Entender o que quis dizer a ave do medo Grasnando a frase: “Nunca mais”. Na citada estrofe, constatamos que Poe emprega uma intensa e freqüente adjetivação, enquanto Machado apresenta uma tendência à concisão de idéias e formas na tradução da mesma estrofe e diz apenas: “ave do medo”. This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core; This and more I sat divining, with my head at ease reclining On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er, But whose velvet violet linig with the lamplight gloating o’er, She shall prees, ah, nevermore! Assim posto, devaneando, Meditando, conjeturando, Não lhe falava mais; se lhe não falava, Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 81 Sentia o olhar que me abrasava. Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto, Com a cabeça no macio encosto Onde os raios da lâmpada caíam, Onde as tranças angelicais De outra cabeça outrora ali se desparziam E agora não se esparzem mais. Then methought the air grew denser, perfumed from an unseen censer Swung by Seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor. “Wretch, “I cried, “Thy God hath lent thee- by these angels the hath sent sent thee respite – respite and nepenthem from thy memories of Lenore! Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!” Quoth the Raven, “Nevermore.” Supus então que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso, Obra de serafins que, pelo chão roçando Do quarto, estava, meneando Um ligeiro turíbulo invisível: “Manda repouso à dor que te devora “Destas saudades imortais. “Eia, esquece, eia olvida essa extinta Lenora”. E o corvo disse: “Nunca mais”. Aqui averiguamos que Poe menciona uma antiga droga dos gregos utilizada para curar a tristeza: o nepente. Esta droga ajudaria a esquecer a amada Lenore. Já Machado apenas reforça o fato de esquecer a amada e não cita droga alguma. “Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore, Desolate yet all undaunted, on this desert land enchantedOn this home by horror haunted – tell me truly, I implore! Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me, I implore!” Quoth the Raven, “Nevermore.” Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 82 “Profeta, ou o que quer que sejas! “Ave ou demônio que negrejas! “Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno “Onde reside o mal eterno, “Ou simplesmente náufrago escapado “Venhas do temporal que te há lançado “Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo “Tem os seus lares triunfais, “Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?” E o corvo disse: “Nunca mais”. “Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil! By that Heaven that bends above us – by that God we both adoreTell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden whom the angels name LenoreClasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.” Quoth the Raven, “Nevermore.” “Profeta, ou o que quer que sejas! “Ave ou demônio que negrejas! “Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! “Por esse céu que além se estende, “Pelo Deus que ambos adoramos, fala, “Dize a esta alma se é dado inda escutá-la “No Éden celeste a virgem que ela chora “Nestes retiros sepulcrais, “Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!” E o corvo disse: “Nunca mais!” Neste ponto, enquanto Poe menciona o Éden como o lar de Lenora, Machado apenas o chama de “Éden celeste”. “Be that word our sign in parting, bird or fiend, “I shrieked, upstarting“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken! Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 83 Leave my loneliness unbroken!-quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!” Quoth the Raven, “Nevermore.” “Ave ou demônio que negrejas! Profeta, ou o que quer que sejas! “Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa! “Regressando ao temporal, regressa “À tua noite, deixa-me comigo... “Vai-te, não fique no meu casto abrigo “Pluma que lembre essa mentira tua. “Tira-me ao peito essas fatais “Garras que abrindo vão a minha dor já crua” E o corvo disse: “Nunca mais”. And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming, And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor Shall be lofted –nevermore! E o corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e fora Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais! Considerações Finais Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 84 Pudemos verificar através do cotejo dos dois textos que o “original” de Poe é mais enxuto porque a estrutura é diferente ( cada estrofe de Poe tem 5 versos longos e um curto, enquanto Machado aumentou para 10 versos curtos). E mesmo sendo a mais famosa de suas traduções, há opiniões controvertidas com relação à tradução feita por Machado. De acordo com Barroso e Masini (2002), The Raven (1845), é um clássico da poesia inglesa que desafia tradutores – mais de trinta versões já foram feitas só em português e quase nenhuma consegue o efeito conseguido no inglês que coaduna os efeitos de som da rima em – ore ( never more e nothing more ) com Lenore, o nome da morta por quem o poeta sofre. Para esses especialistas em tradução, manter “nunca mais” em português dá “suadouro em tradutores de vários calibres” e não pouparam a tradução de Machado do texto de Edgar Allan Poe afirmando que ela é um “equívoco”. Em seus trabalhos, Barroso e Masini fazem excelentes compilações e avaliam as poesias que melhor resgataram a força do original, mas se esquivaram de dizer que cada uma delas serve de medida exata para mostrar que toda tradução, ainda mais em poesia, é pura recriação e este ensaio procura reforçar isso mostrando que Machado de Assis entende por originalidade o efeito da apropriação modificadora da forma de origem, portanto já não se pode considerar sua tradução de O Corvo um equívoco. Do mesmo modo que tudo o que se põe em discussão gera opiniões divergentes, com a tradução não poderia deixar de ser assim, ainda mais de um texto célebre como O Corvo. Então para Bellei (1992), por exemplo, “Machado universaliza o que Poe reduz a uma percepção mais limitada da dor da perda no ser humano” (1992, p. 87) , ou seja, produz originalmente na repetição, porque enquanto Poe escreve um poema sobre um amante aflito pela perda da mulher amada e usa o corvo como emblema dessa situação, Machado reescreve o poema original dando ênfase ao corvo como centro de atenção e à mensagem secreta que ele tem para oferecer à humanidade (1992, p. 83). Sem a ambição dar a lista completa podemos garantir que há pelo menos 120 autores de traduções de O Corvo nas principais línguas neolatinas da Europa ocidental. As traduções brasileiras são consideradas muito livres do ponto de vista formal; são versões em sonetos, em oitavas, em décimas e ainda versões em prosa, cordel e mesmo poesia visual. Analistas da tradução feita por Machado de Assis avaliam desde seu comedimento na descrição física do ambiente, considerado por muitos como fuga do “compromisso com a realidade”, à consideração de que este mesmo fato tem justificativa nas características estilísticas ligadas à sua prosa de segunda fase que valoriza o plano psicológico do amante, perturbado e melancólico com a morte da amada. O que podemos constatar é que certas escolhas lingüísticas e literárias assinalam para maneiras distintas que diferentes tradutores lidaram com o texto de Poe, ou seja, apropriaram-se dele com intenção de construir novas possibilidades de significação. Em conseqüência disso, alertamos para o fato de que um texto nunca permanece intacto e intocável diante de novos indivíduos e contextos, mas ao contrário, é lido e avaliado de modo diverso a cada olhar, traduzido para uma realidade que jamais se coliga com o mesmo e a estagnação. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 85 Com estes exemplos, pretendemos demonstrar o uso da citação como parte integrante da formação intelectual e literária do escritor-tradutor. A tradução de fragmentos de textos estrangeiros evidencia o importante papel que a tarefa tradutória exerceu não apenas na carreira literária de Machado de Assis, mas também no contexto cultural da sociedade brasileira oitocentista. Referências BARROSO, I. (Org). O corvo e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. BELLEI, S. L. P. “O Corvo Tropical de Edgar Allan Poe”. In: _________. Nacionalidade e Literatura: os caminhos da alteridade. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, p. 77-90. BENJAMIN, W. A Tarefa do Tradutor. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. CAMPOS, A . Poesia, Antipoesia, Antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1982. CAMPOS, H. de . “Da tradução como Criação e como Crítica”. Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976. CARNEIRO, C. R. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000. COSTA, A. L. L. Dependência Cultural: o caso Machado de Assis. (dissertação de Mestrado). UFJF, 2001. _______________ Machado de Assis tradutor: o labirinto da representação. (tese de doutorado). UFRJ, 2006. JACQUES, A. Machado de Assis: equívocos da crítica. Porto Alegre: Movimento, 1974. POE, E. A. “O Corvo”. Tradução de Machado de Assis. In: MACHADO DE ASSIS, J.M. Obras Completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p. 402-404. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 86 b Auto da Compadecida: uma Rosa no Sertão de Guel Arraes Eusébio Dornellas* ____________________________________________________________________Resumo O artigo tem como objetivo refletir sobre a intertextualidade no filme O auto da compadecida, do diretor Guel Arraes, que insere em um novo contexto a obra do escritor Ariano Suassuna, sem perder o ritmo narrativo da história original. Arraes, ao mesmo tempo em que deixa sua marca registrada na obra, consegue ludibriar o leitor/espectador, levando-o a enxergar um só texto. Palavras-chave: Teatro. Literatura Cinema. Ritmo narrativo. Intertextualidade. ___________________________________________________________________________ INTRODUÇÃO O teatro é uma forma cultural que difere de outras apresentações culturais, pois tem na oralidade – na maioria das vezes – seu vínculo de comunicação. Uma peça teatral não é a mesma coisa que uma poesia, um conto ou um romance; esses se encaixam perfeitamente no gênero literário enquanto tal. O teatro não se restringe a algumas folhas de papel nem à simples utilização de técnicas teatrais (cenografia, iluminação, ritmo, interpretação etc.) para acontecer. O palco é o grande suporte para que haja a manifestação teatral; enquanto um romance, por exemplo, tem como base a sua encadernação, ou seja, folhas impressas e formatadas que irão compor um livro. O Teatro Adolescente do Recife apresentou o Auto da Compadecida no Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro. Se a interpretação era boa (considerando aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto até certo ponto inexperientes), o que chamou realmente a atenção foi o texto em si. Escrito por Ariano Suassuna, a obra desperta fascínio até os dias de hoje e saltou dos palcos de teatro para a tela de cinema. O LIVRO A obra de Ariano Suassuna se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste. O Auto da Compadecida é uma peça de teatro, em três atos e foi escrito em 1955. A comédia expõe problemas e situações típicos da cultura nordestina. Mistura religiosidade, cultura popular, literatura de cordel e circo. É importante esclarecer que o texto mostra uma representação de circo, em que se utiliza a figura de um palhaço para narrar pequenos trechos da história entre um ato e outro. O universo popular que a obra se inspira encanta o mais desatento leitor. As personagens, independentemente de seus defeitos ou qualidades, assumem uma naturalidade provinciana assaz original. O argumento se mantém fiel à teatralidade proposta, do início ao * Eusébio Dornellas é escritor, Bacharel em Ciências Contábeis (Faculdades Integradas Padre Humberto – FIPH) e estudante de Comunicação Social / Jornalismo nas FIPH. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 87 fim do texto, com expressões engraçadas, por vezes inesperadas, que dão um colorido especial à peça. Os protagonistas João Grilo e Chicó elaboram inúmeros planos para conseguir um pouco de dinheiro. A luta pela sobrevivência é o motor que os impulsiona a inventar os maiores absurdos com a finalidade de se obter algum lucro. Enganar os outros era algo que também os fascinava, como cita o personagem João Grilo: Muito pelo contrário, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Três dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo d’água me mandaram. Mas fiz esse trabalho com gosto, somente porque se trata de enganar o padre. Não vou com aquela cara. (SUASSUNA, 1997, p. 36). O trabalho em questão foi conseguir com que o padre João benzesse o cachorro da mulher do padeiro. No entanto, o padre só aceitou o propósito devido à mentira de João Grilo que afirmara ser Antônio Moraes o dono do cachorro. Nesse mesmo trecho do livro, fica evidente a predileção do representante da Igreja pelos ricos e poderosos em detrimento dos pobres. A peça menciona que o major Antônio Moraes possui um filho. Este é apenas citado, sequer tem um nome. A única razão de ele existir é para se fazer a confusão entre o filho doente do major e o cachorro doente da mulher do padeiro, ambos em busca da benção do padre. Essa informação nos será bastante útil para entendermos a transposição textual da peça para a arte cinematográfica. A Igreja descrita por Suassuna tem mais de um representante religioso. Além do padre João, há um sacristão, um bispo e um frade. O sacristão é um sujeito magro e pedante; o bispo é um personagem medíocre; e o frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é a alegria e a bondade em pessoa, o único elogiado por Jesus, como exemplo de pessoa a ser seguido. Identificamos na obra em questão uma aproximação com gêneros de outras épocas que podem ter influenciado o trabalho de Suassuna. Na Idade Média, por volta do século XIV, havia peças onde os milagres de Nossa Senhora eram evocados pelo herói que estivesse em dificuldades, para conseguir se safar de um trágico fim no plano de vida terrana e, às vezes, no plano de vida espiritual. A Commedia Dell´arte41 também parece ter deixado resquícios sobre a pena do autor, principalmente na concepção dos personagens, especificamente na figura de João Grilo, que lembra muito o arlequim. A visão cristã da vida é apresentada com a simplicidade do espírito popular, sem complicações, cujo povo de fé simples se agarra em uma religiosidade passada de geração a geração. Não se percebe questionamentos ou reflexões filosóficas sobre o porquê de as coisas serem como são; no entanto, a sabedoria popular, aliada a uma religiosidade fervorosa, ajuda a compreender o que se passa na cabeça do sertanejo. A intimidade entre João Grilo e Manuel, diante do tribunal, reforça a idéia da simplicidade na relação entre os homens e Deus. O ponto culminante da peça é o julgamento dos mortos, quando João Grilo, padre João, Sacristão, Bispo, Padeiro, Mulher do Padeiro, Severino do Aracaju e o Cangaceiro ficam diante dos acusadores, O Encourado (o Diabo, no linguajar nordestino) e o demônio 41 Commedia Dell'arte (em português "comédia da arte"), famosa comédia improvisada em forma popular de teatro que começou no séc. XVI e que se manteve popular durante o séc. XVIII. http://pt.wikipedia.org/wiki/Commedia_dell%27Arte . Acessado em 19 de outubro de 2007. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 88 (serviçal do Diabo). Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) é o juiz do tribunal e a Compadecida (Nossa Senhora) a grande advogada. O astuto João Grilo, que em vida usou suas artimanhas para enganar as pessoas com o intuito de sobreviver às dificuldades terrenas, não abre mão de sua esperteza nem mesmo diante do Juízo Final prestes a se anunciar. Interessante notar que o personagem utiliza a literatura de cordel para invocar a ajuda de Nossa Senhora recitando um versinho com o intuito de agradar a sua advogada. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, A braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, A braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, Só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré. (SUASSUNA, 1997, p. 170). Fica claro que essa atitude foi bem vista aos olhos de Nossa Senhora que prontamente assume o papel de advogada dos acusados. Severino do Aracaju e o Cangaceiro são absolvidos pelo próprio Jesus porque “enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles, e não eram responsáveis por seus atos”. (Ibidem, p. 180). Após a alegação de Nossa Senhora em favor do padre João, Sacristão, Bispo, Padeiro e a Mulher do Padeiro, João Grilo pede a palavra e pergunta se os cinco últimos lugares do purgatório estão vagos. Diante da afirmativa de Manuel, ele sugere que os amigos sejam enviados para lá. Sozinho no tribunal, João Grilo se vê nas mãos da Compadecida, que pede uma nova chance para ele. A esperteza de João livrou todos os personagens de irem para o inferno e, ainda, lhe concedeu uma nova oportunidade de vida na Terra. O desfecho da história é uma profusão de lamúrias dos personagens João Grilo e Chicó. Este havia prometido entregar à Nossa Senhora todo o dinheiro conseguido, caso aquele se salvasse da morte. Depois de muito discutirem, João Grilo percebe que talvez tenha sido a mão da Compadecida que o tenha livrado da morte. O FILME Baseado na obra de Ariano Suassuna, o filme O Auto da Compadecida, sob direção de Guel Arraes, procura manter a fidelidade textual da peça com riqueza de minúcias. No sertão da Paraíba, mais precisamente no vilarejo de Taperoá, João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) caminham pelas ruas divulgando o filme “A paixão de Cristo” que será exibido na Igreja. A sobrevivência dos sertanejos é uma prioridade constante na película. Novos desafios acontecem com a chegada de Rosinha (Virgínia Cavendish), filha de Antônio Moraes (Paulo Goulart). Ela desperta a paixão de Chico, ciúmes do Cabo Setenta (Aramis Trindade) e do valentão Vicentão (Bruno Garcia). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 89 João Grilo arma inúmeras confusões para casar Rosinha e Chicó, com o intuito de ganhar a metade do dinheiro de uma porca de barro – cofre – que ficou de herança para a moça. Com a chegada do cangaceiro Severino (Marco Nanini) a Taperoá, os planos de João Grilo são temporariamente interrompidos. A morte do Padeiro (Diogo Vilela) e de sua esposa Dora (Denise Fraga), bem como as mortes de padre João (Rogério Cardoso), do Bispo (Lima Duarte), de Severino e João Grilo, deixa-os cara a cara com o diabo (Luís Melo) diante do tribunal. O destino deles fica a cargo de Nossa Senhora (Fernanda Montenegro) e de Manuel (Maurício Gonçalves). A fidelidade dos diálogos do filme em relação à peça é tamanha, que ousamos dizer que o trabalho de adaptação do roteiro foi bastante facilitado. O filme exclui alguns personagens da peça, como, por exemplo: Palhaço, Sacristão, Frade e o Demônio (auxiliar do Diabo). Em compensação, Guel Arraes proporciona o surgimento de uma filha do major Antônio Moraes, a bela Rosinha, que direcionará o nosso olhar para uma trama mais romântica. Como já havia sido mencionado, o texto teatral nos traz a existência de um filho do major Antônio Moraes, enquanto no filme, há uma filha. O diretor Guel Arraes “planta” uma rosa (de nome Rosinha) nesse deserto chamado Taperoá, o que nos possibilita acompanhar uma trama bem orquestrada, com a finalidade de unir os corações apaixonados de Chicó e Rosinha. Assim que a moça chega da cidade de Recife, encontra-se casualmente com Chicó, próximo à roda gigante de um modesto parque de diversão. No momento em que os olhos de ambos se cruzam, uma rajada de fogos ilumina os céus do sertão. Um efeito especial que proporciona ao espectador da cena a certeza de que não seria mera coincidência aquele encontro. A película é marcada por algumas inserções de efeitos especiais, principalmente nos “causos” contados por Chicó. São efeitos esteticamente simples, que se utilizam de recursos cenográficos marcadamente televisivos. Todas as lorotas de Chicó, quando visualizadas, evidenciam a origem na TV. Segundo Guel Arraes, em entrevista a Luiz Carlos Merten (Agência Estado), “esse tipo de artifício cênico também era a marca de um mestre, Federico Fellini, que nunca precisou mais do que montes de celofane para sugerir o mar”.42 Os efeitos sugerem uma simplicidade poética em um universo totalmente simplista e, em hipótese alguma, desinteressante. Rosa Benigna Vaz de Medeiros (bisavô de Rosinha) deixou como herança uma porca recheada de dinheiro. O major Antônio Moraes entrega a herança à filha mediante uma única condição, que ela se case. Todavia, ele só aceita que a filha se case com um homem muito rico, de preferência que seja “dotô” e valente. João Grilo, querendo fazer o amigo Chicó se passar por valente na frente de Rosinha, arma um plano. Pega um broche do Cabo Setenta e um par de brincos de Vicentão para presentear a moça. Rosinha pensa que os presentes são de Chicó, e ainda fica sabendo que este vai colocar os valentões para correr da cidade. Está armado o “duelo de três”. Em um segundo plano de câmera, próximo à porta da Igreja, João diz à moça que Chicó vai enfrentar os dois valentões da cidade de uma só vez, e desarmado. Já no primeiro plano de câmera, Chicó está entre as armas de Cabo Setenta e Vicentão. Morrendo de medo, diz a eles que Rosinha ficará com o presente daquele que sobreviver ao duelo. Os valentões, com medo da morte, saem correndo e Chicó fica com o louro da vitória. 42 www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm. Acessado em 05 de setembro de 2007. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 90 João Grilo leva Chicó à presença do major Antônio Moraes para apresentá-lo como pretendente à mão de Rosinha. Mediante as mentiras contadas por João a Antônio Moraes, este empresta um dinheiro a Chicó para as reformas da Igreja. Como Chicó não tinha nenhuma garantia a oferecer pelo empréstimo, João Grilo sugeriu que se fizesse um acordo: caso Chicó não pagasse o empréstimo, o major poderia tirar “uma tira de coro” do futuro genro. Em função do romance vivido entre Chicó e Rosinha, o filme ganha um enredo diferente da trama teatral. O diretor Guel Arraes passa a interferir de forma mais decisiva na história. O amor impossível entre o rico e o pobre não ganha os ares “clichês” de historietas de amor. Ao contrário, parece que Guel Arraes bebeu muito da fonte de Ariano Suassuna, conseguindo manter o mesmo ritmo narrativo e, ao mesmo tempo, conseguiu imprimir sua assinatura na obra. No Juízo Final encontramos uma quantidade menor de personagens. São seis acusados (João Grilo, Padre João, Bispo, Padeiro, Dora e Severino), um acusador (Diabo), a advogada (Nossa Senhora) e Manuel como o juiz. O julgamento ocorre nos mesmos moldes estabelecidos na peça teatral. Vale ressaltar que, quando Nossa Senhora vai fazer a defesa de João Grilo, ela menciona as dificuldades sofridas pelo povo nordestino, dizendo que na seca eles comem macambira. No mesmo instante, imagens de sertanejos pobres em meio à seca, surgem na tela. São homens, mulheres e crianças que resistem ao sol e à terra infértil em busca da sobrevivência. Nesse deslocamento percebemos a intenção de Guel Arraes em deixar registrado seu “grito” de protesto contra as autoridades que se esqueceram do povo nordestino. É um momento emocionante que difere da comicidade da história. O final da película segue o enredo da peça até certo ponto. João Grilo e Chicó lamuriam a promessa à Nossa Senhora. Entretanto, como o filme tem um ingrediente que a peça não possui (o romance), a história não termina com as lamentações dos dois amigos. Depois do casamento de Rosinha e Chicó, João Grilo abre a porquinha e os três percebem que o dinheiro não valia de nada, pois a moeda já havia sido recolhida. Como Chicó não tinha dinheiro para pagar o empréstimo feito junto ao major Antônio Moraes, este pega uma faca para tirar uma “lasquinha do couro” do moço. Diante do fato, Rosinha disse ao pai que ele tem que tirar o couro sem derramar uma gotinha de sangue, pois não há a palavra sangue no contrato. Revoltado com a enganação dos três, o major manda que a filha suma de sua vista até a sexta geração. Saindo pela estrada afora, sem rumo e sem destino, Chicó disse à sua esposa que ela havia dado o golpe do baú ao contrário. Depois de dividirem o pão com um mendigo, Rosinha disse que Jesus às vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade das pessoas. Grilo riu a falou que pretinho daquele jeito era difícil de ser. Chicó tentando ratificar o comentário de Rosinha, contou mais uma de suas mentiras, sobre um homem que havia visto um “Cristo pretinho” lá pelos lados da Bahia. E quando questionado sobre como ele sabia daquilo, respondeu: “não sei, só sei que foi assim”. O LIVRO, O FILME E A INTERTEXTUALIDADE Na elaboração de um texto literário, a absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos recebe o nome de intertextualidade. A obra de Ariano Suassuna e o texto de Guel Arraes, que teve a colaboração de João Falcão e Adriana Falcão, formam uma simbiose, que trouxe à tela de cinema uma nova releitura de o Auto da Compadecida. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 91 Através da linguagem cinematográfica, o espectador passa a perceber a realidade de uma forma mais intensa, pois seus sentidos ficam mais vulneráveis diante de uma complexa linguagem áudio-visual que o livro não pode proporcionar. O cinema ajuda a pensar na diversidade cultural e não fica restrito simplesmente a uma noção de estética. Bolz (1991, p. 95)considera as reflexões de Walter Benjamin sobre cinema cuja estética cinematográfica é concebida como doutrina da percepção humana: Benjamin não mais pensa no conceito da estética no sentido tradicional para nós, no sentido de uma teoria das belas artes, nem mesmo no sentido de uma teoria das artes, mas pensa na estética a partir de sua etimologia grega, isto é, da “aisthesis”, ou seja, como doutrina da percepção. E, enquanto uma tal doutrina da percepção, a estética não é um departamento entre outros, mas é para Benjamin, uma nova ciência diretriz. Ou seja, o cinema possibilita novos modos de visão; mesmo depois de concluído o filme, ele ainda dialoga com o espectador. Novas formas de sensibilidade e percepção são passadas aos espectadores através da sétima arte, o cinema. A análise intertextual da peça – livro – e do filme em relação à passagem do signo verbal para o visual indica que não se comprometeu o enredo da história. Acontecem algumas transformações quando um personagem literário é deslocado para o universo fílmico, pois a personagem textual é criada na mente do leitor, enquanto a personagem cinematográfica fazse diante do olhar do espectador. Genette (1982, p. 7-12) entende que O trânsito intertextual realizar-se-á a partir da percepção do leitor em reconhecer as marcas ou, simplesmente, os vestígios dos textos para poder, então, estabelecer as conexões entre eles, nomeando o texto de partida como hipotexto (texto-origem) e o texto de chegada [...], de hipertexto. Vale salientar que o filme O Auto da Compadecida tem a sua narrativa bastante fiel ao texto de Suassuna e, conforme já mencionamos, no deslocamento realizado por Guel Arraes com algumas personagens, principalmente Rosinha, o ritmo narrativo é tão semelhante que ficaria um pouco complicado, caso não soubéssemos de onde surgiu a primeira obra (no caso, a peça), identificar o hipotexto e o hipertexto. Consideramos o filme como uma adaptação, já que temos como ponto de partida a peça teatral Auto da Compadecida. O importante é que tanto o leitor quanto o espectador percebam os vestígios, as marcas de texto anteriores, sendo ainda capazes de completar-lhes o sentido (já que um texto encontra-se em constante movimento, isto é, aberto a novas leituras e interpretações), de captar o sentido da ironia, ampliando assim sua leitura. De fato, a obra de arte submete o leitor/espectador a uma intensa atividade muitas vezes inconsciente, em que [ele] ora formula hipóteses construtivas sobre o significado do texto, ora estabelece conexões implícitas [...], faz deduções [...] sempre baseado no seu conhecimento do mundo [...] e das convenções literárias. (VOLPE, 1998, p. 15). A literatura empresta ao cinema uma forma de ver o mundo. O cinema, por sua vez, toma emprestados textos do universo literário a serem transformados em uma linguagem cinematográfica, e assim se forma uma constante mescla das duas artes. Importante ainda Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 92 ressaltar é que tanto o livro quanto o filme procuram traduzir o sofrimento do povo nordestino de uma forma bastante crítica, mas sem perder o humor. A comicidade da peça transportada ao cinema revela um povo tipicamente brasileiro, que enfrenta seus problemas com muita luta, sem jamais perder a esperança. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que tanto no discurso literário quanto na narrativa fílmica a história mantém uma mesma cadência. A comicidade é a força impulsionadora que une as duas artes. Mesmo com os deslocamentos realizados pelo cinema, o enredo cinematográfico se mantém fiel à peça teatral. O diretor Guel Arraes conseguiu implementar um romance que deu um colorido a mais à história, sem fugir ao traçado original de Ariano Suassuna. A linguagem áudio-visual proporciona ao espectador uma gama de informações que vai além da composição poética impressa nas páginas do livro. O romance entre Rosinha e Chicó é de suma relevância para o desfecho da trama, que concede ao filme um toque refinado de paixão. A rosa – Rosinha – “plantada” no sertão de Taperoá é o grande achado do diretor, que pôde explorar habilmente uma trama amorosa em meio aos encontros e desencontros dos personagens João Grilo e Chicó, eternos mentirosos. REFERÊNCIAS BAZIN, André. Por um cinema impuro: defesa da adaptação e teatro e cinema. In: ______. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BOLZ, Norbert. Teoria da mídia em Walter Benjamin. In: Sete perguntas a Walter Benjamin. Revista USP. São Paulo, 1991. GENETTE, Gérard. Palimpsestos; a literatura de segunda mão. Paris: Seuil, 1982. Trad. Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. In: Cadernos do Departamento de Letras Vernáculas. 2005. Belo Horizonte. O AUTO DA COMPADECIDA. Direção de Guel Arraes. Co-produção Globo Filmes, 1999. Filme de duração de 104m; son; color. SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1997. VOLPE, Miriam Lídia. Resgate de um sonho: cidadão Kane e Kubla Kan. São Paulo: Cone Sul, 1998. www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm. http://pt.wikipedia.org/wiki/Commedia_dell%27Arte Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 93 POLÍTICA E SOCIEDADE Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 94 ` imetismo: uma tática de sobrevivência adolescente? Francineide Silva Sales∗ ____________________________________________________________________Resumo O presente artigo tem como finalidade abordar alguns elementos discutidos na dissertação de mestrado defendida em 2005, intitulada “Adolescente-etiqueta: consumo, significados e conflitos”, cujo objetivo foi identificar aspectos que envolvem a relação entre adolescentes cariocas e o consumo no processo de construção da imagem que têm de si. Nesse sentido, serão abordadas, por um lado, a perspectiva da indústria cultural sobre o consumo adolescente e, de outro, um dos significados do consumo apreendidos durante a pesquisa, ou seja, a tática de mimetismo. Palavras-chave: Adolescente. Consumo. Indústria Cultural. Moda. ____________________________________________________________________Abstract This article´s purpose is to discuss some subjects present in dissertation called “Teen-tag: consumption, meanings and conflicts” which was defended in 2005. Considering the process of self image building by cariocas teenagers, as an aim of the dissertation, this paper presents adolescent consumption through cultural industry view, as well as one of consumptions meaning caught up during the search, or in another way: mimetism tatic. Key words: Teenager. Consumption. Cultural Industry. Fashion. ___________________________________________________________________________ Introdução Nos dias atuais chama atenção a diversidade de produtos anunciados através dos meios de comunicação, com suas marcas, etiquetas e modelos, circulando, assim, na direção de jovens, velhos, mulheres e homens. Nesse processo, a última – e efêmera – moda é apresentada de forma imperativa. A durabilidade cada vez menor dos produtos é assimilada como a novidade sempre indispensável. Assim, concretiza-se a lógica do individualismo contemporâneo observada por Wiewiorka (1997, p. 23)43, na qual o sujeito “...tem a intenção de consumir, continuar a consumir se já o fez, começar a fazê-lo se ele ainda não o pôde.” Se, por um lado, a expectativa do consumo pode ser interpretada como busca pelo prazer, de outro, pode ser traduzida como possibilidade de crime, trazendo à tona o medo, principalmente quando aspirantes a consumidores moram mal, se alimentam mal e trabalham precariamente, o que reforça a intensa vigilância sobre as estratégias de sobrevivência dos grupos subalternalizados. Sobre a inscrição das camadas populares entre duas faces do Estado, afirma João Ricardo Dornelles (2002, p. 123): Assistente Social graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente compõe a equipe da Gerência Multidisciplinar de Atendimento ao Adolescente do Hospital dos Servidores do Estado. 43 O autor situa o individualismo contemporâneo ao lado do sistema internacional, dos Estados e das mutações societais, enquanto níveis de análise da violência. ∗ Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 95 Assim é que a implantação do chamado ‘Estado mínimo’, no campo econômico e da proteção social, é acompanhada do ‘Estado máximo’ no campo das políticas de segurança, com a retomada do ‘discurso da lei e ordem’, abrindo espaço para o ‘darwinismo social’ como estratégia de controle social, e para as políticas criminais de emergência, com base no eficientismo penal. O interesse pela investigação sobre a relação entre adolescente e consumo, bem como da contribuição dessa dinâmica para o processo de construção da imagem que esse segmento social tem de si, surgiu da experiência profissional em uma entidade filantrópica situada numa comunidade pobre da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Durante o período de atuação profissional na instituição foi possível observar a estreita ligação entre adolescentes da comunidade e o desejo de consumo manifesto em camisas de clubes de futebol e de equipes de basquete estrangeiros, além de tênis e roupas de marcas famosas – originais ou piratas. Da mesma maneira que entre os jovens do “asfalto”, os apelos publicitários parecem exercer um fascínio tal sobre os meninos da comunidade que o porte de tais produtos emerge nos discursos, direta ou indiretamente, como algo de grande importância para o cotidiano daquele grupo social. Caminhos percorridos ao longo da pesquisa Em função de diversos fatores, optou-se por realizar a pesquisa no ambiente escolar de adolescentes da região, tendo sido escolhidos dois estabelecimentos de ensino: um da rede municipal e outro da rede federal de ensino. O primeiro caracterizado por receber majoritariamente alunos residentes em comunidades dos bairros do Grajaú, Andaraí e Vila Izabel, enquanto o segundo pelo atendimento a estudantes também da zona norte, incluindo aí os mesmos bairros e circunvizinhanças, observando-se, no entanto, uma predominância de adolescentes pertencentes às camadas médias. No processo de pesquisa foram aplicados setenta e seis (76) questionários, tendo sido objeto de análise quarenta e nove (49), em função dos critérios estabelecidos (local de moradia e faixa etária), além da fala de oito adolescentes divididos em dois grupos focais. Dessa forma, foram considerados no processo de análise vinte e cinco (25) questionários respondidos por estudantes da escola municipal vinte e quatro (24) do colégio da rede federal de ensino.44. A opção pela abordagem de tal conjunto de estudantes fundamentou-se na possibilidade de contato com adolescentes oriundos de faixas de renda distintas, considerando-se a localização das escolas numa região caracterizada por contrastes sócioeconômicos e culturais. O processo de reflexão sobre elementos simbólicos constituintes do consumo, bem como de sua relação com o plano das interações sócio-culturais dos adolescentes, se inscrevem no âmbito do individualismo contemporâneo, além da supervalorização da mercadoria como instância de mediação das relações sociais. A possibilidade de concretização do consumo, nos marcos da propaganda – necessidades instantâneas e nunca satisfeitas, na visão de Bauman (1999) – parece vincular-se à aquisição de um passaporte para 44 Os estabelecimentos de ensino foram a Escola Municipal Presidente João Goulart e Colégio Pedro II – seções Tijuca e Centro – respectivamente. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 96 a circulação nesse mundo de relações mercantilizadas. A conquista do status de consumidor, dessa forma, apresenta em sua operação elementos e resultados que aproximam e distanciam os adolescentes que participaram da pesquisa. Adolescente e Indústria Cultural Considerando o lugar de destaque ocupado pela questão do significado do consumo no interior da pesquisa, a análise de um entretenimento televisivo apresentou-se como mecanismo relevante, à medida que o mesmo traz em si uma diversidade de elementos simbólicos, como a linguagem oral e corporal, a imagem, a música, entre outros, ao mesmo tempo que possibilita empreender uma reflexão sobre a narrativa a respeito da temática do consumo entre o segmento social adolescente. Num episódio da série Cidade dos Homens exibido em 200145, pela Rede Globo de Televisão, são as condições de moradia, a vinculação escolar, a organização familiar e o grupo social, os elementos apresentados como diferenciais entre os mundos dos personagens centrais: Uólace e João Victor. Entretanto, a narrativa situa a expectativa de consumo como um aspecto que atribui mais que uma proximidade, uma homogeneização dos universos vivenciados pelos adolescentes que protagonizam a estória. Ana Maria Machado (2004) aborda de forma crítica essa opção por uma perspectiva que, ao invés de singularizar as relações e os sujeitos nela envolvidos, imprime uma massificação dos mesmos ao afirmar que: Uma mídia que utilize uma linguagem única para se expressar está exercendo, na prática, uma forma de censura – o que costumo chamar de censura do sim, que não proíbe mas obriga a só aceitar um figurino. Até mesmo porque reduz qualquer intercâmbio cultural à aceitação de padrões meramente técnicos, mesmo quando se esquiva do francamente comercial. (Comunicação oral na IV Cúpula Mundial de Mídia para Criança e Adolescente) Uma das cenas marcantes do episódio é aquela onde tanto o menino na favela, quanto o adolescente de classe média assistem – e são impactados com a mesma intensidade – a uma propaganda de um tênis da moda. O slogan da matéria publicitária é o seguinte: “Naikel Double Air: ou você tem um, ou você não é ninguém!”. À parte o exagero promovido pelo modo caricato como o incentivo ao consumo é apresentado, a cena é perfeitamente plausível na realidade, embora com contornos mais sutis, tendo em vista as exitosas estratégias da propaganda. De hambúrguer a telefone celular, passando por tênis, videogames e roupas de marca, a relação de produtos preferidos por jovens brasileiros é extensa, o que os leva ao topo da lista entre consumidores pelo mundo, à frente de franceses, japoneses, argentinos, australianos, americanos e outros, de acordo com um estudo realizado pela ONU46. Nesse sentido, as “identidades partilhadas” – consumidores, clientes e públicos – observadas por Stuart Hall (2001) encontram ressonância no universo adolescente narrado no episódio. Apesar da distância entre as realidades sociais de Uólace e João Victor, realçadas nas cenas onde suas condições de moradia (a casa na favela e o apartamento da zona sul) e estudo (a escola púbica em greve e o colégio particular) são expostas, ambos terminam por 45 46 O episódio em questão é “Uólace e João Victor”, baseado no livro homônimo de Rosa Amanda Strausz. Parte dos resultados da pesquisa foi publicada na Revista Veja, edição especial, nº 24. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 97 partilhar a identidade de público diante de um aparelho de televisão, de aspirante a consumidor frente ao apelo publicitário, de adolescente do ponto de vista do aparato legal constituído. Assim, o tênis anunciado na TV tem sua dimensão ampliada para além de um simples calçado, convertendo-se num ícone do novo e, mais que isso, numa alavanca de impacto social, proporcionando aos meninos que conseguem adquirí-lo uma espécie de incursão numa nova realidade, cujo passaporte está ligado ao objeto. A construção de uma identidade, portanto, articulada ao ter (o tênis) e não ao ser (um garoto) desenvolve-se numa dinâmica, nos termos de Bauman (1999), que ao debruçar-se sobre a ciranda de desejos nunca satisfeitos na atual lógica da economia – em função da rapidez com que os produtos são produzidos e substituídos – a relaciona a um movimento que confere ao ato de consumir os contornos de uma necessidade fundamental. Tal processo promove uma espécie de esvaziamento crítico, à medida que associa a liberdade estritamente ao fato de se ter alguma coisa. Tal primazia da imagem no foco da cena do anúncio do tênis permite, ainda, uma reflexão sobre uma sociedade de consumo, onde os meios de comunicação ocupam um lugar de grande destaque. De acordo com Sartori (1997), a geração criada diante da televisão tem atrofiada sua capacidade de compreensão da realidade, à medida que o privilégio conferido à imagem destitui a abstração de sua real importância. Sem dúvida, cabe levar em conta tanto o modo caricato adotado pelo produto da indústria cultural47 na abordagem do tema, quanto o tom meio “apocalíptico” dos autores, entretanto, não há como negar o impacto da imagem sobre os adolescentes, os quais exibem no dia-a-dia – guardadas as devidas proporções em função de diferenças e diversidades – uma resultante desse contexto observada no modo de vestir, falar e se divertir, que, salvo exceções, vão sendo substituídos num tempo cada vez menor. Por outro lado, o refazer e as estratégias de sobrevivência, ou as táticas – nos termos de Certeau (1994) – merecem uma atenção cuidadosa, considerando as contradições inerentes ao processo de produção e reprodução dessa imagem. De um lado, a indústria cultural investe num processo de disseminação da imagem ideal, num claro movimento de homogeneização de práticas e de sujeitos. Desse modo, sempre há modelos a serem seguidos, seja do alimento ideal – que tem no fast food seu ícone –, seja do calçado ideal, cujo valor articula-se diretamente à marca do momento. Em tais modelos inscreve-se a promessa oculta de transformar o jovem consumidor em alguém reconhecido e nesse processo, nem mesmo as chamadas “celebridades” são poupadas, pois do mesmo modo que produtos são expostos em prateleiras de shoppings, supermercados e em instigantes “reclames” de TV, suas imagens – incluídas aí, seus hábitos e costumes – são consumidas com a maior brevidade, em tempo de serem substituídas por outras mais “frescas”. No interior dessa lógica, a lista dos “dez mais” de hoje – sejam produtos, sejam pessoas – é substituída por outra amanhã. Tudo se torna perecível numa velocidade praticamente impossível de acompanhar. A estetização da vida cotidiana, dessa forma, contribui com o processo de mercantilização das relações sociais, estabelecendo-se como fator essencial na ciranda do consumo, onde o valor-de-uso é substituído pelo valor estético e 47 Conceito adotado em oposição à idéia de comunicação de massa, a partir da análise de Adorno e Horkheimer apud ECO (1979). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 98 do status a ele associado. Vale lembrar que a reação empreendida por jovens frente a tal dinâmica oscila entre o conformismo e a resistência48. Conformismo manifesto numa aparente rendição passiva aos apelos publicitários, que se concretiza numa incansável busca pelo item da moda – uma roupa, uma diversão, um calçado, um ídolo. Resistência expressa através de grupos que se deslocam na contracorrente do consumo de massa, com estilos49 próprios, através dos que o fazem individualmente, ou, ainda, daqueles que assim reagem por experimentarem um estado tal de exclusão que se situam num não-lugar (exclusão que se estende desde o processo produtivo até o consumo propriamente dito). Conformismo e resistência num processo ambíguo, característico de interações entre o público e o meio, adolescentes e adultos, consumidores e não-consumidores. Tal ambigüidade não constitui um problema, de acordo com Chauí (1993, p. 123), mas “a forma de existência dos objetos da percepção e da cultura, percepção e cultura sendo, elas também, ambíguas, constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas...” Do mesmo modo, Michel De Certeau analisa tal processo de resistência, de antidisciplina, que apresenta como característica um conjunto de táticas afeitas aos grupos submetidos às relações de poder presentes na sociedade. Para Certeau (1994, p. 115), no interior do “monoteísmo aparente a que se poderia comparar o privilégio que garantiram para si mesmos os dispositivos panópticos, sobreviveria um ‘politeísmo’ de práticas disseminadas, dominadas mas não apagadas pela carreira triunfal de uma entre elas.” De acordo com a narrativa adotada no episódio de Cidade dos Homens, entretanto, persiste uma tendência à exclusão de elementos contraditórios, ao situar os dois adolescentes, centrais na trama, num mesmo locus não só de consumo, mas de significação do mesmo, o que implica um movimento legitimador das observações do senso comum sobre as relações ora estabelecidas na sociedade, que as apreendem como imutáveis e homogêneas. Tal perspectiva apresenta um risco à medida que não são expostos os limites da utilização da categoria juventude. Segundo Margullis (1996), há uma verdadeira tentação nas análises afeitas à juventude que empurra as mesmas a uma postura de exclusão das especificidades de classe e, conseqüentemente, para uma percepção de que os modelos dominantes são os legítimos e os únicos, portanto, de todos, sem a possibilidade de alternativas. Ora, circunscrito sob o disfarce de uma não-ideologia, o consumismo capitalista dominante é abordado pela indústria cultural numa perspectiva que, retirando elementos característicos da singularidade, promove uma uniformização que no tocante aos adolescentes, como no caso de Cidade dos Homens, os associa a um grupo único, fechado e mobilizado pelas mesmas buscas – tanto em relação aos produtos de consumo, quanto aos significados a eles associados. O consumo entre os adolescentes pesquisados Durante a pesquisa, quando da análise das respostas ao questionário, bem como das expressões verbalizadas no interior dos grupos focais, algo chamou atenção no interior da dinâmica singularidade/homogeneização: ainda que moda e marca aparentemente não 48 Nos termos de Marilena Chauí (1993) que resgata o lugar da ambigüidade, frente às tentativas do “intelectualismo” de superá-la, mediante a determinação de um fenômeno como dado – ou isto ou aquilo. 49 Helena Abramo aborda a contraposição entre o estilo – e a escolha como sua dimensão constituinte – e a moda na pesquisa realizada a respeito de punks e darks no cenário urbano juvenil. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 99 tivessem mobilizado os adolescentes, quando o assunto era o tênis de marca, quase metade deles pareceu seduzida pelo desejo do consumo. Tal aspecto analisado isoladamente poderia levar à conclusão de que a moda aparentemente não exerce grande influência sobre os adolescentes pesquisados, sejam da escola municipal, sejam do colégio federal. Tal suposição encontra fundamento na representação socialmente construída em torno da adolescência como fase da contestação e da rebeldia e, portanto, distanciada de perspectivas de adequação a normas e padrões. A tabela 1 revela os dados obtidos em relação às perguntas que enfocaram moda e roupa de marca de uma forma direta. Tabela 1 – Importância atribuída à moda e às marcas de roupa e de tênis: Moda Roupa de marca Tênis de marca* Freqüência % Se importam 15 30,61% Não se importam 34 69,39% Preferem 14 28,57% Não vêem diferença 35 71,43% Preferem 22 44,90% Não vêem diferença 26 53,06% * Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta. Ao aproximarmos um pouco mais a lente, no entanto, é possível observar que são os adolescentes da escola da rede municipal de ensino que, em sua maioria, atribuem maior relevância à moda, enquanto que no tocante à roupa e ao tênis de marca, os índices tendem a uma inversão. A tabela 2, exposta a seguir, explicita melhor esse aspecto. Tabela 2 – Importância atribuída à moda, às marcas de roupa e de tênis, segundo a inserção escolar: Moda Sim Roupa de marca Não Sim Tênis de marca* Não Sim Não F % f % f % f % f % f % EMPJG 10 40% 15 60% 06 24% 19 76% 09 36% 16 64% CPII 20,83% 19 05 79,17% 08 33,33% 16 66,67% 13 54,17% 10 41,67% f= freqüência * Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta. Tendo em vista que as lojas que comercializam vestuário, calçados e acessórios jovens, cujas grifes são conhecidas e despertam o desejo de consumo entre os mesmos, acompanham as tendências da moda, pode-se confirmar a ambigüidade inscrita nas respostas, bastando adicionar ao número de respostas favoráveis à marca, aquele favorável à moda para que se obtenha um quadro diferenciado que revela uma tentativa de negação de algo nos Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 100 discursos, mas que, na prática mostra-se de grande importância para os dois grupos analisados. Tais dados podem ser melhor identificados na tabela número 3. Tabela 3 – Importância atribuída à moda, segundo o item de marca considerado: Moda (considerando a roupa Moda (considerando o tênis de de marca) marca)* Sim Não Sim Não f % f % f % f % EMPJG 12 48% 13 52% 13 52% 12 48% CPII 10 41,67% 14 58,33% 15 62,50% 08 33,33 * Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta. F= freqüência Ora, o discurso de negação da possibilidade de adesão à moda como postura determinante entra em contradição com o peso conferido à marca, seja de roupa, seja de tênis, fato este ainda mais marcante entre os alunos da instituição federal de ensino. Diante de tais elementos empíricos, cabem algumas perguntas, entre elas: seria a maior facilidade de contato com os tais itens de marca que favoreceria uma presença maior de respostas que admitem a importância da marca entre os alunos do estabelecimento federal de ensino, considerando haver entre os mesmos um contingente maior de adolescentes pertencentes às camadas média e média alta? ou seria o discurso midiático relativo a tais produtos mais eficaz entre este último grupo? Outro dado relevante trabalhado na pesquisa foi o de que quase 49% dos adolescentes manifestaram o desejo de investir uma quantidade de dinheiro na aquisição de roupas. Entretanto, levando-se em conta a postura vigilante de não incorrer no risco da homogeneização das expectativas, foi possível observar que, embora, a princípio resida em tais discursos uma tendência linear de simples adaptação passiva à moda, tornando os adolescentes iguais em demandas, desejos e sonhos, a significação do enquadramento a uma tendência não é a mesma. De outro modo, constatou-se que entre os alunos do estabelecimento de ensino da rede municipal que se “renderam” à moda, tanto os limites sociais – que se configuram como impeditivos à adesão cega à moda – quanto a tática de mimetismo, ou seja, de confundir-se com uma paisagem hostil a suas características (sócio-econômicas e culturais), aparecem em proporção maior do que a vinculação ou não da moda a um estilo ou mesmo a uma forma de pertencimento ao grupo. Por outro lado, entre os alunos do colégio da rede federal, os limites sociais sequer figuram entre as preocupações, enquanto que o mimetismo ocorre num grau muito inferior. Cabe nesse momento, portanto, um aprofundamento quanto à questão da tática de mimetismo. Os discursos de lei e ordem, bem como os olhares do medo e do preconceito, segundo Vera Malaguti Batista (2002) sempre estão apostos quando da análise e Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 101 enfrentamento de situações protagonizadas pelas camadas populares e, nesse caso, adolescentes e jovens a elas pertencentes não estão imunes. Nesse sentido, foi possível observar, seja no discurso, seja nos silêncios, uma preocupação com a aparência entre aqueles que, pertencendo às camadas menos populares, revela um cuidado especial com o modo através do qual são vistos. O olhar do outro, portanto, constitui um dado relevante para o grupo. Um olhar vigilante e atento ao que não se enquadra aos padrões estéticos, que, por sua vez, detecta elementos sociais, econômicos e culturais avessos, ou melhor, em descompasso com o padrão dominante, aceitável, tolerável. A adesão – ou pelo menos a tentativa de – à moda, nesse sentido, situa-se como tática de mimetização de segmentos que seriam alvos fáceis de tal olhar vigilante e, muitas vezes, preconceituoso. Tal processo explicaria a argumentação de alguns adolescentes, como por exemplo: “Porque você se sente melhor e não diferente”; “Porque aparência conta muito nos tempos atuais”; “Pra não pagar mico de estar com roupas desatualizadas, que não estão na moda”; “Porque todo mundo olha diferente para você e não me sentiria bem toda ‘brega’...”; “Acho. Você é melhor visto pelos outros”; “Me deixa com uma aparência melhor, na rua”; “Porque gosto de estar sempre na moda. Acrescentam boa aparência”. Assim, o consumo de determinados produtos e dos símbolos a ele agregados, permitiriam que tais adolescentes fossem confundidos com a paisagem ambiente, resultando numa possibilidade de redução das pressões exercidas pelos olhares vigilantes, seja da indústria cultural, seja da sociedade como um todo, aí incluídos os seus pares sociais, bem como aqueles pertencentes a outros contextos sócio-econômicos. Tal movimento de antidisciplina protagonizado pelos adolescentes encontra-se situado diante do poder constituído pelas estratégias da indústria cultural, portanto, como uma tática que é “a arte do fraco”, como define Certeau (1994). Sem dúvida, outros elementos se inserem nessa dinâmica, descortinando os limites e fragilidades desse movimento, conforme a análise de Certeau (1994). Ora, a questão da etnia, por exemplo, expõe tais limites de forma contundente em nossa realidade. Um incidente ocorrido num shopping da zona sul do Rio de Janeiro ilustra bem tais fragilidades. Em fevereiro de 2004, um jovem negro acompanhado de mais dois rapazes brancos, foi expulso do shopping por um suposto segurança. Apesar de estar acompanhado dos demais jovens e de estar vestido “adequadamente” ao ambiente, o rapaz foi abordado e retirado do local, sem que maiores explicações fossem dadas. De acordo com matéria assinada por Rubem Berta e publicada no jornal O Globo (2004), o homem que suspeitou do jovem seria um policial militar. O fato de o rapaz ter uma relação de proximidade com a família de Caetano Veloso contribuiu para que o caso tivesse uma cobertura de mídia intensa, levando o incidente a diversos jornais impressos, além da mídia eletrônica. Entretanto, é sabido que o cotidiano de nossas cidades está repleto de situações onde preconceitos e estigmatizações são dirigidos a adolescentes e jovens das camadas populares, os quais, a partir de táticas de enfrentamento (articuladas ou não) dessa realidade prosseguem na busca de um viver para além do peso dos olhares do medo, na busca por uma inserção social que, passando pelo consumo, reserva-lhes uma porta estreita. No interior de uma sociedade desigual, onde o antagonismo de classes vem sendo disfarçado pela ideologia do ter, que faz proliferar o mercado dos empréstimos (fáceis de contrair e de juros difíceis de engolir) e do vestuário a ser pago em suaves e esticadas prestações – ultrapassando o prazo de validade da moda –, investigar o reflexo da coisificação das relações entre o segmento juvenil constitui tarefa relevante no sentido de buscar situar seus espaços de socialização e modelos de participação social na atualidade. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 102 Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BERTA, Ruben. Homem que expulsou filho de Caetano é PM. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2004, p.17. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. DORNELLES, João Ricardo. Ofensiva neoliberal, globalização da violência e controle social. Discursos Sediciosos, n. 12, p. 119-137, 2º sem. 2002. DUTRA, M e MOREIRA, P. R. Filho de criação de Caetano é ameaçado em shopping. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16 fev. 2004, p.13. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MACHADO, Ana Maria. Muitas vozes e todos os ecos no jardim – Identidade e multiculturalismo. Comunicação oral na IV Cúpula Mundial de Mídia para crianças e adolescentes. Abril de 2004, Rio de Janeiro, Brasil. 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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 103 Parceiros no olhar sobre a memória do Exército Brasileiro Rogério Ribeiro Fernandes* José Francisco Melo Laurindo** ___________________________________________________________________________Resumo O presente artigo resulta de um trabalho de parceria realizado entre professor e ex-aluno do curso de Graduação em História da Fundação Educacional e Cultural São José. O trabalho em si começou no campo ou, antes mesmo, na preparação para se ir ao campo – no caso, o Forte de Copacabana que fica assentado num promontório ao final da praia de mesmo nome, na cidade do Rio de Janeiro. A história foi longa: professor e ex-aluno se conheceram na lida acadêmica e, desde então, vem se desenvolvendo entre eles uma afinidade intelectual. José Francisco concluiu seu curso de Graduação com a monografia intitulada “Memória Institucional do Exército Brasileiro”. Contou com a ajuda das alunas Bárbara Gomes e Bernadete Ribeiro, e também com a orientação do professor Rogério para refletir sobre como o Exército legitima sua memória institucional a partir de sua inserção em momentos marcantes da História do Brasil, em particular a participação de nossas tropas na 2ª Guerra Mundial.Como o resultado final dessa reflexão foi bastante satisfatório, resolveu-se estendê-lo para um trabalho de campo no Museu Histórico do Exército, atualmente alojado no Forte de Copacabana. O texto que se segue é a conseqüência imediata de tudo isso, reúne e sintetiza um conhecimento construído a partir da associação entre observação direta e reflexão com base bibliográfica. Tudo isso feito a quatro mãos. Palavras-chave: História do Brasil. Exército Brasileiro. Memória Nacional. ________________________________________________________________________________________ Janeiro de 2008 era para ter sido um mês de férias, mas não foi totalmente. Depois de um ano inteiro dedicado ao trabalho acadêmico que resultou, entre outras coisas, na realização e defesa da monografia História Institucional do Exército Brasileiro, ficou a sensação de que a reflexão desenvolvida naquele trabalho de conclusão de curso merecia ter continuidade. Dentre os seus autores – Bárbara Gomes, Bernadete Ribeiro e José Francisco – com certeza o rapaz era o mais afinado com o tema. Zé Francisco nunca escondera de ninguém sua paixão pelo Exército. Ao longo dos três anos em que cursou Graduação em História na Fundação São José, ele deu mostras sinceras de seu caso de amor, sem afetações. Vez ou outra usava camisas de campanha, quepes ou buttons com motivos militares; numa ocasião, vestiu-se dos pés à cabeça como expedicionário para conduzir um seminário sobre Segunda Guerra Mundial; mesmo sendo tímido, debatia animadamente sobre história militar com seus colegas e professores. Mas foi num trabalho de campo que realizamos em Tiradentes e São João Del Rei que a atitude de Zé Francisco me chamou atenção: no centro de São João, ele descobriu um museu dedicado à FEB (Força Expedicionária Brasileira) que não estava em nosso roteiro original de visitação; ficou empolgado como criança diante de seu brinquedo preferido e só sossegou quando teve a oportunidade de passar uns poucos 20 minutos no espaço interno do museu; saiu de lá abarrotado de folders e souvenirs que lhe custaram o dinheiro do lanche que ainda iria fazer na viagem. Mas ficou feliz, faminto e feliz! * Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense; Jornalista. Graduado em História pelas Faculdades Integradas Padre Humberto da Fundação Educacional e Cultural São José. ** Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 104 Na academia, existe o consenso de que a paixão não é boa conselheira para a ciência. Uma é movida pelo coração, outra deve se restringir à frieza da razão. Mas será que é bem assim? Eu mesmo, hoje professor, fui um aluno apaixonado pelos objetos de minha reflexão. Até onde sei, isso não comprometeu minha visão crítica. Quando presenciei o Zé Francisco diante do objeto de sua paixão na distante São João Del Rei, interroguei a mim mesmo sobre onde aquilo iria acabar. Um ano depois, tive a resposta: o Zé juntou um grupo e resolveu refletir sobre sua paixão na forma de uma monografia de conclusão de curso. Convidou-me para ser orientador da empreitada. E o resultado final de tudo isso foi a elaboração de um texto no mínimo coerente, síntese dos esforços do coração e também da razão. Quanto ao mês de janeiro que era para ter sido de descanso e não foi, três de seus dias seguiram a lógica desta síntese de coração e razão. Convidei o Zé Francisco para irmos juntos ao Rio de Janeiro, onde iríamos percorrer alguns dos museus e centros culturais vinculados ao Exército Brasileiro. Nosso objetivo seria conhecer de perto esses espaços de divulgação de uma memória institucionalizada. Faríamos um trabalho de campo, com as devidas leituras prévias acompanhadas de uma observação direta. Queríamos dar continuidade à reflexão iniciada com a monografia História Institucional do Exército Brasileiro. Diante das inúmeras opções que a cidade do Rio de Janeiro nos oferecia como espaços culturais do Exército, concentramo-nos no Forte de Copacabana e, mais especificamente, no Museu Histórico do Exército cujo acervo se encontra em exposição nas dependências do Forte. Como o tempo nos permitiu ir um pouco além, não descartamos uma visita rápida ao Panteão de Caxias e também à Casa do Marechal Deodoro, mas ambos se encontravam fechados. Estivemos sim no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, onde Zé Francisco pôde fotografar as lápides onde se encontram os restos mortais de três bonjesuenses, conterrâneos seus que tombaram na Campanha da Itália. Zé ainda conseguiu dar uma esticada a Niterói para conhecer a Fortaleza de Santa Cruz. Mas, com certeza, o foco de nossas reflexões recaiu sobre o Museu Histórico do Exército. Como se pode construir uma memória institucional Ao contrário do que pensamos, a memória não é simplesmente um objeto pronto e acabado, estacionado no tempo. A memória, enquanto discurso coletivamente reconhecido, resulta de um processo permanente de construção e reconstrução que varia de acordo com as necessidades e os interesses de certos grupos ou de determinada sociedade. É necessário observar que a construção da memória acontece através da escolha e também do descarte de determinados fatos, isto é, ela depende de mecanismos de seleção e descarte. [...] Se a memória costuma ser automaticamente correlacionada a mecanismos de retenção, depósito e armazenamento é preciso apontá-la também como dependente de mecanismos de seleção e descarte. Ela pode, assim, ser vista como um sistema de esquecimento programado [...] .(MENESES, 1992, p.6) Diante desse conflito entre o que deve ser lembrado ou esquecido, surge a amnésia social que pode ser definida como: “a memória expulsa da mente pela dinâmica social e econômica da sociedade e vítima de um processo de reificação” (MENESES, 1992, p. 17). A amnésia, portanto, deve ser considerada tanto como um produto social, quanto oficial. Com efeito, se determinado fato ou acontecimento ameaça a unidade do grupo, seu Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 105 desenvolvimento ou a sua identidade, ele deve ser “esquecido”. Esse esquecimento acontece a partir da seleção dos fatos mais relevantes para o próprio grupo. A partir das experiências e das vivências de indivíduos de um determinado grupo ou de uma determinada comunidade surge a memória coletiva e, com base nessa memória coletiva, é formada a memória institucional ou nacional. Ou seja, de certa forma a memória nacional resulta da memória coletiva. É necessário ressaltar que, através da memória nacional, os fatos e acontecimentos são direcionados através de um processo de seleção em que prevalecem os interesses de certos grupos. Além disso, vale dizer que a memória é “construída” ou “resgatada” de acordo com as necessidades do presente. A tradição também se destaca como importante mecanismo para a produção de memórias. É através dela que certas memórias são relembradas e transmitidas através do tempo, fortalecendo assim a identidade de um determinado grupo, de uma determinada sociedade ou até mesmo de uma nação. A memória do Exército e a História do Brasil Atualmente, o Exército Brasileiro pode ser considerado como um dos poucos exemplos de instituição que mantém suas características tradicionais. É através da tradição que o Exército vem conservando e transmitindo certos valores que estão impregnados em sua própria razão de ser, como patriotismo, hierarquia, disciplina e voluntariado. O Exército vem tentando resgatar esses valores e transformá-los em valores sociais, fazendo-os ultrapassar os limites de seu campo institucional e avançar sobre a sociedade como um todo. Numa tentativa de alcançar esse objetivo, procura construir uma memória através de sua ótica, vinculando a sua própria história aos grandes acontecimentos da história nacional. Por meio de uma memória institucional ordenadamente construída e transmitida de maneira tradicional, o Exército pretende ressaltar sua presença em alguns dos principais acontecimentos da história nacional. Isso é perceptível em pelo menos quatro momentos que são tradicionalmente considerados como essenciais dentro de um processo de construção de nossa nacionalidade: a Batalha dos Guararapes (1648); a Guerra do Paraguai (1865-1870); a Proclamação da República (1889); e a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Segundo o próprio Exército, a sua gênese estaria totalmente ligada à Batalha dos Guararapes. De acordo com uma visão tradicional da História do Brasil, seria nessa batalha, ocorrida em Pernambuco por volta de 1648, que surgiriam as primeiras manifestações nativistas. Seria em Guararapes que os primeiros habitantes da Colônia teriam se unido contra um inimigo comum, no caso os holandeses. Mais ainda: teriam obtido uma vitória significativa contra invasores estrangeiros de nosso território. Tal união realizada em Guararapes seria a síntese daquilo que se convencionou chamar de “povo brasileiro’’, ou simplesmente o resultado da miscigenação das três ‘raças’ formadoras da nação: o índio, o branco e o negro. O mito das três ‘raças’ é enfatizado na figura de três heróis militares da Batalha de Guararapes: o (índio) Antônio Felipe Camarão, o (branco) João Fernandes Vieira e o (negro) Henrique Dias. Para o Exército, a gênese de sua existência se daria a partir desta união em defesa de uma mesma causa: simbolicamente, a instituição seria o resultado da própria síntese formadora do povo brasileiro. A página na internet criada pelo Exército, em 1998, para as comemorações dos 350 anos da Batalha apresenta Guararapes como “Berço da Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 106 Nacionalidade e do Exército Brasileiro” e seus heróis como representantes das “três raças formadoras da essência do povo brasileiro” E também: “Prodígio de criatividade, ousadia e bravura, a 1ª Batalha dos Guararapes é mais do que um memorável feito militar de nossos antepassados. Neste duelo, em que o Davi Caboclo abateu o Golias estrangeiro, assentam-se as raízes da nacionalidade e do Exército brasileiros, que caminham juntos há 350 anos.” (CASTRO, 2002, p. 72) Em 1822, 174 anos após a Batalha de Guararapes, o Brasil se tornaria um país independente. Em 1824, dois anos após a emancipação política, o Exército Brasileiro foi institucionalizado. A partir daí, ao longo da história do Império, o Exército iria participar de inúmeros conflitos internos e externos, como a Confederação do Equador, a Guerra da Cisplatina, a Farroupilha, a Revolução Praieira e especialmente a Guerra do Paraguai. Dentre esses conflitos, o ocorrido no Paraguai de 1865 a 1870 foi sem dúvida o maior de todos, o mais brutal! A Guerra do Paraguai, que se estendeu por mais de cinco anos, provocou grandes perdas humanas e materiais para ambos os lados. Mesmo assim, o Exército Brasileiro sagrou-se vitorioso; em contrapartida, o Exército Paraguaio foi praticamente dizimado, e a população de seu país reduzida a 50% do que era antes do conflito. Ou seja, do ponto de vista militar, a vitória do Brasil foi inquestionável. Mas a Guerra do Paraguai representou algo mais para o Exército Brasileiro: a experiência de nossos militares no conflito chegou a ter um caráter demiúrgico, inaugurando uma nova etapa de nossa história militar e alterando sensivelmente a visão que a sociedade brasileira tinha das instituições militares, em particular do Exército. O conflito forneceu uma base tradicional que, ainda hoje, fortalece a memória institucional do Exército Brasileiro. Não por acaso, a experiência da Guerra do Paraguai serviu de ponto de partida para uma nova etapa na produção de memórias sobre a instituição militar. A partir de diversas situações dramáticas de batalha que ocorreram no Paraguai, emergiram histórias de heróis que, atualmente, compõem a galeria de patronos das diversas armas do Exército, como aponta Celso Castro(2004, p.30): O processo de escolha de (...) patronos – a “corte de heróis” de Caxias – estendeu-se pelas armas do Exército. As principais receberam como patronos personagens que haviam se destacado na Guerra do Paraguai, principalmente em Tuiuti, hoje referida como batalha dos patronos: Sampaio (infantaria), Osório (cavalaria), Emílio Luiz Mallet (artilharia). Esse processo continuou através dos anos. Após a Proclamação da República, em 1889, fortaleceram-se os mecanismos simbólicos e tradicionais da memória institucional do Exército. Esses mecanismos – a maioria deles produzidos ainda a partir das experiências da Guerra do Paraguai – foram ganhando cada vez mais corpo e espaço. O próprio regime republicano, recém-instaurado no Brasil, tinha sua gênese ligada à atuação de militares do Exército Brasileiro. Muitos deles, influenciados pelo Positivismo, atribuíam a si mesmos e à própria instituição uma missão quase messiânica, a de conduzir os desígnios da República. A partir de 1890, o Exército começou a apoiar escritores militares que produziram inúmeras obras que, de certa forma, resgataram e também formaram parte da memória atual do Exército: ´´eles produziram um fluxo constante de histórias de campanhas, freqüentemente Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 107 bem-documentadas, ainda que muitas vezes abordadas de forma estreita’’(CASTRO, 2004, p.15). Essa história militar do final do século XIX foi sendo registrada, principalmente, através de memórias pessoais de militares que participaram de determinados eventos, como guerras ou campanhas. Muitas dessas obras compilavam experiências vividas pelos próprios autores ou pelos regimentos dos quais fizeram parte. O texto biográfico se destacou, então, como um dos vários recursos utilizados para ressaltar aspectos patrióticos, além de registrar eventos ou acontecimentos vividos por diferentes personagens. Vale lembrar que alguns eventos, mesmo vividos individualmente, podem expressar uma experiência coletiva. Em 1888, havia sido fundada, por Franklin Américo de Meneses Dória, o Barão de Loreto, a Biblioteca do Exército. Anos mais tarde, em 26 de junho de 1937, ela foi reorganizada por decreto pelo General de Divisão, Valentin Benício da Silva. A partir dessa reorganização, o Exército passou a ter também a sua própria editora, aquela que atualmente é denominada Biblioteca do Exército Editora ou Bibliex. Dessa forma, o Exército passou a publicar diretamente os assuntos de seu interesse ou simpatia. Mesmo tendo ativa participação política em vários momentos cruciais de nossa história, durante os séculos XIX e XX – como a queda do Império, os movimentos tenentistas e a Revolução de 30 – foi a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que inspirou a produção de nova safra de memórias, e de certa forma, fortaleceu o vínculo do Exército com a sociedade. O Estado Novo (1937-1945), também pode ser considerado como um dos maiores responsáveis pela disseminação de memórias e tradições, hoje presentes em várias manifestações militares. Em 1939, o mundo foi marcado pela eclosão de um grande conflito mundial, que se estendeu por seis anos. Esse conflito foi a Segunda Guerra Mundial e gerou inúmeras transformações, tanto geográficas como ideológicas. Transformações essas que atingiram até o Exército Brasileiro. Inicialmente o Brasil se manteve neutro diante desse conflito, mas o afundamento de navios brasileiros, ocorridos em 1942, colocou nosso país em estado de beligerância contra os países do Eixo (Alemanha, Itália, e Japão). Após pressões internas e externas, o Presidente Getúlio Vargas, através de um acordo com o líder norte-americano, Franklin Roosevelt, decidiu enviar tropas brasileiras para a Europa. Apesar das inúmeras dificuldades de recrutamento, devido às precárias condições sanitárias da população brasileira, foi formada, em agosto de 1943, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que participaria do conflito somente em julho de 1944. Como mostra FERRAZ (2005, p. 51): “o primeiro escalão (da FEB) partiu do porto do Rio de Janeiro em 2 de julho de 1944, no navio USS General Mann. Poucos sabiam que o escalão iria para Itália”. No total, foram enviados para a Itália cinco escalões de militares brasileiros, sendo o primeiro composto por, aproximadamente, cinco mil homens. Com os outros quatro, o Brasil completaria a Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE) que seria incorporada ao 4º Corpo do 5º Exército Norte-Americano, comandado pelo General Mark Clark. Muito dos combatentes que foram para a Europa faziam parte de uma miscigenação social, eram estudantes universitários, lavradores, operários. Apesar de suas diferenças étnicas, profissionais e de formação escolar, todos pareciam se sentir unidos por uma mesma causa: a “democracia mundial”. A participação do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial, além de ter sido uma nova etapa na história da instituição, gerou também uma vasta produção de memórias sobre o próprio Exército. A atuação dos militares brasileiros no conflito trouxe grandes Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 108 mudanças para a instituição e elevou o seu valor a ponto de gerar diferenças entre o Exército da FEB e o Exército de Caxias , como analisa FERRAZ (2005, p. 52): [...] de um lado o ‘’Exército de Caxias’’, aquele que ficara no país, caracterizado por seus quartéis pouco higiênicos, pelas exteriorizações excessivas de disciplina, com pouca serventia para a guerra real, pela maior importância que conferia a perdas materiais do que às baixas de combate, do outro, o ‘’Exército da FEB’’, baseado no modelo militar norteamericano, mais democrático, no qual as relações humanas entre os oficiais e praças visavam à eficiência em combate, e não à exteriorização de uma superioridade iminente do oficialato. Além disso, a doutrina militar brasileira, que era baseada no modelo francês, passou a ser inspirada no modelo norte-americano, que, de certa forma, se adequava às necessidades dos combates mais modernos. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiram várias memórias sobre a participação de brasileiros no conflito. Foram produzidas, em sua grande maioria, por ex-combatentes. Devemos observar que a FEB era, na sua quase totalidade, composta por gente simples, ou seja, pessoas com pouca escolaridade ou nenhuma. Diversos expedicionários vinham do campo e das mais remotas regiões do país. Muitos deles não tinham uma compreensão exata da dimensão do conflito de que participavam. Portanto, a maioria dessas memórias foram escritas por oficiais e alguns “intelectuais”, que analisaram o contexto em que viviam através de sua ótica particular. De certa forma, essas novas memórias serviram para reforçar a imagem do Exército Brasileiro perante os olhos da sociedade, como instituição presente nos momentos decisivos da história nacional. O Museu Histórico do Exército sob um olhar crítico Através dessa pequena análise histórica, percebemos que o Exército Brasileiro tenta construir sua própria história apropriando-se de eventos da História Nacional. O Exército pretende ser considerado como um dos poucos exemplos de instituição que, no Brasil, consegue manter-se íntegra e até mesmo se fortalecer com o passar do tempo. Mesmo sofrendo inúmeras transformações no decorrer de sua existência, o Exército se esforça no sentido de exercer uma espécie de monopólio sobre a guarda das virtudes da nação, através de uma imagem institucional construída histórica e socialmente. No entanto, para manter essa imagem institucional, o Exército tem que se subordinar à dinâmica social. Através de museus e espaços culturais, o Exército Brasileiro tenta inserir na sociedade seus próprios valores e torná-los universais. Para atingir esse objetivo, a instituição procura se imiscuir no processo de formação de nossa própria identidade enquanto brasileiros, ressaltando sua participação em momentos-chave da História Tradicional do Brasil. A estratégia usada é então recortar e reforçar momentos em que o Exército teve uma participação mais efetiva em acontecimentos de relevância social. Procura-se destacar a idéia de que os militares tiveram um papel fundamental na construção da nacionalidade e também da sociedade brasileira como um todo. Ao observarmos alguns museus e centros culturais, percebemos como o Exército organiza, em determinados espaços de visibilidade pública, uma memória ordenada e Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 109 tradicionalmente construída. Além disso, essa memória é apresentada ao público de uma forma acessível, compreensível e totalmente didática, por meio de imagens, placas explicativas e objetos estrategicamente posicionados. No Brasil, existem atualmente inúmeros museus e centros culturais mantidos pelo próprio Exército. Só na cidade do Rio de Janeiro, ex-capital do país e palco preferencial de inúmeros acontecimentos que envolveram a instituição militar, podem ser citados os seguintes: Museu Histórico do Exército, Museu Conde de Linhares, Panteão de Caxias, Casa de Deodoro, Forte de Copacabana, Forte do Leme, Fortaleza de São João. Um caso à parte é o do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, localizado no Aterro do Flamengo pois a gestão e a guarda de seu patrimônio, que inclui os restos mortais dos pracinhas que haviam sido originalmente sepultados em território italiano, no Cemitério de Pistóia, são compartilhados pelas três Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica. Dentre esses espaços de solidificação de uma memória institucional, o Museu Histórico do Exército merece uma atenção especial, devido à maneira como se apresenta à sociedade. Atualmente, o acervo do museu se encontra localizado no Forte de Copacabana, que fica no final da praia de mesmo nome. Desde 1987, quando foi desativado operacionalmente, o Forte funciona como espaço cultural. Suas dependências acham-se abertas à visitação pública e elas próprias chamam atenção por terem servido de palco para acontecimentos marcantes da História do Brasil, como a Revolta de 1922 e o episódio dos 18 do Forte, ambos identificados com a gênese do movimento tenentista. Atualmente, o Forte de Copacabana abriga um acervo de mais de dez mil peças, entre armamentos, projéteis, mecanismos hidráulicos, uniformes, bandeiras e outros objetos característicos da vida militar. Desde 2000, conta com um salão de exposições temporárias e espaços alternativos como casa de chá e loja de souvenirs. Um de seus espaços mais requisitados pelos visitantes é composto por dois amplos salões e pequenas salas contíguas que abrigam o acervo específico do Museu Histórico do Exército. A exposição permanente do Museu do Exército foi inaugurada em 1996. Atualmente, ela divide em dois módulos cronológicos e temáticos a História do Exército Brasileiro. Existe na organização do acervo uma clara preocupação de ressaltar a participação de militares em eventos tradicionais da História do Brasil. O primeiro módulo, concluído em 1996, focaliza a História do Exército no longo período que vai do início da colonização portuguesa em nosso território até a Proclamação da República (1500-1889). Os stands da exposição parecem verdadeiros dioramas em tamanho natural; cuidadosamente montados como se fossem cenários, eles misturam objetos de época com bonecos de cera e placas de identificação. Cada uma das vitrines temáticas representa a atuação de homens de armas em momentos significativos de nossa história, todos eles selecionados de acordo com critérios que ainda hoje inspiram os livros didáticos mais tradicionais. Os bandeirantes monopolizam o stand da Expansão Territorial; a maquete de uma fortaleza se destaca na vitrine de Defesa e Integração Territorial; o stand das Primeiras Manifestações Nativistas merece um tratamento especial no espaço da exposição, com os bonecos de cera de Felipe Camarão, João Fernandes Vieira e Henrique Dias encenando o mito das três raças formadoras do povo brasileiro. Outro espaço cênico que se destaca é o da Guerra do Paraguai, em que aparecem a maquete da Batalha de Tuiuti e as faces pintadas dos patronos das três armas do Exército (Infantaria, Artilharia e Cavalaria); bem ao lado, uma vitrine expõe objetos pessoais de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, este sim reconhecido como patrono do Exército Brasileiro como um todo; mais adiante, o mesmo Caxias é relembrado através de um quadro que mostra a fazenda em que viveu seus últimos Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 110 dias com a família. Outros militares que merecem destaque na exposição são os marechais Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, todos protagonistas dos stands dedicados à Crise do Império e ao Advento da República. O segundo módulo, inaugurado dois anos mais tarde, em 1998, segue o mesmo padrão do primeiro. Os espaços cênicos se sucedem em ordem cronológica e temática, do início do período republicano até meados do século XX. Ali também são ressaltadas as atuações dos militares em eventos de destaque da História do Brasil, como são os casos da Proclamação da República, da Campanha de Canudos, das Revoltas Tenentistas. O módulo termina com o stand da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, este acompanhado de uma sala especial onde se encontram expostos espólios de guerra e objetos diversos de militares que estiveram diretamente envolvidos com a Força Expedicionária Brasileira. Curiosamente, outros momentos da História do Brasil Republicano em que os militares se fizeram presentes são deixados de lado. Não há stands dedicados ao Estado Novo (1937-1945) e muito menos à Ditadura Militar (1964-1984). Nesses casos, vale lembrar aquilo que já se sabe sobre o processo de construção de uma memória institucional: ela se faz a partir de escolhas e descartes. A omissão desses momentos polêmicos de nossa história pode então confirmar o que ressaltamos desde o início deste artigo: o Exército Brasileiro parece querer solidificar uma memória positiva de si próprio a partir de sua atuação em eventos que contribuem para a construção de nossa sociedade. Não seria prudente misturá-los com outros eventos, ainda recentes dentro do tempo histórico, que remetem a atitudes de desrespeito aos direitos civis e ao Estado fundado em bases democráticas que, hoje em dia, vigora no país. Como já foi dito, o Exército Brasileiro, para garantir sua legitimidade e reforçar sua presença junto à sociedade, procura resgatar certos valores e atrelá-los ao próprio exercício da cidadania. Nesse sentido, a instituição militar se vale de mecanismos simbólicos que valorizam e até mesmo glorificam a sua relação, a princípio indissolúvel, com a sociedade brasileira. Concluímos, portanto, que mesmo numa sociedade em constante mutação como é o caso da nossa, o Exército se esforça para manter viva a chama de sua própria identidade, reafirmando a cada dia sua presença no fazer social. Mesmo adequando-se a novas dinâmicas que exigem outras escolhas, outros descartes, a memória institucional do Exército Brasileiro procura seguir com rigor as suas bases históricas mais tradicionais. Referências CASTRO, Celso. A invenção do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (org.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004. CRUZ NETO, Otávio. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. FERRAZ, Francisco C. Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. MENESES, Ulpiano Bezerra. A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: 1992. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 111 c ropaganda Nazista: Análise de discurso de cartaz do Projeto Aktion T4 Marcos José Vieira Curvello* ____________________________________________________________________Resumo O presente artigo tem por objetivo desenvolver a análise criteriosa do discurso contido em uma peça de propaganda do projeto Nazista Aktion T4, mostrando como valores e idéias subentendidas alcançam o público alvo sem que seja necessário explicitá-las; e como o “não dito” pode ter grande importância na construção e respaldo do discurso presente numa peça publicitária. Palavras-chave: Propaganda, Política, Análise de discurso, Nazismo, Adolf Hitler. ___________________________________________________________________________ I Introdução O conflito que mais fez vítimas em toda a história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial, foi marcado pelo totalitarismo e intolerância racial dos alemães. A busca por seu próprio übermensch50 elevou as questões raciais européias a um novo patamar. Dentre tantos outros fins, a propaganda nazista trabalhou arduamente em prol da suposta purificação racial, gerando cartazes anti-semitas, agressivos a outras minorias e condenando os deficientes físicos e mentais, mesmo germânicos. Um destes projetos, o Aktion T4, foco deste estudo, produziu um cartaz que, através de um apelo monetário dirigido a cada um dos indivíduos da nação, pretende justificar todo um morticínio. Para tanto, serão usadas as fundamentações lançadas por Milton José Pinto em seu sucesso de vendas Comunicação e Discurso, da Hackers Editores, e a pesquisa desenvolvida pela jornalista Paula Diehl, em seu livro Propaganda e Persuasão na Alemanha Nazista, além de outros volumes relacionados à propaganda, política e história. Apesar de abordar e delinear de forma sucinta todo um período histórico, não é a intenção do artigo se perder em debates sobre a Segunda Guerra Mundial per se ou promover quaisquer juízos de valor a respeito da política totalitária desenvolvida na Alemanha naqueles anos. As informações sobre a criação do Partido Nazista e sobre a política e pensamentos de seu líder, Adolf Hitler, visam unicamente uma contextualização espaço-temporal do objeto a ser analisado e não configuram, de qualquer maneira, apologia ou censura, procurando ater-se unicamente ao caráter científico da obra. II Surgimento e ascensão do Partido Nazista O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) surgiu em um conturbado momento da história daquela nação. A derrota germânica na 1ª Guerra Mundial * Marcos José Vieira Curvello é aluno do curso de Comunicação Social – Jornalismo nas Faculdades Integradas Padre Humberto. 50 Homo superior, super-humano. Conceito filosófico formulado por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 a 1900), em seu livro Assim Falou Zaratustra (publicado originalmente entre 1883 e 1885), que foi erroneamente associado à causa racial nazista. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 112 inaugurou um período de grande instabilidade política que culminou na abdicação do Kaiser Guilherme II. O estabelecimento da República de Weimar colocou a social-democracia em conflito com os socialistas da Liga Spartakus, intensificando a insegurança e as lutas internas no país. Não bastasse tamanha desordem, a Alemanha ainda se viu coagida pela comunidade internacional a aceitar o Tratado de Versalhes. As mortes de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo selaram a vitória de Weimar sobre a revolução, porém, não puseram fim a todos os seus problemas. Segundo a jornalista Diehl (1996, p.27), o Tratado ainda teria conseqüências muito maiores. Carregado de culpa e vergonha, ele impunha aos alemães uma humilhação constante, ainda mais agravada pelo tratamento dado pela imprensa dos países vitoriosos. O Tratado obrigava os alemães a se declararem os “causadores da guerra”, os “agressores”; esse parágrafo do artigo 231 era chamado de “a Cláusula de Culpa da Guerra”. Isso só contribuiu para aumentar a força das tendências direitistas e anti-semitas, que viram no Tratado de Versalhes um avanço franco-judaico sobre a Alemanha. Em meio a este caldeirão borbulhante de ufanismo e xenofobia, o ferreiro Anton Drexler e o jornalista Karl Harrer fundam, a 5 de janeiro de 1919, na cidade de Munique, o Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei ou DAP), mais um “‘...estilhaço da direita’, seguindo todos os pré-requisitos da direita fragmentada alemã. Como preceitos básicos de seus ideais estavam o anti-semitismo, o nacionalismo exacerbado e o anticomunismo ferrenho” (Ibdem, p. 41). Adolf Hitler não participou da fundação do DAP. Seu ingresso se deu apenas oito meses mais tarde, em 12 de setembro de 1919. Enviado pelo exército, sua função era espionar as atividades do Partido devido às suspeitas de cumplicidade de seus membros com comunistas. Contudo, o então Cabo, acabaria seduzido pela atividade política. Ascendendo na hierarquia do DAP, Hitler tornou-se o responsável por toda a sua propaganda. Sob seu comando, o Partido dos Trabalhadores Alemães passou a realizar comícios periodicamente, abordando assuntos de grande apelo junto ao público alquebrado, como “a ‘humilhação do pós-guerra’, o anti-semitismo e o nacionalismo” (Ibdem, p. 42). No mês de outubro, “conseguiu atrair mais cem pessoas ao comício de Hofbräuhaus, duzentas em novembro, quase duas mil em 24 de fevereiro de 1920, quando ilustrou os 25 pontos do programa do partido” (FEST; 2004, p. 35). Em abril de 1920, Adolf Hitler deixou o exército e o Partido recebeu o nome pelo qual entraria para a história: Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei ou NSDAP). Após firmar contato com outros movimentos nacionalistas em Berlim, Hitler retornou a Munique e modificou o estatuto do NSDAP centralizando todos os poderes nas mãos do presidente do Partido, cargo que ele próprio passou a ocupar a partir de então. Este primeiro passo abriu caminho para o Putsch da Cervejaria51, golpe que, apesar de fracassado, serviu de vitrine ao ideário político do Partido Nazista. Condenado a cinco anos de prisão, Hitler cumpriu apenas os primeiros oito meses, tendo recebido liberdade condicional já em dezembro de 1924. Novamente em liberdade, reorganiza o combalido 51 Tentativa de aplicar um golpe de Estado engendrada por Adolf Hitler e seus comparsas a 8 de novembro de 1923. Durante os oito meses em que esteve preso iniciou a escrita de seu manual político, o livro Minha Luta (Mein Kampf). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 113 Partido e, nos anos seguintes, se utiliza habilmente da crise econômica gerada pela quebra da bolsa de Nova Iorque para ganhar espaço entre os eleitores. O fechamento do Reichstag52 por parte de então chanceler53 Heinrich Brüning acaba na antecipação das eleições e, mesmo com campanhas marcadas pelo violento embate entre esquerda e direita, nazistas e comunistas aumentam consideravelmente o número de assentos no novo Parlamento, eleito em 1930. Este seria o primeiro degrau da ascensão nazista. Os meses seguintes viram uma acirrada competição eleitoral entre Adolf Hitler e Hindenburg pelo cargo de chanceler do Reich54, porém, em 30 de janeiro de 1933, na confluência de interesses de vários membros poderosos do quadro político alemão, dentre os quais o próprio oponente, Hitler assumiu o tão cobiçado cargo. Logo, o pluripartidarismo encontrou seu fim. As liberdades individuais e o exercício da democracia se viram ameaçados por uma série de decisões arbitrárias. O Parlamento foi novamente eliminado e Hitler concentrou o poder legislativo em suas mãos. As perseguições a alvos políticos garantiram que apenas indivíduos simpáticos às idéias nazistas permanecessem nas estruturas do poder. Iniciou-se assim o período de governança de Adolf Hitler, que teria fim apenas em 30 de abril de 1945, quando o Führer55, na iminência da derrota na Segunda Guerra Mundial, cercado em seu bunker56 em Berlim por soldados russos, tira a própria vida. III Propaganda Uma atividade de origem irrastrável, a propaganda ganhou novas proporções na era pós-industrial. O advento das massas e o aprimoramento dos meios de comunicação possibilitaram às idéias e ideais veiculados um alcance nunca dantes concebido. A propaganda configurou-se como grande impulsionadora da atividade comercial, além de potencial transmissora de valores, guardiã de velhos juízos e construtora de celebridades. Sampaio (2003, p. 26) define propaganda como “a manipulação planejada da comunicação visando, pela persuasão, promover comportamentos em benefício do anunciante que a utiliza”. Embora seu livro trate principalmente da chamada “propaganda comercial”, o princípio pode ser aplicado universalmente à atividade propagandista, não importando se o “anunciante” é uma marca que acaba de entrar no mercado ou um governo ditatorial, como no caso aqui examinado. Durante os primeiros 50 anos do século XX viu-se um intenso e inovador uso da propaganda, desta vez na esfera política. Partidos tornaram-se “anunciantes” e se puseram a “vender” seu produto/ideário à opinião pública em desfiles organizados e comícios inflamados, tentando cooptar seus votos e militância. Os processos que culminaram na Revolução Russa e nas duas Guerras Mundiais serviram de incubadoras e laboratórios nos quais novos métodos de convencimento se desenvolveram e aprimoraram. Os Partidos Comunistas empregaram técnicas avançadas de propaganda e organização, técnicas estas que, apropriadas pelo Partido Nazista nos anos que precederam a Segunda 52 O Parlamento alemão. Chefe de governo da Alemanha. 54 Império, em alemão. O I Reich refere-se ao Sacro-Império Romano-Germânico (de 962 a 1806), II Reich ao Império Alemão (a 1871 a 1918) e III Reich ao período que durou regime nazista (de 1933 a 1945). 55 Líder, em alemão. O termo foi cunhado por Adolf Hitler para designar a posição que ocupava, a de chefe máximo do Reich e do Partido Nazista. 56 Também chamados casamatas, os bunkers são unidades militares fortificadas para proteção. Geralmente são subterrâneas e variam de tamanho, chegando a enormes complexos. 53 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 114 Guerra Mundial, foram refinadas e transformadas em assustadoras armas de persuasão. De acordo com Sant’Ana (1995, p. 45) “foi em grande parte devido a ela [a propaganda] que Lenine logrou instaurar o bolchevismo; Hitler deveu-lhe, essencialmente, suas vitórias”. De fato, o Partido Nazista via na propaganda o mais potente instrumento de convencimento e, nas massas, o corpo de seu ideal. Adolf Hitler encarava estes aglomerados como algo manipulável, inserido numa lógica quase pavloviana de estímulo e resposta, conforme deixa claro no excerto adiante: As grandes massas têm uma capacidade de recepção muito limitada, uma inteligência modesta, uma memória fraca. Para que uma propaganda seja eficiente, deve basear-se, pois sobre pouquíssimos pontos repetidos incessantemente, até o homem mais rude ser induzido e repeti-los continuamente a fim de imprimi-los no íntimo de sua consciência inocente. (Regra de ouro do bom demagogo) Esta certeza vai ao encontro do que Sant’Ana (opus cit., p. 51) sustenta: O hitlerismo corrompeu a concepção leninista de propaganda. Transformoua numa arma em si, utilizada indiferentemente para todos os fins. As palavras de ordem apresentavam base racional. Quando Hitler se dirigia às massas invocando o sangue e a raça, importava-lhe apenas sobreexitá-las, nelas incutindo profundamente o ódio e o desejo de potência. Essa propaganda mais visa objetivos concretos, ela se derrama por meio de gritos de guerra, de imprecações, de ameaças, de vagas profecias e, se faz promessas, essas são a tal ponto malucas que só atingem o ser humano num nível de exaltação em que a resposta é irrefletida. Para tanto, seu ferramental incluía uma série de alegorias, símbolos e ritos elaborados para impressionar e embevecer. Comícios, discursos e passeatas altamente organizados, as tropas SA57 e SS58 em seus uniformes, a Suástica e a Águia, as bandeiras e as saudações, eram todos elementos na construção de uma imagem forte, hierarquizada, intimidadora e fascinante que se deitava sobre todo o III Reich. IV Análise de Discurso José Pinto (2002, p. 11) define análise de discurso como um processo que, “a partir de corpora de produtos culturais empíricos [...], procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade”. Contudo, para termos um maior entendimento sobre como se dá a análise de discurso, se faz necessário compreender o que o que o autor entende por “produto cultural empírico” e “discurso”. Para Pinto, a expressão “produto cultural empírico” abrange uma série de produtos, midiáticos ou não, tais quais: cartazes; outdoors; programas televisivos; spots de rádio; capas de revistas, livros e outras publicações; textos políticos e jornalísticos; folders de divulgação e 57 Sturmabteilung: Tropas de Assalto, em alemão. Eram tropas para-militares do Partido Nazista. Durante a “Noite das Longas Facas” foram substituídas definitivamente pelas SS. 58 Schutzstaffel: Esquadrão de Proteção, em alemão. Inicialmente criados para atuarem como a guarda pessoal de Adolf Hitler, as SS ganharam grande prestígio após a queda das SA. Ao longo da guerra se tornariam a maior força para-militar do III Reich, sendo, inclusive, os responsáveis pelos campos de concentração. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 115 informação, entrevistas médicas e de emprego; entre tantos outros. Estas peças “são entendidas como textos, como formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos no interior de práticas sociais contextualizadas histórica e socialmente” (opus cit., p. 11) e, quando abordadas desta forma, “dizemos que foram analisadas como discursos” (opus cit., p.12). Frente à multiplicidade de métodos e fundamentos de que dispõem aqueles que se aventuram pela análise de discurso – mais notadamente os arcabouços teóricos desenvolvidos por estudiosos franceses, como Michel Foucault e Michel Pêcheux, e anglo-americanos, como Bernard Berelson e Harold Lasswell – Pinto (opus cit., p. 14) se aproveita de observações de ambas as correntes e propõe um modelo próprio de análise que (1) depende do contexto, (2) (deve ser) crítico (...), (3) não confia na letra do texto relacionando-o às forças sociais que o moldaram, (4) não procura interpretar conteúdos, (5) usa um conceito de ideologia ao lado do de discurso, (6) trabalha comparativamente, (7) não usa técnicas estatísticas no sentido acima, e (8) trabalha com as marcas formais da superfície textual. É este mesmo modelo que contemplaremos no presente trabalho. O primeiro item, a fundamentação de seu contexto, ou “condição social de produção”59, se iniciou nos capítulos anteriores e é importante para entendermos os motivos que levaram à criação da peça e como ele professa suas idéias, pois “a análise de discursos não se interessa tanto pelo que o texto diz ou mostra, mas sim em como e porque o diz e mostra” (Ibdem, p. 27). Caberá ao capítulo seguinte dar fim à fundamentação e cumprir as demais etapas do processo. V Análise da Peça A Segunda Guerra Mundial deixou um saldo de aproximadamente 28 milhões de mutilados e 60 milhões de mortos, dentre os quais 10% eram de origem judaica. Ainda assim, os judeus não foram os únicos a padecerem com as políticas raciais nazistas. Diversas outras minorias e grupos foram severamente atacados desde a ascensão do NSDAP ao poder. Comunistas, ciganos, homossexuais, Maçons e Testemunhas de Jeová sofreram em campos de concentração. Junto deles, deficientes físicos e mentais de origem alemã somavam outros 6 milhões de mortos. Esta tentativa de se efetuar uma higienização racial por meio da aplicação de conceitos eugênicos60 de reprodução controlada havia sido prevista em Minha Luta: “Deve-se providenciar para que só pais sadios possam ter filhos. Só há uma coisa vergonhosa: que pessoas doentes ou com certos defeitos possam procriar, e deve ser considerada uma grande honra impedir que isso aconteça” (HITLER; 1962, p. 253) e foi posta em prática tão logo Hitler teve condições para tanto. 59 Pinto (2002, p. 12) esclarece que contexto ou condição social de produção representa as “práticas socioculturais no interior das quais (um determinado discurso) surgiu [...] [e] incluem todo o processo de interação comunicacional – a produção, a circulação e o consumo dos sentidos”. 60 Eugenia é a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 116 Como resultado, uma série de projetos foi criada pelo governo nazista para impedir o rassenselbstmord61 que supostamente se abateria sobre os arianos. Numa ponta do espectro, estava o programa Lebensborn62, da SS, cuja preocupação era garantir a diminuição dos abortos, cerca de 600.000 por ano, e preservar a herança racial do III Reich. Na outra ponta vinha o Aktion T4. Era função dos envolvidos no programa a esterilização – ou mesmo extermínio, dependendo do grau da inabilidade ou doença – daqueles física ou mentalmente deficientes. O Aktion T4 fez algo entre 75.000 e 250.000 vítimas, em meio a adultos e crianças sofredoras de deformidades congênitas, esquizofrenia, epilepsia e Mal de Huntington, entre outras aflições. A peça63 que analisaremos, um cartaz colocado em circulação por volta de 1938, faz parte do esquema de propaganda do Aktion T4 e apresenta uma estrutura bem definida com quatro blocos de texto do lado esquerdo e uma grande imagem a ocupar todo o lado direito. Acompanhando o sentido da leitura, o canto superior esquerdo é dominado pela presença de um valor monetário, 60.000 Reichsmarks64, que ocupa todo o primeiro bloco. Impresso em tipos grandes e numa forte cor amarela que contrasta com o fundo amarronzado, a pesada quantia salta logo aos olhos de quem observa a peça. Seu tamanho e colocação são estratégicos, uma vez que o montante serve como argumento de sustentação e legitimação do chamado que proclamará adiante. O segundo e o terceiro blocos de textos encontram-se colocados sob uma caixa amarela que providencia destaque aos dizeres em tipos menores. Suas mensagens dizem respectivamente: “É o que pessoas que sofrem de defeitos hereditários custam à comunidade durante toda a sua vida” e “Companheiro alemão, é seu dinheiro também”. A tipologia gótica e cor preta com que é grafada a primeira frase dão peso e força a uma informação que, supõese, levará o leitor à ponderação. A segunda frase, escrita em tipologia cursiva e cor vermelha, torna-se mais leve, pois fala diretamente ao indivíduo, implicando-lhe na situação ao lembrarlhe que o dinheiro dos seus impostos está sendo “desperdiçado” nos cuidados a estes doentes, deixando implicitamente entendido que ele poderia estar sendo mais bem aplicado em setores outros que melhor lhe aprouverem. A mensagem tem impacto ainda maior sobre aqueles que não possuem deficientes entre familiares e amigos mais chegados, o que, certamente, abrange a maior parte da população. O quarto bloco de texto é divido em quatro linhas. A frase, toda grafada em tipos góticos, interpela novamente o leitor, desta vez, de uma forma imperativa tão comum às propagandas publicitárias: “Leia Um Novo Povo, a revista mensal do Escritório de Políticas Raciais do NSDAP”. Desmembrada em três linhas, o nome da publicação ocupa quase todo o canto inferior esquerdo, escrito em tamanho grande e fonte branca – dando suporte à idéia de “Um Novo Povo” igualmente grande e branco –, enquanto que as partes anteriores e posteriores mantêm-se na cor negra e em tamanho modesto, que bastam para passar o restante das informações. A imagem impressa do lado esquerdo completa o apelo lançado pela peça, expondo uma clara situação de comparação. Um homem belo, bem constituído, vestido de branco, se põe atrás de uma criatura feia, disforme e aleijada, encolhida sobre a cadeira de maneira torta e pouco confortável, vestida dentro de um traje negro. Ambos olham diretamente para frente, 61 Suicídio racial prenunciado pelo declínio de nascimento entre as raças ditas superiores. Fonte da Vida, em alemão. 63 Para uma visualização do cartaz, consulte o Anexo I. 64 Moeda que circulou na Alemanha entre 1924 e 1948. 62 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 117 incisivamente para o leitor do cartaz, abordando-lhe uma vez mais. A postura do homem de branco é a de quem oferece o aleijado à apreciação do leitor, um exemplo de como estas pessoas podem ser repugnantes, além de caras a seus bolsos. Uma série de dicotomias acentua a discrepância entre ambas as figuras, a exemplo do maniqueísmo do preto (sujo, mal e impuro) contra o branco (limpo, bom e puro, mais uma vez, a cor da “raça dominante”); e a diferença de altura, com o aleijado pequeno, numa posição inferior e submissa, enquanto o saudável é alto, forte e imponente. O semblante de infelicidade do pequeno serve como atestado de que a vida que leva não é digna ou mesmo desejada. VI Considerações finais Como é possível perceber, as técnicas de análise de discursos nos proporcionam formas de desvelar e entender uma série de fatores contidos nas entrelinhas da criação de um discurso, presentes não no enunciado, mas nas condições que influenciaram sua produção e impregnam sua própria constituição, seja por uma vontade ativa de seu criador empírico ou por influência que este tenha recebido do ambiente sócio-cultural ou histórico que habita no momento de sua concepção. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 118 Anexo I: Cartaz Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 119 Bibliografia e referências DIEHL, Paula. Propaganda e Persuasão na Alemanha Nazista. São Paulo: Annablume, 1996. FEST, Joachim. Livro-Clipping: Hitler por Ele Mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2004. HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Mestre Jou, 1962. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2003. PINTO, Milton José. Comunicação & Discurso. São Paulo: Hacker Editores, 2002. SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2003. SANT’ANA, Armando. Propaganda: Teoria, Técnica e Prática. São Paulo: Pioneira, 1999. Regra de ouro do bom demagogo. Disponível http://www.geocities.com/Athens/Thebes/7046/hitler.htm. Acessado em: 20/11/2007. em: Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 120 ñ tica jornalística: entre a evocação do ideal e a conciliação de interesses Jacqueline da Silva Deolindo* ____________________________________________________________________Resumo O artigo tem por objetivo apresentar os resultados da pesquisa de campo realizada com jornalistas, estudantes de jornalismo e outros profissionais da área, para verificar sua convicção pessoal acerca da ética jornalística. A análise dos resultados é amparada por uma fundamentação teórica pautada no entendimento do jornalismo enquanto um serviço público e no código de ética dos jornalistas brasileiros. Este artigo é uma versão resumida da pesquisa de mestrado da autora, defendida em maio de 2008 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e orientada pelo Prof. Drº Hugo Lovisolo. A pesquisa de campo foi restringida aos participantes de um encontro de jornalistas que reuniu profissionais das regiões Norte, Noroeste e Lagos do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, em dezembro de 2007. Palavras-chave: Ética, Moral, Jornalismo, Códigos Deontológicos ___________________________________________________________________________ Introdução É a partir do século XIX, articulando a herança deixada pelas Luzes, que celebrava a liberdade de opinião e expressão do pensamento como um dos mais importantes direitos do Homem, que o jornalismo desenvolve o ethos da atividade como interesse público, um quarto poder, um produtor e divulgador de informações, a partir de uma técnica peculiar, que tem como principal baliza a busca pela verdade dos fatos a fim de atender a demanda dos cidadãos por notícias que lhes informem sobre o que se passa na sociedade. Trata-se, portanto, de uma atividade que, à semelhança de tantas outras, ao se profissionalizar, assume valores, objetivos e tarefas que são compartilhados com o público, que, inclusive, reconhece nos jornalistas as pessoas devidamente habilitadas para tal. Assim, há uma opinião que serve de base para a reflexão sobre o jornalismo: o entendimento da atividade como um serviço público, mediadora da informação, cujo principal objetivo é manter os cidadãos cientes dos fatos, garantir seu acesso aos diversos pontos de vista a respeito das temáticas mais atuais e servir de canal entre o público e as diversas instâncias de poder na sociedade. Entre os profissionais da área diz-se que, se perder de vista esse papel, a imprensa fará tudo, menos jornalismo. De nossa parte, percebemos que, se perder de vista a perspectiva ética, de um lado, e, de outro, as rotinas e demandas que moldam a produção jornalística65, o pesquisador não poderá compreender o que é o mundo das notícias e por que elas são como são66. * Jornalista. Mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A respeito das teorias do jornalismo que versam sobre as rotinas produtivas da notícia e sua influência sobre o produto noticioso, ver coletânea de artigos organizada por Nelson Traquina (1993), na qual se encontram traduzidas para o português os artigos originais dos principais teóricos adeptos à linha do newsmanking. 66 Em Teorias do Jornalismo (2005), Felipe Pena reúne e discute as principais teorias do jornalismo. 65 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 121 É, portanto, tendo em vista a deontologia jornalística, que esta pesquisa procurou investigar, entre outras situações, como hoje se sustenta o jornalismo ideal enquanto representação entre os profissionais da área. Como veremos, muitos jornalistas e estudantes de jornalismo dizem ser difícil a observância do código de ética feito para conduzir a atividade dentro dos ideais seculares de compromisso com a democracia e a cidadania. Dizem ser quase impossível desenvolver um “bom jornalismo” dadas às circunstâncias contemporâneas, em que os negócios da comunicação pautam-se pelas leis de mercado, visando o lucro e a proteção dos anunciantes67. Contudo, o ideal ético pode sobreviver apesar das influências, vistas como desvios ou deturpações, do modo real de funcionamento68. Tudo indica que, sem o ideal ético, a profissão perde sua legitimidade. Ele deve ser elogiado, fundamentado e, quando possível, perseguido, ainda que realizado de forma parcial ou imperfeita. 1 – Moral, deontologia e ética jornalística Noções como notícia, verdade, independência, objetividade e serviço ao público para atender as demandas do interesse público por inteirar-se do que se passa amadureceram junto com a profissionalização da atividade e a transição do jornalismo artesanal, de campanha, despretensioso, para uma realidade capitalista, de alta especialização, onde o título de quarto poder e de porta-voz dos cidadãos convive com a idéia de ser esta uma ocupação rentável. A partir do século XIX, com sua profissionalização e a transformação das redações em empresas capitalistas69, o jornalismo passou a ser orientado por um discurso de tipo ethos, regido por regras e por uma deontologia toda particular70. O discurso legitimador do papel profissional e público da atividade jornalística toma como missão dos jornalistas contribuir para o desenvolvimento da sociedade e para a manutenção dos valores democráticos, fornecendo informações e análises acerca do andamento da vida, da sociedade, da política. Para realizar-se como dispositivo da cidadania, o jornalismo procura circular em torno de balizas que indicam o que a atividade deve ser, um dever-ser historicamente construído que regula e dirige a atividade. Já faz quase cem anos que os primeiros códigos de ética – ou deontológicos, como preferimos71 – foram escritos, e hoje eles já estão presentes em praticamente todos os países do mundo. Hoje, já não se pode conceber a vida em sociedade sem meios de comunicação que permitam às pessoas saber o que se passa; necessita-se não apenas de mídia, mas de mídia de qualidade. Para especialistas como Claude-Jean Bertrand (1999), a maioria dos problemas que 67 Sobre a influência do mercado na produção da notícia jornalística pode ser elucidativo o livro de Meyer (1989) que serviu de inspiração para esta pesquisa de campo. 68 Sobre ética, ver Valls (2006). Já Karam (1997) oferece uma distinção bastante clara a respeito dos termos ética, moral e deontologia. 69 A esse respeito do profissionalismo no jornalismo, ver Soloski in TRAQUINA, 1993: 91-100. 70 Segundo esse discurso, “é missão dos jornalistas contribuir para o desenvolvimento da sociedade e manutenção dos valores democráticos.” (ALDÉ, 2005, p. 198) O jornalismo determinaria os acontecimentos com direito à existência pública, noticiando os fatos com objetividade e definindo o significado dos acontecimentos através da oferta de interpretações de como compreendê-los. 71 Preferimos o termo “código deontológico” porque concordamos com Alberto Dines quando diz que “a Ética é uma porção da Filosofia e da Moral que não pode ser comprimida ou reduzida a um conjunto de normas pragmáticas de conduta. Ética situa-se numa esfera superior e íntima, obviamente mais abrangente e muito mais complexa.” (ARGOLO, 2002, p. 15). A deontologia seria o nome mais apropriado para uma disciplina que estuda a conduta e os deveres profissionais. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 122 impede a mídia de alcançar esse padrão de qualidade é a sua natureza tríplice, que faz dela, ao mesmo tempo, indústria, serviço público e instituição política. É por isso que a deontologia preocupa-se com deveres, regras que decorrem de um conjunto de princípios morais, que atuam em conformidade com a moral social72. São adotados em larga medida, aceitos, porque as pessoas que os adotam compartilham de uma determinada visão dos homens, do mundo e da vida em sociedade. O código deontológico nem sempre apresenta regras fáceis ou coerentes, mas nisso os teóricos do jornalismo estão de acordo, estabelece-se, ao menos, um ideal. “Tenta-se armar a consciência individual de cada profissional enunciando valores e princípios unanimemente reconhecidos. O código dá a cada um, um sentimento de segurança, de força coletiva.” (BERTRAND, op. cit., p. 81). Karam (1997) acrescentaria que o código “é apenas uma referência que não esgota a constante criação de uma prática profissional, com os novos problemas e posturas que sugere. É mais um eixo que norteia a ação profissional, tanto no sentido de cumprir quanto negar um princípio.” (KARAM, op. cit., p. 53) O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros versa sobre o direito à informação (o jornalista brasileiro trabalha pelo interesse público, deve ter total acesso às informações e não admitir qualquer tipo de impedimento nesse sentido)73; dá diretrizes para a conduta profissional do jornalista (deve ser uma conduta pautada pelo código de ética, em conformidade com o interesse público e a verdade; o jornalista deve honrar e dignificar a profissão, lutar pela liberdade de expressão; combate a corrupção e tudo aquilo avilta os direitos humanos)74; reafirma sua responsabilidade social (o parágrafo sobre a presunção de inocência é um dos pontos de discussão mais aflorada, para alguns autores)75; orienta sobre o relacionamento entre colegas (não aceitar remuneração abaixo do piso estabelecido ou acúmulo de função, para não prejudicar os colegas, por exemplo)76; e dá as sanções para aqueles que desobedecerem ao código77. 2 – A pesquisa de campo A amostragem aqui relacionada foi obtida através da aplicação de questionários entre os participantes do II Encontro Regional de Jornalistas do Norte/Noreste/Lagos Fluminense, realizado no município de Quissamã, a 233 km do Rio de Janeiro, capital do Estado, no dia 1º de dezembro de 2007.78 Durante uma palestra sobre ética jornalística e o novo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, proferida pela jornalista e professora-mestra Carmem Pereira, da Comissão de Ética da FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas), foram 72 Pode ser elucidativa a leitura de Hall at. al. na obra citada de Traquina (1993). Artigos 1º e 2º. 74 Artigos 3º, 4º e 6º. 75 Artigo 9º. O professor Venício de A. Lima tem um artigo no site do Observatório da Imprensa relacionando a importância da reafirmação da presunção de inocência no código de ética dos jornalistas para as reflexões sobre a cobertura da imprensa dos escândalos políticos no Brasil, quando a mídia se coloca como um tribunal independente. O referido artigo está disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=449IMQ002 76 Artigo 15º 77 Artigo 16º em diante. 78 As três regiões englobam mais de 30 municípios, 12 deles representados no evento. 73 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 123 distribuídas no auditório 200 fichas.79 Desse número, 112 retornaram com respostas, validadas nesta tabulação. O questionário apresentou ao respondente 12 questões objetivas, reunindo perguntas a respeito de sua convicção pessoal acerca de dilemas éticos sobre o relacionamento entre os departamentos editorial e comercial de uma empresa jornalística, a invasão de privacidade, o sensacionalismo e a função política da imprensa – a maioria dos respondentes, 44, eram declaradamente jornalistas profissionais, que atuavam em diversos cargos, entre eles o de assessor de imprensa. O segundo grupo mais numeroso foi o de estudantes de jornalismo, formado por 35 pessoas, sendo que a maioria declarou já atuar como estagiário em algum veículo de comunicação. Para efeitos de amostragem neste artigo, trabalharemos com as respostas desses dois grupos mais representativos. O terceiro grupo de respondentes foi formado por 23 pessoas que se declararam como “outro”, ou seja, não eram jornalistas profissionais, nem estudantes, nem proprietários de meios de comunicação ou ocupante de qualquer outra função prevista no questionário80. As demais fichas não continham identificação por função. Entretanto, os respondentes que eram jornalistas profissionais ou estudantes de jornalismo que fazem estágio, ou seja, que já atuam como profissionais, declararam unanimemente atuar em empresas com no máximo 10 equipes de jornalismo. A maioria vinda de jornais impressos, emissoras de TV e empresas privadas com serviços de assessoria de imprensa. A primeira pergunta do questionário pretendia saber o que os respondentes pensavam sobre o uso de fotografias que, de alguma forma, eram apelativas ou grotescas, como imagens de acidentes ou assassinatos. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros determina que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos” (Artigo 12, inciso III). No entanto, a maioria das respostas do questionário (46%) foi de que essas imagens deveriam ser usadas nas chamadas principais, mas com edição que diminuísse o impacto e/ou dificultasse a identidade das vítimas. Outros 26% decidiriam usar as imagens apenas nas páginas internas, em caso de veículo impresso, e 20% disseram descartar as imagens apelativas para dar lugar a outras menos impactantes do mesmo fato. Apenas 3,9% das respostas totais indicaram a opção por publicar as imagens nas chamadas principais, sem restrição. Esses resultados indicariam uma reserva generalizada ao sensacionalismo ou uma tendência a proteger fontes, personagens e leitores da exposição pública da miséria humana, mas a tabulação das respostas por grupos, indicou que os jornalistas profissionais, em sua maioria (80%), decidiriam usar as imagens tal como foram feitas. O equilíbrio do resultado geral foi definido pelos estudantes de jornalismo, que, nas respostas por grupos, dividiram-se entre editar as imagens (55%) ou usar apenas nas internas (54,5%), o que faz pensar sobre uma ética mais conservadora, pautada no jornalismo ideal, modelo balizado, talvez, pela Academia. A maioria dos demais respondentes demonstrou uma restrição relativa ao sensacionalismo, julgando que as imagens grotesco-apelativas devem estar nas internas, sem edição. 79 O número de participantes foi calculado em 300 pelos organizadores. Informações disponíveis em www.jornalistasnflagos.blogspot.com. 80 O questionário trouxe as seguintes opções de identificação por função: repórter ou repórter fotográfico, editor, editor-chefe, proprietário, assessor de imprensa, estagiário, estudante de comunicação e outro. Em algumas fichas, foram encontradas anotações como “colunista social” e “professor de jornalismo”, o que dá uma idéia de outros profissionais presentes, como também locutores de rádio ou operadores de web, que possivelmente não teriam se identificado com as opções de função apresentadas. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 124 Outra questão dizia respeito ao relacionamento entre os departamentos comercial e editorial de uma empresa jornalística. O Código de Ética dos Jornalistas não orienta o profissional de forma objetiva, dizendo apenas, no Artigo 12, inciso I, que o jornalista não deve divulgar informações “visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica.” Entretanto, desde a segunda metade do século passado é tradicional no jornalismo brasileiro a divisão que Bucci (2000) chama de igreja-estado, em que se administra a empresa jornalística como uma estrutura bipartida, com dois lados autônomos, independentes. Esse modelo prescreve que o repórter não tenha nenhum tipo de relacionamento com quem negocia publicidade e vice-versa, porque há clientes distintos e seus interesses são antagônicos. Mais uma vez, houve diferença entre os ideais traçados por jornalistas profissionais e estudantes de jornalismo. Os resultados gerais deram conta de que o ideal para 60% dos respondentes era que os dois departamentos colaborassem entre si sempre que necessário. No entanto, quando são verificadas as respostas por grupos, conclui-se que a maioria dos jornalistas profissionais (40%) declarou não tolerar a proximidade entre redação e publicidade uma vez que o departamento comercial poderia interferir na produção jornalística isenta. Os demais jornalistas profissionais (30,7%) que responderam a esta questão da pesquisa admitiram a colaboração; já estudantes de jornalismo ficaram divididos: 46% votaram pela independência dos departamentos e 48% acham que a colaboração entre os dois é bem-vinda e só tem a somar. Sobre a diferença na relação entre os departamentos editorial e comercial em pequenas e grandes empresas, a maioria das respostas gerais (59%) acredita que esta existe e implica a política administrativa e editorial do veículo. Dos integrantes do grupo “outro”, a maioria opina pela colaboração mútua. O questionário da pesquisa de campo deixou espaço em aberto para os respondentes dissertarem sobre algumas questões específicas, como foi o caso daquela que inquiria sobre a convergência do comercial e do jornalismo e a que pretendia saber sua opinião a respeito da presença do dono da empresa na redação. Alguns corresponderam à proposta. O respondente do questionário número 13, por exemplo, identificado como “outro”, escreveu que “quanto mais próximos os dois setores, menos imparcialidade”, embora seja “preciso que o empresário saiba o que acontece em todos os setores da empresa”, fazendo-nos entender que a presença do dono ou do publisher ou do editor-executivo não deva necessariamente implicar no fim da autonomia dos departamentos. O respondente do questionário número 70, por sua vez, identificado como repórter e assessor de imprensa, considerou que quanto maior a empresa, mais forte a pressão mercadológica, ficando visível a tendência do veículo que “diz sim ao mercado”. Já nas pequenas empresas, os departamentos apresentam “limites muito mais tênues” e “geralmente o dono se sente editor”, fazendo com que a administração do veículo de comunicação seja “mais pessoal que mercadológico”. O respondente do questionário 45, identificado como estagiário, considerou que “no interior essa relação (jornalismo/comercial) é muito mais comprometida com o poder, principalmente com o poder público, como as prefeituras e câmaras”. Sobre a presença do dono ou de seu representante na redação, o respondente do questionário número 100, identificado como estudante de jornalismo e estagiário, admitiu que este acompanhamento aconteça “para que haja uma valorização do trabalho do jornalista, mas sem interferir no seu raciocínio”, reiterando a imagem do jornalista como trabalhador intelectual e detentor de direitos, como a autonomia do pensamento e a liberdade autoral. O respondente do questionário número 87, identificado como repórter, escreveu Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 125 que a prioridade nas empresas jornalísticas é o comercial, que, segundo eles (os membros do departamento), alimentam financeiramente a instituição. Dessa forma, se estabelecem os espaços de publicidade e depois se decide o que sobrará para as matérias, vulneráveis ao limite imposto, podendo ser, e sempre sendo, encurtada (sic). Além disso, são raros os donos de empresa que se preocupem (sic) mais com o produto do que com a folha de pagamento. No Brasil, tradicionalmente, as atividades de repórter e de assessor de imprensa não são vistas como incompatíveis por muitos profissionais, e mesmo o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros admite dupla matrícula81. Entretanto, o assunto provoca polêmica em algumas instâncias da classe. A quinta pergunta do questionário inquiria os respondentes a respeito dessa dupla função do jornalista. Das respostas totais, 68% indicavam que o jornalista que exercesse também a assessoria de imprensa deveria ter o cuidado de não atuar, na redação, cobrindo assuntos da área de interesse de seu assessorado, de modos a manter sua isenção; 16%, que o jornalista deveria escolher entre uma atividade e outra e 16% defendia que o jornalista-assessor de imprensa deveria não só exercer as duas funções despreocupadamente, como também aproveitar na redação os próprios releases para pautar reportagens. As respostas por grupo não variaram das gerais, resguardadas as devidas proporções, o que reforça que, pelo menos entre os participantes do evento onde a pesquisa aconteceu, a dupla matrícula não constitui problema ético para a maioria dos profissionais. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, no inciso VIII do Artigo 6º, diz que “é dever do jornalista respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. Quando questionados a respeito dos limites à invasão de privacidade, no entanto, as respostas gerais indicaram uma tendência a legitimar a violação da privacidade de uma pessoa quando seus atos privados interferem na vida dos cidadãos (43%), embora o uso de métodos clandestinos para investigar/obter informações sigilosas, mas de interesse público, seja rejeitado pela maioria (64,9%). As respostas por grupo permitiram um outro olhar: os estudantes mostraram-se mais ousados do que os jornalistas profissionais no que se refere à invasão de privacidade: enquanto 37% dos últimos admitiram a invasão de privacidade, os primeiros saíram à frente com 53,7% das respostas. Os estudantes também demonstraram uma maior aceitação dos métodos clandestinos nas repostas individuais: “a moralidade da fraude é inversamente proporcional à imoralidade do crime e ao valor-notícia do fato” para 60% dos estudantes e 25% dos jornalistas. Tão contraditórias são as respostas como o é o próprio Código quando diz que o jornalista não pode divulgar informações “obtidas de maneira inadequada – como o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos – a, salvo em caso de esclarecimento de informações de relevante interesse público e quando esgotadas todas as possibilidades que o profissional possa recusar o seu uso.” (Artigo 12º, inciso III, grifo nosso) Ficaria por conta do arbítrio, do bom senso ou de que outra instância a decisão do limite dessa linha fina? 81 Diz o artigo 7º, inciso XII: “O jornalista não pode exercer atividades jornalísticas no órgão de comunicação em que trabalha, no interesse de instituições públicas, privadas e não-governamentais de que seja proprietário, assessor, empregado ou terceirizado”. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 126 No que se refere à ação da imprensa na formação e orientação da opinião pública82, os respondentes dividiram-se entre o dever de apenas noticiar com relatos objetivos e emitir interpretação e opinião em suas reportagens: 53% das respostas gerais reivindicavam informações objetivas e imparciais, enquanto 47% reclamavam um papel mais ativo para o jornalista (nas respostas por grupo, os estudantes demonstraram-se mais propensos a defender essa posição). Mas o mesmo não ocorreu quando foi perguntado se o jornal deveria ou não declarar sua posição política: nas respostas gerais a maioria dos respondentes (75,2%) disse “não, o jornalismo deve ser neutro para melhor servir o interesse público” e apenas 24,8% disse “sim, seria o mais honesto comportamento para com os leitores”. Também nas respostas por grupo, apesar de um maior equilíbrio entre esses dois pólos, tanto jornalistas profissionais quanto estudantes de jornalismo e o grupo “outro” apresentaram maior inclinação para o apartidarismo e a imparcialidade. Contraditório? Talvez não, se interpretarmos essas respostas como uma repulsa dos jornalistas e estudantes ao jornalismo partidário, mas não ao jornalismo engajado na causa social. O desprezo, aqui, parece ser à política partidária, à possível manipulação do jornal pelos ideais do partido, não à ação concreta no meio social para o benefício dos cidadãos. Os jornalistas e estudantes entrevistados, no entanto, queixaram-se de falta de liberdade criativa para exercer seu trabalho. Tanto nas respostas gerais quanto nas repostas por grupo, a maioria dos entrevistados disse que a liberdade do jornalista é limitada pela linha editorial do jornal e pelas forças do mercado. Os estudantes parecem cientes do futuro que os aguarda, mas entre este o fatalismo parece mais exacerbado: nas respostas por grupo, enquanto 33,3% dos profissionais disseram que o “jornalista é escravo do seu trabalho”, esse número sobe para 66,7% entre os estudantes. Tanto para uns quanto para outros, bem como para o grupo “outros”, entretanto, assim a qualidade do jornalismo praticado é razoável ou de boa qualidade (85% das respostas totais). A este respeito, o Código de Ética é vago. O artigo 14 computa à cláusula de consciência quando diz que o jornalista pode se recusar a executar uma atividade jornalística que confronte com os princípios previstos no presente Código, ou que agrida as suas convicções filosóficas ou morais, desde que isso não seja argumento, motivo ou desculpa para não ouvir pessoas com opiniões contrárias às do próprio profissional. Sabe-se, entretanto, o destino de quem se insurge contra as ordens da direção, bem como os caminhos para burlar a vigilância da hierarquia, o que será discutido à diante. O curioso, nisso tudo, é a certeza de que o jornalista não cumpre seu código de ética (opinião de 86,2% dos entrevistados nas respostas totais). A desconfiança maior a este respeito está entre os estudantes: 48% de estudantes críticos contra 31% de jornalistas igualmente desacreditados dos colegas.83 Só quem parece acreditar nos jornalistas é o grupo “outros”, que, para nós, parece representar o público servido com a notícia produzida nas redações. 82 O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros entende o jornalismo como uma atividade de natureza social (artigo 3º), cujo compromisso fundamental é com a verdade dos fatos. O trabalho do jornalista se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação (artigo 4º). É dever do jornalista não apenas informar, mas militar pela causa dos direitos humanos, combater e denunciar a corrupção, lutar para que sejam respeitadas a soberania nacional e os princípios constitucionais (artigo 6º). A opinião no jornalismo deve ser emitida de maneira responsável (artigo 1º, grifo nosso). 83 Uma enquete online realizada em 2007 pelo site da revista Imprensa, publicação de referência para os jornalistas brasileiros, perguntou “Você acredita que os jornalistas brasileiros cumprem seu código de ética?” Dos 382 votos, 87% foi para a resposta “não”. Disponível em http://portalimprensa.uol.com.br/portal/enquetes/index.asp?idEnquete=4&Resultado=ok Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 127 3 – Pensando os resultados Observa-se nos resultados da pesquisa de campo realizada em Quissamã/RJ a disparidade nas respostas de jornalistas e estudantes de jornalismo no que se refere à visão do papel da profissão e do relativismo das regras deontológicas. O único consenso entre os dois grupos parece ser a desconfiança quanto à observância do código de ética pelos membros da categoria84 e o sentimento de limitação criativa para a realização do seu trabalho imposta pela linha editorial do veículo, a rotina e as leis do mercado. Aparentemente, o conservadorismo e a ousadia não possuem a mesma natureza em um grupo e em outro. Entre os estudantes, a reserva é reflexo, aparentemente, de um humanismo que exige o respeito à integridade do homem, cuja miséria não deveria ser exposta na primeira página de um jornal; entre os profissionais, a reserva forma um campo de proteção ao departamento editorial, ao poder que só eles detém de dizer o que é notícia, por exemplo, quando o assunto é a possível interferência do departamento comercial. A reserva também aparece na possibilidade do uso de métodos clandestinos para obtenção da notícia de interesse público, talvez mais por receio de processos judiciais e das conseqüências de iniciativas dessa natureza do que por respeito à privacidade e à dignidade das pessoas investigadas, já que essa preocupação com o “personagem” da história não aparece quando é momento de decidir se ele vai ou não para a primeira página ou as chamadas principais com uma abordagem negativa. A ousadia dos estudantes, que querem do jornalismo uma ação política mais intensa e direcionada para a (in) formação da opinião pública, que defendem métodos mais incisivos de apuração, sempre em nome da “descoberta da verdade”, que acredita existir diversidade de interesses entre jornalismo e assessoria de imprensa, de fato não se assemelha à dos profissionais, que celebrariam altas vendagens de um impresso por conta da exibição de uma imagem grotesco-apelativa na capa. Estes são apenas alguns exemplos de que a prática da profissão parece, sim, moldar a moralidade dos que a exercem85, e não o contrário, e indica que se faz útil repensar as motivações que impulsionam a atividade jornalística hoje. Refletindo sobre as respostas dos que integram o grupo 3 (“Outro”), por sua vez, percebemos que o perfil destes parece aproximar mais de um público que recebe as informações e que está, portanto, do outro lado do processo produtivo da notícia. São, os “outros”, os que conferem aos jornalistas profissionais o papel de informar os acontecimentos com objetividade, imparcialidade, correção e ética; são estes os que acreditam que a produção 84 O resultado faz lembrar a pesquisa que Almeida (2007) realizou em nível nacional para provar algumas das principais teses do antropólogo Roberto DaMatta sobre o povo brasileiro. Para 70% dos entrevistados, nem os amigos e nem os colega de trabalho merecem confiança. (p. 115) 85 Almeida (2007, op. cit.) investigou, também, a presença do espírito público e do fatalismo entre os brasileiros. Por espírito público devemos entender o espírito de colaboração com o governo, ou seja, a mentalidade de que “cada um deve fazer a sua parte em prol da sociedade”, mas podemos interpretar esse termo independentemente de sua relação com o Estado. “Fazer a sua parte”, no jornalismo, poderia significar ser ético quando nem o mercado nem o contexto social nem a empresa de comunicação colaboram para tal. Pois bem: também na pesquisa antropológica o brasileiro mostrou que “paga na mesma moeda” (p. 124): é o comportamento que rege a vida de 61% dos entrevistados que não moram em capital. Ou seja, o pensamento dominante é o de que “se o estado (ou os superiores, ou os outros), não fazem a sua parte, eu também não tenho obrigação de fazer a minha, sozinho.” Quanto ao fatalismo, ou crença no destino ou numa força maior que conduz os acontecimentos e contra a qual não se pode lutar, para 60% da população, grande parte do que acontece está fora do controle dos homens: para estes, a vida (ou realidade) é assim mesmo. (p. 114) Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 128 da notícia é um processo ético; são os que desejam ser esclarecidos com relação às preferências políticas do veículo preferido; são os que acreditam que os jornalistas observam seu código de ética – justamente o pacto de confiança que torna a profissão possível e aceita socialmente. Esta pesquisa mostrou, ainda que de modo limitado, que algo acontece entre a Academia e a prática sistemática da profissão de jornalista, passando por um público que acredita nos agentes do jornalismo, ainda que restritamente. A inobservância da deontologia, quando ocorre, é justificada pela necessidade de sobrevivência, pessoal e empresarial. O código de ética é reconhecido como um valor, mas torna-se relativo quando pregado no alto das metas nunca atingidas, tidas como utópicas. O “bom jornalismo” é aquele considerado pelo pelos próprios jornalistas e pelo público como o que consegue acertar no atendimento das demandas da sociedade por informação, mostrar “a verdade” do acontecer, oferecer um leque de leituras do mundo, dar respostas, sem constrangimentos além daqueles autoimpostos pela consciência, por aquilo que o jornalista acha que é certo e que a sociedade merece ou está pronta para saber. Embora reivindique sua autonomia de pensar e dizer, isto não implica a negação em produzir acordos ou conciliações. As discussões filosóficas a respeito do “bom jornalismo”, ou, mais precisamente, as reflexões éticas86, ficam restrita aos congressos, reuniões sindicais, eventos como o Encontro Regional de Jornalistas onde os questionários foram aplicados: ao ambiente acadêmico e aos casos em que a legitimidade da liberdade de imprensa e a ética jornalística são questionadas nos meios de comunicação, provocando lampejos de mobilização de parte da sociedade e da categoria e provocando a opinião dos intelectuais. Tais atividades são fundamentais: servem como ritual reforçador do princípio ético diante das demandas, por vezes pouco éticas, do princípio de realidade. No cotidiano das redações e da “rua”, a preocupação inscreve-se em outra seara: na da boa informação como produto bom para ser consumido, isto é, vendido sem inventar, mentir ou omitir em demasia. A velocidade em que se movimentam as redações exige a notícia em tempo real, não a reflexão ética; nem muito menos exige um projeto de longo prazo comprometido com uma sociedade melhor, formada por homens e mulheres melhores, porque mais bem informados, porque mais esclarecidos, porque mais conscientes do seu poder de decisão e da sua ação no mundo. Se esse projeto “de longo prazo” não existe, nem por isso o jornalismo deixa de ser jornalismo ou abre mão de seus preceitos éticos: a cada edição a proposta de informar o melhor possível parece se renovar quando a publicação procura atingir através das reportagens uma representação da vida, do mundo que acontece, mesmo que a partir do seu próprio olhar, que nem é tanto seu, mas de uma sociedade consensual, que lhe molda. Não podemos esquecer que, nela, o mundo dos negócios e do trabalho ocupa um lugar de destaque. 86 Karam (1997) explica que essa reflexão ética não é redutível nem à moral existente nem aos códigos escritos, mas inscreve-se acima dessas duas primeiras instâncias. A reflexão ética é entendida por ele como movimento de desalienação e “transformação do indivíduo em sujeito que, inscrito no mundo, reflete filosoficamente sobre si mesmo, sobre seu trabalho, suas relações sociais e age politicamente.” (p. 34) Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 129 Referências ALDÉ, Alessandra; et. al. Critérios jornalísticos de noticiabilidade: discurso ético e a rotina produtiva. In Alceu, v.5 – n. 10. p. 186 a 200 – jan/jun de 2005 ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007 ARGOLO, José do Amaral. Alberto Dines, além do tempo jornalístico (entrevista concedida por Alberto Dines a José do Amaral Argolo, que assina o artigo). In PAIVA, Raquel (org.). 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O que é ética. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006 Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 131 \ mprensa e discurso político: o caso do Jornal Brasil Novo, em Itaperuna, e o golpe de 1937 Jacqueline da Silva Deolindo* Emerson Tinoco** ___________________________________________________________________________Resumo O artigo tem por objetivo fazer uma breve revisão bibliográfica sobre a imprensa política da primeira metade do século XX e refletir sobre a formação da opinião pública nesse período. Caracterizada principalmente pela adesão a partidos políticos e pela defesa declarada de ideologias, essa imprensa guarda características peculiares relacionadas à temática das peças jornalísticas, à abordagem dos fatos, à linguagem empregada nos textos e ao relacionamento com os leitores. Pretendemos ilustrar as reflexões teóricas desenvolvidas neste artigo e verificar sua aplicabilidade em um jornal do interior recorrendo, para tanto, a uma edição do semanário Brasil Novo, que circulou em Itaperuna, estado do Rio, na primeira metade do século passado, com grande empenho de seus redatores e diretores na construção de um partido social-democrata. Palavras-chave: Imprensa política. Opinião pública. Jornalismo de partido. Discurso político __________________________________________________________________________________ 1 – Imprensa política: um histórico A imprensa política no Brasil tem marcas de nascença. Embora alguns autores divirjam sobre a real influência das primeiras folhas sobre a conscientização e a mobilização política na transição do Brasil-colônia para o Brasil-império, é inegável que a partir de 1808 encontrem-se a germinar por aqui, mesmo que tardiamente87, as sementes de um jornalismo que visava, antes de tudo, formar opinião e incentivar posicionamentos frente aos fatos relacionados principalmente ao governo. O fato é que o gênero que inaugurou o jornalismo brasileiro foi o tônus da imprensa que se seguiu à independência e abriu o século XX. Até os primeiro anos da década de 1900, os jornais eram essencialmente opinativos, de pesada carga panfletária e narrativas mais retóricas do que informativas (PENA, 2005), sempre com o objetivo de moralizar os detentores do poder e suas ações, que eles eram considerados maus, num regime tido como bom. (SODRÉ, 1998). Por volta dos anos 1930, a proliferação de jornais políticos era um fato, inclusive no interior do país. Em Itaperuna, a 400 quilômetros da então capital da República, não eram * Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Jornalista. Especialista em Literatura, memória cultural e sociedade pelo Cefet/Campos, em Campos dos Goytacazes. E-mail: [email protected] 87 Tardiamente, considerando que no século XIX o jornalismo já era uma atividade plenamente desenvolvida na Europa e nos Estados Unidos. Em muitos países, a imprensa remonta ao século XVII. Segundo Melo (2006, p. 78), ao contrário do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos durante os séculos XVIII e parte do século XIX, “a imprensa não se desenvolveu no Brasil [...] porque carecia de função explícita a desempenhar no contexto de nossa sociedade”, marcada pela natureza feitorial da colonização, pela predominância do analfabetismo, ausência de urbanização, precariedade da burocracia estatal e das atividades comerciais e industriais e pela censura. Ver também, do mesmo autor, Sociologia da Imprensa Brasileira, de 1973. O primeiro periódico a se incumbir desse papel foi o Correio Brasiliense, em 1808. Sobre o Correio, ler Lustosa (2003) e Sodré (1998). ** Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 132 poucos os periódicos que atendiam a este fim, informando e opinando a respeito do desenrolar dos fatos de interesse da nação. Henriques (1954) cita, por exemplo, o semanário Brasil Novo, cujos exemplares de 1932 a 1945 ainda se encontram disponíveis na biblioteca local.88 Defensor de um ideário social-democrata, a longo prazo o Brasil Novo serviu à missão de mobilizar a opinião pública em torno da formação e do fortalecimento de um partido local – em oposição à candidatura de Getúlio Vargas nas eleições frustradas de 1936 –, mais tarde ligado a um movimento nacional – agora por ocasião da reabertura democrática e das eleições para 1946. Os líderes do partido eram o proprietário do jornal, seu redator e alguns colaboradores. A militância política do jornal itaperunense Brasil Novo ilustra perfeitamente a análise que Manin (1995) faz da dinâmica da opinião pública na democracia de partido. Lembrando que nesse tipo de governo representativo os partidos organizam não só a disputa eleitoral como também os modos de expressão da opinião, o autor ressalta que em tal contexto As várias associações e órgãos de imprensa mantêm laços com um dos partidos. A existência de uma imprensa de opinião tem uma importância especial: os cidadãos mais bem-informados, os mais interessados em política e os formadores de opinião, obtêm informações por intermédio da leitura de uma imprensa politicamente orientada. Desse modo, os cidadãos são muito pouco expostos à recepção de pontos de vista contrários, o que contribui para reforçar a estabilidade das opiniões políticas. (MANIN, 1995, p. 22). Da mesma forma, Manin lembra que “existe algo não controlável pelo partido no poder: a oposição e seus canais de expressão” (p. 23), ou seja, a liberdade de oposição, o que faz com que o membro do partido nunca esteja totalmente “protegido” das opiniões contrárias. Além disso, o autor aponta que o relacionamento do eleitor com o partido é baseado em “fortes laços identitários”, com relação ao discurso político, e na “confiança” às pessoas que representam ali seus interesses, muito menos que na plataforma de governo em si mesma. O Brasil Novo era, se não o único, provavelmente o mais visado lugar de expressão da opinião do PSDI (Partido Socialista Democrático de Itaperuna), criado em 1937, mais tarde, diretório local do PSD nacional (Partido Social Democrata). O jornal era distribuído por assinaturas. Era através do semanário que seus leitores tomavam conhecimento do resultado das convenções e dos debates, tanto internos quanto empreendidos por aquele forte grupo político89 junto a outras instituições classistas. Fundado em 1930 por Emiliano Silva, jornalista e militante democrata, o semanário tinha como redator o engenheiro Sadi Sobral, responsável pelos editoriais, também era 88 O jornal circulou entre 1930 e 1954 ininterruptamente, sendo que nas décadas seguintes teve tiragens esparsas, extinguindo-se nos anos 1980. Segundo funcionários da biblioteca municipal de Itaperuna, as sucessivas enchentes e mudanças de prédio destruíram parte da hemeroteca, que era composta com outros títulos da imprensa itaperunense. Atualmente, só há outros exemplares em raras coleções particulares. 89 Refirimo-nos ao grupo político em questão como forte, baseados na representatividade obtida pelo mesmo nas eleições para vereadores em Itaperuna em 1945, quando diplomou dez dos 19 vereadores da Câmara. (HENRIQUES, 1954., p. 159). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 133 político90. A defesa dos ideários políticos que norteavam a linha editorial do jornal e a militância do PSDI e de seus membros era expressa principalmente através dos editoriais assinados por Sobral, que ocupavam uma coluna na primeira página, com claro objetivo de orientar a opinião pública91. 2 – O Brasil Novo, o discurso político e a opinião pública Para diversos teóricos, o conceito de opinião pública está estreitamente ligado ao de democracia. Como cabe aos cidadãos a tomada das decisões que indiretamente regulam o funcionamento das coisas públicas, e não sendo possível fazê-lo pessoalmente, o acesso às informações a respeito do que se passa entre seus representantes torna-se imprescindível a esse sistema político, uma vez que não seria possível que o povo controlasse o poder sem saber ao certo de que forma os políticos o manejam em seu nome (BOBBIO at al., 1994, p. 100; MEYER, 1989). Nesta seção, verificaremos a aplicabilidade das teorias expostas das seções anteriores, usando como estudo de caso o editorial do jornal Brasil Novo escrito após o golpe de 1937, um exemplo clássico de discurso político, cuja principal característica é a dialogicidade: “o choque dos discursos” é uma das principais armas da “peleja” (MIGUEL, 2000, p. 86), repleta de formas lingüísticas híbridas, que combinam emoção e conhecimento (GOMES, 2004, 295). Para analisar de que forma a construção do discurso político se dá na prática, procederemos à transcrição do editorial “Fase de transição”, da edição de número 365 do jornal Brasil Novo, de 26 de dezembro de 1937, e aplicaremos a análise de texto retórico proposta por Reboul (2000). O editorial em questão exprime a visão da empresa e do grupo político por ela representado naquele momento histórico, tentava situá-lo em um contexto social e político e ensaiava expectativas com relação às promessas da nova Carta Magna. Ao analisarmos a estrutura do editorial podemos perceber três blocos argumentativos de natureza a princípio distinta. Observemos: BLOCO 1 Para o que vêm apreciando o panorama da evolução nacional, teve significativo relevo o evento de 19 de novembro. Esse golpe de Estado atingiu profundas camadas da formação mental de nosso povo e interrompeu, de chofre, atividades políticas no momento justo em que elas se manifestavam mais intensamente por estarmos às vésperas do pleito eleitoral. O governo resolveu, desde logo, dissolver os partidos políticos, as agremiações e sociedades que, pela expressão de número de seus prosélitos ou pela rigidez de sua disciplina, pudessem obstar às suas determinações, 90 Sobral exerceu o cargo de prefeito interventor na cidade entre 1931 e 1933, foi presidente da Câmara Municipal entre 1947 e 1949, além de vice-presidente em outro mandato. Conforme Henriques (1954, p. 156157). 91 Sobre a abordagem da opinião pública por diversos teóricos ao longo dos séculos, ver Melo, 1971. O autor conclui que s configurações que tomou a opinião pública é um fenômeno dialético, que resulta do choque entre opiniões divergentes, diante de um fato, logrando uma delas galvanizar as atenções e as preferências da maioria dos indivíduos. É o que ele chama de tendência (ver páginas de 53 a 56 da obra citada). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 134 causar-lhes quaisquer embaraços ou pretender entrosar-se por qualquer formação na nova estrutura estatal. Na série de medidas com o caráter de centralizar recursos e poderes, a própria autonomia dos Estados, exceção feita a Minas Gerais, desapareceu com as intervenções. Com o simbolismo da queima das bandeiras dos Estados, a pomposa e soleníssima festa cívica de 27 do mês passado, atendeu-se a uma das facetas do prisma nacionalista da nova ordem de coisas. E aí vem, sob a forma de decretos-lei, de códigos e de regulamentos, providências complementares ao acabamento da obra iniciada. Mas modificações de tal magnitude ao regime sob que viveu a Nação durante quase meio século não se podem efetivar tão abruptamente, ao simples efeito de um decreto e de um gesto, por justas que pareçam ou por propício que lhes possa parecer o ambiente político e social do país. BLOCO 2 Qualquer movimento revela a existência de uma força, que é resultante de ações e reações. É fenômeno que se observa nas órbitas da física, da moral e da política. A continuidade do movimento, sua aceleração ou seu retardamento a sua uniformidade, a sua direção, a sua intensidade, as suas características enfim, são a função direta da ação que o produz e à reação que se opõe à existência daquele. Ao período inicial, segue-se um interréguo necessário ao ajustamento dos fatores da ação e da reação. É o que se pode denominar período de transição. É nesse que nos achamos inelutavelmente neste instante. BLOCO 3 Através da rádio-difusão, da imprensa investida das honras da função pública, e de outros meios de propaganda e convicção, o governo procura consolidar a obra que tomou sobre os ombros, desenvolvendo com rapidez todos os meios de ação que tornem fáceis os seus movimentos, do mesmo passo que corta cerce as possibilidades de reações pessoais, de partidos e de agremiações. A campanha está hoje dirigida contra o personalismo que predominava na política nacional transformando-a em pura e simples politicagem. Os arautos da nova era expõem ao público o erro dessa mística que por tão dilatados anos corroeu o civismo, e o exprobam com certa dose de razão. A influência pessoal nas administrações é, de fato, um mal que precisava e precisa ser extirpado do nosso organismo político. E a oportunidade para o combate a esse mal não pode ser outra que a dessa fase de transição do regime, acentuada esta pelas reformas e adaptações dos velhos moldes e órgãos administrativos aos postulados da nova Carta Magna. O Estado do Rio de Janeiro tem sido, entre as demais unidades brasileiras, das maiores vítimas desse mal político: exceção feita a poucos de seus Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 135 governos, tudo nele se tem resolvido ao critério do mais estreito personalismo; por isso mesmo, sua influência política desaparecera, de há muito, do quadro nacional. O governo central tem a responsabilidade das transformações necessárias ao fortalecimento das novas instituições; a ele compete orientar, nesse período de transição, as forças vivas da nação para o aperfeiçoamento social e político. O mal do personalismo político deve, portanto, sofrer combate sem tréguas antes do término desse período de transição, também chamado de estado de emergência, e que, ao nosso ver, findará na data da realização do plebiscito de que nos fala a nova Constituição. 2.1 – Quem fala, o que fala, de onde, a quem e por quê se fala O redator do jornal Brasil Novo, Sadi Sobral, é quem assina o editorial, mas ele não fala apenas por si ou pelo jornal, fala em nome de um grupo político, que tem opinião formada e uma posição pré-estabelecida com relação à ordem vigente até então e, conseqüentemente, frente aos novos acontecimentos da política nacional. Esse grupo político é o Partido Socialista Democrático de Itaperuna (PSDI), que o Brasil Novo intitula como “o maior partido do interior do Estado do Rio.”92 O PSDI trazia como propostas de trabalho, por exemplo, a defesa da liberdade política e a defesa dos interesses dos setores agropecuários, como incentivos fiscais e melhorias das estradas, visando, antes de tudo, o maior desenvolvimento social e econômico da “Terra da Promissão”93 e dos demais municípios que formam a região Noroeste fluminense, que já teve as terras de maior produtividade em café em todo o país, e fora o berço da República, além de ter nomeado diversos deputados e um senador nos tempos áureos de sua representatividade política.94 O editorial é uma seção que expressa a opinião consensual dos dirigentes da empresa jornalística a respeito de um fato, sendo esta dirigida não aos leitores comuns, mas a grupos específicos, como o poder público. (MELO, 2002). No caso de “Fase de transição”, podemos identificar três construções argumentativas principais ao longo do texto: no primeiro bloco, percebemos que o editorialista fala em nome de um grupo que se mostra surpreso com os acontecimentos e se posiciona contrário ao método utilizado para se instalar uma nova ordem social e política no país. O motivo central do texto é a queixa de quem teve seu curso de atividade política interrompido incisivamente e sem aviso prévio, mesmo após um apoio aparente, calculando os conseqüentes prejuízos desse “golpe” em nome de um outro público, de cuja representação se investe. No segundo bloco, cujo discurso aparentemente é dirigido a outro auditório, no caso as entidades e instituições “vitimadas” pelo golpe, argumenta-se com sutileza que o caminho para se chegar ao fim do regime imposto é uma reação à ação do governo (o momento propício, segundo deixa transparecer o terceiro bloco, seria o plebiscito). 92 FUNDADO O MAIOR PARTIDO DO INTERIOR DO ESTADO DO RIO. Brasil Novo, 20 de março de 1937. 93 O termo é uma referência ao título da obra citada de Henriques, que, por conta da fertilidade das terras de itaperunenses, chamou a cidade de Terra da Promissão, “por analogia àquela de que nos fala a Escritura Sagrada.” (HENRIQUES, 1954, p. 14). 94 Conta que Itaperuna foi a primeira cidade do Brasil a ter uma câmara de vereadores de maioria republicana em pleno Império. Alem disso, até os anos 1950, Itaperuna gozou de numerosos cargos nas câmaras dos deputados estaduais e federais. (ver Henriques, op. cit.). Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 136 Tal reação seria legítima por ser um fenômeno natural. O argumento central do terceiro bloco, que inicia com uma crítica contundente à pena alugada dos meios de comunicação (contratados para construir uma imagem positiva e favorável do governo), é a necessidade de se lutar contra o “personalismo político”, muitas vezes revestido de aura messiânica, quando, na verdade, seu o principal objetivo é valer-se do poder em proveito dos próprios projetos. Em 1937, Itaperuna era o segundo maior reduto eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, contando 160 mil habitantes e 17 mil eleitores, e constituía um importante centro de decisões econômicas e políticas. O Brasil das décadas de 20 e 30 é um país que tem como meta o modernismo e a Europa como o seu mais perfeito modelo social, cultural e político. Pela primeira vez na história do Brasil, os movimentos políticos ganhavam proporção e adesão de fato nacionais, não só no que se refere às diversas declarações de apoio, mas, agora, também, à organização de grupos políticos que movimentam o interior e exigem participação na pauta de discussões sobre o rumo do país. As prometidas eleições de 1938, que eram aguardadas com entusiasmo por diversos partidos políticos que se organizaram visando à ocasião, são suspensas em dezembro de 1937. Segundo defendeu na época Fernando Campos, o então ministro da Justiça, “o regime fora imperativo de salvação nacional” devido às liberdades dadas pela Constituição de 1934 para a formação de partidos políticos que proliferavam e faziam o país caminhar para a desordem. (BONAVIDES & PAES DE ANDRADE, 1992, p. 334). 2.2 – Como fala A presença de metáforas e outros recursos retóricos faz do texto uma peça rica em possibilidades de leitura. “Fase de transição” é um artigo de fundo de natureza deliberativa, em cuja categoria quase sempre estão localizados os discursos políticos. (BAUER & GASKELL, 2003). Vejamos alguns desses recursos retóricos e figuras de linguagem. Já incorporada ao vocabulário político brasileiro, a palavra “golpe”, na verdade, é uma metáfora que dá todo um sentido à fala do locutor. Mais do que simplesmente “tomada, mais ou menos violenta, das instituições mais importantes de um país, tendo em vista a substituição de um governador por outro”95, até porque, no caso de Estado Novo, o motivo não foi a substituição, mas a garantia de permanência, “golpe” faz lembrar outras definições, como “pancada, ferimento, corte, contusão”96, que combinam mais perfeitamente com as figuras de linguagem médicas usadas por Sobral ao falar das conseqüências da ação: elas teriam atingido “profundas camadas da formação mental de nosso povo”. Trata-se de uma atitude que teria prejudicado o corpo social e o bom e fluido funcionamento que esse organismo apresentava até o momento. Quando fala nos “arautos da nova era”, Sobral, ao contrário das primeiras figuras de linguagem que representavam violência, usa com ironia recursos relacionados ao religioso, ao místico, categorias que, segundo a narrativa mítica, são guardiãs e propagadoras da Verdade. Mas, ao contrário de reconhecer tal “função divina” no comportamento do governo, o autor parece construir seu texto de forma a demonstrar que se a intenção do “golpe” é, de fato, acabar com um problema verídico, a saber os vícios políticos da nação, e se apresentar como o “predestinado” a instalar no país uma “nova ordem”, então há realmente trabalho a se fazer. 95 96 GOLPE. Língua Portuguesa On line (www.priberam.pt/dlpo). Acessado em 11 de janeiro de 2007. Ibidem Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 137 3 - Conclusão O discurso político analisado no editorial “Fase de transição”, do jornal Brasil Novo, é um exemplo do tipo de peça jornalística que compunha a imprensa política brasileira até a primeira metade do século passado. Evidentemente, ainda hoje nos editoriais lemos textos que valem-se de recursos retóricos semelhantes aos identificados, como a metáfora, a ironia, a lista tríplice, mas há que se notar a linguagem e a disposição dos argumentos nesse texto histórico específico, que fazem dele um exemplo todo particular da época em questão. O jornal Brasil Novo é um veículo que não nasceu com fins diretamente políticos, mas exprimia o pensamento de pessoas que mais tarde se organizaram em um grupo e que fizeram do jornal seu principal meio de expressão e instrumento de construção de uma opinião pública favorável aos interesses que representava. No caso, o editorial procura instruir a opinião pública no sentido contrário ao tomado pelo discurso oficial: enquanto os porta-vozes do Estado Novo falam de força maior e manutenção da ordem, o Brasil Novo fala de traição e golpe. O jornal cumpre claramente o papel de formar um estereótipo do novo regime, ou seja, ao emitir sua opinião a cerca dos fatos, desenha traços da face do governo, retrato este que é revestido de solidez graças à legitimidade de que goza a imprensa. Na peça jornalística analisada encontramos características atribuídas ao Estado Novo que dão conta de um regime que não dialoga e que toma a si as responsabilidades da transformação da vida social e política da nação sem permitir a aproximação do povo. Também percebemos que, por ter o governo “agido à traição”, cortando movimentos políticos que havia incentivado, o jornal posiciona-se hostil ao poder instituído frente à opinião pública e defende que as entidades representativas e cidadãos que têm competência para tal devem lutar pela democracia97. Quando acusa a política brasileira de ser “personalista”, o Brasil Novo demonstra fazê-lo porque diz ter um compromisso com o coletivo. “Eles clamam representar [...] os interesses coletivos, do país como um todo”, diz Albuquerque sobre o comportamento historicamente desenvolvido pelos jornalistas brasileiros. Mas alerta sobre a legitimidade dessa representação: “A imprensa brasileira pode reivindicar (e o faz efetivamente) a defesa de causas do interesse geral na nação ainda que elas se confrontem com os interesses de vastos setores (e em alguns casos da maioria) da sociedade.” (ALB UQUERQUE, 2000, p. 41). Referências BAUER, Martin W; GASKELL, George (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis:Vozes, 2003. p. 90-136. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. São Paulo:Paz e Terra, 1994. 97 Essa situação específica ilustra bem a tese de Afonso Albuquerque (2000), quando fala sobre o “quarto poder” no Brasil: aqui, a imprensa, historicamente, assumiu um papel semelhante ao exercido pelo Poder Moderador no Império, constituído para solucionar conflitos entre o Legislativo e o Executivo. No Brasil, como demonstra a chamada no editorial para uma reação através do plebiscito, a imprensa concebe seu papel político em termos ativos, com a missão de preservar a ordem pública. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 138 BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. Brasília, Senado Federal, 1992. GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus, 2004. HENRIQUES, Porfírio. A terra da promissão. Rio de Janeiro: Editora Aurora, 1954. PHASE DE TRANSIÇÃO. Jornal Brasil Novo. Itaperuna, 26 de novembro de 1937. FORMADO O MAIOR PARTIDO DO INTERIOR DO ESTADO DO RIO. Jornal Brasil Novo. 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Estudos de casos: relatos e análise de casos. Resenhas: análise crítica de artigos, livros, dissertações e teses que tenham como objetivo trazer informações adicionais e favorecer novas interpretações. Resumos de dissertações e teses: publicação de resumos de partes ou de teses e dissertações apresentadas em programas de pós-graduação. Comunicação de pesquisas em andamento: considerações apresentadas em forma de comentários sobre o processo de desenvolvimento e/ou sobre os resultados parciais de pesquisas em desenvolvimento. Relato de viagem: relatório de atividades acadêmico-científico-culturais que envolvem, que podem envolver o ensino, a pesquisa e/ou extensão no Ensino Superior. Os artigos enviados devem ser originais, isto é, não podem ter sido publicados em outro periódico ou coletânea do País e em Português. Caso o autor considere importante a publicação de um artigo não original, deve enviar seus argumentos que deverão ser considerados e aprovados pelo Conselho Editorial da revista. Os professores da Fundação Educacional e Cultural São José deverão encaminhar seus textos diretamente ao Coordenador da Comissão Editorial da revista e/ou à Coordenação do CenPE. Profissionais externos à Instituição deverão encaminhar seus textos para: Centro de Pesquisa e Extensão-CenPE Fundação Educacional e Cultural São José Revista Transformar - Coordenação do CenPE Rua Major Porphírio Henriques, 41 – Centro – Itaperuna – RJ / CEP: 28.300-000 Telefone: (22) 3824-8181 A revista recomenda que, para a publicação de trabalhos: A. Os artigos devem ser enviados em duas vias, digitados em espaço simples, justificados, com margem esquerda e superior de 3cm, margem direita e inferior de 2cm, em formato A4, em fonte Times New Roman no tamanho 12, com no máximo 10 páginas. Deve ser encaminhando, também uma cópia em CD-R, digitado em Word, em texto corrido, sem tabulações e com “enter” (retorno) apenas ao final de cada parágrafo. O nome do arquivo deve ser o nome do autor, ex.: JoseMoreira.doc. No CD-R deve constar somente o material a ser publicado. B. Cada trabalho deverá incluir: Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 140 * Página de rosto: a primeira página de cada texto deverá indicar o título (Fonte 14, em itálico), o nome completo do(s) autor(es) e titulação. * Resumo: com, no máximo, 250 palavras, fonte 10. O resumo deverá especificar o objetivo, uma breve exposição da metodologia, as descobertas principais e as conclusões. * Palavras-chave: após o resumo, na mesma folha, contendo de 3 a 5 palavras que descrevam o conteúdo do trabalho. * Endereço completo: o endereço completo com código postal deverá estar impresso numa segunda folha. Pede-se que conste também o telefone, o número do fax e o e-mail do autor. * Texto: deve iniciar na terceira folha. Os artigos devem obedecer, em linhas gerais, à seguinte seqüência: introdução, objetivos, material e métodos, resultados, discussão, conclusão e referências. Digitados em Fonte 12 para corpo do texto, Fonte 11 para citações acima de 3 linhas e Fonte 10 para notas de rodapé. * Notas: As notas deverão ser somente de rodapé, os textos enviados com nota de final de texto serão desconsiderados para publicação. C. O texto pode conter ilustrações, gráficos, desenhos, quadros, tabelas e outros. As ilustrações (fotos e desenhos) devem vir digitalizadas e arquivadas em disquete ou CD-R, com indicação no texto do local onde serão inseridas e as devidas fontes de referência. Todo o material ilustrativo deverá ser, preferencialmente, em preto e branco. A quantidade e o tamanho das ilustrações devem ser suficientes para facilitar a compreensão do texto, por isso deve-se evitar o uso de figuras muito grandes (máximo de 17x7cm). Compete ao(s) autor(es) obter(em) permissão para reproduzir ilustrações, tabelas, e outros, retirados de outras publicações. Essa permissão deve ser anexada ao Artigo. D. Os títulos e legendas devem constar imediatamente abaixo das figuras e imediatamente acima dos quadros e tabelas. Todos deverão estar enumerados consecutivamente em arábico. 2. Condições para publicação Todos os textos serão submetidos à Comissão Editorial Executiva e, quando necessário, ao Conselho Editorial. Estes trabalhos serão encaminhados a cada uma das respectivas instâncias sem identificação de autoria. Os textos enviados para esta revista, além dos inéditos, não poderão ser submetidos a outras publicações. Os originais e disquetes não serão devolvidos. Um termo de cessão de direitos de publicação, em duas vias, deverá acompanhar os originais, contendo a assinatura (do)s autor(es). Os procedimentos adotados para aceitação definitiva para publicação são: a) seleção dos artigos de acordo com os critérios de relevância e adequação de diretrizes editoriais. A Comissão Editorial Executiva da Revista constitui instância responsável por esta etapa; b) parecer de qualidade a ser elaborado pela Comissão Editorial da Revista e pelo Conselho Editorial Executivo, quando for o caso; Os pareceres comportam três possibilidades: 1. aceitação integral; 2. aceitação com alterações; e Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 141 3. recusa integral. Em qualquer caso o autor receberá cópia do parecer. 3. Notas de Rodapé e Citações A Revista Transformar recomenda o seguinte: a) utilizar em notas de rodapé somente as explicações necessárias ao esclarecimento de algum tópico do texto; b) as citações referenciais não devem aparecer em notas de rodapé, mas sim no corpo do texto, logo após o trecho citado. Devem vir em parágrafo específico quando ultrapassar 3 linhas, com Fonte no tamanho 11. 4. Referências A lista de referências deve estar em ordem alfabética e de acordo com a NBR, da ABNT, em vigência. Transformar, Itaperuna, n.5, 2008. 142