EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NATURAIS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL NAS ESCOLAS DE TEMPO INTEGRAL EM GOIÂNIA: COMPREENDER A REALIDADE E (RE)PENSAR A PRÁTICA DE ENSINO Sandra Valéria Limonta1 Beverly Batista de Morais2 RESUMO: A pesquisa objetiva investigar as relações entre a melhoria da qualidade da educação em Ciências Naturais e a permanência em tempo integral da criança dos anos iniciais do Ensino Fundamental na escola. Parte-se da hipótese de que é necessária a reorganização do trabalho pedagógico na escola de tempo integral diante do redimensionamento do tempo, do espaço e do currículo que esta proposta implica. Pretende-se identificar como esta reorganização do trabalho pedagógico tem acontecido nas escolas de tempo integral das redes estadual e municipal em Goiânia e como tal reorganização implica na melhoria da qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem das Ciências Naturais. Propõe-se a realização de uma pesquisa qualitativa, tomandose como metodologia a pesquisa-ação colaborativa. Pretende-se apreender, em parceria com os professores, como tem se dado a organização do trabalho pedagógico e realizar estudos e construção de materiais didáticos e práticas de ensino que venham a contribuir para a educação em Ciências Naturais nestas escolas. PALAVRAS-CHAVE: Educação integral; Escola de tempo integral; Educação em Ciências Naturais nos anos iniciais; Prática de ensino. Objetivos e metodologia da pesquisa O objetivo maior desta pesquisa, iniciada em maio deste ano, é perceber as relações entre a melhoria da qualidade da educação e a permanência em tempo integral da criança dos anos iniciais na escola, abrindo caminhos, a partir daí, para estudos e pesquisas que contribuam na organização do trabalho pedagógico, na implementação de práticas pedagógicas inovadoras e na criação de materiais didáticos para a educação em Ciências Naturais. 1 Doutora em Educação; professora da FE-UFG, na área de Ensino de Ciências Naturais nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação Infantil; pesquisadora do Núcleo de Formação de Professores (NUFOP) da FE-UFG. E-mail: [email protected] 2 Graduanda do curso de Pedagogia da FE-UFG; bolsista do Programa PROLICEN; monitora do Núcleo de Formação de Professores (NUFOP). E-mail:[email protected] 1 Pretende-se também analisar as concepções de educação integral e escola de tempo integral que têm sido discutidas atualmente na literatura educacional, bem como as concepções apresentadas nas propostas de escola de tempo integral da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia e da Secretaria Estadual de Educação de Goiás. Além disso, a pesquisa busca levantar e analisar dados junto às escolas de tempo integral em Goiânia, destacando: a) O perfil dos professores dos anos iniciais que estão nas escolas de tempo integral: formação, vínculo, carga horária de trabalho, expectativas quanto à escola de tempo integral e suas concepções de ensino e aprendizagem de Ciências Naturais); b) como as escolas de tempo integral têm organizado o trabalho pedagógico; c) fomentar em colaboração com os professores das escolas estudos e pesquisas sobre educação integral, escola de tempo integral e educação em Ciências Naturais, visando a produção científica e de materiais didático-pedagógicos. A metodologia adotada é a pesquisa-ação colaborativa, buscando encaminhar a pesquisa a partir da proposta apresentada por Pimenta (2005 e 2008), e de acordo com os princípios epistemológicos e metodológicos da pesquisa-ação delineados por Thiollent (1997 e 2008) e da pesquisa-ação crítica proposta por Carr e Kemmis (1988). A opção por esta metodologia parte, em princípio, da possibilidade/necessidade levantada por Pimenta (2005) de que a universidade faça pesquisas com os professores nos contextos escolares e não sobre eles. A pesquisa-ação colaborativa proposta por Pimenta (2005 e 2008) realiza a síntese entre a pesquisa-ação e a pesquisa-ação crítica ao transformar os participantes da pesquisa em realizadores não só do processo de transformação da realidade, mas do próprio processo da pesquisa, ou seja, em pesquisadores. Para Pimenta (2005) encontra-se aí um caminho possível para que a pesquisa efetivamente se configure como princípio cognitivo e formativo da docência. Princípio cognitivo porque é processo de compreensão da realidade e princípio formativo porque incentiva à construção coletiva de saberes e a busca de alternativas para a ação, que por sua vez são alimentadas pelo conhecimento teórico e comprometidas com a função social da escola de democratização da cultura e da ciência. Reflexões iniciais sobre o ensino de Ciências Naturais na escola de tempo integral em Goiânia A escola fundamental tem assumido, nos últimos anos, responsabilidades e compromissos sociais que ultrapassam em grande medida sua tradicional função social de escolarização básica, ou seja, alfabetizar e iniciar as crianças no universo cultural, particularmente no das ciências e das artes. Esta ampliação das funções e tarefas escolares trouxe em seu bojo a necessidade de estender o tempo de permanência da criança na escola, há muito discutida, mas efetivamente prevista como 2 política pública nacional a partir da década de 90 no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/1990; na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9394/1996 e reafirmada no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 10.172/2001. Entende-se que a educação científica da criança muito se beneficiaria da ampliação da jornada escolar, pois no currículo da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, esse campo do conhecimento ocupa pouco espaço. A educação científica na infância é ainda um subcampo menor de pesquisa, no interior do campo maior das investigações sobre educação em Ciências. Embora estas ciências (Biologia, Física, Química e Geociências) estejam presentes nos currículos escolares há mais de um século em nosso país, as questões referentes aos processos de ensino e aprendizagem na infância são interesses recentes de pesquisadores da área. Um dos desafios das pesquisas sobre o ensino de Ciências Naturais é encontrar relações entre os conteúdos e as práticas pedagógicas que permitam uma formação científica consistente, crítica, ética e criativa, cujas bases serão lançadas ainda na infância. Se a educação escolar carrega as contradições e desafios impostos pela sociedade no atual momento histórico, é fundamental que o ensino de Ciências Naturais seja objeto específico de investigação científica, uma vez que se pretende formar cientificamente crianças e jovens que se responsabilizarão, no futuro, pelos avanços da ciência e da tecnologia ao mesmo tempo em que precisarão conviver socialmente e preservar/recuperar o meio ambiente (MALDANER, ZANON e AUTH, 2007). As demandas e pressões sociais por mais e melhor oferta de escolarização básica provenientes de uma sociedade urbana portadora de novas necessidades econômicas, culturais e sociais e o aumento da violência levaram as redes públicas estaduais e municipais de todo o país à ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola. Entende-se que tal ampliação se deu desprovida de uma discussão mais ampla sobre as concepções de educação que servem de base ao projeto da escola de tempo integral, bem como não foram equacionadas quais mudanças estruturais e pedagógicas são necessárias. Atualmente, Goiânia possui 26 escolas públicas de Ensino Fundamental de tempo integral, 19 municipais, que atendem mais de 3 mil alunos e 7 estaduais, que funcionam por um período que vai de 7 a 10 horas diárias. O estado de Goiás conta com cerca de 77 escolas estaduais de Ensino Fundamental funcionando em tempo integral, atendendo cerca de 18 mil estudantes. Tais números indiciam uma tendência gradual de ampliação do tempo de permanência na escola (BARRA, 2008; SANTOS, 2009). A implementação real (e aparentemente irreversível) da escola de tempo integral é uma oportunidade única para uma nova discussão a respeito da educação em Ciências Naturais e tantas outras inquietações que historicamente têm sido objeto de reflexões e pesquisas: a função social da escola pública, os sentidos da educação escolar, as concepções de infância e juventude, os 3 currículos escolares, a formação de professores, a organização do trabalho pedagógico, a avaliação, entre outras. A pesquisa foi aprovada pelo Conselho Diretor da Faculdade de Educação da UFG em 23 de março deste ano e encontra-se registrada no Sistema de Acompanhamento de Projetos de Pesquisa sob o número 34036. Nos meses de maio e junho do primeiro semestre deste ano foi realizado levantamento e análise de material bibliográfico a respeito das temáticas educação integral, escola de tempo integral, ensino de Ciências Naturais. Procedeu-se também ao levantamento documental da Proposta Político-Pedagógica das Escolas Municipais de Tempo Integral da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia (2008); do Projeto Escola de Tempo Integral: espaço público para a construção da cidadania, da Secretaria Estadual de Educação de Goiás (2007); da Portaria Normativa Interministerial n. 17, de 24 de abril de 2007, que institui o Programa Mais Educação, que visa fomentar a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades sócio-educativas no contraturno escolar; de projetos político-pedagógicos das escolas municipais e estaduais de tempo integral de Goiânia (até o momento foram levantados 4 projetos). Neste momento da pesquisa realiza-se a análise dos projetos das secretarias municipal e estadual e a aproximação do campo de pesquisa, delimitado em seis escolas municipais e duas estaduais, para a apresentação do projeto e sua metodologia e coleta de dados, por meio de questionário, junto aos professores que estão atuando nestas instituições, objetivando identificar o perfil profissional dos professores dos anos iniciais, sua formação, vínculo, carga horária de trabalho, expectativas quanto à escola de tempo integral e concepções de ensino e aprendizagem de Ciências Naturais. Os resultados da análise preliminar dos projetos Proposta Político-Pedagógica das Escolas Municipais de Tempo Integral da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia e Projeto Escola de Tempo Integral: espaço público para a construção da cidadania, da Secretaria Estadual de Educação de Goiás, apontam para três aspectos fundamentais que são convergentes nas duas propostas: 1) Não foi possível identificar de maneira clara, qual a concepção teórico-epistemológica de educação/formação que norteia o trabalho pedagógico na escola de tempo integral que, entende-se, é a premissa a partir da qual as ações educativas da escola deverão se organizar. 2) Não há um delineamento objetivo no que se refere às estratégias de ampliação, construção, reforma ou modificação do espaço físico e da infra-estrutura das escolas. 3) A não percepção da relação fundamental entre tempo, espaço físico/condições materiais adequadas e a organização do trabalho pedagógico na escola de tempo integral. Os primeiros resultados da pesquisa apontam que as questões a serem debatidas ultrapassam em grande medida a dimensão da ampliação da jornada escolar. Estamos diante de um 4 movimento teórico e pedagógico que ressignifica a função social da educação e a instituição escolar: a educação integral na escola de tempo integral. Só faz sentido pensar na implantação de escolas de tempo integral se for considerada uma concepção de educação que represente uma ampliação das oportunidades e situações que promovam aprendizagens significativas e emancipadoras. O horário expandido é antes uma consequência e não razão em si mesmo do projeto das escolas de tempo integral. A escola é de tempo integral porque é necessário mais tempo, mais espaço, mais e melhores condições materiais, para que a escolarização seja ampliada e se atinja níveis cada vez mais elevados de formação (biológica, psicológica, social, cultural, científica, artística, política...). Sem esta perspectiva, corre-se o risco de preencher o tempo do contraturno num sentido utilitarista: realização de deveres escolares, aulas de reforço, repetição dos conteúdos e atividades do turno anterior... Ou o que é pior, preencher o tempo com atividades consideradas lúdicas, porém descontextualizadas da vida dos alunos, sem significado formativo, justamente porque não se tem claro qual é o projeto educativo que deverá ser concretizado na escola de tempo integral. Quanto ao espaço físico e à infra-estrutura necessária, nos documentos há indicativos para a (re)organização do trabalho pedagógico a partir da (re)organização dos espaços e materiais já disponíveis, ainda que se reconheça a relação que há entre as condições objetivas da escola e a ampliação da jornada escolar. Barra (2008) aponta que a necessidade de ampliação, construção, reforma ou modificação do espaço físico das escolas de tempo integral é subssumida pela idéia de “(...) aproveitamento total da capacidade física das unidades escolares” (GOIÁS, SEE, 2007). O espaço e a infra-estrutura necessários são pensados num sentido de “adequação” ou “estímulo” à permanência do aluno na escola, mas não se estabelece uma relação entre as condições materiais da escola e a ampliação da jornada no sentido formativo, ou seja, as possíveis e desejáveis alterações no espaço físico da escola não possuem um sentido educativo. A adequação da estrutura deverá atender ao número de alunos matriculados, porém, requer a existência de espaços que facilitem a convivência dos mesmos (...) locais abertos, amplos, para além das salas de aula. É importante destacar o relevante papel da quadra de esportes, das pequenas praças gramadas, das praças maiores com jogos de xadrez, damas, salas e corredores amplos e bem iluminados, refeitório espaçoso (...) a área externa e interna deverão facilitar e incentivar a convivência dos alunos (GOIÂNIA, SME, 2008, p. 9). As análises realizadas até o momento permitem algumas considerações preliminares sobre a relação tempo, espaço e organização do trabalho pedagógico. Num primeiro momento observa-se que a estrutura física e as condições materiais da escola impactam de forma muito significativa o trabalho pedagógico na escola de tempo integral, aparentemente mais do que numa escola de tempo parcial/meio período. 5 Nos projetos político-pedagógicos há uma previsão da necessidade de ampliação, construção, reforma ou adequação do espaço físico e da aquisição de materiais de consumo, porém, o cotidiano escolar, conforme relatam Barros (2008) e Santos (2009), é perpassado pela adaptação do trabalho pedagógico ao espaço e materiais já existentes, o que compromete, de início, a idéia de formação/educação integral que, no nosso entendimento, é (deveria ser) o eixo norteador da ampliação do tempo de escola. Esse comprometimento acaba por interferir na rotina de trabalho dos professores e demais agentes educacionais que atuam nas escolas. A ampliação do tempo de permanência e o maior número de profissionais ali envolvidos, deveria representar um ganho significativo na qualidade dos processos de ensino-aprendizagem, no entanto, nota-se uma sobrecarga de trabalho cuja origem parece estar na necessidade de adaptação do trabalho pedagógico às condições materiais inapropriadas para sua realização. Santos (2009), ao analisar o cotidiano de uma escola de tempo integral da rede municipal de Goiânia, aponta que o improviso e o assistencialismo tem se constituído numa espécie de “proposta pedagógica” nessas instituições, o que as observações preliminares realizadas nesta pesquisa tendem a corroborar. O modelo de escola integral que tem sido implementado no estado de Goiás, antes de se constituir como uma utopia, no sentido do materialismo histórico, capaz de transformar a realidade da escola pública, revela que as fragilidades históricas dessa instituição estão distantes de ser totalmente compreendidas e minimamente resolvidas. No entanto, a pesquisa em andamento apresentada brevemente aqui, sugere que a ampliação da jornada escolar, ao permitir novos olhares sobre velhos problemas da escola pública brasileira, aponta também para novas perspectivas na organização do trabalho pedagógico, o que em muito contribuirá, acredita-se, para a melhoria da qualidade do ensino de Ciências Naturais. REFERÊNCIAS BARRA, Valdeniza Maria. Tempo e espaço nas escolas de tempo integral em Goiânia: faces da equação de um projeto educacional contemporâneo. Projeto de pesquisa. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação, 2008. (mimeo). BARRA, Valdeniza Maria; REGHIM, Maria Fernanda Vanoni; COSTA, Lívia Telles. Mais (+) alunos e professores, menos (-) escolas, mais (+) salas de aulas, (-) menos custos: (=) imagens da equação de um projeto educacional contemporâneo. Relatório de pesquisa. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UEG, 2008. BARROS, Kátia O. de. A escola de tempo integral como política pública educacional: a experiência de Goianésia-GO. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação, UnB, Brasília/DF, 2008. 6 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/1990. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9394/1996. BRASIL. Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 10.172/2001. CARR, Wilfred; KEMMIS, Stephen. Teoria crítica de la enseñanza. Barcelona: Martinez Roca, 1988. GOIÁS. Secretaria Estadual de Educação. Escola de Tempo Integral: espaço público para a construção da cidadania – versão preliminar, 2007. GONÇALVES, Antonio Sérgio e PETRIS, Liliane. Escola de tempo integral. A construção de uma proposta. Publicação elaborada para a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP), Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp), 2006. MALDANER, Otavio Aloisio; ZANON, Lenir Basso e AUTH, Milton Antonio. Pesquisa sobre educação em Ciências e formação de professores. Em: SANTOS, Flávia Maria Teixeira e GRECA, Ileana Maria. (Orgs.). A pesquisa em ensino de Ciências no Brasil e suas metodologias. Ijuí: Unijuí, 2007. PIMENTA, Selma Garrido. Pesquisa-ação crítico-colaborativa: construindo seu significado a partir de experiências com a formação docente. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n.3, p. 521-539, set./dez. 2005. PIMENTA, Selma Garrido; FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pesquisa em educação. Possibilidades investigativas/formativas da pesquisa-ação. São Paulo: Loyola, 2008. (Vol. 1 e 2). SANTOS, Soraya Vieira dos. A ampliação do tempo escolar em propostas de educação pública integral. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, UFG, 2009. THIOLLENT, Michel. Pesquisa-ação nas organizações. São Paulo: Atlas, 1997. ______. Metodologia da pesquisa-ação. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2008. 7