FHC: “Não esqueçam o que escrevi”
Agnes Cruz de Souza (UNESP)*
Rogério de Souza Silva (UNICAMP)**
Os oitenta anos do ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso,
completados no dia 18 de junho de 2011, talvez seja um momento oportuno para uma breve
reflexão das trajetórias política e intelectual desse novo octogenário. Para esta empreitada,
recorreremos à “suposta” frase dita por Cardoso em 1993 num jantar com empresários quando
ocupava o cargo de Ministro da Fazenda do então presidente Itamar Franco: “esqueçam o que
escrevi”.
É importante ressaltar que a frase é uma “suposição” de terceiros segundo FHC, que
nega em qualquer momento tê-la professado. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo do
dia 19 de junho de 2011 Cardoso ressalva: “nunca ninguém afirmou que tenha ouvido essa
frase; é maldade pura”. De qualquer maneira, a frase “esqueçam o que escrevi” permeia o
imaginário político brasileiro e é utilizada por diferentes críticos, intelectuais e políticos para
demonstrar suposta incoerência e contradições presentes na dinâmica FHC intelectual e FHC
político, e vice-versa.
As contradições entre obra e ação são inerentes ao processo relacional entre teoria e
prática, especialmente quando analisamos a aplicabilidade de teses e hipóteses no campo
político. Dessa forma, salientar as antinomias seria mero pleonasmo, ou seja, chover no
molhado. O que nos interessa discutir é a aproximação entre a produção teórica de Cardoso e
a sua prática política.
Destarte, como a proposta deste texto é a apresentação e discussão das facetas
intelectual e política de Cardoso, cabe uma breve descrição de sua formação e atividade
parlamentar. FHC cursou Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política de São
* Mestre em Sociologia (UNESP) e professora universitária e do ensino médio.
** Doutorando em Sociologia (UNICAMP) e professor da UNICAMP.
*** Escrito em junho de 2011.
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Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 2,
junho de 2011. www.faceq.edu.br/regs
Paulo, realizou doutorado em Sociologia na USP e, nesta mesma instituição, iniciou sua
carreira acadêmica como Professor Assistente. Afastado da Universidade de São Paulo em
1969 devido à aposentadoria compulsória determinada pelos militares, Cardoso fundou, junto
com outros professores, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) – que
rapidamente transformou-se em lócus da intelligentsia brasileira.
No âmbito da política, destacou-se como opositor ao regime militar (1964-1985).
Participou, como um dos principais articuladores, do processo de negociação resultante da
volta à democracia no país. Foi membro do MDB, do PMDB e fundador do PSDB. Foi
senador pelo Estado de São Paulo (1983-1992) e presidente da República por dois mandatos
(1995-2001). Atualmente é presidente de honra do PSDB.
Quando analisamos a sua produção intelectual, verificamos que esta foi tão intensa e
ativa quanto a sua carreira política. Após concluir doutorado sobre as idiossincrasias da
escravidão no sul do país (“Capitalismo e escravidão no Brasil meridional” - 1962), Cardoso,
orientado por Florestan Fernandes, estuda a dinâmica do empresariado paulista (“Empresário
industrial e desenvolvimento econômico no Brasil” – 1964) e desenvolve tese que o
acompanhará por sua trajetória: a burguesia nacional não poderia ser vista como aliada
estratégica dos trabalhadores na transformação das condições sócio-econômicas e políticas do
Brasil, pois já estava ligada ao capital internacional (“imperialismo”), “satisfeita com a
condição de sócia menor do capitalismo ocidental”.
No ano de 1967, em parceria com o argentino Enzo Falleto, Cardoso lança
“Desenvolvimento e dependência na América Latina”, relatório que dará ao autor a fama de
analista perspicaz e inovador da sociedade. Nesta obra, o sociólogo uspiano discorda das teses
catastrofistas sobre o desenvolvimento econômico e político dos países da América Latina.
Estudiosos como André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Rui Mauro Marini diziam que,
nações como a brasileira, estavam fadadas à estagnação e só se desenvolveriam sócioeconomicamente com a imediata implantação de regime político democrático e,
posteriormente, com a realização de revolução social.
Utilizando-se de conceitos como desenvolvimento dependente e associado, o trabalho
de Cardoso e Faletto mostrará que regimes autoritários, naquele momento histórico, não
seriam sinônimos de estagnação econômica. A realidade do caso brasileiro servirá de exemplo
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para ilustrar tal tese: entre 1967 e 1974, o Brasil obteve taxas significativas de crescimento:
mais de 11% ao ano. No entanto, esse desenvolvimento, destaca os autores do relatório, não
eliminaria a condição de dependência dos países latinoamericanos e beneficiaria, intramuros,
especialmente àqueles grupos econômicos associados ao capital internacional.
Ou seja, após a “internacionalização do mercado interno” (entrada das multinacionais)
e da nova divisão internacional do trabalho, o que possibilitou a países, antes exportadores
agrícolas, a situação de dependência não colidiria “mais com o desenvolvimento das
economias dependentes”.
O que é importante destacar é que esse desenvolvimento, no entanto, não resultará em
promoção de maior justiça social:
Evidentemente, esse tipo de industrialização vai intensificar o padrão
de sistema social excludente que caracteriza o capitalismo nas
economias periféricas, mas nem por isso deixará de converter-se em
uma possibilidade de desenvolvimento, ou seja, um desenvolvimento
em termos de acumulação e transformação da estrutura produtiva para
níveis de complexidade crescente. Esta é a forma que o capitalismo
industrial adota no contexto de uma situação de dependência.
(CARDOSO E FALLETO, 1969, p.160)
Com isso, o beneficiário desse processo estaria situado nas empresas estatais (em
especial no ramo da siderurgia), os conglomerados de empresas multinacionais e as empresas
nacionais ligadas aos dois setores.
Ainda, segundo Cardoso, outro grupo se beneficiaria do desenvolvimento dependente
e associado: o setor público. Como as noções de competência e eficácia não teriam penetrado
no âmago do Estado brasileiro, e o regime político de exceção contribuiria para uma total falta
de transparência e prestação de contas por parte das agências governamentais, instaurou-se no
setor público do país aquilo que Cardoso chamará no livro “Autoritarismo e
democracia” (1975) de “anéis burocráticos”, ou seja, empresas estatais que viveriam e
atuariam em torno de si. Dessa maneira, a preocupação central não seria o desenvolvimento
do país, mas a manutenção e justificação da existência de tal serviço público. Neste ponto, o
autor critica o estatismo da “burguesia de Estado”, ou, em suas palavras, "a burocracia
econômica herdeira do autoritarismo político e filha dileta dos monopólios oficiais”.
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Analisando brevemente os dois mandatos do ex-presidente FHC, e não
desconsiderando as particularidades do campo político, enxergamos a corroboração de
algumas teses cardosianas desenvolvidas nos anos sessenta e setenta dentre elas: o
aprofundamento da abertura econômica e a conseqüente falência da burguesia nacional
retrógada e acomodada praticadas no início do seu primeiro mandato poderiam justificar-se a
partir da leitura de “Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil”; já a
flexibilização das leis trabalhistas, as privatizações e as reformas nas regras previdenciárias
desenvolvidas durante todo o seu governo encontrariam respaldo teórico nos livros
“Desenvolvimento de dependência na América Latina” e “Autoritarismo e democracia”.
Distante da polêmica do “esqueçam o que escrevi”, aos que ainda afirmam que
Fernando Henrique Cardoso, ao assumir a presidência em 1º de janeiro de 1995, esqueceu os
seus escritos, é recomendado perpassarem por algumas das obras do autor (inclusive as
referenciadas neste texto) para que possam identificar a presença e uma possível aproximação
entre teoria e prática. Ressaltamos com isso que, a incoerência talvez não esteja entre a obra e
a ação política do sociólogo e ex-presidente, mas entre aqueles que não se debruçaram sobre
sua produção, criando uma perspectiva e expectativa que não se realizaram.
Referências:
CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no
Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
____; ENZO, Faletto. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de
interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1970.
____. O modelo político brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
____. Autoritarismo e democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
SILVA, Fernando de Barros e. O provocador cordial. Folha de São Paulo, 19 de junho de
2011 (Caderno Ilustríssima, p. 4-5).
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