A mente humana e a evolução memética
Por Sonia Montaño
Daniel Dennett, filósofo cognitivista norte-americano e conferencista do Fronteiras
do Pensamento da noite de ontem, dia 8 de novembro, iniciou sua conferência
perguntando “Como é possível a mente?”. Para responder, partiu de René Descartes
e seu conceito de alma humana imortal até chegar à resposta naturalista da chamada
alma informacional, a qual o próprio defende.
A alma imortal de Descartes
René Descartes, cientista e filósofo do século XVII, afirmou que a mente humana é
diferente da animal. Animais seriam autômatos, segundo ele. Por outro lado, nós,
seres humanos, teríamos uma alma imortal, a qual chamou de “coisa pensante”, o
que nos torna mais competentes que os animais. Essa resposta de Descartes casa bem
com a doutrina cristã da alma imortal. A alma imortal nos daria os poderes
necessários para a moralidade. Os animais seriam amorais. “Vou afirmar que
Descartes estava quase certo”, alertou o conferencista. Para ele, no discurso do
método, Descartes achava que uma máquina nunca iria poder compreender uma
conversa, para isso era necessário uma alma imortal. Segundo o cientista, o uso da
linguagem era a manifestação máxima da inteligência.
Alma informacional
Dennett lembrou uma entrevista que concedeu a um jornal italiano, publicada com a
manchete Sim, temos uma alma, mas é feita de muitos robôs. “Essa é minha
posição. Sim, temos uma alma, à diferença dos animais, mas nossa alma não é
imaterial, é feita de robôs”, explicou o filósofo.
A alma informacional evoluiria em uma lógica própria, diferente da criação.
“Geralmente partimos da lógica da criação, de um ser inteligente que cria outra
coisa, nunca se vê um vaso criando um oleiro ou uma ferradura fazendo um ferreiro,
é sempre o contrário”, explicou.
A inversão de Darwin e Turing
Para fazer uma máquina perfeita e bela não é necessário saber como fabricá-la. A
ignorância absoluta é o artífice. Há nessa lógica uma estranha inversão do raciocínio
que parece dizer que a ignorância absoluta é a sabedoria absoluta. A teoria de
Darwin diz que a criação das maravilhas da natureza foi feita por um processo que
não tem inteligência, ele é absolutamente ignorante.
Alan Turing, matemático britânico, um dos pioneiros da computação, foi outro a
confirmar a inversão darwiniana. Antes dos computadores, quem fazia o que eles
fazem hoje eram os humanos, que precisavam entender de aritmética para fazer
cálculos. Turing se deu conta de que não era preciso alguém entender aritmética,
não tinha que perceber ou entender as razões para fazer cálculos, e criou um dos
primeiros projetos de computador. “Os dois reconheceram que é possível ter
competência sem compreensão, e esse é agora meu slogan. Pensem se não é uma
inversão estranha: por que enviamos os nossos filhos à escola e fazemos
universidades? Para sermos competentes. Desprezamos a decoreba porque isso não
dá compreensão. E eles nos estão dizendo que você não precisa da compreensão,
pode ser competente sem ela. Um computador pode ser competente sem
compreensão”, insiste o filósofo.
Para Darwin, a evolução não tem qualquer compreensão. A compreensão seria o
efeito e não a causa. O filósofo mostrou a imagem de um castelo feito de cupins e do
templo da Sagrada Família de Antoni Gaudí, mostrando as semelhanças na aparência
entre ambos. Os cupins não sabem o que estão fazendo, fazem roboticamente, não
há líder nem projeto entre eles. E Gaudí, arquiteto genial, líder da equipe de
construção, projetou até os mínimos detalhes da catedral antes de ser construí-la.
No caso de Gaudí, a compreensão e o projeto vêm antes da obra.
A lógica da evolução
A evolução é competente sem compreensão. Ela tem suas razões, mas as razões não
são representadas. Dennett comparou a lógica da evolução com o princípio dos livros
de espionagem e a lógica da necessidade de saber. Os agentes só recebem as
informações que precisam para fazer a tarefa, assim, se forem pegos e torturados,
não terão muito a revelar ao inimigo. A evolução é igual: não significa que não há
razões, só que não é necessário compreendê-las. “Os cérebros humanos se parecem
muito à colônia de cupim. Ele é composto de uma grande quantidade de pequenos
trabalhadores sem compreensão e sem chefe, sem projetista inteligente”, defende o
cognitivista. “Como o cérebro humano pode trabalhar assim?”, perguntou e também
respondeu: “Fazendo download, baixando máquinas virtuais que dão superpoderes e
novos níveis de organização”.
Para explicar esses downloads em máquinas virtuais e mostrar como o software
evolui, o filósofo apresentou cinco grandes momentos da evolução, momentos de
passagem, onde surgiu algo novo. Há 2,5 bilhões de anos só tínhamos células
procariotas, células muito simples. Um procarioto invadiu outro ou o comeu. O
resultado disso tinha poderes que nem um nem outro tinha por conta própria. O
mesmo aconteceu quando a linguagem e a cultura humana evoluíram e permitiram
uma nova espécie de mente, repleta de cultura.
Palavras, genes e memes
Não foi fácil definir de que línguas as nossas línguas evoluíram, porque há muitas
palavras no português que vêm do inglês, do alemão, da língua dos esquimós. É difícil
estabelecer a linhagem de uma língua porque muitas outras contribuíram para a sua
formação. “Palavras e genes desempenham papéis muito semelhantes na história da
evolução. E isso fica claro na ideia de ‘meme’ de Richard Dawkins. O meme é um
elemento da cultura que tem uma aptidão e uma história evolutiva como um gene ou
um vírus”, explica Dennett. O vírus é ácido nucleico com atitude, ele não está vivo
mas evolui. O vírus HIV evoluiu mais do que nós evoluímos em nossos genomas desde
que nos separamos dos chimpanzés. O vírus evolui por seleção natural. São entes
autorreplicativos com poderes diferentes de replicação. As palavras são memes que
existem porque podem ser pronunciadas. A repetição não depende da compreensão,
esta pode ser um obstáculo.
As nossas máquinas virtuais
As palavras não foram projetadas por ninguém, elas evoluíram por seleção cultural
natural. Elas são softwares. Cada vez que alguém entra no computador, faz download
de aplicativos do Java sem sabê-lo. “Para entender minha palestra vocês ou ouvem o
intérprete e fazem as palavras dele passarem para sua máquina virtual em português
ou vocês instalaram uma maquina virtual em inglês e podem usá-la diretamente para
seguir o que digo”, explica o professor. Mas como instalamos essas máquinas virtuais?
Por repetição. Depois de repetir muitas vezes, a criança aprende a palavra, ela se
instala no cérebro, replica-se, e faz cópia de si mesma como um vírus.
A compreensão parcial é a chave da transmissão da cultura, da língua e da
linguagem. Os memes regem o cérebro e mudam sua arquitetura funcional. Nós
representamos as nossas razões pela língua e pela linguagem e, assim, obtemos
nossas capacidades para a moralidade. Essa tendência que temos de interpretar tudo
de cima para abaixo, a partir de um plano pensado e projetado, é uma visão
antropocêntrica e anacrônica, a vida não evolui assim. “No início não era o verbo ou
a palavra, as palavras são uma invenção muito recente de um processo de seleção
natural. Existe competência sem compreensão”, finalizou Dennett.
Desintoxicação da religião
O filósofo respondeu a diversas perguntas da plateia sobre questões como livrearbítrio, relações entre neurociências e informática, memes e sua parceria com os
autores ateístas Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Em relação a esta última
questão, Daniel Dennett assinalou a importância de criticar a religião e falar dela
com muita franqueza. “Toda e qualquer religião tem grupos tóxicos, violentos, que
podem ser racistas, ou maltratar as crianças, ou as mulheres. Cada religião tem que
fazer sua limpeza interna, não serão os muçulmanos que transformarão os católicos.
Com a crítica podemos ajudar as religiões a merecerem o lugar de honra que têm no
mundo”. O conferencista propôs que haja formação em religiões em todas as escolas,
públicas e privadas, com o intuito de narrar fatos sobre as religiões universais. “Se a
religião depende da ignorância de seus membros, não merece sobreviver”, conclui
Dennett, para dar início à sessão de autógrafos.
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