CONVERSA PARA BOI DORMIR Enquanto isso, no restaurante sofisticado da rua mais chique da cidade mais próspera, o jovem casal saboreia, entre sussurros e gemidos baixos de prazer, o filé especialmente maturado, especialidade da casa, conforme o garçom lhes havia explicado. A razão fazia jus ao ouvido. Boi branco – Como vai preto? Boi preto – Como vai branco? O malhado – Como vai preto e branco? Boi preto – Como vai preto e branco? Boi branco – Como vai branco e preto? O malhado – Bem, ou melhor, duplamente bem. Mas por aqui não existem muitos espelhos. Boi branco – De fato. Conhece algum, preto? Boi preto – Nada, branco. O malhado – Nada, branco e preto! De qualquer forma, um só espelho não é suficiente. Boi preto – De fato. Para mim um seria suficiente, hem!, branco? Boi branco – Certeza, para mim, eu não tenho. Mas para ti só resta o mistério. O malhado – O mistério, sim! Como me sei sem ver? Sinto tão pouco com esta capa dura e estes pés cascudos. Boi branco – Gostaria olhar de volta, mas não parece suficiente. Talvez seja melhor assim, para não aprender. O que pensa o preto? Boi preto – Como algo que é ausência pode produzir sensações? Para mim o que seria realmente ver-me no espelho? O malhado – O mistério, sim! Como definir malhado? Como saber de algo que é e não é? Boi preto – Eu sou ausência. Sinto-me tão boi como outra coisa qualquer deve sentir-se. O que eu aprenderia se por aqui tivesse um espelho? Boi branco – Eu sou completude. Sinto-me tão boi como outra coisa qualquer deve sentir-se. Aprenderia algo diferente do que sei se por aqui houvesse espelho? O malhado – Eu sou o quê? Como ser ausência e completude ao mesmo tempo? O que aprenderia se por aqui se colocasse um espelho? Boi branco – Aprender sempre pode ser uma experiência interessante, excitante mesmo para um boi. Boi preto – Sei. Talvez, no entanto, a grande excitação esteja em descobrir o mal. O malhado – Bem ou mal se define pela vivência. Mesmo a vida de boi é uma coisa envolta na atmosfera. Mas o ser precisa da consciência. Boi preto – Isso é um problema de verdade. Pelo que se vê ou ouve? Aí há complexidade, diversidade e definições. Assim posso juntar as peças do quebra-cabeça do que sou. Sem espelho. Boi branco – Alheias. Dos humanos e dos bois, e dos outros seres que por aqui vemos. No paladar só o bom e o ruim do capim que rumino. Que opção? Pelo cheiro? Bom ou ruim? Um espelho faria a diferença para a verdade? O malhado - A atmosfera que não pode se separar das coisas já não é atmosfera. Consciência antes de tudo. Antes de tudo a escuridão. Boi branco – Não posso ir além da luz. Boi preto – Aqui estou, mas não sou perscrutável. O malhado – Para os outros sou a metade entrecortada de formas. No espelho, então, devo ver a imagem assim: só pela metade como em tudo. Como pertencer não pertencendo. Mas não! Boi preto – Passe bem boi branco. Boi branco – Passe bem boi preto. O malhado – Uma coisa de consciência externa. Ma sou-o para mim inteiro. De qualquer forma, apesar de ser tão jovem e de nunca ir além dos seis passos possíveis, não existe mistério no que me espera! No rádio, voltando, indo de volta para a solidão do apartamento, a vida toma forma, a existência se realiza no olhar atento das luzes da noite e no som do comercial que estimula os tímpanos: “Venha experimentar uma iguaria rara, o suculento filé de bezerro confinado, maturado especialmente para nosso restaurante”. O ouvido fazia cócegas na razão.