A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA PARA A
COMPREENSÃO DOS PROBLEMAS DE ACESSO AO ENSINO
SUPERIOR PÚBLICO NO BRASIL PELOS GRUPOS SOCIAIS
DESFAVORECIDOS
Autora:
Elizangela Santos de Almeida
SUMÁRIO: 1. Do direito à educação; 2. A importância da antropologia para a pesquisa
dos problemas do processo educacional; 3. Das ações afirmativas e políticas de cotas no
Brasil; 4. Conclusão; 5. Referências.
RESUMO: O presente trabalho pretende analisar o direito fundamental à educação
frente à dificuldade que diversos setores da sociedade, representantes das diversas
culturas, raças e etnias encontram para o acesso ao ensino superior público. Nesse
contexto, torna-se imprescindível a contribuição da antropologia para que, a partir do
conhecimento pleno do desenvolvimento e formação desses diversos grupos, se possa
pensar em um sistema educacional plural capaz de preparar esse público diversificado
para o concorrido ingresso nas universidades públicas. Políticas afirmativas como o
estabelecimento de cotas sociais e raciais nos cursos superiores de universidades
públicas afloram a discussão acerca de igualdade, legalidade, respeito aos princípios
básicos do cidadão dentre outros, fazendo com que a discussão do problema seja
resolvida por quem, do ponto de vista científico-antropológico, é o ator mais
despreparado de todos: o judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; antropologia, ações afirmativas; políticas de cotas.
1. DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Um conceito importante para o assunto em questão diz repeito à procedência
etimológica do termo “educação” que advém de dois vocábulos: “e-ducere” (conduzir
de um lugar para outro) e “e-ducare” (extrair).
Interessa destacar ainda que a educação é um processo de formação geral da
personalidade, pois o educando obtém aptidões, no campo material, espiritual e social.
A esse respeito, Souza, em capítulo de uma de suas obras, ao citar Émile
Durkheim, denomina-a como
a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se
encontram preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e
desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e
morais, reclamados pela sociedade política, nos seu conjunto, e pelo meio
especial a que a criança, particularmente, se destine. (SOUZA, 2010)
Cumpre salientar que o direito à educação precisa ser aprendido como um direito
humano fundamental, porquanto seja uma das dimensões mais importantes da
realização da dignidade da pessoa humana. Não se pode conceber a existência de uma
vida digna sem a garantia institucional e normativa do direito à educação. O mínimo
existencial é o cerne da dignidade da pessoa humana e contrapõe-se ao princípio da
reserva do possível que não deve ser invocado quando aquele estiver em conflito.
Assim, quando se estiver contestando a educação básica, que conglomera o ensino
infantil, fundamental e médio, não abrangendo o ensino superior, o Estado não pode
deixar de atuar com fundamento no princípio da reserva do possível, conforme
interpretação do art. 7º, IV c/c art. 208 da Constituição Federal de 1998 e o art. 21 da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, que versam sobre as garantias mínimas
da educação.
Desse modo, vê-se que o direito à educação corresponde a um direito social
consubstanciado no art. 6º c/c o art. 205 da Constituição Federal de 1998, sendo um
direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
2.
A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA PARA A PESQUISA DOS
PROBLEMAS DO PROCESSO EDUCACIONAL
O direito à educação, como visto, deve ser garantido pelo Estado em todos os
seus níveis. Ocorre que o que se tem visto é que há muitas barreiras para que certas
camadas da população tenham acesso ao nível superior da educação formal,
principalmente nas universidades públicas. No entanto, trata-se de uma questão histórica
no Brasil, boa parte da população, notadamente aqueles de menor poder aquisitivo,
afrodescendentes, indígenas, dentre outros, originariamente não eram público alvo das
universidades públicas. Segundo informa Silva e Rodrigues
Esta questão não pode ser pensada descontextualizada das raízes históricas do
ensino superior no país. No Brasil o ensino superior surgiu de forma pouco
expressiva, durante muitos anos era destinado apenas à elite que possuía
condições econômicas para arcar com os custos desta formação. Mesmo com
o surgimento das primeiras universidades públicas e, portanto, gratuitas este
nível de formação permaneceu, durante anos, relegados aos poucos
privilegiados do país. (SILVA; RODRIGUES, 2012)
Contudo, nos últimos tempos o governo tem se debruçado na tarefa de
desenvolver políticas públicas voltadas à diminuição da dificuldade de acesso ao ensino
superior gratuito por parte desses segmentos sociais desfavorecidos, em razão da
perpetuação dessa exclusão histórica. Vários programas foram desenvolvidos, dentre os
quais, o que tem suscitado maior debate tanto na sociedade como no próprio meio
acadêmico é a chamada política de cotas. Por meio dela tem se estabelecido um número
mínimo de vagas das universidades públicas a ser preenchidas, necessariamente, por
alunos provenientes desses segmentos sociais vítimas da exclusão. No entanto, o maior
problema é que se buscam tão somente a solução para uma situação histórica e
plenamente estabelecida, sem atentar para as causas dessas barreiras.
Nesse ponto, entendemos que não é possível se compreender corretamente as
causas desse processo histórico de exclusão sem estudar a evolução da educação básica
no Brasil partindo-se de uma perspectiva antropológica. É que, segundo o que se tem
afirmado até hoje, a exclusão ou imposição de maiores dificuldades de acesso ao ensino
superior público a essas determinadas camadas sociais, dar-se, principalmente, em razão
de suas condições pessoais, do grupo social ou étnico ou, simplesmente, pela raça a que
pertencem. Nesse aspecto, é de suma importância a associação de antropólogos e
educadores, mesmo que entre esses profissionais ainda se fale, em certas ocasiões, em
uma negação recíproca por conta da visão de que a antropologia trata-se de ciência,
enquanto a educação é tratada como prática. Sobre essa interação entre a antropologia e
a educação, explica Gusmão
Na relação entre antropologia e educação abre-se um espaço para debate,
reflexão e intervenção, que acolhe desde o contexto cultural da
aprendizagem, os efeitos sobre a diferença cultural, racial, étnica e de gênero,
até os sucessos e insucessos do sistema escolar em face de uma ordem social
em mudança. Nesse sentido, como ciência e, em particular, como ciência
aplicada, antropologia e antropólogos estiveram, no passado e no presente,
preocupados com o universo das diferenças e das práticas educativas. Se,
como diz Galli, tais questões fazem convergir os estudos da cultura, no caso
da antropologia, e dos mecanismos educativos, no caso da pedagogia,
possibilitando a existência de uma antropologia da educação - tema e produto
de uma grande conversa do passado -, isto também ocorre no presente, posto
que a antropologia e a educação estabelecem um diálogo, do qual faz parte,
também, o debate teórico e metodológico das chamadas pesquisas educativas,
relacionadas às diversas e diferentes formas de vida que, neste final de
século, estão ainda a desafiar o conhecimento. Em jogo, as singularidades, as
particularidades das sociedades humanas, de seus diferentes grupos em face
da universalidade do social humano e sua complexidade através dos tempos
e, em particular, num mundo que se globaliza. Resta, pois, conhecer um
pouco dessa história. (GUSMÃO, 2012)
De fato, para se compreender as causas de uma política educacional mal
sucedida ou o porquê de determinados grupos sociais possuírem rendimento escolar
diferenciado que os coloca em condição inferior na disputa por uma vaga nas
universidades públicas, é de suma importância a contribuição da antropologia. Questões
como a formação cultural, diversidade étnica, dentre outros, devem ser muito bem
conhecidas pelos educadores para que não se incorra no erro de se impor determinado
modelo de educação formal, em detrimento das qualidades e condições pessoais de cada
individuo, principalmente nos anos iniciais do ensino básico. Desconsiderar a formação
cultural peculiar a cada grupo ou segmento social e impor-lhes uma educação formatada
de acordo com os grupos sociais dominantes tem sido um dos maiores erros do processo
educacional e que tem levado a altos índices de evasão, dificuldade de aprendizagem e
ao final, como conseqüência, a natural dificuldade de ser aprovado nos concorridos
processos de seleção das universidades públicas. Aliás, a própria seleção é apresentada
com formato que desconsidera a diversidade cultural dos alunos egressos do ensino
médio. Nesse sentido, citando apenas um dos aspectos dessa desconsideração do
conhecimento e da cultura do aluno, Vieira, tratando da importância da antropologia da
educação na formação de professores, destaca que
Mas é verdade que o processo de ensino aprendizagem na escola, com as suas
“meta-linguagens”, impõe-se hegemonicamente não só aos alunos de culturas
com pouca proximidade com a escrita e leitura, e, também, às suas famílias,
construindo, não só o insucesso e uma avaliação pela negativa, como também
uma consciência de não ser capaz. Para subir os patamares da escada do saber
escolar, a criança fica, assim no dilema de se transformar em “pouco
escolarizado” com poucas ‘habilitações literárias” ou “reprovado” a via mais
fácil para a sobrevivência do seu próprio eu cultural e tantas vezes no seu
próprio grupo doméstico – fugir da escola para trabalhar a terra – ou, então,
em se deixar e conseguir construir um oblato, o que implica a perda d sua
memória e a adulteração da sua mente cultural. (VIEIRA, 2012)
O fato é que em razão do desconhecimento das individualidades de cada aluno e
dos aspectos antropológicos atinentes aos diversos grupos sociais, étnicos e raciais que
compõem o universo da população escolar do ensino médio, o modelo de educação
formal que se tem trabalhado direciona-se tão somente àqueles setores sociais da
população, que, coincidentemente, são aqueles mais favorecidos por esse processo
educacional ao longo da história do ensino no Brasil.
Assim, se esse processo já é construído, desde o ensino fundamental e médio,
direcionado a excluir determinadas formações culturais e a beneficiar outros, a
conseqüência lógica é que, também, em um concurso vestibular ou outra forma de
seleção qualquer, que tem por base avaliar exatamente esse processo excludente, apenas
aqueles anteriormente beneficiados é que obterão sucesso.
Sendo essa, então, a causa do problema, não basta tão somente flexibilizar a
forma de ingresso no ensino superior público de forma a favorecer os setores sociais
penalizados pelo processo educacional, é preciso muito mais que isso. Urgentemente,
deve-se rever a política educacional das séries iniciais para passar a considerar as
peculiaridades de cada aluno, sua bagagem cultural e seus saberes inatos e abolir o
modelo padrão de educação formal. A chamada educação inclusiva deve ser levada aos
seus verdadeiros termos para que se possa inverter esse processo histórico.
Ocorre que é fato também a necessidade de aprofundamento em estudos
antropológicos para melhor se fundamentar as causas do abismo existente entre os
setores sociais que têm facilidade de acesso às universidades públicas daqueles mais
deficitários. Isso porque a antropologia tem muito a contribuir, mesmo porque o
desenvolvimento de pesquisas educacionais no ambiente acadêmico brasileiro ainda é
tímido e não é capaz de atender a todas as complexidades dos fatos a serem
pesquisados. Por outro lado, questões como a diversidade racial, étnica e cultural no
ambiente escolar sempre estiveram presentes em trabalhos afetos à antropologia, sendo,
portanto, o âmbito da antropologia a via própria para o trato dessas questões. Segundo
Lima
Negros(as), libertos, movimentos negros, mulheres negras, jovens,crianças,
são algumas das categorias de sujeitos que entram na cena escolar
configurando um universo objetiva e subjetivamente distinto do até então
instituído no sistema de ensino público que se caracteriza pela diversidade
cultural dos sujeitos que atuam nas escolas. Entretanto, a diversidade sempre
foi fonte de preocupações antropológicas nos estudos que se realizam aquém
ou além dos muros escolares. A produção antropológica sobre a questão
racial na escola ( o acesso dos negros à educação formal, ou o convívio inter
racial nas escolas) as temáticas negras ( a reprodução de estereótipos e
preconceitos, na formação das representações sobre esses sujeitos nas
práticas escolares e nos conteúdos educacionais); análises das relações
sociais de gênero(representações sobre família), análises cotidiano escolar, da
produção e reprodução simbólica, da produção das diferenças identitárias e
de exclusão social, entre outras questões, sempre tiveram centralidade nas
reflexões dos antropólogos. (...)
É possível afirmar que a história recente dos estudos sobre diversidade
cultural na educação indica que essa ideia geral encobre preocupações mais
específicas e aproximações investigativas que se constituíram desde fora da
escola para o seu interior. (LIMA, 2012)
Portanto, todos os esforços do governo para possibilitar o resgate das
oportunidades de acesso ao ensino superior gratuito aos setores sociais desfavorecidos
pelo sistema são válidos, contudo, é preciso que se invista no estudo da causa do
problema com o desenvolvimento de pesquisas em educação capitaneadas pela
antropologia. Já se afirmou mais de uma vez que o conhecimento detalhado das
diversidades culturais que envolvem o ambiente escolar é fundamental para que se tenha
um ensino de qualidade. É necessária adaptação do sistema, o que somente será possível
com o auxílio dos estudos antropológicos que permitam o conhecimento pleno da
origem, desenvolvimento e adaptação social de cada segmento representado no
complexo e heterogêneo espaço das salas de aula. As identidades e diferenças devem ser
compreendidas e bem trabalhadas. Segundo Silva
Se prestarmos, pois, atenção à teorização cultural contemporânea sobre
identidade e diferença, não poderemos abordar o multiculturalismo em
educação simplesmente como uma questão de tolerância e respeito para com
a diversidade cultural. Por mais edificantes e desejáveis que possam parecer,
esses nobres sentimentos impedem que vejamos a identidade e a diferença
como processos de produção social, como processos que envolvem relações
de poder. Ver a identidade e a diferença como uma questão de produção
significa tratar as relações entre as diferentes culturas não como uma questão
de consenso, de diálogo ou comunicação, mas como uma questão que
envolve, fundamentalmente, relações de poder. A identidade e a diferença
não são entidades preexistentes, que estão aí desde sempre ou que passaram a
estar a aí a partir de algum momento fundador, elas não são elementos
passivos da cultura, mas têm que ser constantemente criadas e recriadas. A
identidade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao mundo
social e com disputa e luta em torno dessa atribuição. (SILVA, 2012)
A diversidade presente na sala de aula, por si só já um problema que vem
desafiando os educadores há bastante tempo. Conciliar em um mesmo espaço, em um
mesmo tempo culturas e saberes de diferentes níveis a fim de passar a todos um modelo
de educação pré-concebido não é uma tarefa das mais fáceis. Essa dificuldade se
potencializa quando tratamos desses grupos sociais historicamente deixados à margem
do processo educacional. Como se disse no início desse trabalho, as primeiras
universidades públicas no Brasil se direcionavam a poucos, e como o ensino básico
prepara parava (e ainda prepara) o ingresso nessas universidades, por via de
conseqüência, também, esse ensino básico acabava por ser dirigido a esse seleto grupo.
Nesse sentido, destaca Fleuri
O Brasil se constitui historicamente como uma sociedade multiétnica
tomando-se por base uma imensa diversidade de culturas. Reconhecer nossa
diversidade étnica implica ter clareza de que os fatores constitutivos de
nossas identidades sociais não se caracterizam por uma estabilidade e fixidez
naturais. As identidades culturais – aqueles aspectos de nossas identidades
que surgem de nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais, lingüísticas,
religiosas, nacionais – sofrem contínuos deslocamentos ou descontinuidades
(...)
Segundo Stuart Hall (1999, p. 12-13), “o sujeito previamente vivido como
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas”. Assim, a identidade, sendo definida
historicamente, é formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam. À medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.
(FLEURI, 2012)
É verdade que muitos avanços foram alcançados. Evidentemente, nosso sistema
atual em quase nada se assemelha àquele em vigor no início do século passado, no
entanto, ainda sofremos com as seqüelas de um processo mal concebido e que deixou
marcas profundas naqueles grupos sociais que a ele não tinham acesso. Toda a evolução
histórica dessa diversidade precisa ser conhecida e detalhada conjuntamente com o
estudo dos vários atores desse contexto.
3. DAS AÇÕES AFIRMATIVAS E PÓLÍTICAS DE COTAS NO BRASIL
Primeiramente, cabe-nos considerar que em um quadro de exclusão, como já
dito nesse trabalho, soluções para viabilizar o simples ingresso no ensino superior
público de estudantes oriundos de classes sociais desfavorecidas não são o bastante. É
preciso aprofundar na causa do problema, partindo-se de estudos antropológicos que
permitam o conhecimento pleno das diversas culturas, etnias e raças presentes no
complexo ambiente da sala de aula. Somente assim será possível adaptar o sistema
educacional para atender a todos esses públicos. Note-se que falamos em preparar e
transformar todo o sistema educacional e não apenas o professor, como afirmam alguns
teóricos. Ao falar em sistema, falamos, inclusive, em toda a infra-estrutura que envolve
o ambiente educacional, principalmente do sistema público de educação do ensino
básico.
No entanto, dentre as soluções aqui consideradas como paliativas, haja vista que
não ataca o problema em suas raízes, está a chamada política de cotas raciais e sociais.
Trata-se de uma política cujo objetivo é mitigar os efeitos surgidos de um passado
caracterizado por discriminações, e que visam um designo público crucial para o plano
democrático, que é o de promover a diversidade e pluralidade social. Podemos dizer,
genericamente, que as ações afirmativas como a política de cotas devem ser
consideradas para além de uma série de acontecimentos ocorridos durante e em dado
período como forma de amenizar a carga de um passado discriminatório, mas
igualmente como um instrumento capaz de provocar a transformação social. Assim,
compõe normas concretas que efetivam o direito à igualdade, posta que a igualdade
deve harmonizar-se com o respeito à diferença e à diversidade. Esses motivos fazem de
políticas como essa, em que pese não suficientes, imprescindíveis no contexto atual.
Nesse sentindo, inobstante as observações anteriores, deve-ser dizer que o
Decreto nº 65.810, de 08 de dezembro de 1969, que promulga a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial,
estabelece em seu art.1º, parágrafo 4º, que não serão consideradas discriminação racial
as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de
certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa
ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de
direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam,
em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e
não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. Em vista disso há a
possibilidade de “discriminação positiva” (a chamada ação afirmativa) que objetiva
apressar o processo de igualdade.
Partindo para mais adiante, verificamos que a Constituição Federal de 1988, fixa
conteúdos essenciais que exprimem a busca da igualdade material consagrando como
um dos objetivos do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária, mediante a
redução de desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem quaisquer formas
de discriminação (art. 3º, I, III e IV).
Outro aspecto que podemos considerar, ainda na questão das ações afirmativas,
diz respeito às cotas para afrodescendentes em universidades, posto que promovam à
inclusão de afrodescendentes em seus cursos, com suas crenças e culturas, o que muito
contribuiria para uma formação discente aberta à diversidade e à pluralidade.
O debate público das ações afirmativas tem ensejado longos debates, de um
lado, aqueles que argumentam constituírem elas uma violação de direitos, e, de outro
lado, os que advogam serem elas uma possibilidade jurídica ou mesmo um direito.
O Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADPF- 186 – Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, sobre as políticas de ação afirmativa e
reserva de vagas em universidades públicas, em decisão do Plenário julgou
improcedente o pedido formulado pelo Partido Democratas - DEM, contra atos da
Universidade de Brasília - UnB, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da
Universidade de Brasília e do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de
Brasília - CESPE, os quais instituíram sistema de reserva de 20% de vagas no processo
de seleção para ingresso de estudantes, com base em critério étnico-racial.
O Supremo, nesta decisão ressaltou a importância do princípio constitucional da
igualdade tanto no aspecto formal quanto material. Na decisão
Asseverou-se que, para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar
mão de políticas de cunho universalista — a abranger número indeterminado
de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações
afirmativas — a atingir grupos sociais determinados — por meio da
atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a
suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas
particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que levariam ao
afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia
integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de
concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito,
sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade.
Reputou-se, entretanto, que esse desiderato somente seria alcançado
por meio da denominada “justiça distributiva”, que permitiria a superação
das desigualdades no mundo dos fatos, por meio de intervenção estatal que
realocasse bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício de
todos. Demonstrou-se que a Constituição estabeleceria que o ingresso no
ensino superior seria ministrado com base nos seguintes princípios: a)
igualdade de condições para acesso e permanência na escola; b) pluralismo
de ideias; e c) gestão democrática do ensino público (art. 206, I, III e IV).
Além disso, os níveis mais elevados do ensino, pesquisa e criação artística
seriam alcançados segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Exprimiuse que o constituinte teria buscado temperar o rigor da aferição do mérito dos
candidatos que pretendessem acesso à universidade com o princípio da
igualdade material.
Discorreu-se sobre o papel integrador da universidade e os benefícios
das ações afirmativas, que atingiriam não apenas o estudante que ingressara
no sistema por intermédio das reservas de vagas, como também todo o meio
acadêmico, dada a oportunidade de conviver com o diferente. Acrescentou-se
que esse ambiente seria ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais
e para a construção de consciência coletiva plural e culturalmente
heterogênea.
Ressaltou-se a natureza transitória dos programas de ação afirmativa,
já que as desigualdades entre brancos e negros decorreriam de séculos de
dominação econômica, política e social dos primeiros sobre os segundos. Dessa
forma, na medida em que essas distorções históricas fossem corrigidas, não
haveria razão para a subsistência dos programas de ingresso nas universidades
públicas. Se eles ainda assim permanecessem, poderiam converter-se em
benesses permanentes, em detrimento da coletividade e da democracia.
Consignou-se que, no caso da UnB, o critério da temporariedade fora
cumprido, pois o programa de ações afirmativas lá instituído estabelecera a
necessidade de sua reavaliação após o transcurso de dez anos. Por fim, no que
concerne à proporcionalidade entre os meios e os fins colimados nessas
políticas, considerou-se que a reserva de 20% das vagas, na UnB, para
estudantes negros, e de um pequeno número delas para índios, pelo prazo de
citado, constituiria providência adequada e proporcional a atingir os
mencionados desideratos. (Informativo de Jurisprudência do STF nº 663.
Disponível
em:
<
http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo663.htm>.
Acesso em 20.mai.2012.
A nosso ver a decisão da Suprema Corte Brasileira é irretocável, posto que nada
mais fez do que reafirmar o aspecto material do postulado constitucional da isonomia.
Fato é que historicamente algumas minorias sociais vêm sofrendo ao longo do tempo
com condições mais restritivas para o acesso à educação. Talvez por conta do ranço
colonialista que até hoje permeia e contamina parte de nossa sociedade que resiste, em
pleno séc. XXI, em reconhecer que a igualdade de oportunidades deve ser posta à
disposição de todo brasileiro.
4. CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais, espalhados em documentos históricos diversos estão
na grande maioria das constituições das democracias contemporâneas, como ferramenta
importante de inclusão social; dentre esses direitos estão as ações afirmativas que
remete à política de cotas. Portanto, há que se considerar que o combate à discriminação
é ação emergencial à efetivação do direito à igualdade, como também uma medida
apropriada para o enfrentamento do racismo e da discriminação, que têm retirado de
metade da população brasileira o direito ao exercício pleno de seus direitos e liberdades
fundamentais. Conquanto tais medidas ocasionem uma série de contestações, a luta
contra estas mazelas não pode continuar sendo dilatada. Já transcorreu o momento do
país combatê-las com acuidade e obrigação como via do resgate da dignidade e dos
direitos fundamentais. Nesse aspecto, a política de cotas em universidades vem se
destacando como instrumento de importância ímpar na atuação do Estado para
consolidar a efetivação das políticas afirmativas.
No entanto, essas medidas, apesar de indispensáveis como medidas paliativas, não
resolvem o problema da exclusão estabelecida pelo processo histórico de
direcionamento do sistema educacional apenas a determinados segmentos sociais.
Alguns atores excluídos do sistema ao longo do tempo ainda sofrem com um ensino
básico que desconsidera aquilo que há de básico em um processo educacional: a
diversidade. Enquanto possuirmos um ensino básico que pretende incluir em um mesmo
formato grupos sociais tão diferentes do ponto de vista étnico, social, racial e
econômico teremos uma educação seletiva e discriminatória.
Ocorre que os erros do sistema existem, em sua grande parte, pelo
desconhecimento desses diversos grupos que se sobrepõem na sala de aula. Assim, a
solução passa, evidentemente, pela necessidade de desenvolvimento cada vez crescente
de pesquisas e estudos antropológicos para se permitir um conhecimento pleno desses
diversos atores sociais.
5. REFERÊNCIAS:
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1988.
Disponível
em:
http://www2.planalto.gov.br/presidencia/a-constituicao-federal>.
<
Acesso
em
20.mai.2012.
Decreto
nº
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de
8
de
dezembro
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1969.
Disponível
em:
<
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=65810&tipo_norma
=DEC&data=19691208&link=s>. Acesso em 21.mai. de 2012.
FLEURI,
Reinaldo
Matias.
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Disponível
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http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a02>. Acesso em 26. Jul. 2012.
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes. Antropologia e Educação: Origens de um diálogo.
Disponível
em:
<
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32621997000200002> Acesso em 26. Jul. 2012
Informativo
de
Jurisprudência
do
STF
nº
663.
Disponível
em:
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http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo663.htm>. Acesso em
20.mai.2012.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394/96. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em 20.mai.2012.
LIMA, Janirza Cavalcante da Rocha. Antropologia e educação: um diálogo possível?
Disponível em: < http://www.cchla.ufrn.br/interlegere/09/pdf/09es10.pdf>. Acesso em
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SILVA, Lázara Cristina da. RODRIGUES, Marilúcia de Menezes. Acesso ao ensino
superior: os nós das políticas de inclusão educacional e as pessoas com deficiências.
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http://www.simposioestadopoliticas.ufu.br/imagens/anais/pdf/BC05.pdf> Acesso em
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SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. Disponível em:
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SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Direito Educacional. São Paulo: editora Verbatim,
2010.
VIEIRA, Ricardo. Da Multiculturalidade à Educação Intercultural: a Antropologia da
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Professores.
Disponível
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http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC12/12-6-vieira.pdf> Acesso em 26. Jul. 2012
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