Geotecnia nos Campos Gerais: um caso de obra de saneamento no arenito Ney Augusto Nascimento, Ph.D., PPGCC-UFPR – email: [email protected] Resumo: O caso de uma obra de tratamento de resíduos industriais de frigoríficos é apresentado, enfatizando o local da obra, Carambeí, situada na região dos Campos Gerais do Paraná, e as implicações geológicas e geotécnicas do problema. Trata-se da implantação de lagoa de oxidação, parte do processo de depuração do efluente, em meia encosta de material predominantemente arenoso. Como particularidades do problema, a geometria da lagoa projetada, as exigências da solução hidráulico-sanitária e a dificuldade de se encontrar material natural adequado ao tipo de obra são aqui apresentados e discutidos. Reforça-se ainda o acompanhamento da execução do projeto e a confirmação de que as condições de funcionamento foram alcançadas, o que neste caso resultou numa dificuldade operacional inesperada e resolvida. Palavras-chave: Tratamento de efluentes, terraplenagem, solos, taludes, impermeabilização. 1. Introdução O presente caso refere-se a obra típica de engenharia geotécnica, envolvendo corte, aterro, fundação e impermeabilização de lagoa de tratamento de esgotos industriais, executada há vários anos no município de Carambeí, região dos Campos Gerais. O desafio a ser então vencido, a partir de projeto hidráulico-sanitário fornecido pelo cliente (Cooperativa Central de Laticínios do Paraná) e que previa a localização da lagoa de oxidação em meia encosta próxima ao Rio Carambeí, foi de dimensionar taludes de corte e aterro estáveis e estanques, apoiados no arenito local. Superficialmente, o perfil geotécnico apresenta solo arenoso com argila orgânica e vegetação rala, definindo arenito mais resistente com o aumento da profundidade. Como era de se esperar, o primeiro grande desafio foi localizar e explorar jazida de solo fino na região, o que se mostrou já à época muito difícil. Houve necessidade de trazer material argiloso vermelho de boa qualidade para esta aplicação de uma distância de aproximadamente 20 km. A situação esquemática do local da obra está mostrada na Figura 1, destacando-se a presença do sistema inicial de tratamento, a sua expansão (objeto deste trabalho) e o Rio Carambeí, para onde o efluente tratado é dirigido. Uma significativa diferença entre as duas fases é a questão da aeração mecânica, existente na fase I e não prevista na fase II, ou seja a segunda lagoa é anaeróbia. Isso exigiu maior área de oxidação, tornando o processo de maior porte relativamente à solução inicial (fase I). 2. Aspectos geológicos e geotécnicos da área A geologia regional e o programa de sondagens do subsolo realizado no local da lagoa II indicaram predominância de perfil arenoso (arenitos Furnas e Ponta Grossa, DNPM 1984), inicialmente contaminado com argila orgânica e raízes vegetais, basicamente gramíneas, passando logo a seguir a arenito brando e rocha propriamente dita, já com alguns metros de profundidade. Junto com as sondagens à percussão (ABNT, 1980) foram também levadas a efeito determinações do coeficiente de permeabilidade in situ, visando caracterizar o subsolo local quanto à percolação do líquido a ser tratado, além da caracterização, compactação, resistência e compressibilidade dos solos envolvidos. N Lagoa – fase I Divisa 70 m Cota ~ 31 m 70 m 108 m C P Lagoa – fase II 41 m 86 m (parede divisória) (cota de fundo: 25.4 m) C 117 m Rio Carambei Cota do nível do rio ~ 18 m Figura 1 – Lagoas de tratamento de esgotos - fases I e II (implantação geral – sem escala) Tais números acusaram preocupação especial quanto à estanqueidade da lagoa, tendo em vista alguns altos coeficientes de permeabilidade obtidos no perfil de subsolo (Tabela I), comparativamente ao valor de K para o solo compactado da jazida argilosa, neste caso parametrizado laboratorialmente após adequada compactação. O posicionamento da obra em corte pode ser visto na Figura 2, onde ressalta-se o porte da região escavada, expondo o arenito de melhor resistência, e a face oposta em aterro, demandando preocupação intensa e controle contínuo de material, umidade, densidade e grau de compactação. Divisa Corte NT Face de concreto Aterro Cota 30,5 m Filtro de pé Cota 25,4 m (0,9 m de argila compactada) 5,5 2,5 10,2 ~ 21 m Nível de água normal da lagoa: 29,9 m - taludes 1V:2H 10,2 2,5 ~ 15 m (ver Figura 1) Figura 2 – Seção transversal C-C (sem escala) 3. Algumas características de projeto e execução da obra Considerando-se o coeficiente de permeabilidade médio obtido para a argila de empréstimo compactada como igual a 10-5 cm/seg, definiu-se o forro de fundo com 0,9 m de espessura sobre o arenito e a proteção lateral dos taludes, tanto de corte quanto de aterro, com placas de concreto moldadas in situ e calafetadas nas juntas. A análise de estabilidade indicou coeficiente mínimo de segurança à ruptura dos taludes igual a 1,25 , que foi considerado adequado. Redes de fluxo traçadas modelaram o comportamento das laterais e, em especial no caso da face de aterro, verificou-se a pequena quantidade de ocasional fuga de água, para o que se previu filtro de pé ao longo do talude do rio. Para a compactação in situ, especificou-se cada camada de solo solto com no máximo 0,3 metro de espessura e controle rigoroso, envolvendo desvio de umidade de + ou – 3% da ótima e grau de compactação de 100%, relativos ao Ensaio Normal de Compactação (ABNT, 1986). Tabela 1 – Parâmetros dos solos Determinação Resultados Observações Caracterização Areia argilosa e siltosa (ABNT) A-6 e A-2 (HRB-AASHTO) CL, SC e SM (SUCS) LL ~ 34% ; IP ~ 17% Densidade dos grãos ~ 2.57 a 2.62 Argila ~ 28% Silte ~ 12% Areia ~ 60% (valores médios) Compactação (Proctor Normal) Resistência (cis. direto) * Natural (média): Compactada: (empréstimo) LOCAL: Densidade seca: 1.32 a 1.46 Umidade ótima: 17.4 a 19.6% ÁREA de EMPRÉSTIMO: Densidade seca: 1.26 Umidade ótima: 27.2% CBR: 13.2% Expansão: 0.1% c ~ 10 kPa ; φ ~ 25° Densidade ~ 1.70 c ~ 33 kPa ; φ ~ 25° Densidade ~ 1.80 Compressibilidade ** (adensamento) Natural: σ’vo ~ 33 a 60 kPa Cc ~ 0.33 a 0.60 Compactada: σ’vo ~ 500 kPa Cc ~ 0.11 Permeabilidade In situ: Laboratorial: k = 4 x 10-3 a 10-5 cm/seg k ~ 10-5 cm/seg (altura variável) Tensão de pré-adensam. MB 3336 – ABNT Diversas determinações Compactada (*) corpos de prova submersos em água; taxa de deformação adotada ~ 0.182 mm/min (**) corpos de prova submersos em água; variação de tensões verticais: 5 a 1300 kPa e 12.5 a 1600 kPa. {dados do autor (Solotécnica, 1990)} A Tabela 1 mostra o resumo das determinações laboratoriais e in situ levadas a efeito para este projeto. Resistência, compressibilidade, permeabilidade, compactação, índice de suporte (CBR) e caracterização indicam os parâmetros geotécnicos a partir dos quais o mesmo se desenvolveu. Note-se que o material da jazida (argila vermelha), apesar da dificuldade de encontrá-la regionalmente e da distância de transporte envolvida, supriu as necessidades especificadas, em especial quanto ao seu coeficiente de permeabilidade. Devido ao fato do autor ter tido oportunidade de projetar geotecnicamente esta obra e acompanhar a sua implantação, alguns detalhes de ambos são aqui citados. Além da grande dificuldade em se conseguir material de empréstimo e dos atrapalhos normais devidos a épocas chuvosas regionais, as atividades de corte e aterro desenvolveram-se a contento. Os resultados do controle in situ indicaram normalmente valores aceitáveis e boa qualidade geral dos serviços. As saídas de aterro, sempre motivo de preocupação pela alta permeabilidade do arenito de fundação e por constantes planos mal definidos e mal preparados no terreno natural, foram bem encaixadas, raspadas e compactadas, assim como o foram as camadas definidoras do fundo da lagoa. Ao final da obra, após o encerramento da terraplenagem, proteção lateral em concreto, execução da parede divisória central e início de enchimento para teste (com água de chuva e do rio), suspeitou-se de vazamento pelo grande tempo necessário para bombear água para a lagoa, sem enchê-la. Após cuidadosa inspeção visual, descobriu-se verdadeiro dreno natural na área de corte (ponto “P”, próximo à divisa da propriedade – Figura 1), produto do apodrecimento de raiz de árvore existente no local e que havia sido derrubada para a obra. Vedada esta inusitada saída, a lagoa foi enchida sem maiores dificuldades e iniciou a operação regular, que ainda perdura, passados vários anos. Visita recente ao local indicou que as premissas de projeto e o sistema executivo aplicado foram bem sucedidos. 4. Conclusões e recomendações Deste projeto, somado à experiências obtidas também de outros projetos similares em diversas regiões, pode-se afirmar que a parametrização geotécnica é de fundamental importância para se maximizar a chance de bom desempenho da obra. O coeficiente de permeabilidade, tanto in situ quanto do material de jazida devidamente compactado, representa para este tipo de aplicação um dado especial. A questão das placas laterais aos taludes é importante (também para evitar erosão pelo efeito de marolas, por exemplo), porém caso o material de aterro demonstrasse excessiva percolação, outras providências poderiam ter sido exigidas, tais quais injeções, membranas, inserção de outros materiais (Nascimento e Puppi, 1998 e 1999) ou mesmo relocação da obra, visando sempre a máxima segurança e estanqueidade. O conhecimento do perfil geotécnico, para dizer o mínimo é obrigatório (ABNT, 1996), e características de resistência e compressibilidade precisam ser determinadas para uma razoável verificação de estabilidade dos taludes e compressibilidade dos materiais envolvidos. A condição de trabalho é muito próxima da saturação, e assim devem ser realizados os ensaios, como foi feito neste caso. Como sugestão adicional, o autor indica ainda que se promova, sempre que possível, verificação adicional do corpo de aterros recentes com ensaios in situ, quer de resistência, quer de permeabilidade – sondagens à percussão com medida da permeabilidade seriam de grande valia para se validar a qualidade do maciço. Além disso, a possibilidade de se retirarem amostras indeformadas a serem submetidas a ensaios laboratoriais complementaria essas importantes informações geotécnicas que, ocasionalmente, evitariam um mal maior, caso algum erro de projeto e/ou execução houvesse ocorrido. Nesta obra tal procedimento altamente desejável não foi previsto, porém fica o alerta para que se inclua nas concorrências, tomadas de preço, cartas convite ou qualquer outra modalidade de contratação, verba para este fim. O autor agradece as empresas diretamente envolvidas neste projeto, que permitiram a utilização dos dados aqui mencionados, em especial a então Cooperativa proprietária do empreendimento, a Solotécnica (empresa através da qual o projeto geotécnico e várias determinações de parâmetros foram feitos) e a Moro (empreiteira encarregada da terraplenagem e outros serviços correlatos). Referências ABNT – MB 3336. Ensaio de adensamento unidimensional, Associação Brasileira de Normas Técnicas, Rio de Janeiro, 1991. ABNT – NBR 7182. Ensaio Normal de Compactação, Associação Brasileira de Normas Técnicas, Rio de Janeiro, 1986. ABNT – NBR 6122. Projeto e Execução de Fundações, Associação Brasileira de Normas Técnicas, Rio de Janeiro, 1996. ABNT – NBR 6484. Execução de Sondagens de Simples Reconhecimento dos Solos – Método de Ensaio – SPT, Associação Brasileira de Normas Técnicas, Rio de Janeiro, 1980. NASCIMENTO, N.A. & PUPPI, R.F.K. Projeto de Drenagem e Reforço de Solo Orgânico Mole em Geogrelhas – Caso de Aterro para Viaduto sobre a BR-277. Proceedings XI Brazilian Conference on Soil Mechanics and Geotechnical Engineering – Cobramseg, Brasília, vol. II, p. 1169-1174, 1998. NASCIMENTO, N.A. & PUPPI, R.F.K. Recomposição de aterro rompido em encontro de ponte com greide alteado na BR-376. Proceedings Geossintéticos 99, 1st South American Geosynthetics Symposium and 3rd Brazilian Geosynthetics Symposium, Rio de Janeiro, p. 339-343, 1999. REPÚBLICA FEDERATIVA do BRASIL. Ministério de Minas e Energia, DNPM, Geologia do Brasil, Brasília, p. 341-349, 1984. SOLOTÉCNICA LTDA. ETE Carambeí – relatório geotécnico, Curitiba, 1990.