Revista Comunicando, Vol. 3, 2014
Os desafios da investigação em Ciências da Comunicação: debates e perspetivas de futuro
JORNALISMO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE: UM
CONTRIBUTO PARA O DEBATE TEÓRICO
Patrícia Silveira1
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho
[email protected]
Lidia Marôpo2
Universidade Nova de Lisboa e Universidade Autónoma de Lisboa
[email protected]
Resumo
Este artigo tem como propósito refletir sobre a relação entre jornalismo e produção do
conhecimento, partindo de um conjunto de disposições que, sob a influência da fenomenologia,
permitem desenvolver uma “teoria da comunicação aplicada aos media jornalísticos” (Correia,
2009:1). Neste sentido, analisamos a relevância do jornalismo para a apreensão do quotidiano e
do mundo, com base no desdobramento da noção de construção social da realidade. Esta visão
construcionista possibilitou o abandono da perspetiva objetivista, que limitava os efeitos sociais
dos media a questões de ordem comportamental, em prol do reconhecimento do papel da
comunicação mediática para a cognição social.
Palavras-chave: jornalismo; conhecimento; construção social da realidade.
Abstract
This article aims to reflect on the relationship between journalism and the production of
knowledge, based on a set of provisions which, under the influence of phenomenology, allow to
develop a "communication theory applied to journalistic media" (Correia, 2009:1). In this
sense, we analyze the relevance of journalism for worlds apprehension, based on the unfolding
of the concept of social construction of reality. This constructionist view allowed the neglet of
an objectivist perspective, limiting the social effects of the media on issues of behavioral order,
in favor of the recognition of the role of media communication for social cognition.
1
Licenciada em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Minho. Atualmente, encontra-se a
desenvolver os estudos de doutoramento e é investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e
Sociedade (CECS), da Universidade do Minho. A sua especialização é em educação para os media, mais
concretamente, em literacia para as notícias. A sua pesquisa tem como objeto de estudo as crianças e as
suas representações sobre a atualidade.
2
Investigadora de pós-doutoramento no Cesnova/Universidade Nova de Lisboa e professora auxiliar na
Universidade Autónoma de Lisboa. É autora dos livros A Construção da Agenda Mediática da Infância
(Livros Horizontes, 2008) e Jornalismo e Direitos da Criança: Conflitos e Oportunidades em Portugal e
no Brasil (Editora MinervaCoimbra, 2013). É também autora de diversos artigos científicos na área das
ciências da comunicação.
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Keywords: journalism; knowledge; social construction of reality.
1. Reconhecimento do jornalismo como construtor social da realidade
A necessidade de compreensão do presente é tão antiga como a própria humanidade,
como Daniel Innerarity (2009) advoga. “O presente já não é algo que simplesmente se
oferece ao nosso olhar, sem empenhamento teórico, interpretativo e antecipatório”
(idem:8), tratando-se, antes, de algo inquietante e duvidoso que escapa à evidência
imediata dos factos. Ao formular uma teoria da sociedade invisível, o autor procura
interpretar filosoficamente o século XXI, perspetivando o verdadeiro sentido das coisas
a partir das transformações do mundo atual. Na sua opinião, a sociedade é complexa e
pauta-se pela falta de estruturação, mais do que pela coerência, tendo o discurso
permanente sobre o risco vindo a salientar a ideia de que nos devemos habituar a viver
próximos do caos. O afastamento entre o Homem e a sociedade é uma evidência, como
sublinha, pelo que se cria uma sensação de “estranheza” (Innenarity, 2009:10), na qual
aquela se torna cada vez mais invisível e opera através de possibilidades e sentidos.
Esta crítica à contemporaneidade já havia sido antecipada por Daniel Bell (1962), a
propósito da discussão sobre a sociedade de massas. Para o sociólogo norte-americano,
a cultura de massas é a grande responsável pelas mudanças no modo como os
indivíduos se situam perante si mesmos, e a sociedade. Segundo refere, a revolução nos
transportes e nas comunicações fomentou o individualismo, a cultura do eu e, como
consequência, o indivíduo sente-se um estranho na sociedade, ao mesmo tempo que
questiona os valores que lhe foram transmitidos pelas instituições tradicionais, como a
família e a igreja. Perde o sentido coerente de si mesmo e vive imerso num fluxo
constante de ansiedade e de incerteza (Bell, 1962).
Estes aspetos conduzem à necessidade de se repensar o conceito de realidade,
considerado, para Innerarity (2009), demasiado imediato. Para o autor, esta não deve ser
julgada levianamente, sem grandes esforços de reflexão e de interpretação, ao invés,
torna-se necessário compreendê-la além da sua aparência imediata. Contudo, reconhece
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a existência de uma “espécie de dificuldade social das coisas que as torna inacessíveis
ao conhecimento e à crítica, não pela sua própria natureza, mas pelo conjunto de
disposições que a condiciona” (2009:41). Trata-se de uma realidade difícil de
desconcertar, de desmontar, e de pressupostos que parecem ´naturais`.
É neste ambiente controverso que os media se assumem como mecanismos ligados ao
processo de socialização, com relevância para o sentido de ordem e de estabilidade
necessários ao bom funcionamento das sociedades. Isto porque, além de providenciarem
uma experiência partilhada, mantêm rituais essenciais desenhados para auxiliar os
indivíduos na sua vida. Os media assumem-se como estabilizadores da ordem social,
adquirindo um papel semelhante ao das instituições tradicionais, como a família, a
escola ou a igreja (Silverblatt, 2004). Segundo Innerarity (2009:117), “as redes - de
trânsito, de comunicação, de informação – são elementos essenciais de uma civilização
que se expande multiplicando as relações possíveis e as dependências recíprocas de
sujeitos espacial e socialmente afastados”. Significa isto que os meios de massas
orientam a atenção dos indivíduos, oferecendo quadros estáveis para a regulação das
relações de visibilidade e para a distribuição da atenção pública. Os meios suscitam e
articulam a atenção do público, veiculando determinadas lógicas e fomentando o
pensamento dominante. Contudo, o seu objetivo não é a imposição de opiniões, mas
antes dar conta de temas sobre os quais é preciso ter opinião, ou seja, “realidades a
atender” (Innerarity, 2009:140).
Nesta perspetiva, o discurso jornalístico ganha especial relevo, tendo uma relação mais
direta com o debate sobre os processos de construção social da realidade. Podemos
definir o jornalismo como uma forma de comunicação central para o discurso público,
com conteúdo distinto e estatuto privilegiado em relação a outras formas de
comunicação (McNair, 1998).
Três características do jornalismo promovem este “estatuto privilegiado” (McNair,
1998: 5). Primeiramente, a exatidão e a veracidade como valores prioritários,
qualidades imbricadas no conceito de objectividade usado para legitimar o discurso
noticioso. A novidade é outro valor fundamental das histórias e narrativas jornalísticas,
segundo o qual os factos apresentados precisam de ser inéditos ou, pelo menos, a
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interpretação destes factos precisa de ser nova. Por último, McNair (1998) fala do
jornalismo como um discurso autoral e ideológico. Os factos são apresentados em torno
de suposições, crenças e valores, como em qualquer outra narrativa humana. Neste
sentido, refletem a ideologia de uma determinada visão de mundo, articulada de forma
propositada (quando o proprietário de um jornal usa o seu poder para determinar uma
linha editorial específica, por exemplo), ou como reflexo das forças sociais
preponderantes na sociedade.
Com base nestas especificidades, Walter Lippmann e Robert Park, já em princípios do
século XX, apresentavam os meios de comunicação, em particular os meios
jornalísticos, como agentes de modelação do conhecimento e de socialização (Sousa,
2006: 211). Herdeiro desta perspetiva, Eduardo Meditsch, no artigo O jornalismo é uma
forma de conhecimento? (1997), classifica três tipos de abordagens que resultam das
várias interpretações feitas em torno da questão da relação entre jornalismo e
conhecimento. Numa primeira fase, vivenciada sobretudo durante a era moderna espelho da transformação da técnica e da vida humana -, o conhecimento era
considerado um ideal abstrato, cabendo à ciência o seu alcance, tal como defendia a
filosofia positivista. A ciência era o método do conhecimento, por excelência, pelo que
não se admitia que o jornalismo pudesse ser considerado, a par desta, um campo de
produção de conhecimento. Diferentemente, uma segunda abordagem situava o
jornalismo como ciência menor, olhando para o conhecimento não como ideal a
alcançar, mas como um dado concreto da vida diária, com o qual os indivíduos lidavam
naturalmente. Para os defensores desta perspetiva, dos quais se destaca o já referido
sociólogo e jornalista Robert Park, o jornalismo era considerado uma forma de
conhecimento da realidade, situado entre as formas de saber do quotidiano e aquelas
produzidas pela ciência, de foro sistemático e analítico.
Esta mudança de mentalidades surge na sequência de um conjunto de transformações
culturais, tecnológicas, económicas e políticas, como a luta pela liberdade de opinião e
pela livre circulação de ideias contra o absolutismo a imperar na Europa durante os
séculos XVI e XVII (Anchieta, 2011). A expansão do jornalismo moderno é
impulsionada, sobretudo, pela revolução industrial iniciada no século XVIII, na
Inglaterra. A mecanização dos sistemas de produção, o aumento da qualificação nas
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empresas e o crescimento da alfabetização, conduziram à ampliação da circulação da
informação e, inevitavelmente, à necessidade de se estar informado. A imprensa
expande-se, assim como o volume de tiragens dos jornais por edição (idibem). O
jornalismo ganha protagonismo e passa a ser uma atividade indispensável.
É neste contexto que Park (1976) desenvolve os seus pressupostos teóricos apoiados por
um ambiente favorável à aceitação e implementação da informação jornalística no
quotidiano dos indivíduos. Tendo por base o pensamento do psicólogo William James,
Park (1976) herda os conceitos de conhecimento de e de conhecimento acerca de, para
explicar de que modo a notícia se situa num nível intermédio entre ambos. Assim,
conhecimento de seria uma espécie de conhecimento adquirido no curso das
experiências quotidianas, que se incorpora no hábito e no costume. É o conhecimento
partilhado por todos e do qual os sujeitos não duvidam. Aquilo que habitualmente é
chamado de senso comum. Já o conhecimento acerca de distanciar-se-ia das práticas
quotidianas, tendo por base o saber racional, analítico e sistematizado, mais próximo da
ciência. Afasta-se do saber do senso comum, porque se vincula a um saber
especializado, aproximando-se da filosofia e da lógica, da história e das ciências
naturais. O jornalismo, para Park (1976), situar-se-ia entre estes dois tipos de
conhecimento, considerados formas de dizer e interpretar o real. Contudo, diferencia-se
da ciência pelo facto de não se traduzir num saber sistemático, e afasta-se da história ao
preocupar-se com acontecimentos isolados vinculados ao presente.
Uma terceira abordagem procura observar o jornalismo como modo de construção
social da realidade, olhando para aquilo que o caracteriza na sua especificidade,
ignorando a procura da diferença relativamente à ciência e à história. “Para esta terceira
abordagem, o jornalismo não revela mais nem revela menos a realidade do que a
ciência: ele simplesmente revela diferente. E ao revelar diferente, pode mesmo revelar
aspetos da realidade que os outros modos de conhecimento não são capazes de revelar”
(Meditsch, 2002:3). Por outro lado, a ideia de que o conhecimento é fruto das relações
intersubjetivas quotidianas, vinculado a um caráter cultural e histórico, desmistifica a
noção da existência de uma verdade única e infalível, dando impulso à plausibilidade de
reconhecimento do jornalismo como construtor social da realidade.
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2. Aplicação das teorias fenomenológicas ao jornalismo
A noção de construção social da realidade abarca um conjunto de teorias e ideias que é
necessário desdobrar, partindo da observação da experiência cultural de um ponto de
vista fenomenológico (Correia, 2009). Foi primeiramente alvo de estudo de sociólogos,
semióticos e filósofos, para quem a principal preocupação era perspetivar a significação
e estruturação do mundo do sentido comum, do quotidiano, em cujos limites se
desenrola a nossa experiência (Schutz, 1974).
Alfred Schutz (1974), filósofo e sociólogo dedicado à fenomenologia, explora os
caminhos inerentes à construção do sentido do mundo partilhado, oferecendo um roteiro
que auxilia a compreensão de como o mundo que é palco e matriz da ação social, se
constrói com base nas experiências da vida quotidiana. Para o autor, a realidade social
diz respeito ao conjunto de objetos culturais e institucionais que caracterizam o mundo
no qual nos movemos. Como advoga, este “mundo da vida diária” ou “mundo do
quotidiano” (1974:16), já existia antes da nossa aparição como espaço dotado de sentido
e organizado, situado num horizonte de familiaridade e de conhecimento imediato,
tendo origem em ações humanas que conduzem ao reconhecimento da “historicidade da
cultura” (1974:41) encontrada nas tradições e costumes. Trata-se, no fundo, de uma
realidade inquestionável e eminente, na qual o indivíduo vive as suas experiências com
os seus semelhantes em relações de interação.
Mauro Wolf (1995), conhecido estudioso da área da comunicação, considera que a
sociedade é o resultado e o produto das práticas realizadas e aplicadas pelos sujeitos, em
que o contexto, a linguagem, a vida social e a ação se determinam reciprocamente. Para
os agentes sociais, o mundo da vida quotidiana, conhecido em comum com outros,
representa a cena de uma ordem social e moral na qual o indivíduo se coloca
diariamente, e através da qual constrói significados válidos. Contudo, é necessário
relevar o lugar da situação biográfica dos sujeitos, da sedimentação das suas
experiências subjetivas, visto que a interpretação do mundo mais global depende destas.
A transposição e a definição da realidade para o mundo dos sujeitos têm em conta os
elementos significativos da sua memória biográfica. Segundo Schutz (1974:18), “ desde
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a infância, o indivíduo continua a assimilar uma grande quantidade de receitas que
utiliza como técnicas para compreender, ou controlar, aspetos da sua experiência”. A
apreensão da realidade e consequente elaboração e consolidação do conhecimento só
faz sentido se se tiver em conta a existência de uma “consciência intencional” (Correia,
2009:55) encontrada por detrás da experiência cognitiva, através da qual o mundo é
apresentado aos sujeitos. Neste sentido, ao dar o feliz exemplo das coordenadas por que
se guia a cartografia, Schutz (1974) refere que a experiência pessoal imediata é o ponto
de partida para a definição do sistema de coordenadas que orienta o indivíduo no mundo
maior em que está inserido.
Embora a experiência individual dos sujeitos seja fundamental para a compreensão e
assimilação de aspetos do mundo global, para Schutz (1974) é necessário considerar o
cenário social e intersubjetivo, palco da partilha de significados válidos para a vida
diária e de construção de tipificações. Isto porque o mundo já existia antes da aparição
dos sujeitos, como espaço dotado de significado e de sentido. Berger & Luckman,
seguindo a linha de pensamento de Schutz, explicam o conceito de institucionalização
como algo que ocorre sempre que há uma “tipificação recíproca de ações habituais por
tipo de autores” (1994:79). Essas tipificações são partilhadas pelos membros do grupo
social em questão, e a instituição tipifica os atores individuais e as suas ações, que serão
expressas em padrões de conduta específicos. No entanto, para que se tornem habituais,
é necessário reconhecimento ou aceitação. Trata-se da existência de uma relação de
familiaridade com o mundo, de uma espécie de atitude natural - termo cunhado por
Husserl - que faz com que os sujeitos se sintam à vontade perante a realidade que se
lhes é apresentada (Berger & Luckman, 1994).
A noção de tipificações é trabalhada por Schutz para sustentar a crença dos sujeitos no
mundo em que habitam. Tal como refere Correia (2009), as tipificações surgem como
uma espécie de a priori social, anterior ao sujeito e do qual ele não duvida. “Na
construção dessas tipificações, estamos perante uma cristalização da experiência que
permite a estabilidade, preservando características para a solução das tarefas práticas
apresentadas aos agentes sociais” (Correia, 2009:59). Assim, de acordo com este ponto
de vista, a realidade é considerada um dado concreto da vida quotidiana, uma espécie de
porto seguro que acolhe os indivíduos, e na qual sabem que podem confiar. “Ao
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absorver-se a noção de tipificação e a noção de atitude natural, sente-se o pulsar da vida
quotidiana, a pressa do tempo, a pressão do imperativo pragmático”. (Correia, 2009:60).
Por outro lado, esta realidade que nos parece tipificada, ou seja, natural, é na verdade
construída, em grande parte pelos media, que funcionam como agentes do processo que
Berger & Luckman (1994) identificaram como institucionalização das práticas
quotidianas. No mesmo sentido, Robert Park (1976) confere um novo estatuto à notícia,
olhando para o jornalismo como instituição que auxilia o funcionamento da sociedade,
sobretudo através de um processo interventivo na mediatização do real. A notícia teria,
assim, a função de orientação dos agentes sociais no mundo, veiculando conteúdos que
se tornam relevantes para a manutenção da ordem social.
Miguel Rodrigo Alsina (1996) concorda com a visão de que a construção da realidade
social está dependente da prática jornalística, embora não se reduza a esta. Significa isto
que, embora o jornalismo seja uma atividade legítima e especializada na construção de
uma realidade pública e socialmente relevante, para Alsina (1996) faz todo o sentido
que a interação das audiências seja um fator a considerar, já que o processo de
construção social da realidade engloba a produção, a circulação e o reconhecimento.
Segundo o autor, os jornalistas constituem-se como mediadores reconhecidos e
creditados, existindo uma espécie de contrato entre estes e o público, reconhecido e
definido social e historicamente. A complexidade da realidade é trabalhada na prática
jornalística por autores creditados e especializados – os jornalistas – (Alsina, 1996),
pelo que a transformação do acontecimento em notícia resulta de processos rotineiros
complexos, de esquemas interpretativos, de cultura profissional e de critérios de seleção
dos acontecimentos. Neste sentido, a realidade que nos é transmitida pelos meios à
disposição não é transparente, mas antes mediada entre os que lhe dão forma de
narração, convertendo-a numa realidade pública. (Alsina, 1996).
O facto de o jornalismo estar vinculado ao uso da linguagem e, inevitavelmente, à
própria comunicação, facilita a partilha, a sedimentação do conhecimento e a
transformação da experiência subjetiva, interna aos agentes, numa realidade objetiva,
que se transforma no acervo de conhecimentos exterior aos sujeitos, independentemente
da aproximação, ou não, à experiência de cada indivíduo. No caso da atualidade
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jornalística, esta é, por vezes, marcada por notícias que são frequentemente emitidas
pelos meios e se prolongam no tempo, sedimentando o conhecimento acerca das
mesmas. Porém, somente uma parte das experiências fica retida na memória, sendo a
linguagem o meio através do qual se dá essa sedimentação. Só através desta é possível
que se objetivem novas experiências e se fortaleçam as já existentes (Berger &
Luckman, 1994). Na constatação do que é a realidade, a linguagem assume-se como
fundamental em todo o processo, permitindo a compreensão da vida quotidiana (Berger
& Luckman, 1994; Schutz, 1974).
Uma ideia central para o tema em questão, parte do modo como, enquanto organizações
especializadas, os media participam na formulação dos significados partilhados, ao
nível da instauração de rotinas, procedimentos burocráticos e mecanismos de
tipificação. Quando pensada esta questão em relação ao jornalismo, Correia refere que
“o recurso a esquemas cognitivos marcados por esta busca de familiaridade e tipicidade
conduz a uma visão convencional associada ao senso comum” (2009:62). Trata-se de
uma prática profissional vinculada a procedimentos rotineiros que funcionam como
esquemas de reprodução da realidade. Uma reprodução de conhecimento que o próprio
jornalismo produz mas que é, ao mesmo tempo, forma de reprodução de conhecimento
produzido por outras instituições sociais (Meditsch, 1997). A visão do jornalismo como
mero transmissor de conhecimento é redutora, a este nível, e insuficiente para a
compreensão do seu papel no processo de cognição social (idibem).
No que concerne às tipificações, o jornalismo é visto, por vezes, como reforço e retrato
das representações diárias, do conhecimento do senso comum, tendo especial
dificuldade em ultrapassar as barreiras que encerram uma realidade dominante. Isto
porque recorre a esquemas cognitivos ligados à vida diária, a narrativas estandardizadas
e padronizadas, de modo a conquistar o agrado das audiências (Correia, 2009).
No decurso do processo de objetivação de significados, a coesão social e a tranquilidade
individual e coletiva têm tendência a exorcizar a incerteza. Isto é, dentro de um certo
espírito em que assentam muitas das certezas adquiridas em comum, formula-se um
universo de pressupostos que tende a lidar mal com as realidades que desafiem tais
certezas e pressupostos (Correia, 2009:88).
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A abertura à mudança....
Contudo, novas possibilidades se encetam, sobretudo quando o jornalismo se vê
confrontado não só pela crítica pública, como também pelas constantes transformações
no seio do campo. As lutas pela concorrência, o desejo de corresponder aos interesses
das audiências, a fragmentação do mercado, a necessidade de respeitar as regras éticas e
deontológicas, a cultura profissional, a disputa entre fontes (Correia, 2009) e a
proliferação de inúmeros canais informativos, impõem novos desafios às empresas
jornalísticas. Nesse cenário, o jornalismo abre-se à diferença e possibilita o
desenraizamento, permitindo o estabelecimento de pontes com realidades diversas da
vida quotidiana, através da atuação para lá da fronteira das tipificações e
reconhecimento de campos diferenciados (Correia, 2009). A estas novas possibilidades
do mundo real, Schutz (1974) dá o nome de realidades múltiplas - âmbitos finitos
dotados de significado e de sentido. Para o autor, o mundo está organizado em
diferentes estratos da realidade, incluindo não apenas o que se encontra ao alcance dos
indivíduos, mas também as zonas adjacentes abertas, sem fronteiras rígidas e frágeis à
mudança. Trata-se de um mundo que é palco de interpretações e realidades diversas que
escapam aos limites da estandardização e dos dados tidos como adquiridos. Estes
âmbitos finitos de significado têm características particulares e estilos cognitivos que
lhes são próprios. Assim, é possível caracterizar e distinguir aquilo que constitui cada
uma dessas realidades, não só na relação que mantêm entre si, como também
relativamente ao universo dominante. Trata-se de avaliar o que se enquadra em cada um
desses universos particulares de significado, de esquemas interpretativos que auxiliam
os sujeitos na determinação dos acontecimentos para os quais devem, ou não, dirigir a
sua atenção (Correia, 2009).
No jornalismo, este aspeto torna-se particularmente importante, estando associado à
noção de frame, ou enquadramento. Através deste, o jornalista interpreta um
determinado assunto de acordo com pressuposições e critérios avaliativos fundamentais
para a sua inclusão ou exclusão. Isto é, através do enquadramento, o jornalista avalia e
seleciona as partes da realidade que merecem ser transformadas em notícia (Correia,
2009).
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Esse esquema com que se delimita uma província de significado finito, o conjunto de
premissas assumidas que permitem constitui-la como dizendo quais as regras que
funcionam para a sua delimitação e o que pode ou não fazer parte dessa província de
significado finito, parece-se consideravelmente com o que viria a ser verbalizado de
forma mais explícita na frame analysis, tal como seria detalhadamente trabalhada por
Goffman ou Bateson (Correia, 2009:67).
O frame traduz-se numa instância avaliativa, permitindo que o jornalista localize,
perceba e identifique um conjunto de ocorrências, submetendo as suas características a
um grupo de regras que permitem a sua integração num determinado universo limitado.
Contudo, tal como alerta Correia (2009), o frame tem por base um princípio abstrato,
sendo diferente da sua manifestação simbólica, pelo que é necessário distingui-lo do
texto através do qual se expressa.
De acordo com o referido, concordamos com Correia no sentido de que o papel dos
media na construção de significados comuns e intersubjetivos da vida quotidiana só é
verdadeiramente compreendido se se levar em conta a “interacção entre acontecimentos,
significados culturais, contratos de leitura e enquadramentos provindos do campo
noticioso” (2009:46).
Notas finais
A aplicação das teorias construcionistas de caráter fenomenológico ao estudo do
jornalismo possibilitou a superação de paradigmas que abordavam os media noticiosos
sob o ponto de vista dos seus efeitos e avaliavam a capacidade de manipulação,
persuasão ou influência destes. A noção de construção social da realidade aplicada ao
jornalismo permite agora debater o seu papel de mediação na sociedade. Ou seja, como
este funciona enquanto mediador entre o homem e a realidade envolvente, contribuindo
para que adquira conhecimento sobre esta realidade, para a criação de sentidos do e para
o mundo (Esteves, 2011: 369).
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Por meio do efeito de agenda que exercem, os media desempenham um papel central na
distribuição social do conhecimento e influenciam os sistemas de relevância
(introduzem, amplificam e tornam generalizáveis os interesses relativos dos atores
sociais) (Correia, 2004: 184).
Esta perspetiva construcionista e cognitiva também permitiu aos estudos sobre o
jornalismo, que se ocupavam das rotinas profissionais e dos procedimentos burocráticos
envolvidos na produção das notícias, recuperar autores clássicos como Walter
Lippmann e Robert Park, dando maior complexidade e interdisciplinaridade ao debate.
A questão central é a de refletir sobre como se dá a relação mediada (através dos media)
com o mundo que nos rodeia e como as sociedades passam a administrar os novos
conhecimentos gerados neste processo (Esteves, 2011: 385).
Ressalva-se que o papel de mediador do jornalismo é frequentemente criticado por
reforçar a realidade dominante com recurso à padronização das narrativas e ao
fortalecimento das tipificações. Por outro lado, este confronto crítico, por vezes, abre
possibilidades de representação de realidades múltiplas. Quando acontece, permite-se a
travessia entre o espaço do quotidiano, do senso comum, da atitude natural, para outros
lugares de significado que exigem reflexão e capacidade crítica.
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JORNALISMO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE