4 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 9 a 22 de novembro de 2009 PERFIL O laboratório real de Furio Damiani Fotos: Antoninho Perri Pioneiro da FEEC e precursor da microeletrônica, docente cativa alunos com experimentos LUIZ SUGIMOTO [email protected] O professor Furio Damiani é um dos precursores da microeletrônica nacional. Veio da USP para a Unicamp em 1974, quando nasceu seu primeiro filho, porque já naquela época considerava São Paulo inviável para se viver. Aqui, podia ir e vir do campus de bicicleta, cortando fazenda por estrada de terra. Ajudou a estruturar a Faculdade de Engenharia Elétrica e, no então Laboratório de Eletrônica e Dispositivos (LED), projetou e construiu um implantador de íons. “Era uma máquina para implantação a baixa energia, como se utiliza hoje. Conseguia até separar urânio”. A Telebrás, financiada com recursos provenientes do Fundo Nacional de Telecomunicações, era interessada nos resultados científicos e tecnológicos, recorda o docente. “O Fundo foi extinto e a consequência foi que acabou a Telebrás e o nosso laboratório. Hoje não temos indústria microeletrônica no Brasil, compramos todos os componentes do outro lado do planeta. Hewlett e Packard, os dois engenheiros que fundaram a HP produzindo equipamentos de boa qualidade, não deixariam a produção sair dos Estados Unidos. Mas eles morreram e até a HP é made in China”. Damiani tornou-se referência dentro do Departamento de Semicondutores, Instrumentos e Fotônica (DSIF) da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC). Ele, que publicou inúmeros artigos científicos, vive um estágio diferente na carreira. Aos 66 anos, poderia já estar aposentado, mas reluta em deixar seu conhecimento guardado em casa e empenha-se em atividades de laboratório, junto a alunos de agora, crescidos na cultura do videogame. “A Unicamp precisa investir bastante em laboratórios reais e não virtuais. Ninguém gostaria de ser operado por um cirurgião cuja experiência foi adquirida apenas por intermédio de robôs. Nós precisamos do entendimento, pessoal e intransferível, que ocorre debaixo dos cabelos. É preciso mexer com essa turma, fazer com que todos experimentem e entendam os fenômenos”, prega o professor. Em suas aulas de laboratório, Furio Damiani procura cativar o aluno com experimentos, convidando-o ao raciocínio. Mostra sua “bolinha preguiçosa”, um ímã de terras raras que ele solta dentro de um tubo de metal condutor: o tubo mede apenas meio metro, mas a bolinha demora seis segundos para cair. “Normalmente, a velocidade de queda deveria aumentar, já que a força da gravidade fornece aceleração. Mas como temos um imã e um condutor, surge uma força contrária à da queda e a aceleração se anula; a velocidade permanece constante e a bolinha parece flutuar. Tornar o fenômeno visível é uma forma de estimular o aprendizado”. Em muitas universidades, o ensino de eletrônica tornou-se fortemente baseado em simulador, em detrimento do aprendizado de conceitos sobre circuitos eletrônicos. “Conhecimento se passa no contato entre pessoas e não por computadores – como evoluir na pesquisa se o modelo é sempre o mesmo? É preciso exercitar para aprender, e aprender também significa errar. A história da engenharia mostra acontecimentos terríveis, como as quedas dos aviões Comet. Esta tragédia permitiu ampliar o conhecimento sobre os materiais, descobrindo-se o fenômeno de fadiga que, levado em consideração no projeto dos futuros aviões, evitou a repetição do problema”. Exercitar para aprender. O professor conta que passou por uma ponte de madeira construída por Newton, na Universidade de Cambridge. Era uma ponte totalmente desmontável que se sustentava sem pregos ou parafusos. “Olhando de perto, vi pregos e parafusos. A explicação: com a morte de Newton, os alunos deixaram de praticar a operação; certo dia, desmontaram a ponte mas não conseguiram remontá-la”. Ainda que resolva se aposentar, Damiani gostaria que a sua forma de trabalhar com os estudantes em laboratório fosse continuada e valorizada. “Eles precisam entender porque a bolinha demora a descer. Usar o laboratório para confirmar leis já consagradas é perda de tempo. A partir de uma pergunta, o aluno precisa aprender a observar, buscar a melhor equação e prever o deslocamento de um feixe de laser. Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”, diz o professor, brincando com seu próprio ofício. Para a comunidade O docente atenta que desenvolver pesquisas baseadas em necessidades de campo é próprio da engenharia, uma peculiaridade que coaduna com uma opinião pessoal: que a universidade pública deve trabalhar para a comunidade que a sustenta e não se preocupar apenas com a publicação de papers. “Podemos fazer as duas coisas. A publicação deve ter seu espaço, mas oferecer uma resposta à sociedade também faz com que a universidade cresça. Em nosso departamento realizamos pesquisas visando diversos tipos de aplicações”. O pesquisador gosta de contar a experiência da Corning Glass, indústria chamada para resolver um sério problema das companhias de trens nos EUA, em 1908: no tempo em que mais gente e animais cruzavam as linhas, usavam-se lanternas de sinalização, cujos vidros frequentemente se partiam devido ao choque térmico com a chuva e a neve. “A solução foi desenvolver um vidro de baixo coeficiente de dilatação (de boro-silicato) que não quebrava mais”. O fabricante, de acordo com Damiani, passou a fornecer vidros para companhias de trens de todo o mundo. No entanto, em pouco tempo, quase foi à falência, justamente porque seu produto não quebrava. “Certo dia, em 1913, um engenheiro da empresa levou um vidro para casa, a pedido de sua esposa, que teve a ideia de usá-lo como forma para bolo. Ela descobriu um uso diferente para a tecnologia, levando à criação da marca Pyrex”. O professor Furio Damiani: “É preciso exercitar para aprender, e aprender também significa errar” A propósito, no teto de sua sala na FEEC, ele aponta o espelho com três lâmpadas fluorescentes, uma delas queimada e outra prestes a queimar. “Aquilo que vai escurecendo o vidro, próximo às extremidades, é um filamento para auxiliar o processo de acendimento da lâmpada, iniciar a descarga no gás em baixa pressão no interior. Nas lâmpadas de filamento, o fabricante pode programar quantas horas elas vão durar”. O professor segue explicando que o vidro da lâmpada fluorescente é coberto internamente por um pó com óxidos que são iluminados pelos raios ultravioletas gerados pela descarga. Dependendo da composição do pó, pode-se gerar luz na cor desejada, como por exemplo, mais branca ou mais vermelha. “Em um experimento, coloquei uma lâmpada ‘queimada’ num forno de microondas doméstico. E ela acendeu, pois o que ‘queimou’ foi apenas o filamento. Essa lâmpada é chamada de catodo quente, sendo possível fabricar as de catodo frio (sem filamento)”. Lâmpadas a LED Segundo Damiani, vem daí o grande interesse em desenvolver LEDs (sigla em inglês para diodos emissores de luz), capazes de gerar fótons, sem uso de filamento. “O diodo é fabricado com materiais semicondutores. LEDs que emitem luz vermelha, laranja e amarela usam substratos de GaAs (arseneto de Gálio); já para obter luz verde ou azul, deve-se usar substratos de GaN (nitreto de Gálio). As camadas ativas dos LEDs, de alguns átomos de espessura, são dopadas com diversos elementos, que determinam a cor da luz gerada”. O docente explica que um LED de gravador, que acende quando o aparelho está em funcionamento, apesar de muito eficiente, não gera luz suficiente para ser usado, por exemplo, como um farol de carro. “Entretanto, podemos fabricar muitos LEDs, um ao lado do outro, a fim de que possam substituir lâmpadas incandescentes ou fluorescentes. Montadoras alemãs já vêm testando LEDs em faróis de automóveis”. Tais lâmpadas teriam longa durabilidade e alta eficiência, mas há um problema a ser resolvido: elas aquecem, o que degrada os diodos. “Em LEDs de baixa potência, há dissipação térmica suficiente. Já quando agrupados para fornecer mais luz, como no farol de um automóvel, é preciso encontrar um meio de refrigerá-los. Os motivos dessa perda de eficiência relacionada com a potência dos LEDs (droop) têm sido muito estudados. Diria que são boas as chances de substituir as lâmpadas convencionais pelas de LEDs, que provavelmente teriam vida útil maior até que a do usuário. No entanto, voltaremos ao velho problema: nessa sociedade baseada no lucro, quem vai querer fabricar um produto que não estraga?”.