Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul
UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751
LÍNGUA EM USO: REFLEXÕES SOBRE PRAGMÁTICA A PARTIR DE UM
TEXTO LITERÁRIO
Marcela Marabeli de MORAES1
RESUMO: Sabe-se que não há como refletir sobre questões referentes à pragmática
desvinculando-as do ponto de vista das diferenças, sobretudo da linguagem em uso, da
comunicação dada em cada contexto de fala, uma vez que “a pragmática aposta nos estudos
da linguagem, levando em conta também a fala, e nunca nos estudos da língua isolada de sua
produção social” (PINTO, 2006). Para tanto, propõe-se neste trabalho um diálogo
introdutório sobre questões de pragmática a partir de um texto literário, mais
especificamente, da obra Vidas Secas de Graciliano Ramos (2011) com um grupo de
professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio de uma escola pública. Tem-se como
objetivo compreender com maior propriedade os estudos sobre pragmática, compartilhando
estes conhecimentos com professores atuantes, a fim de contribuir para o processo de ensino
e aprendizagem de língua materna. Adota-se por metodologia a análise do referencial teórico
selecionado a priori, além dos questionários e registros escritos das discussões realizadas
nos encontros, os quais serão desenvolvidos no decorrer da pesquisa. O trabalho embasa-se
nos estudos de Armengaud (2006); Pinto (2006); Rajagopalan (2010), dentre outros. Essa
reflexão é norteada pela hipótese de que os estudos pragmáticos pretendem melhor
compreender o que é linguagem e analisá-la trazendo para a discussão os conceitos de
sociedade e de comunicação. Registra-se que este estudo é parte de um trabalho de mestrado
em desenvolvimento.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Pragmática; Ensino.
ABSTRACT: It is known that there is no way reflect on issues of pragmatic detaching them
from the standpoint of differences, especially in use of language, communication given in
each context of speech, since "Pragmatics bet in language studies, taking into account also
the speech and language studies never isolated from their social production" (PINTO, 2006).
To this end, we propose in this paper a introductory dialogue on issues of pragmatic from a
literary text, more specifically, the work “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (2011) with a
group of Portuguese Language teachers of high school in a public school. It has been goals at
understanding more property studies on pragmatics, sharing this knowledge with teachers
working in order to contribute to the teaching and learning of language. Methodology is
adopted for the observation and analysis of the theoretical framework selected a priori, and
the questionnaires and written records of discussions held at the meetings. The work
underlies the studies of Armengaud (2006); Pinto (2006); Rajagopalan (2010). This reflection
is guided by the hypothesis that pragmatic studies aim to better understand what is language
and analyze it to discuss bringing the concepts of society and communication. Join this study
is part of a master's degree work on development.
KEYWORDS: Language; Pragmatics; Education.
1
Mestranda em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
[email protected]
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1 Introdução
Isenta de qualquer manifestação de neutralidade, toda linguagem concerne ao
movimento de poder simbólico, não menos, representativo que projeta o sujeito para o
mundo, a fim de corresponder a uma ferramenta de construção social e expressão do
significado, consequentemente do poder e da ação. Para tanto, todo sujeito é extensão da sua
linguagem e de suas práticas comunicativas, lugar este da língua viva, conflituosa e
heterogênea, embasada pelo jogo de interesses e poder, uma vez que “embora seja legítimo
tratar as relações sociais – e as próprias relações de dominação – como interações simbólicas
(...), não se deve esquecer que as trocas linguísticas são também relações de poder simbólico”
(BOURDIEU, p.24, 2002a), em que se estabelecem as relações de força entre o falante e seu
grupo. Não há como pensar em linguagem em uso sem refletir sobre pluralidade e diferenças
numa sociedade historicamente mista e cambiante em que se entrelaçam, a todo o momento,
diversas vozes nos mais distintos contextos de fala, empregando inúmeras identidades,
crenças, atitudes e ideologias aliada aos valores socialmente estabelecidos, a fim de constituir
os atos de fala, não obstante, a visão pragmática da linguagem.
Compreendendo que as reflexões sobre linguagem estão intrinsecamente associadas ao
pensar sobre a comunicação dada em cada contexto de fala, da linguagem em uso e que este
estudo não pode ser desvinculado das múltiplas diferenças que atuam nas sociedades, propõe
neste trabalho um diálogo introdutório sobre questões de pragmática, que visam à discussão
sobre a linguagem ordinária e as vertentes transdisciplinares que a perpassa, a partir de um
texto literário, mais especificamente, da obra Vidas Secas de Graciliano Ramos (2011) com
um grupo de professores de Língua Portuguesa de uma escola pública. Adota-se como
objetivo compreender com maior propriedade sobre os estudos pragmáticos a partir de
situações de fala fictícias para o real, a fim de compartilhar conhecimentos com professores
atuantes e, dessa forma, contribuir para o processo de ensino e aprendizagem de língua
materna. Inquieta-nos pensar em que medida os estudos pragmáticos podem auxiliar na
reflexão aprimorada sobre sociedade e comunicação, partindo de um texto literário dentro e
fora da sala de aula. Nessa perspectiva, visa-se também reafirmar o olhar de
professor/pesquisador de línguas, por conseguinte, desenvolve-lo por meio da metodologia de
observação e análise referencial teórico, da obra literária selecionada e dos registros
resultantes das conversas e trocas de conhecimentos com professores de línguas.
Caminha-se nesse estudo compreendendo que “as pessoas falam para serem ‘ouvidas’,
às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que
realizam os atos linguísticos” (GNERRE, p.03, 1985a) e para isso fazem uso de armas
comunicativas que garantem, ou tentam garantir, o seu domínio, sua identidade e intenção
sobre o outro, assim, a linguagem deixa de ser um veiculo de transmissão de dados e
informações, mas um artefato de comunicação que marca o espaço do sujeito no mundo, na
sociedade em que vive. A fim de pensar especificamente em variedades linguísticas, as quais
não deixam de ser manifestações de linguagem, Gnerre (1985b, p.04) aprimora essa reflexão
sobre linguagem e poder ao ressaltar que “uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na
sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas
relações econômicas e sociais”. Cabe mencionar quando se pensa no poder da palavra, poder
este de dar vida e também tirá-la, de dar voz e também silenciar, de permitir diversas
interpretações e sentidos em distintos momentos e por diferentes falantes e ouvintes, na
mobilização da diferença, da seleção e da exclusão a partir das representações, enfim, usa-se,
nesse texto, a metáfora de Sartre (...) quando este lembra que “as palavras (...) são ‘pistolas
carregadas’. Quando fala, ele atira. Pode calar-se, mas uma vez que decidiu atirar é preciso
que o faça como um homem, visando o alvo, e não como uma criança, ao acaso, fechando os
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olhos, só pelo prazer de ouvir os tiros” (SARTRE, s/a apud Gnerre, 1985c, p. 22), ou seja, ver
a palavra como uma ação que gera consequências, como uma lança jogada ao vento sem
garantia de domínio, uma vez que toda linguagem é um instrumento polifônico e mutante.
A fim de pensar linguagem como ferramenta isenta de neutralidade e de relevante
valor pragmático, essa promove a consciência social no sujeito o que mobiliza sua
transgressão, ou seja, seu desejo de mudança, de ir além, de se movimentar na sua zona de
conforto, de olhar o outro a partir do seu lugar, desse modo, se faz necessário ir além do texto,
seja oral ou escrito, para que ele se efetive como modificador social, sendo este o ponto de
partida para a leitura de outros mundos, nessa perspectiva de estudo o papel do professor de
Língua Portuguesa e do sistema educacional como um todo são de mediadores entre a
linguagem viva e a sociedade, sendo fundamental para o desenvolvimento dos sujeitos e suas
práticas linguísticas e sociais. Por meio de uma proposta de pesquisa que visa à articulação
entre estudos linguísticos e literários, pode-se compreender que ambas tem muito a contribuir
para as reflexões sobre linguagem e suas práticas e que a palavra vai além de um conjunto de
sons associados com significações, mas um jogo de poder. Além disso, a junção desses
estudos, linguísticos e literários, às discussões pragmáticas no ensino de língua materna,
permite refletir sobre sujeitos periféricos e seus atos de fala, colocando-se nesse mundo
marginalizado não como observadores, mas participantes que busquem a transgressão e a
consciência social.
2 Estudos pragmáticos a partir do discurso da seca.
Compreende-se no que concerne aos estudos sobre linguagem ordinária, ou seja,
linguagem do cotidiano, na obras ficcionais ou real, a não consideração das reflexões
pragmáticas inevitável, disciplina esta de caráter não estanque que associa estudos filosóficos
aos linguísticos, a fim de melhor discutir sobre atos, contextos e desempenho de fala nas
práticas comunicativas, não deixando à margem diálogos com as questões filosóficas como
subjetividade e alteridade. O filósofo J. L. Austin foi o principal inspirador da teoria dos atos
de fala, por conseguinte, estudioso da linguagem ordinária, junto a ele John Searle como
principal divulgador. Austin defendia esta linguagem “como digna de estudos filosóficos, ele
mesmo se valia da linguagem ordinária para falar dos temas que a tradição filosófica
acreditava só pudessem ser discutidos numa metalinguagem especialmente talhada para tal
fim” (RAJAGOPALAN, 2010a, p.15). Os estudos pragmáticos têm a linguagem ordinária
como um dos principais artefatos de análises, uma vez que são por meio dessa que se atua a
língua viva junto aos seus aspectos sociais e as práxis dos sujeitos nos processos de
alteridade. Dessa forma, “se é certo que a pragmática aborda questões relativas ao uso da
linguagem, como maioria dos estudiosos concorda, cabe igualmente perguntar como abordar
racionalmente essas questões sem primeiro reconhecer a inerente dimensão social2 das
mesmas” (RAJAGOPALAN, 2010b, p. 32), não há como pensar sobre linguagem fora do seu
contexto, lugar este das interações e intenções sociais e onde realmente a língua se efetiva,
ganha vida.
Nessa perspectiva de que os estudos pragmáticos correspondem ao domínio tanto das
línguas formais quanto as naturais nas mais diversas práxis do sujeito, caracterizando uma
disciplina multifacetada em processo de transformação e estudo, para tanto se deve denominála e entende - lá também de forma plural e subjetiva, marcando as diversas vozes que
transitam nos seus estudos ainda em desenvolvimento. ARMENGAUD (2006a, p.16)
aprimora essa hipótese ao afirma que:
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Grifo do autor.
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Antes de tudo, deve-se dizer a ou as pragmáticas? Uma disciplina? Uma
confluência de disciplinas diversas? Pesquisa em pleno desenvolvimento, a
pragmática ainda não está realmente unificada. O consenso ainda não se
instalou entre os pesquisadores quanto a sua delimitação, quanto a suas
hipóteses, nem mesmo quanto a sua terminologia. Por outro lado, pode-se
ver quase nitidamente em que medida ela constitui um rico cruzamento
interdisciplinar para linguistas, lógicos, semioticistas, filósofos, psicólogos e
sociólogos. O seu ritmo é o dos encontros e o das dispersões.
(ARMENGAUD, 2006, p.16).
O movimento de (re)pensar sobre a pragmática e suas contribuições para os estudos
que concerne a linguagem é uma estratégia recente entre os pragmaticistas que aprimoram a
ideia de compreende-la não como “uma técnica já pronta para analisar as ocorrências do
discurso”, para tanto, “a natureza, subjetiva, seletiva e, fundamentalmente, não científica da
análise de língua(gem) em contexto deveria ser reconhecida e não disfarçada a partir da
adoção de símbolos e signos oriundos de abordagens mais seguras” (COOK, 1990, p. 15 apud
RAJAGOPALAN, 2010c, p. 38), a fim de não ver a língua autônoma dos atos de fala, mas
como uma ferramenta que mobiliza o (re)refletir sobre a sociedade a partir da linguagem.
Nesse momento se torna válido ressaltar que abordagens políticas também são de ordem dos
estudos pragmáticos, especificamente, políticas da linguagem, uma vez que por meio dos
estudos sobre esta política se pode melhor compreender marcas subjetivas e identitárias nos
atos comunicativos, as quais são legitimadas por meio de ações, escolhas, crenças e ideologias
do sujeito em interação com o outro, não deixando à margem o poder da representação que
perpassa todos os discursos.
Os estudos pragmáticos na sua amplitude de interesses que correspondem à linguagem
ordinária são notórios na leitura engajada do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2011).
Um discurso marginal do personagem Fabiano e sua família de retirantes entrelaçado a uma
sociedade em reconstrução nos anos 30, período pós-guerra em que se pairavam os abusos dos
poderes políticos e sociais; “embora lido correntemente como narrativa sobre retirantes e seus
dramas sociais, Vidas Secas, guarda uma significação menos aparente e, no entanto, central.
Trata-se, antes de mais nada, de um palpitante romance sobre a urgência da leitura” (NETO,
2006a, s/p), além do poder da linguagem. Nesse contexto de miséria a seca material
condiciona a seca das palavras e o silêncio toma voz, a fim de falar pela família sertaneja.
Compreendendo o silêncio como uma prática discursiva que promove o posicionamento do
sujeito e a isenção de neutralidade da palavra não pronunciada, o silêncio muitas vezes se
comporta na narrativa como parte dos discursos junto aos enunciados gutuais e
monossilábicos utilizados pela família. Esta falava pouco por saber o poder das palavras e ter
medo delas, além disso, sabiam que diferente da linguagem dos bichos a linguagem humana
selecionava, excluía e discriminava, ou seja, promovia a diferença, dentre outras razões, por
seu caráter subjetivo e tênue sobre as interpretações e significados das palavras e enunciados,
o que promoveria consequências nem sempre positivas nos atos de fala, para tanto, era inútil e
perigosa. O trecho seguinte sobre o personagem Fabiano ilustra essa ideia:
Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se
dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco.
Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava
reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez
perigosas” (RAMOS, 2011a, p.20).
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A linguagem é vista por Fabiano como perigosa e inútil, dentre outras questões, por
desencadear inquietações, reflexões que provocam questionamentos que, muitas vezes, não
têm respostas e que geram a necessidade de outros conhecimentos incessantemente e para um
sujeito à margem de uma sociedade tradicionalmente escrita, fundamentada na linguagem
culta, todo conhecimento que se distancie da vida retirante não tem necessidade no contexto
de seca, talvez, fora dele. Como bicho miserável que se compreendia, a fim de reforçar os
discursos sociais ao seu respeito e de sua família, Fabiano pensava não ter o direito do
conhecimento, de querer saber, de questionar por meio de suas inquietações, mas sim, se
comportar como subalterno de sua identidade cabocla e ignorante, o qual não tinha direito de
transgressões. Fabiano, pai da família retirante, acredita numa identidade estanque em que se
deveria nascer e permanecer da mesma forma: sem oportunidades, sem evoluções. O
personagem pensava o mesmo sobre a educação dos filhos, os quais estavam aflorando seus
questionamentos e curiosidades, fazendo perguntas que o pai não sabia responder e isso o
incomodava, afinal Fabiano se sentia confortável na ignorância, realçando seu lugar na
sociedade como sujeito dominado, por conseguinte, o lugar de seus filhos no contexto da
seca. Preocupado com a educação dos filhos que se tornavam cada vez mais curiosos,
Fabiano:
Agora queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos
pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa,
regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o
pote vazio e regressando com o ponto cheio, deixava os filhos soltos no
barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores,
insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha direito de
saber? Tinha? Não tinha. (RAMOS, 2011b, p.22).
O termo “ter” ou “não ter” carrega consigo um forte apelo simbólico e subjetivo, não
menos, ilocucionário, uma vez que dentro de um contexto de fala, especificamente, do texto
de Vidas Secas este signo transmite não somente a ideia de posse material ou ideológica, mas
de vida, ou melhor, a afirmação de que Fabiano era um bicho miserável, irracional,
caracterizando um enunciado de ação, uma performance que isolada não se efetiva, sendo
preciso a contribuição de outros falantes no ato de fala. Nesse caminhar de que todo ato de
fala remete a uma ação, ou seja, todo dizer é fazer, podem-se identificar diversos atos
ilocucionários atuantes na obra literária esmiuçada, uma vez que “o ponto de partida da teoria
clássica dos atos de fala é a convicção seguinte: a unidade mínima da comunicação humana
não é nem a frase, nem qualquer outra expressão. É a realização (performance) de alguns
tipos de ato” (ARMENGAUD, 2006b, p.99). John L. Austin, pai da teoria dos atos
ilucucionários, os quais são parte dos atos de fala, desenvolve nos seus estudos de Oxford
uma lista de verbos, os quais são compreendidos como atos, numa tentativa de dar conta dessa
modalidade de enunciados. No entanto, vale ressaltar que correspondem a atos em processo
de discussão e revisão durante todo os estudos de Austin por se tratar de verbos que
dependem das condições específicas de caráter linguístico e extralinguístico. Segundo
ARMENGAUD (2006c, p.99) a lista concerne nos verbos: “afirmar, fazer uma pergunta, dar
uma ordem, prometer, descrever, desculpar-se, agradecer, criticar, acusar, felicitar, sugerir,
ameaçar, suplicar, desafiar, autorizar”.
Dessa forma, atos de fala não devem ser confundidos com frases por envolver um
conjunto de discursos e vozes que transitam nas trocas linguísticas, além disso, “ao
pronunciar uma frase, um falante realiza um, outro ou, às vezes, vários desses atos”
(ARMENGAUD, 2006d, p.100). Concerne, em linhas gerais, a atos que todo sujeito de fala
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realiza no momento comunicativo, a fim de remeter a condições linguísticas e/ou
extralinguísticas. Referente aos atos ilocucionários, ARMENGAUD (2006e) ressalta que:
Alguns deles são suficientemente definidos pelas regras gerais da linguagem.
Outros realmente dependem de que certas condições extralingüísticas, mas
ainda convencionais, se realizem: condições institucionais de dimensão
social (assim, segundo o clássico exemplo de Austin, para ‘declarar que uma
sessão está aberta’ é preciso ser o presidente da sessão...)”. (ARMENGAUD,
2006e, p.100).
Estudos de caráter pragmático mobilizam reflexões que apontam a linguagem como
única formadora do sujeito, devido à força representativa dos atos de fala e o poder que as
palavras exercem sobre os falantes e suas práticas comunicativas e sociais. Atos
ilocucionários em seus contextos de fala representam ações realizadas pelos sujeitos da
comunicação e é com este olhar que se destaca uma passagem da obra Vidas Secas (2011)
para uma observação engajada por meio das reflexões das performace ou ações promovidas
pelo personagem Fabiano. Segue o trecho:
-Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirarse ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um
cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha
olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia,
cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos
brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente. Corrigiu-a murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.
Isso para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando
o seu cigarro de palha.
- Um bicho Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias
mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com
ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e
oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo
aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as
marcas de ferro. (RAMOS, 2011c, p.19).
O trecho acima permite pensar sobre uma proposta de refletir sobre atos
ilocucionários, não menos, sobre performidade (ação feliz ou infeliz) mobilizada por meio da
linguagem em uso, nos contextos de fala. Nos estudos de Oxford, Austin, afirma que “os
procedimentos de linguagem distribuem-se em dois grupos nitidamente distintos, a saber, os
‘constativos’ e os ‘performativos’”, hipótese esta que foi revista pelo filósofo durante os seus
estudos. De acordo com RAJAGOPALAN (2010d) o estudioso de Oxford não abandona a
distinção entre enunciados constativos e performativos:
Embora ele embarque em um novo curso de investigação e, ao mesmo
tempo, elabore todo um novo aparato (que redunda na distinção tripartite
entre o que ele chama de atos locucionários, ilocucionários e
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perlocucionários), resta o fato de que Austin não se desfaz inteiramente do
antigo vocabulário nem das problemáticas noções que lhe correspondem.
(RAJAGOPALAN, 2010, p.191).
Ainda sobre enunciados constativos e performativos se registra que “só os primeiros
podem ser julgados em termos de verdade ou falsidade. Os últimos, por outro lado, são ditos,
na melhor das hipóteses, ‘felizes’, a depender de sua adequação ou não a uma série de
circunstâncias”. (RAJAGOPALAN, 2010e, p.190). Em outras palavras, compreende-se que se
outro sujeito, fora desse contexto de seca, mobilizasse um ato de consciência como o
personagem Fabiano promove nessa passagem não obteria a mesma “felicidade” que o
caboclo obteve, não caracterizando enunciados performáticos e, sim, somente constativos. O
ritual representativo que sustenta os enunciados performativos, portanto, os atos
ilocucionários garantem a infelicidade ou a felicidade do discurso de Fabiano, sobretudo, não
a condição de verdade ou falsidade.
Segundo a leitura da obra, Fabiano e sua família depois de um longo percurso de
caminhada sem destino sobre o sertão nordestino, encontram um pedaço de terra no meio da
caatinga aparentemente abandonada. A família se instala, mas logo é surpreendida pelo
proprietário, o qual autoriza a permanência dos caboclos em troca de serviços prestados: o
cultivo da terra. Fabiano pouco ganhava em dinheiro, era visivelmente escravizado pelo
patrão que o enganava em cada pagamento. Tanto o patrão quanto Fabiano o via como os
outros bichos de carga da fazenda, porque sua única luta eram o trabalho e a sobrevivência
diária na seca. Como mencionado, a passagem supracitada se refere a um ato de consciência
individual de Fabiano, ou seja, uma marca de sua subjetividade no seu discurso isolado dos
outros, o que mobiliza um ato performativo, portanto, ilucucionário. Este ato pode ser visto
com maior nitidez nas frases “você é um bicho, Fabiano” e “entregara-lhe as marcas de
ferro”.
Isoladamente estes enunciados podem ser compreendidos como constativos, mas
perante todo discurso de seca e discriminação que perpassa estas palavras efetiva a ação de
performidade desses enunciados. Fabiano como sujeito subalterno e inferiorizado nas suas
práticas linguísticas e sociais reafirma para si mesmo sua identidade naquela situação: bicho
sem voz que como um bicho do campo carrega a marca do dono, a marca feita com o ferro. O
ritual simbólico que se efetiva nesses enunciados busca garantir a performidade da fala, a fim
de registrar pra si mesmo o isenção do direito de ser um vaqueiro de respeito naquelas
condições abaixo da miséria e da seca material, mas como um bicho conformado as suas
condições, entregue as marcas de ferro, a escravização e ao desrespeito social.
Podem-se olhar os estudos pragmáticos em toda manifestação de fala do sujeito, real
ou fictício, a fim de envolver princípios que vão além dos sociais e políticos, mas ideológicos
e culturais, sustentados pelas crenças que norteiam do ato comunicativos. Esse trabalho visa
uma proposta de refletir sobre pragmática a partir de um texto literário, trazendo para
situações reais de fala, especificamente, no refletir sobre o ensino de língua materna, uma vez
que não há como propor diálogos sobre abordagens pragmáticas sem considerar linguagem
como prática social e é no contexto escolar que, muitas vezes, o olhar pragmático sobre a
sociedade se mobiliza. Para tanto,
É necessário formar professores ensinando-os a entender que linguagem é
prática social. É lugar de fazer e desfazer a vida na interação cotidiana e que,
portanto, pensar somente a língua com base em sua estrutura interna ou
como espaço de comunicação esvaziando de relevância social é um
desperdício educacional e político. (LOPES, 2012a, p. 12).
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3 Vidas Secas no ensino de língua materna
Sabe-se que toda instituição escolar é um lugar de todos, sendo o lugar das muitas
vozes que mobilizam a oportunidade de transgredir por meio da construção de olhares de
mundo diferentes que alertam ideologias e crenças múltiplas e pragmáticas, em outras
palavras, “a escola é um espaço fundamental de construção da vida social. Um lugar
relativamente distante do mundo da família e de seus discursos, é o primeiro espaço ao qual a
criança adentra com a possibilidade de se expor a outras construções sociais sobre quem é ou
pode ser”. (LOPES, 2012b, p.9). Para tanto, este trabalho visa propor um diálogo introdutório
sobre questões de pragmática a partir de um texto literário, mais especificamente, da obra
Vidas Secas de Graciliano Ramos (2011) com um grupo de professores de Língua Portuguesa
do Ensino Médio de uma escola pública. Tem-se como objetivo compreender com maior
propriedade os estudos sobre pragmática, compartilhando estes conhecimentos com
professores atuantes, a fim de contribuir para o processo de ensino e aprendizagem de língua
materna. Esta proposta de diálogo com docentes da rede pública busca também mobilizar o
engajamento desses profissionais do ensino no que concerne à língua e sociedade na
construção do sujeito, uma vez que ainda se caminham, em diversos contextos de sala de aula,
no senso comum. LOPES (2012c) aprimora ao afirmar que:
As pesquisas sobre o universo pedagógico e sua relação com as
sociabilidades disponíveis sobre quem podemos ser têm mostrado que, no
discurso pedagógico oficial – o sendo comum sobre a vida social ainda se
sobressai. Via de regra, os professores operam publicamente com discursos
bem conservadores sobre gênero, sexualidade, raça, etnia, etc, ainda que, em
suas práticas vidas privadas, vivam vidas que questionem tais discursos. São
poucos ainda aqueles que têm conhecimento para além do sendo comum que
lhes permita tematizar a vida social em sala de aula (...). Essa tendência é
especialmente incompreensível entre os professores de línguas”. (LOPES,
2012c, p.10).
Por meio da leitura e discussão das questões social, políticas e ideológicas que
perpassam a obra Vidas Secas (2012) pode-se promover diálogos com situações reais que
diversos sujeitos vivenciam dentro e fora do universo educacional e que sustentados por
reflexões que caminhem por um viés pragmático mobilizar comportamentos engajados na
linguagem “com a esperança que possa usá-la para fazer escolhas éticas sobre o mundo social
que espelhem a possibilidade de refutar qualquer tipo de sofrimento humano” (LOPES,
2012d, p.10). Além disso, dar voz àqueles que encontrarão na leitura da obra literária
estudada situações sociais e linguísticas compatíveis com experiências de vida de cada, a fim
de adotar valores e significados diferentes para distintos alunos, uma vez que “só nos
envolvemos na construção do significado quando aquilo do que falamos, lemos ou
escrevemos é relevante ou significativo para nós mesmos” (LOPES, 2012e, p.11). Nesse
engajamento social e individual promove a busca do conhecimento de “quem somos” ou
“queremos ser”, ou seja, é mobilizar olhar para si mesmo e para seu redor, indo além do texto
e se permitindo transgredir, ultrapassar limites dentro e fora da escola.
Por meio da metodologia de análise do referencial teórico selecionado a priori, além
dos questionários e registros escritos das discussões realizadas nos encontros com os
professores, se permite o compartilhamento de conhecimento entre docente atuante e
docente/pesquisador em formação numa busca de unir interesses que visem a
desenvolvimento do ensino de línguas através da promoção de diversas leituras de textos e
mundos, subsidiados pelas inúmeras vozes que concernem o sujeito. Além disso, é pensar o
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ensino de Língua Portuguesa a partir da mistura, da heterogeneidade, sobretudo, da condição
humana uma vez que “um dos saberes fundamentais para a educação do futuro é ensinar a
condição humana, conhecer o humano. E conhecer o ser humano é, acima de tudo, ‘situá-lo
no universo, e não separá-lo dele’” (MORIN, 2002 apud HONÓRIO, 2009a, p.81). Para tanto,
o papel do professores comprometido é de mediador entre o aluno e as diferenças, a fim de
ver estas como parte da condição humana, em outras palavras, a função do professores de
língua materna “seria o de, ao invés de simular a igualdade, fazer emergir, pela escuta, as
diferenças como lugar de trabalho e não de suspensão e adequação. É acreditar que o aparente
caos entre ordem/desordem é uma condição terrestre e humana”. (HONÓRIO, 2009b, p.94).
A proposta apresentada nesse trabalho que promove um novo olhar sobre a obra
literária no estudo de língua materna, visando à reflexão sobre a linguagem em uso por meio
de um estudo pragmático, o qual compreende o sujeito como parte atuante de suas práticas
isento de qualquer manifestação de caráter neutro ou indiferente, busca também discutir e
melhor compreender os desafios encontrados nas salas de aula na contemporaneidade, a fim
de vislumbrar cada entrada em sala como uma intervenção ímpar e, muitas vezes, conflituosa,
uma vez que são as múltiplas identidades e, não menos, subjetividades do professores que se
entrelaçam a dos alunos num impulsionar de interesses que caminham nem sempre em
paralelo. Para tanto, esse trabalho visa exercitar no professores e pesquisadores o
descolamento, sair da condição de observador para de participantes da ação numa tentativa de
olhar o mundo sobre o olhar do outro, do sujeito periférico, subalterno nas suas práticas por
diversas razões que podem não ser de seca material, mas de voz social. Cabe aos professores
de língua materna e ao sistema educacional que fazem parte desenvolverem pedagogias de
ensino que compreendam que é “nas práticas linguageiras, as pessoas realizam ações sociais,
como constituir e produzir identidades sociais”, portanto, “para que uma identidade se torne
relevante, é necessário (...) que os participantes da fala-em-interação se orientem para essa
identidade, produzindo-a intersubjetivamente” (JUNG; SEMECHECHEM, 2012a, p.77).
4 Considerações finais
No que concerne ao estudo de uma linguagem em uso, não menos, polifônica e
mutante, não há como deixar à margem o sujeito e suas práticas linguísticas e sociais, uma
vez que todo sujeito busca por meio da linguagem obter voz, ser ouvido e respeitado nos seus
atos linguísticos, como lembra (GNERRE, 1985). Esse trabalho adotou como proposta de
estudo um diálogo introdutório sobre questões de pragmática, que visam à discussão da
linguagem em uso e as vertentes transdisciplinares que a perpassam, ou seja, abordagens que
vão além do texto e do código linguístico isolado, mas impulsionam reflexões de isenção de
neutralidade social, política, cultural e ideológica por meio da linguagem, a partir de um texto
literário, especificamente, da obra Vidas Secas de Graciliano Ramos (2011), a fim de melhor
compreender sobre a relação entre linguagem e sociedade. Compreende-se em decorrência
desse estudo que o poder representativo e simbólico da língua é formador do sujeito falante
por meio da silêncio ou da voz deste, ou seja, a linguagem molda e direciona
comportamentos, escolhas e crenças, formando os sujeitos por meio da diferenças.
Fabiano, de Vidas Secas (2011) é o retrato de vários “Fabiano” da contemporaneidade,
os quais são marginalizados por não correspondem aos princípios da elite letrada e que não
permitem ser engajado nas práticas comunicativas, respeitando sua condição humana
sustentada pela diversidade. A fim de trazer essa discussão para dentro das salas de aula e
promover o compartilhamento de conhecimentos com professores atuantes da rede pública de
ensino, propôs-se nesse estudo uma conversa com estes docentes num viés dos estudos
pragmáticos a partir de um texto literário que discute questões que vão além da seca
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nordestina. Por corresponder a um texto que parte de um projeto de dissertação de mestrado
ainda em desenvolvimento, posicionamentos e inquietações estão sendo discutidos e revistos
a todo o momento, não deixando à margem diálogos com implicações de ordem do processo
de ensino de línguas e formação de professores, além disso, que se faz necessário ir além do
texto, seja oral ou escrito, para que ele se efetive como modificador social, sendo este o ponto
de partida para a leitura de outros mundos. Nessa perspectiva de estudo o papel do professor
de língua e do sistema educacional como um todo são de mediadores entre a linguagem viva,
não obstante, política e a sociedade, tornando-se fundamental para o desenvolvimento dos
sujeitos e suas práticas linguísticas e sociais. A priori compreende-se que esta proposta de
intervenção com docentes de línguas promove um estudo engajado sobre linguagem e
sociedade numa perspectiva que visa a formação do cidadão crítico e atento as suas práticas, a
fim de desenvolver no sujeito sua consciência social e o impulsionar a transgressão, não
menos, a (re)educação do olhar do professor para o ensino de língua matera comprometido
com a sociedade.
Referências
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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo:
Usp, 2008.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
HONÓRIO, Maria Aparecida. Ensino de língua(s) e identidade: entre o real e o imaginário.
In: CORREA, Djane Antonucci; SALEH, Pascoalina Bailon de Oliveira. Estudos da
linguagem e currículo: diálogos (im)possíveis. Ponta Grossa: Uepg, 2009. p. 81-97.
JUNG, Neiva Maria; SEMECHECHEM, Jakeline. A produção de identidades étnicas na falaem-interação. In: FERREIRA, Aparecida de Jesus. Identidades sociais de raça, etnia, gênero
e sexualidade: práticas pedagógicas em sala de aula de línguas e formação de
professores/as. Campinas: Pontes, 2012. p. 77 - 100.
LOPES, Luiz Paulo da Moita. Linguagem e escola na construção de quem somos. In:
FERREIRA, Aparecida de Jesus. Identidades sociais de raça, etnia, gênero e sexualidade:
práticas pedagógicas em sala de aula de línguas e formação de professores/as. Campinas:
Pontes, 2012. p. 9-12.
NETO, Miguel Sanches. A descoberta da linguagem. São Paulo: Entrelivros, 2006.
PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna Christina.
Introdução à linguística: domínio e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2006. p. 47-68.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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