A nova obra de um 'presbítero' do movimento
A nova obra de um 'presbítero' do movimento
O CD `Com Defeito de Fabricação', de Tom Zé, anmplifica o gênio do dono da voz, criador
popular
MAURO DIAS
No embrulho generalizante (e é difícil escapar dele), Tom Zé vem sempre apresentado como
um dos criadores do movimento tropicalista. Não deixa de ser verdade, mas dito assim fica
escondido que o movimento (seria melhor dizer o momento) tropicalista o encontrou e não o
contrário. E fica escondido que o miolo teórico do momento (cuja existência o tornaria
movimento) continua vivo em sua obra.
Atesta-o o recém-lançado CD Com Defeito de Fabricação, que saiu primeiro nos Estados
Unidos (com selo Luaka Bop) e só meses depois mereceu edição nacional (da gravadora
Trama), ordem temporal que oferece: 1) retrato do descaso dos agentes da cultura de massas
com qualquer idéia cultural que não seja moldável aos seus preceitos comerciais e 2) a perfeita
incompreensão dos agentes da cultura de massas de qualquer idéia cultural que não seja
moldável aos seus preceitos comerciais.
O disco de Tom Zé não foi lançado primeiro aqui porque achavam que não era
apropriadamente comercial. Depois, foi lançado aqui por se entender que estava "sintonizado"
com os modernos movimentos internacionais e, portanto, era apropriadamente comercial. A
crítica especializada, na quase unanimidade, refletiu esse raciocínio. Naturalmente, nem um
raciocínio nem outro são corretos.
Os defeitos de fabricação que dão origem ao disco são os mesmos que eram atribuíveis ao
momento coletivo tropicalista - irreverência, prazer criativo, humor, o olho na tradição, o nariz
no mundo, os braços no trabalho de construção da obra de arte, o cérebro ebulindo, atento,
arregimentando informações, processando-as, usando linguagens para criar linguagem.
1/4
A nova obra de um 'presbítero' do movimento
Sinfonia cotidiana - "A estética de Com Defeito de Fabricação re-utiliza a sinfonia cotidiana do
lixo civilizado, orquestrada por instrumentos convencionais ou não: brinquedos, carros, apitos,
serras, orquestra de Hertz, ruídos das ruas, etc., unidos a um alfabeto sonoro de emoções,
contidas nas canções e símbolos musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva",
escreve Tom Zé, na contracapa do encarte do disco. Quer concluir que está terminada a época
do autor: instaura-se a era do arrastão autoral (era do "plagiocombinador"); da incorporação, da
entropia.
"Na escola de música, conheci que Bach tomava de uma peça para cordas, de Vivaldi, escrita
em dó, transpunha-a para o cravo, em mi bemol, tom mais cômodo para o instrumento, e a
assinava", conta Tom Zé. "Fazia-se isso com naturalidade; a psicologia da autoria era
diferente", diz. Se hoje uma orquestra de câmara interpreta obra de "autor desconhecido", isso
não quer dizer - entende Tom Zé - que um borrão tenha escondido o nome do autor - a
verdade é que não se assinavam as obras.
Até um determinado momento, um minueto era tanto melhor quanto mais se assemelhasse ao
modelo básico dos minuetos. "Quem inaugurou o conceito de autor, palavra que vem de
autoridade, como o entendemos hoje, foi Beethoven; a humanidade tem cultivado o Deus de
Abraão e o Ego de Beethoven", prossegue Tom Zé. "Se você toma 200 sambas, 199 deles não
precisariam de assinatura, pois são iguais entre si e iguais ao modelo do samba; no entanto,
temos a cultura da autoria", continua.
Gil com Glass - O conceito de autoria, no entanto, convive, hoje, com o esgotamento das
possibilidades da escala ocidental, de sete graus, ou sete notas. Não é preciso ser matemático,
como lembra Tom Zé, para se dar conta de que não há mais o que inventar - estamos na era
do plágio. "O que fiz agora, nesse disco, e que foi considerado pessoal, personal, novidade, foi
um estilo de arranjo, que combina o ostinato do baixo em contraponto rítmico rigoroso com o
cavaquinho, o desarranjo gradual da bateria - a novidade não é a música, é o estilo; era o que
eu estava procurando, era essa a minha pretensão, a minha vaidade, a busca de um protótipo."
Os primeiros a ouvir Com Defeito de Fabricação ficaram intrigados - eram estrangeiros,
achavam que estavam diante de uma combinação de Gilberto Gil com Philip Glass. Mais uma
vez, o embrulho generalizante - mas a fase passou. "É claro que você fica com a percepção
obnubilada pelo arranjo e não vê que a composição é a mesma desde o tempo de d. Jorge",
Tom Zé diz.
2/4
A nova obra de um 'presbítero' do movimento
Talvez daí venha a necessidade de catalogar, embrulhar em gêneros - se você cataloga mesa
de madeira e mesa de mármore em categorias diferentes, você tem dois gêneros, pois não? E
você acha que encontrou a chave da diversidade. Por outro lado, se for conveniente, você
pode embrulhar maxixe com o Soho londrino na mesma categoria, se, para entender o mundo,
ou para gostar do maxixe, você precise da referência do Soho londrino. "Não sei o que se faz
nas cavernas de Nova York ou de Londres", esquiva-se Tom Zé. "Eu não ouço músico, eu
trabalho com música, como um mouro, como um japonês, 12 horas por dia, e depois não ouço
música - vou ler um livro, fazer outra coisa."
Na escola, aprendeu coisas para saber o que não vai usar - o dodecafonismo, o serialismo - e
não aprendeu mais do que sabe Milton Nascimento, do que sabia Cartola, diz ele. "Mas
quando você faz um discurso que não seja fechado, não seja ditatorial, que seja obra aberta,
você se abre para permitir que os outros pensem sobre o que você faz de forma diferente" vale por uma definição de humanismo, na voz do baiano de Irará que pretende estar sempre
trabalhando na fronteira do desconhecido.
Na obra infelizmente pouco conhecida de Tom Zé, a fronteira está tanto nas melodias (ou na
vestimenta delas) quanto na poética de deslocamento, cacopédica (no neologismo de Umberto
Eco, de kakos, irregular, disforme), vide os versos da primeira faixa do disco, Defeito 1: o Gene
(subtitulado Arrastão de Santo Agostinho): "Faça suas orações/ Uma vez por dia/ E mande a
consciência/ Junto com os lençóis/ Pra lavanderia."
Arrastão é a rede jogada nas águas que, quando puxada, traz os peixes presos à malha;
arrastão é uma modalidade de furto surgida nas praias do Rio em que um grupo corre através
(literalmente) de uma multidão, roubando, na passagem rápida e violenta, o que consegue
pegar; arrastão, no sentido usado por Tom Zé, é a captura, a apropriação das referências
disponíveis - a voz cacopédica desde a definição: "Dançar escreve/ Um traço leve/ O verbo de
Deus bê-á-bá" (em Defeito 7: Dançar (Arrastão de Jorge Luis Borges, Caetano Veloso e
Gilberto Gil) .
O presbítero - "A palavra é o nosso valor circulante de maior lastro", diz o nordestino Tom Zé.
Quando percebemos a falência do dicionário, quando a palavra do fascista é a mesma do
revolucionário, é preciso lutar pela palavra como se fosse descobrir, no seio da sociedade, um
verbo que assusta a sociedade, misturar profanamente os objetos diversos."
Tom Zé conta que foi criança bilíngüe. Balconista na loja do pai, ouvia: "Vossimicê astucia..." -
3/4
A nova obra de um 'presbítero' do movimento
mas a língua era outra. Descobriu em Os Sertões, de Euclides da Cunha, a descrição, feita por
um homem culto, da criatura que encontrava na loja - "Foi como nascer, como a experiência de
ter Deus, fiat lux, a primeira emoção estética" - e se perdeu pela ou se achou na linguagem.
Então, quando o fascista usa a mesma linguagem do revolucionário, o artista precisa tornar-se
o purificador da palavra, o garimpeiro do significado. Com a palavra, o autor: "Não sou poeta
no sentido formal, não sou escritor, não faço a arte que está no panteão; sou popular, canto
cantigas, sou um presbítero da religião de Machado, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha."
A obra desse presbítero, Com Defeito de Fabricação, precisa ser mais bem ouvida, conhecida,
entendida. É divertida, satírica, contundente, inteligente, íntegra, forte, lúdica, plena, feliz;
expressa o caráter e amplifica o gênio do dono da voz, criador popular. Orgulhemo-nos dele.
4/4
Download

A nova obra de um `presbítero` do movimento