O UNIVERSO DOS CAPITÃES DA AREIA Aline Graça Pinto – [email protected] Orientadora: Profª. Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik - [email protected] RESUMO O artigo visa a analisar os elementos narrativos do romance Capitães da Areia, de Jorge Amado, lançado no Brasil em 1937 e que apresenta ao leitor um grupo de meninos que vive nas ruas de Salvador. Para a análise desse romance serão consideradas as construções das personagens mais relevantes dentro da trama; as especificidades na organização do enredo e sua relação com a trajetória do grupo; os espaços onde se passam as ações e sua contribuição para a constituição do grupo. Palavras-chave: Capitães da Areia; enredo, personagens; enredo; espaço. Introdução Escrito por Jorge Amado durante uma viagem entre a América Latina e Estados Unidos na década de 30, Capitães da Areia teve sua primeira publicação no Brasil em 1937, sendo o 6º livro – em um total de 37 – publicado pelo autor. O gênero textual predominante nessa obra é o romance, uma vez que as características da composição quanto às personagens e à estrutura da trama revelam a feição desse gênero em prosa. Segundo Massaud Moisés, o romance tem como eixo principal a representação da realidade através de uma percepção única – a do escritor: Sua faculdade essencial consiste em recriar a realidade: não a fotografa, recompõe-na; não demonstra ou reduplica, reconstrói o fluxo da existência com meios próprios, de acordo com uma concepção peculiar, única, original (1994, p. 165). Em Capitães, a realidade recriada é a de um grupo de meninos que faz das ruas de Salvador sua moradia. Para sobreviver, eles praticam malandragens e ladroagens com a esperteza e agilidade de quem já é um homem feito. As personagens Segundo Massaud Moisés, as personagens de romances são “‘pessoas’ que vivem dramas e situações, à imagem e semelhança do ser humano” (1994, p. 226). Em Capitães da Areia, cada membro do grupo carrega sua individualidade e seus dramas pessoais, e ao formarem o bando, ele também se torna parte integrante do romance. O bando pode ser considerado um personagem porque, além de ser a recriação de um drama da realidade – a dos moradores de rua, revelando a pobreza e ineficiência de sistemas governamentais, se não da própria economia Capitalista – é através dele que as peripécias são possíveis. Desde os roubos até mesmo a invencibilidade perante o grupo rival ou a impossibilidade de serem mantidos no reformatório ou orfanato. Todas as ações são arquitetadas em grupo, o qual possui regras próprias que devem ser respeitados por todos os integrantes. Quanto aos integrantes, diz-se que “eram bem uns cem” (AMADO, 2008, p. 27), mas a trama se desenvolve ao redor da vida de apenas nove crianças, cujos nomes se dão apenas a partir de características físicas ou psicológicas que possuem (GEBARA; NOGUEIRA, 2008) e são eles: Pedro Bala, o ágil chefe do bando. É filho de um estivador morto por fazer parte das greves no cais. É conhecido também pelo cabelo loiro e pela cicatriz no rosto, herança de uma briga. Sem-Pernas, tendo recebido o apelido por ser coxo, faz das piadas e zombaria com os demais meninos o canal para fugir dos seus próprios tormentos. Pirulito é alto e magro e destoa do grupo por ser o único a ter fé e sentir o chamado de Deus para a vocação sacerdotal, segundo o padre José Pedro. Professor, o único que havia freqüentado a escola e sabia ler. Era especialista em roubo de livros. No seu canto dentro do trapiche, a pilha de livros e a luz da vela eram elementos constantes. João Grande, órfão, é o mais forte de todos os meninos e também o protetor dos pequenos e novatos no grupo. Volta-Seca, retirante oriundo da caatinga, se diz afilhado de Lampião e sonha um dia fazer parte do bando de seu padrinho. Boa-Vida é o verdadeiro apaixonado e despreocupado pela vida. Não gosta de trabalhar e só o faz quando é necessário contribuir para o grupo. Gato é o mais vaidoso do grupo, tendo uma vida amorosa intensa. É considerado o mestre das malandragens. Dora é a única “capitã” da areia, sendo aceita pelo grupo após certa resistência. É vista pelos meninos, ora na figura feminina de mãe, de irmã, ora na de amante. Há a presença de outros integrantes do grupo, mas apenas esses possuem papel relevante dentro da trama. Existem, ainda, personagens que são considerados “amigos do grupo”, como o padre José Pedro, a mãe-de-santo Don’Aninha e o capoeirista Querido-deDeus. Naturalmente, há também os “inimigos do grupo”, tais como a polícia em geral, os funcionários do reformatório e o grupo rival chefiado por Ezequiel. A trama De acordo com Cândida Vilares Gancho, em sua obra Como analisar narrativas, “o conjunto de fatos de uma história é conhecido por [...] trama” (2000, p. 9). Em Capitães da Areia, o livro é dividido em 4 partes: “Cartas à redação”, “Sob a lua num velho trapiche abandonado”, “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos” e “Canção da Bahia, canção da liberdade”, cada uma com seus respectivos capítulos. Na parte inicial da trama, tem-se a transcrição de uma reportagem publicada no fictício Jornal da Tarde, em que é feita a apresentação do grupo como um bando que vive da rapina. [...] São chamados Capitães da Areia porque o cais é seu quartel-general. O que se faz necessário é uma urgente providência da Polícia e do Juizado de Menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos institutos de reforma de crianças ou às prisões. (AMADO, 2010, p.9). Além disso, é noticiada também a última façanha do grupo: um roubo à residência do Comendador. Como consequência, é enviada à redação do jornal uma série de denúncias a respeito das abstenções de responsabilidade das autoridades quanto aos meninos de rua. Na segunda parte, “Sob a lua num velho trapiche abandonado”, são relatadas algumas histórias quase independentes dos principais Capitães. Os integrantes do grupo são caracterizados por meio de uma pequena biografia, que enfoca as qualidades necessárias para a adesão de um novo menino no grupo. É também narrado o dia a dia dos jovens capitães, e desse modo, o leitor se torna ciente de como são arquitetados e executados os planos de roubo e furto que o grupo efetua para adquirir elementos básicos para a sua subsistência, como comida e roupas. Apesar de serem crianças, eles se satisfazem com bebidas, cigarros e sexo, salvo o Professor, que é adepto à leitura, e Pirulito, que muito religioso, se abstém desses entretenimentos. Em “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos”, todos os capítulos são dedicados à chegada de dois novos membros: a menina Dora e seu irmão Zé Fuinha, que tiveram a mãe morta pela “bixiga” (varíola). A princípio, a chegada dessa menina ao grupo gera grandes conflitos, uma vez que os garotos têm seu desejo sexual avivados pela sua presença. No entanto, após ser aceita e integrada no grupo – trocando seu vestido por calças e participando nos roubos – os meninos veem em Dora a imagem feminina que mais lhes faz falta: a de mãe, a de irmã ou a de amante. Na parte final do livro, “Canção da Bahia, canção da liberdade”, é narrado a que destino cada um dos capitães foi levado, após as perambulações nas ruas de Salvador. Pedro Bala se torna grevista; Sem-Pernas se suicida para não ser capturado pela polícia; Pirulito vai para o seminário; Volta-Seca se integra ao bando de Lampião; Dora morre; Professor se torna pintor; Gato se torna vigarista e Boa-Vida continua sendo um malandro festeiro procurado pela polícia. O espaço No tocante ao espaço, Vilares Gancho afirma que é “por definição, o lugar onde se passa a ação numa narrativa” (2000, p.23). Massaud afirma ainda que “o deslocamento físico implica novas aventuras” (1994, p. 177) dentro do enredo, sendo essa a dinâmica corrente em Capitães da Areia. Nessa obra de Jorge Amado, a trama é repleta de ações e acontecimentos e, consequentemente, há um grande número de espaços, cuja predominância é o espaço urbano: a cidade de Salvador. As crianças do grupo se movem pelas ruas da cidade com maestria, e devido suas peripécias, muitos lugares acabam sendo incorporados à trama: as casas em que os roubos são feitos; o reformatório; o trapiche; as docas; a igreja; a praia; o botequim; a delegacia, entre outros. Esses deslocamentos colaboram para a dinâmica do romance, uma vez que, a cada página, as personagens se movem para espaços diferentes e, assim como na vida, eles estão sujeitos a novas interações e intervenções pelo meio. Como afirma Massaud Moisés: “a história, nesse caso, ganha em vivacidade e dinamismo” (1994, p. 177). E a seguir acrescenta: quando o cenário “avulta de importância” pode às vezes, assumir “papel decisivo na configuração da personagem” (1994, p. 179). Dentro do romance, o espaço é também elemento caracterizador das personagens e sua condição social: o único referencial de lar dos meninos é o trapiche quase destelhado, onde vivem e se escondem das autoridades. Um espaço miserável e totalmente diferente dos lares da burguesia que eles invadem e comentem seus furtos. Por outro lado, a liberdade que desfrutam pelas ruas da cidade é colocada em xeque quando há a ameaça de serem mandados para o Reformatório de Menores. O espaço se define não só como plano de fundo para que as ações das personagens aconteçam, mas ele age também como um componente do romance que colabora para a composição das personagens. Em Capitães da Areia, o trapiche abandonado e os espaços externos, como as ruas e a praia, fortalecem a noção de liberdade que os meninos carregam. Conclusão Nesse romance de Jorge Amado é narrada a trajetória do bando de meninos de rua conhecido como “capitães da areia”. Os integrantes desse grupo cometem furtos e outras malandragens para sobreviverem e utilizam como abrigo um velho armazém abandonado à beira mar. Os espaços nessa obra, assim com a praia e as ruas, são elementos que colaboram para a composição das personagens, visto que o velho trapiche é o referencial de casa que os meninos têm, e isso reforça a condição marginal do grupo. Como bem assinala Luiz Gustavo Rossi, as crianças abandonadas de Capitães da Areia encontravam na “aventura da liberdade nas ruas” e na união do grupo meios de restituir os bens e os afetos que a orfandade lhes negara. Uma orfandade não apenas familiar, mas de todo o aparato políticoinstitucional que os tratavam como os “delinquentes que infestam nossa urbe” (2009, p. 27) . O romance retoma, ainda, algumas qualidades que Jorge Amado atribui aos filhos de nosso país. Qualidades que existem naturalmente em nós, tais como a coragem, a determinação e, sobretudo, a capacidade de extrair força da adversidade para continuar sobrevivendo. Qualidades que trazemos desde o berço, como a cicatriz que Pedro Bala traz na face. Referências bibliográficas AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. GANCHO, Cândida V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2000. GEBARA, Ana E. L.; NOGUEIRA, Silvia H. A prosa de Jorge Amado: expressão de linguagem e de costumes. In: GOLDSTEIN, Norma. SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). O universo de Jorge Amado: orientações para o trabalho em sala de aula. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Caderno de Leituras). ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. A militância política na obra de Jorge Amado. In: GOLDSTEIN, Norma. SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). O universo de Jorge Amado: orientações para o trabalho em sala de aula. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Caderno de Leituras). MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa: formas em prosa, o conto, a novela, o romance, o ensaio, a crônica, o teatro, outras expressões híbridas, acrítica literária. São Paulo: Cultrix, 1990.