UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO A COMPANHIA E AS LETRAS: UM ESTUDO SOBRE O PAPEL DO EDITOR NA LITERATURA TEODORO KORACAKIS Rio de Janeiro 2006 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS A COMPANHIA E AS LETRAS: UM ESTUDO SOBRE O PAPEL DO EDITOR NA LITERATURA Por TEODORO KORACAKIS Tese apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Italo Moriconi Rio de Janeiro 2006 2 Agradecimentos Ao meu orientador Italo Moriconi, pela interlocução e confiança na minha pesquisa; Ao professor Victor Hugo Adler Pereira, pelo incentivo desde os tempos da graduação; Ao professor Aníbal Bragança, pelas sugestões e indicações bibliográficas fundamentais; Aos colegas da Área de Tecnologias para o Desenvolvimento Social da Finep, pelo convívio estimulante; À Maria Angélica Savelli, Rosa Damaso e toda a equipe da biblioteca da Finep, pelo auxílio na busca de livros; Aos amigos André Villela, André Vinícius Pessoa e Marcelo Landau, pelo estímulo e diálogo; Ao amigo Jacir Guimarães, o primeiro a ouvir o plano geral da tese; Ao editor Luiz Schwarcz, objeto vivo desta tese, pela concessão da fundamental entrevista; À Isa Pessoa, Luis Augusto Marcelino e Sérgio Sant Anna, pela concessão das entrevistas; À equipe da Companhia das Letras, especialmente Eliane Trombini e Ana Paula Hisayama, pelos dados e informações; Ao meu tio, o historiador Carlos Francisco Moura, referência na minha prática de pesquisa; Ao meu pai Constantino, pelo apoio e minha introdução precoce no convívio de escritores e editores; À minha mãe Lair, pelo estímulo e contribuição na pesquisa; À Denise esposa, amiga e revisora figura decisiva na realização desta tese; À minha filha Isabel, pelo carinho e compreensão durante o trabalho. 3 SUMÁRIO Introdução Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 5 Questões preliminares 10 1.1 Morte e ressurreição dos estudos sobre vida literária 11 1.2 Um sobrevôo pela história da edição 14 1.3 O editor por ele mesmo: a denegação do econômico 18 A Companhia das Letras 39 2.1 A formação da Companhia 40 2.2 O catálogo da Companhia 56 2.3 O editor da Companhia 96 2.4 Os escritores da Companhia 107 2.5 Uma análise da Companhia 133 A coleção Literatura ou Morte 145 Conclusões 183 Bibliografia 190 Resumo / Abstract 204 Anexos / Ilustrações 4 Introdução Esta tese pretende se inserir no âmbito de estudos sobre a vida literária brasileira, campo de estudo que se detém nas circunstâncias da produção literária. O aspecto da vida literária no qual ela vai se deter é o papel do editor na produção cultural, e mais especificamente na produção da ficção. Normalmente a figura do editor fica pouco iluminada no estudo da produção intelectual, ofuscada tanto pelo valor simbólico do objeto-livro quanto pela fascinação da função autor exercida pelos escritores. Tradicionalmente, nos estudos literários, o escritor é tratado pelo nome, sendo a sua biografia considerada elemento importante para o entendimento da literatura. O editor e a instituição que representa tem sua identidade escondida pela genérica expressão mercado editorial . A presente tese pretende, portanto, olhar a produção literária iluminando a figura do editor, entendendo a empresa editorial como elemento constitutivo e decisivo do sistema literário. Nossa abordagem iluminadora da atividade editorial na literatura será realizada por uma investigação no âmbito da produção literária brasileira contemporânea. Dentre a totalidade das editoras brasileiras do período final do século XX e início do século XXI, escolhemos nos deter nas atividades da editora paulista Companhia das Letras, comandada por Luiz Schwarcz. Um dos motivos dessa escolha foi termos identificado ao iniciarmos as nossas pesquisas que a Companhia das Letras tornou-se a editora brasileira central no período estudado. Não pelo número de livros produzidos ou lucro auferido, mas por ter se tornado uma referência para o sistema editorial brasileiro pela qualidade técnica e valor cultural de seus livros. O antropólogo argentino Gustavo Sorá, ao estudar a produção 5 editorial brasileira de literatura do final do século XX, como parte das pesquisas para o desenvolvimento de sua tese de doutorado no Museu Nacional / UFRJ, corrobora a nossa hipótese inicial: A Companhia das Letras é o referencial que definiu no final dos anos 80 novos esquemas de percepção e apreciação do bom livro, não a partir da imposição de um movimento literário, escola ou corrente de idéias particular, mas inventando concepções editoriais profissionais, que envolvem os novos livros de prestígio. A imposição desse modo de produção só completou sua irrupção ou legitimação com o aparecimento posterior de editoras assemelhadas que se reconhecem e são reconhecidas por referência à Companhia das Letras e a seu estilo literário-ensaístico. (SORÁ, 1997, p. 169 - 170) A Companhia das Letras ao surgir em 1986 traz como novidade um projeto editorial que diz pretender conciliar profissionalismo com a relevância cultural e literária das obras a serem publicadas, ou seja, pretende unir a dimensão empresarial à cultural: a Companhia e as Letras. A atividade da Companhia das Letras marca o campo editorial brasileiro na virada do século XX para o XXI, tornando-se uma indicação de qualidade para os livros que edita e uma possibilidade de consagração literária e lucros financeiros para os seus autores. No desenvolvimento da sua curta história até o momento, ela se tornou a partir do início da década de 1990 a editora de referência também no campo de ficção brasileira, reunindo em seu catálogo alguns dos nossos principais ficcionistas contemporâneos, como Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Sérgio Sant Anna, Carlos Heitor Cony e Bernardo Carvalho. Vale registrar que no âmbito desta tese entenderemos como editora literária aquela que publica literatura num sentido amplo: textos de ficção, teatro, poesia ou ensaio. Obras nas quais a função autor contribui decisivamente para a determinação do seu valor simbólico. A publicação de literatura não é necessariamente hegemônica nos catálogos dessas editoras, mas tem papel fundamental no estabelecimento do valor da marca e das suas diferenças em relação às concorrentes. 6 O crítico José Castello, em artigo publicado em 2005, como Gustavo Sorá, também constata que a Companhia das Letras e o seu editor teve papel marcante na história editorial brasileira, sendo referência de qualidade para outras editoras a partir da consolidação de sua trajetória de sucesso: O aparecimento da Companhia das Letras, no ano de 1986, provocou um salto de qualidade no mercado editorial brasileiro. A partir dos novos padrões gráficos e do grande rigor na escolha dos originais praticados pela editora de Schwarcz, outros editores tiveram que repensar, e alterar seus próprios parâmetros profissionais. [...] O nome de Luiz Schwarcz está inevitavelmente associado a esta pequena revolução, da qual, na verdade, ele foi o grande mentor. (CASTELLO, 2005, p. 3) O editor Luiz Schwarcz pode ser visto como um empresário-editor, que possui um elo com a tradição personalista do setor ao ser o responsável último pela definição de estratégias e até da seleção de originais e ao mesmo tempo possui um sistema de produção editorial profissionalizado, no qual uma equipe de editores auxiliares, formada até por alguns sócios, tem relativa autonomia. Schwarcz realiza tanto as atividades de editor na concepção americana do termo, que é a de quem seleciona, lê os originais e se relaciona com os autores, como realiza também as atividades de publisher, sendo o responsável pela administração e estratégias empresariais da editora. A Companhia das Letras ainda pode ser pensada como um projeto pessoal do seu editor e a expressão da sua vontade. A dimensão pró-ativa e personalista de Luiz Schwarcz em relação aos produtos da sua editora nos levará a investigar inclusive a dimensão autoral que o editor pode adquirir na produção textual dos livros. Verificaremos, inclusive, como essa dimensão autoral pode se caracterizar num caso paradigmático, o da encomenda de obras ficcionais. Outro motivo que nos levou a escolher a Companhia das Letras como objeto central da tese é o fato de não haver nenhum estudo de grande fôlego dedicado exclusivamente a ela, que, em 2006, completa 20 anos. 7 Apesar de a tese se debruçar por vários gêneros de produção editorial já que é impossível separarmos radicalmente a produção de ficção da produção editorial como um todo , estamos particularmente interessados na produção da ficção e no que ela tem de específico. Vale mencionar que a teoria da literatura ao afirmar-se como disciplina autônoma acaba por apartar a literatura das questões de mercado. Para o pesquisador Italo Moriconi, a academia acaba por promover uma divisão tanto prática quanto conceitual: existe a literatura enquanto parte da cultura cotidiana, que se estrutura como mercado (o mundo da vida , regido pelas relações de troca), e existe a literatura enquanto parte da cultura especializada , formada pelo conjunto dinâmico das instituições pedagógicas (MORICONI, 2005, p. 3). A presente tese tenta superar essa cisão, não associando a priori sucesso de mercado com pouco valor literário, mas, pelo contrário, buscando descobrir as possibilidades da qualidade literária conseguir atingir seu público gerando lucro. Passaremos agora a descrever o esquema geral da tese para cumprir esses objetivos. O primeiro capítulo será mais genérico, formulando algumas questões teóricas e históricas que são importantes para investigarmos o papel do editor. Cada subcapítulo funcionará como um pequeno ensaio mais ou menos independente em relação aos outros, servindo de contraponto e controle para a leitura dos capítulos seguintes. O primeiro subcapítulo explicará como a tese se insere no panorama atual dos estudos literários. Os subcapítulos 1.2 e 1.3 farão um sobrevôo sobre as relações entre o editor e o escritor na produção da ficção, iluminando especialmente o discurso do próprio editor. Será um breve panorama de algumas abordagens já realizadas sobre o tema e dos principais momentos históricos dessa relação, utilizando especialmente estudos da história da edição . O segundo capítulo, dividido em cinco subcapítulos, será dedicado a um estudo de caso sobre o papel do editor a partir da experiência de Luiz Schwarcz e sua editora Companhia das Letras. No primeiro subcapítulo, será analisada a formação da Companhia das Letras, levando em conta suas raízes na Editora Brasiliense, onde houve a iniciação de Schwarcz no mundo editorial. No subcapítulo seguinte, será examinado detalhadamente o catálogo das publicações da editora, que nos servirá como guia para o 8 entendimento de suas ações. O terceiro subcapítulo utilizará entrevistas realizadas com o editor Luiz Shcwarcz para desenhar o modo como ele vê e participa da atividade editorial. No quarto, investigaremos a relação dos autores brasileiros de ficção em atividade com a editora, em contraponto às relações que mantiveram com outras editoras pelas quais publicaram. No último subcapítulo, serão confrontadas e consolidadas as questões levantadas nos outros subcapítulos e será analisado o papel da editora e de seu editor na literatura brasileira. O terceiro capítulo se debruçará sobre uma coleção ficcional de encomenda realizada pela Companhia das Letras, a coleção Literatura ou Morte. Com ela, poderemos observar como a dimensão autoral do editor pode marcar obras ficcionais. Além de investigarmos o papel do editor no resultado dessas obras, estaremos analisando um interessante grupo de obras da literatura brasileira, e até latino-americana, pelo fato de pertencerem a uma coleção ficcional temática de encomenda. Ou seja, como cada escritor resolve a encomenda na interação com o editor. Nesse capítulo, pretendemos realizar um diálogo entre duas dimensões da literatura: o ambiente da sua produção e o resultado textual efetivo. O quarto e último capítulo, com função de conclusão, conectará as questões surgidas nos três capítulos e tentará dar conta da questão central desta tese que é o estudo do papel do editor na literatura. Antes de começarmos o desenvolvimento do corpo da tese, vale a pena mencionar que o estudo de caso com a Companhia das Letras somente revela uma possibilidade de papel editorial que pode ser assumido. E apenas assim ele pode ser visto. Esta tese não pretende ser nenhuma receita de bolo nem uma supervalorização de um projeto editorial. Apenas constata a importância e o sucesso ditoriais que levou esse projeto a ter se tornado uma referência na produção editorial brasileira contemporânea, como já foi constatado pelos pesquisadores citados e até pelo senso comum. 9 Capítulo 1 Questões preliminares Tentaremos neste capítulo antecipar algumas questões teóricas e históricas para, quando começarmos a estudar a participação da editora Companhia das Letras no cenário editorial brasileiro, já estarem contextualizadas algumas questões básicas. Para isso, desenvolveremos, em um primeiro subcapítulo, as principais características do momento acadêmico brasileiro atual, no qual parece haver uma volta dos estudos sobre o pólo autoral da produção literária e da própria vida literária em si. No subcapítulo seguinte, faremos um panorama dos principais momentos históricos sobre o papel do editor. No subcapítulo 1.3, daremos voz ao próprio editor atividade como ele vê as particularidades da sua e utilizaremos o conceito de denegação do econômico formulado por Pierre Bourdieu para analisarmos seu discurso. 1.1. Morte e ressurreição dos estudos sobre vida literária Os estudos literários, a partir da década de 1960, foram deixando de encarar com seriedade trabalhos que focassem questões relativas ao ambiente da produção literária, 10 que também podemos chamar de vida literária . Por um lado, isso se deve a um mergulho profundo nos pressupostos estruturalistas, como o da morte do autor de Roland Barthes, que propõe que se deixe em segundo plano, ou se esqueça, o pólo autoral do texto, para focar as atenções no texto propriamente dito e na sua estrutura. O outro enfoque que, até por uma leitura errada dos seus pressupostos, afastou a produção literária da cena acadêmica foi a própria estética da recepção, com sua proposta de iluminar especialmente o receptor, deixando o produtor do texto literário na penumbra. Por isso tudo, nesse período, a vida literária não foi um dos temas mais visitados pelos estudos literários. A sociologia do conhecimento e a história da cultura acabaram por tomar timidamente esse terreno desocupado, mas deixando de cumprir um papel que só os estudos literários seriam capazes de realizar em relação à vida literária: transitar pela via de mão dupla entre a produção literária e os textos ficcionais efetivamente produzidos. Essa falta de interesse resultou numa quase ausência de estudos literários que abordassem a vida literária das últimas décadas do século XX. Mas do vazio total, já nos últimos anos do século, os estudos literários voltaram a percorrer esse campo, o que sinaliza um início de século XXI fértil nesses estudos, tanto nos centros acadêmicos europeus e americanos como nos periféricos, no nosso caso o Brasil. Uma análise superficial dos trabalhos apresentados nos últimos congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) reunião de 2001 a partir da pode confirmar a tendência: são inúmeros os trabalhos que investigam a vida literária nos seus mais diversos aspectos. E esses trabalhos muitas vezes abordam a vida literária brasileira recente, especialmente carente de estudos. Falando em lacunas nos estudos literários, não podemos deixar de mencionar que um dos aspectos menos abordados da vida literária, no caso a brasileira, envolve a produção e o mercado literário, ou seja, a dimensão produtiva da literatura. Um dos poucos trabalhos realizados recentemente no campo dos estudos literários que levam em conta os fatores da produção literária é O preço da leitura, das professoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman. A pesquisa meticulosa das professoras nos revela aspectos produtivos da literatura brasileira, assunto muitas vezes considerado desagradável pelos defensores da 11 literatura como algo celestial desenvolvido por entes especiais, ungidos por um dom superior. João Ubaldo Ribeiro, no artigo De olho no mercado , reproduzido parcialmente em O preço da leitura, revela ironicamente a existência do pensamento que não enxerga o caráter laboral e, portanto, remunerável da atividade artística: Escrever, compor, pintar, atuar, nada disso é trabalho, é o exercício lúdico, revigorante, glamuroso e sublime de um dom artístico [...] O sujeito senta, sintoniza suas antenas privilegiadas com as musas, e, como quem respira ou pratica qualquer ato destituído, produz a obra de arte. Ela já traz em si a sua própria recompensa, e o artista, esse escolhido da fortuna, não precisa mais nada para sobreviver. (apud LAJOLO, 2001, p. 19) Esse tipo de pensamento caricaturado por João Ubaldo, por incrível que pareça, encontra eco dentro dos estudos literários, o que é revelado pelo silêncio reticente que temas como esses encontram na produção acadêmica da área, salvo exceções, como já mencionado. Voltando à questão da retomada do autor como objeto acadêmico, o historiador francês Roger Chartier, já no início da década de 1990, no ensaio Figuras do autor , que faz parte de seu A ordem dos livros, ao analisar os estudos literários e a história do livro produzidos na época, caminha no mesmo sentido das nossas análises: Quer ignore o autor ou o deixe a cargo de outros especialistas, a história do livro tem sido praticada como se suas técnicas e descobertas fossem irrelevantes para a história dos produtores de textos, ou como se esta fosse destituída de qualquer importância para a compreensão das obras. Nestes últimos anos, contudo, assistimos à volta do autor. Tomando a distância em relação a perspectivas que concentravam a atenção exclusivamente no funcionamento interno dos sistemas de signos, a crítica literária quis reinscrever as obras em sua própria história. (CHARTIER, 1999, p. 34) Apesar das inúmeras diferenças que possuem entre si, diversas correntes da crítica literária contemporânea têm como objetivo comum rearticular o texto ao seu autor. Mas Chartier, na sua análise, observa que várias mudanças ocorreram nesse renascimento: 12 É certo que não se trata de restaurar a figura romântica magnífica e solitária do autor soberano, cuja intenção (primeira e última) encerra a significação da obra, e cuja biografia dirige a escrita em uma transparente imediatez. O autor, tal como ele faz a sua reaparição na história e teoria literária, é, ao mesmo tempo, dependente e reprimido. (CHARTIER, 1999, p. 35) Para Chartier, esses limites são, por um lado, a impossibilidade de controlar a recepção de sua obra e por outro a incapacidade de controle total da própria produção da obra, devido aos outros atores presentes, especialmente a figura do editor. Finalizando este capítulo, cabe dizer que nossa tese tenta trazer para o campo dos estudos literários um esforço acadêmico já desenvolvido em outros campos do saber especialmente os da história e da comunicação social , o de tirar da penumbra a atividade editorial. Exemplo desse esforço em outros campos é a tese de doutorado defendida por Aníbal Bragança, na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 2001, intitulada Eros pedagógico: a função editor e a função autor, na qual é realizado um detalhado mapeamento da função editor, colocando-se programaticamente contra o ocultamento dessa função numa nova história dos livros. (BRAGANÇA, 2001) 1.2 Um sobrevôo pela história da edição O poeta e crítico Ferreira Gullar, no ensaio, de 1965, Problemas estéticos na sociedade de massa , utilizando um repertório ortodoxamente marxista, observa que não existe nenhuma impropriedade em se encarar a obra de arte como mercadoria na sociedade 13 capitalista. Para ele, aqueles que se chocam com o surgimento de uma arte de massa e a conseqüente aproximação entre arte (num sentido amplo do termo, que inclui a literatura) e mercado sentem uma nostalgia mistificadora de um período histórico pré-capitalista, onde existiria um paraíso desinteressado para uma atividade artística superior: A arte de massa é, em essência, mercadoria, e nisso também ela se define como legítimo produto da sociedade capitalista, na qual tudo se transforma em mercadoria. [...] Trata-se de uma condição nova que a arte passou a enfrentar com o surgimento da burguesia e que é, sob certos aspectos, um avanço com relação à arte do passado, muito mais aristocrática e impositiva. [...] Numa sociedade desse tipo a comercialização da arte é inevitável e, mais que isso, é o caminho que ela tem para satisfazer as novas necessidades emocionais e espirituais do homem. Se, com razão, devemos repelir as formas de arte estereotipadas, imbecilizantes, que proliferam na cultura de massa, devemos fazê-lo sem perder a noção real do problema da arte contemporânea e sem perder de vista as circunstâncias em que os artistas do passado realizaram suas obras. Há uma tendência a idealizar as condições de trabalho do artista no passado, e isso só prejudica a apreciação do problema atual. De fato, na vasta maioria do tempo em que transcorre a história da cultura, a arte esteve submetida a imposições de toda ordem, servindo ao poder absoluto, ao Clero, aos nobres, aos burgueses. (GULLAR, 1984, p. 136 - 7) Aproveitando a virada de pescoço que Gullar dá para o passado, examinaremos alguns momentos decisivos dessa longa transição da literatura para tornar-se mercadoria, saindo de um modo de produção artístico caracterizado como mecenato para outro no qual a figura controladora do fazer literário não é mais o mecenas, mas sim o editor e a instituição que ele representa é a editora que visa ao lucro. Um mapeamento histórico completo dessa transição, focado nas relações entre o editor, o autor e o próprio resultado literário, é algo impensável pelos limites deste trabalho. No entanto, a partir de estudos de historiadores culturais podemos identificar os momentos decisivos das mudanças ocorridas nos sistemas editoriais nacionais do Ocidente a partir do século XIV. 14 Os quatro volumes do monumental Histoire de L Edition Française, realizado a partir de pesquisa coordenada por Roger Chartier e H. J. Martin, publicado entre 1982 e 1986, identifica três fases paradigmáticas da edição na história da França, que, por analogia, podemos identificar como fases diferentes da história do editor na cultura ocidental. A forma inicial de edição seria a leitura em voz alta de um novo texto prática corrente nas universidades e cortes medievais, que permaneceu até a invenção da imprensa. Mas, ainda no século XVIII, publicar um texto poético podia ser lê-lo em voz alta em um salão ou em sociedade literária. Nessa fase, não existia a figura do editor. A relação que o escritor, como outros produtores artísticos, mantinha com aqueles que os remuneravam pelo fazer artístico era a de mecenato, que subsistiu e pode sempre subsistir na ausência de um mercado artístico para mediar a relação entre o artista e o público. No mecenato, quem propicia a remuneração ou qualquer vantagem ao artista é um patrono, que tem interesse na produção de obras artísticas por motivos variados, que não se tratam de auferir lucros com a comercialização da obra artística, no nosso caso, o livro. A etapa seguinte, que vai da invenção da imprensa por Gutemberg até o início do século XIX, seria dominada pela figura do livreiro-editor. O capital mercantil toma cena paulatinamente, sendo o livreiro-editor um comerciante de livros que também possui uma oficina tipográfica ou que contrata um impressor. O negócio se vincula aos seus próprios catálogos, apesar de eles, muitas vezes, diversificarem seus produtos por intercâmbio com seus colegas, especialmente de fora da sua área de vendas. O negócio do editor fica intimamente ligado à sua comercialização. A terceira e definitiva fase da história da edição dá-se com o estabelecimento do editor moderno, que na França ocorre na década de 1830. O editor passa a deter uma missão empresarial particular, mais intelectual do que técnica ou comercial. Para Chartier, o editor se vê como um intelectual e cuja atividade se faz em igualdade com a dos autores; daí, suas relações freqüentemente difíceis e tensas (apud BRAGANÇA, 2001, p. 128). É essa figura empresarial que escolhe um programa editorial, propondo, consultando, delegando e executando. O editor passa a ter o controle de todos os elementos que definem o livro: o texto, as ilustrações, a disposição gráfica e as formas de 15 difusão. Roger Chartier, em entrevista publicada em 1999, comenta as singularidades do editor moderno em relação à fase anterior: Naturalmente, o editor do século XIX tem uma atividade comercial, mas se caracteriza por seu papel como coordenador de todas as possíveis seleções que levam um texto a se transformar em livro, e tal livro em mercadoria intelectual, e esta mercadoria intelectual em um objeto difundido, recebido e lido. As fronteiras são sempre muito instáveis, e mais complicadas do que se pensa em uma primeira aproximação. Mas se mantemos esta idéia de profissionalização, de autonomia crescente em relação à livraria, talvez possamos ter um critério importante que deverá ser matizado com o papel textual desempenhado por alguns editores. (CHARTIER, 2001, p. 48) Essa divisão tripartite da história da edição feita por Chartier foi o ponto de partida para inúmeros estudiosos, tanto para concordarem com ela como para discordarem. No Brasil, o professor Aníbal Bragança, já em 2001, na sua tese de doutorado, ao revisar detalhadamente o desenvolvimento histórico das atividades do editor contesta e reformula a periodização concebida por Chartier. Ele propõe que não se fale em fases, mas em tipos ideais da função editor, já que, embora o seu surgimento se dê num contexto histórico específico, que o explica, os tipos coexistem, um não desaparece quando surge o novo (BRAGANÇA, 2001, p. 121). Ele concebe quatro tipos ideais: o impressor-editor, o livreiro-editor, o empresário-editor e o executivo-editor. Aníbal Bragança começa seu afastamento do modelo de Chartier ao estipular como início da função editor a própria invenção da imprensa. Para ele, antes da invenção da imprensa não existia edição, considerando, portanto, a primeira fase da história da edição no modelo do historiador francês como um período pré-editorial. A função editor surgiria com o aparecimento da figura do impressor-editor, entre 1450 e 1550, cujas marcas essenciais são o domínio das técnicas tipográficas e a propriedade de uma oficina gráfica. No modelo formulado por Bragança, a partir de meados do século XVI até meados do século XIX o tipo ideal hegemônico no controle da atividade editorial é o livreiro-editor, figura associada por Chartier a um período bem mais extenso, que engloba o tipo ideal anterior. 16 O terceiro tipo ideal formulado, o empresário-editor, corresponde à terceira fase da periodização de Chartier, que o chama de editor moderno. Aníbal Bragança define assim as competências desse tipo ideal hegemônico na história ocidental entre 1850 e 1950, e, no Brasil, até os dias de hoje: O importante é que tenha um conhecimento do mercado de bens culturais, para criar uma política editorial e estabelecer as linhas de atuação para realizá-la. [...] Pode ter gráfica ou livraria, mas isso não é necessário, o importante é estabelecer com elas boas relações. (BRAGANÇA, 2001, p. 126) Aníbal Bragança vislumbra para o empresário-editor três responsabilidades básicas, que englobam e superam as atividades dos tipos ideais anteriores. A primeira é a de escolher os originais a serem publicados, o que pode envolver desde a encomenda de livros até a formatação de coleções. A segunda é a própria fabricação do livro, ou seja, transformar um texto em um produto único, mas com vários exemplares. A terceira responsabilidade do editor é a distribuição, fazer chegar o livro à livraria, e, em última instância, ao consumidor de livros, o leitor. O quarto tipo ideal identificado por Aníbal Bragança é o executivo-editor, em emergência nos países em que a comunicação de massa é mais rentável a partir da década de 1950. No Brasil só a partir da década de 1980 a figura do executivo-editor começa a disputar a hegemonia com a do empresário-editor. A figura do executivo-editor representa uma transformação da empresa editorial, que deixa de representar um projeto cultural e empresarial específico, expressão de vontades pessoais, para ser um projeto impessoal, que visa, primordialmente, a maximizar a rentabilidade do capital acionário. Ao nosso ver, um projeto assim não excluiria necessariamente obras de valor literário ou cultural, já que produzir essas obras também pode ser uma atividade lucrativa. A grande diferença desse tipo ideal é a sua falta de autonomia, sendo um preposto dos efetivos proprietários da empresa. Nessas grandes empresas também acaba havendo uma divisão das antigas atividades do empresário-editor: chama-se de editor o profissional que lê os 17 originais e se relaciona com os autores; e de publisher, a figura que está mais ligada à dimensão empresarial da atividade editorial. 1.3 O editor por ele mesmo: a denegação do econômico Importante material para analisarmos o papel dos editores são os depoimentos e textos críticos produzidos por eles próprios para analisar sua atividade. Faremos neste subcapítulo uma análise dos discursos de alguns representantes das figuras do empresário-editor e do executivo-editor na segunda metade do século XX, a partir de textos que esses editores brasileiros e estrangeiros tiveram publicados em livro, escritos por eles mesmos ou originados por entrevistas e depoimentos. No final do subcapítulo, cotejaremos o discurso mais ou menos uniforme desses editores com o conceito de denegação do econômico, formulado pelo sociólogo Pierre Bourdieu na década de 1970. Este apanhado do pensamento dos editores sobre o seu papel e o da sua atividade empresarial servirá tanto como um sintético panorama do pensamento dos editores e da própria atividade editorial a partir da década de 1950 no mundo e, principalmente, no Brasil quanto como um contraponto para o estudo de caso com Luiz Schwarcz e a sua Companhia das Letras. Sigfried Unseld, diretor de importante editora alemã, a Suhrkamp, reuniu no livro O autor e seu editor, publicado originalmente em 1978, alguns de seus textos sobre o universo da produção do livro, englobando um ensaio sobre a sua participação no cenário 18 editorial alemão e análises sobre as relações entre autores e seus editores. Unseld faz um estudo de caso sobre essa relação, detendo-se nos seguintes autores de língua e cultura alemãs: Herman Hesse, Bertold Brecht, Rainer Maria Rilke e Robert Walser. A primeira parte do livro, o ensaio intitulado A missão do editor de textos literários , aborda a sua experiência à frente de uma editora central na produção literária alemã da segunda metade do século XX, a Suhrkamp, para desenhar um modelo de editora literária e do modo de agir daqueles que a dirigem. Uma questão recorrente no livro é a tensa relação entre o autor de literatura e seu editor. Na sua primeira abordagem sobre o tema, no ensaio inicial, Sigfried Unseld explica assim o desconforto dessa relação: O mal-estar persistente que caracteriza a relação entre o autor e seu editor é resultado da própria atividade do editor, que, como Jano, tem duas faces. Ele precisa conforme diz Brecht produzir aquela mercadoria sagrada que é o livro e também vendê-la, isto é, precisa associar a atividade intelectual ao comércio, para que aquele que escreve essa literatura possa viver e aquele que o edita tenha condições para fazê-lo. Em 1913, Alfred Döblin expressou-o à sua maneira: O editor pisca um olho para o escritor e outro para o público. Mas o terceiro, o olho da sabedoria, olha diretamente para a carteira . (UNSELD, 1986, p. 18) Mas Unseld nos lembra que a fórmula atividade intelectual e comercial é muito sucinta para expressar a atividade editorial, que seria uma função pública. Para ele, o editor, por meio de uma empresa econômica, produz literatura para determinado tipo de público. A identificação com um grupo de produção e consumo de literatura leva em conta diferentes motivações, não se desprendendo, no entanto, do aspecto financeiro. Voltando à fórmula, ele observa que a situação do editor é singular porque ele assume a um tempo a responsabilidade intelectual e a responsabilidade material das atividades da sua casa (UNSELD, 1986, p. 19). E ele constata que essa situação é inevitável enquanto o livro for uma mercadoria. Após essas considerações, Unseld coloca uma questão crucial para todos os interessados no tema, apesar de ter sido formulada de modo bastante pessoal: 19 Até que ponto uma editora cuja organização, como a de todas outras empresas, é capitalista e precisa buscar lucros pode propor uma literatura, que, como toda grande literatura, se situa sempre do lado dos fracos e dos oprimidos, contra a maximização dos lucros, contra um impiedoso aumento da expansão, contra a exploração de nossas bases ecológicas pela técnica, e a favor de novos direitos fundamentais para o indivíduo? (UNSELD, 1986, p. 20) Podemos reformular a pergunta de Unseld para: Como o editor concilia a sua atividade de produzir livros que pode ir contra o sistema econômico em que sua empresa está inserida com a necessidade de buscar lucro nesse mesmo sistema? A resposta não é simples se é que existe alguma , mas ela não deve ser imobilizadora. Ela pode se dar na prática. O principal modo de difusão de idéias, que podem ser críticas, até mesmo de oposição, ao sistema econômico, político e legal vigente, é a produção de bens culturais que obedecem a regras dispostas nesse sistema. Não podemos negar que o papel do editor que publica obras contra o sistema pode ser paradoxal: contestá-lo no conteúdo das obras que publica e, ao mesmo tempo, reforçá-lo ao fazer parte dele produzindo aquelas obras. Ao abordar a singularidade da editora literária, Unseld observa que ela se define pela natureza das relações que mantém com os autores; a situação ideal se estabeleceria numa relação de troca: os dois pólos dão e ganham alguma coisa do outro. Exemplifica essa relação virtuosa mencionando que o conjunto dos autores de uma editora proporciona a cada um o apoio, a segurança, uma base para a comunicação (UNSELD, 1986, p. 32). Quando uma casa editorial consegue reunir um conjunto de bons autores com algo em comum, não só a editora se beneficiaria, como cada um dos autores sairia ganhando. Sigfried Unseld utiliza o exemplo do editor Peter Suhrkamp para demonstrar como deveriam ser as relações entre o editor e o escritor de literatura. Unseld relembra um episódio ocorrido na década de 1950 quando ele fazia parte da equipe editorial de Suhrkamp. Os dois, mais outro membro da equipe, discutiam como deveriam encaminhar uma negociação com um escritor iniciante, quando o próprio Suhrkamp pronunciou a seguinte frase: Observem o seguinte: todo autor, por mais jovem que seja, nos supera em 20 muito a todos os três, porque é uma personalidade criadora! . (UNSELD, 1986, p. 32). Essa visão comungada por Unseld e Suhrkamp revela um modo de encarar o autor literário como uma singularidade quase mística, que o editor não deve macular com sua influência. A relação ideal entre editor e escritor nesse prisma seria aquela em que o editor dá condições de segurança ao escritor para ele desenvolver toda sua capacidade criadora: A literatura é sempre aquilo que os autores fazem dela. As responsabilidades do editor literário podem ter mudado um pouco no fluxo do processo de comunicação literária, mas no fundo permanecem as mesmas: estar à disposição do autor, aberto àquilo que sua obra traz de novo, e contribuir para a sua difusão. (UNSELD, 1986, p. 58) Unseld justifica assim a visão idealizada que editores e profissionais do ramo editorial, como ele, têm do autor de obras literárias: Para quem, como o editor, se encontra na linha de interseção de exigências interiores e exteriores, dos objetivos literários e materiais dos autores, que vê as imensas dificuldades de ordem social e econômica que acompanham a vida de um escritor e a produção de suas obras, é com freqüência difícil deixar de sentir e apreciar a obra e deixar de considerar o autor como alguém especial. (UNSELD, 1986, p. 37) Esse tipo de visão, que exagera a importância do autor e dá ao editor um papel passivo, apesar de ser datada, é compartilhada por vários outros editores de épocas posteriores. Vale ressaltar que muitos desses editores que se vêem como passivos são sujeitos ativos na história intelectual e na própria história da literatura. Outro depoimento de importante ator do pólo editorial publicado em livro foi O negócio do livro. Trata-se de relato autobiográfico do americano Jason Epstein, surgido inicialmente sob a forma de palestras proferidas na biblioteca pública de Nova York em 1999. O livro reconstrói a trajetória profissional de Epstein na indústria editorial americana da segunda metade do século XX, incluindo uma passagem na Editora 21 Doubleday e 40 anos como diretor editorial da Ramdom House. Trajetória marcada pela publicação de autores como Norman Mailer, E. R. Doctorow e Philip Roth, para mencionarmos escritores do campo da ficção. Epstein é, segundo o professor Aníbal Bragança, em sua resenha sobre o livro, um representante da transição entre os editores-empresários e os editores-executivos da indústria da mídia (BRAGANÇA, 2002). Essa posição intermediária acaba se revelando na sua posição pendular entre os pólos econômicos e culturais, tentando sempre uma síntese entre eles nos comentários que faz sobre a atividade editorial ao narrar sua trajetória pessoal. Seu relato inicia com uma sintomática caracterização do negócio da edição de livros, que leva Aníbal Bragança, em sua resenha, a considerá-la, especialmente pelo seu parágrafo inicial, anti-histórica: O negócio da edição de livros é por natureza pequeno, descentralizado, improvisado, pessoal; mais bem desempenhado por pequenos grupos de pessoas com afinidades, devotadas ao seu ofício, zelosas de sua autonomia, sensíveis às necessidades dos escritores e aos diversos interesses dos leitores. Se o dinheiro fosse o principal objetivo, essas pessoas provavelmente teriam de ter escolhido outras carreiras. [...] Mas a maioria dos editores que conheci, prefere, como eu, considerar-se devoto de um ofício cuja recompensa é o ofício em si e não o seu valor em dinheiro. (EPSTEIN, 2002, p. 19) Além de desconsiderar as transformações históricas, a afirmação inicial aponta para o editor um papel de ponte entre os interesses dos escritores e dos leitores. Podemos ainda inferir que para Epstein o editor seria o responsável por encaixar esses interesses, não havendo neles nenhuma ação intelectual deliberada. Em seguida, afirma que o dinheiro não é a mola propulsora do negócio do livro. Concordaríamos com esse ponto de vista se ele quisesse dizer que os objetivos do negócio ultrapassam um simples lucro imediato. Mas não é isto que é efetivamente dito. Epstein soma, nesse trecho, antihistoricismo a um pressuposto anticapitalista na sua concepção do negócio editorial. Imaginar uma atividade negocial ou laborativa que traz a sua recompensa no exercício da atividade em si é um idealismo exagerado, que nos leva a uma pergunta: Como um negócio 22 fadado ao fracasso financeiro, a lucros limitados, pode se manter e se reproduzir? Como a resposta a essa pergunta contrairia qualquer lógica, podemos considerar essa concepção de Epstein como retórica e mitificadora, porém reveladora e compartilhada por muitos no universo editorial. Pode até se aplicar a certo tipo de editor, mas não pode ser considerada como regra geral. Essa concepção é repetida e reforçada em outros trechos do livro. Ele chega a afirmar que publicar livros assemelha-se mais a uma vocação ou a um esporte amador, em que o objetivo principal é a atividade em si em vez do seu resultado financeiro (EPSTEIN, 2002, p. 19). Trechos como esse são radicalizações daquilo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu vai chamar de denegação do econômico, como ainda veremos. Apesar desses pressupostos, algumas das suas análises sobre a atividade editorial são bastante lúcidas, amparadas na sua grande experiência no setor. Citando o exemplo da Editora Ramdom House no transcorrer da segunda metade do século XX, realça o papel do catálogo na constituição de uma editora, opinião semelhante, como vimos, a do editor Siegfried Unseld, e que, como será visto no desenvolvimento desta tese, será compartilhada também pelo editor-proprietário da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz: Tradicionalmente, a Ramdom House e as outras editoras cultivavam seus catálogos como o seu mais importante ativo, escolhendo os títulos por seu valor permanente tanto quanto por sua atração imediata. [...] Mesmo as editoras mais fortes dependiam de seus catálogos e consideravam os bestsellers golpes de sorte. Em suas memórias, Bennett Cerf, o co-fundador e presidente da Ramdom House, escreveu que quando a Ramdom House adquiriu a Alfred A. Knopf em 1960, as duas podiam fechar pelos próximos vinte anos ou mais e ganhar mais dinheiro do que agora ganhamos, porque nosso catálogo é como encontrar ouro na calçada . (EPSTEIN, 2002, p. 31 32) Nessas análises, o seu pressuposto que praticamente opunha o negócio do livro ao lucro capitalista é relativizado. Para ele, um bom catálogo de livros que continuasse vendendo ano após ano é o que garante o sucesso comercial de uma editora que pretenda ter um papel cultural relevante. Na verdade, o seu tipo ideal de editora não é 23 antieconômico, mas sim economicamente mais conservador, preferindo a venda segura de livros com um ciclo de venda longo a apostar em best-sellers, que teriam vendas aceleradas no momento do lançamento, mas que, em certo momento, deixariam de vender e até poderiam gerar encalhes consideráveis. Epstein, ao comentar os impactos das novas tecnologias, que, a partir do final do século XX, alteraram significativamente o mundo editorial, enxerga uma permanência da essência do trabalho editorial, se bem que com profundas modificações no modo de distribuição dos livros. Para ele, a transformação de manuscritos em livros continuará um processo manual que pode levar anos, e envolve escritores e editores. E nesse momento da sua análise, Epstein vislumbra um papel ativo dos editores de textos na produção do livro ao constatar que as emoções do editor de textos estão quase tão presentes no resultado final quanto as do autor (EPSTEIN, 2002, p. 46). Constatação paradoxal vindo de quem tem um discurso bastante articulado de defesa da criação literária do escritor como algo autônomo e individual. No Brasil, há uma escassez de livros publicados com as reflexões de editores brasileiros. A reflexão mais importante, conforme o professor Aníbal Bragança (BRAGANÇA, 2002), continua sendo A barca de Gleyre, de Monteiro Lobato, publicada na década de 1940, compilação de sua larga correspondência ativa (1903 escritor e tradutor mineiro Godofredo Rangel 1943) com o amigo e colaborador constante das atividades editoriais de Monteiro Lobato , na qual discute sua experiência como editor, refletindo criticamente sobre a atividade editorial. Por nossa tese se debruçar sobre o papel de um editor brasileiro da virada do século XX para o XXI, a correspondência de Monteiro Lobato não será analisada, até porque a riqueza desse material para a história editorial faz de A barca de Gleyre um objeto de estudo que vem sendo explorado em outros trabalhos. Já no final da década de 1980, a professora Jerusa Pires Ferreira e sua equipe da Escola de Comunicação e Artes da USP desenvolveram o projeto Editando o Editor, que vem publicando em livro depoimentos de editores brasileiros que militaram no setor, já tendo produzido seis volumes, com os seguintes editores: Jacó Guinsburg, da Editora Perspectiva; Flávio Aderaldo, da Hucitec; Ênio Silveira, da Civilização Brasileira; Cláudio 24 Giordano, da Oficina do Livro; e Jorge Zahar. Os depoimentos são colhidos pela equipe de pesquisa do projeto, que, posteriormente, os transforma em texto. Os volumes já publicados da série Editando o Editor trazem relatos e comentários que podem ser úteis para mapearmos como o editor brasileiro contemporâneo e de um passado recente vê o seu papel na produção cultural. Um dos depoimentos mais ricos da coleção, concedido em 1996, foi o de Jorge Zahar, editor e proprietário da Zahar Editores, fundada em 1956, e, posteriormente, da Jorge Zahar Editores, criada em 1985, ambas voltadas para a publicação de livros acadêmicos dos campos das ciências humanas e sociais. Jorge Zahar esteve sempre bastante conectado com o que se produzia nas universidades brasileiras, onde buscou seus principais colaboradores, tanto para encomendar e produzir textos nacionais quanto para selecionar textos de autores estrangeiros. Sérgio Miceli, em texto introdutório ao volume dedicado a Jorge Zahar, nos lembra que o editor não exercia as atividades editoriais solitariamente. A partir dos anos 60, a própria definição de áreas temáticas específicas, a seleção dos textos a serem traduzidos e publicados, o trabalho efetivo de tradução e revisão, e a produção dos textos de introdução aos principais ensaios estrangeiros foram confiados a jovens cientistas sociais brasileiros, como os irmãos Octavio e Gilberto Velho e Moacyr Palmeira. Em outras editoras de porte semelhante a Zahar Editores tanto do passado como do presente algumas dessas tarefas são muitas vezes exercidas pessoalmente pelo editor, como a seleção de textos e a produção de prefácios. O compartilhamento dessas atividades com esse jovem corpo acadêmico nacional instigou-lhes a realizar uma leitura pessoal de tradições intelectuais estrangeiras, mesclando correntes doutrinárias contrastantes, abrindo horizontes de provocação intelectual até então inexplorados , na observação de Miceli. (FERREIRA, 2001, p. 20-21) Essa ação acabou influenciando decisivamente na produção de textos acadêmicos no Brasil, repercutindo diretamente na produção de textos introdutórios às obras estrangeiras, e também estimulando indiretamente a produção de textos ensaísticos autônomos que esses jovens passaram a produzir em seguida. Apesar do compartilhamento de muitas atividades, a estratégia editorial global era obviamente uma 25 prerrogativa da editora. Jorge Zahar explica assim quais livros dentro do universo das ciências humanas e sociais eram escolhidos para a publicação, explicitando a política editorial de suas empresas: Não é pelo fato de eu ser socialista que eu só faria livros socialistas. Nunca fiz livros nazistas, isso de modo nenhum, e não farei. Mas livros de contestação ao marxismo, de caráter universitário, científico, perfeito, editei vários. Também publiquei autores antimarxistas. Minha ênfase maior caía, porém, sobre os livros marxistas, e aí prevalecia também uma razão. Esses livros tinham mais mercado que os livros antimarxistas, coisa que já não acontece mais. (FERREIRA, 2001, p. 37-38) Zahar nos revela que a sua escolha tende a ser por livros que pertencem a uma interseção entre o seu projeto pessoal de divulgação do pensamento marxista com o interesse do mercado. O importante é que haja uma conexão entre o projeto pessoal e o mercado, devendo existir uma sintonia do editor não só com o que se produz, mas também com o desejo de consumo dos leitores, no caso de leitores de textos de ciências humanas e sociais. Jorge Zahar nesse trecho mostra que o seu catálogo tem uma elasticidade, podendo abarcar várias abordagens dentro do seu tema; tem um foco principal: textos marxistas; e tem um limite: a não publicação de livros que advoguem um pensamento radical de direita. A política editorial vai influenciar e ser influenciada pelo público leitor de livros acadêmicos a partir desses parâmetros, com até a possibilidade de mudanças mais radicais, como a de os livros expressamente marxistas deixarem de ser o foco, como ele deixa transparecer ao final do trecho transcrito. Para terminar esta parte dedicada a Jorge Zahar, vale a pena nos aproveitarmos de mais outro ensinamento importante desse editor, ao apresentar de modo sintético a cadeia do livro, que ele chama de seqüência editorial: primeiro vem o autor, obviamente, e depois vêm o editor, o gráfico e o livreiro (FERREIRA, 2001, p. 46). Os elementos principais do sistema editorial estão expostos, com clareza e precisão, na fala do experiente editor, com 78 anos ao conceder a entrevista. Vale mencionar que novamente um editor identifica no autor o ponto de partida da produção do livro. 26 Outro editor que publica preferencialmente textos ensaísticos nas áreas das ciências humanas e sociais, que também teve depoimento, colhido em 1987, transformado em livro pelo projeto Editando o Editor, foi Jacó Guinsburg, da Editora Perspectiva. Ele fundou a editora em 1965, organizando seu catálogo prioritariamente em torno de séries e coleções, tradicional estratégia de organização de catálogo, que será praticada também nas décadas seguintes por editoras como a Brasiliense e a própria Companhia das Letras. As áreas de conhecimento focadas pela Perspectiva são semelhantes às das editoras de Jorge Zahar, apesar de Guinsburg privilegiar mais uma bibliografia de humanidades em geral do que as de ciências sociais. O perfil ideológico das obras e autores publicados pela Perspectiva se afasta de um marxismo mais ortodoxo, privilegiando a publicação de textos de vanguarda das correntes renovadoras surgidas, inclusive em relação às artes, nos anos 50 e 60, no Brasil e no exterior. Jacó Guinsburg deu um rico depoimento, no qual desenvolveu mais uma análise crítica da atividade editorial do que relatou a sua experiência concreta frente à Editora Perspectiva. No capítulo sintomaticamente intitulado Um livro é muito mais que um autor , ele não se furta em definir o que é uma editora: É um sistema de relações, que se destina a produzir uma certa obra. Esta obra, no plano editorial, não é só o texto do autor; o manuscrito do autor é uma potencialidade. Da mesma forma que uma peça de teatro não é apenas o texto do autor; porque a obra teatral só existe quando é realizada em cena, o texto é apenas uma potencialidade da obra. Um livro é muito mais que um autor, porque incorpora um trabalho tremendo de uma equipe. E não é um trabalho só de materialização. (AMORIM, 1989, p. 54) Guinsburg defende que a realização de uma obra é coletiva, envolvendo até a própria seleção ou escolha do texto. No entanto, não vislumbra como uma dessas atividades que resultam no livro o procedimento prévio à escrita do autor, como a encomenda ou a formatação de determinada coleção ou série, procedimento comum na própria Editora Perspectiva. Assim como Jorge Zahar, ao analisar o ciclo de produção do livro, fixa o seu início na sua escritura preliminar pelo autor. 27 Jacó Guinsburg, que além de editor é professor universitário e escritor de livros sobre teatro, publicados pela sua própria editora, também faz um longo e relevante comentário sobre a atividade empresarial em geral e a possível dicotomia entre a dimensão empresarial e o papel cultural da editora: Em princípio, você não faz nenhuma empresa na vida, se ela não é acompanhada de ilusões. Sempre há um princípio utópico que está na ponta de sua realização prática, e quem não tem ilusões não faz nada, simplesmente não pode dar um passo, principalmente na empresa. Toda empresa tem embutida uma ponta utópica, que pode ser o ganho de fortunas, pode ser outras coisas, mas em geral as pessoas, principalmente o empresário e as pessoas que empreendem, procuram não apenas uma segurança material, mas, como todo o mundo, ligam a esta conquista material sempre outros aspectos, além de questões de poder, de domínio sobre as coisas, e também de satisfações de ordem psicológica, cultural etc., até uma projeção na história. Tudo isso é utopia, utopia que acompanha qualquer iniciativa, e muito mais num campo cultural. Quando a gente se aproxima do processo editorial, da produção editorial com esta paixão, naturalmente tem muitas ilusões, e essas ilusões sempre acabam sofrendo o impacto da realidade, porque uma editora, além de veicular obras às vezes importantes, escritos e textos que a gente gostaria de ver veiculados, é uma empresa. A empresa editorial tem seu processo, sofre os efeitos da vida econômica e da vida social de um país, tanto quanto outras empresas, e talvez mais do que outras. (AMORIM, 1989, p. 23-24) Ele aponta que a própria atividade empresarial em si traz objetivos que ultrapassam o financeiro, mas evidentemente não podem contrariá-lo. No planejamento estratégico empresarial, utilizado, a partir da década de 1990, por muitas empresas ocidentais que ultrapassam a dimensão familiar, esse objetivo maior da empresa é denominado de missão da empresa , que muitas vezes não está registrado, mas está explícito nas suas realizações e modos operacionais. Para Guinsburg, não constatar ao iniciar uma empresa a importância da dimensão financeira é o que ele chama de ilusão. A especificidade da empresa editorial seria que a importância da sua missão, a de produzir livros, e, portanto, cultura, levaria a que muitos empreendedores tenham essas ilusões exacerbadas. Paradoxalmente, Guinsburg nos mostra que essas ilusões podem permanecer 28 em editores experientes como ele, ao afirmar que, por pensar a sua editora mais como um projeto cultural do que como uma empresa econômica, não seja um editor bem-sucedido . (AMORIM, 1989, p. 26) Apesar da modéstia dessa última frase, ao falar da sua experiência frente à Perspectiva, ele realça o papel pioneiro da sua editora em lançar coleções, como a Debates, dedicada à literatura ensaística do campo das humanidades, inaugurada em 1968, com a publicação de O personagem de ficção, coletânea com ensaios de Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes. Interessante observar no seu testemunho as possíveis vantagens econômicas de racionalização da produção que a editora pode ter ao publicar livros organizados em coleções: A coleção Debates pretendia não carregar no custo das capas, ter uma capa universal e, ao contrário da idéia hoje vigente, de que o livro deve ser individualizado pelo menos a que está no momento em moda, porque amanhã essa moda muda , deve ter uma apresentação cativante, uma proposta que pelo menos fisgue o olho do leitor; a nossa proposta era vender a idéia de coleção. (AMORIM, 1989, p. 59-60) Uma idéia extremamente racional economicamente em diferentes aspectos. Primeiro por baratear o preço do livro. Ao se fazer um planejamento gráfico único, incluindo a capa, para vários livros, o custo de produção por livro diminui. Além disso, ao não se pensar o livro como algo individual, mas como parte de uma coleção, a compra de um livro leva a uma potencial compra de outro volume da coleção. O prestígio de determinado livro da coleção no imaginário do leitor ou a satisfação efetiva com a sua leitura podem ser transferidos para os outros livros da coleção, o que também pode ocorrer entre livros da mesma editora, mesmo que não sejam organizados em coleção, como vimos anteriormente. Mas, organizados em coleções, essa transferência de valor simbólico entre livros é potencializada, podendo haver uma fidelidade do leitor aos livros da coleção. A partir da sedimentação do prestígio da coleção Debates, no início da década de 1970, pertencer a ela valia como um certificado de qualidade no campo das ciências humanas garantia de que o conteúdo se aproximava do pensamento de vanguarda nesse campo. Mas 29 é bom observarmos que a coleção pode ser uma estratégia adequada não só para propostas editoriais alicerçadas na qualidade de conteúdo. A coleção também pode ser adequada para propostas editoriais que objetivam produzir livros de consumo mais fácil e público mais amplo. Agrupar esses livros em coleções racionaliza a produção e as vendas, havendo o mesmo processo de transferência do valor entre livros, apesar de se tratar de outro tipo de valor. Vale lembrar que a Editora Ática principal editora brasileira no setor de didáticos e paradidáticos nas últimas décadas do século XX e início do XXI utiliza largamente a estratégia de agrupar livros sob a forma de coleção e séries, como forma de racionalização da produção, como podemos apreender das palavras de José Adolfo de Granville Ponce, membro da equipe editorial da Ática nos anos 90: A coleção é muito importante. O efeito de sinergia: um livro colabora com o outro. É mais fácil para a editora produzir no interior de conjunto predeterminado do que trabalhar um livro isoladamente. O custo de produção e divulgação do livro isolado será sempre muito maior. (apud BORELLI, 1996, p. 148 & GOLDBERG, 2004, p. 111) Apesar de organizar livros em coleções ser uma estratégia recorrente na edição moderna, a Editora Perspectiva teve um papel precursor com suas coleções no cenário editorial brasileiro a partir de finais da década de 1960. Posteriormente, já na década de 1980, a idéia de coleção em editoras não-didáticas foi retomada inicialmente pela Brasiliense e em seguida pela Companhia das Letras. Guinsburg, em seu depoimento, acaba por dividir a atividade editorial entre dois grandes paradigmas econômicos, um no qual a editora trabalha a favor do mercado e outro contra , como ele mesmo explica: Hoje existem duas maneiras de se trabalhar e estas duas maneiras definem os tipos de editores: uma maneira é aquela a favor do mercado, aquilo que se supõe que seja o mercado. E existe aquilo que se supõe a maneira de trabalhar do contra . O editor trabalha na contramão por várias razões: ou 30 porque acha que existe um canto, uma fissura onde pode penetrar, isto é, existe um campo, embora pequeno, inexplorado, onde pode marcar presença, satisfazer uma necessidade de alguma ordem, ou porque tem um projeto contracultural, contra-ideológico, etc; as possibilidades de êxito, neste tipo de coisa, são às vezes tão grandes quanto as do a favor . (AMORIM, 1989, p. 31-32) Na verdade, essas duas alternativas, contra e a favor do mercado, são dois paradigmas de estratégias editoriais opostas. Trabalhar a favor do mercado, como nos fala Guinsburg, é viabilizar livros que vão no mesmo sentido do gosto médio do público, identificando o que ele quer consumir e respondendo a isto de modo preciso. As empresas editoriais que fazem essa opção se sintonizariam com o gosto do público, sem criar necessidades que não obedecessem a este gosto médio. Por outro lado, trabalhar contra o mercado , para Guinsburg, pode acarretar em duas formas diversas de atuação: tentar explorar nichos de público ainda não contemplados pela produção de livros, ou influenciar o público e criar uma necessidade de consumo que ele não tem, como é o caso das vanguardas. É relevante a posição de Guinsburg de que trabalhar contra o mercado também traz possibilidades de grandes lucros. Utilizando essa hipótese, de ação contra o mercado , opta-se por um segmento do mercado já existente, diluindo-se a concorrência pela segmentação. Trabalhando com a segmentação, as tiragens são menores, o que diminui os riscos de encalhe. Funciona como na produção de bens de luxo, em que se perde na escala, mas se adequa a produção ao real tamanho do mercado, e pode-se cobrar mais por unidade de um produto de maior valor simbólico. Nessa visão, a opção mais radical de enfrentamento do mercado é quando o editor opta por uma estratégia editorial que tenta se antecipar ao público e criar necessidade de consumo cultural, que já existia potencialmente ou não. Como já mencionamos, uma estratégia que privilegie uma vanguarda cultural está influindo no padrão de consumo da cultura, sendo de início contra o mercado , mas que com a receptividade pode tornar-se uma mercadoria com bom posicionamento no mercado, atraindo outras editoras para a sua produção. Ser uma editora inovadora pode ser uma vantagem na conquista de novos 31 mercados, mas não garante a fidelidade de consumo. Guinsburg desenvolve mais esse paradigma de editor ativo que influencia o mercado cultural em vez de simplesmente satisfazer necessidades já estabelecidas: O editor não pode apenas receber a demanda do público e satisfazê-la, garantindo um lucro. Só é editor na medida em que propõe, seja adiantandose a esta demanda, quando conhece os movimentos culturais, seja por achar que, mesmo sem receptividade garantida pela sociedade, a obra deve ser publicada. É uma situação entre o mercado e o editor. É o que acontece também em outras áreas. Isso decorre de processos que escapam aos indivíduos. O editor tem de apostar. Se ele sente que uma obra tem valor, deve fazê-la. É quase obrigação fazê-la, na medida de suas possibilidades. E é assim que se faz nas boas editoras. Isso, contudo, não é mensurável; não existe tratado sobre isso, não existe fórmula. A fórmula está no próprio editor, no seu self. (AMORIM, 1989, p. 35) O editor do qual ele fala teria um papel de fomentador cultural que ultrapassa a demanda conhecida. Ele editaria obras que não seriam do gosto do consumidor, mas obras que deveriam ser do seu interesse, segundo critérios próprios. Apesar de Guinsburg considerar esses critérios como ligados a características pessoais do editor, acreditamos que eles também têm uma dimensão social, na medida em que representam escolhas em última instância do grupo intelectual de que mais se aproxima. No entanto, esses critérios mesmo sendo compartilhados se sedimentam na figura do editor. Não negamos que viabilidade e retorno econômicos sejam fundamentais na atividade editorial, mesmo no caso de editoras menores, mas, entre as várias possibilidades de publicação, a escolhida é a que adequa a possibilidade de retorno econômico às características próprias da empresa editorial e seu editor-proprietário. Outro editor que prestou rico depoimento à série Editando o Editor, foi Ênio Silveira, editor-proprietário da Civilização Brasileira, entrevistado em 1990. O seu depoimento funcionou mais como um relato biográfico do que uma análise crítica do papel do editor. Ênio contou uma série de histórias que ajudam a entender por que ele e a sua editora foram referência no mercado editorial brasileiro e na própria produção de ficção nas 32 décadas de 1960, 1970 (inclusive com projeto cultural, ideológico e político divergente daquele dos dirigentes do regime militar imposto no Brasil de 1964) e meados da década de 1980. Mas em seu depoimento não se furtou a abordar a dicotomia contra ou a favor do mercado , utilizando para isso a metáfora do feijão e o sonho, cristalizada na obra de Orígenes Lessa, publicada pela primeira vez em 1938: O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois pólos, bem caracterizados pelo livro do Orígenes Lessa, O feijão e o sonho. Se ele se dedica só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso. O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor. Mas ele não pode se deixar dominar só pelo feijão, infelizmente ocorre em todo o mundo, sobretudo hoje em dia, em que a atividade editorial passou a ser um apêndice dos meios de comunicação. (ALMEIDA, 1993, p. 96) Ênio, marxista convicto, vê a atividade editorial na sociedade capitalista como algo que deva ter um equilíbrio entre o feijão e o sonho, que podemos substituir por lucro e valor literário. Ele é um bom editor se publica livros de qualidade, mas só terá sucesso comercial se os seus livros venderem bem. No seu raciocínio, podemos imaginar que valor literário não caminha junto com boas vendas. No seu discurso, o sonho deve compensar o feijão, satisfazendo, simultaneamente, as necessidades intelectuais e econômicas do editor. Pode-se pensar num arranjo em que o livro de venda fácil subsidia o livro de maior valor cultural, apesar de na sua prática editorial Ênio ter conseguido sucesso de vendas com livros de prestígio literário, como no ano de 1956, em que publicou O encontro marcado, de Fernando Sabino, e O velho e o mar, de Ernest Hemingway, este último vendendo cerca de um milhão de exemplares em 28 anos. Mas Ênio também reproduziu na prática o seu discurso compensatório, publicando obras já produzidas para serem best-sellers, como os livros de Agatha Christie, Ian Fleming e Daphne du Morier, que garantiam a saúde financeira da Civilização Brasileira (HALLEWELL, 2005, p. 537) e a possibilidade de publicar livros para um público mais restrito. Para o gosto erudito de Ênio Silveira, o feijão e o sonho não ficariam nunca no mesmo prato 33 o destino de Campos Lara, o poeta protagonista da obra de Orígenes Lessa, seria um só: morrer à míngua. Nessa visão, caberia ao editor de qualidade proporcionar a dosagem entre os dois elementos no catálogo da editora para que livros de qualidade possam ser publicados. Discurso diverso terá Luiz Schwarcz ao se propor publicar somente livros de qualidade, e ter lucro com isto, como veremos no prosseguimento desta tese. Deixando um pouco a voz do editor de lado, vale a pena, neste final de subcapítulo, utilizarmos a voz do sociólogo francês Pierre Bourdieu para entendermos melhor a recorrente visão entre os editores evidenciada nos depoimentos citados de que a atividade editorial de obras de qualidade literária e cultural é uma atividade empresarial especial, praticamente anticapitalista, na qual o lucro não é o motor principal. Pierre Bourdieu, em 1977, publica um ensaio na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales intitulado A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos , que apresenta uma rica abordagem sobre essa questão a partir da análise das empresas dedicadas ao campo artístico na França da época, elaborando uma explicação que ele vai chamar de denegação do econômico. Sua formulação tanto vale para o comércio quanto para a produção de bens artísticos e culturais. Bourdieu introduz assim a especificidade da denegação do econômico nas empresas que têm o artístico e o cultural como foco, e o perigo para o analista de não levar em conta essa dimensão: O comércio da arte comércio das coisas de que não se faz comércio pertence à classe das práticas em que sobrevive a lógica da economia précapitalista [...] e que funcionando como se tratasse de denegações práticas, não conseguem fazer o que fazem a não ser procedendo como se não o fizessem: desafiando a lógica habitual, essas duplas práticas prestam-se a duas leituras opostas, mas igualmente falsas, que acabam desfazendo a sua dualidade e duplicidade essenciais, reduzindo-as seja à denegação, seja ao que é denegado, ao desinteresse ou ao interesse. (BOURDIEU, 2004, p. 19) Ou seja, a atividade do negócio da arte e de bens culturais de grande valor simbólico, entre elas as atividades de edição de literatura e obras culturalmente relevantes, não pode se assumir como negócio. Os atores sociais que realizam essas atividades 34 empresariais devem demonstrar desinteresse pelo lucro e mesmo assim atingi-lo. Bourdieu adverte que para entendermos essas empresas temos que aceitar a convivência entre o interesse e o desinteresse econômico delas, não podendo se excluir qualquer uma das dimensões. A denegação do econômico não exclui totalmente a dimensão econômica. Portanto, tanto a atitude de acreditarmos no discurso de que o negócio do livro é antes cultural do que econômico, como vimos ser dito repetidas vezes nas páginas anteriores, quanto a de não acreditarmos, entendendo-o como uma mitificação total, não facilita a compreensão dos discursos e práticas dessas editoras. Para Bourdieu, sistemas econômicos fundados nessa denegação só funcionam como discurso e como prática mediante um recalcamento constante e coletivo do interesse especificamente economicista. Esse recalcamento torna a busca ostensiva do sucesso comercial como uma atitude que deve ser evitada nesse ambiente. No entanto, essas empresas possuem uma racionalidade econômica que funciona de modo peculiar, como explica o sociólogo francês: Neste cosmo econômico definido, em seu próprio funcionamento, por uma recusa do comercial que, de fato, é uma denegação coletiva dos interesses e ganhos comerciais, as condutas mais antieconômicas , as mais desinteressadas visivelmente, aquelas que, em um universo econômico habitual seriam as mais condenadas sem o menor dó, contêm uma forma de racionalidade econômica (até mesmo, no sentido restrito) e, de modo algum, excluem seus autores dos ganhos, inclusive econômicos prometidos aos que se conformam à lei do universo. Ou por outras palavras, ao lado da busca do lucro econômico que, ao transformar o comércio dos bens culturais em comércio semelhante aos outros, e não dos mais rentáveis economicamente (como nos é lembrado pelos mais experientes, ou seja, os mais desinteressados dos comerciantes de arte) se contenta em ajustar-se à demanda de uma clientela antecipadamente convertida, existe lugar para a acumulação do capital simbólico, como capital econômico ou político denegado, irreconhecido portanto, legítimo , crédito capaz de garantir, sob certas condições, e sempre a prazo, ganhos econômicos . Os produtores e vendedores de bens culturais, empenhados em operações do tipo comercial, condenam-se a si mesmo, e não somente de um ponto de vista ético e estético, porque privam-se das possibilidades oferecidas àqueles que, por saberem reconhecer as exigências específicas do universo, ou, se quisermos, irreconhecer e fazer irreconhecer os interesses em jogo em sua 35 prática, utilizam os meios de obter os ganhos do desinteresse. (BOURDIEU, 2004, p. 19 - 20) Para Bourdieu, no interior do universo que denega o econômico funciona uma racionalidade econômica específica, que, inclusive, gera ganhos econômicos imediatos. Mas os códigos internos menosprezam esses ganhos. Paradoxalmente, quanto mais a empresa parecer desinteressada maiores serão as possibilidades do seu sucesso comercial. Autoproclamar-se interessada em ganhos comerciais, por outro lado, pode a excluir dos ganhos econômicos desse universo específico. A pecha de comercial é quase sempre dita para acusar o concorrente. O único ganho econômico valorizado explicitamente é o aumento do capital simbólico, ou seja, a marca da empresa ou o nome do seu proprietário serem reconhecidos publicamente como uma garantia de valor para seus produtos. O empreendimento econômico cultural e artístico só pode ser bem-sucedido, até mesmo economicamente , se conciliar as necessidades econômicas com a convicção que as exclui. O sistema da denegação do econômico implica a convivência da empresa editorial com antigas formas de mecenato transmutadas em formas de mecenato estatal explícito ou outros modos de trocas de interesses com o sistema político ou empresarial fora do universo artístico ou cultural. Pierre Bourdieu, nesse mesmo ensaio, constata que a denegação do econômico no campo da produção e circulação de bens culturais implica que se tente apagar o papel empresarial dessa produção. Editores, marchands e empresários da área musical encobrem a sua própria atividade para que o olhar externo seja orientado em direção ao produtor aparente pintor, compositor, escritor , em poucas palavras, em direção ao autor, impedindo o questionamento a respeito do que autoriza o autor, do que dá a autoridade de que o autor se autoriza (BOURDIEU, 2004, p. 21-22). Ele explica como essa dissimulação funciona e quais suas conseqüências: A ideologia da criação, que transforma o autor em princípio primeiro e último do valor da obra, dissimula que o comerciante da arte (marchand de quadros, editor, etc.) é aquele que explora o trabalho do criador fazendo 36 comércio do sagrado e, inseparavelmente, aquele que, colocando-o no mercado, pela exposição, publicação ou encenação, consagra o produto caso contrário, este estaria votado a permanecer no estado de recurso natural que ele soube descobrir tanto mais fortemente quanto ele mesmo é mais consagrado. O comerciante de arte não é somente aquele que outorga à obra um valor comercial, colocando-a em relação com um certo mercado; não é somente o representante, o empresário, que defende, como se diz, os autores que lhe agradam . Mas, é aquele que pode proclamar o valor do autor que defende (cf. a ficção do catálogo ou do comunicado destinado à imprensa) e, sobretudo, empenhar, como se diz, seu prestígio em seu favor, atuando como banqueiro simbólico que oferece, como garantia, todo o capital simbólico que acumulou (e, realmente, passível de ser perdido em caso de erro). (BOURDIEU, 2004, p. 22) O papel de consagrador da obra literária que os editores efetivamente realizam é minimizado. A obra em si e o seu produtor aparente quem assina a obra tomam conta da cena. No entanto, o prestígio do editor pode consagrar a obra literária que publica. O seu prestígio acumulado é emprestado a cada obra mas de forma que quem fica iluminado é a nova obra e o seu autor. Nesse universo, os editores apagam os rastros de sua atividade de co-produção e consagração, mas a sua marca fica na própria publicação da obra sob seu apadrinhamento. Nesse contexto, uma visão mitificadora do escritor, no discurso do editor, é extremamente funcional. Os exemplos das práticas e, especialmente, os discursos dos editores examinados até o momento ilustram e comprovam o modelo proposto por Bourdieu. Em relação à denegação do econômico, os depoimentos de Unseld, Epstein, Zahar, Guinsburg e Ênio Silveira funcionam praticamente como uma contraprova. Em relação ao encobrimento da sua atividade para que sejam iluminados a obra e o autor, os depoimentos dos editores citados também corroboram a hipótese de Bourdieu. Quando passarmos a estudar a experiência do editor Luiz Schwarcz frente à Companhia das Letras, encontraremos proposta diversa à da denegação do econômico, mas que com ela dialoga de forma inequívoca: umas vezes se afastando radicalmente, outras vezes se aproximando dissimuladamente. 37 Capítulo 2 A Companhia das Letras Este é o capítulo central da tese e será dividido em cinco subcapítulos. No primeiro, será analisada a formação da editora Companhia das Letras, incluindo uma busca de suas raízes na Editora Brasiliense de finais da década de 1970 e início da de 1980, onde houve a iniciação do editor-proprietário da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, no mundo editorial. No subcapítulo seguinte, será examinado o catálogo de todas as 38 publicações da editora na sua história que completa 20 anos em 2006 , que servirá como guia para o entendimento das ações da editora. O terceiro subcapítulo utilizará entrevistas realizadas com o editor Luiz Schwarcz para desenhar o modo como ele vê e participa da atividade editorial. No quarto, será investigada a relação dos autores brasileiros de ficção em atividade com a editora em contraponto às relações que mantiveram com outras editoras pelas quais publicaram. No último subcapítulo, serão confrontadas e consolidadas as questões levantadas nos outros subcapítulos e analisado o papel da editora e seu editor na literatura brasileira. 2.1 A formação da Companhia Um dos modos de estudarmos a origem da Companhia das Letras é fazermos uma abordagem histórica da sua formação. Devemos dar um passo atrás e acompanharmos a trajetória do seu editor-proprietário, Luiz Schwarcz, como membro da equipe editorial da Editora Brasiliense a partir de finais da década de 1970, onde permaneceu até 1986, quando fundou sua própria editora. Segundo Laurence Hallewell, no seu monumental O livro no Brasil, a Editora Brasiliense, fundada na década de 1940 por Arthur Neves, egresso da Companhia Editora Nacional, teve como projeto inicial reeditar Monteiro Lobato em duas coleções, uma para adultos e outra para crianças, que seriam vendidas de porta em porta (HALLEWELL, 2005, p. 369). O sucesso do empreendimento estimulou a Brasiliense a tornar-se uma editora especializada em coleções, publicando já na década de 1960 séries, como Contos Jovens, Teatro Universal, Uma Nova Mulher e Sexo e Educação, dedicadas 39 tanto à literatura quanto a obras não-ficcionais e de popularização de conhecimentos científicos, segmentando o seu catálogo de acordo com públicos específicos. A Brasiliense abriu também espaço para uma interpretação mais à esquerda da realidade nacional, publicando obras do geógrafo Josué de Castro e do historiador Caio Prado Júnior, parceiros constantes da editora. Este último acabou assumindo o controle da editora em 1962, após a saída de Arthur Neves. Mas a Brasiliense somente passou a ter um papel mais destacado no cenário editorial especialmente na publicação de livros para o público universitário quando o filho de Caio Prado Junior, Caio Graco Prado, o substituiu no comando da empresa a partir de 1975. A editora redirecionou sua estratégia, orientando-se especificamente para um público jovem e universitário que surgia nos últimos anos da ditadura. Nos três primeiros anos da década de 1980, publicou mais livros do que em todo período anterior, desde a sua fundação. Só em 1981, lançou 415 títulos, entre lançamentos e reedições, vendendo dois milhões de exemplares (HALLEWEL, 2005, p. 661). A sua estratégia editorial ancorava-se na formatação de coleções de pequenos livros voltados para o público jovem, como as coleções Primeiros Passos, Tudo é história, Encanto Radical, Primeiros Vôos, Cantadas Literárias e Circo das Letras. Além do público-alvo, o que unia essas coleções era que cada uma apresentava um número de títulos amplo e os livros tinham poucas páginas e dimensões pequenas, permitindo um preço de capa baixo, adequado ao poder aquisitivo do seu público. No início da década de 1980, a Editora Brasiliense tornara-se uma das três maiores editoras do país. A coleção pioneira e de maior sucesso de vendas é a Primeiros Passos, cujos volumes começaram a ser publicados em 1980, e, até janeiro de 1989, lançou 215 títulos, publicando cinco milhões de exemplares, segundo dados da própria editora na 7a edição de um dos títulos, publicado em 1989, O que é contracultura (PEREIRA, 1989, p. 102 - 103). Eram livros que tinham em torno de cem páginas, com formato de livro de bolso (15,5cm x 11,5cm), impressos em papel de qualidade inferior ao padrão que era utilizado em outras publicações da editora as coleções Encanto Radical e Tudo é História passaram a obedecer ao mesmo formato. Os títulos da coleção Primeiros Passos se espalhavam pelos 40 temas mais variados, como O que é sociologia, O que é romance policial, O que é rock, O que é aventura e O que é energia nuclear. Na verdade, eram sempre textos introdutórios a esses temas, escritos de modo leve, estimulando sempre o jovem a buscar outras leituras correlatas. Funcionava como uma enciclopédia crítica, publicando abordagens diversas sobre quase todas as áreas de conhecimento, sem preconceitos disciplinares. Qualquer assunto seria relevante para essa eclética enciclopédia. Os textos não eram nada imparciais e muitas vezes representavam uma visão radical de determinada escola de pensamento sobre o tema escolhido. Muitos dos autores eram membros de prestígio do mundo acadêmico que também conseguiam produzir textos simples que atingissem um leitor leigo em determinado tema. Esses textos contrastavam com outras obras acadêmicas desses autores, bem mais eruditas. Eram autores nacionais das mais diversas ideologias e correntes de pensamento, mas a maioria era marcada pela ideologia de esquerda e uma posição crítica em relação ao tema que abordava. Escreveram para a coleção nomes como Marilena Chauí, Carlos Alberto Messeder Pereira, Florestan Fernandes, Jean-Claude Bernadet e o próprio Caio Prado Júnior teve um texto usado pela coleção. O volume O que é ideologia, de Marilena Chauí, foi o principal sucesso de vendas, chegando a vender 120 mil exemplares. (HALLEWELL, 2005, P.662) O exame detalhado dos exemplares nos mostra que os livros dessa coleção pretendiam ser geradores de uma infinidade de leituras, preferencialmente de obras publicadas pela própria Brasiliense. Já na página anterior à folha de rosto era sugerida uma série de leituras afins, todas publicadas pela editora. No caso de O que é contracultura havia sete indicações. No final do texto, eram feitas novas sugestões bibliográficas agora indicações de leituras complementares feitas pelo autor, não necessariamente publicadas pela Brasiliense. Após o texto, ainda eram anunciados os últimos lançamentos da editora e relacionados todos os títulos da Primeiros Passos. Importante realçar que logo após as indicações bibliográficas do autor aparecia o seguinte aviso: Caro leitor: 41 As opiniões expressas neste livro são as do autor, podem não ser as suas. Caso você ache que vale a pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema, nós estamos dispostos a estudar sua publicação com o mesmo título como segunda visão . (PEREIRA, 1989, p. 97) Apesar desse convite, meramente retórico ou não, apenas três títulos é psicanálise, O que é informática e O que é espiritismo O que mereceram a publicação de uma segunda visão até 1989. Muitos títulos da coleção permanecem no catálogo pelo menos até o período de redação desta tese, no final de 2005, sendo vendidos ao consumidor por R$ 15,00, com algum sucesso de vendas, já que ainda são facilmente encontrados em livrarias universitárias. Outra coleção de intenções paradidáticas de grande sucesso junto aos jovens universitários foi a coleção Encanto Radical. Ela publicava pequenas biografias ensaísticas de figuras históricas brasileiras ou estrangeiras que possuíssem características de radicalidade nas suas idéias ou atitudes, segundo critérios da editora. Foram dedicados volumes a escritores, líderes revolucionários, artistas, intelectuais personalidades tão díspares como Pascal, Mae West, Mané Garrincha, Joaquim Nabuco e Pancho Villa. Muitos dos biografados eram controversos e os biógrafos normalmente eram de uma parcialidade assumida, sendo advogados de defesa e propagandistas dos seus personagens. Os biógrafos também possuíam perfis quase tão ecléticos quanto os biografados. Os autores faziam parte da cena cultural nacional. Alguns deles eram pesquisadores ligados a universidades, como na coleção Primeiros Passos; mas muitos outros eram escritores ou artistas que tinham uma ligação intelectual mais forte com determinada figura a ser biografada. Um dos escritores que produziu um considerável número dessas biografias foi o poeta Paulo Leminski. A prolífica Brasiliense da década de 1980 também publicava literatura. Mais uma vez os livros eram agrupados prioritariamente em coleções ou séries e os títulos tentavam atingir o mesmo público jovem dos livros de não-ficção. A coleção Circo das Letras era dedicada a publicar obras de ficção de autores estrangeiros de prestígio que de alguma forma eram considerados revolucionários, 42 vanguardistas ou questionadores pela sua produção ficcional, como James Joyce, Franz Kafka, Joseph Conrad e John Fante. A coleção ainda tinha espaço para uma literatura considerada menor quando publicada originalmente, como textos da geração beat americana incluindo On the Road, de Jack Kerouac, que era publicado pela primeira vez no Brasil em 1984 , e obras eróticas, como História d´O, de Pauline Réage. A Circo das Letras também lançou várias obras do romance policial noir americano, tornando mais populares no Brasil autores como David Goodis, Raymond Chandler e Dashiell Hammet. A coleção não possuía uma identificação visual tão nítida como as outras coleções da Brasiliense. O que identificava seus livros era a aparição em algum lugar da capa de seu logotipo. A outra coleção dedicada à literatura, batizada de Cantadas Literárias, abria mais espaço à produção contemporânea, incluindo a literatura nacional. Publicava pequenos romances, coletâneas de contos, novelas, narrativas autobiográficas, livros de poemas, sendo aberta à mistura de gêneros e à experimentação. O formato era singular, 11,5cm X 20cm, mais estreito que o livro convencional, e aproximando o seu tamanho ao do livro de bolso (figura 1). Sua capa também era de fácil identificação. Era dividida horizontalmente em três blocos. No primeiro, de cima para baixo, apareciam o logotipo da editora e o título da obra; na parte central havia uma ilustração; e na parte debaixo constavam o nome do autor e o logotipo da coleção. O primeiro volume publicado foi Porcos com asas, dos italianos Marcos Radice e Lidia Rivera definido pela editora como um diário sexo-político de dois adolescentes. Foram publicadas obras de autores estrangeiros de diversas épocas, como D. H. Lawrence e Walt Whitman, mas privilegiava autores contemporâneos como o espanhol Pablo Casado. No âmbito da literatura nacional, publicou até 1986 as seguintes obras: Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu Tanto faz, de Reinaldo Moraes Passatempo, de Francisco Alvim 43 Um telefone é muito pouco, de Silvia Escorel A teus pés, de Ana Cristina César Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva Caprichos e relaxos, de Paulo Leminski Drops de abril, de Chacal Makaloba, de Edílson Martins Fliperama sem creme, Teixeira Coelho Pelos pêlos, Alice Ruiz Marcou, dançou: manual de sobrevivência na cela, de José Augusto Fontes A fuga Reynaldo Guaranys Um copo de cólera, de Raduan Nassar Finesse e fissura, de Ledusha Dama da noite, Alita Sá Rego Strip-tease, de Martha Medeiros No simples exame da lista, podemos constatar a importância dessa coleção para a literatura de início de 1980. Principalmente por alargar as possibilidades de consumo para uma literatura dita marginal, produzida na década de 1970 de forma editorial precária, quase artesanal, por autores de propostas diversas como Paulo Leminski, Chacal, Ana Cristina César, entre outros. Flora Süssekind, no seu estudo Literatura e vida literária , ao comentar a continuidade da produção desses poetas na década de 1980, destaca a importância do papel da Brasiliense no aumento do público de autores inicialmente marginalizados pelo sistema editorial, mas que têm de fazer uma opção entre permanecer em um esquema alternativo ou ser publicado por uma editora com acesso às livrarias: Divisão que se apresentaria de maneira mais nítida no início dos anos 80, quando Chico Alvim, a própria Ana Cristina, Leminski, Chacal, Alice Ruiz 44 e, mais tarde, Cacaso seriam convidados pela Editora Brasiliense para reunir em volume seus livros editados inicialmente de forma independente. O que se realizaria com bastante sucesso de público. E com a ampliação do número de interlocutores potenciais de seus textos de cerca de 500 conhecidos para dez, quinze mil pessoas. (SÜSSEKIND, 2004, p. 122) Alice Ruiz, poetisa publicada na coleção, testemunhou que o próprio Luiz Schwarcz já participava da seleção de obras literárias para a coleção Cantadas Literárias, sendo algumas vezes o responsável por convidar escritores da cena da poesia marginal a publicar suas obras, como no seu próprio caso e no de seu marido, Paulo Leminski: É, eu já fui catalogada inclusive como poeta marginal porque esses primeiros livros, tanto o Navalha quanto o Paixão eram independentes, eles não tinham a chancela de uma editora. Aliás, até para completar isso, quando a gente conheceu o Luiz Schwarcz, eu e o Paulo, o Luiz na época, a Brasiliense tinha uma livraria na época, também, e aí nós presenteamos o Luiz Schwarcz que era também editor da Brasiliense. Trabalhava na Brasiliense e era o criador de várias coleções, dentre elas a Cantadas Literárias e nós presenteamos alguns livros para ele e ele falou: "Ah, mande mais que eu coloco na livraria , e um dia ele ligou para gente, para os dois, foi simultâneo o negócio, propondo uma edição. Ele falou: se vocês tiverem coisas inéditas, a gente junta e fazemos uma publicação. E assim nasceu o meu livro Pelos pêlos. (RUIZ, s/d) Mas também existem casos de autores da chamada poesia marginal que conseguiam publicar textos paradidáticos de temas do seu conhecimento e interesse na coleção Encanto Radical, ou mesmo na Primeiros Passos, mas não conseguiam ter suas obras poéticas mais experimentais publicadas na série Cantadas Literárias, como podemos ver pelo testemunho do poeta Glauco Mattoso em texto publicado em livro que se debruça sobre as relações entre autor e editor sob o ponto de vista do autor: Foi na Editora Brasiliense, entretanto, que publiquei meus primeiros títulos sob contrato. Anteriormente eu recorrera a diversas modalidades de edição (coletâneas datilografadas em casa, apostiladas em copiadoras, folhetos 45 frente-verso xerocados, poemários em formato de livro, mas publicados cooperativamente por editoras extracomerciais tipo Pindaíba ou Trote), mas em 1981, quando meu fanzine Jornal Dobrabil teve suas folhas avulsas reunidas num volume graficamente bem-acabado, fui apresentado ao editor Caio Graco pelo professor e crítico de cinema Jean-Claude Bernadet, com quem participei do quadro de colaboradores do Lampião. Na época a Brasiliense se expandia a ponto de tornar-se uma das maiores casas do país, e lançava as coleções de bolso Primeiros Passos, onde cada volume abordava determinado assunto como se fosse um verbete enciclopédico para préuniversitários, mas associando a conscientização política à orientação paradidática. Nessa coleção assinei os volumes O que é poesia marginal (1981) e O que é tortura (1984). [...] Quando se tratou, porém, de estudar uma possível edição da minha antologia poética, Caio não foi tão receptivo quando fora no caso dos ensaios de bolso: colocou na fila e foi adiando até que eu perdesse a paciência, enquanto as antologias de Chacal ou Leminski, mas palatáveis (porque menos chulas, provavelmente), iam saindo dentro do cronograma. (BUSATO, 2004, p. 57 58) A coleção Cantadas Literárias também permite uma maior divulgação de ficcionistas como Caio Fernando Abreu, Reinaldo Moraes e Raduan Nassar, unindo boa vendagem a uma boa repercussão na crítica. A coleção forma, associando esses autores numa coleção, um verdadeiro cânone de malditos que encontrariam no jovem seu públicoalvo. No entanto, de todos os livros da coleção, o que atingiu maior vendagem foi a narrativa memorialística do jovem estreante Marcelo Rubens Paiva, Feliz ano velho, justamente a obra para a qual o adjetivo maldito pode ser mais inadequado. Bem mais comportada esteticamente do que suas companheiras de coleção, a narrativa da experiência real da infância e juventude do autor, que se torna paraplégico, atingiu em cheio o gosto do público jovem quando publicada em 1982. O regime militar, que vivia seus últimos anos, também aparecia nas reminiscências do autor, a partir da história de seu pai, preso político morto pelos militares. O tema político aparece na perspectiva do jovem da geração que viveu sua infância e juventude sob o regime militar, ou seja, o seu provável leitor. Outros temas de interesse desse jovem apareciam no texto, como o sexo, a maconha e o ambiente universitário. A linguagem direta, despojada e informal é outra característica do texto que facilitou a adesão em massa de um leitor em 46 formação, que teve como um dos revisores outro autor, com mais experiência, que já tinha sido publicado também pela coleção, Caio Fernando Abreu. O prefácio de Luiz Travassos, ex-presidente da UNE e contemporâneo de Marcelo Rubens Paiva, mostra um pouco como foi a recepção desse livro pelo jovem: O teu livro está um barato, porque dá para sentir um gozo aberto, tipo poker descoberto. No fundo eu acho que a transa da literatura está ligada à transa da verdade (assim como a revolução, o amor e um montão de coisas). E é aí que está todo o pique do que você escreveu. A tua história está transada de um jeito putamente terno, bem-humorado, erótico e sedutor, o que, aliás, é a sua maneira de ser. (PAIVA, 1984, p. 7) Não necessariamente a maioria dos 120 mil leitores de Feliz ano velho, conseguidos em seus dez primeiros meses (HALLEWELL, 2005, p. 662), se interessaria pelas outras obras da coleção, mas a possibilidade estava aberta. Na verdade, a transferência não se concretizou, mostrando a singularidade da obra de Marcelo Rubens Paiva na coleção, que conseguia chegar à sua 32a edição já em 1984. Luiz Schwarcz, em entrevista concedida em 2002 à jornalista e pesquisadora Cecília Costa, analisa o que a Brasiliense, da qual ele participou, trouxe de novo no cenário editorial brasileiro: No caso da Brasiliense, acho que ela trouxe uma novidade: visão de nicho de mercado. Encontrou um público jovem, abriu as portas para esse público, criou coleções e novidades como a coleção Primeiros Passos e o Circo das Letras. Também tinha uma noção de marketing e foi democratizadora, ao atrair um público que estava batendo na porta do mercado cultural, querendo ler, ir a festivais de cinema, às reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC). (COSTA, 2002, p. 1) A especificidade da Editora Brasiliense na década de 1980 sob a condução de Caio Graco Prado foi a utilização da estratégia de organizar sua produção em coleções para atingir um nicho de mercado específico, o do jovem leitor, e ao mesmo tempo formá- 47 lo como leitor. Ao jovem brasileiro que iniciava a sua maturidade intelectual durante a década da abertura era oferecida uma série de leituras organizadas ficcionais e depois também ficcionais e poéticas inicialmente não- por uma editora em ascensão. O jovem teria seu gosto formado e direcionado para determinadas opções intelectuais, políticas e estéticas deliberadamente e sem constrangimento. Como alternativa à ditadura que se encerrava, era oferecida uma verdadeira biblioteca libertária, repleta de beats, poetas marginais e heróis revolucionários. Se utilizarmos a dicotomia contra/a favor do mercado explicitada por Guinsburg, podemos dizer que a Brasiliense trabalha contra o mercado, na medida em que participa da criação de novas necessidades de leitura, formando um novo leitor, mas trabalha a favor do mercado na medida em que capta uma necessidade de consumo latente num nicho determinado. A Brasiliense da década de 1980 moldava e era moldada pelo seu público preferencial, o jovem leitor. É esse contexto editorial que serviu de escola para o jovem Luiz Schwarcz, nascido em 1956, que ingressou na Brasiliense em 1978, com pouco mais de 20 anos, para um estágio prático, por sugestão de Eduardo Suplicy, então professor de administração da Fundação Getúlio Vargas, onde Luiz estudava (HALLEWELL, 2005, p. 663). Em pouco tempo se transformou no principal auxiliar de Caio Graco Prado, participando ativamente da história de sucesso da Brasiliense de 1978 até 1986, quando saiu para fundar a Companhia das Letras. Nesse ínterim, chegou a iniciar uma carreira acadêmica, ingressando no mestrado em Ciências Sociais na USP, do qual desistiu em pouco tempo, para se dedicar ao trabalho na Brasiliense. (CASTELLO, 2005, p. 7) Em matéria publicada na Gazeta Mercantil em janeiro de 2003, a partir de entrevista com Schwarcz, é dito que o editor decidiu sair da Brasiliense e fundar a sua própria editora porque Caio Graco insistia em dirigir suas publicações prioritariamente ao público jovem, considerando que a formação dos novos leitores seja fundamental para o crescimento do hábito de leitura (NEVES, 2003, p. 1). Schwarcz, por outro lado, queria publicar para um público adulto, que incluiria também aqueles que iniciaram a leitura pela Brasiliense. 48 A rápida ascensão da Companhia das Letras na parte final da década de 1980 vai coincidir com a queda de prestígio da Brasiliense no mesmo período e com a mesma rápida velocidade. A Brasiliense chega nos anos de 1990 sem a sombra do vigor que tinha no início da década anterior, recebendo ainda o golpe da perda da liderança de Caio Graco, que faleceu em junho de 1992. A Brasiliense não é o único modelo editorial para Schwarcz. Cecília Costa, na introdução de entrevista já citada anteriormente, menciona também a contribuição que tiveram outras experiências editoriais na formação do pensamento de Schwarcz como editor. A empresa editorial que vai fundar aproveita tanto as experiências da Brasiliense quanto às de suas principais concorrentes na década de 1980: Faz questão de explicar que ela é o resultado de um mix de experiências anteriores: a preocupação gráfica e também de conteúdo da Nova Fronteira, nos tempos de Sérgio Lacerda, a ousadia da Record em tratar o livro como um produto comercial e as inovações da Brasiliense, na época buliçosa da redemocratização. (COSTA, 2002, p. 1) Schwarcz abriria sua editora com um capital inicial de US$ 140.000, proveniente da venda de um apartamento e, em menor parte, de empréstimos da família (NEVES, 2003, p. 1), proprietária da gráfica Cromocart. O nome Companhia das Letras foi inspirado na empresa mercantilista de comércio internacional da época colonial Companhia das Índias, tendo sido criada para a identidade visual da nova editora uma série de logotipos. (HALLEWEL, 2005, p. 662) O designer responsável pelos logotipos foi João Baptista da Costa Aguiar, que vai buscar na gráfica pré-moderna referências para a montagem dos pequenos desenhos, que se sintonizam com o nome da editora, formando um conjunto que ecoa a expansão marítima portuguesa e a fascinação pela viagem e pela descoberta (figura 2). Chico Homem de Melo, ao analisar a confecção de marcas na década de 1980, em todo o universo do design gráfico brasileiro, dá destaque ao trabalho de João Baptista da Costa 49 Aguiar na Companhia das Letras, concebido, segundo Chico Homem, no contrafluxo das tendências construtivas e desconstrutivas que marcavam o design brasileiro da época: Utiliza-se para isso das antigas vinhetas tipográficas e de fios de espessuras distintas, produzindo uma atmosfera clássica e sofisticada. No entanto, as reviravoltas não param por aí. Ao invés de estabelecer uma imagem definitiva para o sinal, ele cria uma família de imagens, todas relacionadas a meios de transporte de novo em sintonia com o nome da editora. Anos depois, o sistema amplia-se ainda mais, sendo criados sinais com grafismos diferenciados para as publicações destinadas aos públicos infantil e juvenil. A marca não é mais uma marca única, mas um sistema de marcas ordenadas segundo um padrão matricial. (MELO, 2003, p. 23 - 24) Companhia das Letras é o nome fantasia da editora, o nome que ela adotou para ser reconhecida junto ao público. A empresa foi efetivamente registrada como Editora Schwarcz, já que pelo direito comercial brasileiro a palavra companhia só pode ser utilizada por empresas de capital aberto, constituídas através de sociedade anônima. A adoção de determinado nome pelas editoras contato direto com o público e outras empresas que têm é uma forma de construção da identidade. Gustavo Sorá, em ensaio já citado, nos mostra o que a análise do nome das editoras pode revelar: Em sua naturalidade, escondem-se escolhas que descrevem, de maneira condensada, as restritas combinatórias de lógicas culturais e econômicas que cada agente pode assumir para se fazer reconhecer em um espaço de relações e possibilidades. (SORÁ, 1997, p. 172) A não-adoção do nome Editora Schwarcz como sua identidade reconhecida é bastante significativa na medida em que evita a tradicional e personalista adoção do nome do fundador, como José Olympio, Martins Fontes ou Jorge Zahar. Também não foi utilizada designação nacionalista, como Brasiliense, Civilização Brasileira, Tempo Brasileiro ou Companhia Editora Nacional, que identifica a fundação da editora com um novo modo de pensar o país. Gustavo Sorá, ao analisar o nome Companhia das Letras, 50 observa que ele como a expressão marchand de quadros, reúne os representantes e as representações do mundo dos negócios com o universo literário, artístico: a razão do amor ao mercado e o amor à arte; economia e cultura (SORÁ, 1997, p. 172 - 173). O nome Companhia das Letras funciona como verdadeira bandeira: superar a dicotomia entre o feijão e o sonho e construir uma experiência onde lucro, qualidade literária e relevância cultural e acadêmica possam caminhar no mesmo sentido. A editora foi criada em março de 1986, logo após a introdução do Plano Cruzado, em fevereiro, que conseguiu, com congelamento de salários e preços, estancar provisoriamente a inflação e conseqüentemente aumentar o consumo, inclusive de livros. A entrada efetiva da nova editora no mercado se deu em outubro, com o lançamento de quatro livros simultâneos: Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson; A graça de Deus, de Bernard Malamud; o Anticrítico, de Augusto de Campos, e uma antologia de poemas de W. H. Auden. (CONTI, 1986, p. 136 & SORÁ, 1997, p. 163) O primeiro livro de grande sucesso já veio com um desses lançamentos, Rumo à estação Finlândia, obra ensaística do crítico literário inglês Edmund Wilson, texto multidisciplinar que traça uma genealogia da revolução russa, se detendo tanto em homens que fizeram a história quanto naqueles que escreveram a história. Um estudo acadêmico complexo e erudito, que não parecia destinado a ser um sucesso de vendas no ano de 1986. No entanto, a primeira edição se esgotou em três dias e foi seguida por dez reedições, vendendo 110 mil exemplares. Para se ter uma idéia do seu sucesso comercial, basta dizer que esse ensaio apareceu, ainda em novembro de 1986, na lista da revista Veja (principal semanário informativo brasileiro) dos dez livros de não-ficção mais vendidos, ocupando durante várias semanas de 1987 o primeiro lugar, ultrapassando inclusive o best-seller escrito pelo médico João Uchoa Jr., Só é gordo quem quer, que chegara a superar os 500 mil exemplares vendidos. Simultaneamente à sua chegada às livrarias, Rumo à estação Finlândia já tinha merecido uma resenha detalhada e altamente favorável na seção Livros, da revista Veja, do dia 22 de outubro, escrita pelo jornalista Mário Sérgio Conti, que muito tempo depois teria um livro seu publicado pela Companhia das Letras. Na última página da 51 resenha, também aparecia um box onde se registrava o aparecimento da nova editora, com declarações de Luiz Schwarcz, que já anunciava que sua editora pretendia publicar apenas livros sofisticados , já que, no Brasil ao menos nas cidades, existe um público interessado em livros de alto nível, principalmente obras, que sejam, ao mesmo tempo, literariamente boas e cientificamente válidas (CONTI, 1986, p. 136). No mesmo número da revista apareceram resenhas de outros dois lançamentos da editora. Na edição seguinte, é publicada extensa matéria, novamente de caráter francamente positivo, sobre o outro lançamento da editora, o Anticrítico, de Augusto de Campos. Essa presença maciça da Companhia das Letras nas páginas da Veja ou em qualquer espaço da grande imprensa ou de publicações menores dedicadas a lançamentos editoriais estava apenas começando, e em grande estilo. A partir daí os lançamentos da Companhia das Letras intermitentemente apareciam com destaque onde quer que se falasse de livros. Essa utilização intensa da publicidade gratuita, pelo envio à imprensa dos livros antes de chegarem às livrarias e de releases detalhados escritos por profissionais habilitados, tornou-se mais um diferencial da editora. Como exemplo, podemos citar que, no lançamento dos dois primeiros volumes da monumental obra de Elio Gaspari, que estuda o período do governo dos militares no Brasil pós-64, o próprio Luiz Schwarcz encomendou pessoalmente um release ao jornalista Zuenir Ventura. Para realizar o seu trabalho, em finais de 2002, Zuenir passou um fim de semana de imersão junto a Elio Gaspari, tendo inclusive acesso ao material utilizado para produzir os dois volumes de Ilusões Armadas, reunidos na imensa biblioteca pessoal do autor (VENTURA, 2002). Essas ótimas condições de trabalho concedidas por Schwarcz até para a confecção do press release revelam o profissionalismo e ousadia com que a editora planeja a divulgação dos seus lançamentos na imprensa. Mas a penetração inicial avassaladora dos lançamentos da Companhia das Letras na imprensa, especialmente na revista Veja, gerou uma reação das editoras mais tradicionais, que já estavam estabelecidas. Ênio Silveira, em depoimento já citado, concedido em 1990 para a equipe da professora Jerusa Pires Ferreira, da Escola de Comunicação da USP, faz duras críticas aos possíveis privilégios dados à nova editora: 52 É claro que todo editor tenta ter uma boa relação com a imprensa. A Companhia das Letras tem, porque, por exemplo, num dado momento, o seu editor tinha uma boa relação de amizade com o redator de livros da Veja, por isso houve um período em que quase tudo que eles publicavam tinha cobertura ampla, o que ajudou muito o estabelecimento da editora. (ALMEIDA, 1993, p. 147 - 148) No entanto, no mesmo depoimento, o antigo editor reconhece o valor do editor calouro, especialmente pela sua iniciativa em divulgar os seus lançamentos por todos os meios disponíveis: Eu disse isso a respeito desse menino, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, que é um bom editor, eu acho até que ele é um editor sério, ele está fazendo seu métier direitinho, e ele tem uma capacidade de divulgar muito boa e invulgar até. Eu diria que boa parte do sucesso da Companhia das Letras se deve a esta enorme capacidade que ele tem de ter uma boa imprensa, a imprensa ajuda, não apenas o best-seller, ajuda o bom livro também. [...] (ALMEIDA, 1993, p. 146) A Companhia das Letras surge como uma novidade na cena editorial brasileira da segunda metade da década de 1980, estabelecendo-se como concorrente direto das editoras estabelecidas que tinham um catálogo literário de qualidade, como a José Olympio, a Civilização Brasileira e até a Brasiliense, que iniciava a sua curva descendente; e incomodando também grandes editoras com catálogos híbridos, que misturavam obras literárias de qualidade com obras meramente comerciais, como as editoras Nova Fronteira e Record. A nova empresa editorial foi vista pelos concorrentes tanto como uma ameaça quanto como uma experiência inovadora que deveria ser observada para que seus resultados positivos servissem como modelo para essas próprias editoras, como podemos ver pelas declarações de Ênio Silveira. Nos seus primeiros 12 meses de atividades, a Companhia das Letras lançou 48 títulos, quatro por mês. Em 2003, já eram lançados 150 títulos, cerca de 12 novos títulos a cada mês, em 2005 atingiu a marca de 170 títulos anuais, ultrapassando a marca total de dois mil títulos (CASTELLO, 2005, p. 3). O faturamento em 1986 foi de 4.369.712,90 53 cruzados. O faturamento em 2003 já era de 37.778.380,00 reais, segundo dados da editora. Em 1988, a empresa Caminho Editorial, do Grupo Moreira Salles, proprietário do Unibanco, adquiriu 33% da participação acionária da Companhia das Letras, com o valor sendo mantido em segredo, ficando os 67% restantes com Schwarcz e sua esposa Lilia, professora de antropologia da USP. Pelo menos até 2003, é Fernando Moreira Salles o integrante do Grupo Moreira Salles que tinha participação mais efetiva na administração da editora, integrando inclusive seu conselho editorial (NEVES, 2003, p. 5). Participavam da administração da editora, em 2003, Sérgio Windholsque, diretor da área financeira; Lilia Schwarcz, que dirige a Companhia das Letrinhas e a Cia. das Letras e cuida das publicações da área de ciências humanas; Maria Emília Bender, responsável pela coordenação editorial; e Elisa Braga, que cuida da área de produção (NEVES, 2003, p. 4). Nessa época, além de Lilia e Luiz, a principal responsável pela área editorial da empresa já era Maria Emília Bender, participando da seleção de originais e atividades editoriais junto aos escritores atividades que são também exercidas por outras editoras auxiliares, como Heloísa Jahn. Na verdade, Maria Emília Bender e Heloísa Jahn possuem atividades específicas de editor, na concepção americana, enquanto Schwarcz acumula com essa função a de publisher, que é a dimensão empresarial da atividade editorial. Nas informações institucionais do site da editora, em maio de 2005, consta que os quadros fixos da empresa distribuem-se nos departamentos de edição, produção gráfica, divulgação e atendimento a professores, vendas e administração, contabilizando cerca de 90 funcionários. Conta também com um corpo de colaboradores eventuais nas áreas de tradução, preparação de texto, revisão, pesquisa iconográfica, ilustração e design gráfico. Estabelecia-se um modelo enxuto de editora, não comportando um parque gráfico, e terceirizando várias outras atividades. No entanto, com essa equipe permanente mínima consegue resultados editoriais e econômicos de vulto considerável, tendo um faturamento de quase 40 milhões de reais em 2003, compatível com o de empresas de porte médio na classificação vigente estipulada pelo Ministério da Indústria e Comércio, que na sua portaria Número 176, de 1o de outubro de 2002, define empresa de porte médio como 54 aquela cujo faturamento bruto anual está entre R$ 10.500.000,00 (dez milhões e quinhentos mil reais) e R$ 60.000.000,00 (60 milhões de reais). Se, no aspecto administrativo, se caracterizara por não estar presa a uma gráfica ou a uma livraria, quanto à estratégia editorial traz uma proposta bastante clara: produzir livros de qualidade tanto no conteúdo quanto tecnicamente, escritos prioritariamente por autores ainda em atividade no Brasil e no mundo. E, o mais revolucionário de tudo, num ambiente dominado pela denegação do econômico: ter lucro produzindo bons livros, num sistema de relacionamento altamente profissional com os escritores e demais atores envolvidos. No próximo subcapítulo editora a análise do catálogo da e nos seguintes, continuaremos a investigar o papel da Companhia das Letras no cenário cultural e literário brasileiro. 2.2. O catálogo da Companhia Chamamos de catálogo de uma editora o conjunto de obras publicadas por essa editora. Quase sempre esse catálogo materializa-se em uma publicação impressa nos últimos anos muitas editoras também disponibilizam seus catálogos em meio eletrônico, na internet, sem deixar de lado o catálogo impresso. Essas publicações são excelente material para analisarmos a atuação de uma editora. O catálogo de uma editora funciona como uma verdadeira cédula de identidade, sendo extremamente revelador de suas atividades e do modo como ela estabelece a sua individualidade em relação às outras editoras. A Companhia das Letras sempre deu bastante importância à publicação dos seus catálogos, realizando um bom trabalho de catalogação e de produção gráfica. Dedica a esses catálogos o mesmo cuidado editorial que tem com os seus livros. O exame do seu catálogo físico pode nos ajudar a compreender melhor a atuação da editora e dimensionar a coerência na publicação dos seus livros. O público-alvo desses catálogos são tanto os livreiros, que recebem o catálogo juntamente com as listas de preço, quanto os possíveis 55 leitores, que recebem o catálogo em feiras ou outros eventos dedicados à divulgação do livro. Os catálogos são publicados anualmente por volta de abril/maio, época próxima da realização das bienais do livro. Tivemos acesso aos catálogos de 1999, 2003, 2004 e 2005. Todos mereceram planejamento gráfico cuidadoso, a cargo dos principais designers e artistas plásticos que produzem os livros da editora. Ângelo Venosa foi o responsável pela concepção visual das edições de 1999 e 2003 e Raul Loureiro pelas de 2004 e 2005. A partir de 2004, o cuidado com a publicação anual do catálogo tornou-se ainda maior. Ele passou a ser dividido em duas partes: a primeira com os lançamentos dos últimos 12 meses, separados por assunto e acompanhados por sinopse; e a outra com todos os títulos já publicados pela editora, classificados por sobrenome de autor, por título e assunto. Esta última, chamada de catálogo de todos os tempos, tem inclusive o nome dos responsáveis mencionados nos créditos da publicação: Adriana Cerelo em 2004 e em 2005, com a parceria de Thaís Ritcher nesse segundo ano. Apesar de ser mencionado em texto introdutório ao catálogo de 2004 que ele engloba todos os títulos publicados, verificamos que pelo menos alguns títulos efetivamente lançados pela Companhia das Letras não aparecem nem na edição de 2004 nem na de 2005. Podemos citar como exemplo O Chalaça, de 1992, e Terra Papagalli, de 1997, ambos escritos por José Roberto Torero, e quatro obras do peruano Mario Vargas Llosa: A cidade e os cachorros, Lituma nos Andes, Pantaleón e as visitadoras e Tia Julia e o escrevinhador. Essa omissão se deve a uma provável cessão dos direitos de publicação dessas obras para outras editoras; como no caso das obras de José Roberto Torero, que passaram a ser publicadas pela Editora Objetiva já na década de 1990. Os títulos dedicados aos públicos infantis e juvenis possuem catálogo individualizado, que será examinado posteriormente. O catálogo de 2004 servirá como material básico para a nossa análise. Ele é, como vimos, o primeiro a separar os lançamentos do último ano do catálogo de todos os tempos , tendo sido elaborado com mais cuidado que a sua edição seguinte, contendo uma nota explicativa dos editores em relação às mudanças que eram introduzidas e um sumário inicial, bem como um índice remissivo ao final. A abordagem gráfica de Raul Loureiro, que 56 utiliza na capa (figura 3) e no miolo uma série de fotografias antigas meados do século XX , em preto e branco, dos arquivos da Hulton Archices e da Getty Images, representam os tradicionais elementos que integram os logotipos da Companhia das Letras: a motocicleta, o carro, o avião e o trem. Trata-se de uma concepção visual cuidadosa que por um lado é arrojada e conectada com o estágio atual do design gráfico no Brasil e no mundo, e, por outro lado, traduz graficamente uma mensagem de apego à tradição, de ligação com o passado comum recente da civilização ocidental no século XX . Não iniciaremos a análise pelo labiríntico catálogo de todos os tempos, já que correríamos o risco de nos perdermos na sua imensidão. Começaremos aos poucos, estudando inicialmente os lançamentos dos últimos 12 meses, que funcionam como uma amostra representativa do conjunto e como um retrato da produção da editora às vésperas de completar 20 anos. Trabalhar com uma fração do total também nos facilitará bastante a realização de algumas análises estatísticas. Os títulos dos lançamentos vêm acompanhados do nome do autor e de pequenas sinopses, sendo divididos pelas seguintes 12 seções: ficção brasileira; ficção estrangeira; policial; poesia; não-ficção; Retratos do Brasil; Jornalismo Literário; O Escritor e a Cidade; biografias, memórias, diários e entrevistas; gastronomia; cinema, música e teatro; e fotografia. No espaço dedicado à ficção brasileira aparecem 18 lançamentos que nem sempre são primeiras edições de romances, contos (incluindo coletâneas e antologias) e narrativas autobiográficas. Algumas são obras de autores contemporâneos consagrados e que publicam na Companhia das Letras já há algum tempo como Bernardo Carvalho, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Sérgio Sant Anna e Moacyr Scliar (reedição) tendo sido realizado um lançamento de cada um. Esses autores fazem parte de um cânone recente, sendo cada um apontado por vários críticos como os principais ficcionistas brasileiros da atualidade. Não é por acaso que esses cinco autores estão relacionados na publicação Literatura Brasileira Hoje, de Manuel da Costa Pinto, que faz um inventário dos principais autores brasileiros contemporâneos. Também aparecem ficções de autores que já tiveram sucesso de vendas, mas que ainda estão em processo, mais ou menos polêmico, de consagração literária 57 que poderão ter sucesso ou não, como Chico Buarque, Michel Laub e Patrícia Melo. Traz também obras de autores publicados anteriormente por editoras menores, como Dionísio Jacob e Almicar Bettega Barbosa, este último sendo identificado como pertencente à chamada geração 90, sendo incluído em algumas antologias de contos dos principais ficcionistas brasileiros contemporâneos. São registrados também como lançamentos reedições de romances de autores de um passado recente: Nelson Rodrigues (sob os pseudônimos de Suzana Flag e Myrna), Marcos Rey e Jean-Claude Bernadet. É relacionada também como lançamento de ficção a coleção Vozes do Golpe que reúne dois relatos pessoais e duas histórias de ficção sobre o golpe de 1964, feitas por encomenda, escritas por Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo. Foi publicado também um volume de contos pertencente à coleção Boa Companhia, incluindo textos de 12 autores contemporâneos a maioria já publicada por um dos selos da editora , indo dos mais consagrados, como Sérgio Sant Anna, Bernardo Carvalho e Ana Miranda, a escritores menos conhecidos, como Pedro Cavalcanti e Maria Telles Ribeiro; chegando a publicar um conto do próprio editor Luiz Schwarcz. Se contarmos também duas obras que foram catalogadas no espaço dedicado ao romance policial, a Companhia das Letras publicou, entre janeiro de 2003 e abril de 2004, 13 obras ficcionais inéditas de autores contemporâneos, incluindo duas obras coletivas. Apesar de quantitativamente esse número ser inexpressivo, qualitativamente ele representa algumas das principais obras de ficção lançadas no período por ficcionistas brasileiros. Entre elas, estão obras que atingiram sucesso tanto de vendas como de crítica e foram vencedoras de vários prêmios literários, como Budapeste, romance de Chico Buarque; Vôo da madrugada, volume de contos de Sérgio Sant Anna; e a narrativa Mongólia, de Bernardo Carvalho. Na seção ficção estrangeira aparecem 39 obras. Quase todas obras contemporâneas publicadas pela primeira vez no Brasil. O atraso em relação à publicação em seu país de origem é em torno de três anos, mas em alguns casos essa diferença pode aumentar, como é o caso de obras do sul-africano J. M. Cotzee, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 2003. Aproveitando a divulgação motivada pela premiação, foram lançadas 58 três obras de Coetzee, incluindo Vida e época de Michael K, de 1983, que ainda não possuía edição brasileira. Numa breve olhada sobre os lançamentos de ficção estrangeira da Companhia das Letras, podemos observar a tendência de se publicar obras provenientes de diversas literaturas nacionais, e não apenas das literaturas mais centrais, como a americana, a francesa e a inglesa. Como exemplo da multiplicidade de nacionalidades que aparecem no espaço dedicado à ficção estrangeira, podemos mencionar os seguintes escritores contemporâneos que tiveram obras lançadas pela editora no período: o moçambicano Mia Couto, o italiano Niccoló Ammaniti, o americano Don DeLillo, o chinês Há Jin, o espanhol Javiér Marias, o húngaro Sándor Márai, o português José Saramago, o japonês Kenzaburo Oe, o britânico de origem indiana Salman Rushdie e o albanês Ismail Kadaré. A diversidade de obras e línguas faz a editora utilizar uma grande equipe de tradutores, incluindo Eduardo Brandão e o poeta Paulo Henriques Britto, que traduziram três obras cada um. Pela leitura do catálogo constata-se que a premiação do Nobel ou Booker Prize é um elo comum entre diversas dessas obras, servindo como um potencial sinal de sucesso no mercado nacional. Se compararmos os lançamentos de ficção contemporânea estrangeira com os de ficção nacional, podemos concluir que o lançamento nacional é mais arriscado na medida em que ele é realmente inédito, sendo esse o seu primeiro teste de recepção. Os lançamentos de ficção estrangeira já tiveram seu potencial de sucesso medido nos países em que já foram publicados, tanto pelo número de exemplares vendidos quando pela recepção da crítica e prêmios que recebeu. A obra estrangeira inédita no Brasil já é lançada com um passado , o que facilita inclusive os esforços de divulgação. A literatura policial é um outro gênero bastante explorado pela Companhia das Letras e isto se reflete nos lançamentos de 2004. Foram lançados 14 romances policiais de autores contemporâneos de várias nacionalidades, sendo dois deles brasileiros: o exdelegado Joaquim Nogueira e o teórico da psicanálise Luiz Alfredo Garcia-Roza, que lança seu quarto livro policial, cujo protagonista é o policial Espinosa, todos com boa recepção do público. Entre os autores estrangeiros, destacam-se a inglesa P. D. James e o americano 59 Denis Lehane, cujo livro anterior, Sobre meninos e lobos, também publicado pela editora, atingiu boa vendagem e elogios da crítica especializada nesse gênero literário. Na parte dedicada à poesia constam cinco lançamentos. Um deles é uma coletânea de poemas de 16 autores contemporâneos, que é mais um volume da coleção Boa Companhia. São publicadas também três obras de autores brasileiros contemporâneos: uma seleta de quatro livros do jovem poeta Carpinejar, nascido em 1972, intitulada Caixa de Sapatos; o livro Macau, de Paulo Henriques Britto, tradutor de várias obras publicadas pela Companhia das Letras; e Ser longe, de Fernando Moreira Salles, um dos sócios da Companhia das Letras. Foi também lançada uma nova antologia poética de Vinícius de Moraes, organizada pelos poetas Eucanaã Ferraz e Antônio Cícero. Pode-se dizer que a publicação de obras de poesia brasileira pela editora é quase eventual, não sendo no período 2003/2004 uma linha forte dentro do catálogo da editora. A seção intitulada não-ficção é a que contém maior número de lançamentos: 44. Ela abriga obras ensaísticas com uma abordagem multidisciplinar das áreas das ciências humanas e sociais, incluindo também obras com abordagens históricas e filosóficas das ciências exatas e biomédicas. Existem desde obras de maior profundidade intelectual com maior ou menor dose de academicismo , como Política em Espinosa, de Marilena Chauí, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, do palestino Edward Said, e Diante da dor dos outros, da americana Susan Sontag, até obras de divulgação científica, de autores como Oliver Sacks e Stephen Jay Gould. São 16 obras de brasileiros e o restante de autores de origem diversa, predominando mais os autores europeus e americanos. Numa mirada sobre os títulos podemos identificar a literatura como o tema mais presente, abordado em pelo menos algum de seus aspectos em cerca de 11 obras, como a coletânea de ensaios sobre literatura imaginativa O castelo de Axel, de Edmund Wilson e o Dicionário de lugares imaginários, que tem como um dos autores o argentino Alberto Manguel. É bom observar que os livros de não-ficção de autores brasileiros normalmente foram escritos recentemente, enquanto os de autores estrangeiros apresentam uma defasagem que pode chegar a mais de dez anos em relação à data de sua produção. Mas também há lugar para edições de obras bem mais antigas 60 de autores nacionais ou não , incluindo quase sempre notas e textos interpretativos, como é o caso de Paulística etc, de Paulo Prado, e a edição comemorativa dos cem anos de A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. As três seções seguintes são dedicadas às coleções que tiveram volumes lançados no período. A extensa coleção Retratos do Brasil, dedicada a textos clássicos que tentam explicar o que é o Brasil, lançou o seu 24o volume, a História do Brasil pelo método confuso, versão sarcástica da nossa história escrita por Mendes Fradique no início do século XX. A coleção Jornalismo Literário, que publica textos jornalísticos com tratamento literário originados na atividade investigativa de jornalistas brasileiros e estrangeiros, lançou no período cinco dos seus seis livros até aquele momento, incluindo a obra clássica do jornalismo literário A sangue frio, de Truman Capote e a reportagem investigativa Chico Mendes crime e castigo, de Zuenir Ventura. Foi também publicado o volume brasileiro da coleção O Escritor e a Cidade: Carnaval do fogo, de Ruy Castro. Essa coleção por editora estrangeira e publicada pela Companhia das Letras no Brasil concebida publica textos encomendados a autores de várias nacionalidades tendo uma metrópole como tema. No Brasil, o autor escolhido foi Ruy Castro que produziu um misto entre ensaio histórico e ficção sobre a cidade do Rio de Janeiro. Pela observação do catálogo de 2004, podemos intuir que, no período, a estratégia de lançamentos de livros por meio de coleções stricto sensu não foi tão central na produção da editora como foi em outros anos. É também dedicada uma seção aos lançamentos de biografias, memórias, diários e entrevistas. Foram lançadas oito obras, das quais apenas três são escritas por brasileiros. Entre os livros publicados estão a biografia de Isaac Newton, um relato sobre o fim do governo Pinochet, um esboço biográfico sobre Euclides da Cunha, uma seleção de textos jornalísticos de Fernando Morais e um texto sobre a vida da mulher na China atual escrita pela jornalista chinesa Xinran. Além dessas obras, que se aproximam da abordagem da coleção Jornalismo Literário, também aparecem nessa seção uma seleção de cartas escritas e recebidas por Vinícius de Moraes, as memórias de Edward Said que tinha morrido recentemente, em setembro de 2003 , e um texto religioso do século XIII Legenda Áurea , que reúne a história de santos da Igreja Católica. 61 A parte dos lançamentos se encerra registrando a publicação de dois livros dedicados à gastronomia; um ao cinema; dois à música popular brasileira, com letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil; e um livro de fotos de Sebastião Salgado. Como retrato numérico dos 141 lançamentos da editora publicados de janeiro de 2003 a abril de 2004, levando em conta as divisões temáticas estipuladas pelo próprio catálogo, podemos apresentar o quadro abaixo. Vale a pena fazer algumas observações sobre a feitura do quadro. O número de obras pode ser maior do que a do número de autores, pois há casos em que se publica mais de uma obra de um mesmo autor. No caso de obras coletivas contamos apenas uma autoria, a do organizador do volume; sendo sua a nacionalidade considerada. Os números totais de autores são menores do que a soma do número de autores por seção, pois existem casos de autores que estão presentes em mais de uma seção. Seções Obras Autores brasileiros Ficção brasileira 18 Ficção estrangeira 39 Policial 14 2 Poesia 5 5 Não-Ficção 44 16 Coleção Retratos do 1 1 5 2 1 1 8 3 Autores estrangeiros 15 37 9 26 Brasil Coleção Jornalismo 3 Literário Coleção O Escritor e a Cidade Biografias, memórias, diários e entrevistas 62 5 Gastronomia 2 2 Cinema, música, 3 3 1 1 141 47 teatro Fotografia Total O número de obras lançadas 81 não se contando as dos selos Companhia das Letrinhas (não foi encontrado registro preciso do número de lançamentos no período) e Cia. das Letras (no total de 20 lançamentos) atinge 141 títulos, o que dá quase 12 títulos por mês, um número razoavelmente alto para uma editora que se propõe a publicar livros de qualidade, deixando de fora o filão dos livros didáticos e o dos livros esotéricos/religiosos. Os números da Companhia não chegam perto dos números de títulos de grandes editoras como a Ediouro, Nova Fronteira e Record esta última chegando em meados de 2005 a lançar 28 livros por mês (BITTENCOURT, 2005). No entanto, superam o número de lançamentos anuais da editora de porte e de modo de produção semelhantes, como a Editora Objetiva. Segundo a sua coordenadora editorial Isa Pessoa, em prefácio escrito para A versão do autor, a capacidade de publicação da Objetiva no início do século XXI não ultrapassa os oitenta títulos anuais, somando neste total títulos estrangeiros e brasileiros . (BUSATO, 2004, p. 12) Os lançamentos caracterizados como ficção incluindo o gênero policial atingem o número de 71 títulos, quase 50% do total. Se somarmos todas as outras seções não-ficcionais deixando apenas as obras poéticas de fora atingiremos o número de 65 obras. Isto mostra que a Companhia das Letras caminha no sentido de deixar de ser uma editora que publica prioritariamente obras das ciências humanas (no caso ensaios com evidentes características literárias), para ser tornar uma editora que também dá um grande peso à ficção, havendo um equilíbrio entre os dois gêneros. Se olharmos para a nacionalidade dos autores de ficção incluindo o gênero policial , verificaremos que 47 são estrangeiros, cerca de 75%, enquanto apenas 17 são 63 brasileiros, cerca de 25%. Ou seja, quantitativamente, a editora está priorizando a ficção estrangeira em relação à nacional. Mas, como vimos, a importância dos autores brasileiros contemporâneos e de suas obras que a editora publicou no período revela que, se quantitativamente as obras de ficção nacional não são maioria nos lançamentos do período, qualitativamente elas possuem um enorme peso relativo no catálogo. Examinando o pólo não-ficcional dos lançamentos, observaremos que nele há um equilíbrio entre o número de autores nacionais e estrangeiros. Tiveram obras lançadas 27 autores brasileiros, 44% do total, e 35 autores de outras nacionalidades, 56%. O número de autores nacionais e estrangeiros que tiveram obras não-ficcionais lançadas no período praticamente se equivale, contrastando bastante com o desequilíbrio que ocorre em relação aos textos ficcionais. Derivado do enorme desequilíbrio na distribuição de nacionalidade de autores de ficção, um certo desequilíbrio acaba prevalecendo na distribuição da nacionalidade do total de 128 autores publicados: 47 autores brasileiros, 37% do total, e 81 autores de outras nacionalidades, 63% do total. Verifica-se também um pequeno número de lançamentos de volumes que fazem parte de coleções formais, com identidade gráfica própria, apesar da maioria dos lançamentos normalmente fazerem parte de uma área temática coesa expressa no catálogo, como ficção brasileira, poesia, gastronomia, etc. A própria seção não-ficção na Companhia das Letras tem características de conteúdo próprias, como a multidisciplinaridade apresentada em cada texto e o estilo literário da escrita. Na observação dos lançamentos do curto período de um ano, chama a atenção a recorrente presença de dois escritores na autoria e colaboração em mais de um livro, até de gêneros diferentes. Um deles é Moacyr Scliar. Ele teve, no período, relançado seu romance O centauro no jardim publicado pela Editora Nova Fronteira em 1980; participa, com um texto, da coletânea de contos Boa Companhia e com o conto Mãe Judia 1964, da coleção Vozes do Golpe; e escreve o ensaio Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, no qual faz um panorama sobre o sentimento da melancolia a partir de textos literários de vários autores. O outro é Ruy Castro, que escreveu a crônica Carnaval no fogo: crônica de uma cidade excitante demais, volume da coleção O Escritor 64 e a Cidade, e organizou o volume de correspondência ativa e passiva do poeta Vinícius de Moraes. A Companhia durante a sua história acaba arregimentando um bom número de colaboradores fiéis, como os dois citados, que participam de vários projetos da editora. Apesar do catálogo de 2005 não separar os lançamentos por assunto, vale a pena darmos uma rápida olhada neles, especialmente para observarmos alguns novos caminhos que estão sendo trilhados pela editora e que não apareciam no catálogo anterior. Na verdade são duas linhas de obras que não são inéditas, mas aparecem junto aos lançamentos, pois o formato editorial é novo. Uma das linhas corresponde ao lançamento de novas edições dos romances de Érico Verissimo, totalizando 14 obras, aproveitando a comemoração do primeiro centenário de seu nascimento. A outra linha traz relançamentos e obras venda quase sempre grandes sucessos de do catálogo da Companhia das Letras em formato menor, com planejamento gráfico simples e padronizado, com custo de produção e de venda menor, denominada Companhia de Bolso. Esses volumes não se destinam apenas aos pontos tradicionais de vendas de livros as livrarias , mas também a pontos alternativos, especialmente bancas de jornais. Cada volume custa para o leitor de R$ 14,00 a R$ 22,00, bem abaixo dos valores normais de venda dos livros da editora, que dificilmente custam menos do que R$ 30,00, no ano de 2005. A Companhia de Bolso tem como principal concorrente a coleção Pocket, da Editora gaúcha LPM, que publica um extenso número de obras no formato de bolso iniciada no início da década de 1990, já publicou, até 2005, mais de 400 títulos. No catálogo da Companhia das Letras de maio de 2005 aparecem os cinco primeiros volumes lançados por essa série: Cem dias entre céu e mar, de Amir Klink; Nova antologia poética, de Vinícius de Moraes; Além do bem e do mal, de Friedrich Nietzche; O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago; e Estação Carandiru, de Drauzio Varella. No correr do ano de 2005 foram lançados mais cinco volumes, incluindo Agosto, de Rubem Fonseca. Dois dos volumes lançados, Cem dias entre céu e mar e Estação Carandiru, já tinham vendidos mais do que 300 mil exemplares antes de serem editados no formato de bolso. 65 Começaremos agora a análise do catálogo de todos os tempos da Companhia das Letras, conforme foi publicado em abril de 2004. Esse catálogo possibilita a consulta por autor, título e assunto, registrando a publicação, na consulta por título de, no total, 1.485 obras, de outubro de 1986 até abril de 2004. O que dá a média de sete livros por mês ou 87 livros por ano. Consideramos, para os efeitos dessa contabilidade, que uma obra seria o volume ou conjunto de volumes que podem ser vendidos autonomamente. Esse número não inclui as obras do selo Companhia das Letrinhas e, evidentemente, algumas obras que foram deixadas de fora do catálogo por motivos não totalmente esclarecidos, como mencionamos anteriormente. Segundo depoimento de Luiz Schwarcz ao jornalista José Castello, a Companhia das Letras já tinha ultrapassado, em setembro de 2005, a marca dos dois mil títulos publicados. A divisão por assuntos é bem mais detalhada extremamente complexo de classificação o que acarreta um trabalho do que a usada nos lançamentos, passando de 12 para 37 assuntos diferentes. O catálogo de 2004 nos servirá como guia e fonte principal de informações, mas seus dados serão complementados com os fornecidos pelos catálogos dos outros anos, pela consulta ao catálogo eletrônico disponível no site da editora e pela consulta aos próprios livros e textos de referência. Segue a relação de assuntos com o respectivo número de obras publicadas em cada um: Administração e economia Antropologia 13 49 Aventuras e viagens 37 Biografias, memórias e diários Ciências 132 66 Ciência Política 54 Cinema, teatro, TV, meios de comunicação Coleção O Escritor e a Cidade 4 Coleção Grandes Descobertas 2 Coleção Jornalismo Literário 66 6 28 Coleção Literatura ou Morte Coleção Retratos do Brasil Coleção Vida Cotidiana 8 23 15 Coleção Virando Séculos 7 Crítica e Teoria Literária 73 Esportes 7 Ficção conto e crônica Ficção romance e novelas Filosofia 88 266 52 Fotografia 15 Gastronomia 20 História da Arte 16 História do Brasil História Geral 130 191 Humor 11 Informática 6 Jornalismo e Relatos 78 Jovem (Cia. das Letras) 96 Meio Ambiente e Ecologia Moda 16 4 Música Poesia Policial 24 54 87 Psicologia Religião Sociologia 27 25 62 Saúde, Doenças e Medicina 67 15 O aumento do número de classificações se deve a um maior detalhamento da seção não-ficção, que aparece nos lançamentos, mas não no catálogo de todos os tempos, já que foi substituída pelas diversas disciplinas em que foi desdobrada. Torna-se uma classificação extremamente complexa na medida em que uma das características que aparecem em várias obras de não-ficção da editora é a multidisciplinaridade a interdisciplinaridade e até mesmo da abordagem. Com o esforço de determinar a disciplina exata a que corresponde cada publicação, o catálogo de todos os tempos acaba por ir, de certo modo, contra características de não-ficção do catálogo da Companhia das Letras: a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Por outro lado, a classificação mais detalhada acaba por comprovar que mesmo se olharmos para um tema ou disciplina específicos a editora tem um número razoável de livros, não havendo o volume isolado, sem pertencer a qualquer grupo de livros. Podemos observar também que uma coleção formal nunca foi uma estratégia prioritária da editora, a não ser nos selos dedicados aos públicos infantil e infanto-juvenil. O que há, de forma abundante, na verdade, são séries de livros sobre os mesmos temas, até com planejamento gráfico semelhante, mas sem se constituírem em coleção. As coleções identificadas no catálogo, portanto, são apenas sete: Vida Cotidiana, O Escritor e a Cidade, Jornalismo Literário, Virando Séculos, Retratos do Brasil, Literatura ou Morte e Grandes Descobertas. Mas, ao estudarmos as coleções, conseguimos entender melhor a intervenção editorial ficando mais claro as direções que a editora pretende dar à produção textual. Examinar as coleções da editora é radiografar suas ações e diagnosticar suas intenções. A coleção Vida Cotidiana foi a pioneira na história da Companhia. É a versão brasileira da coleção concebida pela editora francesa Hachette Littératures, que publica obras históricas, na perspectiva da vida privada, retratando como era o cotidiano em determinadas épocas da história mundial. A editora francesa publicou, desde 1984, 85 títulos da coleção La Vie Quotidienne, quase todos de autores franceses que realizam pesquisas históricas nos aspectos culturais e comportamentais. A Companhia das Letras lançou no Brasil, a partir de 1988, 18 volumes, interrompendo a continuidade da coleção no início do século XXI, não figurando inclusive na versão de 2005 do catálogo de todos os 68 tempos nem no site da editora. Entre os volumes publicados estão Os bordéis franceses, O Brasil nos tempos de D. Pedro II - 1831-1899, Paris nos tempos do Rei Sol, Berlim no tempo de Hitler e O Egito no tempo de Ramsés. Todos os textos tentavam unir o rigor da pesquisa historiográfica com a abordagem de aspectos pouco explorados da história e uma linguagem mais acessível do que é normalmente a linguagem acadêmica. Quase todas as obras eram traduções das publicadas pela coleção original francesa, mas alguns poucos volumes, apesar de escritos por autores franceses, não pertenciam à coleção francesa, como no caso de O Brasil nos tempos de D. Pedro II - 1831-1899, escrita pelo historiador francês, discípulo de Braudel, Frédéric Mauro. Os volumes da coleção possuíam identidade visual própria (figura 4). No alto da capa aparecia o nome da coleção; logo abaixo o título da obra, e, em seguida, o nome do autor, uma ilustração a partir de reprodução de pintura e o logotipo da editora. Era uma concepção gráfica clássica e sóbria, dando ao mesmo tempo idéia de tradição e objetividade, que ainda seria bastante imitada por editoras concorrentes. A coleção fez bastante sucesso no Brasil com os primeiros lançamentos, o que não se manteve no desenvolvimento da coleção. O Escritor e a Cidade é uma coleção concebida pela editora inglesa Bloomsbury, que mantém uma ligação comercial forte com a Companhia das Letras. A editora inglesa encomendou a escritores de diversos lugares do mundo textos sobre determinadas cidades. A Companhia das Letras foi parceira da editora na empreitada, publicando, de 2001 a 2003, algumas obras no Brasil e sendo responsável por encomendar a um autor brasileiro texto sobre uma cidade brasileira. A cidade escolhida foi o Rio de Janeiro e o escritor convidado foi Ruy Castro, que utiliza recorrentemente o Rio como cenário e personagem das suas obras ficcionais ou não. A escolha da cidade obedece à lógica do interesse do público estrangeiro. A cidade do Rio de Janeiro é a principal referência de cidade brasileira e na escolha do escritor prevaleceu um autor acostumado a retratar a cidade de modo positivo. O resultado foi o texto Carnaval no fogo: crônicas de uma cidade excitante demais, no qual o escritor mineiro radicado no Rio faz um relato bem-humorado e apaixonado sobre a cidade, oscilando entre o real e o ficcional, e usando o samba e o carnaval como mote da narrativa. O texto de Ruy Castro também foi publicado 69 pela Bloomsbury na versão inglesa da coleção. Além do texto de Ruy Castro, a Companhia das Letras publicou até o momento os seguintes textos na coleção: 30 dias em Sidney: um relato desvairadamente distorcido, do australiano Peter Carey; Florença: um caso delicado, de David Leavitt; e O flanêur: um passeio pelos paradoxos de Paris, do americano Edmund White, todos escritos originalmente em língua inglesa. As obras resultantes da encomenda têm como característica comum uma visão extremamente pessoal e a busca do inusitado, aquilo que não é encontrado em nenhum guia turístico. Esse tipo de encomenda acaba influindo sobre a produção dos escritores, pois a partir de uma concepção editorial escritores acabam produzindo obras com características especiais, que ficam na fronteira da ficção com a não-ficção. A concepção gráfica é bastante arrojada, lembrando antigos guias turísticos, utilizando na capa foto de um cenário característico da cidade (figura 5). O formato dos livros da versão brasileira assemelha-se ao de bolso, 13 x 19cm, como se facilitasse ser carregado nos passeios turísticos pelas cidades contempladas, e a encadernação, de capa dura, lembra aos leitores de que se trata de obra de valor literário. A coleção Jornalismo Literário é formatada pela Companhia das Letras a partir de textos já produzidos, alguns deles até já publicados no Brasil; nenhum volume foi escrito especialmente para a coleção. Mas, ao final de cada obra, aparece um comentário analítico escrito especialmente para o livro por algum jornalista brasileiro de prestígio. A coleção possui um coordenador, o jornalista Matinas Susuki permanente da editora que não faz parte da equipe , responsável pela concepção da coleção em conjunto com o próprio Luiz Schwarcz. A seleção dos textos é feita por Matinas, Luiz e Maria Emília Bender, sócia e integrante da equipe editorial da Companhia (NUNES, 2003, p. 3 - 4). No catálogo de abril de 2004 aparecem seis obras e no de maio de 2005 mais três textos, mostrando que ela permanece em plena expansão. Do total de nove textos publicados, três são de autores brasileiros: A milésima segunda noite da Avenida Paulista e A feijoada que derrubou o governo, de Joel Silveira e Chico Mendes crime e castigo, de Zuenir Ventura. O primeiro volume da coleção foi a reportagem Hiroshima, do jornalista americano John Hersey, publicada em 2002. O texto foi publicado originalmente no New York Times em 70 1946, um ano após a explosão da bomba atômica em Hiroshima, e reconstitui o dia da explosão a partir do depoimento de seis sobreviventes; possuindo um capítulo final, no qual o repórter, 40 anos depois, reencontra os seis personagens. É um texto direto, sem rebuscamentos, de um gênero que podemos chamar de jornalismo literário, uma mistura de jornalismo e literatura, que se apóia em fatos e ações, mas que utiliza estratégias apropriadas da narrativa ficcional. Além dessas apropriações, está também no seu afastamento do supérfluo e do ornamento desnecessário o caráter literário do texto. Outros dois textos clássicos de autores que trilharam esse gênero híbrido foram publicados na coleção: A sangue frio, de Trumam Capote, e Fama e anonimato, de Gay Talese, ambos publicados inicialmente na imprensa norte-americana na década de 1960. As outras obras que compõem a coleção ajudam a dar um panorama das diversas facetas que o jornalismo literário teve no mundo na segunda metade do século XX. Apesar de possuir um logotipo e planejamento gráfico próprios, a coleção não tem uma identidade visual tão singular. Interessante observar também que sua formatação é uma forma de ordenação de livros própria da Companhia, posterior à publicação da obra, que aparecem em outras editoras muitas vezes como livros isolados. Essa coleção explicita a estratégia da editora de tentar dar uma coerência ao seu catálogo, promovendo, a partir da seleção de originais, aproximações de livros e formação de grupos de livros dentro do seu catálogo. Também podemos constatar que a opção pelo gênero do jornalismo literário reflete a constante opção da Companhia por obras com características literárias, mesmo quando não está publicando ficção stricto sensu. A coleção Virando Séculos engloba sete livros que têm como tema as viradas de séculos. Foi publicada de 1999 a 2001, justamente na passagem do século XX para o XXI. Quase todos os livros são frutos de encomendas a pesquisadores com alguma ligação com a Universidade do Estado de São Paulo (USP). Entre os autores estão Lilia Schwarcz (uma das editoras da Companhia das Letras e professora do Departamento de Antropologia da USP) e Laura de Mello e Souza (professora titular do Departamento de Historia da USP), ambas com outros ensaios acadêmicos publicados pela editora. É uma coleção de não-ficção encomendada a membros do mundo acadêmico a partir de uma 71 oportunidade de mercado: a efetiva mudança de século era vista como questão a ser discutida pela academia e pelo público leigo. A tentativa da editora com a coleção foi a de sintonizar esses dois mundos. A editora teve um papel ativo de fomentar a produção de textos, estimulando pesquisadores a produzirem obras que ela julgava viáveis editorialmente. No entanto, a coleção não teve grande impacto de vendas nem boa repercussão no mundo acadêmico. A coleção com maior número de volumes é a Retratos do Brasil, que vem publicando obras seminais de interpretação do Brasil e outros textos chaves da produção cultural brasileira até o início do século, lançando, de 1995 até abril de 2004, 23 títulos. Muitos dos volumes nunca foram editados em livro, sendo considerados muitas vezes obras menores, fora do cânone das obras sérias. A intenção da editora é resgatar essas obras e dar-lhes uma dimensão maior, de verdadeiros retratos do Brasil. O nome da coleção é inspirado na obra Retrato do Brasil do empresário paulista Paulo Prado, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, que, no ensaio de 1928, rema contra a maré ufanista e produz um retrato do Brasil bastante crítico, especialmente em relação à falta de enfrentamento das questões sociais. Foram publicadas na coleção, entre outras, as seguintes obras: Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga; História do Brasil pelo método confuso, de Fradique Mendes; Interpretações do Brasil, de Gilberto Freyre; e Alma encantadora das ruas, de João do Rio e o próprio ensaio Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. A coleção possui um conselho editorial, formado durante a maior parte do tempo pelo professor Antonio Candido, da USP, Maria Emilia Bender e Lilia Schwarcz. O conselho é responsável pela seleção de textos e escolha dos pesquisadores que serão responsáveis pela organização de cada volume. Cada organizador se responsabiliza pela coordenação geral da publicação do livro e pela produção de textos introdutórios e notas explicativas. Os organizadores são pesquisadores ligados a vários núcleos universitários. Existe uma predominância de nomes ligados à USP, como o próprio Antonio Candido, que, além de participar do conselho editorial da coleção, se responsabilizou pela organização da obra Apontamentos de viagem, de J. A. Leite Moraes, publicada originalmente em 1882. 72 Bastante revelador em relação ao papel dos acadêmicos da USP na produção da coleção é o agradecimento formulado pelo professor mineiro Joaci Pereira Furtado História pela USP Doutor em organizador do volume das Cartas Chilenas, nas páginas pré-textuais do livro: Tenho uma dívida dessas que não há como pagar com os professores Antonio Candido e Laura de Mello e Souza que confiaram no meu trabalho e me honraram com a presente tarefa. Agradeço a João Adolfo Hansem que generosamente me concedeu o privilégio de sua leitura implacável. [...] Naturalmente sou o único responsável pelos erros cometidos neste livro. (GONZAGA, 2002) No entanto, não há uma exclusividade de acadêmicos da USP. Aparecem também como organizadores de volumes vários nomes ligados a outros centros acadêmicos, como Flora Süssekind, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, e Ronaldo Vainfas, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Ao publicar a sua própria brasiliana , a Companhia vai se colocar, nas palavras de Gustavo Sorá, na história da edição nacional. A publicação de brasilianas, coleções que resgatam obras fundamentais para se entender o Brasil, é uma forma tradicional de busca de legitimação de editoras em ascensão, ao mostrar que a questão nacional é uma de suas preocupações. Heloisa Pontes, em ensaio sobre as coleções brasilianas das décadas de 1930, 40 e 50, faz a seguinte observação sobre o motivo da formatação desse tipo de coleção por diversas editoras, como a Companhia Editora Nacional, a Livraria José Olympio Editora e a Livraria Martins Editora: Mas se o lucro não é o motivo que explica a existência dessas coleções (visto que a Brasiliana, por exemplo, continuou a ser editada até o início da década de 70, apesar das condições materiais adversas), qual seria então a sua razão de ser? Esta se encontra no lucro indireto que os editores e suas editoras ganham com a sua publicação. Lucro este que pode ser traduzido por meio do trânsito e da distinção que adquirem junto ao meio intelectual, artístico, literário e editorial da época. (PONTES, 1988, p. 68) 73 Se concordarmos com a afirmação de Heloisa Pontes, podemos, por analogia, especular que a Companhia, ao formatar essa coleção, estaria mais interessada em se posicionar como editora que pensa o Brasil e valorizar o seu catálogo como um todo, sem a preocupação de auferir lucros imediatos com a venda dos volumes da coleção. Vale a pena observar que apesar de as obras originais terem sido produzidas há mais de 70 anos elas são atualizadas e rejuvenescidas pela intervenção de acadêmicos atuantes do presente. A coleção possui projeto gráfico de Victor Burton, que a fez num formato de bolso, o que acabou tornando alguns volumes muito grossos. O seu formato inusitado para uma brasiliana parece nos querer dizer que é uma brasiliana especial, que resgata inclusive livros menores (figura 6). Outra coleção que consta no catálogo da editora é a Literatura ou Morte. Trata-se de coleção de textos ficcionais produzidos por encomenda a escritores brasileiros e latino-americanos contemporâneos. A coleção lançou oito volumes, nos anos de 2000 e 2001. Não nos estenderemos agora na análise dessa coleção, pois, devido às suas especificidades, ela vai ser abordada detalhadamente no próximo capítulo. No exame das coleções da Companhia das Letras, podemos encontrar modos diversos de estruturá-las, servindo quase como uma amostra de uma possível tipologia das coleções. Uma delas, a Vida Cotidiana, feita por encomenda de obras de não-ficção, foi formatada por editora estrangeira e publicada parcialmente pela Companhia. O Escritor e a Cidade coleção de encomenda que resultou em textos que estão na fronteira da ficção com a não-ficção foi concebida e realizada por editora estrangeira, mas a Companhia participou com a produção de uma obra, que, inclusive, foi publicada pela outra editora. A coleção Virando os Séculos encomenda de ensaios históricos a pesquisadores brasileiros foi concebida e realizada pela própria Companhia. Jornalismo Literário não é uma coleção de encomenda: ela seleciona e publica textos de autores já existentes, brasileiros ou não, que se encaixem em seu perfil, utilizando inclusive a figura do coordenador da coleção, que não faz parte da equipe permanente da editora. Outra coleção, a Retratos do Brasil, inspirada nas do tipo brasiliana, vai selecionar textos já existentes de autores 74 brasileiros e encomendar a membros da academia a organização de cada um dos volumes, com notas explicativas e textos introdutórios; existindo inclusive um conselho editorial responsável pela sua coordenação geral. Literatura ou Morte é uma coleção de encomenda de obras de ficção a escritores brasileiros e latino-americanos, que inclusive foi publicada posteriormente por editoras estrangeiras, como veremos no próximo capítulo em detalhes. Portanto, temos vários tipos de opções de características combinadas em cada uma das coleções: encomenda versus textos já existentes; concepção e realização próprias versus concepção e realização de editora estrangeira; existência de coordenador ou conselho editorial versus inexistência; gênero ficcional versus não-ficcional; autores nacionais versus estrangeiros; existência de organizador por volume versus inexistência. Apesar de não aparecer como uma coleção nos catálogos da editora, a série de livros policiais da Companhia das Letras possui características semelhantes àquelas que constituem uma coleção, como recorte temático e identificação visual própria. Na verdade, extrapola os próprios limites da idéia de coleção, tornando-se verdadeira linha editorial ao abarcar, como horizonte de publicação, todo um gênero ficcional: o romance policial. Essa característica que associa a coleção a um gênero faz com que a decisão editorial, quase sempre em comum acordo com o autor, de colocar ou não um livro na coleção, determine o gênero pelo qual ele deve ser recebido. Uma obra de ficção que apareça na série policial já tem a sua leitura condicionada a essa marca. Por outro lado, as ficções que estão fora da única série de gênero da editora podem ser entendidas como literatura menos comercial ou como apenas literatura. Mas o que a série está classificando é o gênero da obra e não o do autor. Existem casos de autores que possuem algumas obras incluídas na série policial enquanto outras obras suas também publicadas pela Companhia ficam fora da série, como é o caso de Tony Bellotto. Na série policial foram publicados 67 livros até janeiro de 2004, escritos por 25 autores diferentes, sendo apenas três deles brasileiros: o músico de rock Tony Bellotto, o ex-delegado Joaquim Nogueira e o filósofo Luiz Alfredo Garcia-Roza, que fez carreira como professor universitário de Teoria Psicanalítica. A série tem identidade visual própria 75 (figura 7), que foi detalhadamente caracterizada pela professora Sandra Reimão em seu livro Literatura policial brasileira no capítulo sobre a produção contemporânea de narrativas policiais: A coleção Série Policial não apresenta esta indicação na capa de seus volumes (a série só é nomeada no verso da primeira folha), em compensação, eles apresentam um projeto gráfico auto-evidente tanto no que diz respeito ao gênero dos textos lá publicados quanto ao fato de pertencerem a uma coleção. Trata-se de capas com fotografias em preto-ebranco, no geral, cenas noturnas ou esfumaçadas, nebulosas indiciando climas de mistério, de ocultamento. Os títulos, impressos em branco, são sobrepostos em uma das partes escuras da foto. Uma pequena faixa colorida na parte superior dessas capas é o local onde se indica em branco o nome do autor. A cor dessa pequena faixa é retomada na lombada e nas bordas das páginas. Essa cor é variável em cada volume da coleção (amarelo, laranja, vários tons de verde e azul), mas o padrão gráfico geral é repetido, caracterizando claramente que se trata de uma coleção. (REIMÃO, 2005, p. 44 - 45) Essa descrição refere-se ao último estágio de evolução do projeto gráfico da série. A identificação visual própria surgiu no final da década de 1980, num momento em que a Companhia das Letras já publicava literatura policial, mas ainda não a separava como série. Na primeira formatação gráfica individualizada da série, o nome do autor não ficava fixo no alto da página, nem as cores da faixa e da lombada eram retomadas nas bordas das páginas. Essas modificações só foram introduzidas pelo responsável pelo projeto gráfico João Baptista da Costa Aguiar, o mesmo responsável pelos logotipos da editora a partir do início da década de 2000, possivelmente como uma forma de manter a diferenciação em relação a projetos gráficos de editoras concorrentes, que continuamente se inspiram nas concepções gráficas da Companhia das Letras, pelo reconhecimento dessas como arrojadas e inovadoras. Dos 26 escritores estrangeiros publicados pela série, existem tanto escritores contemporâneos que representam a maioria , como outros que já não produzem mais. Entre estes últimos, estão os grandes mestres do romance policial noir americano, como 76 Dashiell Hammett e James Cain. Cada um dos dois teve uma de suas obras mais representativas incluída na série: a seleção de contos Continental Op, de Hammett, e O destino bate à sua porta, de James Cain. Os dois funcionam como verdadeiros padrinhos da série ao colocar seus nomes ao lado de outros escritores do gênero, emprestando a eles seus prestígios. Informa-se ao possível leitor que as obras que eles produzem são de qualidade e fazem parte do universo do romance noir, gênero policial no qual o crime surge na própria margem da sociedade e o narrador relata aspectos exteriores e reações, ficando por conta do leitor deduzir a partir desses dados (REIMÃO, 2055, p. 11 - 12). É a utilização da estratégia de coleção, na qual um livro ajuda a vender o outro. Dashiell Hammett também teve outras três obras publicadas pela editora, entre elas O falcão maltês, só que em série própria dedicada somente a esse autor. O escritor com mais obras publicadas na coleção é o americano Rex Stout, falecido em 1975, que teve publicadas oito das suas narrativas com histórias do detetive Nero Wolfe. Os autores estrangeiros contemporâneos de narrativas policias que fazem parte da coleção são os americanos Lawrence Block autor com o maior número de textos publicados, no total de sete , John Dunning, Patricia Highsmith, Donna Leon, Harry Kemmelman, Walter Mosley e Dennis Lehane; os britânicos Michael Dibbin, Frances Fyfield, P. D. James e Morag Joss; os franceses Brigitte Aubert e Jean-Pierre Gattégno; o cubano Leonardo Padura Fuentes; o espanhol Manuel Vásques Montalbán; e o sueco Henning Mankell. A série prioriza o autor contemporâneo e faz um bom apanhado do que há de mais representativo na literatura policial contemporânea mundial. Também são escolhidas obras de autores que, apesar de fazerem parte do gênero, são bem aceitos pela crítica literária, como Jean-Pierre Gattégno, Leonardo Padura Fuentes e Patricia Highsmith. Vale a pena destacar a publicação dos textos de John Dunning, Edições perigosas e Impressões e provas, nos quais o detetive protagonista também é um colecionador de livros raros. Nas tramas, a busca maior não é pelo assassino, mas por grandes livros, pela alta literatura. A editora, ao selecionar essas obras de Dunning para publicação, mais uma vez, até de modo irônico, tenta conciliar a Companhia (o livro policial que tem potencial de venda) com as Letras (que é o próprio objeto de fixação do detetive). 77 Em relação à literatura policial brasileira, são publicados apenas três autores, todos contemporâneos, deixando de fora obras com características do gênero como alguns romances de Rubem Fonseca e de Patrícia Melo, que são publicados pela editora fora da série. O pouco número de obras e autores brasileiros publicados gera um paradoxo. Existe uma encomenda implícita dirigida aos escritores brasileiros, feita pela editora, de narrativas policiais. No entanto, a extensão numérica do resultado efetivamente publicado é mínima. Tanto porque as editoras concorrentes disputam a publicação das mesmas obras quanto pelas potencialidades literárias e mercadológicas exigidas pela Companhia das Letras. A existência de uma produção contemporânea extensa de literatura policial fora do Brasil com as possibilidades de vendas já verificadas no mercado original também concorre para que a Companhia das Letras não publique tanto os autores policiais nacionais. O primeiro autor brasileiro a ter uma narrativa publicada na série foi Tony Bellotto, nome já conhecido do público consumidor de cultura por integrar grupo nacional de rock de prestígio. Ele lançou em 1995 Bellini e a esfinge, dois anos depois Bellini e o demônio, e, em 2005, Bellini e os espíritos, todas as obras tendo como protagonista o detetive Remo Bellini, seguidor dos detetives do noir clássico americano, como Sam Spade e Philip Marlowe, e até de suas releituras mais recentes, como Lew Archer, criado por Ross Macdonald, e Matthew Scudder, protagonista dos romances de Lawrence Block. Bellini enfrenta os criminosos na noite de São Paulo em histórias repletas de ação e crítica social. Apesar dos pouquíssimos sinais positivos da crítica literária, os livros de Bellotto tiveram boa vendagem, aproveitando a publicidade gratuita que o nome público do autor angariava. Joaquim Nogueira, que foi delegado na Polícia Civil de São Paulo por 12 anos, já lançou seu primeiro livro pela Série Policial da Companhia das Letras. Publicado em 2001, Informações sobre a vítima trazia como protagonista o investigador Venício, que também atua na cidade de São Paulo. No ano seguinte, lançou Vida Pregressa, também tendo Venício como protagonista. O professor universitário Luiz Alfredo Garcia-Roza, o principal autor nacional de literatura policial nos dias de hoje , segundo avaliação de Sandra Reimão (REIMÃO, 2005, p. 45), teve seus cinco livros policiais publicados na série. O primeiro foi 78 O Silêncio da chuva, em 1996, no qual introduzia como protagonista o detetive Espinosa. Em seguida, publicou Achados e perdidos, em 1998; Vento sudoeste, em 1999; Uma janela em Copacabana, em 2001; e Perseguido, em 2003; todos com Espinosa como protagonista. Anteriormente, Garcia-Roza teve livros sobre teoria psicanalítica lançados por outras editoras, especializadas na área de psicanálise. Sandra Reimão também analisa a adesão ao gênero policial por parte de Garcia-Roza ao passar a produzir obras de ficção: Observe-se que não só há nos cinco romances de Garcia-Roza publicados nessa coleção uma forte e explícita adesão ao gênero policial como também a editora ao publicá-los nesta coleção e ao trabalhar o design de suas capas salienta esta adesão. Essa explicitação valorativa do gênero, cremos, pode ser vista como um sintoma de que o perfilar uma narrativa de um autor nacional em um gênero de literatura de massa, no caso, o policial, não é visto como um elemento desqualificador dessa narrativa; ao contrário, é visto como um elemento a ser destacado. (REIMÃO, 205, p. 47) Quanto à primeira parte da afirmação, sobre a editora reforçar a caracterização dos textos como os de Garcia-Roza em um gênero específico ao incluí-lo na série, concordamos plenamente e estendemos a todos os outros textos da série, como falamos anteriormente. No entanto, em relação à segunda afirmação, de que ao formatar a série, a Companhia das Letras acaba valorizando a literatura policial, vale a pena alguns comentários. A editora ocupa posição central na publicação de livros de valor simbólico alto, portanto ao formatar uma série com textos de determinado gênero está sinalizando que aquele tipo de ficção tem valor literário. Por isso, a literatura policial fica valorizada por ser objeto da editora, como se o prestígio da editora fosse emprestado à literatura policial. A editora nesse sentido comunga com um movimento de valorização da literatura policial sua incorporação à alta literatura e que se desenvolveu a partir da visão de alguns críticos, desde o final da década de 1970, como Fredric Jameson e Linda Huchteon, identificados com uma corrente que podemos chamar genericamente de pós-modernista, e se solidificou com uma reescritura do romance policial por alguns ficcionistas de bastante prestígio neste final de século como os argentinos Jorge Luis Borges e Ricardo Piglia, o 79 americano Paul Auster e o brasileiro Rubem Fonseca. Esse modo desierarquizante de se produzir e analisar literatura traz ao gênero policial o status de literatura relevante, rompendo os limites de alta e baixa literatura. Paradoxalmente, ao estabelecer uma série especificamernte dedicada ao gênero, a editora acaba fazendo um movimento hierarquizante em relação às obras ficcionais, separando novamente alta e baixa literatura, definindo o modo pelo qual essas obras devem ser lidas e reconhecidas. Os três escritores brasileiros publicados na série praticamente estrearam como autores de ficção na própria série. A marca de autor policial foi colocada apenas em escritores iniciantes. A experiência pregressa deles, antes de se tornarem ficcionistas, apontava a possibilidade de sucesso de seus livros. Joaquim Nogueira por ter tido experiência concreta no meio policial. Garcia-Roza por ser professor universitário de grande prestígio junto ao público acadêmico carioca. E Tony Bellotto por ser músico de grupo de rock com boa vendagem e prestígio junto à critica. Podemos identificar como característica comum dos textos policiais de autores brasileiros publicados pela editora a tentativa de adaptar o romance noir americano à realidade violenta das metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo. Todos os textos também se estruturam como pertencentes a séries independentes, dedicadas à figura de um detetive: Bellini, Espinosa ou Venício. No caso de Espinosa e Venício, fazem parte da polícia brasileira, e agem de forma bastante ética, criando um contraponto ao imaginário em relação à polícia e apontando uma possibilidade de atuação. Desses escritores, o que possui maior valorização da crítica literária é sem dúvida Garcia-Roza, mas sempre com a menção que o valor está circunscrito aos limites do gênero. Possuir uma série dedicada a livros policiais é uma estratégia comum na história editorial brasileira. Nesse caso, a Companhia das Letras não está desbravando nenhum caminho novo, mas se colocando lado a lado com a Editora Globo, de Porto Alegre, que formatou a Coleção Amarela, ainda na década de 1930, e com o Grupo Editorial Record, que lançou sua série policial intitulada Coleção Negra em época quase simultânea à da série da Companhia. 80 Podemos concluir que a Companhia das Letras, ao mesmo tempo em que inova em várias das suas estratégias e ações, segue várias trilhas já utilizadas por outras editoras: formata tanto uma série policial quanto uma coleção do tipo brasiliana. Vamos tentar agora analisar a numerosa parte do catálogo da editora dedicada à ficção, excluindo a série policial, as coleções e os selos dedicados à literatura infantil e infanto-juvenil. A primeira obra de ficção da editora foi o romance A graça de Deus do americano de origem judaica Bernard Malamud , publicado em 1986, primeiro ano de funcionamento da editora. No exame do catálogo integral de abril de 2004, conseguimos identificar a presença de cerca 480 obras ficcionais para adultos, entre coletâneas de contos e de crônicas, romances e novelas, excluindo a série policial. Portanto, praticamente um terço das publicações para adultos da editora é de ficção. Essas obras são produzidas por 242 autores diferentes. Desses autores, apenas 41 são nacionais, cerca de 17% do total. Portanto, mais de 80% dos autores ficcionais publicados pela Companhia das Letras são estrangeiros, percentual aproximado daquele que verificamos na análise dos lançamentos. Também corroborando a tendência verificada nos lançamentos de 2004, a maioria dos autores estrangeiros que tiveram obras publicadas é contemporânea ou teve suas obras produzidas a partir da década de 1960. Autores falecidos há mais de 70 anos, com a obra já em domínio público, são minoria no catálogo de ficção estrangeira, sendo Franz Kafka uma das raras exceções. Também, como já vimos na análise dos lançamentos de ficção, a nacionalidade e origem cultural dos autores estrangeiros é bastante variada, não havendo uma concentração exagerada de autores de cultura americana e européia. Assim, o catálogo é bastante representativo da literatura contemporânea mundial. A publicação de obras de ficção de autores estrangeiros tem relevância quantitativa e qualitativa considerável tanto em relação ao universo de obras ficcionais quanto ao total de obras publicadas. Os autores estrangeiros que fazem parte do catálogo, além de possuírem bom potencial de vendas, estão em estágios diferentes de consagração literária. Mesmo publicando obras com um nível diferenciado de qualidade literária, segundo a apreciação da crítica jornalística e acadêmica, dificilmente a editora publica 81 autores estrangeiros produtores de best-sellers típicos, como Dan Brown e J. K. Rowlings, esta última ligada à editora inglesa Bloomsbury, com vários projetos em comum com a Companhia das Letras. Os best-sellers publicados pela editora são os romances de José Saramago e Milan Kundera, uma espécie de best-seller literário, que une prestígio intelectual com vendas excelentes. A maioria dos autores estrangeiros do catálogo, principalmente os mais recentes, tem poucas obras publicadas. Muitos deles são autores que receberam algum tipo de premiação e ao mesmo tempo atingiram razoável nível de vendas nos seus países de origem. Além de Kafka, com nove obras, alguns dos escritores que têm maior número de obras publicadas até 2004 são: Louis Begley (seis obras), Paul Auster (seis obras), Ítalo Calvino (15 obras), o americano Don DeLillo (cinco obras), Milan Kundera (seis obras), V. S. Naipul (sete obras), José Saramago (11 obras), Amós Oz (sete obras), Philip Roth (seis obras) e John Updike (dez obras). Considerando estes 11 autores pelo número de textos publicados como uma amostra representativa da ficção estrangeira lançada pela editora, daremos um pequeno sobrevôo sobre eles e suas obras, para entendermos melhor o catálogo da Companhia. Louis Begley nasceu na Polônia em 1934 e se radicou nos Estados Unidos ao final da Segunda Guerra Mundial. Começou a escrever tardiamente e a sua obra consegue bastante sucesso de vendas a partir da década de 1990, especialmente o bestseller Sobre Smith. Seus livros buscam um aprofundamento psicológico dos seus personagens que seria inimaginável num típico best-seller. Apesar de não trazerem nada de realmente novo, seus livros são muito bem aceitos pela crítica americana e são contemplados com prêmios de variadas importâncias. Eles começaram a ser publicados pela Companhia das Letras já na década de 1990. Os últimos volumes passaram a receber um tratamento gráfico específico. Aparece aqui uma outra forma da editora agrupar livros: séries de autores. Ou seja, determinados autores merecem concepção gráfica especial para os seus livros, que passam a formar um grupo identificável dentro do universo do catálogo da editora, como uma série ou coleção. 82 O americano Paul Auster, nascido em 1947, se firmou na literatura na década de 1980, depois de se formar em Letras na Universidade de Columbia, publicar poesias e traduções de poetas franceses e passar vários períodos fora dos Estados Unidos. Ainda nessa década, começaram a sair traduções de sua obra no Brasil pela Editora Best Seller, conseguindo grande prestígio no meio acadêmico, mas sem atingir um número de leitores razoável. A partir do final da década de 1990, a Companhia das Letras passou a publicar as suas obras, inclusive reeditando alguns textos que tinham sido lançados pela Best Seller, como A trilogia de Nova York. Até abril de 2004, a editora tinha lançado seis volumes, mas sem tratamento gráfico específico. Em seguida, lançou mais dois volumes da sua obra, fazendo um esforço considerável de divulgação, com a vinda do autor ao Brasil. Estes dois últimos livros também receberam tratamento gráfico individualizado, contando inclusive com sobrecapa em papel especial, num esmero de qualidade no acabamento do produto, indicando ao possível leitor que o conteúdo também seria especial. São lançamentos bastante sintonizados temporalmente com a produção do artista: o intervalo de tempo entre a publicação nos Estados Unidos e no Brasil não chega a ultrapassar um ano. O escritor italiano Ítalo Calvino nasceu em Cuba, em 1923, falecendo em 1985, um ano antes da fundação da Companhia das Letras. Consagrado como um dos maiores escritores do século XX, produziu uma obra que se afasta bastante das concepções realistas de literatura, aproximando-se da fábula e do fantástico. Seus livros vêm sendo publicados pela Companhia desde 1990, com As cidades invisíveis. Além de 15 textos de ficção, a editora publicou dois textos ensaísticos e uma narrativa infanto-juvenil, totalizando uma parte considerável da sua vasta obra, iniciada em 1947. Desde o início, os livros do autor publicados pela Companhia das Letras já possuíam uma identidade visual própria, constituindo-se desde sua origem como uma série de autor. Em 2003, a concepção gráfica foi totalmente reformulada. A partir disto, lançamentos ou reedições dos textos de Calvino passaram a ter nova roupagem. A nova concepção gráfica é simples e bastante significativa. O título do livro, os nomes da editora, do autor e do tradutor aparecem na capa por meio uma recriação da notação bibliográfica da primeira edição da obra pela Companhia das Letras (figura 8). Entre várias mensagens que podemos ler nessa figura, 83 duas nos parecem as principais. Uma é que se trata de obra clássica e de prestígio acadêmico, merecendo aparecer, portanto, descrita na forma de notação bibliográfica. A outra é que a data da primeira publicação da tradução brasileira do texto pela editora é significativa, funcionando como uma nova certidão de nascimento da obra; no caso de As cidades invisíveis, a primeira edição italiana (Le città invisibli) é de 1972 e a primeira edição da Companhia das Letras é de 1990, com tradução de Diogo Mainardi. É evidente o tratamento especial que a editora concede à obra de Ítalo Calvino, justificado não só pelas vendas permanentes que seus textos proporcionam, implicando em reedições, como também pelo prestígio literário que Ítalo Calvino confere àqueles que perfilam ao seu lado no catálogo da editora. A obra de Franz Kafka, publicada quase integralmente pela Companhia, totaliza nove volumes, possuindo inserção bem semelhante à de Calvino no catálogo da editora em relação ao cuidado editorial e à existência desde o início de identidade gráfica específica. Por esse conjunto de obras ser de domínio público, existe uma maior disponibilidade de edições brasileiras publicadas por outras editoras, havendo a necessidade de um diferencial para superar os concorrentes. Além das qualidades técnicas de produção editorial, o item que a Companhia apresenta como o diferencial de suas edições da obra de Kafka são as traduções de Modesto Carone, realizadas diretamente do original alemão. Essas traduções já tinham sido anteriormente publicadas pela Brasiliense, a partir de 1983, mas Schwarcz conseguiu trazê-las para sua editora, apesar de duas obras, ainda em 2005, permanecerem também no catálogo da Brasiliense. Na Companhia das Letras, Kafka é o único ficcionista estrangeiro do início do século XX que tem um número considerável de textos publicados. A obra de Kafka possui mercado garantido no Brasil especialmente pela demanda das universidades. Ao mesmo tempo, a publicação de sua obra funciona como uma espécie de apadrinhamento da ficção produzida pela editora. José Saramago o autor português de maior prestígio literário e de maior capacidade de vendas, tendo recebido o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 é também o romancista estrangeiro com o maior número de obras publicadas pela editora até abril de 2004, totalizando 11. Os seus primeiros livros de grande repercussão, Levantando do Chão 84 e Memorial do Convento, foram publicados no Brasil no início da década de 1980 pela Editora Difel. Com o surgimento da Companhia das Letras, ela passou a publicar seus novos lançamentos começando com O ano da morte de Ricardo Reis e as obras que não tinham ainda saído no Brasil. Seus livros já começaram a ser lançados com concepção gráfica individualizada, apesar de não se diferenciarem muito do padrão dos livros da editora. A partir de 2000, já tendo recebido o Prêmio Nobel, a concepção gráfica foi reformulada, ficando a série com uma imagem ainda mais destacada, incluindo na capa um logotipo especial da editora que remete ao prêmio Nobel. A publicação das obras de José Saramago consolidou-se como mais um sucesso literário e comercial da editora. O escritor Milan Kundera, nascido na República Tcheca em 1929 e radicado na França a partir de 1975, teve sua obra publicada no Brasil inicialmente pela Editora Nova Fronteira, a partir da década de 1980, motivada especialmente pelo grande sucesso de A Insustentável leveza do ser. Em 1998, suas obras começaram a trocar de catálogo para a Companhia das Letras, que publicou cinco livros até abril de 2004. A obra de Kundera na nova editora mereceu tratamento gráfico exclusivo, sob responsabilidade de João Baptista Aguiar, que utiliza na capa reproduções de litogravuras de Lasar Segall, artista brasileiro nascido na Europa Oriental. O israelense Amós Oz e V. S. Naipul (nascido em 1932, em Trinidad, de família hindu) são, entre aqueles autores não pertencentes à matriz européia e americana, os que possuem mais obras publicadas pela Companhia das Letras. Esses dois autores, que estão no início do século XXI em plena produção literária, têm as suas obras publicadas regularmente pela editora. Os sete romances e três ensaios de V. S. Naipul e os sete romances de Amós Oz lançados pela editora têm também concepção gráfica própria para cada um dos autores. A constituição de série autoral específica e a publicação de várias obras de autores em fase de legitimação, como no caso desses dois últimos e de Louis Begley, mostra que a editora não espera uma consagração definitiva para dar um tratamento especial a determinados autores; pelo contrário, a editora não se furta a ela mesma 85 consagrar determinados autores no mercado editorial brasileiro com o seu tratamento diferenciado. Um trio de consagrados escritores americanos, formado por John Updike, Don DeLillo e Philip Roth, todos nascidos na década de 1930 e ainda em atividade no início do século XXI, tem também a sua obra costumeiramente publicada pela editora desde o final da década de 1980. Nenhum dos três mereceu uma identidade visual própria para seus romances, mas trazem consigo uma garantia de boa vendagem, que vem atrelada ao seu prestígio no exterior. A associação desses nomes ao da editora ainda não empresta necessariamente prestígio ao catálogo, mas as suas obras se sustentam comercialmente, o que pode ser comprovado pelos repetidos lançamentos e reedições. Quanto à ficção de autores nacionais, a editora tem no seu catálogo de 2004 registrados apenas 41 autores brasileiros de obras de ficção adulta. Número bastante pequeno, se compararmos aos 141 autores estrangeiros de ficção registrados no mesmo catálogo. No entanto, como já afirmamos anteriormente na análise dos lançamentos, o prestígio desses autores junto à crítica é enorme. Estão no catálogo da editora vários dos principais escritores brasileiros do final do século XX e início do XXI, já que, assim como em relação à ficção estrangeira também em relação à ficção nacional, são privilegiados os autores contemporâneos. São estes os 41 escritores brasileiros que publicam obras de ficção pela editora: Caio Fernando Abreu, Machado de Assis, Amilcar Bettega Barbosa, Bernardo Carvalho, Ruy Castro, Rubens Figueiredo, Rubem Fonseca, Milton Hatoum, Mario Filho, Vinicius de Moraes, Eric Nepomuceno, Nelson de Oliveira, João Inácio Padilha, Domingos Pellegrini, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Sérgio Sant Anna, Moacyr Scliar, Antonio Carlos Vianna, Elvira Vigna, Valêncio Xavier, Jean-Claude Bernadet, Arnaldo Bloch, Antonio Fernando Borges, Ivan Ângelo, Chico Buarque, Modesto Carone, Carlos Heitor Cony, Francisco Dantas, Ivan Lessa, João Gabriel de Lima, Osman Lins, Paulo Lins, Luis Fernando Verissimo, Michel Laub, Diogo Mainardi, Patrícia Melo, Raduan Nassar, Jô Soares, Flávio Souza e Zulmira Ribeiro Tavares. Além de Tony Bellotto, Joaquim Nogueira e Garcia-Roza, que são citados na série policial, estão fora dessa relação autores 86 como João Gilberto Noll e José Roberto Torero, que publicaram alguns volumes pela Companhia das Letras e hoje fazem parte do catálogo de outras editoras. Desses autores, apenas Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Osman Lins tiveram textos seus publicados pela Companhia somente após seu falecimento. Machado de Assis teve publicada apenas uma coletânea de contos pela editora, em 1998, com organização de John Gledson, sendo o único autor nacional com a obra já em domínio público que foi publicado pela editora. Apesar de coletâneas dos contos de Machado serem artigo fácil nas prateleiras das livrarias, a que foi lançada pela Companhia das Letras tem uma especificidade: foi organizada por um dos principais especialistas na obra de Machado de Assis, o inglês John Gledson, com extensa obra publicada no Brasil e Inglaterra sobre a obra de Machado de Assis e outros autores brasileiros canônicos. O teatrólogo, jornalista, cronista e ficcionista Nelson Rodrigues, nascido em 1912, no Recife, e falecido em 1980, no Rio de Janeiro, mereceu da editora a formatação de duas coleções com suas obras não-teatrais. A chamada coleção Obras de Nelson Rodrigues, coordenada pelo jornalista Ruy Castro, publicou, até maio de 2002, 12 volumes contendo contos, crônicas, memórias e outros textos em prosa. A publicação desses textos envolveu um minucioso trabalho de pesquisa e seleção para a organização dos volumes, promovendo a publicação em livro de muitos textos que só haviam sido publicados em jornal. A coleção tem uma identidade visual própria, também concebida por João Baptista Aguiar, e chega a ser numerada, deixando claro que se trata de uma série de livros. Ruy Castro também coordenou a publicação de folhetins escritos por Nelson sob o pseudônimo de Suzana Flag. Em 2002, começou a ser publicada a coleção Baú de Nelson Rodrigues, sob a coordenação do professor Caco Coelho, que também engloba textos inéditos em livro, a partir de pesquisa nos periódicos em que foram publicadas as versões originais. O primeiro volume da coleção, o romance A mentira, possui, além de posfácio do coordenador, um prefácio do filósofo Gerd Bornheim, que funciona como um legitimador do valor cultural do romance de Nelson. Nessa coleção também foram publicados textos que inicialmente apareceram em jornais sob o pseudônimo de Myrna. A Companhia das Letras ao se decidir pela publicação da obra não-teatral não se envolve na disputa pela fatia mais consagrada da obra de Nelson, 87 o que diminui os gastos com os direitos dessas obras. Os custos com os direitos das obras publicadas foram bem menores, aos quais, no entanto, se somam os gastos com os coordenadores e suas eventuais equipes de pesquisa. A editora não opta por dar um novo tratamento a obras já publicadas de Nelson Rodrigues. Ela consegue simultaneamente agregar um autor clássico da literatura nacional ao seu catálogo e publicar obras inéditas desse autor. Podemos dizer também que a editora dá às crônicas, contos, romances e folhetins de Nelson Rodrigues um tratamento de obra literária, que as outras editoras só concediam às suas obras teatrais. O escritor pernambucano Osman Lins, nascido em 1924 e falecido em 1978, forma a tríade, junto com Nelson e Machado dos três escritores brasileiros que apenas tiveram obras publicadas pela Companhia das Letras postumamente. Osman Lins é um autor de extremo prestígio junto aos quadros acadêmicos da USP, possuindo resenhas críticas extremamente elogiosas de João Alexandre Barbosa, Leyla Perrone-Moisés e Antonio Candido, o que de certa forma explica a posição de destaque que sua obra tem na editora. Duas de suas obras de maior prestígio foram publicadas pela editora na década de 1990: o conjunto de narrativas intitulado Nove, novena, que tinha sido publicado inicialmente em 1966 pela Editora Martins, e o romance Avalovara, lançado em 1973 pela Editora Melhoramentos. Em 2005, a Companhia relançou o romance Rainha dos cárceres da Grécia, de 1976, e reeditou as duas outras obras citadas todas elas agora com um tratamento gráfico especial. No prefácio dessa sexta edição do Avalovara, escrito por Antonio Candido, podemos observar um pouco do prestígio que a obra, pelas suas características inovadoras, possuía especialmente junto aos acadêmicos uspianos: Romance? Poesia? Tratado da narrativa? Visão do mundo? No universo sem gêneros literários da literatura contemporânea, o livro de Osman Lins se situa numa ambigüidade ilimitada (CANDIDO, 2005). Outro importante escritor brasileiro que não continua em atividade no início do século XXI, mas que faz parte do catálogo da editora é o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, nascido em 1948 e falecido em 1996. Ele publicava inicialmente seus textos de forma alternativa ou por editoras de menor porte, mas a partir do início da década de 1980 88 passou a ser editado pela Editora Brasiliense, inclusive com reedições de suas obras já publicadas anteriormente de forma marginal. Com a fundação da Companhia das Letras e o declínio da Brasiliense, ele segue Schwarcz e lança pela nova editora já em 1988 a coletânea de contos Os dragões não conhecem o paraíso, que ganhou o prêmio Jabuti. Pela Companhia, ele ainda publicaria dois livros inéditos: o romance Onde andará Dulce Veiga?, em 1990, e seu último projeto literário, o livro Estranhos Estrangeiros, lançado pouco depois de sua morte prematura. A Companhia das Letras ainda reeditou, em 1995, o romance Morangos mofados, publicado inicialmente pela Brasiliense, em 1980, e a coletânea de contos Pedras de Calcutá, publicado inicialmente em 1977, e relançado pela Companhia em 1996, alguns meses depois da sua morte. A presença de Caio na Companhia das Letras revela na prática a relação de continuidade entre ela e a Brasiliense. Mesmo com projetos editoriais diferentes, alguns autores que eram publicados pela Brasiliense, como Caio e Kafka e seu tradutor Modesto Carone , passaram para o catálogo da nova editora. O caso Caio também serve de exemplo de um autor que estava em plena atividade literária quando começou a ser publicado pela Companhia e que, com seu falecimento, e a prematura interrupção da sua produção literária, passa a ter uma nova forma de consagração e legitimação de sua obra, inclusive com a publicação por outras editoras de textos críticos, biográficos e de sua correspondência. Caio passa em pouco tempo de autor em atividade com obra em desenvolvimento e em fase de aumento do reconhecimento da crítica para autor do passado com uma fortuna crítica e consagração como autor literário em desenvolvimento ainda mais acelerado. Essa mudança corresponde também a uma função diferente que o autor vai ter no catálogo da editora. Enquanto estava em atividade, suas novas obras tinham um enorme potencial de vendas. As reedições de suas obras têm um potencial de venda menor, porém mais previsível. Ao mesmo tempo, sua presença no catálogo empresta às outras obras um quinhão do seu prestígio. Podemos inclusive imaginar que, por um envelhecimento dos autores brasileiros que a Companhia publica, daqui a mais 20 anos o perfil do seu catálogo de literatura brasileira, formado hoje em grande parte por obras de autores do presente, passará a ser um catálogo com muitas obras de autores de um passado recente. 89 Os autores brasileiros contemporâneos que publicam ficção pela Companhia das Letras, devido à sua importância no catálogo da editora, serão estudados à parte no subcapítulo 2.4, intitulado Os escritores da Companhia . Nesse estudo será feita uma mudança de abordagem, que não levará em conta somente o significado da escolha de determinados autores pela editora e como ela organiza no seu catálogo as produções desses autores. Pela proximidade espacial e temporal entre a Companhia das Letras e esses escritores, analisaremos o que essa editora pode trazer de mudança na produção e no desenvolvimento de suas carreiras. Deixando a ficção para trás, nos deteremos agora na produção poética publicada pela Companhia. A poesia foi um dos focos iniciais da editora, mas acabou por ocupar lugar limitado no catálogo, com 54 títulos lançados até abril de 2004. Nos primeiros anos da editora até o início da década de 1990 foram publicados vários volumes bilíngües de coletâneas de poemas de grandes poetas americanos e europeus do século XX, como William Carlos Willians, W H. Auden, Elyzabeth Bishop, W. B. Yeats, Marianne Moore, Rainer Maria Rilke, Wallace Stevens, entre outros. Tratava-se de uma coleção com identidade visual própria, que tinha como tradutores José Paulo Paes e Paulo Henriques Britto, entre outros. Os volumes quase sempre possuíam notas explicativas e textos introdutórios de responsabilidade dos próprios tradutores ou de algum estudioso da obra do poeta. Pouco a pouco a editora foi deixando a publicação de poesia de língua estrangeira de lado, que passou a ter presença residual nos lançamentos da editora a partir de finais da década de 1990. Em relação à poesia portuguesa, a sua presença no catálogo da editora praticamente se resume à obra poética de Fernando Pessoa, que é publicada em volumes com identidade visual própria e com textos introdutórios produzidos por uma edição portuguesa. A publicação de poesia brasileira também nunca foi privilegiada na editora, fora a presença de alguns volumes da poesia de Vinícius de Moraes e da de Augusto de Campos. Mas a análise dos lançamentos de 2004, como vimos, revela que pelo menos nesse ano o lançamento de livros de poesia brasileira, ao contrário da estrangeira, marca presença, tendência que poderá ser comprovada ou não nos próximos anos. Os lançamentos 90 de 2004 revelam que a editora vem publicando alguns poetas brasileiros contemporâneos, como Paulo Henriques Britto e Carpinejar, ambos com crescente prestígio junto à crítica. Em relação às obras de não-ficção do catálogo da editora, não ultrapassaremos os comentários já realizados anteriormente na análise dos lançamentos e das coleções, devido aos limites, em todos os aspectos, desta tese. Antes de terminarmos este subcapítulo, examinaremos também o catálogo de obras infantis e juvenis da editora, publicadas respectivamente pelos selos Companhia das Letrinhas e Cia. das Letras. O selo Companhia das Letrinhas foi criado em 1992 para editar livros infantis, com o objetivo, segundo Luiz Schwarcz, de editar livros afinados com a sensibilidade infantil, capazes de mobilizar na criança sua capacidade cognitiva, seus desejos de auto-expressão, sua necessidade de ir organizando o mundo; livros que sejam para elas uma experiência cada vez mais perceptível de independência. (NEVES, 2003, p. 3-4). Ou seja, uma proposta de formar novos leitores desde cedo, leitores que no futuro terão uma capacidade crítica de escolherem livros de qualidade que poderiam ser os livros do selo principal da editora. A Companhia das Letrinhas publica tanto livros infantis de autores que também escrevem para adultos, como Érico Verissimo e Moacyr Scliar, como autores que privilegiam a literatura infantil, como Maria Clara Machado e Ruth Rocha. Publica tanto autores contemporâneos como do passado, tanto autores nacionais como estrangeiros. Foram lançados inclusive dois livros escritos pelo próprio editor Luiz Schwarcz: Minha vida de goleiro e Em busca do tesouro da juventude, este último baseado nas experiências de leitura do editor na sua infância. Esse selo é estruturado principalmente por coleções, como a coleção Memória e História, com narrativas de memórias de infância; a coleção Profissões, com depoimentos para as crianças de profissionais que se destacaram em suas atividades, como o cientista Marcelo Gleiser e o guitarrista Tony Bellotto; e uma coleção de livros ilustrados dedicados à adaptação de clássicos da literatura com apelo para crianças e adolescentes, como 20.000 léguas submarinas, Os três mosqueteiros, Drácula e Viagens de Gulliver. São publicados prioritariamente livros de ficção, mas mesmo as obras não- 91 ficcionais valorizam bastante o texto, fugindo do didatismo, podendo ser consideradas literatura infantil , num sentido mais amplo. Publicar livros para o público infantil pode ser visto como estratégia para formar o seu público do futuro e tentativa de atingir um público em si que se expandiu enormemente no início da década de 90, principalmente pelo incremento das compras governamentais. Em 1982, segundo a pesquisadora Tânia Pellegrini, 12 milhões de exemplares eram destinados às crianças, cerca de 20% de toda produção na área de literatura; no início dos anos 90 esses números atingiram 60 milhões anuais (PELLEGRINI, s/d, p.7). O selo Cia. das Letras surgiu em 1994, publicando livros de ficção e não-ficção voltados inicialmente para o público juvenil, englobando pré-adolescentes e adolescentes. O público-alvo é de idade inferior aos jovens que a Editora Brasiliense introduzia na leitura na década de 1980. A Cia. das Letras faz a transição do leitor infantil da Companhia das Letrinhas para o leitor adulto da Companhia das Letras, sendo que alguns dos seus livros podem atingir também o público adulto. É bom mencionar que quando grafamos Cia. das Letras estaremos sempre nos referindo ao selo para o público jovem e não abreviando o nome da editora. Esse selo, ao contrário da Companhia das Letrinhas, não agrupa tanto os seus livros em coleções. Mas são publicadas algumas coleções, como a Desventuras em Série, sucesso contemporâneo da literatura infanto-juvenil inglesa, escrito por Lemony Snicket; a Mortos de Fama, com biografias de mortos ilustres , como Einstein e Isaac Newton; e a Contos e Lendas, com folclore e mitologia de todo o mundo. Todas são coleções formatadas por editoras estrangeiras que a Cia. das Letras publica no Brasil. Um dos grandes sucessos do selo é a série Guia dos Curiosos, concebida e escrita pelo jornalista Marcelo Duarte, na qual cada volume traz uma infinidade de informações que podem atingir a curiosidade do jovem em diversos temas. Mas a maior parte do catálogo é dedicada à literatura, tanto nacional quanto estrangeira, em livros fora de coleção. O maior sucesso de vendas do selo é O Mundo de Sofia, publicado em 1995, escrito pelo norueguês Jostein Gaarder, que desenvolve 92 nesse e em outros romances uma espécie de literatura do conhecimento, na qual o texto, sem deixar de ser ficção, tem fins de transmissão de um conhecimento compartilhado, no caso do Mundo de Sofia a história da filosofia. Cada capítulo funciona como se fosse uma lição sobre a história da filosofia. O livro recebeu o prêmio Monteiro Lobato da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil FNLIF, na categoria Tradução/Jovem. Quanto à ficção nacional, o selo Cia. das Letras publica Elvira Vigna, Ruy Castro, Ecléa Bosi e Moacyr Scliar, que também são publicados no selo principal. A Cia. das Letras não parece funcionar como um laboratório de testes para um autor menos experiente posteriormente ser publicado para adultos. Pelo contrário, esses autores já eram publicados pelo selo principal quando receberam encomendas para publicar no selo para jovens. Foram lançadas também obras de ficção dos seguintes autores nacionais até 2004: Pedro Cavalcanti, Rosana Rios, Eliana Martins, Furio Lonza, Pauline Alphen, Anna Flora, Ricardo Azevedo, Flávio de Souza, Heloísa Prieto e Reinaldo Moraes. Muitos desses autores têm a sua ficção para o público adulto publicada por editoras de menor expressão. O selo, portanto, não funciona como uma porta de entrada para um autor iniciante aspirar fazer parte do catálogo principal da Companhia das Letras. A análise de textos de um dos autores publicados pela Cia., Reinaldo Moraes, pode explicar semelhanças e diferenças da proposta desse selo com a da Editora Brasiliense na década de 1980. Reinaldo publicou em 1981 o romance Tanto faz, pela coleção Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense. O seguinte trecho do livro sintetiza que tipo de literatura fazia, influenciada pelos beats e pela arte pop norte-americana: Shot: uma garota sentada na minha frente, um pé sobre a almofada do sofá, coxas abertas, um copo de tinto encaixado no cavalo do jeans, e os dedos longos tamborilando distraidamente nas bordas do copo. As multi-Marilyns do Warhol me piscam cúmplices, as safadas. Alguém comentando do meu lado que a fulana é tão chata que devia ser expulsa do sexo feminino. Trata-se de uma bicha que me cutuca o tempo todo com seus olhares. Todo mundo fofoca, em várias línguas. A bicha puxa um assunto qualquer comigo. É um travesti brasileiro amigo da Syl que faz a vida em Pigalle, mas que está à paisana agora. Me explica que dá pra tirar até 600 francos por dia, uma moleza. Pô, comento, tem muito bolsista por aí 93 que se soubesse disso largaria a comedida masturbação acadêmica pelo franco meretrício. O travelô me pergunta in cold blood: E você, meu bem? pondo a mão no meu joelho Afinal de contas, és bofe ou boneca? Syl me olha sorrindo. Ofereço como resposta a primeira coisa que me passa pela cabeça: Eu? Sei lá... acho que sou apenas um modesto funcionário do meu desejo. (MORAES, 1981, p. 77) Essa linguagem extremamente despojada e a abordagem nada moralista não se adequariam à proposta do selo Cia. das Letras, que tem como principal horizonte de sucesso comercial as compras governamentais para a rede pública de ensino. O livro que Reinaldo Moraes vai publicar pela Cia. das Letras em 2003, A órbita dos caracóis, conta a história de Juliana, uma garota paulistana que se vê numa trama policial, que envolve a ameaça de um desastre nuclear. É um romance para o público jovem bem mais comportado tanto esteticamente quanto moralmente do que o Tanto faz, como podemos observar neste trecho: Nada acontece nessa viela deserta no centro da cidade. Ela apenas serpenteia entre fundos chapados de prédios, quase todos com portas de garagem, e mais nada digno de nota, se o seu olhar já estiver cansado dos mesmos hieróglifos analfabetos pichados pela cidade. Não querem dizer nada, essas pichações puramente gráficas, nada além de um "estive aqui" ou "eu existo". O cara só quer apontar para algo na cidade e dizer para si mesmo: fui eu que fiz. Narcisismo anônimo de cidade grande. (MORAES, 2003, p. 9) No catálogo unificado dos selos Cia. das Letras e da Companhia das Letrinhas publicado em 2004 dá-se destaque às inúmeras premiações que suas obras obtiveram na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) em diversas categorias, como tradução, criança, jovem, poesia e informativo. A FNLIJ é uma organização não-governamental que serve como orientador de compras para escolas e bibliotecas públicas e privadas. Vale destacar que os livros para os públicos infantil e juvenil têm como grande comprador o governo, mas no atual sistema de compra pública de 94 livros didáticos o poder de decisão de compra fica pulverizado na mão dos professores da rede pública de ensino. Portanto, além do catálogo, também são produzidos uma revista, com sugestões e orientações de leitura, e um espaço especial no site da editora dedicado ao professor, elemento fundamental na compra do livro infantil e juvenil no Brasil. Após o mergulho no catálogo da editora, nos dedicaremos agora à figura decisiva na formação desse catálogo: Luiz Schwarcz, o editor-proprietário da Companhia das Letras. 2.3. O editor da Companhia Em novembro de 2004, entrevistei o editor Luiz Schwarcz na sede da Companhia das Letras na cidade de São Paulo. Neste capítulo, serão transcritos alguns trechos da entrevista. Os poucos minutos que fiquei aguardando Schwarcz, num espaço compartilhado por outros membros da equipe, já foram suficientes para observar a posição relevante da Companhia das Letras em relação à literatura brasileira contemporânea: além de existir uma profusão de livros de autores brasileiros visíveis por toda a parte, da Companhia e de outras editoras, a todo o momento eram feitos comentários sobre o andamento do último texto de Paulo Lins ou de Bernardo Carvalho. A entrevista em si mostrou um editor que tem bastante domínio sobre o acervo produzido pela sua editora e uma visão bastante clara sobre os objetivos e resultados do seu empreendimento. Schwarcz analisa assim as suas intenções ao fundar a editora: 95 Saí da Brasiliense com a idéia de criar uma editora de qualidade em todos os aspectos que envolvem a criação do livro. Uma editora literária em que a qualidade literária fosse o princípio. Mas que essa qualidade se estendesse aos outros itens que compõem o livro, desde o aspecto gráfico até a abordagem comercial e promocional. Eu imaginava uma editora de poucos encalhes e que fosse uma editora de catálogo, na qual os livros durariam no catálogo, sem abrigar livros com características de best-seller. A trajetória de sucesso comercial da Companhia das Letras foi superior ao que nós esperávamos. A editora teve que se esforçar para acompanhar seu sucesso comercial. Nós sempre tentamos organizar a editora para dar conta da receptividade do produto que lançávamos, que veio muito rápida. A intenção de Luiz Schwarcz, portanto, era criar uma editora diferenciada, em que a qualidade do texto fosse a mola propulsora, mas que atingisse todos os outros componentes do livro. Produzir e vender livros de qualidade seria o negócio da editora. Não pretendia editar livros que tivessem grandes vendas rápidas, mas livros que permanecessem durante um bom tempo no catálogo da editora vendendo razoavelmente bem durante um bom tempo. Apesar de não permitirem grandes tiragens iniciais, livros desse tipo possibilitam sucessivas reedições, o que traz ganhos de escala. Essa é uma estratégia editorial bem definida, que evitava grandes riscos, já que escolhia textos de qualidade literária com um público em princípio restrito, mas garantido. A surpresa foi o tamanho desse público exigente literariamente, que acabou por gerar um sucesso comercial acima das expectativas. Quando Schwarcz fala em ser uma editora literária, ele não está se referindo especificamente à ficção, à poesia ou ao teatro, mas sim à qualidade literária do texto, tanto que a editora teve como foco inicial textos ensaísticos de qualidade literária, que afastavam-se de um discurso científico mais rígido, como Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson, e Tudo que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman. A Companhia, segundo o seu editor, organiza suas publicações por meio de séries. Essas séries podem ser mais formais, como as coleções e as séries com identificação visual própria, ou informais, como conjuntos de obras que possuem alguma conexão entre si. Há uma grande valorização da conexão interna do catálogo, como vimos no subcapítulo anterior, que daria na verdade um sentido, uma direção para o leitor: 96 A editora já foi pensada para funcionar em séries. Começou com livros de não-ficção, que não tinha o nome de uma série. Mas eles tinham uma identidade própria, tanto visualmente quanto nos critérios de escolha dos livros. Eram livros que tinham uma proposta literária do tratamento da nãoficção e que quase sempre tinham característica de interdisciplinaridade. Na concepção editorial da Companhia das Letras o catálogo funciona como uma família. Os livros não funcionam isoladamente. A minha idéia de catálogo é algo que você apresenta ao leitor como uma proposta de editora que tem uma filosofia, uma continuidade, que um livro leva ao outro. [...] A editora que não busca isso acaba virando uma empresa sem identidade e o trabalho de edição perde o vínculo com o que foi feito no passado e o que será feito no futuro. A editora vira um saco de oportunidades, não construindo uma marca. Esta editora viveria mais na função comercial do que na função editorial. [...] Essa concepção da editora com seu catálogo como organizadora de sentido da produção do conhecimento revela o papel intelectual ativo e o verdadeiro negócio do editor. A missão da empresa editorial moderna é antes intelectual do que comercial, como diz Roger Chartier ao caracterizar a terceira etapa da história da edição, como vimos anteriormente. Ao mesmo tempo a idéia de Schwarcz de construir e valorizar a identidade e a marca da editora não tem nada de utópica ou sonhadora, na verdade é uma estratégia empresarial racional economicamente, que diminui riscos desnecessários. O efeito colateral disso é que apostas em livros inovadores individualmente só aconteceriam depois de bem amadurecidos, ou quem sabe, já ultrapassados por alguma estratégia de editora mais dinâmica. Fica também evidente pela declaração do editor a consciência do seu papel decisório em relação ao que Chartier chama de ordem dos livros (CHARTIER, 1999). Propostas como as de Schwarcz, de organizar um catálogo coerente, concedem ao editor um papel maior do que o de mero selecionador do que é publicado, um filtro entre produção e consumo ele é um direcionador daquilo que ainda vai ser produzido. Existem encomendas implícitas nas estratégias de cada editora. Um escritor, de ficção ou não, escreve na expectativa de ser publicado por uma das editoras existentes ou financiar a sua própria edição. Portanto, o que escreve é de alguma forma condicionado pelas 97 possibilidades de publicação. O grande problema disso seria o monopólio de uma editora ou monopólio de somente uma linha editorial para todas as editoras. Por outro lado, o pólo autoral também pode engendrar determinada obra que rompa barreiras e crie uma demanda completamente nova, influenciando a atividade editorial. Na verdade, as influências entre demanda da empresa editorial e a produção de obras pelos escritores é uma via de mão dupla. Voltando à história da Companhia, é interessante observar que nos seus primeiros anos não publica intensamente ficção, especialmente a realizada por escritores brasileiros. Schwarcz explica a relativa demora em publicar a literatura nacional, especialmente a ficção brasileira contemporânea, pela necessidade de a editora precisar de um número significativo de obras de determinado perfil para passar a publicar determinado gênero, já que, como vimos, sua estratégia editorial evita sempre o livro isolado, sem relação com o catálogo: Não atacamos a ficção de início porque não tínhamos a possibilidade de ter um grupo de livros significativo. Não tínhamos uma proposta de fazer ofertas para autores que estavam em outras editoras. A idéia era de que a partir da nossa proposta editorial, por alguma razão, alguns autores se interessassem em mudar para a Companhia das Letras. Nós não fizemos como algumas editoras que, ao se instalarem no mercado, acham que precisam logo de um grande nome nacional. Fazem muitas vezes ofertas acima das praticadas no mercado, fazendo da conquista de um autor famoso o ato de fundação da sua editora. Esta é uma forma de fundar uma editora que eu não quis fazer. Nós queríamos mostrar antes a editora para o autor nacional. Começamos com livros traduzidos. Em seguida, entramos na área de Ciências Humanas brasileira, na qual tínhamos bons contatos desde a Brasiliense. Depois os autores de ficção brasileira começaram a migrar naturalmente. O primeiro livro de ficção brasileira foi Os Garotos da Fuzarca, do Ivan Lessa. Tínhamos já um contato com o Scliar. Fizemos um contato informal com o Rubem Fonseca numa festa em homenagem à Isabel Allende. Na época ele estava insatisfeito na Francisco Alves. Como ele é um autor que aprecia graficamente os livros, mandei vários dos nossos livros para ele. Ele viu que o nosso trabalho editorial não tinha se encerrado na escolha do título e do capista. Ele, então, me escreveu uma carta me parabenizando pelos livros e discutindo aspectos gráficos. Então, quando ele 98 quis mudar de editora, ele nos procurou. E daí foram se abrindo as nossas portas para vários outros escritores brasileiros. O discurso que Schwarcz elabora sobre a sua própria editora é o de que ela vai construindo paulatinamente a sua história e o seu sentido. Quando ela passa a publicar literatura brasileira, esses livros vão se incorporar à história já existente da editora, não havendo um processo de tábula rasa, na qual essa nova vertente anularia o que já tinha sido produzido. A dedicação à literatura brasileira agrega valor, mas não anula a história pregressa da Companhia. Nem impede a continuidade da publicação dos outros gêneros de livros. A partir da publicação de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca, em 1988, a Companhia acaba atraindo um elenco de prestígio dentro da ficção brasileira. Além de Scliar e Fonseca, agregam-se nomes como Sérgio Sant Anna, Carlos Heitor Cony, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Valêncio Xavier, Ana Miranda e Patrícia Melo. Alguns desses já consagrados a partir de trabalhos em outras editoras, como Carlos Heitor Cony, Sérgio Sant Anna e o próprio Rubem Fonseca. Outros desenvolveram, ou desenvolvem, o amadurecimento e a legitimação literária durante o seu vínculo com a Companhia, como Bernardo Carvalho, Ana Miranda e Milton Hatoum. Como resultado de toda essa estratégia organizadora em relação ao seu catálogo, a editora já no século XXI assume uma posição bastante central na produção de literatura brasileira, especialmente ficção. Ser publicado pela Companhia das Letras virou, de certa forma, sinal de prestígio literário. Por isso, o grupo de autores obras e suas respectivas que publica com mais constância passou a ser visto como um grupo canônico de autores nacionais. Como a partir da década de 70 a crítica literária foi saindo paulatinamente da grande imprensa, foi dado a uma grande editora, que tinha proposta menos comprometida com um sucesso comercial imediato, o papel de ser um certificador da qualidade literária na literatura brasileira para o leitor de livros de ficção. No entanto, o escritor novíssimo, praticamente inédito, tem dificuldades em ser contratado primeiramente pela Companhia, a não ser em casos especiais como Chico Buarque e Paulo Lins, este último com a sabida mediação do crítico e professor Roberto 99 Schwarz. A seleção de originais entregues à editora sem nenhuma indicação não é uma forma comum para o escritor conseguir ser publicado na Companhia: Nós recebemos muitos originais, mas trabalhamos mais com a indicação. A indicação traz um resultado muito maior do que o original enviado espontaneamente. Estamos até estudando uma forma de deixar de receber originais. O resultado é tão pequeno, em relação ao trabalho que dá, que muitas editoras internacionais não recebem. Nos Estados Unidos nenhuma editora recebe originais que não seja por intermédio de um agente literário. Na França, a Gallimard e outras editoras importantes também não recebem originais pelo correio, apenas através de indicação. Nós ainda não interrompemos completamente, mas temos uma sistemática de não incentivar essa remessa, porque na história da Companhia das Letras nós aprovamos três ou quatro originais que vieram pelo correio sem indicação. É um volume muito grande e a regra é a da baixa qualidade. No início da editora eu mesmo fazia a leitura desses livros. Hoje temos que ter um freelancer para fazer uma primeira triagem. Não temos como ter uma pessoa muito qualificada da equipe editorial só para isso. Um dos livros que chegou pelo correio sem uma intermediação foi O Chalaça, do José Roberto Torero, que acabou se tornando um grande sucesso. A Companhia faz quase sempre uma opção por autores já consagrados preliminarmente por outras editoras. Editoras menores fariam o papel de selecionadores de originais de autores inéditos já que muitas dessas pequenas editoras se envolvem mais diretamente com determinados grupos de escritores iniciantes. A partir dessa primeira entrada no mercado, quando houver um resultado satisfatório, tanto na recepção pelo público em geral quanto pela crítica, a Companhia das Letras passa a se interessar pelo novo autor. Forma-se um sistema no qual a editora menor lança e desenvolve inicialmente novos escritores e a Companhia, e outras editoras de maior presença e prestígio no mercado, ao contratarem e manterem no seu catálogo um desses escritores, consagram-no preliminarmente como escritor formado. A Companhia, mais do que as outras editoras, pela posição que ocupa na produção e consumo de literatura brasileira, acaba funcionando como uma garantia de prestígio para quem consegue finalmente ser publicado por ela. Apesar 100 disto, muitos dos autores que passaram de uma pequena para uma grande editora acabam voltando para a pequena quando constatam que o seu público é reduzido. Mas é na relação com autores já em estágio adiantado de consagração que as especificidades do editor Luiz Schwarcz aparecem com mais força. Em entrevista que realizamos ainda em 2000, o escritor gaúcho Moacyr Scliar, um dos primeiros nomes de prestígio da literatura nacional a ser publicado pela Companhia, ao comentar a gênese da produção do seu romance Sonhos Tropicais, de 1998, testemunhou que Schwarcz era um editor que interagia muito com o escritor, chegando a fazer sugestões ou encomendas para provocar a produção de novos textos: O editor Luiz Schwarcz é um editor que interage muito com o escritor não é aquele editor que simplesmente recebe os originais e manda para a gráfica. Ele está sempre tendo idéias de novas coleções, novos livros, e um dia me telefonou dizendo que estava pensando em uma série de romances tendo como personagens figuras exponenciais da nossa história. Então perguntou se eu queria escrever um desses romances e eu respondi que sim. Quem seria o personagem? Getúlio Vargas, eu disse. É uma grande figura, gaúcho, que sempre me interessou. Mas Getúlio já estava ocupado pelo Rubem Fonseca, que estava escrevendo Agosto. (Obs: Schwarcz, na sua entrevista, esclareceu que Agosto não fora fruto de uma encomenda para a coleção) Então o Luiz me sugeriu o Oswaldo Cruz. Quando ele me falou em Oswaldo, me veio na cabeça que era uma figura que eu conhecia muito bem. Na verdade não era que eu o conhecia muito bem, mas é um nome muito presente na atividade de Saúde Pública. E num primeiro momento achei que era um personagem que não daria muito material. Então ele fez uma proposta: Por que você não faz uma pesquisa sobre o Oswaldo Cruz e vê se te interessa ou não? Eu acabei passando uma semana no Rio de Janeiro, na Fundação Oswaldo Cruz, nos arquivos, tendo em mãos documentos dele próprio, e comecei a estudar e ler sobre isso. Esse tipo de ingerência, encarada de forma positiva por Scliar, é vista muitas vezes pelo senso comum, e mesmo por estudiosos de literatura, como um tabu. A autonomia do escritor não poderia ser contaminada por nada, muito menos por uma figura tão espúria como a do editor, o responsável por transformar o texto literário em mercadoria. Na verdade, o que está em jogo é a conexão da função autor na literatura a uma única 101 figura, a do escritor. A dimensão autoral estaria apenas naquele que tem o seu nome estampado na capa, acima ou abaixo do título. Qualquer interferência ativa do editor ou de outras figuras comprometeriam a autoria solitária do escritor. Experiências, como a relatada por Scliar, mostram que a tensão presente potencialmente na relação entre editor e escritor pode ser sublimada com resultados positivos, inclusive na perspectiva do escritor. Schwarcz, ao comentar sua influência sobre a produção dos escritores publicados pela Companhia, realça a boa aceitação que o modo de agir da sua editora tem pelos escritores: A visão que temos do trabalho editorial na área de ficção é a de um trabalho ativo, de diálogo. O escritor passa determinado tempo trabalhando solitariamente. Se ele comete um equívoco grande ou pequeno, ele é um equívoco solitário, que pode até aumentar. O que é muito natural. Eu não posso dizer que o editor é o dono da verdade, mas ele é o primeiro leitor. E o leitor necessariamente tem opinião. A atividade de leitura estimula a capacidade opinativa da pessoa. É muito difícil para o leitor ter uma atitude estática. O livro incita a opinião e a reflexão. Então o editor é o primeiro a exercer isto. Ele é um leitor privilegiado por estar lendo a partir de uma relação ainda privada com o escritor. Ele tem obrigação de externar pela primeira vez uma opinião para aquele ser solitário que escreveu. Isto está no cerne da atividade editorial: ler e opinar. Você pode ler um livro e dizer: maravilha, não há nada a mudar. Outras vezes você tem perguntas. Ou pode ter críticas. É da natureza da atividade editorial. A recepção do escritor a este diálogo é variada. Existem alguns que não querem nenhuma opinião. De escritores brasileiros eu não conheço nenhum. Mas existem escritores estrangeiros que não dão essa abertura. Existem autores brasileiros que tem mais tranqüilidade para receber a crítica e até pedem. E outros com que você tem que ter mais cuidado. É claro que nós já sabemos como fazer, para não parecer que nós queremos substituí-lo. Isto seria um erro grave. O editor tem que saber que está fazendo sua crítica ou comentário na condição de editor e de leitor. Ele não substitui o escritor ao fazer uma sugestão editorial. Ele está fazendo uma função diferente. O verdadeiro criador é o escritor. Se você deixa claro isto no seu contato com o escritor, o diálogo fica fácil. O autor não pode achar que a liberdade inerente ao ato da escrita lhe será tolhida. Schwarcz propõe para o editor um papel fronteiriço: ele é ao mesmo tempo leitor e uma pessoa capaz de influir na criação do livro. O editor é o principal elo entre 102 público e escritor antes da obra ser efetivamente publicada. Esse duplo papel, na sua visão, cria uma situação bastante delicada, devendo o editor ter extrema habilidade para que o escritor não sinta o seu papel autoral diminuído. Na verdade, um editor do tipo de Schwarcz, influindo na criação da obra, diminui o papel de controlador total por parte do escritor. Mas isso não é algo intrinsecamente mau para o resultado literário da obra. A proatividade do editor ilumina a irrealidade de uma posição de independência por parte do escritor e coloca-o numa posição de dependência, que foi descrita por Roger Chartier dessa forma em A ordem dos livros: Pensado (e pensando a si mesmo) como um demiurgo, o escritor cria, apesar de tudo na dependência. Dependência em face das regras (do patronato, do mecenato, do mercado) que definem a sua condição (CHARTIER, 1999, p. 9). Porém Schwarcz coloca limites na sua intervenção no texto literário, afirmando que a última palavra está na mão do escritor, mesmo com o poder econômico estando nas suas mãos. Em depoimento concedido em 2005 ao jornalista e crítico literário José Castello, deixa claro que, na sua visão, a figura mais importante na produção de um livro é o escritor e não o editor: tenho uma visão do trabalho do editor muito clara: o editor tem que saber que não está fazendo um trabalho artístico; editar é sempre um serviço de humildade, é estar a serviço (CASTELLO, 2005, p. 4). Esse tipo de visão nos remete aos depoimentos dos outros editores e ao próprio texto de Bourdieu já examinados anteriormente. Lembremos que Bourdieu observa que o editor, em suas práticas e discursos, orienta os olhares para o autor francês vai chamar de produtor aparente que o sociólogo deixando na penumbra o seu papel na produção da obra e qualquer questionamento em relação a quem autoriza o autor literário, que seria a própria instituição editorial. (BOURDIEU, 2004, p. 22) No final de 2005, o editor Luiz Schwarcz juvenis e publicado contos esparsos que já tinha escrito livros infanto- deixa provisoriamente sua posição de editor de lado ao publicar uma coletânea de contos de sua autoria, e assume efetivamente a figura de autor, colocando o seu nome no lugar mais alto da capa de O discurso do capim, publicado pela própria Companhia das Letras. Ele acaba se inserindo em seleto grupo que exerce as duas atividades, como o italiano Roberto Calasso e o espanhol Jorge Herralde; e que no 103 passado teve figuras como o escritor francês André Gide, que durante vários anos trabalhou na editora Gallimard. (CASTELLO, 2005, p. 1) Schwarcz escreveu 11 singelos contos em que a matéria-prima é a memória, e a escrita minuciosa é marcada por inúmeras referências literárias e, especialmente, cinematográficas. Textos nos quais personagens populares do mundo do trabalho garçons, balconistas, camareiras dialogam silenciosamente com o narrador culto de cada um dos contos. Não é o tipo de livro que pode potencialmente atingir um sucesso de vendas que garantiria uma boa margem de lucro para o seu editor. No entanto, é o tipo de livro que pode conseguir ser muito bem visto pela crítica e abocanhar fatia pequena porém segura nas vendas para um público de leitores exigentes. Os contos foram muito bem aceitos pela crítica, inclusive a produzida no Rio de Janeiro, tendo recebido comentários positivos de Beatriz Rezende e José Castello. Para este último, os contos reunidos no livro primam pela originalidade e pelo estilo rigoroso, sendo que alguns deles, como Acapulco e Livro de memórias , honrariam qualquer biografia de escritor de sucesso (CASTELLO, 2005, p. 2). A publicação desse livro pode ser inclusive vista como convergente com a sua estratégia de consolidação de uma editora literária de prestígio, capaz de consagrar seus autores, e agora comandada por editor que pode inclusive perfilar-se ao lado de grandes autores. A possível consagração de Luiz Schcwarcz como autor de literatura traz ganhos evidentes para a sua própria editora na ampliação de seu capital simbólico e, conseqüentemente, de seu valor enquanto marca. Ao ocupar o papel de autor literário, Luiz Schwarcz, não opta por elaborar ficções que discutam questões da produção literária ou do próprio fazer editorial. No entanto, após os contos de Discurso sobre o capim, encontramos, num texto de agradecimentos aos que o apoiaram para realizar a sua atividade literária, elementos que são extremamente reveladores sobre a atividade editorial da Companhia das Letras para uma perspectiva de estudo da vida literária. O texto aborda relações e ligações entre as pessoas da equipe da editora e do universo de autores publicados sua força produtiva, demarcando um universo de atores: 104 que fazem parte de Como sempre Lili esteve presente em todos os momentos. [...] Não desisti graças ao seu apoio. As linhas que sobreviveram devem a ela uma certa maternidade, e são testemunhas do sentimento que alegra nossas vidas. Tomás Eloy Martinez soube dos meus contos quase por acaso, insistiu para lê-los no momento em que eles já se conformavam com a gaveta, ou melhor, com alguns bites na memória do meu computador. Suas cartas tão generosas e um passeio inesquecível em Nova York convenceram-me a retomar a leitura do que eu havia escrito. A cortar, com limites. O mesmo fizeram Rubem Fonseca e Patrícia Melo, que leram a segunda e a penúltima (penúltima?) versão destes contos. Senti firmeza quando me ameaçaram com a publicação à minha revelia. Preocupado em delegar os cortes derradeiros a outra pessoa voltei a escrever. E uma carta de Alberto Manguel foi a responsável pela decisão final pela publicação de Discurso sobre o Capim . Uma coletânea juntando essa carta com as do Tomás daria um livro curioso cujo título poderia ser Cartas a um velho editor , com um subtítulo à francesa ou a um jovem escritor envergonhado . Maria Emília Bender, Fernando Moreira Salles e Heloisa Jahn leram mais de uma vez e me devolveram os contos, com críticas sinceras e palavras carinhosas. Maria Helena Salles mais uma vez soube prever o destino dos meus desejos e angústias. Samuel Titan, Marta Garcia, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Henrique Lanfranchini, Chico Buarque, João Moreira Salles, Lívia e Luiz Alfredo Garcia-Roza, Luiz Henrique Ligabue F. Silva, Sérgio Windholz, Cecília Orsini, Marcelo Levy, Ana Paula HizayamA, Elisa Braga e Renata Megale leram versões iniciais de alguns contos, como bons amigos. Márcia Copola me mostrou o que é cortar com precisão profissional. Eliane Trombini e Salete Leão pararam pacientemente a impressora inúmeras vezes, sem reclamar, avisadas por mim de um novo corte a caminho. (SCHWARCZ, 2005, p. 114 - 115) Esse depoimento delineia um círculo de relações afetivas e econômicas que são imprescindíveis para a efetivação de um empreendimento produtivo. Nesse sentido, a Companhia se aproxima do sistema da denegação do econômico, no qual a mistura de relações afetivas e econômicas são particularmente funcionais. Por isso, a adequação do termo casa editorial , onde uma família de funcionários, escritores e colaboradores gravitam em torno da figura emblemática do editor. Mesmo trazendo o profissionalismo como marca de seus discursos e práticas, a imbricação entre relações sociais, comprometimentos afetivos e contratos econômicos tem que ser levada em frente no sistema da Companhia das Letras, e reforçada em discursos como esse, que aproxima em 105 tese a Companhia de práticas muito mais explícitas em outros tempos, como, por exemplo, a recepção a escritores e colaboradores nas dependências da Livraria José Olympio Editora. Um afastamento total dessas práticas é impensável no negócio do livro. Por mais profissionais que as relações sejam, a dimensão relacional afetivas nas suas acepções sociais e estará sempre presente em qualquer atividade empresarial, mesmo que encobertas. 2.4. Os escritores da Companhia Para completarmos uma descrição da Companhia das Letras, aprofundaremos a investigação da possível singularidade da relação dos principais autores brasileiros de ficção em atividade com a editora, em contraponto com as relações que mantiveram com outras editoras pelas quais publicaram e de como isto pode ter impactado na produção e consumo das suas obras. Em seguida, usaremos uma lente de capacidade maior para detalharmos a importância da Companhia na carreira de um escritor específico em atividade. O escritor escolhido para esse aprofundamento foi Sérgio Sant Anna considerado por diversas correntes da crítica um dos principais ficcionistas brasileiros a partir da década de 1970 , de quem colhemos um depoimento em setembro de 2005 que servirá como base para a parte final do subcapítulo. Com isso, tentaremos identificar diferenças e semelhanças entre a relação que Sérgio manteve com a Companhia e com outras editoras pelas quais publicava anteriormente. Como vimos, a parte mais significativa de autores brasileiros publicados pela Companhia das Letras é formada por ficcionistas que ainda estão em plena atividade. Se cotejarmos a relação dos 41 autores brasileiros de ficção da editora, transcrita no 106 subcapítulo 2.2, com a relação de 30 autores de prosa citados pelo crítico literário Manuel da Costa Pinto no seu Panorama da literatura brasileira hoje, mapa dos principais escritores que fazem literatura no Brasil de início do século XXI, encontraremos a inusitada coincidência de 15 nomes (PINTO, 2004). Ou seja, dos 30 principais ficcionistas citados pelo jornalista paulista, exatamente a metade já teve algum texto publicado pela Companhia das Letras até agosto de 2005. Simultaneamente, o cotejamento nos mostra que quase 40% dos ficcionistas brasileiros da editora fazem parte do embrião de cânone formulado por Manuel da Costa Pinto. Podemos observar também no cotejamento que a coincidência de nomes é maior em relação a autores mais antigos. Como a lista de Costa Pinto é por ordem de idade, conforme ela avança, os nomes coincidentes vão diminuindo. Se considerarmos apenas autores nascidos antes do início da década de 1950, a simultaneidade de nomes entre a lista e o catálogo da editora chega a quase 70%: 11 autores que já publicaram pela editora entre 16 nomes citados no panorama. Concordando-se ou não com a relevância da listagem, especialmente pela concentração de escritores de São Paulo quando seleciona os autores mais jovens, é inegável que a maioria dos escritores citados é autor importante no cenário da literatura brasileira atual. Os 15 ficcionistas que aparecem simultaneamente na lista de Costa Pinto e no catálogo da editora são os seguintes, por ordem decrescente de idade: Rubem Fonseca, Carlos Heitor Cony, Zulmira Ribeiro Tavares, Valêncio Xavier, Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Modesto Carone, Sérgio Sant Anna, Chico Buarque, João Gilberto Noll, Anna Miranda, Milton Hatoum, Paulo Lins, Bernardo Carvalho e Nelson Oliveira. Em finais de 2005, data da escritura desta tese, cada um dos autores possuía uma história de relação diferenciada com a editora, e seus livros possuíam significados também diferenciados no catálogo. Essas relações e significados passarão a ser examinados agora. Rubem Fonseca, nascido em Juiz de Fora, em 1925, e radicado desde a infância no Rio de Janeiro, foi o primeiro grande ficcionista brasileiro a fazer parte do catálogo da Companhia das Letras. Seu primeiro livro foi publicado em 1963, a coletânea de contos Os prisioneiros, pela pequena editora GRD, pela qual saiu também, em 1965, outro livro de contos, A coleira do cão. Em 1969, lança seu terceiro livro, também de 107 contos, intitulado Lúcia McCartney, por outra editora pequena, a Olivé. Apesar de na década de 1960 suas obras serem publicadas por editoras com pouquíssima penetração no mercado, a crítica literária da grande imprensa identificou as qualidades do novo escritor quase que imediatamente. O crítico Wilson Martins, comentando no Estado de São Paulo, em 1966, os contos de A coleira do cão, faz algumas considerações sobre Rubem Fonseca: Se figurarmos os nossos autores de hoje em seus lugares respectivos na escada da glória, nada mais fácil do que perceber que, com o sr. Rubem Fonseca, a literatura brasileira ganhou um dos seus escritores mais importantes, pois é evidente que ele se inscreve não somente entre os que têm ou podem ter um eventual interesse por si mesmo, no interior dos seus limites individuais, mas, também, entre os que acrescentam alguma coisa ao gênero que praticam. (MARTINS, 1966) Resenhas elogiosas como essa e outras mais críticas vão se acumulando desde o início da carreira, forjando uma consagração acelerada. Ao mesmo tempo, o interesse do público por suas obras vai aumentando em velocidade semelhante. A partir de 1973, passa a ser editado pela Editora Artenova, empresa um pouco mais estruturada que as anteriores, lançando, nesse ano, uma coletânea de contos já publicados intitulada O homem de fevereiro ou março e o seu primeiro romance, O caso Morel. Segundo Hallewell, a Artenova no início da década de 1970 era uma editora iniciante que tinha um catálogo eclético, tendo lançado 57 livros, em 1971, e 97, em 1972 (HALLEWELL, 2005, p. 675). É por ela que Fonseca lançaria também o livro de contos Feliz ano novo, em 1975, que atingiu imediato sucesso de vendas. Em dezembro do ano seguinte ao lançamento, um evento vai marcar fortemente a recepção da crítica e o consumo do público em relação à obra de Rubem Fonseca: a proibição da publicação e circulação de Feliz ano novo no Brasil por parte do governo federal, bem como a apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes (apud SILVA, 1996, p. 21). Importante mencionar que esse ato foi deflagrado quando o livro tinha atingido um imenso sucesso de vendas para os parâmetros comuns de um livro de contos: a 108 impressão de 30 mil exemplares e a permanência de várias semanas na lista dos mais vendidos da revista Veja (SILVA, 1996, p. 21). Após esse episódio de censura, que foi divulgado intensamente, o interesse do público e da crítica pelos livros de Rubem Fonseca aumentou. O livro seguinte, O cobrador, que não faz nenhuma concessão em relação aos alegados motivos para a censura, foi publicado em 1979, em um momento em que, apesar de o governo ser ainda militar, não usufruía de condições para outra medida daquele tipo. O novo livro de contos foi publicado por uma editora de porte ainda maior, uma das principais editoras da época, a editora Nova Fronteira, que, em 1979, era a sétima editora em número de edições lançadas (HALLEWELL, 2005, p. 658). A passagem pela Nova Fronteira foi breve. Em 1983, publica o romance com características de narrativa policial A grande Arte pela Francisco Alves, editora de porte médio, mas de grande prestígio literário, a 13a em número de edições nesse ano. (HALLEWELL, 2005, p. 658). A partir de sua transferência para a Editora Francisco Alves o percentual de número de romances na sua obra, comparativamente ao percentual de livros de contos, começa a acelerar bastante, como também o número de leitores. O livro seguinte, Buffo & Spalanzanni, outro romance com características de literatura policial, vai ser lançado também pela Francisco Alves, em 1986, com excelentes vendagens. Na década de 1980, simultaneamente ao aumento do seu público, a obra de Rubem Fonseca vai passar a ser estudada e analisada exaustivamente pela academia, especialmente pelos programas de pós-graduação em literatura do Rio de Janeiro e São Paulo. Soma-se ao prestígio junto à crítica na imprensa e ao sucesso com o público a consagração na academia. É nessa altura da carreira do escritor que é fundada a Companhia das Letras. Em 1988, Rubem Fonseca troca a editora Francisco Alves pela Companhia das Letras, tornando-se o primeiro ficcionista brasileiro de prestígio a ser publicado pela nova editora, iniciando uma parceria duradoura. Nesse ano tem a sua primeira obra publicada pela editora, o romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Publicou também pela Companhia três romances históricos, gênero no qual não tinha se aventurado anteriormente: Agosto, de 1990, no qual cria uma investigação policial para a morte de Getúlio Vargas; O 109 selvagem da ópera, de 1994, história baseada na biografia do compositor Carlos Gomes; e, em 2000, O doente Molière, narrativa que faz parte da coleção temática de encomenda Literatura ou Morte, na qual Fonseca é um dos escritores que cumprem com mais fidelidade o que foi pedido, uma história que envolva um escritor canônico do passado numa situação de assassinato. Lançou ainda pela editora a novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, em 1997, e o romance Diário de um fescenino, em 2003. Mas continua a lançar seus livros de contos, que, apesar das vendagens menores, se comparados com os romances, atinge um público bem maior do que a média dos escritores brasileiros. Publicou seis livros inéditos de contos pela editora: Romance negro e outras histórias, em 1992; O buraco na parede, em 1995; Histórias de amor, em 1997; Confraria das espadas, em 1998; Secreções, excreções e desatinos, em 2001; e Pequenas criaturas, em 2002. Ainda em 1994, a editora lançou o volume encadernado em capa dura Contos reunidos, que reunia todos os livros de contos do autor publicados antes de ele entrar na Companhia. Depois da publicação desse volume que funcionava como uma espécie de obra completa até o momento , outros três escritores brasileiros da editora mereceram volumes semelhantes, João Gilberto Noll, Moacyr Scliar e Sérgio Sant Anna, formando um seletíssimo cânone da literatura brasileira contemporânea. A Companhia também reeditou paulatinamente toda a obra de Rubem Fonseca publicada anteriormente por outras editoras. A editora possui, então, no seu catálogo todos os livros de Rubem Fonseca. Apesar disto, as obras do autor nunca mereceram um planejamento gráfico individualizado, apesar do cuidado gráfico com cada um de seus livros. O nome Rubem Fonseca e a marca Companhia das Letras passaram a ficar bastante identificados entre si, e é comum ele escrever prefácios e outros textos sobre autores da editora, bem como é comum outros autores da editora mencionarem a importância de Rubem para as suas obras como colaborador efetivo em agradecimentos nos livros, como é o caso de Jô Soares. O jornalista carioca Carlos Heitor Cony, nascido em 1926, é outro autor que teve sua carreira de escritor de ficção profundamente marcada pela sua relação com a 110 Companhia das Letras. Seus textos ficcionais são uma complexa mistura de memória e ficção, que se manifesta de forma diversa em cada um de seus romances. O primeiro a ser publicado foi O ventre, em 1958. A fase inicial de sua obra comporta ainda, entre outras, Informação ao crucificado, de 1961; Matéria de memória, de 1962; Antes, o verão, de 1964; e Pessach: a travessia, de 1967. Todos esses romances memorialísticos são publicados pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, com quem manteve um contrato de exclusividade, não muito comum na época (www.releituras.com.br/cony_bio.asp). Após a publicação de Pilatos, em 1974, interrompe bruscamente a sua carreira de ficcionista, encerrando o que podemos chamar de sua primeira fase. Nesse período de recesso ficcional continuaria publicando textos jornalísticos, alguns deles em livro. Sua carreira na ficção vai ser retomada em 1995, com a publicação do romance Quase memória, pela Companhia das Letras. Esse romance ganhador de dois prêmios Jabuti, e com grande sucesso de vendas, chegando em 2005 a ultrapassar os 300 mil exemplares vendidos retoma a meada da mistura entre memória e ficção, inaugurando uma prolífica parceria com a nova editora, que resultou em mais quatro novos romances: O piano e a orquestra (1996), a Casa do poeta trágico (1997) ambos com excelente repercussão crítica, evidenciada pela importância dos prêmios recebidos , Romance sem palavras (1999) e A tarde de sua ausência (2003). A Companhia das Letras também reeditou durante a parceria seis romances da fase anterior, proporcionando ao novo leitor de Cony acesso às suas antigas obras, que atingiam o mesmo gosto literário. A publicação e republicação de Cony a partir da década de 1990 é mais um dos inúmeros casos de obras publicadas pela editora que aliam boa repercussão crítica e sucesso de vendas, comprovado pelas inúmeras reimpressões desses livros. O autor é um dos poucos escritores brasileiros publicados pela editora que mereceu uma tentativa de criação de identidade visual própria para a sua obra, que, no entanto, não se estende sistematicamente a todos os livros. Mas a unidade temática de Cony fez com que o lançamento dos seus novos livros ajudasse nas vendas das reedições, que eram encaradas pelo público também como livros inéditos, já que estavam fora das prateleiras das livrarias há muito tempo. 111 No entanto, foi anunciado em 2005 o fim da união entre Cony e a Companhia das Letras. Cony passou a ter a sua obra editada pela Editora Objetiva, pela qual já tinha publicado um livro isolado em 2001, o romance de encomenda O indigitado, que fazia parte da coleção Cinco Dedos de Prosa. Nessa troca efetiva de editora, Cony ainda não publicou, até outubro de 2005, obra inédita; mas já reeditou mais dois romances da sua primeira fase: Tijolo de segurança e Balé Branco. A saída da Companhia mereceu por parte de Cony uma carta divulgada na imprensa na qual explicava o motivo do rompimento. É omitida por Cony qualquer divergência financeira, como se para o escritor isto fosse apenas um detalhe, caracterizando o motivo como apenas de dimensão intelectual e política: o que sempre me incomodou na editora foi sua, digamos, mentalidade uspiana (SILVA, 2005, p. 30). Ou seja, o discurso da denegação do econômico é utilizado dessa vez por outro ator do sistema editorial, que não é mais o editor, mas o escritor. A paulista Zulmira Ribeiro Tavares, pesquisadora e professora de cinema, publicou seu primeiro livro de ficção, Termos de Comparação, em 1974, pela Perspectiva, editora dedicada normalmente a publicações acadêmicas. No ano seguinte, lançou O japonês de olhos redondos por outra editora de perfil semelhante, a Paz e Terra. Com boa recepção crítica desses livros, passou a ser publicada pela Editora Brasiliense, pela qual lançou mais três livros com narrativas ficcionais. Sua obra trata, nas palavras de Manuel da Costa Pinto, da vida agonizante das elites brasileiras, em especial das elites de São Paulo, cidade cujos bairros e espaços públicos são também personagens dos seus contos e romances (PINTO, 2004, p. 99). A repercussão dos seus livros também se limita mais à crítica paulista, que recebe sua obra de modo bastante favorável. Mesmo passando para a Brasiliense, a circulação de sua obra não ultrapassa muito os círculos acadêmicos paulistas. Com a publicação de Jóias de Família, em 1990, passa a priorizar a forma romance, talvez pensando numa expansão do público leitor. Em 1995, começa a ser publicada pela Companhia das Letras, lançando o romance Café pequeno, por onde também lança a coletânea de textos ficcionais Cortejo em abril, em 1998. Em 2004, a editora relança o romance O nome do bispo, publicado inicialmente pela Brasiliense. A presença de Zulmira Tavares na Companhia das Letras tem mais um significado de acúmulo de prestígio 112 literário que repercute no catálogo como um todo do que possibilidades reais de grandes vendas. No entanto, o preciso dimensionamento que a editora faz do seu público, fazendo tiragens de no máximo três mil exemplares, promovendo reimpressões quando for o caso, evita o que realmente traz prejuízo à editora, o encalhe de livros nos seus estoques. Valêncio Xavier, nascido em 1933, é um escritor de ficção com característica rara na literatura brasileira: as suas narrativas misturam texto e imagem, o que levou Décio Pignatari a chamar um de seus livros de romance icônico (apud PINTO, 2004, p. 99). Isto impacta na produção editorial dos seus livros que passa a ter uma característica quase artesanal, o que se adequaria em tese a editoras de menor porte (e mais flexibilidade). Vários de seus livros foram publicados por pequenas editoras de Curitiba nas décadas de 1970 e 1980, com pequenas tiragens, ficando restrito a círculos reduzidos de leitores. Em 1998, publicou pela Companhia das Letras Mez da gripe e outros livros, que reunia várias daquelas narrativas já publicadas anteriormente. O trabalho de extremo cuidado gráfico, realizado pelo autor e pela editora, fez o livro ganhar o prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial de 1999. Em 2001, novamente a parceria realiza outro livro de relevância literária e extrema qualidade gráfica, Minha mãe morrendo e o menino mentindo. A presença do autor no catálogo da Companhia explicita a qualidade técnica que a editora advoga para seus livros. São extremamente inovadores tecnicamente, graficamente, esteticamente e literariamente, segundo especialistas das diversas áreas. Uma editora, que tem canais adequados de distribuição, resolver produzir livros com essas características singulares expande em muito os potenciais leitores dessa obra, que, caso contrário, se destinariam a apenas poucos que fazem parte de uma vanguarda de consumidores de bens culturais. O gaúcho Luis Fernando Verissimo, nascido em 1936, tornou-se a partir da década de 1980 um dos escritores brasileiros mais lido ao lado de Paulo Coelho , principalmente quando publica coletâneas de suas crônicas. Em relação a romances, a sua carreira está marcada principalmente pela produção de volumes de encomenda para coleções temáticas. A partir de uma encomenda para a coleção Plenos Pecados O clube dos anjos, de 1998 a narrativa , passou a ser publicado pela Editora Objetiva, incluindo as 113 coletâneas de crônicas, que anteriormente eram lançadas pela gaúcha L&PM. Verissimo tornou-se na década de 1990 o principal escritor brasileiro do catálogo da Objetiva editora concorrente que disputa com a Companhia a publicação dos principais ficcionistas nacionais. No entanto, a estratégia de encomenda é responsável pela esporádica participação de Verissimo no catálogo da Companhia das Letras. Publicou, em 2000, a novela Borges e os orangotangos eternos, por encomenda da editora para a coleção Literatura ou Morte. No mesmo sistema de encomenda, Verissimo publicou a narrativa A mancha , como parte da obra coletiva Vozes do golpe, lançada em lembrança aos 20 anos do golpe de 1964. As coleções de encomenda acabaram por funcionar como uma oportunidade para escritores como Verissimo publicarem por editoras que não eram aquelas com que mantinham seu contrato principal uma espécie de estágio experimental. O mesmo aconteceu com João Gilberto Noll e Carlos Heitor Cony, que, em sentido inverso ao de Verissimo, publicaram obras de encomenda pela Editora Objetiva, para onde Cony se transferiu definitivamente um tempo depois. O escritor gaúcho Moacyr Scliar, nascido em 1937, publicou as suas primeiras narrativas em livro em 1962, quando ainda era estudante de medicina, profissão que passou a exercer simultaneamente à sua carreira de escritor. Desde esse seminal Histórias de médico em formação até passar a ser publicado pela Companhia das Letras houve uma longa e prolífica trajetória. Após a publicação do primeiro livro obra ainda bastante imatura na sua própria opinião , Scliar só voltou a lançar novo livro em 1968 com a publicação pela editora gaúcha Movimento de O carnaval dos animais, que obteve expressiva repercussão crítica em Porto Alegre. Nas décadas de 1970 e 1980, lançou várias obras ficcionais, consolidando sólido prestígio como romancista e, especialmente, como contista. Suas obras eram lançadas alternadamente em editoras gaúchas L&PM, esta última entrando em franca expansão no final da década como Globo e a e do eixo Rio-São Paulo, como Ática, Global e Guanabara. Com o prestígio literário bastante consolidado, ele publicou em 1989 o seu primeiro livro pela Companhia das Letras, a coletânea de contos A orelha de Van Gogh. Em seguida, passou a dedicar-se especialmente aos romances, tendo 114 publicado até o final de 2005, cinco romances pela editora. O primeiro, lançado em 1992, foi o romance biográfico sobre a vida do sanitarista Oswaldo Cruz, intitulado Sonhos Tropicais, a partir de sugestão/encomenda do próprio editor Luiz Schwarcz, como já vimos. Participou também da coleção de encomenda Literatura ou Morte, escrevendo a narrativa Os Leopardos de Kafka, em 2000, além de publicar outros romances em que não houve situação de encomenda. O escritor também mereceu a publicação, em 1995, de um volume com grande parte dos seus contos publicados anteriormente, intitulado Contos Reunidos. Scliar acabou se tornando um colaborador freqüente da editora, publicando também obras para o público infanto-juvenil e ensaios introdutórios a temas da medicina e da ciência; além de escrever prefácios e introduções a obras de outros autores que também se dedicam à medicina e à ciência tornando-se um verdadeiro colaborador da casa . Scliar é um dos autores em que a parceria com a editora mais marcou a obra ficcional, tanto pela execução de encomendas propriamente ditas, como por direcionar as suas narrativas para nichos de público mais garantido, como o romance histórico. Vale a pena mencionar o escritor e tradutor paulista Modesto Carone, nascido em 1937, pela especificidade da sua ligação com a editora semelhante à de Paulo Henriques Britto, outro escritor/tradutor. Modesto Carone vem se dedicando à tradução da obra de Franz Kafka direto do alemão desde 1984, ainda pela Editora Brasiliense. A partir de 1997, passou a relançar essas traduções pela Companhia das Letras, por onde também lançou as traduções ainda não publicadas. Simultaneamente, desenvolvia uma obra ficcional própria, publicando, entre outros livros, As marcas do real (Paz e Terra, 1979) e Dias melhores (Brasiliense, 1984), obras de pequena tiragem, mas de excelente repercussão na crítica. Em 1998, publica pela Companhia das Letras a narrativa ficcional Resumo de Ana, que atingiu público maior e repercussão crítica ainda mais favorável, tendo recebido o prêmio Jabuti de melhor romance de 1999. A relação entre esse autor e a Companhia explicita um complexo tráfego de valores simbólicos, pagamentos reais, e publicações efetivas: evidentemente a proximidade com a editora por ser tradutor de obra importante literariamente e comercialmente possibilitou a publicação de sua própria obra (de 115 reconhecido valor literário), que de outro modo não garantiria seu ingresso na principal editora brasileira de literatura. Chico Buarque de Holanda, nascido no Rio de Janeiro em 1944, já tinha uma sólida carreira como letrista de música popular brasileira e autor de peças musicais quando começou a se dedicar com mais ênfase ao romance, já na década de 1990, bem depois da sua primeira incursão pela prosa, com a publicação, em 1974, da novela Fazenda Modelo, pela Editora Civilização Brasileira. Nessa sua volta à prosa, passa a ser publicado pela Companhia das Letras, pela qual lançou seus três romances: Estorvo, de 1991, Benjamim, de 1995, e Budapeste, de 2003. Quando começa a publicar pela Companhia, esta já possuía um certo prestígio como editora de literatura. Um novo livro ficcional lançado por ela já recebia uma espécie de chancela que significava se tratar de literatura com alguma qualidade. Ao mesmo tempo, o nome Chico Buarque já era uma garantia de sucesso comercial. No entanto, com a publicação do primeiro romance, mesmo tendo uma ótima vendagem, houve uma certa rejeição inicial da crítica por ser um autor vindo da indústria cultural , do campo da música popular. A partir da publicação de Benjamim, o sucesso de vendas passa a se ancorar em críticas cada vez mais favoráveis. A união sinérgica entre recepção crítica positiva e grandes vendagens chegou a níveis ainda maiores com a publicação de Budapeste, que, em 2003, ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro e, em 2005, ultrapassou os 200 mil exemplares vendidos. O escritor gaúcho João Gilberto Noll, nascido em 1946, começa a sua carreira na ficção ao publicar em 1980 a coletânea de contos O cego e a bailarina, pela Civilização Brasileira. No desenvolver da década de 1980, lança livros por várias editoras de médio e grande porte, como Nova Fronteira, Record, L&PM e Rocco. Termina a década de 1980 como um dos ficcionistas brasileiros de maior prestígio livros como Bandoleiros e Hotel Atlântico graças à publicação de e ao mesmo tempo sem maior identificação com uma editora em particular. Em 1993, publica pela Companhia das Letras o romance Harmada e três anos depois A céu aberto. O prestígio de Noll é transferido para a Companhia, que acelera a sua trajetória para tornar-se a principal editora de ficção do Brasil. Simultaneamente o crescente prestígio da editora também é transferido para Noll, 116 que se consolida como grande autor com a publicação de seus dois romances pela Companhia, que tiveram excelente recepção crítica. Em 1997, a editora publica Romances e contos reunidos, com a sua produção ficcional até aquele momento em mais um de seus volumes dedicados aos grandes autores brasileiros contemporâneos, ao lado de Rubem Fonseca, Sérgio Sant Anna e Moacyr Scliar. Sai da Companhia com o prestígio consolidado e publica em seguida dois livros pela Editora Objetiva: o romance Canoas e Marolas, da coleção Plenos Pecados, e Berkeley em Bellagio. Em 2003 passa a publicar pela Editora Francis, que no ano seguinte muda de nome para W11. Por esta editora de catálogo reduzido, na qual Noll é o autor de maior repercussão, lança o romance Lorde. Outro autor da Companhia das Letras que aparece na listagem elaborada por Manuel da Costa Pinto é Ana Miranda. Ela nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1951, e mora no Rio de Janeiro desde 1969. Iniciou sua vida literária em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Sua estréia na ficção em 1989 já é pela Companhia das Letras, com o romance histórico Boca do Inferno, que reconstituía a Salvador do século XVI para desenvolver uma trama que envolvia o poeta Gregório de Matos e o Padre Antonio Vieira. O sucesso de vendas foi imediato e a autora recebeu o prêmio Jabuti de revelação em 1990. A obra conseguiu ser publicada em diversos países, entre eles Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda. O gênero romance histórico estava bastante revitalizado na década de 1980 graças ao sucesso de O Nome da rosa, de Umberto Eco, criando uma forte demanda no público para esse gênero, o que explica em parte as vendas no Brasil e o interesse de outros países pelo livro de estréia. Segundo Manuel da Costa Pinto, Ana Miranda se encaixa perfeitamente nesse gênero, que associa invenção ficcional ao rigor documental da chamada história das mentalidades (PINTO, 2004, P. 21). Publicou dez livros pela editora, quase todos utilizando a fórmula do romance histórico, com a exceção de dois livros infantis; o romance Sem pecado, de 1993; e a coletânea de contos Noturno, de 1999. Mas é a realização de romances históricos como O retrato do rei (1991), Desmundo (1996) e Dias e dias (2002) que a caracteriza como escritora. A publicação de romances históricos é um elo entre a escritora e a Companhia, já que esse é um dos gêneros que a editora privilegia, como se pode constatar inclusive no 117 redirecionamento que as carreiras de autores como Moacyr Scliar e Rubem Fonseca tiveram para esse gênero quando passaram a integrar o catálogo da Companhia das Letras. O amazonense Milton Hatoum, nascido em 1952, teve a carreira de escritor de ficção iniciada tardiamente, em 1989, com a publicação de Relato de um certo oriente pela Companhia das Letras. O romance de estréia foi muito bem recebido pela crítica e agraciado com o prêmio Jabuti de melhor romance. Nas palavras de Davi Arrigucci Jr., convidado para escrever a orelha do romance, não se resiste ao fascínio dessa prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico: viagem encantatória por meandros de frases longas e límpidas, num ritmo de recorrências e remansos (ARRIGUCCI JR., 1989). Em entrevista concedida ao site Webwriters-Brasil, Hatoum explica o processo de publicação desse seu primeiro livro e a importância de ser publicado pela Companhia das Letras: Eu ganhei uma bolsa VITAE, o que me colocou em contato com o Luiz Schwarcz e a Maria Emilia Bender, editores da Companhia das Letras, que gostaram do manuscrito e acabaram publicando o Relato. [...] Começar com uma ótima editora, a Companhia das Letras, foi fundamental, e com a orelha do livro assinada por um grande crítico, o Davi Arrigucci Jr. Mas tive um pouco de sorte. O livro foi bem recebido pela crítica, ganhou o prêmio Jabuti, foi traduzido para seis línguas e adotado em escolas e universidades... ( http://www.webwritersbrasil.com.br/detalhe.asp?numero=285#1) Seu segundo romance, Dois irmãos, é publicado somente em 2000, recebendo a mesma recepção crítica favorável e ganhando novamente o prêmio Jabuti de melhor romance. A parceria com a editora nesses dois romances pode ter acelerado a consagração de Milton Hatoum como escritor, que se tornou bastante sólida, apesar do pequeno número de obras produzidas. A menção a Hatoum leva à lembrança de outro autor com obra esparsa e de grande prestígio com a crítica precário de Manuel da Costa Pinto no entanto omitida no cânone que é publicada pela Companhia das Letras, Raduan Nassar. Não nos deteremos em Nassar por ele não estar na relação que adotamos e por sua 118 obra praticamente inteira ter sido publicada por outras editoras antes de entrar no catálogo da Companhia. O carioca Paulo Lins, nascido em 1958, é autor de somente uma obra literária, pelo menos até o final de 2005. O romance Cidade de Deus, publicado em 1997 pela Companhia das Letras e relançado por ela mesma em 2002, sinalizou a existência de uma produção literária realizada por escritores que efetivamente conviviam com a violência das grandes cidades brasileiras, como moradores de favelas, presidiários e ex-detentos. Com o seu romance, que oscila entre o testemunhal e o ficcional, Paulo Lins ilumina esse tipo de literatura, mas ele próprio não representa um tipo social de autor radicalmente diferente, devido ao seu vínculo precoce com a academia e o sistema literário, características bem diferentes das de outros autores que convivem com a violência e a miséria, como o paulista Ferrez e o ex-detento Humberto Rodrigues. A publicação de Cidade de Deus só foi possível graças à mediação de um terceiro, o crítico paulista Roberto Schwarz. Uma bolsa da Fundação Vitae também concorreu para que o escritor finalizasse sua obra. O depoimento de Paulo Lins, em entrevista à revista Caros Amigos, ao responder se procurou ou foi procurado por uma editora, é bastante revelador das mediações necessárias para a publicação de um autor inédito por uma editora de peso como a Companhia das Letras, e da história singular de um grande sucesso literário e cultural: Fui procurado. Na verdade é o seguinte: eu militava na poesia, nunca tinha pensado em escrever um romance. Aí, conheci uma garota (...) que trabalhava com a Alba Zaluar, que desenvolvia um projeto chamado Crime e criminalidade nas classes populares . Então tinha que entrevistar bandido, daí o pessoal: Chama o Paulo Lins. Universitário que conhece bandido, né? Eu já estava a fim da menina e entrei. Acabou que fiquei e ela também dez anos trabalhando com a Alba. Eu não pensava em escrever um romance, fui mais por amor à pesquisa. Para ajudar a Alba Zaluar a desenvolver um projeto de antropologia sobre a favela, porque eu tinha acesso ao pessoal da malandragem, eram todos meus amigos e da minha idade. E comecei a entrevistar e ela querendo que eu escrevesse antropologia, sociologia, isso eu não escrevo. Não sou sociólogo nem antropólogo. Eu disse: Posso fazer um poema. E ela: Ah, então faz um poema, escreve alguma coisa sobre a sua vida . Fiz um poema, demorei três meses para fazer, e ela mostrou ao Roberto Schwarz, aqui em São Paulo. Ele 119 ligou para mim, fiquei todo contente, pô, o Roberto ligou pra mim , era um crítico, eu estava na faculdade, já tinha lido quase a obra toda dele, na faculdade você é obrigado a ler o Roberto. E ele perguntou: Permite publicar o poema na revista do CEBRAP? Publicou o poema e deu o aval pra eu escrever um romance. Aí minha vida complicou. (LINS, 2003, p. 31) Com o apadrinhamento do acadêmico paulista, a primeira obra de Paulo Lins foi publicada diretamente pela Companhia das Letras, sem antes passar pelo teste das editoras menores. Com o lançamento do romance, o próprio Roberto Schwarz lhe dedicou um artigo altamente positivo, que foi publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, de 7 de setembro de 1997, no qual afirmava que o interesse explosivo do assunto, o tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente, tudo contribuiu para a aventura artística fora do comum (SCHWARZ, 1997). Saudada por grande parte da crítica que acompanha o juízo de Roberto Schwarz como obra importante e original, a primeira edição, com cerca de 550 páginas, esgotou seus 14 mil exemplares. Com a transposição da obra para o cinema, e a possibilidade de atingir um público maior, foi produzida uma nova edição, com várias modificações, deixando o texto com uma leitura mais rápida, diminuindo inclusive o número de páginas para 400. As diversas reimpressões da edição revista já tinham vendido mais de 50 mil exemplares até o final de 2004, segundo dados da editora. Essa singela história é extremamente reveladora moral sem nenhum juízo das múltiplas mediações e influências que o mundo acadêmico pode trazer sobre a produção cultural e o mercado editorial e cinematográfico, influindo de forma diversa na produção e consumo, transformando letras em lucro. Bernardo Carvalho, nascido em 1960, no Rio de Janeiro, tornou-se jornalista do jornal Folha de São Paulo na década de 1980, no qual editou o suplemento literário Folhetim e foi correspondente em Paris e Nova York. A sua notoriedade como jornalista foi o passaporte para publicar, em 1993, pela Companhia das Letras, seu primeiro livro, a coletânea de contos intitulada Aberração. Continuou sempre publicando pela editora, lançando quatro romances na década de 1990: Onze, Os bêbados e os sonâmbulos, Teatro e As iniciais. A década viu a consolidação do prestígio de escritor simultaneamente à consolidação da Companhia das Letras como a editora de referência para a ficção 120 brasileira. Em tese, Bernardo Carvalho poderia ser considerado pertencente à chamada geração 90, mas sempre se posicionou como antagonista dessa marca criada pelo escritor Nelson Oliveira. Em 2000, publica o romance Medo de Sade pela coleção temática Literatura ou Morte, sendo o escritor que mais subverteu, em certo aspecto, a encomenda original, como veremos no próximo capítulo. Em 2002 e 2003, publicou respectivamente Nove Noites e Mongólia, seus livros mais premiados, de maior repercussão junto à crítica, e dos mais vendidos, junto com Medo de Sade. Mongólia também se originou de uma espécie de encomenda feita pela editora portuguesa Cotovia, que, juntamente com a Fundação Oriente, concedeu uma bolsa para o escritor realizar uma viagem a um país do oriente, no caso a Mongólia, e produzir um romance. Essa bolsa é concedida anualmente e Bernardo foi o primeiro escritor não-português a recebê-la. No Brasil, Mongólia foi publicado pela Companhia, como todos os outros livros de Bernardo. Esses dois últimos livros consagram definitivamente Bernardo Carvalho como o principal escritor brasileiro em atividade que começou a escrever a partir da década de 1990. Consagração essa, como já mencionamos, profundamente imbrincada com a consagração da editora que o publica no Brasil. Nelson Oliveira, nascido no interior de São Paulo, em 1966, é um dos principais representantes e divulgadores da chamada Geração 90, expressão que ele mesmo criou para designar um grupo de escritores que iniciaram as suas carreiras literárias na década de 1990. Os escritores mais associados a essa marca são na maioria das vezes pertencentes à chamada cena paulista e tiveram pelo menos inicialmente seus textos publicados em livros por editoras de menor porte. Paradoxalmente, Nelson Oliveira teve seu primeiro livro de ficção para adultos, Naquela época tínhamos um gato, publicado pela Companhia das Letras, em 1998. Mas seu livro seguinte, a coleção de contos Treze, foi publicado em 1999 pela minúscula editora Ciência do Acidente com repercussão muito maior, revelando que mais importante do que o porte da editora é a sua adequação ao público a que se destina. Volta mais uma vez à Companhia em 2000, por onde publica, com recepção crítica positiva, o romance Subsolo infinito. Mas a união é novamente efêmera: publica em 2001 o livro de contos O filho do crucificado pela Ateliê Editorial. Essa constante movimentação entre editoras de portes diversos é altamente reveladora de uma 121 busca, por parte de um escritor em desenvolvimento, do seu público real e de sua inserção possível no mercado editorial. Usaremos agora uma lente de capacidade maior do que a usada até o momento para descrevermos com mais detalhes a relação do escritor Sérgio Sant Anna com as editoras pelas quais publicou e o papel que a Companhia das Letras teve na sua carreira literária. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1941, começando a escrever ficção ainda na década de 1960 quando morava em Belo Horizonte e era estudante de Direito. Em 1967 e 1968, publica seus primeiros contos na revista Estória, fundada por Luiz Vilela, na qual cada escritor arcava com uma parte dos custos de publicação. Em 1968, tem o conto Lassidão publicado em edição especial do Suplemento Literário do Minas Gerais fundado por Murilo Rubião em 1966 dedicada aos novos escritores mineiros. É o começo tradicional de escritores na década de 1960, a publicação de contos em revistas e suplementos literários. A sua carreira segue como se cumprisse um roteiro predefinido e compartilhado por diversos escritores de sua geração. Em 1969, quando já tinha cerca de 12 contos escritos, parte para a publicação do primeiro livro, O sobrevivente. Sérgio bancou os custos de produção, com ajuda financeira dos familiares o próprio desenho da capa foi executado por sua mulher. Os mil exemplares impressos na primeira edição saíram com o selo da revista Estória. Apesar da precariedade da produção, a repercussão desse primeiro livro foi bastante positiva, segundo o próprio autor, e proporcionou a oportunidade de receber uma bolsa de estudos para escritores, o International Writing Program, da Universidade de Iowa, em que participou entre 1970 e 1971. Essa bolsa foi de fundamental importância para a sua formação como escritor: Lá convivi com escritores do mundo inteiro, mais velhos do que eu. E mais do que isso, tínhamos contato na universidade com o pessoal de artes plásticas, teatro, cinema e da própria literatura. [...] Isto provocou uma transformação muito grande na minha literatura. Dei um salto, que, quando comecei a escrever de novo no Brasil, vi que eu não tinha mais amadorismo, já era um profissional. 122 Quando volta ao Brasil, escrevendo com mais constância, Sérgio Sant Anna em pouco tempo já tinha prontos os contos que seriam publicados no livro Notas de Manfredo Rangel, repórter. Começou então a procurar uma editora interessada em publicar seu livro. Após algumas tentativas infrutíferas, o compositor Edu Lobo, seu conhecido do ambiente boêmio de Belo Horizonte, propôs a ele que levasse o livro ao editor Ênio Silveira no Rio de Janeiro. Foram os dois ao Rio e levaram os originais a Ênio, que ficou de entrar em contato posteriormente. A resposta de aceite do livro pela Civilização Brasileira demorou cerca de um ano, já demonstrando futuras dificuldades profissionais que o autor teria nessa relação: Eu já tinha até desistido da Civilização. No entanto, um ano depois chegou uma carta, dizendo que ele gostava muito do livro e queria publicá-lo. Para ser sincero, disse que eu era dos quatro ou cinco melhores artistas do conto brasileiro. Ainda jogou este confete sobre mim. A única mudança exigida para a publicação era a troca do título, que na época ainda era O espetáculo não pode parar , título de outro dos contos. E eu aceitei, era um pedido mínimo. Esse seu segundo livro, respaldado por uma editora de prestígio, teve uma excelente repercussão na crítica, mas não conseguiu atingir grandes vendagens, graças, segundo o autor, aos crônicos problemas administrativos da editora. A publicação de Notas de Manfredo Rangel, repórter, em 1973, foi a primeira das quatro obras de Sérgio Sant Anna que saíram pela Civilização Brasileira. As outras foram os romances Confissões de Ralfo, de 1975, Simulacros, de 1977, e Um Romance de geração, de 1981. Na nossa entrevista, ao ser indagado sobre as vantagens de ser publicado pela principal editora literária da época, ele realça a tensão, e também as vantagens, que obteve na relação que manteve com Ênio: A minha relação com o Ênio Silveira era cheia de atritos. A grande vantagem era que ele aceitava tudo o que eu fazia. E eram coisas bastante 123 loucas, como Confissões de Ralfo, Simulacros e Um romance de geração, que eu não sei se outro editor aceitaria. Eu podia fazer a experiência literária que eu quisesse que ele publicava. Por outro lado, dava em mim uma imensa frustração: a de publicar por uma editora profissional, mas os livros não chegarem às livrarias, o pagamento dos direitos não apareciam, enfim uma desorganização total. Outro problema era a demora para o livro ser publicado. A relação comercial entre Sérgio Sant Anna e Ênio Silveira acabou terminando com um desentendimento sobre os prazos de publicação de um novo livro de contos, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, que acabou não sendo publicado pela Civilização Brasileira. A parceria com Ênio, como aponta o próprio autor, trouxe pontos positivos e negativos para a sua carreira. Por um lado, proporcionou a associação de seu nome ao de uma editora de prestígio, o que facilitava a recepção dos seus livros junto à crítica, já predisposta a olhar a ficção publicada por Ênio com mais cuidado. E sua ficção efetivamente correspondia às expectativas criadas. Sérgio pôde levar as suas experiências literárias às últimas conseqüências e com a chancela de uma editora como a Civilização Brasileira seus experimentalismos com misturas de gêneros não eram questionados ou modificados. Acabou saindo dessa relação com o seu prestígio consolidado e identificado como um autor literário de extrema criatividade. Por outro lado, as falhas de gestão da editora não proporcionava nem uma contrapartida financeira razoável pelo trabalho de escritor nem atingia os potenciais leitores de seus livros. Quase todas as edições eram de dois ou três mil exemplares, que acabavam acarretando em encalhe significativo. Como exemplo do potencial que seus livros tinham na época, Sérgio menciona que o Círculo do Livro fez uma edição de seis mil exemplares de Simulacros, que chegaram efetivamente aos leitores. Neste momento, vale a pena mencionar que partimos da premissa que escritor precisa de leitores, ou seja, de público. A preocupação de Sérgio Sant Anna em relação à venda e ao consumo dos seus livros não é espúria, pelo contrário, é necessária. As outras opções são deixar de escrever ou criar poemas para o deleite de amigos e familiares. Para explicitarmos nosso pensamento sobre a questão, vamos recorrer a Antonio Candido, 124 que no seminal ensaio Literatura e sociedade, de 1965, coloca de forma precisa a dependência do escritor em relação ao público: [...] Por isto, todo escritor depende do público. E quando afirma desprezá-lo, bastando-lhe o colóquio com os sonhos e a satisfação dada pelo próprio ato criador, está, na verdade, rejeitando determinado tipo de leitor insatisfatório, reservando-se para o leitor ideal em que a obra encontrará verdadeira ressonância. Tanto assim que a ausência ou presença da reação do público, a sua intensidade e qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de um artista. (CANDIDO, 2000, p. 76) Voltando à carreira de escritor de Sérgio Sant Anna, o reencontramos no início da década de 1980, recém-saído da Civilização Brasileira, sem editora para O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. Mas o livro acaba sendo publicado logo em 1982, pela Editora Ática, a maior editora brasileira da época, mas que tinha como foco principal o livro didático e a venda direta às escolas. A experiência com a nova editora também não satisfez as necessidades do autor. Apesar de uma relação mais profissional em relação à prestação de contas, seus livros ainda não conseguiam atingir minimamente os seus possíveis leitores, provavelmente pela falta de experiência da editora na comercialização da ficção fora do mercado educacional. Soma-se a isto à pouca qualidade gráfica do livro editado, e conseguimos o mesmo nível de insatisfação do autor com a editora anterior. Mas, mesmo assim, esse livro foi extremamente bem recebido pela crítica, sendo considerado por grande parte dela como sinal de amadurecimento literário do autor. Em 1986, publicou Amazona pela Nova Fronteira, seu livro menos elogiado pela crítica. A editora, que em 1985 era a sexta editora brasileira em número de títulos lançados, também não manteve uma relação satisfatória com Sérgio, recusando a publicação de seu livro seguinte, que era tão experimental quanto os que eram publicados pela Civilização. A tragédia brasileira texto de grande dificuldade para a realização da atividade editorial por misturar romance e teatro acabou sendo publicada em 1987 pela Editora Guanabara, que nessa época era comandada por Pedro Paulo Sena Madureira. Ele fez a Guanabara expandir seu catálogo para incluir a ficção brasileira de qualidade, 125 tornando a editora mais uma opção possível para autores como Sérgio Sant Anna. No entanto, a Guanabara ainda era pouco profissional no relacionamento com o escritor e deixava bastante a desejar para Sérgio em relação à produção gráfica ( capas horrorosas ) e à distribuição ( os livros não chegavam às livrarias ). Pouco tempo depois o editor saiu da Guanabara e a editora deixou de publicar ficção. Nesse momento de finais da década de 1980, Sérgio Sant Anna era um autor cuja qualidade da obra apontava para um profissionalismo que, no entanto, não era encontrado na relação que mantinha com os editores. A continuidade da carreira de escritor, que não lhe dava retorno financeiro, só foi possível porque ele ganhava seu sustento desde a década de 1970 como professor universitário e funcionário público do Poder Judiciário. A carreira de escritor para Sérgio Sant Anna, apesar da qualidade dos textos e a positiva recepção crítica, era complementar em relação às suas atividades profissionais como um todo. Ele tem uma situação híbrida, por um lado é o antigo escritor funcionário público , com uma situação econômica que o faz ser independente aos seus ganhos com literatura, por outro lado é um autor para o qual a relação de escritor com mercado é um tema recorrente. A professora Terezinha Barbieri, no livro Ficção impura, ao analisar a prosa brasileira das três últimas décadas do século XX, observa que vários escritores desse período começam a constatar que a literatura é também um produto e que o escritor faz parte de um sistema produtivo. Para ela, um dos autores que desvela as tensões entre produtor/mercado e, mais especificamente, entre escritor/editor, é Sérgio Sant Anna, tanto por seus depoimentos como por vários dos seus textos ficcionais, sendo o que trata do tema de modo mais direto é o conto O duelo : No tempo em que conceitos que o aureolavam entram em profunda crise e seu tradicional prestígio, em declínio, a mercadoria que produz fica intensamente afetada: o livro e o escritor mesmo, postos à venda, são mercadologicamente dimensionados em função de seu valor de troca. É então que escrever significa entrar na disputa de um lugar no mercado independentemente da vontade explícita do autor. Só que agora é quase impossível ele não tomar conhecimento da rede em que seu trabalho se emaranha. Sintomaticamente Sérgio Sant Anna intitulou O duelo o conto 126 em que tematiza a discussão do editor com seu escritor. (BARBIERI, 2003, p. 30) O duelo só será publicado em 1989, no livro A senhorita Simpson, mas se refere, segundo Sérgio, às suas relações com as editoras até meados da década de 1980 sendo o personagem do editor inspirado em Pedro Paulo Sena Madureira. O conto encena encontros, ou duelos, entre um escritor ainda iniciante, que busca publicar seu romance, e um editor, que nunca o publicará. A narrativa se desenvolve em torno dos encontros em que o editor faz inúmeras críticas e sugestões para que o romance Ifigênia possa ser publicado. A relação tensa e improdutiva se encaminha para um final em que Ifigênia permanece íntegro, mas sem publicação. No final catártico, o escritor, de tanto ver sua obra tratada como uma mercadoria barata, com sua possível qualidade como mercadoria ignorada, joga ao final do último encontro entre os dois o editor numa lata de lixo do MacDonald s. Mas Ifigênia nunca chegará aos leitores. Em 1988, com o livro de contos A senhorita Simpson praticamente pronto, Sérgio Sant Anna está sem qualquer relação profissional com editora ou editores aqueles com quem já manteve relação estão enterrados em latas de lixo imaginárias. Resolveu, então, procurar a Companhia das Letras que naquele momento começava a publicar ficção brasileira , oferecendo o seu novo livro para publicação. Sérgio Sant Anna conta como foi o início da relação com Luiz Schwarcz, indício de uma interlocução bem diferente das que mantinha com os responsáveis pelas editoras nas quais publicou até o momento: Eu nunca tinha tido um contato maior com o Luiz Schwarcz, apenas nos cumprimentamos em algumas feiras do livro. Mas ele já tinha mencionado em entrevistas que gostava dos meus livros. [...] Escrevi uma carta falando do novo livro e perguntei se ele estava interessado. Aí eu comecei a ver quem era o Luiz. Em menos de uma semana já tinha a carta de resposta: quero ver o livro sim. Botei o livro no correio, em mais uma semana ele me telefonou: quero publicar o livro. Era outra história. O livro ficou muito bem feito, a capa ficou muito bonita. A mais bonita de todos os meus livros. 127 O cuidado com a produção gráfica desse seu primeiro livro na editora surpreendeu o autor. O capista escolhido pela editora foi João Baptista Aguiar. Inspirado pela personagem Senhorita Simpson, que era uma professora, o artista gráfico criou para a capa, entre outros elementos, uma etiqueta com o nome do autor e do livro. O sucesso dessa capa levou a figura da etiqueta para quase todos os seus livros que foram publicados, tornando-se um dos poucos escritores brasileiros publicados pela Companhia a terem uma concepção gráfica especial para todos os seus livros, como podemos ver na capa do último livro (figura 9). Mas a produção de A senhorita Simpson, que acabou sendo lançado em 1989, revelou outras surpresas para Sérgio, especialmente em relação ao cuidado e intromissão da editora no texto, o oposto do procedimento que experimentou com a Civilização Brasileira: A Companhia, além do editor, o Schwarcz, tem uma equipe de editores da casa. Elas, quase todas mulheres, fazem uma leitura fina. Se por acaso queriam sugerir uma mudança, conversavam comigo. Alterações no texto, uma palavra, uma vírgula, tudo é discutido. O que eu acho muito bom. Acho que é do papel do editor isto. Principalmente se tem competência. Em relação ao próprio Luiz Schwarcz, Sérgio Sant Anna testemunhou também que ele lê o livro inteiro e faz sugestões: ele recebe o livro, faz uma primeira leitura, e encaminha o livro com as suas sugestões para uma das editoras . No A senhorita Simpson, as sugestões dele foram muitas; no entanto, Sérgio Sant Anna constatou que, com o passar do tempo e o crescimento da editora, essa leitura intensa e pessoal de cada livro pelo próprio Schwarcz ficou comprometida. No seu discurso, Sérgio Sant Anna parece não se incomodar com interferências, que podem ir de troca de palavras à reescritura de páginas inteiras, sentindose até mais seguro com a leitura prévia antes da chegada ao leitor. Sant Anna, inclusive, diz aceitar a maioria das sugestões. Não podemos nos esquecer que estamos falando de um autor de uma prosa literária criativa e não de um autor mais comercial . Nesse caso, 128 mesmo um autor difícil não se incomoda com a queda da incolumidade do seu texto, que a interferência da editora pode permitir. O sucesso de crítica de A Senhorita Simpson foi imenso, acompanhado por um sucesso de vendas, possibilitado, agora, pela boa capacidade de divulgação e distribuição da editora. A primeira edição esgotou-se rapidamente, e foram feitas várias reedições e reimpressões. A mudança para a nova editora, implicando uma relação mais profissional, não fez o autor migrar do conto para o romance, o que aconteceu com outros escritores, inclusive da própria Companhia das Letras, como vimos anteriormente. Mas, mesmo sem deixar o universo dos contos, os seus dois livros seguintes são compostos de narrativas de tamanho maior cada uma, muitas delas com o tamanho intermediário entre conto e novela: logo, em 1991, publica Breve História do Espírito, com três dessas narrativas de tamanho intermediário e, em 1994, publica O monstro, com outras três. O sucesso de crítica e vendas não foi tão grande nesses dois livros quanto no de estréia, mas os dois tipos de sucesso estavam sintonizados. O sucesso de crítica passou a ser uma variável que impactava nas vendas, talvez porque a Companhia das Letras conseguisse fazer chegar o livro a um público suscetível, identificado com os comentários da crítica literária. O primeiro não foi tão bem aceito pela crítica e vendeu menos. O segundo, bem mais valorizado por ela, conseguiu melhores índices de vendas. Em 1997, a Companhia das Letras dedica a Sérgio Sant Anna um volume de capa dura com todos os seus contos e novelas publicados em livro até o momento, incluindo os que foram publicados antes e durante a sua parceria com a Companhia das Letras, intitulado Contos e novelas reunidos. O volume reproduz os contos e novelas de seis livros anteriores e inclui quatro contos inéditos. A editora vem produzindo esses volumes com os textos curtos dos principais ficcionistas brasileiros contemporâneos que fazem parte do catálogo da editora desde 1994, quando publicou o volume Contos reunidos, de Rubem Fonseca. Também já foram publicados volumes dedicados à obra de Moacyr Scliar e João Gilberto Noll. Os quatro autores publicados acabam formando um seleto cânone de ficcionistas brasileiros que produzem textos curtos. Ao publicar esses volumes, a editora reitera que esses escritores se equivalem e tem uma obra acumulada que 129 já pode ser vista como clássica no universo da literatura contemporânea. A publicação dessas obras tem a nítida intenção de chancelar esses autores como grandes autores, e, por conseguinte, a Companhia das Letras como a principal editora brasileira de literatura. O mesmo mecanismo se repetirá na coleção Literatura ou Morte, como veremos no próximo capítulo. Sérgio Sant Anna, durante a preparação do volume, resolveu deixar de fora alguns contos que tinham sido publicados em livro, mas que 1997 segundo o seu padrão de não tinham o mesmo nível de qualidade dos seus outros textos. Como a responsabilidade pelo corte dos contos foi do próprio escritor, ele acabou funcionando como um editor de si mesmo. Sérgio Sant Anna, ao ser indagado quais contos cortou, faz o relato dessa seleção, apontando um modo crítico pelo qual o escritor lê e reconhece a sua própria obra: Cortei do Sobrevivente mais da metade do livro. Cortei alguns poucos contos do Manfredo Rangel e do Concerto de João Gilberto. Dos contos e novelas que já publiquei pela Companhia das Letras, eu não cortei nenhum. O que eu publiquei lá já estava num nível que não merecia cortes. Pesquisa interessante poderia ser verificar quais contos ele efetivamente cortou para a publicação do Contos e novelas reunidos e analisar as características desses textos renegados para entendermos como o escritor avalia a sua produção e a possibilidade de êxito da sua republicação. No entanto, essa investigação minuciosa não cabe no escopo da presente tese. Contos e novelas reunidos vendeu, segundo Sérgio, mais de dois mil exemplares, o que para um livro de alto custo para seu consumidor final, cerca de R$ 80,00 em 2005, é um número bastante expressivo. Vale observar que mais importante do que a vendagem em si é o prestígio que esse tipo de livro acaba trazendo ao escritor e ao próprio catálogo da editora. Simultaneamente ao Contos e novelas reunidos, Sérgio Sant Anna lança pela própria Companhia o romance Crime delicado, que acabou se tornando o seu livro de maior 130 vendagem. Romance muito bem recebido pela crítica de 1998 tendo conquistado o prêmio Jabuti , discute a produção da arte e a crítica artística numa trama policial com elementos eróticos, unindo os gostos de um público acadêmico e de outro mais popular. Mas a explicação que Sérgio encontra para a sua boa vendagem é o fato do livro se tratar de um romance, que teria um potencial de vendas bem maior do que uma coletânea de textos curtos. Somente seis anos depois, em 2003, lança seu livro seguinte, a coletânea de contos O vôo da madrugada. São 16 contos que oscilam entre o autobiográfico e o ensaístico. Algumas vezes envereda pela metaliteratura nefandos, abstratos e obscuros ao se desafiar a produzir contos e por um experimentalismo radical, como nos últimos contos, nos quais se propõe a traduzir o que é pictórico para a palavra. O livro foi premiado pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo e até o final de 2005 já tinha superado a marca de quatro mil exemplares vendidos. A última obra de Sérgio Sant Anna publicada pela Companhia, antes da conclusão desta tese, foi a reedição da Tragédia Brasileira, em 2005. Segundo Sérgio, seus outros romances publicados antes do ingresso na editora ainda serão republicados. Os contos lançados anteriormente já estão disponíveis em edição da Companhia desde a publicação de Contos e novelas reunidos. Publicando pela Companhia das Letras desde 1989, a avaliação que Sérgio Sant Anna faz da sua relação com a editora é extremamente positiva. Para ele, o nível de profissionalização e confiança que há entre eles é de extrema importância para a consolidação da sua carreira de escritor: Na minha carreira houve duas fases: uma antes outra depois da Companhia das Letras. Ela me profissionalizou. Não que eu viva de literatura. O tipo de livro que escrevo vende em média cinco mil exemplares. Vende sempre, mas com limites de quantidade. Não tenho nenhum livro da Companhia que foi retirado de catálogo, o que acontecia nas outras editoras. E tem mais. De três em três meses chega religiosamente a prestação de contas e o pagamento dos direitos. São coisas fundamentais para a relação do escritor com o editor. Eu não estava acostumado com isto e isto é o que deveria ser o normal. E o Luiz é um editor de alto nível ele é respeitado no mundo inteiro. Em todo lugar do mundo em que ele chega, sabem que estão tratando com um editor 131 sério. Existe um cheiro de primeiro mundo lá. (...) Se for olhar a edição anterior da Tragédia brasileira feita pela Guanabara e a atual feita pela Companhia, chego á conclusão que a atual é a primeira edição real. Pela sua declaração, fica claro que Sérgio valoriza bastante a relação profissional que mantém com a Companhia e o trabalho que ela realiza na edição de seus livros. Mesmo não vivendo exclusivamente dos seus ganhos de literatura, Sérgio busca uma remuneração digna para o seu trabalho de escritor, e espera que a sua editora consiga levar seus livros que já têm um público potencial reduzido a atingir o maior número de leitores possíveis. A parceria com a Companhia parece ter dado a ele uma tranqüilidade maior para produzir seus textos, sem precisar tomar para si a responsabilidade por detalhes de produção e distribuição, como por vezes acontecia nas outras editoras. Por outro lado, Luiz Schwarcz parece entender as especificidades da ficção de Sérgio, tanto que não faz a ele propostas de encomendas efetivas de textos ficcionais, nem mesmo sugere temas procedimento comum do editor com autores publicados pela Companhia. A permanência durante vários anos de Sérgio Sant Anna na Companhia das Letras consolida o prestígio de ambos, que são mutuamente contaminados pelo prestígio e pela qualidade do outro no desempenho de suas tarefas. 2.5. Uma Análise da Companhia Após examinarmos a sua formação, as características do seu catálogo, os discursos de seu editor e a relação com os escritores de ficção que publica, poderemos fazer 132 uma análise do papel que a Companhia das Letras exerce na cultura e na literatura brasileira contemporânea. Este subcapítulo terá, então, a função de consolidar os resultados do nosso estudo de caso obtidos até o momento e avançar nas análises desses resultados. A diferenciação inicial e fundamental da Companhia das Letras em relação às antecessoras no cenário editorial brasileiro culturais e ao próprio ethos das empresas artísticas e é uma assumida proposta de editar e comercializar prioritariamente livros de qualidade e ao mesmo tempo conseguir uma boa margem de lucro com isso. Esse tipo de proposta afasta a editora do modelo de denegação do econômico por abarcar o comercial como algo positivo. O comercial e o lucro não é para ela algo que deva ser afastado, mas algo que programaticamente faz parte do seu objetivo e do discurso de seu editorproprietário. Ela possui o termo companhia, que remete a negócio e a lucro, embutido no seu próprio nome, um sinal do qual não pode fugir nem negar; uma verdadeira marca de nascença, adquirida na sua própria gestação. No desenrolar de seus quase 20 anos de história, podemos constatar que esse sucesso comercial foi atingido plenamente se compararmos com outras editoras brasileiras do mesmo período. Isso fica patente quando observamos a evolução do seu lucro anual, o número de títulos publicados e a quantidade de empregados e colaboradores que passam a trabalhar para ela. Por outro lado, é preciso que se diga que, num primeiro olhar, o seu discurso de pretender produzir apenas livros de qualidade poderia aproximá-la do discurso da denegação do econômico, já que nesse universo a produção de bens de alto valor cultural faz parte do discurso central. Mas a impura aproximação entre valor literário e lucro, entre a companhia e as letras, traz à bandeira de produzir livros de qualidade outra dimensão: a de ser característica central do negócio específico da Companhia das Letras; o que no jargão atual do mundo dos negócios é chamado de missão empresarial. Não precisamos decidir entre essas duas hipóteses, apenas constatar que produzir livro de qualidade é parte central do discurso da editora. Para sabermos se consegue fazer isso, analisaremos mais cuidadosamente os dados já relatados nos outros subcapítulos. Ao examinarmos o seu catálogo, observamos que muitas obras têm elevado valor simbólico junto à crítica especializada, característica que era ainda mais forte nos 133 primeiros anos de vida da editora. Publica sistematicamente livros de autores que possuem prestígio consolidado como escritores, pensadores ou especialistas em determinados temas. Por outro lado, é facilmente constatado que ela evita radicalmente obras que têm menos prestígio acadêmico e não atingem as exigências do gosto de uma elite intelectual, como livros religiosos, manuais de auto-ajuda, romances açucarados, ou filões de moda passageira. Autores místicos, extremamente didáticos, ou especializados em tramas demasiadamente popularescas dificilmente serão publicados pela Companhia, a não ser que proponham releituras das tradições que representam. Na verdade, o mecanismo inicial de produzir livros de qualidade forneceu tamanho prestígio à editora que, com a sua consolidação como produtora de bens de elevado valor simbólico, passou a funcionar como garantia de valor para os livros que viabilizava, e aos seus respectivos autores. Mansamente, os sinais passam a se inverter, e mais importante do que observarmos que ela publica livros de qualidade é sermos surpreendidos ao constatarmos que, em determinado estágio da sua trajetória, os livros passam a ter qualidade ao serem publicados especificamente pela Companhia das Letras. Inicialmente o autor dá prestígio à editora. Mas, com a consolidação do seu prestígio, é ela que passa a dar prestígio ao autor e à sua obra. Bourdieu, ao falar de empresários culturais de sucesso também constata que o sentido da valorização simbólica pode correr da empresa para a obra: Sua autoridade é, por si só, um valor fiduciário existente não só na relação com o campo da produção em seu conjunto, ou seja, com os pintores ou escritores que fazem parte de sua escuderia um editor, conforme dizia um deles, é seu catálogo e com aqueles que estão fora e gostariam ou não de fazer parte dela, mas também com os outros marchands ou editores que manifestam mais ou menos claramente a cobiça por seus autores ou escritores, além de terem maior ou menor capacidade para açambarcá-los; na relação com os críticos, que se fiam em menor grau em seu julgamento, falam de seus produtos com maior ou menor respeito; na relação com os clientes, que têm uma percepção mais ou menos nítida da sua marca e depositam nele um maior ou menor grau de confiança. Esta autoridade não é outra coisa senão um crédito junto a um conjunto de agentes que constituem 134 relações tanto mais preciosas quanto for o crédito de que eles próprios se beneficiam. (BOURDIEU, 2004, p. 24) Esse papel de consagrador ocupado pelo editor vale para obras nãoficcionais, como o ensaio acadêmico, apesar de nesses casos existirem outros parâmetros para se medir o valor dessas obras, como a própria opinião dos especialistas nos campos do saber de que trata a obra, ligados quase sempre às instituições acadêmicas. Na poesia e na ficção, em que o papel da crítica é muito mais subjetivo, a marca da editora é muito mais determinante para o estabelecimento do valor literário da obra. Vivemos em tempos nos quais o papel da crítica diminui e o poder da marca da editora aumenta. Mas mesmo uma crítica literária e cultural ativa não possuiria autonomia completa em relação à empresa editorial, muito menos desinteresse, como observa Bourdieu ao falar das relações entre a crítica e a empresa artística de uma foram genérica: É por demais evidente que os críticos colaboram também com o comerciante de arte no trabalho de consagração que faz a reputação e pelo menos, a prazo o valor monetário das obras: ao descobrirem os novos talentos , eles orientam a escolha dos vendedores e compradores por seus escritos ou conselhos (eles são, muitas vezes, leitores ou diretores de coleções nas editoras ou autores de prefácios, contratados pelas galerias), por seus veredictos que, apesar de pretenderem ser puramente estéticos, são acompanhados por consideráveis efeitos econômicos (júris). (BOURDIEU, 2004, p. 24) O comentário de Bourdieu nos remete à lembrança de que uma das características mais marcantes da editora, e ao mesmo tempo uma das mais atacadas pelos seus concorrentes, é seu modo ostensivo de interagir com a crítica e com os meios de comunicação que divulgam livros, literatura e cultura como um todo. A Companhia das Letras continuamente cria fatos culturais e produz material de divulgação de alta qualidade (incluindo resenhas e críticas de seus livros produzidas pelos inúmeros intelectuais com que mantém relações) que lhe garante espaço gratuito nos veículos especializados. Essa presença maciça nos espaços dedicados à cultura na imprensa especializada é uma marca da 135 editora desde a sua fundação, como no já citado episódio das repetidas vezes que a editora apareceu na seção livros da revista Veja em outubro de 1986, mês em que ela entrou no mercado. Ela é acusada pelos concorrentes de comercial e manipuladora pelo modo como age no campo da divulgação editorial, que, como vimos anteriormente, é mais pragmático e eficiente do que as atividades divulgacionais dos seus concorrentes e acusadores. Um fato literário co-patrocinado pela Companhia das Letras que simboliza o tipo de atitude atacada pelos seus adversários foi a concepção e realização da Festa Literária de Parati, iniciada em 2003. A participação da Companhia das Letras à frente da FLIP foi tão avassaladoramente atacada pelos seus críticos que Luiz Schwarcz resolveu diminuir paulatinamente a sua participação na condução do evento. A crescente profissionalização da Companhia das Letras nas relações com seus escritores, as suas estratégias editoriais e a própria figura emblemática do seu editor acabaram influenciando a produção de livros e a própria literatura contemporânea no Brasil de forma decisiva. Um dos fatores preliminares para ela influir tão decisivamente na produção do seu tempo é a escolha de privilegiar a publicação de lançamentos, quase sempre livros de autores que estão em atividade, deixando de fora obras consagradas do passado, de autores que já caíram no domínio público, o que acontece após 70 anos de sua morte. Quando apresenta obras de autores consagrados, esses são apresentados como redescobertas ou atualizações, constituindo exceção de um estilo de publicação de lançamentos (SORÁ, 1997, p. 166). Ao priorizar obras contemporâneas, como se verificou no exame do seu catálogo, a editora pode interferir e sinalizar positivamente para a produção de determinado tipo de obra, especialmente no caso de obras de autores nacionais. Ela se coloca em diálogo constante com a produção nacional, estimulando o aparecimento de determinadas obras e não estimulando outras. Essa sinalização não se faz fundamentalmente por encomendas de obras, mas pela explicitação dos seus mecanismos de seleção, que corre com a efetivação da publicação. Como a editora caminhou rapidamente para se tornar a editora de referência no Brasil, a sua sinalização aponta para o que deve ser produzido para ser publicado pela melhor editora brasileira. Logo, tentar 136 cumprir as sinalizações da editora significava para o autor e sua obra uma possibilidade de fazer parte de um cânone dos melhores livros e escritores brasileiros. A seleção editorial sempre foi comandada por Luiz Schwarcz e reflete sua vontade a partir de sua concepção editorial de ter lucro publicando livros de qualidade, que implica determinados valores culturais e intelectuais. Esses valores, além de pessoais, são marcados pelas concepções de uma equipe de editores e consultores do mundo acadêmico e literário do Rio e de São Paulo, que faziam parte do seu círculo de relações e, em geral, também autores publicados pela editora (SORÁ, 1997, p. 164). Mas podemos arriscar, pelo exame do catálogo, e por leitura de constantes comentários a esse respeito na imprensa, como nos rompantes de Carlos Heitor Cony, que o núcleo de pessoas e idéias que gravitam em torno de Schwarcz, e sua Companhia, são basicamente paulistas, mais precisamente ligadas à Universidade de São Paulo, o que rende-lhes a contínua pecha de uspianos. Lilia Schwarcz, sócia e esposa de Luiz, é o elo principal entre a editora e a universidade paulista, sendo ela própria professora da USP na área de Antropologia. Na verdade, há uma nítida conexão entre a principal editora e a principal universidade brasileira. Os textos não-ficcionais da editora, especialmente nos seus primeiros tempos, eram produzidos por acadêmicos ligados à instituição paulista, como quadros efetivos ou formados pelos seus programas de pós-graduação nas áreas de ciências humanas ou sociais. A ficção publicada, apesar de não ser maciçamente paulista produzida muitas vezes por escritores radicados no Rio de Janeiro , também representa o pensamento e o gosto da intelectualidade paulista, continuamente responsável por escolhas e recomendações, como no emblemático caso da obra do carioca Paulo Lins, recomendado por Roberto Schwarz, da Faculdade de Letras da USP. Essa identificação fornece ao catálogo da Companhia a garantia e a chancela da principal universidade brasileira, o que traz a solidez de um pensamento universitário com a história intelectual mais longa e tradicional do Brasil, responsável pelo fomento e pela reprodução de sua matriz intelectual em outras instituições. Alicerçada em nomes como Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda, continuamente a universidade formou os intelectuais centrais do pensamento acadêmico brasileiro, responsáveis últimos pela sua pauta de interesses e discussões no Brasil. Por 137 outro lado, tamanha tradição intelectual, que deixa a universidade paulista lenta para incorporar com rapidez pensamentos acadêmicos inovadores, acaba contaminando colateralmente a editora paulista, que muitas vezes retarda o mergulho em novas concepções das ciências humanas e sociais, e, até mesmo, prejudica a publicação de obras inspiradas em determinadas concepções que conflitam radicalmente com pressupostos da universidade. Mas, esse viés uspiano, se verdadeiro, não é uniforme e impenetrável por outras correntes, que, no desenvolvimento da história da editora, têm acesso cada vez maior ao catálogo da editora. Em relação à seleção de originais e organização do catálogo, a editora privilegia grupos de livros e não livros individuais. No discurso de seu editor, o livro isolado é uma estratégia repudiada pela editora, o que se comprovou pelo exame do seu catálogo. O extremo dessa estratégia é organizar o livro em coleções. Na verdade, a Companhia não organiza tanto o seu livro em coleções formais que também existem , mas em séries mais ou menos informais, podendo nem mesmo ter identidade visual específica. Com a formatação dessas séries informais, a editora acaba organizando seu catálogo por públicos, assuntos ou autores. O agrupamento por público levou inclusive a criação dos seus selos para crianças e jovens. A divisão por assunto conhecimento ou áreas do é o modo como organiza principalmente o seu catálogo de livros de não- ficção. Na ficção, o modo de organização é o por livros do mesmo autor. A Companhia publica inicialmente um livro de um autor de ficção com a perspectiva de publicar outros livros desse autor. A publicação de coleções ou séries pela Companhia pode orientar a produção de livros já que os autores visualizam com mais nitidez as linhas editoriais, percebendo o potencial de publicação de cada original ou projeto. Mas também orienta o consumo incluindo a própria leitura já que a dinâmica das séries e coleções sugere determinado tipo de leitura para cada uma das obras. O fato de certo livro de ficção ser incluído ou não na série policial determina tanto o modo como é lido como o nível de prestígio que a sua leitura traz. 138 Com essa estratégia de organização do catálogo, a editora não precisa vender livro a livro. Um livro de um autor estimula a compra de outro livro do mesmo autor, caso o leitor fique satisfeito. E a venda de um livro de determinada série ou coleção pode implicar novas compras da mesma série. E por fim essa fidelização acaba acontecendo à própria editora. Utilizando livremente o pensamento de Bourdieu, podemos dizer que a qualidade do catálogo da Companhia das Letras é o seu maior patrimônio. Uma ferramenta utilizada com eficiência tanto para valorizar as obras publicadas como para formar grupos de livros no seu catálogo é o planejamento gráfico arrojado e a qualidade técnica do seu produto livro. Os livros da editora são fabricados com alto nível de qualidade técnica, envolvendo, entre outros procedimentos, a escolha do papel, da tinta e do modo de impressão se diferenciando positivamente das publicações da maioria das editoras. Alguns grupos de livros merecem inclusive um acabamento técnico ainda mais caprichado, como, por exemplo, nos últimos lançamentos de Paul Auster e na reedição comemorativa da obra de Érico Verissimo. Mas são as concepções gráficas de seus livros que os diferenciam dos livros das suas concorrentes na disputa das estantes das livrarias. As concepções arrojadas dos seus designers fizeram das capas da Companhia um componente forte da sua marca, muitas vezes imitado pelas outras editoras. Além de funcionar como ferramenta para consolidar uma diferenciação em relação aos concorrentes, o design de suas capas funciona no sentido de demarcar grupos de livros no interior do catálogo. Sem o seu esforço gráfico, a Companhia não conseguiria o sucesso que obteve com a sua estratégia de coleção . A dimensão visual do livro da Companhia complementa a sua dimensão textual, contribuindo inclusive no processo de consagração literária dos seus autores. O cuidado com os aspectos físicos do livro aproxima Luiz Schwarcz do antigo perfil do editor-impressor, mesmo não possuindo uma gráfica. Sem deixar de lado o seu papel intelectual, a Companhia das Letras reverbera até a figura do impressor artesanal, o que pode ser exemplificado pela sua série de logotipos pré-modernos. Uma das funções editoriais que o modo de operar da Companhia não nos deixa nunca esquecer é a de 139 fabricar livros, ou seja, a transformação do original já pronto em livro (BRAGANÇA, 2001, p. 23 25). Voltando à sua formação como editora literária de prestígio, constatamos que inicialmente a editora publicava prioritariamente ensaios, deixando um pouco de lado a ficção, especialmente a nacional. Mas devido às características literárias desses ensaios, ela já se forma como editora literária, e não como uma editora acadêmica especializada em ciências humanas e sociais. São obras literárias tanto pela importância que a dimensão autoral tem na publicação e consumo desses textos como pelas suas próprias características textuais. Mário Sérgio Conti, ao resenhar o primeiro lançamento da editora, o ensaio Rumo à estação Finlândia, chega a chamá-lo de grande romance. Portanto, no seu início a editora se estrutura pela publicação constante de obras do gênero ensaio literário. O passo seguinte para se consolidar como editora literária seria formar um catálogo de obras ficcionais. Em relação à ficção estrangeira o processo foi mais rápido. Schwarcz começou a freqüentar as grandes feiras internacionais, e, agindo de forma profissional com os agentes e editores estrangeiros ou seja, cumprindo com prazos e valores combinados , conseguiu os direitos de vários autores inéditos no Brasil, buscando os que já tivessem prestígio literário e sucesso comercial nos países em que fossem publicados. No exame do catálogo de ficção estrangeira, verificou-se um grande número de obras e autores que já receberam algum tipo de prêmio literário importante prêmios esses, como o Nobel e o Book Prize, que funcionaram como uma garantia de qualidade e teste de mercado. Esse prestígio internacional resulta também numa parceria sólida com a prestigiosa casa editorial inglesa Bloomsbury, comandada por Liz Calder. As duas editoras costumam realizar projetos literários em comum o desenvolvimento de coleções e até de eventos literários, como a Festa Literária de Parati. Cada uma das editoras também acaba escoando as suas publicações para parte do mercado estrangeiro pelas atividades editoriais da parceira. Quanto à publicação tardia de ficção nacional, a explicação recorrente de Luiz Schwarcz é a de que no período inicial da história da Companhia a maioria dos bons 140 autores já estava comprometida com alguma outra editora. Mas, assim que o prestígio da Companhia das Letras se solidificou com os ensaios literários, esses bons escritores passaram a ter interesse em publicar pela Companhia. A partir da entrada de Rubem Fonseca, os principais autores brasileiros de ficção passaram a migrar para a editora. Como vimos no exame do catálogo, a Companhia das Letras possui parte considerável dos principais escritores brasileiros contemporâneos de ficção. No mesmo mecanismo já mencionado, a Companhia publica inicialmente escritores de grande prestígio, que acabam contaminando a editora. Em seguida, muda o sentido da concessão de prestígio: ser publicado pela Companhia das Letras dá prestígio literário àqueles que ainda não o têm. Exemplo claro do poder de acelerar o prestígio literário de quem ela publica são os casos de Chico Buarque e Jô Soares. Os dois autores tiveram acelerado o seu processo de aceite da crítica o que é mais forte no caso de Chico e do público leitor por terem sido publicados pela Companhia das Letras, o que garantia prestígio literário a nomes já conhecidos dos possíveis leitores pelas suas atividades extra literárias. Principalmente em relação à publicação de autores nacionais, a Companhia das Letras acaba tendo um papel diferenciado e bastante ativo. Ela interage bastante com os escritores de ficção, influenciando no resultado da obra literária. Não falaremos agora sobre aquela influência que é mais uma sinalização ou encomenda implícita que direciona a produção literária, da qual já falamos. Falaremos do modo como a ação da editora influencia diretamente a obra a partir da seleção de originais. Como o recebimento de originais sem indicação é quase descartado, os originais são ou indicações ou novos textos de autores que já publicam pela editora. Em qualquer um dos casos, se os originais passarem pela seleção, eles não passam incólumes. A equipe editorial da Companhia das Letras, em interação com os autores, faz sugestões e modificações, em relação a títulos, palavras, frases, capítulos. Solicitam cortes, inclusões, modificações. São primeiros leitores extremamente exigentes. Para eles, o texto nunca chega pronto. Na nossa pesquisa, constatamos, com alguma surpresa, que os escritores aceitam muito bem reparações nas suas obras. Mas, segundo Schwarcz, a última palavra é sempre a do escritor. 141 A alguns autores que publicam costumeiramente pela editora, Shwarcz pode até fazer sugestões de gêneros ou temas. Essas sugestões podem ser informais ou até se transformarem em encomendas como é o caso da coleção Literatura ou Morte, que examinaremos no próximo capítulo. Na nossa pesquisa, também constatamos que esse modo de intervenção é visto de modo positivo pelos autores que já passaram pela experiência, como Moacyr Scliar. No caso da coleção, a boa receptividade dos autores pode ser comprovada pelo número de encomendas efetivamente cumpridas. Vale lembrar que sugestões prévias de produção de obras não é um instrumento que Shwarcz utiliza com todos os autores que publica, como podemos verificar no exame do caso de Sérgio Sant Anna. O editor parece conhecer os mecanismos de criação dos seus autores mais importantes, mantendo com cada um deles um tipo de relação específica. No desenrolar da história da Companhia, à influência dos intelectuais uspianos na escolha das obras publicadas soma-se uma crescente influência dos autores de ficção brasileiros publicados pela Companhia, e alguns latino-americanos. Esses autores, como Rubem Fonseca, Moacyr Scliar e o argentino Alberto Manguel passam a ter um papel tanto de consultores na escolha de originais como de produtores de prefácios, de outros textos complementares e até mesmo de resenhas e críticas a serem veiculadas na imprensa, papel que também continua a ser exercido simultaneamente pelos intelectuais mais ligados à USP. Muitos desses escritores mantêm relações constantes com a editora e sua equipe durante um período longo, o que dá a essa relação entre colaboradores e editora um caráter de permanência. Esse caráter de permanência somado ao importante papel que as relações pessoais têm na estrutura profissional da editora aproxima a Companhia de antigas e tradicionais editoras brasileiras, chamadas de casas editoriais, onde uma família de colaboradores gravitava em torno da figura do editor-proprietário, como no caso emblemático da Editora José Olympio. Podemos ainda arriscar outras interpretações quanto à influência da Companhia das Letras na cultura e na literatura brasileira de finais do século XX e início do XXI. Em primeiro lugar, ela proporcionou o lançamento intenso de autores que estavam sendo publicados na Europa e nos Estados Unidos, e que, antes da Companhia entrar em 142 atividade, demoravam bastante a ser editados e vendidos no Brasil, introduzindo de forma definitiva no país autores tão diferentes como Salman Rushdie, Elizabeth Roudinesco e Robert Darnton, entre outros. Com essa atuação da editora, disponibilizou-se autores e obras estrangeiras contemporâneas relevantes para os leitores brasileiros, numa diferença de tempo razoável em relação à sua publicação original. Esse seu papel de introdutor de autores e obras no Brasil em tempo quase simultâneo à publicação no país de origem é ainda mais importante na medida em que o seu procedimento influenciou as editoras concorrentes, o que diminui ainda mais o intervalo entre a publicação de obras de qualidade no exterior e no Brasil. Em relação à ficção brasileira, tentarmos identificar influências explícitas da atuação da Companhia das Letras nos resultados das obras publicadas pode ser ainda mais arriscado do que mencionar os mecanismos de como essa influência pode se dar. No entanto, a observação do catálogo das principais obras ficcionais de autores brasileiros nos permite fazer algumas tentativas de encontrar marcas efetivas do pólo editorial na produção literária. O exame das obras publicadas por esses autores fora da editora facilitou identificarmos a especificidade do seu papel. Uma marca que identificamos nas obras de autores que passaram a publicar pela Companhia é terem enveredado na linhagem do romance histórico. Constatamos que escritores que nunca se dedicaram anteriormente ao tema, como Moacyr Scliar e Rubem Fonseca, quando passam a ser publicados pela Companhia realizam algumas de suas obras nos parâmetros desse gênero, que tem nos últimos 20 anos bom apelo comercial, sem deixar de ser gênero de certo prestígio no cânone literário. Também escritores praticamente inéditos, como José Roberto Torero e Ana Miranda, conseguiram facilitar sua publicação na editora por aderirem ao gênero. Identificou-se também na obra de alguns autores que passaram a ser publicados pela editora um movimento de um pouco mais de dedicação ao romance do que ao conto em relação ao momento anterior de suas carreiras. É bom observar que não podemos responsabilizar por esse movimento só a editora, já que pode tratar-se de uma tendência mais geral. Outra marca que encontramos nas obras publicadas é a existência de um bom número de textos dedicados a temas relacionados ao fazer literário 143 mais ou menos explicitamente eà própria vida literária. Podemos enumerar algumas dessas obras ficcionais: Budapeste, de Chico Buarque; Assassinato na Academia de Letras, de Jô Soares; vários textos de Sérgio Sant Anna e de Rubem Fonseca; além de todos os volumes da coleção Literatura ou Morte. Já que mencionamos a coleção Literatura ou Morte, passaremos para o próximo capítulo, no qual a partir da análise dessa coleção de encomenda tentaremos identificar marcas da intervenção editorial no resultado textual da encomenda. Capítulo 3 A Coleção Literatura ou Morte A dimensão criadora e produtiva do editor aparece com mais realce no caso da encomenda. Não é a regra nas relações entre Schwarcz e os escritores de ficção que publicam pela Companhia, mas estudá-la pode ser excelente laboratório para investigarmos a dimensão autoral e produtiva do pólo editorial. A encomenda explícita de textos ficcionais, nessa e em outras editoras brasileiras contemporâneas, acaba por concentrar-se 144 em coleções temáticas. Nesse tipo de intervenção editorial, uma editora sugere a determinado grupo de escritores um encadeamento de temas ou assuntos, para que cada um produza uma obra ficcional. Soma-se à estratégia da encomenda explícita a estratégia de organizar o seu catálogo por coleções. A encomenda explícita de textos é algo polêmico especialmente quando se trata de textos ficcionais, já que coloca em xeque a função autor no texto ficcional. Michel Foucault, no ensaio O que é um autor?, publicado inicialmente em 1969, observou que a função autor não é exercida do mesmo modo em diferentes tipos de discurso, ou seja, varia a importância da autoria na recepção de diversos tipos de discursos. A partir do século XVII, os enunciados científicos só teriam validade se estivessem embasados na metodologia científica que se estabelecia; enquanto que o discurso literário passou a ser mais vinculado à figura do seu autor. No campo literário a função autor passa a ser o principal modo de classificar os discursos. A autoria do texto literário é determinante para sua recepção quem o escreveu é um elemento decisivo para o julgamento do valor de determinado texto literário. Portanto, a identificação da autoria individual é fundamental na publicação de um texto literário. Podemos imaginar isto como um dos motivos para que a encomenda de textos só seja vista como algo menor no campo literário, já que a autoria individual seria maculada pela intervenção do editor, que por meio da encomenda pode influir diretamente no resultado de produções literárias específicas. Em relação a textos não-ficcionais, o tabu da encomenda não é tão grande, já que nele a função autor não possui um papel tão fundamental. Um texto científico ou crítico de encomenda é algo encarado normalmente: um texto sobre segurança alimentar ou política cultural não é necessariamente melhor ou pior por ser encomendado. O aparecimento da coleção temática na cena literária brasileira da década de 1990 se deve à Editora Objetiva. A encomenda de coleções ficcionais temáticas não chega a ser uma novidade completa na literatura brasileira. Em 1964, a Civilização Brasileira publicou um volume de contos inspirados nos sete pecados capitais encomendados a sete escritores já consagrados: Mário Donato, Guilherme Figueiredo, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Rezende, José Condé, Lygia Fagundes Telles e Guimarães Rosa. E no ano seguinte 145 lançou novo volume de textos encomendados, inspirados agora nos dez mandamentos. Esse volume trazia novamente contos de Guilherme Figueiredo, Condé e Cony e textos de Jorge Amado, Marques Rebelo, Orígenes Lessa, Campos de Carvalho, João Antônio, Moacir C. Lopes e Helena Silveira. Os volumes foram considerados sucesso de vendas, além de terem uma boa recepção da crítica dos jornais e da academia. Os 7 pecados capitais permanece até hoje no catálogo Bertrand Brasil, selo que publica os antigos textos ficcionais da Civilização Brasileira. A encomenda na produção ficcional vai voltar com força à cena literária brasileira já em finais da década de 90 com as coleções temáticas, nas quais são produzidos vários volumes de um mesmo tema, cada um entregue a um escritor diferente. Não se trata mais de um volume único com vários textos ficcionais, mas de coleção com volumes independentes sobre um mesmo tema, em que cada volume acaba tratando de uma fração do tema geral. Nessa retomada, a primeira coleção temática de grande repercussão foi lançada pela Editora Objetiva em 1998, repetindo justamente o mote dos sete pecados capitais a coleção Plenos Pecados, que teve seu volume final publicado em 2002. A inspiração no volume de 1964 é evidente, especialmente pela repetição do tema. Outra semelhança é que a maioria das encomendas era também contratada com escritores consagrados: Zuenir Ventura, José Roberto Torero, Luis Fernando Verissimo, João Ubaldo Ribeiro, João Gilberto Noll, Ariel Dorfman e Tomás Eloy Martínez. Porém observamos nesses dois últimos nomes mais uma diferença em relação ao seu antecessor da década de 60: agora a encomenda de uma editora brasileira ultrapassa as fronteiras nacionais e atinge um escritor consagrado chileno e outro argentino. Plenos Pecados teve alguns volumes bem aceitos pela crítica e outros nem tanto. Mas o sucesso comercial da coleção como um todo é exemplar: segundo informações fornecidas por Isa Pessoa, coordenadora editorial da coleção, em entrevista realizada no início do ano de 2003, a coleção caminhava célere para os 300 mil exemplares vendidos. Com esse resultado palpável, a Editora Objetiva continuou apostando nas coleções temáticas. Em 2001, a Objetiva lançou a coleção Cinco Dedos de Prosa, com um tema bem mais singelo do que os pecados capitais: os dedos da mão. Foram encomendadas a 146 cinco escritores, novamente quase todos profissionais experientes, narrativas que se inspirassem em cada um dos dedos da mão o polegar, o indicador, e assim por diante. Na verdade, era uma paródia da própria idéia de coleção, segundo Isa Pessoa (que também coordenou essa coleção). A paródia estaria no caráter inusitado e aberto do tema, que deixava aos escritores escolhidos uma autonomia para escrever o que quisesse sobre assunto tão inusitado, ou seja, em princípio, uma coleção temática sem tema, uma encomenda aberta. A coleção inicialmente não obteve grande sucesso editorial, vendendo poucos exemplares, com uma péssima repercussão na crítica e não ultrapassando a publicação do terceiro volume até 2002. Foram publicados Em busca de seu mindinho, de Mário Prata; O efeito urano, de Fernanda Young, dedicado ao dedo médio; e O indigitado, de Carlos Heitor Cony, dedicado ao dedo indicador. Em 2004, a coleção foi retomada, sendo lançado o seu 4o volume: O opositor, de Luis Fernando Verissimo, dedicado ao polegar, conseguindo atingir sucesso comercial semelhante aos dos volumes da coleção Plenos Pecados. Moacyr Scliar Carlos após a desistência do escritor de telenovelas Manoel ficou incumbido de escrever o volume que finalizava a coleção, dedicado ao dedo anular. Essa última obra da coleção, intitulada Na noite do ventre, o diamante, foi publicada em 2005. A trajetória bem-sucedida da Editora Objetiva, especialmente com a coleção Plenos Pecados, repercutiu fortemente no mercado editorial. Algumas pequenas editoras, muitas vezes por iniciativa de escritores/agitadores da cena literária contemporânea como Marcelo Moutinho, no Rio de Janeiro, e Marcelino Freire, em São Paulo , realizaram encomendas de textos ficcionais curtos a outros autores mais ou menos iniciantes a partir de tema ou características textuais específicas, que quase sempre foram publicadas em volumes únicos. Nesse caso, estão o volume Os cem menores contos brasileiros do século, organizado por Marcelino Freire, publicado pela Ateliê Editorial em 2004, e Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro, volume organizado por Marcelo Moutinho e publicado pela Editora Casa da Palavra. Outra experiência interessante de encomenda literária é a coleção Anjos de Branco, lançada em 2001. Não foi uma iniciativa de uma editora comercial estabelecida, 147 mas de uma entidade profissional, o Conselho Federal de Enfermagem. A coleção faz parte de uma ampla campanha de relações públicas da entidade, que buscava, depois da regulamentação da profissão, reconhecimento da sociedade e mesmo um aumento da autoestima dos profissionais. A coleção, composta de romances que focalizam os profissionais de enfermagem, evidentemente de forma positiva, foi um dos principais instrumentos da campanha. A encomenda foi dada inicialmente ao acadêmico Antônio Olinto tornou o coordenador da edição que logo se e estendida a outros autores, como Arnaldo Niskier, Carlos Nejar, José Louzeiro, Marcos Santarrita. Vários produtos da encomenda, publicados em parceria com a Editora Mondrian, são romances baseados em personagens históricos, o que acabou caracterizando a coleção. Para imaginarmos o potencial de vendas entre o público da própria categoria, devemos levar em conta que uma edição de porte considerável no Brasil conta com três mil exemplares, e que o último Congresso Nacional de Enfermagem de 2002 contou com quase dez mil inscritos. Mas as editoras que mais se influenciaram pela iniciativa de sucesso da Objetiva foram as outras editoras brasileiras de porte semelhante que publicam ficção, como a Nova Fronteira, Rocco e Companhia das Letras. No final dos anos 1990 e início do século XXI, elas também utilizaram como uma de suas estratégias editoriais a encomenda de textos ficcionais para coleções temáticas. A editora Nova Fronteira lançou em 2001 a coleção Primeira Página, na qual eram encomendados pequenos romances policiais inspirados em fatos reais a escritores brasileiros que não eram necessariamente especialistas no gênero. A coleção foi concebida e coordenada pelo experiente José Louzeiro escritor dedicado à ficção inspirada em fatos apurados por reportagem policial desde a década de 1970 , que também foi responsável pela autoria do primeiro volume da coleção, A fina flor da sedução. Foram publicados mais quatro textos, todos em 2001: 13 no caixão, de Mário Feijó; No fio da noite, de Ana Teresa Jardim; Juízo final, de Nani; e Conexão Sardinha, de Carlos Alberto Castelo Branco. A coleção não teve grande sucesso comercial nem houve boa repercussão junto à crítica, não chegando ao segundo ano de vida. 148 A editora Rocco também produziu uma coleção de encomenda dedicada ao gênero policial, intitulada Elas são de Morte. Na coleção, cujos primeiros volumes foram publicados em 2003, a editora encomendava romances policiais apenas a escritoras, agregando à escolha temática a escolha de gênero em relação ao autor. A coleção também foi coordenada por uma mulher, a escritora Denise Assis. Até o final de 2005, já foram publicados nove volumes entre eles Vende-se vestido de noiva, da própria Denise Assis, Uma aula de Matar, de Ana Arruda Callado, e Pescaria de corpos, de Claudia Mattos sendo que a editora pretende ainda atingir o número total de 20 textos publicados por essa coleção. No caso da Companhia das Letras, a coleção ficcional temática desenvolvida chamou-se Literatura ou Morte. Ela surgiu já em 2000, quase como uma reação à coleção Plenos Pecados. A idéia do tema, segundo o editor Luiz Schwarcz, tomou forma depois de um encontro seu com o filósofo Leandro Konder, no qual este último lhe entregou os originais de um pequeno romance intitulado A morte de Rimbaud. A partir da leitura dessa obra, o editor pediu a vários escritores de prestígio fora escritores iniciantes mais uma vez uma coleção deixa de que escrevessem romances com duas regras básicas: um crime no enredo e o nome de um autor consagrado já falecido no título. Nem todos os escritores contatados cumpriram até hoje a encomenda, como José Saramago e Patrícia Melo. Segundo Schwarcz, a coleção encerrou-se em 2001, e mesmo se surgir outra obra a ser publicada pela Companhia com as características dessa encomenda, ela será publicada avulsamente, sem a identidade visual da coleção. Podemos especular que, no caso dessa coleção, antes da encomenda do editor, houve uma hipotética encomenda prévia feita pelo próprio romance A morte de Rimbaud, que se tornou um dos volumes publicados pela coleção. Foi o surgimento desse livro que possibilitou o surgimento da coleção e, por conseguinte, dos outros livros. Um texto gerando comprovadamente textos, como na formulação teórica de Mikhail Bakhtin, expandida por Julia Kristeva. Voltando à encomenda real, podemos dizer que a encomenda tenta unir elementos da literatura de massa e de uma literatura mais canônica. Sua primeira regra, a 149 existência de um crime, aproxima os textos da coleção da literatura de massa propriamente dita, da qual a literatura policial é um dos filões mais explorados. A segunda regra, o nome de um grande autor morto no título, insinua a encomenda na linha canônica que passa em revista a própria literatura, muitas vezes discutindo a própria produção artística ou literária. Algo já feito desde a segunda parte do Dom Quixote, que até discute explicitamente a questão de sua própria autoria, de modo parodístico. A possibilidade de uma escritura parodística também é algo implícito na segunda regra da encomenda dessa coleção, sendo também o ponto de contato entre a vertente popular e a erudita . Como há a presença de um autor-padrinho, existiria a possibilidade do modo de escrever desse autor ser de alguma forma parodiado. É, no entanto, na resposta dada à encomenda que a combinação dessas duas regras se resolve. Literatura ou morte? A encomenda pode ser encarada como um programa a cumprir ou como um modelo a ser desrespeitado, ludibriado ou ultrapassado. Os oito escritores que responderam à encomenda, Luis Fernando Verissimo, Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho, Ruy Castro, Moacyr Scliar e os latino-americanos Alberto Manguel e Leonardo Padura Fuentes, escolheram como pares a serem revisitados os seguintes escritores clássicos: Borges, Moliére, Sade, Bilac, Kafka, Stevenson e Hemingway, respectivamente. As escolhas dos escritores homenageados quase deixaram de fora os brasileiros. Dos oito volumes da coleção publicados no Brasil, o único escritor brasileiro homenageado foi o poeta Olavo Bilac. Foram escolhidos cinco europeus, um argentino e um americano. São autores que escreveram desde o século XVIII, como Sade, até autores que publicaram já na segunda metade do século XX, como Borges e Hemingway. Exceto Bilac, todos os outros são autores de grande prestígio literário internacional, estando presente em quase qualquer texto acadêmico que tente estabelecer um cânone literário. No entanto, as escolhas deixaram de fora nomes como Cervantes, Poe, Flaubert, Proust, Balzac, Joyce e Machado de Assis, entre outros. A coleção Literatura ou Morte foi formada pelos seguintes livros, na ordem em que foram publicados, com o respectivo número de exemplares vendidos até novembro de 2004, segundo dados da própria editora: 150 A Morte de Rimbaud, de Leandro Konder - 4.716 exs. Stevenson sob as Palmeiras, de Alberto Manguel - 2.746 exs. Medo de Sade, de Bernardo Carvalho - 2.823 exs. O Doente de Molière, de Rubem Fonseca - 11.262 exs. Os Leopardos de Kafka, de Moacyr Scliar - 6.586 exs. Borges e os Orangotangos Eternos, de Luis Fernando Verissimo - 19.379 exs. Bilac vê estrelas, de Ruy Castro 9.924 exs. Adeus, Hemingway, de Leonardo Padura Fuentes - 2.124 exs. Os números de exemplares vendidos em cada obra não evidenciam um sucesso comercial espetacular. Os que ultrapassaram os cinco mil exemplares vendidos o que denota um sólido sucesso editorial , como os volumes escritos por Verissimo, Rubem Fonseca, Ruy Castro e Scliar, não ultrapassaram significativamente o número de exemplares que suas obras já vendem normalmente. Mas a repercussão que essas obras tiveram na imprensa foi bem maior do que esses números refletem. Uma série de reportagens, resenhas e críticas eram publicadas a cada novo livro. Independente do trabalho de divulgação da editora, a proposta da coleção e as obras em si tiveram um espaço diferenciado de divulgação na imprensa. No meio acadêmico, a repercussão dessas obras também foi bastante positiva. Dissertações de mestrado e teses de doutorado têm sido produzidas com alguns desses livros como objeto de estudo, especialmente os textos de Verissimo e Scliar. Os textos da coleção também tiveram grande sucesso como textos paradidáticos. Diversas escolas de Ensino Médio usaram a coleção para tentar aproximar os seus alunos das questões literárias. A coleção teve um trabalho de criação de identidade gráfica bastante interessante desenvolvido pelo designer Raul Loureiro. O fundo da capa utiliza principalmente duas cores: preto, na metade de cima, e uma cor quente vermelho ou azul amarelo, na parte debaixo. A metade de cima, de fundo preto, recebe o título da obra, com letras da mesma cor do fundo da metade debaixo, com o corpo do nome do autor 151 homenageado bem maior do que o resto do título. O nome do escritor vem na parte debaixo com letras de cor preta, sendo o sobrenome em corpo maior do que o nome. Essa disposição gráfica dá um efeito de destaque e contraste entre os sobrenomes do autor real e do escritor homenageado, como no caso RIMBAUD/KONDER (figura 10). Nas orelhas dos livros, estão presentes, de forma padronizada, fotos dos dois escritores, menos no caso do livro de Rubem Fonseca, onde a foto de Molière está sozinha. Ainda há espaço no projeto gráfico do livro após o texto literário para pequenos resumos biográficos do autor e do escritor-personagem. Algumas vezes o resumo biográfico do escritor homenageado é assinado pelo próprio autor do livro. Tanto esse projeto gráfico como a posição central dos autores escolhidos na literatura brasileira contemporânea e a dos escritores-personagens na Wetlliteratur evidenciam a formação de um duplo cânone. São dois panteões que se formam, cada um legitimando o outro: o dos grandes autores de todos os tempos e o dos grandes autores brasileiros de finais do século XX, estes últimos em processo menos aceito de canonização literária. E a própria editora canoniza-se a si mesma como a grande editora da literatura brasileira contemporânea, se legitimando com a referência e reverência aos grandes escritores da humanidade e a publicação conjunta de obras escritas por alguns dos principais escritores brasileiros, todos com a exceção de Verissimo freqüentadores habituais de seu catálogo. Capítulo à parte na recepção dessa coleção, foi a grande quantidade de editoras estrangeiras que se interessaram em publicá-la, parcial ou integralmente. Mais do que republicar as obras produzidas pela encomenda da editora brasileira, muitas dessas editoras fizeram as suas próprias encomendas para escritores de seus próprios países de origem, no mesmo escopo da coleção além das obras, a própria concepção da coleção foi de alguma forma exportada. A editora colombiana Norma adquiriu os direitos de alguns volumes da coleção para publicação na América Latina, tendo publicado os textos de Rubem Fonseca, Alberto Manguel e Leonardo Padura Fuentes. Além desses volumes, ela já publicou quatro encomendas próprias feitas a escritores colombianos. Camus, la conexión africana, escrita 152 por Rafael Humberto Moreno-Duran, foi publicada em 2003, abordando o envolvimento do escritor na luta pela independência de sua Argélia natal na década de 1950. Também em 2003 Julio Paredes publica Cinco tardes com Simenon, novela policial na qual o próprio escritor belga de romances do gênero George Simenon ajudará a desvendar um crime. No mesmo ano Gerrmán Espinosa publica Rubén Darío y la sacerdotisa de Amon, contando uma história vivida pelo poeta Rubén Darío na costa francesa em 1910. Em 2005, é lançado El corazón de Voltaire, escrito por Luis López Nieves, que cria uma novela epistolar desenvolvida por meio de mensagens eletrônicas em que a trama envolve a busca nos dias de hoje da autenticidade dos restos mortais de Voltaire. A versão latino-americana da coleção tem uma identidade própria, diversa da configuração gráfica brasileira. Não foi utilizado na capa o contraste entre os nomes dos dois escritores envolvidos. Das obras originais da coleção, são publicadas apenas as produzidas por autores latino-americanos e a do autor brasileiro de maior prestígio na América Latina, Rubem Fonseca, ganhador do prêmio Juan Rulfo. A editora optou por fazer encomendas no escopo da coleção a escritores da própria Colômbia, sendo o mais consagrado Julio Paredes. Moreno-Durán e Espinosa ainda são escritores jovens, de produção ficcional pequena. Os autores que inspiraram as obras colombianas foram tanto europeus, como Simenon, Voltaire e Camus, como latino-americanos, no caso do poeta nicaragüense Rubén Darío. São também autores de gêneros diversos ficção, poesia, ensaio filosófico e da própria literatura policial, no caso de Simenon. Não é só no mercado latino-americano que isto aconteceu. A editora escocesa Canongate adquiriu os direitos da coleção, publicando dois volumes em 2004, o de Bernardo Carvalho, traduzido como Fear of Sade, e o de Alberto Manguel, Stevenson under the palm trees. A novela de Padura Fuentes, Adiós, Hemingway, foi publicada em janeiro de 2005. A editora escocesa lançou também uma encomenda inspirada na coleção, Tamburlaine must die, escrita pela escocesa Raquel Welsh. Essa obra, publicada em 2004, não segue a regra fundamental da coleção original, que é ter um autor no título. Na verdade, o nome que aparece no título, Tamburlaine, é o de um personagem da obra do teatrólogo britânico Christopher Marlowe. O escritor aparece na trama como antagonista do 153 seu próprio personagem. A editora Canongate não publica esses livros como coleção ou série individualizada, não possuindo esses livros identidade gráfica própria. No catálogo são indicados como fazendo parte do gênero fiction e não do gênero fiction crime . A editora portuguesa ASA foi a única a publicar a coleção quase na íntegra. Até 2005, ela publicou sete dos oitos livros da coleção original, substituindo o único livro dedicado a um autor brasileiro, Bilac vê estrelas, de Ruy Castro, por um dedicado ao poeta português Fernando Pessoa, Os fantasmas de Pessoa, de Manuel Jorge Marmelo, publicado em 2004. A coleção mantém a concepção gráfica original da Companhia das Letras. Na folha de rosto de cada volume da coleção lançado pelas Edições ASA aparece um pequeno texto que explica a proposta da coleção Literatura ou Morte, vinculando-a à editora brasileira: Literatura ou Morte é um projecto original da editora brasileira Companhia das Letras. Na sua origem, esteve a idéia de desafiar conhecidos autores, de diferentes nacionalidades, a escreverem um pequeno romance, de características mais ou menos policiais, em que o personagem principal fosse um famoso escritor. Kafka, Hemingway, Borges, Sade, Stevenson, Molière ou Rimbaud, entre outros, desfilarão assim ao longo dos diferentes títulos desta colecção, recriados pela imaginação de grandes nomes da ficção contemporânea. (MARMELO, 2004) Esse texto ilumina a dimensão autoral da editora brasileira ao formatar a coleção. Essa ação de organização de uma coleção e encomenda de textos literários é mais do que um simples filtro da produção literária; é um verdadeiro ato de intervenção criadora. O papel da editora portuguesa acaba sendo de reprodução do projeto editorial brasileiro, com a sua encomenda local obedecendo a uma fórmula já traçada anteriormente. Uma encomenda gerada por uma idéia de uma editora brasileira proporciona à antiga metrópole um reencontro por meio da ficção com a vida e a obra de um dos seus principais poetas. Esse prosseguimento autônomo da coleção nos países que a publicam revela de alguma forma uma situação em que uma editora brasileira acaba influindo diretamente na produção de outras literaturas nacionais. Produz-se um grande jogo de vetores de 154 influências recíprocas, no qual a literatura brasileira inicialmente dialoga com a literatura estrangeira por meio da criação de obras que se inspiram em grandes autores mundiais e em seguida a influência muda de sentido: tanto pela encomenda de uma editora brasileira a escritores estrangeiros como pela reprodução da encomenda brasileira em outros países. Ainda outras editoras estrangeiras também adquiriram os direitos de algumas obras da coleção, como a Grove, americana, a Actes Sud e a Metailé, francesas, e a Tranan, sueca. Mas nenhuma delas publicou essas obras formando uma coleção, nem fizeram encomendas que reproduzissem o espírito da coleção Literatura ou Morte. A coleção também produziu um filho não reconhecido. O escritor paulista Luís Augusto Marcelino publicou em 2002, pela pequena editora Beca, Verissimo e os chipanzés efêmeros, seguindo e parodiando o espírito da coleção, e, mais especificamente, o texto Borges e os Orangotangos eternos, de Luis Fernando Verissimo. A trama mistura vida literária e futebol, envolvendo como personagens os autores contemporâneos Luis Fernando Verissimo e Moacyr Scliar que já tinham publicado seus textos pela coleção , bem como um alter ego do escritor iniciante Luís Augusto Marcelino: Luís Fernandez Maurício. A trama parodia a relação, instaurada em Borges e os Orangotangos eternos, entre o narrador Volgstein e Borges, que ainda veremos quando formos analisar esse romance. Mesmo sem receber nenhuma encomenda ou participar de qualquer negociação prévia com a Companhia das Letras, Luís Augusto Marcelino não pede licença e sem cerimônia aproveita livremente a idéia da coleção Literatura ou Morte. O texto pronto segundo o autor, em entrevista realizada em setembro de 2005 foi oferecido inicialmente à Companhia em 2001, mas não foi aceito para publicação sob a alegação de que a coleção já estava fechada em relação a autores e obras. A editora seguiu seu padrão de não publicar obras de autores desconhecidos que chegam sem nenhuma intermediação. A partir de agora analisaremos os resultados literários obtidos por algumas das obras da coleção original, encomendadas pela própria Companhia das Letras. Em cada uma dessas análises, serão abordados aspectos diferentes de cada obra, já que cada uma pede uma chave interpretativa específica. 155 O primeiro texto a ser analisado é o próprio texto matriz da coleção, A morte de Rimbaud, que, como vimos, não foi encomendado. A análise dessa obra é fundamental nos nossos estudos por nos proporcionar um exame de várias questões do ambiente literário, inclusive do papel do editor na produção literária. A opção desse texto é por uma paródia de uma espécie de evento literário-editorial, do qual pode ser feita uma analogia com o próprio sistema de encomenda. O romance é dividido em sete capítulos, cada um correspondendo a um dia da investigação do detetive Sdrws. A narração é sempre na primeira pessoa e conduzida por diversos personagens: o investigador, os suspeitos e as possíveis testemunhas. A narrativa é então um somatório de vários pontos de vista, muitas vezes conflitantes. O enredo é o seguinte: um milionário apaixonado por literatura francesa reúne num hotel de sua propriedade cinco escritores supostamente talentosos e produtivos. Oferece a cada um deles uma bolsa, sem nenhuma necessidade de contrapartida literária, eles não estariam obrigados a apresentar produção (KONDER, 2000, p. 20). Pelo menos é o que está dito inicialmente. Os escritores passam então a ser conhecidos pelos nomes de grandes autores franceses do passado: Claúdio Nicodemo da Silva passou a ser chamado afetuosamente de Claudel. Mauro Teodoro dos Santos Oliveira, com o prenome adaptado à pronúncia francesa, Mauro , virou Malraux. José Tibúrcio Gonçalves Aragão se transformou em Aragon. João Carlos Suslov, que pelo sobrenome tinha sido apelidado o Russo por seus companheiros de bar, tornou-se Russo , quer dizer, Rousseau. E Severino Cavalcante, que freqüentava uma academia de musculação e era brincalhonamente chamado de Rambo pelos ginastas ( Rambô , na forma afrancesada), ficou sendo Rimbaud enquanto viveu. (KONDER, 2000, p. 21) A história começa com a morte suspeita de Rambô. E é desenvolvida com a chegada na fictícia cidade turística onde se encontram, chamada de Guariroba, do detetive Sdrws, que supostamente deve desvendar os acontecimentos. Esse pretexto serve para uma investigação não só de um crime, mas das circunstâncias da vida literária. São questões que aparecem na leitura do texto: o trabalho do escritor é livre? O que faz uma obra literária valer mais ou menos? O que é ter talento para a literatura? Literatura pode ou deve dar 156 lucro? Escrever literatura é o mesmo que trabalhar, produzir? O pequeno romance de Konder não responde definitivamente nenhuma dessas perguntas, mas deixa algumas pistas. Um dos narradores, Saint-ex, de Saint-Exuperi, gerente do lucrativo hotel cujo dono, o milionário Bergotte nome inspirado em um personagem de Proust hospedou os cinco escritores promissores , logo no início da trama, apresenta seu patrão como um homem extremamente desajustado por ser um homem de negócios que adora e gasta dinheiro com literatura, colocando já em questão a produção literária como negócio: Às vezes, chego a desconfiar que o patrão está gagá. É possível que antes mesmo de ganhar na loteria ele já estivesse meio maluco. Que homem mais esquisito! A paixão dele por literatura nunca foi normal. Como se explica que um grande empresário passe os fins de semana sistematicamente mergulhado numa imensa biblioteca, sem querer tomar conhecimento de nenhum assunto das empresas, sem atender a nenhum telefonema de trabalho. Sem admitir que o procurem para falar de negócios? (KONDER, 2000, p. 17) Fazendo uma leitura alegórica desse trecho, podemos sentir a presença de uma velha questão: literatura pode ou deve dar lucro? A separação entre literatura e negócio em campos diametralmente opostos é algo que está arraigado em um tipo de pensamento que já foi investigado principalmente no primeiro capítulo desta tese. No texto, o movimento de Bergotte em aproximar esses dois pólos no espaço do hotel é visto pelo detetive Sdrws como algo extremamente problemático: De um lado, uma atividade comprometida com o objetivo essencial do lucro; do outro uma prática absurdamente assistencial. Ambas se acotovelando, promiscuamente. (KONDER, 2000, p. 19) Essa promiscuidade no nosso ponto de vista é algo que em um sistema capitalista tende a ser o padrão. E independentemente de gostarmos desse sistema ou não, a atividade literária, no prisma do autor e do editor, procura atingir um público; um público 157 mais amplo no caso da literatura de massa e um público mais restrito, no caso de uma literatura de qualidade literária mais consagrada. O que também não quer dizer que boa literatura não vende, já que na história da leitura proliferam casos em que ficções inovadoras e extremamente difíceis atingiram notáveis níveis de venda. Sem falar de obras de alto valor literário que possuem simultaneamente alguns aspectos similares ao da literatura de massa. A trama de A morte de Rimbaud tem como centro um assassinato ocorrido no interior de uma comunidade de escritores (reunidos por uma espécie de mecenas) que não têm a obrigação de produzir textos, apesar de receberem gratuitamente hospedagem, alimentação e remuneração. Podemos ler essa trama como uma paródia da modalidade editorial da encomenda. A situação de encomenda é rica para a revelação da participação do editor como autor/co-autor e da relatividade da pretensa independência do escritor, no caso o de romance. Como vimos, não é só na encomenda propriamente dita que o editor tem um papel ativo na criação literária também emerge na seleção de originais, na escolha de uma política editorial específica, no diálogo com os escritores, e em outras possibilidades examinadas nesta tese. Mas é na encomenda que ela se revela com traços mais fortes. A relação de Bergotte com seus pupilos permite um sobrevôo, numa perspectiva ficcional, sobre as relações editor/escritor, especialmente no caso da encomenda. Em trecho extremamente útil para a nossa investigação, Sdrws explica o funcionamento da comunidade de escritores: Quando o conheci, há três anos, ele tinha ganhado uma quantia considerável na loteria e acabara de fundar a Associação Nacional dos Grandes Escritores. Entronizou-se como presidente vitalício da entidade e nomeou seus membros: cinco escritores que, conforme a sigla da organização, ANGE, passaram a ser chamados de anges ou em português mesmo, anjos. Os anjos passaram a receber uma pensão bastante expressiva durante 10 anos e ganharam tratamento de primeira categoria no Grande Hotel de Combray. [...] A bolsa concedida aos cinco anjos não implicaria nenhuma contrapartida. Eles não estariam obrigados a apresentar produção . Como dizia o mecenas, era apenas um apoio à criação literária : pressupunha nos escritores um talento e uma forte vontade de escrever que mereciam ser 158 estimulados. A única exigência era a de que deveriam morar nos cinco bangalôs especiais ligados ao Grande Hotel de Combray. [...] Bergotte, na época da criação da ANGE, ainda se locomovia com algum desembaraço e visitou pessoalmente uns setenta ou oitenta escritores; entrevistou-os, leu alguns dos escritos por eles publicados e, segundo sua versão, selecionou os melhores . Há quem diga, entretanto, que na realidade os cinco felizardos escolhidos foram aqueles que, espertamente, exploraram a paixão do doador pela literatura francesa e exibiram maiores afinidades (reais ou fingidas) com autores venerados por Bergotte. (KONDER, 2000, p. 20 - 21) A grande ironia do trecho é o investimento em uma não-produção literária. Na verdade, é criada uma situação de proteção aos escritores extremamente propícia em tese para a criação literária. Podemos pensar que a criação de uma situação tão especial vai ter um reflexo no resultado do texto literário, até porque essas condições dadas proporcionam o seu aparecimento. Bergotte seria então, de alguma forma, co-autor das obras surgidas na sua empreitada. Saindo do texto, no ambiente literário brasileiro atual, surgiu uma situação muito parecida com essa situação ficcional. A Editora Planeta ligada a uma multinacional do ramo editorial de origem espanhola, que entra no mercado de produção de livros brasileiro neste início de século XXI concedeu, no início de 2003, bolsas a três jovens escritores, Chico Mattoso, João Paulo Cuenca e Santiago Nazariam, e ofereceu a eles hospedagem na cidade histórica de Parati, com a missão de escrever cada um deles um texto ficcional com alguma alusão a Parati. O resultado virou o livro Parati para mim, que foi lançado durante a Festa Literária de Parati, realizada em julho desse mesmo ano. No trecho anteriormente transcrito existe também menção à seleção dos escritores que fariam parte da comunidade. A seleção não é desinteressada , guiada apenas por um hipotético valor literário. O que vale é o gosto de Bergotte. A sua paixão pela literatura francesa foi decisiva nas escolhas. Fazendo novamente uma analogia com o ambiente real da produção literária, podemos observar que a escolha de originais nunca é pura e destituída de intenções. Ela é marcada pela política editorial em relação à ficção da editora e até mesmo pelo gosto pessoal dos responsáveis pela seleção de originais. Ou 159 seja, estão envolvidos perspectivas de lucros, gosto pessoal e até mesmo o valor literário. Muitas vezes, no sistema editorial brasileiro atual, e na Companhia das Letras em particular, o que há são seleções de escritores e não de originais: é dado grande peso ao prestígio que o escritor já tem em detrimento do potencial do texto em si. Essa situação dificulta o aparecimento de novos escritores de ficção. A trama do livro de Konder desenvolve-se com a investigação de Sdrws, que põe em xeque o envolvimento dos escritores todos vistos como suspeitos com a vítima. Mas, ao final do romance, o verdadeiro objetivo da investigação nos é revelado. Sdrws foi contratado por Bergotte não para saber quem é o assassino, mas para saber como está a produção a literária de cada um: Contei-lhes que, a pretexto de me enviar para a Guariroba com a missão de investigar a morte de Rimbaud, o que Bergotte queria era um relatório objetivo sobre as atividades literárias deles. Queria saber a quantas andava a criatividade, em que pé estava a produção. No fundo, o que o mecenas pretendia era obter uma confirmação para aquilo que estava farto de saber: os que se beneficiavam da sua ajuda tinham morrido como escritores (se é que antes existira algum escritor realmente vivo dentro deles). (KONDER, 2000, p. 150) A partir da leitura desse trecho, podemos pensar que na relação escritor/editor é este último o pólo mais comprometido com a produção. Enquanto o escritor pode se preocupar mais com as dimensões estéticas da criação literária, o editor tem o seu foco no econômico. Com esse foco no econômico, também mira seu olhar para um hipotético público-alvo, independentemente de seu tamanho. Uma boa parceria entre escritor/editor não diminuiria necessariamente a qualidade literária da atividade realizada pelo primeiro, ajudaria na verdade na complexa sintonia entre texto e leitor. E contribuiria para realizar um desejo de qualquer projeto literário: viabilizar a aventura da leitura. Reflexões como essa são proporcionadas não pela leitura de um ensaio acadêmico sobre o papel do editor na produção literária, mas pela leitura de um texto ficcional que faz parte de uma coleção de 160 encomenda que numa crítica mais apressada poderia ser visto como um simples livro do gênero policial, com objetivos de simples entretenimento. Ao partirmos para a análise de outra obra da coleção, Os leopardos de Kafka, de Moacyr Scliar, poderemos examinar os resultados de uma encomenda propriamente dita. Scliar é um dos primeiros autores de ficção contemporânea brasileira a publicar pela Companhia das Letras. Já era um autor consagrado quando publicou seu primeiro livro pela editora, em 1989, o livro de contos A orelha de Van Gogh, continuando a publicar lá sua obra ficcional pelo menos até o ano de 2005. A escolha de Scliar por Schwarcz é, portanto, bastante natural. A editora tem interesse que o prestígio de Scliar como grande autor se solidifique, tanto para aumentar suas vendas individuais como para que o seu prestígio aumente o valor da marca Companhia das Letras e alavanque também a venda dos outros livros da coleção. E a consagração literária de Scliar prossegue: em 2004, Scliar foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Já a escolha de Kafka por Scliar pode ser vista como relacionada ao seu afastamento da matriz realista da literatura brasileira, aproximando-se do ramo da literatura ocidental a que se associa, o ramo do absurdo e do alegórico. Outra associação que podemos imaginar entre Scliar e Kafka é a origem judaica dos dois. Escolhendo Kafka como personagem, Scliar abre uma porta para voltar a tratar criticamente de temas judaicos, a principal vertente de sua obra. Aceita uma encomenda editorial para seguir simultaneamente as duas das principais vertentes da sua carreira literária: o afastamento da matriz realista e a temática judaica. Os leopardos de Kafka narra a história de Benjamin Kantarovitch, também conhecido como Ratinho, um jovem judeu russo idealista que, nas vésperas da Revolução Russa, sai de sua aldeia no interior da Rússia e vai a Praga cumprir uma missão planejada pelo líder revolucionário, e judeu, Leon Trotski. Mas o desastrado Benjamin perde o envelope contendo o nome do agente com quem deverá entrar em contato e, por uma série de enganos, chega ao escritor Franz Kafka, que, confundindo-o com um funcionário de uma revista literária, entrega-lhe um pequeno texto para ser publicado: Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se repete 161 sempre; finalmente, torna-se previsível e é incorporado ao ritual (SCLIAR, 2000, p. 7). Benjamin toma esse texto como uma mensagem cifrada das ordens que deve cumprir. Na procura de seu significado, sucedem-se confusões, que terão desdobramentos inclusive no Brasil para onde Benjamin emigrará , à época do golpe militar de 1964. Scliar utiliza a obra para analisar com humor crítico a sociedade e os comportamentos dos judeus antes da emigração para a América, ao mesmo tempo em que conta a participação de um judeu nos preparativos da Revolução Russa. O narrador é um judeu de Porto Alegre, sobrinho-neto do protagonista Ratinho. Moacyr Scliar volta a tratar, principalmente no início do livro, dos Shtetls, as pequenas comunidades judaicas, tema recorrente na sua obra. Em trecho do início do livro podemos observar a sua análise humorística e amorosa da cultura dessas comunidades, ao tratar da paixão de Ratinho pelo movimento revolucionário: Alguns achavam graça de seu entusiasmo. Não o pai. A idéia de revolução deixava o pobre alfaiate apavorado: pelo amor de Deus, não fale essas coisas, se a polícia do czar te ouve estás bem arranjado. Já Rivka, a mãe, mulher corajosa, mas cética, não levava o filho a sério. Esse aí fala muito, mas é tudo da boca para fora. Para ela, Ratinho seria incapaz de matar uma mosca, quanto mais de participar de uma revolução sangrenta. O que em nada lhe desagradava: não queria ver o rapaz metido em confusão. (SCLIAR, 2000, p. 15) O tom usado no texto também é o parodístico. Parodia-se uma aventura de espionagem política, na qual o efeito de humor é obtido principalmente pela incompetência do protagonista. Parodia-se também o próprio texto de Kafka. Se, em O processo, Kafka coloca o homem como vítima de engrenagens e estruturas de uma sociedade totalmente controladora, no seu livro Scliar coloca o personagem Benjamin como vítima das estruturas de um texto a ser interpretado. Só a sua decifração o levará a se tornar um herói, um homem diferente do previsto pelo seu destino ordinário. A encomenda de uma ficção policial resulta em um texto de gênero próximo, no universo da literatura de massa: o romance de espionagem. Mas essa classificação só 162 pode ser vista como paródia, como já falamos. Esse romance de Scliar radicaliza no caráter literário do enredo, no qual o texto literário aparece como tema central. O motor da trama é a leitura do já transcrito texto de Kafka como se fosse uma instrução para uma ação revolucionária. Com isso, o livro, mais do que uma história de ação, é uma investigação sobre o que o texto literário provoca a partir de determinadas leituras. Uma aproximação que se pode fazer é com a chamada estética da recepção e um de seus conceitos, o da existência de comunidades interpretativas . Pesquisador de uma das vertentes dessa corrente, o americano Stanley Fish, no ensaio Como reconhecer um poema ao lê-lo , relata a experiência que realizou com uma de suas turmas no verão de 1971. Ele apresentou a seus alunos de um curso sobre poesia religiosa inglesa do século XVII algumas palavras que tinham sido escritas no quadro-negro durante uma aula anterior como sendo um poema religioso do mesmo tipo que eles estavam estudando. Em seguida, pediu que os alunos interpretassem o poema. E foi feita uma interpretação bastante rica do pseudo-poema, chegando-se a diversas conclusões sobre as opções estéticas e ideológicas. Esse resultado mostrou para Fish a força das comunidades interpretativas, intuindo que o significado do texto está mais fora do que no próprio texto e o que faz do poema um poema está mais num reconhecimento prévio do que na identificação de aspectos formais: Em outras palavras, os atos de reconhecimento, ao invés de serem desencadeados por características formais são, na verdade, a origem de tais características. Não é a presença de qualidades poéticas que nos compele a prestar um determinado tipo de atenção, mas sim o ato de prestarmos um certo tipo de atenção que faz com que as qualidades poéticas se evidenciem. Tão logo os meus alunos tomaram conhecimento de que aquele texto diante deles era um poema, eles começaram a vê-lo com olhos-de-ver-poesia , isto é, com olhos que viam tudo em relação às propriedades que eles sabiam que os poemas têm. (FISH, 1993, p. 159) Fish chega à conclusão de que interpretar é mais uma arte de construir (constructing) do que uma arte de entender (construing). E o texto de Scliar vai fazer essa discussão sobre a interpretação. Interessante observar que essa discussão não é um detalhe, mas o fio principal da narrativa. 163 O que acontece em Os leopardos de Kafka é análogo à experiência realizada na sala de aula do professor Fish. Ratinho lê um texto produzido com intenção literária como se fosse uma mensagem cifrada. Como os alunos de Fish, o reconhecimento prévio de que aquele texto eram instruções revolucionárias faz com que ele tente ler o texto dessa forma. No seguinte trecho, podemos observar as suas primeiras tentativas de construir o significado do pequeno texto de Kafka sobre os leopardos: Talvez se tratasse de uma coisa simbólica. O leopardo é uma fera. Os capitalistas são ferozes, na sua ganância pelo lucro, na sua disposição de explorar o proletariado. Matar um leopardo no zôo poderia ser uma forma de mostrar aos capitalistas de Praga que estavam condenados. Mas, raciocinava Ratinho, os operários também são ferozes quando fazem reivindicações, quando fazem greve. Como diferenciar a ferocidade de uns da ferocidade dos outros? De que maneira separar a ferocidade progressista da ferocidade reacionária? Seria o caso de deixar, ao lado do leopardo morto, uma mensagem esclarecedora, informando que o animal fora sacrificado para servir de exemplo aos donos do poder? Talvez não se tratasse de leopardos verdadeiros, Leopardos no templo poderia muito bem ser o codinome um pouco inusitado, mas não é da essência revolucionária o inusitado? de um grupo trotskista de praga, o grupo que o auxiliaria na ação. Afinal, dizia Kafka, estavam invadindo um templo, coisa que certamente a revolução faria; nesse sentido integravam-se perfeitamente na inexorável marcha da história. Mas o que se seguia, no texto, arruinava um pouco não, arruinava consideravelmente a lógica do raciocínio. Porque os leopardos invadiam o templo não para destruí-lo, não para dali afugentar os mercadores da credulidade, padres, pastores ou rabinos os leopardos iam lá beber o conteúdo de vasos sacrificiais. Por que fariam isso? Não se tratava de uma apologia à bebida alcoólica, mesmo porque Kafka não era explícito a respeito do que havia nos vasos. Qual era então o significado do ato? Seriam os leopardos feras treinadas para defender o clero, o poder? Neste caso, não designaria o codinome militantes de direita? (SCLIAR, 2000, p. 56 - 7) Benjamin/Ratinho vai fazer várias tentativas de leitura até o fim do livro, nos mostrando as diversas possibilidades de leitura que um texto como o de Kafka nos dá. A aventura literária que Scliar nos apresenta parece lembrar a todo instante que as possibilidades de leitura são múltiplas e que não há hierarquia entre elas. 164 Além da multiplicidade das leituras, o texto investiga outras questões conexas como a da formação de um leitor erudito em contraponto a um leitor menos treinado. Em um momento de estranhamento com o hermetismo do texto de Kafka, Ratinho se pergunta indignado: Não entendo o que você escreve camarada Kafka. Sinto muito, mas não entendo. Talvez o seu texto represente um novo estágio na literatura, um estágio que escapa ao alcance da maioria das pessoas (SCLIAR, 2000, p. 54). A intelectual argentina Beatriz Sarlo, ao comentar em texto autobiográfico sua experiência de leitura em 1960 com o poema The tiger , de William Blake, reflete sobre o treinamento desse leitor de literatura especializado: Em primeiro lugar, sob uma perspectiva sociológica, a noção de arte e literatura corresponde a uma formação elitista na qual o leitor (ou o visionador ) foi duramente treinado em instituições especialmente dedicadas a isso. Minhas aventuras com o poema de Blake na Universidade de Buenos Aires são um exemplo. Nada precisa ser acrescentado a essa velha história. Ela tem todos os elementos de uma educação moderna e elitista. A história responde a um roteiro conhecido: compromisso pessoal, esforço ilimitado, aprendizagem do ofício e comunicação de uma tradição. (MARQUES, 2002, P. 43) Voltando à proposta da multiplicidade de leituras que pode ser vislumbrada no texto de Scliar, podemos imaginar que, se utilizarmos esse ensinamento para lermos o próprio romance Os Leopardos de Kafka, chegaremos à conclusão de que ele permite várias leituras e classificações literatura de massa, literatura judaica, alta literatura, literatura de humor, literatura de encomenda todas falsas, todas verdadeiras. Passando a outro escritor gaúcho que respondeu à encomenda da Companhia das Letras, Luis Fernando Verissimo, podemos preliminarmente fazer algumas observações sobre o seu Borges e os orangotangos eternos no contexto de sua obra como um todo. Luis Fernando Verissimo, filho de Érico, nasceu em Porto Alegre em 1936. Grande parte de sua obra é formada por crônicas, publicadas inicialmente na imprensa e depois em livro. A sua obra romanesca é formada basicamente por livros escritos a partir de encomendas para coleções e que se aproximam do gênero policial pela vertente da paródia. Antes do seu 165 livro para a coleção Literatura ou Morte, publicou em 1988 o policial O jardim do diabo, fora de qualquer coleção de encomenda, e, em 1998, O clube dos anjos, pela coleção Plenos Pecados. Após a publicação de Borges e os orangotangos eternos, lança, em 2004, O opositor, pela coleção Cinco Dedos de Prosa. Ele não publica costumeiramente pela Companhia das Letras, mas por uma de suas principais concorrentes na edição de autores de ficção brasileiros, a Editora Objetiva. Assim como Scliar, Verissimo escolhe homenagear na coleção Literatura ou Morte outro escritor nada realista: Jorge Luis Borges. Borges e os orangotangos eternos é uma narrativa na qual o interlocutor é o próprio Borges. O texto é estruturado como se fosse uma carta escrita ao argentino. Ele é o destinatário dessa narrativa policial que cita e incorpora o texto de vários outros escritores que enveredam das mais variadas formas tanto pela literatura policial quanto pelos caminhos do fantástico e do sobrenatural, como Edgar Allan Poe, Lovecraft, John Dee, Thomas Browne, Lewis Carrol, entre outros. Verissimo utiliza o universo literário desses autores numa narrativa labiríntica como a narrativa borgiana. O texto também pode ser encarado como uma reescritura das histórias policiais escritas por Borges, em parceria com Bioy Casares, protagonizadas pelo detetive Dom Isidro Parodi. O protagonista de Borges e os orangotangos eternos é Vogelstein, um cinqüentão solitário, tradutor e escritor de pouco sucesso, que vive em Porto Alegre e passou uma vida entre livros, protegida, em que raramente o inesperado entrou como um tigre (VERISSIMO, 2000, p. 14). De repente, o destino sacode furiosamente a mesmice de sua vidinha e leva-o, em 1985, a um congresso da Israfel Society, formada por especialistas em Edgar Allan Poe, o precursor do romance policial moderno. Para surpresa de Vogelstein, dessa vez a sociedade se reunirá em Buenos Aires, próximo a Porto Alegre, onde ele conhecerá seu ídolo, Jorge Luis Borges, com quem já se envolveu sua carreira de tradutor no início de em um mal-entendido a respeito de uma tradução. Vogelstein consegue efetivamente participar do evento. Um dos estudiosos presentes ao congresso, o alemão Rotkopf, é assassinado de forma misteriosa num quarto de hotel. No mesmo andar desse hotel estão hospedados os dois principais suspeitos: seus adversários intelectuais, os 166 eruditos Xavier Urquiza e Oliver Johnson. Vogelstein acaba sendo a primeira pessoa a ver a cena do crime. E passará a dividir com outro escritor presente, o próprio Borges, a missão de desvendar o misterioso assassinato. A cena do crime, num quarto trancado, numa referência à seminal história policial de Poe, O assassinato da Rua Morgue , é descrita de modo falsamente preciso por Vogelstein: O corpo formava a letra V, disso eu não tinha dúvida. Mas qual era sua posição? Estava com a bunda, ou o vértice do V, encostada num dos espelhos que cobriam uma parede do quarto. Era isso, a bunda contra o espelho. O sangue formara um lago no tapete, sobre o qual ele tinha se arrastado, ou sido arrastado, até perto do espelho. A garrafa de tequila e os copos que usáramos continuavam no mesmo lugar, sobre uma mesa, mas ao lado da garrafa havia quatro cartas de baralho que não estavam ali antes. Nenhum sinal do instrumento usado para cortar a garganta de Joachin Rotkopf, depois enfiado duas vezes na sua barriga. (VERISSIMO, 2000, p. 39) A partir desses indícios, Volgenstein e Borges começam uma investigação intelectual, auxiliada pelos textos literários dos autores mencionados anteriormente, para descobrir o real significado da cena do crime. Deduzem, a partir de uma citação de Carrol, que o V que o corpo parecia expressar, era um X, já que o vértice do corpo estava encostado num espelho. E esse X seria a forma que o assassinado encontrou para informar o nome do assassino: Xavier Urquiza. Em seguida, a partir de um conto de Poe, estabelecem que o X pode estar substituindo a inicial verdadeira, o O, de Oliver Johnson. E essas referências literárias vão mudando a leitura das pistas e o rumo da investigação. Essa profusão de referências literárias acaba dando intencionalmente ao texto um caráter de artificial, esgarçando os limites do ficcional. O pacto ficcional que se estabelece com o leitor é desfeito pelo exagero de ficcionalidade. Umberto Eco, no ensaio Seis passeios pelo bosque da ficção explicita com clareza o que é o pacto ficcional básico: A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de 167 suspensão da descrença . O leitor tem que saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, 81) A trama se desenvolve nessa profusão de referências a textos literários. A investigação não é criminal, mas literária. Não só textos literários são analisados, mas diversas questões da teoria da literatura e da crítica literária. A superinterpretação, o estatuto do ficcional, a intertextualidade, a recepção do texto literário e várias outras questões são examinadas por Borges e Vogelstein a pretexto de estarem investigando o crime. A narrativa caminha num labirinto tortuoso de suposições comandadas pelo narrador Vogelstein, que não levam a lugar nenhum em relação ao enigma. A solução do enigma só é dada num pós-escrito em forma de carta, endereçada pelo personagem Borges a V., que pode ser tanto o narrador Volgenstein como o autor Verissimo. Esse Borges ficcional faz uma análise do próprio gênero policial de enigma a partir das referências que o personagem-narrador faz ao conto O escaravelho de ouro , de Edgard Allan Poe: Comecei a pensar no que poderia haver de pertinente na história de Poe na descoberta de um escaravelho de ouro e o pergaminho usado para embrulhálo, e me lembrei de que nela Poe, que já inventara a história de detetive e anti-história de detetive, estava inventando uma das convenções mais controvertidas da história de detetive, que é o narrador inconfiável. Embora o escaravelho de ouro dê o nome ao conto e pareça ser o centro da trama, é, na verdade, um detalhe sem importância. O pergaminho é o que interessa, pois nele está a mensagem cifrada que leva ao tesouro. O narrador ilude o leitor, que só fica sabendo o que ele sabe no fim. Invocando o Escaravelho dourado você estava me dizendo que a solução para o caso do alemão assassinado num quarto fechado não se encontrava nas pistas deixadas na cena do crime ou mesmo no crime, e sim no seu relato. O fato era o escaravelho dourado da sua história, meu caro narrador inconfiável, e a sua narrativa o pergaminho, onde está a explicação de tudo. (VERISSIMO, 2000, p. 119-120) 168 Na solução final apresentada por Borges, o culpado pelo crime, e pela inconfiabilidade da narrativa, é o próprio narrador Volgenstein. Borges é um detetive do texto e descobre pelas falhas da narrativa que o culpado é o próprio narrador. A solução da trama está na própria narrativa e não nos fatos descritos por ela segundo o nosso detetive literário. A trama policial é explicitamente um jogo, criado para mascarar o crime verdadeiro: a escritura do texto. Borges e os orangotangos, de Verissimo, junto com Os leopardos de Kafka, de Scliar, apesar de suas diferenças, formam um grupo dentro da coleção no qual a resposta à encomenda foram pequenos romances que investigam explicitamente o texto literário. Essa opção já é uma direção potencialmente dada pela encomenda em si, mas que se realiza no resultado apresentado pelos dois escritores. Analisaremos agora uma encomenda dada a um escritor estrangeiro. O romance Stevenson sob as palmeiras foi escrito pelo argentino radicado no Canadá, Alberto Manguel, nascido em 1948. Ele tem uma vasta obra, com textos de ficção e não-ficção, sendo publicado no Brasil pela Companhia das Letras desde 1999, com o aparecimento de Uma história da leitura. O autor que ele escolheu para homenagear foi o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), que se aventurou por diversos gêneros de ficção, seja em romances de aventuras, como A ilha do tesouro e Kidnapped, seja em contos morais e fantásticos, como O médico e o monstro e Markham. Dessa vez a Companhia das Letras fez a encomenda a um escritor inserido num contexto literário estrangeiro, o que mostra uma intervenção direta de uma editora na literatura nacional de outro país. Manguel escreveu Stevenson sob as palmeiras em inglês e o publicou inicialmente pela Companhia com tradução para o português de Paulo Henriques Britto. Só após ser publicada sua tradução, o livro foi lançado na versão original em inglês. Na edição brasileira, após o resumo biográfico de Manguel, ele mesmo escreve um pequeno agradecimento ao seu editor brasileiro, revelando a importância que dá à encomenda: 169 Quero agradecer ao meu editor, Luiz Schwarcz, pelo presente que foi a idéia deste livro. Sem a sua generosa sugestão, eu não teria acreditado possível acompanhar R. L. Stevenson em sua última e fantástica jornada. (MANGUEL, 2000, p. 87) Antes mesmo de começar a leitura do romance, podemos constatar a partir do resumo biográfico de Stevenson, escrito pelo próprio Manguel, a sua visão positiva do escritor escocês e de sua produção literária. Explicita também que uma de suas intenções é proporcionar um primeiro contato do leitor com Stevenson. E, com isto, parece pretender levá-lo a ler as próprias obras do escritor escocês: Ler Stevenson é uma aventura intelectual, um encontro com uma mente clara e despretensiosamente inteligente; mas, acima de tudo, é um ato de amizade, pois quem abre um de seus livros (a menos que tenha o espírito insensível e a cabeça embotada) ganha um amigo generoso e honesto para o resto da vida. (MANGUEL, 2000, p. 86) Esse trecho de Manguel mostra a intenção de seu pequeno romance funcionar como um estímulo para a leitura da obra de Stevenson. É interessante observar que a mais conhecida obra de Stevenson, A ilha do tesouro, também funciona como um convite de leitura. Essa obra é intencionalmente uma porta de entrada para o mundo da ficção, sendo, a partir de sua publicação, em 1883, a primeira leitura ficcional de maior fôlego para jovens ocidentais. Antes de começar a narrativa de A ilha do tesouro, Stevenson faz um convite ao comprador hesitante, indicando o quão prazerosa a sua leitura pode ser para um jovem leitor: Para o comprador hesitante: Se os contos e canções dos marinheiros, Tempestades e aventuras, calor e frio, Escunas, ilhas e homens nelas abandonados E bucaneiros e ouro enterrado, E todos velhos romances, recontados, Exatamente da maneira antiga, 170 Podem agradar, como a mim agradavam antigamente, Aos jovens mais espertos de hoje: Seja assim, então: venham! Se não quiserem, Se a juventude estudiosa não anseia, Se esqueceu de seus antigos apetites, Por Kingston, ou Ballantyne ou Bravo, Ou por Cooper, das florestas e das ondas, Então seja assim também! E possamos eu E todos os meus piratas partilhar da tumba Em que jazem estes e todas as suas criações! (STEVENSON, 2001, p. 10) Manguel repete o projeto do escritor escocês e escreve uma ficção que serve de ponte para outras leituras, agora prioritariamente para a obra de Stevenson. O enredo vai explorar ficcionalmente episódios biográficos do escritor. Stevenson sob as palmeiras. Cria uma trama criminal para apresentar a vida do escritor na Ilha de Samoa, no Pacífico Sul, onde Stevenson passou os últimos dias de sua vida entre os nativos. Com a mulher, dois enteados e a mãe, Stevenson habita uma casa em que móveis e objetos reproduzem o bemestar britânico da época. Trata-se também da casa de um escritor. Em seu escritório, sentado à escrivaninha, Stevenson escreve a sua última obra. Do lado de fora da casa, há o sol, o flamboiã, o dia-a-dia dos nativos e a nudez de suas mulheres. Stevenson, nas primeiras páginas do romance, reflete sobre as mudanças que o modo de viver da ilha implica em comparação para o que fora preparado pela sua educação européia: Ali em Samoa, tudo o que outrora fora oculto, sussurrado, abotoado no mundo protegido de sua infância era escancarado descarado, às claras e de início aquilo havia sido demais para seus sentidos, sufocava-o, tal como perturbara Fanny, deixando-a impaciente e zangada. Porém eles haviam ficado, e com o passar dos anos aquele mundo berrante passou a encantá-los, e acabaram se acostumando com a falta de reserva. E embora em casa, em Vailima, conservassem o decoro que convém a um cavalheiro escocês e sua família (dois enteados crescidos, a mãe idosa de Stevenson), agora rejubilavam-se com a explosão de sons e cores lá fora, ao ver um mundo que parecia estar constantemente se abrindo, como uma flor de perfume pesado. (MANGUEL, 2000, p. 15 - 16) 171 A trama se desenvolve com a ocorrência de um crime: uma bela e jovem nativa é assassinada. Os samoanos vão atribuí-lo ao contador de histórias , a Tusitala, como o escritor é conhecido no idioma local. Instala-se a tensão entre o modo de viver britânico e o dos nativos. Robert Louis Stevenson, o escritor, torna-se personagem de uma história policial: o principal suspeito de ter cometido o crime. No desenrolar dessa trama, que emaranha biografia e ficção, acompanhamos a própria morte do escritor, cuja saúde sempre fora frágil, ao final do livro. Apesar de estar a todo tempo discutindo os limites entre fato e ficção, Manguel desenvolve a narrativa de forma simples, comunicativa e direta, como uma homenagem ao escritor. O contraste radical entre o recato da vida pessoal do escritor e os livros que escrevia, cheios de prazeres e aventuras dos mais diversos tipos, será explorado por Manguel no seu texto. A vida e a obra de Stevenson são colocadas frente a frente para tirar suas diferenças. O resultado é esse pequeno romance, que, mesmo baseando-se em fatos e personagens reais, tirados das cartas e textos autobiográficos de Stevenson, aponta para as possibilidades infinitas da ficção. Novamente na coleção, a trama criminal serve apenas como pretexto, agora para investigar a vida literária de um escritor fora do seu ambiente literário, em que não há um diálogo com uma comunidade de possíveis leitores. Manguel descreve Stevenson como um escritor em crise, com problemas de saúde e certa dificuldade para criar novas histórias e se ambientar entre os nativos. Apesar do modo afetuoso que desenvolve seu personagem, não mitifica o escritor como um gênio criador acima dos problemas mundanos, como podemos ver nesta cena: Na manhã seguinte, curiosamente, despertou sentindo-se bem como não se sentia havia muito tempo, como se a tosse devastadora fosse uma tempestade que, após passar, deixara-o quase renovado, sem sequer a falta de ar habitual. [...] Estava ansioso por começar. Sentou-se, endireitou a pequena fileira de livros na escrivaninha, pegou algumas folhas de papel sob o mataborrão e mergulhou a pena no tinteiro. (MANGUEL, 2000, p. 22 - 23) 172 Esse escritor demasiadamente humano contrasta com um modo de se encarar o escritor e todo artista como seres especiais por possuírem a capacidade consumada da criação artística. Portanto, é inevitável a comparação de o Stevenson ficcional de Manguel com o personagem Charles Strickland, criado pelo autor inglês Somerset Maugham, inspirado pelo pintor Paul Gaugin, que passou também parte de sua vida nos mares do sul, entre povos nativos. O Charles Strickland, protagonista de Um gosto e seis vinténs (The moon and teh sixpence), publicado inicialmente em 1919, era retratado como um ser genial, quase sobre-humano, que não tinha, e não deveria ter, limites éticos ou estéticos. A incompreensão da sociedade e do mercado só comprovava sua genialidade artística. Enquanto no livro de Manguel a presença de Stevenson nos mares do sul serve como laboratório para a compreensão dos limites e realçar a tensão entre modo de viver europeu e o dos nativos, no livro de Maugham, a presença de Strickland em ambiente semelhante serve para reforçar que ele é uma força da natureza, muito mais à vontade numa choupana no Tahiti do que em escritórios de Londres ou ateliês de Paris. Todas as descrições do caráter e do físico do pintor, antes ou depois de sua ida para o Tahiti, reforçam uma caracterização mitificadora do artista, como podemos ver neste comentário do narrador, personagem que se torna amigo e admirador de Strickland: Havia qualquer coisa de monumental no seu aspecto desordenado. Como explicar a impressão que ele me causava? Apesar da quase transparência do corpo, era difícil falar em espiritualidade; seus traços acusavam uma sensualidade demasiadamente brutal. Mas, a despeito da aparente contradição, essa sensualidade tocava as raias do imaterial. Algo de primitivo emanava dele. Parecia descender dessas forças primitivas que os gregos personificavam sob formas semi-humanas; o sátiro e o fauno. Faziame pensar em Marsyas estrangulado, cujo canto quis rivalizar com o canto dos deuses. No coração de Strickland vibravam harmonias desconhecidas, flutuavam formas nebulosas. (MAUGHAM, 1957, p. 114) Outros textos da coleção Literatura ou Morte também utilizam episódios da biografia dos homenageados como ponto central da trama, se aproximando do gênero romance histórico. Esse é o caso de O doente Molière, de Rubem Fonseca. Sua escolha 173 como um dos escritores a receber a encomenda se explica tanto por ele ser um dos escritores brasileiros de maior prestígio do catálogo da editora quanto por manter uma relação forte com a editora, seja prefaciando ou indicando novos autores, seja dialogando bastante com a equipe editorial na produção de seus livros. Um dos efeitos no resultado da sua obra gerado pela sua parceria com a Companhia, onde está desde 1988, foi a sua aproximação do gênero romance histórico, tendo publicado pela editora paulista Agosto e O Selvagem da ópera. O resultado da sua encomenda para a coleção foi também um romance histórico. O doente Molière, de quase 150 páginas, recria, a partir de pesquisa histórica minuciosa, as circunstâncias da morte de Molière, numa narrativa em que envolve 47 personagens, dos quais um é assumidamente fictício: o Marquês Anônimo, narrador da história e amigo de infância de Molière, expectador privilegiado de sua morte na trama desenvolvida por Rubem Fonseca. O narrador explica, no início da narrativa, as suas intenções: Selecionei alguns trechos das minhas anotações, para serem publicados anonimamente, como parte das minhas memórias. As descrições que faço das intrigas e escândalos da corte, da efervescência dos salões, da influência perniciosa do clero e de outras corporações, da rivalidade entre artistas, nobres e áulicos, podem não parecer, mas estão ligadas ao tema principal desta seleção: a morte de Molière, vítima de tantas aleivosias, incompreensões, injustiças e violências em razão das peças que escreveu. (FONSECA, 2000, p. 16) A partir do fato real da morte do dramaturgo, é criada uma ficção na qual se busca um responsável pela morte de Molière, ou seja, o assassino. A trama de assassinato serve para investigarmos a vida social, literária e artística na França de Luís XIV, cujo reinado, no século XVII, foi período de intensa criatividade, quando surgiram nomes como Corneille, Racine, La Fontaine e Boileau, além do próprio Molière. As pistas para a descoberta do assassino estão na própria obra da vítima, que revelou o ridículo de atitudes particulares e sociais de uma série de figuras mais ou menos determinadas: médicos, 174 cortesãs, arrivistas, aristocratas, religiosos, entre outros. A busca do assassino se faz pela tentativa de identificação dos inimigos da sua obra. O escritor cubano Leonardo Padura também respondeu a encomenda, escrevendo o romance Adeus, Hemingway, o último volume a ser publicado na versão brasileira da coleção, já em 2001. O texto foi escrito originalmente em espanhol e posteriormente traduzido para o português por Lúcia Maria Goulart Jahn. O modo pelo qual o autor resolveu a encomenda de escrever uma ficção que envolvesse um crime e um grande escritor do passado foi utilizar o seu antigo personagem Mario Conde, protagonista de quatro romances policiais escritos anteriormente Companhia das Letras dois deles publicados no Brasil pela , sendo, em tese, o romance da coleção que mais segue o receituário do romance policial moderno, tendo inclusive como protagonista um típico detetive. Em nota introdutória ao romance, Padura Fuentes explicou os mecanismos pelos quais chegou a esta solução para a encomenda: Decidido a abandonar Conde por algum tempo, comecei a escrever um romance em que ele não apareceria. No meio dessa outra história, meus editores brasileiros me pediram que participasse da série Literatura ou morte ; caso aceitasse, devia indicar-lhes o nome do escritor em torno do qual se desenvolveria o relato. Depois de pensar muito pouco, o projeto me entusiasmou, e o escritor que de imediato me veio à mente foi Ernest Hemingway, com quem tive durante anos uma encarniçada relação de amor e ódio. Mas, ao procurar o jeito de enfrentar o meu dilema pessoal com o autor de Fiesta, não me ocorreu nada melhor do que transferir minhas obsessões para Conde como fiz tantas outras vezes e transformá-lo no protagonista da história. (PADURA FUENTES, 2001, p. 11) A solução para a encomenda foi o desenvolvimento de uma trama na qual o tempo presente é a investigação na década de 1990 pela polícia cubana de um crime acontecido 40 anos antes no sítio Vigia, a residência de Hemingway em Cuba, em localidade próxima a Havana, transformado em museu na época da investigação. Padura Fuentes vai reutilizar um personagem que ele já havia aposentado para cumprir a encomenda, utilizando também a estrutura de romance policial, gênero de várias de suas 175 obras anteriores. Ele utiliza na encomenda, portanto, elementos que já estavam presentes na sua obra. O que a encomenda traz de novo é a oportunidade de desenvolver uma trama que envolve um dos escritores que, segundo ele próprio, mais o intriga e estimula. Podemos aproveitar a continuação da nota introdutória de Padura Fuentes para explicar o próprio enredo ficcional que criou: Da relação entre Hemingway e Conde, a partir da misteriosa aparição de um cadáver na casa do autor norte-americano em Havana, surgiu esta novela, que, em todos sentidos, deve ser lida como tal: porque é apenas uma novela e muitos dos fatos nela narrados, mesmo se extraídos da mais verificável realidade e da mais estrita cronologia, estão peneirados pela ficção e entremeados com ela a tal ponto que, mesmo agora, sou incapaz de saber onde termina um país e começa o outro. No entanto, apesar de alguns personagens conservarem seus verdadeiros nomes, outros foram rebatizados para evitar possíveis suscetibilidades, e as figuras da realidade se misturam com as da ficção em um território regido apenas pelas leis e pelo tempo da ficção. Assim sendo, o Hemingway desta obra é, evidentemente, um Hemingway ficcional, pois a história em que se envolveu é apenas um produto da minha imaginação, e em cuja escrita pratico inclusive a licença poética e pós-moderna de citar algumas passagens de suas obras e entrevistas para construir a história da longa noite de 2 para 3 de outubro de 1958. (PADURA FUENTES, 2000, p. 1- 12) Conde torna-se protagonista examinados como em todos os outros volumes de uma aventura mais literária do que policial, na qual a vida e a obra de Hemingway são analisadas, avaliadas e julgadas: a ética de sua vida e a estética de sua obra. Padura Fuentes deixa claro na nota introdutória que qualquer tentativa de o leitor separar o que é fato do que é ficção é infrutífera, na medida em que estão completamente embaralhados, regidos, em última instância, por uma lógica ficcional, quase repetindo tardiamente a frase de Flaubert: Mme Bovary c´est moi! A observação do autor se explica por seu enredo envolver personagens reais muitos deles vivos ou com parentes vivos com a trama ficcional de um crime, que, pela sua verossimilhança, poderia gerar malentendidos. O que há de real no romance não é a possibilidade de Hemingway ser o responsável por um assassinato, mas o questionamento radical que Padura Fuentes faz do 176 escritor que escolheu. Mas esse questionamento torna-se homenagem, ao, no desenvolvimento do texto, seguir o estilo literário direto, despojado e vigoroso do escritor norte-americano. Olavo Bilac é o único escritor nacional homenageado na coleção. Bilac vê estrelas é o livro de estréia na ficção do jornalista Ruy Castro, que, no entanto, já publicou pela Companhia das Letras diversos textos não-ficcionais sobre temas históricos e biográficos, dos quais vários se relacionam de alguma foram com a cidade do Rio de Janeiro, como O anjo pornográfico A vida de Nelson Rodrigues e Ela é carioca Uma enciclopédia de Ipanema. Seu livro na coleção também vai ter como cenário o Rio, onde se passa uma trama que envolve além de Olavo Bilac outros personagens da vida cultural da Bélle Époque carioca início do século XX , como José do Patrocínio, Pardal Mallet e Santos Dumont, durante uma de suas passagens pela cidade. Apesar do pano de fundo histórico, a trama se afasta do realismo, envolvendo os literatos e as outras figuras históricas em aventuras fantasiosas, como roubos dos planos de um dirigível concebido por Patrocínio, a sedução de Bilac por uma bela espiã portuguesa, e fugas de bandidos em charretes pela rua do Ouvidor. Os escritores que participam dessa trama não eram seres etéreos desligados do mundo , mas segundo o Bilac personagem homens de carne e osso, capazes de covardia ou bravura conforme o caso (CASTRO, 2000, p. 15-16). Ruy Castro se afasta do rigor historiográfico que tenta buscar nos seus livros não-ficcionais, optando pela fantasia e imaginação num texto simples e bem-humorado em que Bilac não ouve estrelas, mas vê estrelas após uma bengalada , repleto de referências ao seu tema principal na ficção ou na não-ficção: a cidade do Rio de Janeiro. Bernardo Carvalho, escritor carioca radicado em São Paulo, o mais jovem entre os que realizaram a encomenda tendo nascido em 1960 , escreveu o livro mais pessoal de todos os da coleção, ou seja, aquele em que a resposta à encomenda foi a mais inusitada. Medo de Sade afasta-se do gênero policial e de qualquer outro gênero da literatura de massa. O escritor francês nascido em 1740 dá título ao romance e tem sua vida retratada no texto biográfico ao final do livro. No texto ficcional, no entanto, o Marquês de Sade, ou Donatien Alphonse François, não aparece como um personagem ativo, mas sim 177 como uma possibilidade de personagem, um espectro que repercute nas ações e pensamentos dos personagens, na estruturação do enredo e no clima e estilo do próprio texto, que tem duas partes conectadas entre si, de cerca de 50 páginas cada uma, denominadas Ato 1 e Ato 2. A primeira parte utiliza a estrutura dramática de diálogos para contar a história de um personagem fictício, o barão de LaChafoi, contemporâneo do Marquês de Sade. Encontramos o barão enclausurado, supostamente numa cela do hospício de Charenton, onde Sade passou os últimos dias de sua vida. LaChafoi dialoga com uma voz , que pode ser a de Sade, lhe contando a história que motivou seu encarceramento, chegando, com a ajuda de informações fornecidas pela voz , a conclusões sobre essa história. O Ato 2 conta a história de um casal de franceses nos dias atuais. Os dois moram numa localidade próxima do barão da primeira história, que seria um filósofo libertino como Sade. O casal é admirador do barão, cuja filosofia dizia que só o horror pode manter o casamento, sob o princípio da traição . Eles inventam um jogo em que cada cônjuge prega uma peça ao outro, alternada e sucessivamente, que eles chamam de medo de Sade , uma referência ao célebre marquês, é lógico, que ao tudo indica tinha inspirado o barão no início do século XIX em sua filosofia tão peculiar (CARVALHO, 2000, p. 68). No jogo, quem tivesse mais medo, perdia. O desenvolvimento do enredo do Ato 2 é o prosseguimento do jogo, que só acaba com a morte da mulher assassinada a mando do marido numa viagem turística de ambos ao Rio de Janeiro e o conseqüente enlouquecimento do marido, que fica internado num hospício carioca. O Ato 1 e Ato 2 se conectam mais ainda com a situação do hospício. A loucura dos dois internos, o barão e o marido, pode ser uma só. Na estrutura ficcional realizada por Bernardo Carvalho a leitura do Ato 2 reorienta o sentido da leitura do primeiro, reforçando a presença espectral do Marquês de Sade na trama. O resultado não explora explicitamente dois elementos potencias que estão na encomenda: vida literária e discussão explícita de aspectos da ficção. Para o autor, a encomenda para a coleção trouxe um desafio, como criar uma ficção a partir da presença do nome de Sade no título. A solução foi tornar Sade um nome no título, que repercute na 178 trama como espectro e não como personagem efetivo. O crítico português Abel Barros Baptista, em resenha publicada no caderno Mais! da Folha de São Paulo por ocasião do lançamento dos primeiros volumes da coleção, analisa assim a singularidade do romance de Bernardo Carvalho: Não se trata apenas de dizer que Medo de Sade permanece absolutamente fiel ao mundo ficcional de Carvalho, menos ainda que repete procedimentos já utilizados noutros livros: o mais significativo é que essa singular conjunção de perversidade e de um apurado sentido da composição romanesca, típica dos livros de Bernardo Carvalho, parece forjar-se para responder a essa encomenda. E daí que, de modo paradoxal, Medo de Sade seja a um tempo uma plena e inteligente resposta à encomenda e uma fuga radical aos termos dela. [...] Bernardo Carvalho levou à letra a regra da encomenda e tirou dela o máximo partido: Sade é ali um nome e, enquanto nome, a sua presença define-se no modo espectral que a repetição do nome torna possível. (BAPTISTA, 2000, p. 18 - 19) Podemos então dizer, como Abel Baptista, que o romance de Carvalho é simultaneamente um cumprimento fiel e uma fuga radical da encomenda. Obedece na medida em que utiliza o nome Sade enquanto espectro que paira sobre a narrativa e por engendrar uma trama de assassinato, já que a encomenda é literalmente, como vimos, uma trama criminal com o nome de um grande autor do passado no título. No texto, Sade nunca deixa de ser nome para se tornar personagem, numa obediência radical ao que foi solicitado. Mas a obediência paradoxalmente funciona como fuga ao espírito dos outros livros da coleção. A possibilidade de falar de vida literária e de literatura foi vista pelos outros autores como uma regra a ser seguida e seus resultados sempre se remetem a essa regra. Nesse contexto, Medo de Sade é um corpo estranho em relação aos outros resultados. Bernardo Carvalho opta por criar uma ficção pessoal, extremamente conectada com o desenvolvimento da sua própria carreira como ficcionista, e não como uma bifurcação momentânea, dando uma resposta irônica à encomenda. Após as análises mais ou menos detalhadas dos textos das coleções, podemos retomar algumas das nossas afirmações anteriores sobre a encomenda na ficção e 179 arriscarmos mais algumas conclusões. Podemos utilizar o comentário que Abel Barros Baptista em texto já citado faz da encomenda ficcional em geral e da encomenda no caso da coleção Literatura ou Morte em particular: A encomenda é um modo de produção de literatura, e apenas uma visão superficial desta pôde alguma vez alimentar preconceitos envelhecidos. Talvez nenhuma outra figura evidencie com tanta nitidez quer a dimensão institucional da atividade literária, quer as transformações técnicoeconômicas que hoje a afetam: a encomenda resume toda a economia política da profissão de escritor e, no caso da coleção Literatura ou Morte , até expõe o editor na passagem da suposta posição de intermediário entre escritor e público para a de produtor ativo, que engendra literatura além daquela que os seus autores, por iniciativa própria, regularmente lhe confiam. (BAPTISTA, 2000, p. 18) A encomenda explícita de uma obra literária por um editor não é a forma usual do processo editorial no campo da ficção, mas, como observa Abel Baptista, ela é reveladora na sua singularidade do papel ativo que o editor pode ter na produção literária. Esse papel ativo da encomenda fica mais complexo no caso da coleção temática, já que se propõe temas iguais ou conexos a autores diferentes esperando-se resultados mais ou menos diferentes. A diferença básica das obras da coleção Literatura ou Morte entre si é que cada uma vai dedicar o seu texto a um autor diferente. O resultado final pode aumentar as diferenças ou se aproximar da repetição, da repetição como variação sem diferença. O papel autoral do editor na encomenda de textos numa coleção temática sempre mantém a sua importância na realização do resultado, já que foi a sua existência como um desafio que impulsionou os resultados, que podem tender à repetição ou a soluções mais originais. O pesquisador russo Boris Tomachevski, da corrente formalista, em ensaio de 1925, observa que o processo literário organiza-se em torno de dois momentos importantes: a escolha do tema e sua elaboração (TOMACHEVSKI, 1971, p. 169). Na coleção Literatura ou Morte, a proposta de Luiz Schwarcz, feita a determinados escritores, pode ser vista como parte do processo literário, já que se trata do início da escolha do tema, revelando um papel autoral do editor. Ele não faz a escolha completa do tema (aquilo de 180 que se fala), mas estipula um pré-tema, que, no caso estudado, é escrever um texto ficcional que envolva um crime e possua um autor canônico no título. O escritor vai escolher o autor a ser homenageado e definir melhor também a temática do seu texto, finalizando o estabelecimento do tema a ser desenvolvido. A elaboração do texto vai de alguma forma responder a esta predefinição. Os sete romances encomendados para a versão brasileira da coleção já que o oitavo romance A morte de Rimbaud não foi encomendado, mas serviu de inspiração para a coleção combinaram de forma e intensidade diversas os elementos presentes potencialmente na encomenda. Paródia do texto dos autores homenageados, discussão de questões literárias, encenação da vida literária, trama policial, narrativa de enigma são alguns dos elementos que os escritores tinham a sua disposição. A escolha e a combinação desses ingredientes fez com que alguns dos romances se parecessem mais ou menos entre si. Independente da solução encontrada por cada autor, um dos prováveis objetivos do editor nessa encomenda, associar o nome dos principais escritores da editora ao nome de grandes autores do passado e ao nome da própria Companhia das Letras, estava garantido desde o aceite do escritor. Outro objetivo da editora, o sucesso comercial da coleção, tanto por venda de livros no Brasil como o estabelecimento de contratos com editoras estrangeiras, só poderia ser verificado a posteriori, dependendo de variáveis incontroláveis, e não só do valor literário do texto produzido. 181 Conclusões As conclusões sobre o papel específico da Companhia das Letras na literatura brasileira contemporânea já foram explicitadas no subcapítulo 2.5, Uma análise da Companhia . Este capítulo 4 servirá para tentarmos estabelecer alguns tipos de procedimentos genéricos do pólo editorial que apontem para um papel ativo em relação à literatura. Faremos esse mapeamento a partir das informações obtidas na investigação empírica, à luz de estudos sobre o papel do editor na produção como os de Pierre Bourdieu e Gustavo Sorá , bem como de estudos que se dedicaram a um estabelecimento conceitual das funções do editor, como os realizados por pesquisadores como Robert Escarpit, na França da década de 1960, e Aníbal Bragança, no Brasil de início do século XXI. A partir de um estudo de caso, tentaremos, portanto, fazer algumas constatações 182 gerais sobre o papel do editor. Os limites das generalizações que faremos são as características específicas do caso estudado. Quanto mais o perfil de uma editora próprio contexto em que está inserida e o se aproximar ao da Companhia das Letras, mais aplicáveis serão as possibilidades de ação editorial que identificaremos neste capítulo. Neste mapa de possibilidades, abarcaremos tanto as formas de ação editorial na literatura e na cultura que são anteriores à chegada do original na editora quanto as que se desencadeiam com a sua chegada. O francês Robert Escarpit, em Sociologia da literatura, afirma que reduzida às operações materiais, a função editorial pode resumir-se em três verbos: escolher, fabricar e distribuir (ESCARPIT, 1969, p. 106 107). As atividades editoriais seriam a seleção de originais, a transformação desses originais em livros e a distribuição desses livros aos leitores. Portanto, a atividade do editor só começaria com a chegada do original à editora. No desenvolvimento de sua análise, ele acaba por abarcar uma visão mais abrangente, identificando um papel mais ativo do editor em relação ao consumo e até em relação à produção dos escritores, deixando de ser um mero filtro entre o que é escrito e o que chega ao leitor: Colocado entre as propostas dos outros e as exigências do público tais como ele as representa, o editor moderno não se limita, no entanto, ao papel passivo de conciliador. Tenta agir sobre os autores em nome do público e sobre o público em nome dos autores. [...] o editor age sobre o público, provocando hábitos. Estes hábitos podem tomar a forma de modas, de esnobismos e até mesmo de predileções passageiras pela personalidade de um autor, ou então ter uma origem mais profunda e traduzirem uma fidelidade a uma determinada forma de pensar, a de um determinado estilo ou tipo de obra. (ESCARPIT, 1969, p. 108 - 109). No nosso estudo de caso confirmamos a nossa hipótese de que o editor não influi só no consumo, mas também na própria produção literária. Podemos dizer que a existência de determinada política e prática editorial publicações consumadas no seu catálogo de por parte de uma editora em relação à produção ficcional ou não-ficcional sinaliza aos escritores que tipo de literatura tem mais facilidade de publicação. Essa 183 sinalização pode ser correspondida ou não pelos escritores. Quanto mais um escritor cumprir essa sinalização, o potencial de publicação aumenta. Quando um escritor oferece determinado original a uma editora está dialogando com seu catálogo até aquele momento que funciona como um porta-voz de uma espécie de encomenda implícita. Um tipo de procedimento bastante utilizado pelas editoras é a organização da sua produção por séries, coleções, ou outros agrupamentos de livros. Editoras que organizam o seu catálogo dessa forma sinalizam com mais clareza quais livros têm potencial para serem publicados por ela, clarificando a encomenda implícita. Uma editora também pode influir na produção textual pela interlocução que mantém com determinados escritores que publicam rotineiramente por ela ou que fazem parte do círculo de relações da equipe editorial. Nesse diálogo, membros dessa equipe o próprio editor empresário ou podem orientar informalmente a produção desses escritores para que produzam obras que sejam do interesse da editora. Não se trata mais de uma sinalização hipotética, mas de uma interferência real que pode impactar diretamente no resultado textual. Uma forma de influência mais explícita é encomendar obras com determinadas características a certos escritores. Essa encomenda pode ser mais subjetiva, com simples sugestões de temas, como normalmente acontece nas coleções ficcionais temáticas, ou com mais detalhes de como deve ser o resultado, como acontece em relação a séries de temas das ciências humanas ou sociais encomendadas a pesquisadores ligados à universidade brasileira. A encomenda de obras ficcionais, apesar de dar ao escritor espaço para exercer o seu papel autoral, deixa com o editor um quinhão desse papel na medida em que a sugestão de um tema colabora para o aparecimento de uma nova obra. Aníbal Bragança também constatou esse aspecto ativo da atividade do editor: O trabalho do editor, entretanto, não tem apenas esta dimensão passiva, até certo ponto de acolher, analisar, selecionar, recusar e aceitar originais para, a partir deles, criar livros. É muitas vezes ao editor que se deve a responsabilidade pela idéia do livro ou da coleção que pretende publicar. (BRAGANÇA, 2001, p. 34 - 35) 184 A seleção de originais também orienta a produção. Na medida em que determinado texto é aceito ou não por determinada editora ele está recebendo uma resposta que pode influenciar as suas obras seguintes ou mesmo a reescritura dessa obra. Mas a importância da seleção de originais é ainda maior, já que ela determina o que vai chegar ao público leitor e o que vai ser deixado de fora do sistema literário, sem esquecermos que muitas vezes um mesmo original é enviado a várias editoras a negação de publicação numa editora não significa uma situação definitiva. Nas principais editoras literárias brasileiras contemporâneas, a seleção de originais enviados pelo correio ou por contato direto por autores desconhecidos não é muito comum. Os originais que chegam com possibilidade real de publicação são ou de autores já publicados pela editora ou de autores já com algum prestígio, bem como de autores indicados por pessoas com ascendência sobre a equipe editorial. Quem faz o papel de descobrir novos autores são as editoras menores. Esse papel de descobrir e lançar novos autores também é bastante importante dentro do universo das funções do editor. É a publicação efetiva de uma obra de um novo escritor, por uma editora, que o coloca no sistema literário, gerando a possibilidade de chegar aos seus potenciais leitores. Italo Moriconi, em ensaio publicado na coletânea A versão do autor advoga que, sem editor, não há autor: O primeiro passo na transformação do mero escritor em autor de verdade se dá através de sua legitimação pela vontade de um editor em publicá-lo. Eu acrescentaria: pela vontade de um editor em financiar sua publicação, investindo assim na criação ou consolidação de sua assinatura. (BUSATO, 2004, p. 71). O editor seleciona originais de acordo com políticas editoriais prévias, que, no entanto, podem ser dinâmicas e flexíveis. A partir dessa seleção, se desencadeia o processo editorial da fabricação, no qual, por mais que se envolva outros participantes (como empresas gráficas e escritórios de design), a responsabilidade pelo sucesso do projeto como um todo fica nas mãos do editor. Esse poder do editor de decidir o que vai 185 efetivamente se tornar livro e comandar o processo que se segue é visto por Bragança como o papel essencial do editor: São os editores, enfim, que decidem que textos vão ser transformados em livros. E, pensando em qual público a que devem servir, como serão feitos esses livros. Mesmo quando não é deles a iniciativa dos projetos, é deles que parte a direção a seguir. É neste lugar de decisão e de comando, e de criação, que está o coração do trabalho do editor, a sua essência. (BRAGANÇA, 2001, p. 24) Com a chegada do texto à editora e a decisão pela publicação, é desencadeado um trabalho de mudanças no texto que pode envolver troca do título, revisão ortográfica, copidesque, mudanças de estilo, supressão de capítulos ou partes, recomendações de reescritura de trechos e até recomendações de redirecionamento total da obra. A profundidade desse tratamento do texto varia de editora para editora, algumas interagindo mais com o escritor e outras menos em relação à produção do texto. O resultado final muitas vezes sofre uma intervenção decisiva do pólo editorial, com a concessão do autor, o pólo mais frágil na relação, como nos relata Bragança: Mesmo em situações nas quais o editor não tem qualquer pretensão de coautoria, são inúmeros os exemplos da sua velada intervenção, junto ao autor, no texto, inclusive em livros que se tornaram famosos. E todos os que já publicaram podem dar testemunhos da participação do editor em suas obras, em algumas, desde a concepção. Incisões, revisão, copidesque, título... intervenções, em geral, esquecidas, mas que contribuem, na maioria das vezes, para tornar melhor o trabalho do autor, que, algumas vezes, as aceita de boa vontade. Outras, muito relutantemente. Ou as recusa e execra, com ou sem razão. (BRAGANÇA, 2001, p. 22) Na complexa atividade editorial de transformar o original em livro, o editor exerce o importante papel de ser o responsável último pelos aspectos técnicos e gráficos da publicação. Os elementos paratextuais do livro são controlados pelo editor. A capa; toda a concepção técnica e gráfica do livro, incluindo escolha do papel, da tipologia utilizada e do 186 modo de impressão; e os elementos pré-textuais e pós-textuais, como orelhas e prefácios, acabam fazendo parte do livro propriamente dito, e também orientam o seu consumo e leitura. Em relação aos elementos técnicos e gráficos, o trabalho do editor concorre num sentido suplementar ao texto, dialogando com ele e transformando-o num novo produto, que pode ser comercializado, o livro. Aníbal Bragança, ao analisar a função editorial de fabricação do livro, constata que essa atividade interfere no resultado da obra, confirmando o papel criador da atividade editorial: Esses tratamentos editoriais perigráficos ou peritextuais são recursos que os editores mobilizam, de forma criativa, em sua atividade para, intervindo na obra, atuar culturalmente na sociedade, ampliando os níveis sociais de leitura, além de buscarem o sucesso para suas casas e os seus autores. São, portanto, criações editoriais que interferem na obra, dando ao editor um estatuto de co-autoria. (BRAGANÇA, 2001, p. 47) Um texto publicado por uma editora acaba carregando a marca dessa editora como um elemento orientador para o potencial consumidor. Ser publicado por determinada editora pode significar prestígio para o seu autor e valor literário para a obra. A editora funciona como uma chancela para os livros que publica o significado que uma editora tem no imaginário do leitor contamina as obras que publica. Uma editora especializada em certo gênero está afirmando implicitamente que as obras que publicam fazem parte desse gênero. Quando uma editora organiza seu catálogo por séries, o fato de colocar determinado texto numa série ou em outra ou de deixá-lo fora de qualquer grupo de livros acaba trazendo informação sobre as características desse texto. Um livro estar presente ou não numa série policial, por exemplo, significa muito para o leitor, orientando tanto a sua compra como o modo pelo qual ele vai ler o texto. Chegamos ao final deste capítulo expandindo em muito o número de verbos que representam os papéis ou funções que o editor pode ocupar. Aos sintéticos escolher , fabricar e distribuir , estipulados inicialmente por Robert Escarpit, somamos uma outra série de verbos: sinalizar , encomendar , 187 coordenar , criar , transformar , consagrar , orientar , direcionar . E outros ainda podem vir com a continuidade histórica da atividade de editor de livros. Antes de terminar esta tese gostaria de fazer um relato pessoal. Durante a sua execução constatei empiricamente o papel orientador que a editora pode ter em relação à leitura. Ao digitar a tese no meu escritório, olhava para as estantes e observei que um número considerável de meus livros foi publicado pelas editoras Brasiliense e Companhia das Letras. Concluí que o elemento orientador para a minha compra de livros acentuada a partir de 1985, quando ingressei na universidade mais foi a chancela dessas duas editoras. Mais do que em gêneros, áreas de conhecimento, correntes ideológicas ou nacionalidades dos escritores, a coerência da minha biblioteca pessoal está nas editoras que publicaram esses livros. Portanto, a minha leitura de livros está intimamente ligada a dois projetos editoriais em que Luiz Schwarcz teve um papel fundamental. Posso dizer que a vontade de um editor, intimamente ligada à sua possibilidade de lucro, serviu como mediadora para que uma parte da produção de livros chegasse a ser lida por mim, talvez, mais do que a vontade de pensadores, críticos, professores, e outros mediadores culturais. Ao escrever esta tese, reescrevo a minha vida como leitor. 188 BIBLIOGRAFIA: LIVROS DE NÃO-FICÇÃO, TESES E DISSERTAÇÕES: ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 1979. ALMEIDA, Ana Maria Assis de (Organizadora). Editando o editor: Ênio Silveira (V. 3). 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Sérgio Sant Anna escritor publicado pela Companhia das Letras SITES CONSULTADOS www.companhiadasletras.com.br www.publishnews.com.br www.ciberkiosk.pt www.escritoriodolivro.org.br www.asa.pt www.snel.org.br www.cbl.org.br www.norma.com www.canongate.net www.editorabrasiliense.com.br www.libre.org.br www.bndes.gov.br www.objetiva.com.br www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br www.portalliteral.com.br 202 em setembro de 2005 www.releituras.com.br www.webwritersbrasil.com.br RESUMO Esta tese pretende estudar o papel do editor na produção literária e cultural. Essa abordagem foi realizada por meio de um estudo de caso de uma editora brasileira contemporânea, a Companhia das Letras, comandada por Luiz Schwarcz. Desde seu surgimento, em 1986, essa editora tornou-se referência para o sistema editorial brasileiro pela qualidade técnica e valor cultural de seus livros. Para identificarmos o papel da Companhia das Letras na produção cultural brasileira contemporânea, serão analisados a formação da editora, as características do seu catálogo, o discurso do seu editor, a relação da editora com seus autores de ficção; e, por fim, a sua ação na criação de uma coleção ficcional de encomenda, a coleção Literatura ou Morte. ABSTRACT This thesis investigates the role of a publisher in the literature and culture industry. It is a contemporary brazilian publishing house s case study, Companhia das 203 Letras. It was established by Luiz Schwarcz, in 1986 and became, from the start, a benchmark in the brazilian publishing market. This is due to its technical quality, but also for its books cultural value. To identify the role of Companhia das Letras in the contemporary brazilian culture industry, this study will analyse how it was established, catalog characteristics, publisher s ideas, its relationship with fiction writers and its role in the creation of a fictional series where books were ordered called Literatura ou Morte (Literature or Death). 204