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Copyright © 2012 Delano Valentim
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, em vigor no Brasil desde 2009.
Edição
Eduardo Coelho
Projeto gráfico, Capa, Editoração e Produção Gráfica
Leandro Collares | Móbile Editorial
Gravura de capa
Visca
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)
Valentim, Delano
Todo mundo é Jhow / Delano Valentim. — Rio de Janeiro : Móbile, 2012.
ISBN 978-85-64502-11-6
1. Ficção brasileira, romance I. Título.
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
Todos os direitos desta edição reservados à
Móbile Editorial
R. Senador Dantas, 80 sl. 1305
Rio de Janeiro — RJ — 20031-922
Tel.: (21) 2210-1787
www.mobileeditorial.com.br
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Sumário
um
dois
três
quatro
cinco
seis
sete
oito
nove
dez
onze
doze
treze
quatorze
quinze
dezesseis
dezessete
dezoito
dezenove
vinte
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Bernardo, 7
Marcela, 9
Bernardo, 11
Marcela, 15
Narrador, 18
Bernardo, 21
Marcela, 24
Bernardo, 26
Bernardo, 34
Narrador, 40
Bernardo, 44
Narrador, 48
Marcela, 51
Narrador, 54
Bernardo, 57
Narrador, 61
Bernardo, 65
Bernardo, 69
Marcela, 72
Bernardo, 75
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vinte e um
vinte e dois
vinte e três
vinte e quatro
vinte e cinco
vinte e seis
vinte e sete
vinte e oito
vinte e nove
trinta
trinta e um
trinta e dois
trinta e três
trinta e quatro
trinta e cinco
trinta e seis
trinta e sete
trinta e oito
trinta e nove
Narrador, 78
Bernardo, 82
Bernardo, 87
Bernardo, 90
Bernardo, 95
Marcela, 99
Bernardo, 104
Narrador, 116
Narrador, 121
Narrador, 130
Narrador, 136
Narrador, 142
Bernardo, 146
Narrador, 150
Marcela, 152
Narrador, 156
Narrador, 161
Narrador, 164
Narrador, 166
Sobre o autor, 175
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um
Bernardo
... ele jogou o cigarro no chão quando a garota passou pela
gente. O outro, tentando recolher a guimba, pô o único cigarro aí...
Ela deve ter ido à padaria. Vinha com uma sacola na mão. Mas eu vi
aquele shortinho com a popa da bunda do lado de fora, e aqueles dois
peitinhos durinhos que me impressionaram. Mais até do que aquele
campo desnudo que eu ia querer lamber se tivesse oportunidade. O
vinho talvez tenha atiçado todo aquele tesão. A minha idade. O Rio
de Janeiro. O clima. E os gringos? Filhos da puta! Iam dizer que nós
não passamos de um bando de putos! Um povo sem vergonha! E eu
não queria dar razão aos gringos novamente. Safados. Se fosse minha
namorada não ia sair de casa assim. Se fosse minha irmã não ia sair de
casa assim. Se fosse a minha mãe... Era só uma menina e talvez tivesse
a minha idade. Os velhos das fábricas que ficam sentados na calçada
na hora do almoço deveriam mexer com ela. Odeio tarados. Eu senti
ciúmes quando meus amigos olharam pra ela. Tenho ciúme de alguém
que nunca vi na vida, tenho ciúme de todas as mulheres do mundo.
Quero todas as mulheres do mundo. Quero cuidar de todas as mulheres do mundo. Só eu posso cuidar de todas as mulheres do mundo.
Mas naquela hora só pensei naquele rostinho angelical preso àquele
corpo demoníaco. Não combinava. E como dizem os crentes, deve ser
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uma maquinação do diabo! Como ela usa aquela expressão naqueles
olhinhos puros? Acho que na verdade não pensei em nada disso e só
que eu ia tocar uma punheta mais tarde e precisar de muito tempo no
banheiro. Talvez esperasse minha mãe dormir. E nisso, o Magro Léo
— que nem era o mais magro de todos, e que não sei por que tinha
esse apelido, se todo mundo era magro — disse, quando ela passou:
Nossa... Que isso, novinha... Ela nem deu bola. Nem olhou pro lado.
Fingiu que não ouviu. O outro, com o cigarro entre os dedos e com
uma tosse de tísico, disse a ela: Brincou hein, novinha... Um pouco
depois que a garota passou, eu levantei e falei, já vou. Fica mais, não,
agora eu tenho que ir, é sério. Eu sabia que não podia beber. Sempre
me sinto mal quando bebo. Era dia de semana e se minha mãe estivesse acordada ainda, ia ser um merda. Tava cedo. Não ia conseguir
dormir. Mas também não queria ficar ali com aqueles parasitas. Não
sei por quê. Neurose de bêbado. Já que quando bebo fico agitado e
quero ficar na rua o máximo possível. E eu só pensava naquela garota.
Não consigo parar de pensar nela. Deu uma vontade imensa de ir lá e
pedir: Fica comigo, pelo amor de Deus! Eu me caso com você! Num
sei por que o homem sempre acha que uma proposta de casamento vai
impressionar uma mulher. E se ela não quisesse casar? E como eu ia
sustentar um casamento? Eu tava bêbado. Bebaço.
8
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dois
Marcela
Que merda. Tá tudo fechado aqui. Não vou conseguir comprar
cigarro pra Soninha. Por que o Bueno não veio? Ele sempre faz isso.
Demorou no banho só pra não vir. Nada aberto e todo mundo com
medo de tudo. A Penha é assim. Na zona sul tem lojas de conveniência
que ficam abertas a madrugada toda. Mas aqui é zona Norte. Quando
tiver dinheiro, me mando daqui. Quem sabe a loja do posto. Mas talvez
não tenha troco para uma nota de cinquenta reais. Se for um homem
com certeza vai se virar pra arrumar. Agora, se for uma mulher vai ficar
com inveja da minha beleza e dizer que não tem troco. Essa merda dessa música da Renatinha Pica-Pau não sai da minha cabeça, que saco!
Renatinha Pica-Pau é o cacete! Renata Almeida? Presente! Igual na
escola. Havia outra Renata na turma. Por isso ela teve o privilégio de
ter nome e sobrenome. Aí se alguém na sala de aula dissesse um apelido
na frente da Sílvia Chata, professora de matemática (matemática é a
matéria mais chata, e talvez por isso tenha as professoras mais chatas),
ela ia dar um discurso de meia hora e encher o nosso saquinho; falando
sobre como os filhos dela são educados e sobre como a sua vida é boa.
Um dia a vaca teve a petulância de mandar a turma até à janela. Fomos,
inocentes. Ela apontou um carro no estacionamento e disse: Aquele é
meu carro novo, eu não preciso de vocês pra nada, vocês é que precisam
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de mim! Minha vontade era dizer, eu que não invejo a tua vida! Trabalha feito uma condenada! Deve pagar em duzentas prestações. Mas,
como fez todos aqueles bocós, preferi ficar quieta. A Renata é que tá
certa. Menina sagaz. Era uma garota qualquer na escola. Tipo de gente
que se diz, não fede nem cheira. E hoje em todo lugar que eu vou, eu
escuto a voz dela: “eu quero rir com teu Pica-Pau!” E vem aquela gargalhada imbecil que todo mundo conhece. Por causa de algumas frases
idiotas, todo mundo dança e gosta dessa bobagem. Deve ser inveja minha. Garota feia. Até que gostava de mim. Num sei por quê, se eu não
dava muita bola pra ela. Ninguém dava. Ficava lá calada, do jeito dela.
Não era de zoar nem nada. E agora tá aí como a funkeira do momento.
Um dos patinhos feios da turma. No salão em que eu fazia a unha, uma
menina que morava perto dela comentou um dia: essa garota parecia
tão boba! E a manicure disse: é... Pode ser... A gente nunca sabe da
disposição que a pessoa tem. Talvez tenha cigarros do outro lado. Mas
eu tenho medo de ir do outro lado. Sinto saudade de Campo Grande.
Na parte em que eu morava era um lugar mais tranquilo. Eu gostei da
cara daquele moleque de cabeça raspada e de óculos. Dos outros não.
São metidos a malandros. Falaram gracinhas. Ele ficou com aquela cara
de tarado, num sei, parece que sentiu algo diferente quando me olhou.
Num gosto de homens que olham direto pra minha bunda. Duvido me
olhar nos olhos! E adoro garotos de óculos. Mas não vou pensar em
homens agora. Gosto de falar homens. Igual a Soninha diz. E não meninos, igual as minhas amigas dizem. Mas ainda tenho que me resolver
com o Caio. Eu vou me aproximar da Renata. Ninguém vai entender
se perguntar por ela. Vão falar, “você nem falava com a garota direito...”,
“Mas agora eu falo, qual o problema?” Será que ela tem um perfil no
Orkut? Mesmo que tenha, deve ter um milhão de pessoas perturbando. E será que ela olha o perfil? E será que vai parecer interesse? Lógico,
né? Mas eu vou tentar. Caso tenha, pode ser que fique feliz de alguém
da turma procurar por ela. De qualquer forma, essa garota é um exemplo pra mim. Tem Free de caixinha?
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três
Bernardo
A mãe do cara é gostosa. Quando a gente entrou, ela tava
sentada no sofá. É uma mulher mais velha. Tenho obsessão por mulheres mais velhas. Quero meninas da minha idade pra ir ao cinema.
Andar de mãos dadas. Beijar na boca. É normal ficar com uma menina.
Casar. Ter filhos. Mas quero uma mulher mais velha pra tudo. Paixão
mesmo. Ela cuida de mim. A gente transa no cinema. Vai à igreja. As
minas, ou uma coisa ou outra. Alguém com urgência de mais vida. Já
sofreu tudo. Sabe. Quero uma mulher trinta anos mais velha que eu.
Ou quarenta. Quando eu ficar velho, talvez deseje meninas de dezesseis anos para ter o que não tenho. Agora, não! As garotas me inibem.
As minas querem um carinha para exibir pras amigas. Sou novinho,
mas já saquei qual é a delas. É uma disputa. Querem que você seja “O
Cara”. Elas vão te perturbar por isso! E você não tem nada com essa
briga. Foda-se que o namorado da outra banca shopping toda semana,
eu tô sem dinheiro e você não vai! A mulher mais velha não, só quer ser
amada. Ou trepada. O Magro Léo e o Negro Jorge já perceberam que a
mãe do moleque é gostosa. E ele percebeu que nós percebemos. Tá acostumado com o assédio. Deve ser um saco andar com uma mãe dessas
na rua. Todos os moleques da rua te dizendo que a sua mãe é gostosa e
a comendo com os olhos. Deve ser legal ter uma mãe bonita e que não
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tem cara de tia. Minha mãe envelheceu vinte anos depois que o meu
pai morreu. Negro Jorge me zoa, num dá nem pra comer tua mãe... E
eu digo a ele, a tua é que tem os peitos no chão! E ele, a minha mãe
não, a minha mãe é gostosa! Mentira. E o Magro, a minha mãe é mais
gostosa! E o Negro, por isso teu pai é corno! E o Magro responde, pior
pra ele! Bobeira nossa. O moleque deve ter pesadelos com aquela mãe
gostosa. Duvido que não. Deve acordar todo molhado e se arrepender. Sou doente. Ainda bem que ninguém escuta meus pensamentos.
Deus é perfeito. Dá só alguns dias e um de nós diz a ele: a tua mãe é
gostosa. Será que ele vai achar engraçado ou vai ficar puto? Intimidade
é uma merda. E se a mãe dele quiser ficar com um da gente? Vai ficar
bolado? Vai ter vergonha? E se ele me pegasse com ela na cama? O
moleque não tem cara de quem ia aceitar isso. Com certeza ela teve
filho cedo. Tem mais de quarenta. Tomara que se masturbe pensando
em caras da minha idade. Eu queria dizer a ela que estou morrendo
de tesão, que ela é linda, e que não a troco pela mina mais bonita da
minha idade. Já pensou se ele casa, tem filhos, e eu venho morar com
ela? E ela, avó, namorando comigo e me dando comida. Fazendo meu
Nescau antes de dormir. As outras mulheres da idade dela com inveja.
Olhando pra gente na rua e dizendo entre dentes “quem essa mulher
pensa que é?” Mas loucas para estarem no seu lugar. As meninas com
raiva. Os mais velhos se sentindo mais velhos do que são. Eu não gosto
de ver velhos com garotas. Quando conseguem isso é porque pagam.
As mulheres mais velhas com os caras são diferentes. Olho para muitas
mulheres com mais de cinquenta anos. Acho que boa parte fica mais
bonita quando envelhece. As que se cuidam, é claro. As outras, com os
seus maridos alcoólicos e barrigudos, não. Negro Jorge me diz: quem
gosta de velho é reumatismo! E Magro Léo responde: Não achei meu
pau no lixo! Duvido que eles não comam. Falam isso da boca pra fora.
Porque têm vergonha. Mas sabem que não dá pra dispensar uma dessas. Ainda mais se frequentar a academia com calça de malhação, com
uma bunda imensa apertada contra o tecido. Sou tarado mesmo, e daí?
Vai se acostumando. E mesmo que não olhassem; sozinhos em algum
local não perderiam tempo. E digo mais: como as mães dos dois! Num
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tem esse negócio de tia não. A gente chama de tia por respeito. É uma
mulher igual a qualquer outra. Um dia eu fiquei esperando o Magro
em sua casa. A mãe dele é bonita. Tem um rosto lindo. Adoro o marido
dela, os filhos, todo mundo, nem pensar! Magro encontrou com Negro
Jorge na rua e disse: vou logo pra casa se não o Bernardo vai comer
minha mãe. Quem dera! Na hora que nós chegamos, a mãe do cara estava toda arreganhada com aquela bermuda de Lycra®. A bermuda não
é curta, mas desenha o corpo e isso é que é o mal. Igual à calcinha na
roupa branca. Ela se endireitou. Disfarçou. Pegou uma almofada para
colocar no colo. Deu mais uma disfarçada. Foi para a cozinha. A mãe
dele é cabeleireira. Separada do marido. Separada dá uma ideia de que
ela deveria estar com o ex-marido, ou que é propriedade dele. Solteira
é melhor. Ele tem uma irmã que foi num sei aonde. E a irmã como
deve ser? Tô ansioso pra ver a irmã, mas tenho que me concentrar na
mãe primeiro. A mãe é preta. Desse tipo que os racistas chamam de
morena pra não dizer que é preta. Tem uns peitos ótimos. Nem muito
grandes, nem muito pequenos. Medida certa para colocar na boca. O
nome dela é Soninha. E Soninha deve ser a causa da morte de milhões
de espermatozoides que se espatifam em ladrilhos de banheiros. Tento
não olhar nos olhos dos outros dois. Eu sei que eles estão me olhando.
O moleque tá fumando. E ela só diz: fuma na porta e não joga a guimba
na varanda, aí fora tava tudo sujo e tive que limpar essa merda! Ela grita
da cozinha. Saquei tudo. É uma dessas mães liberais. Deve ter pintado os canecos na juventude. Não aceita envelhecer. Ela deve ir ao baile com os filhos
e falar sobre sexo com o moleque. Sem pudor. Lá em casa não se pode
falar sobre sexo, e não entra bebida e nem cigarro depois que a minha
mãe virou crente. E ainda bem que eu não fumo essa porcaria fedorenta. Eles se mudaram pra cá há poucos dias. Esqueci de perguntar como
o Negro Jorge conheceu o moleque. Negro Jorge é um intrometido e
tem uma lábia do caralho! Puxa assunto com todo mundo que vê na
rua. Não precisa ter motivo. O tipo de cara que gosta de agradar todo
mundo. Não sei se não gosto dessa falta de originalidade dele, ou se na
verdade o que eu sinto é inveja. Meus amigos falam pra caralho. São
desencanados. Descolados. Da modinha. Eu prefiro me calar. Ainda
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estou sondando o cara, e sinto ciúme dele com os meus amigos. Sinto
ciúme de todo mundo que chega. Mas é só no começo. Depois me
acostumo com o novo centro das atenções, que depois de um tempo
deixa de ser o centro das atenções e se torna inofensivo. E nós vamos
avacalhar com ele também. Como nós avacalhamos uns com os outros.
O cara parece tranquilo. É safo. Malandro. Dá pra ver no olhar. Tem
uma cara de maluco, mas parece legal, bom de onda. Ele é meio lerdo,
eu acho. E um pouco forte. Mas se faz amizade velozmente, é porque o
cara é bom. Eu se me mudar daqui, nunca mais eu faço amizades com
ninguém. A mãe dele veio da cozinha com duas garrafas de cerveja. O
negócio tá ficando bom. As cervejas tão suando. Quando atravessou o
limite da cozinha e da sala vi o volume na bermuda. Entre as pernas.
Aquele inchaço. Tive que disfarçar, mas vi. Viro para o outro lado e
faço um esforço danado pra respirar e não cruzar os olhos com os meus
amigos. Como jogadores de futebol ou músicos que tocam juntos, nós
nos comunicamos pelo olhar. E se olhar nos olhos de um deles, pronto. Sei que vai me dizer alguma coisa e que vou rir. Com certeza eles
sabem que eu olhei e não sei quem mais olhou. Olho nos olhos dela
e nos olhos do filho dela. É meu jeito de disfarçar. Mas evito os olhos
dos meus amigos. Não sei se incomoda o filho e ou se ele ainda percebe essas coisas. Acho que já tá no automático e nem liga. Senão não
levaria a gente para dentro de sua casa. Sei que mais tarde vou fantasiar
e tocar uma punheta. E ela falou: vamos beber um pouquinho só, que
vocês tão muito novinhos. Deu uma gargalhada sem graça, dessas de
alcoólatras que sempre justificam o motivo para beber. É uma recepção
de boas-vindas agora. Só que nós é que éramos os convidados. Todo
mundo vai pegar os copos na bandeja. Será que ela é chique? Ou isso é
chiquíssimo? O filho dela pergunta: tem pelada aqui? Quando tocam
a campainha.
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quatro
Marcela
...eu fui à lan house e lá estavam ouvindo, “eu quero é ficar
legal e brincar com o teu Pica-Pau”. A Renatinha manteve o mesmo
perfil, e ela está no da Mariana que também estudou com a gente,
com o nome de Vanessa Barbie de Luxo. Mas ela tá longe de ser
uma Barbie, e ainda mais de luxo. Vou esperar pra ver se me aceita.
No perfil do Caio tinha uma porção de vadias. Mas não quero me
estressar. Ultimamente pago pra não me estressar. Ele diz que eu
sou “a fiel” dele. Isso tá escrito embaixo da minha foto. Aquela em
que ponho as mãos na cintura e faço pose de óculos escuros. E se
eu sou a fiel dele, talvez ele tenha o seu “lanchinho da madrugada”.
E talvez ele seja um “prostituto”, igual os garotos falam hoje em dia.
Ou um “moleque piranha”. Prefiro ignorar isso e pensar que é coisa
de meninos exibindo a sua masculinidade. A Mariana diz que se o
cara tem carro e passa com o som no último volume é porque tem
o pau pequeno, e se anda com o pit bull na coleira também. Tenho
que pedir a Mariana pra vir me visitar. Só se falar na net e por telefone, não dá. No meu perfil deixei a nossa foto, com ele sorrindo,
sem camisa e o peito branquíssimo, escrito embaixo, “meu marido”.
Tomara que ele não apronte com nenhuma daquelas vadias. Porque
se não eu vou descobrir. Algum passarinho vai me contar. Agora que
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nós nos mudamos imagino como aquelas garotas devem perturbar
ele. Elas queriam mesmo me ver pelas costas. Secaram tanto que
conseguiram. Não adiantou choro, minha mãe disse, vamos embora!
E tivemos que ir. Sem argumentos. Já que não ajudamos com dinheiro, nem nada. Tudo por causa do filho da puta safado. Meu pai
é um safado filho da puta. Eu não quero me casar com ninguém que
de longe se pareça com meu pai. Quero fazer comidinha pro meu
marido. Só isso que eu quero na vida. Quando estiver trabalhando,
quero que alguém me ligue pra saber como tá o meu dia. Ter uma
vida normal. E não ser chifrada como o meu pai fez com a minha
mãe. Meu pai e minha mãe ficaram casados vinte anos. E, até onde
eu sei, foi uma lua de mel. Estória de filme. Família feliz de comercial
de manteiga. Já realizei um sonho meu careta, igual umas e outras
dizem. Tive festa de quinze anos, dancei com vestido de baile e tudo.
Teve cerimonial e as minhas amigas dançaram com cadetes. Tá registrado. Fotografado. Filmado. A única coisa que me arrependo é do
Caio ter sido meu príncipe e sabem por que me arrependo? Porque
eu sei que vai passar. E que nós não vamos ficar a vida toda juntos
como nos prometemos naquele dia. Qual daquelas vadias ele tá comendo? Só isso que eu quero saber. Pra quem eu tô perdendo? Será
que é mais de uma? Ele, essa semana, ainda não me ligou. Caio é um
dos únicos meninos que eu conheço que tem um quarto só dele, casa
com piscina, carro do pai, estudou em colégio particular... Sinto saudades de estar com ele no quarto na casa dele, sem ser incomodada
e de fazer amor, fazer amor é tão brega, ah... Se a Mariana me visse
falando assim ia dizer, maior micão aí, tudo pra ela é maior micão
aí! Andar de guarda-chuva, maior micão aí... Ou é coisa de velho!
Mariana detesta velhos. Diz que morre antes de ficar velha. Mas
ela não precisa saber que eu falo assim. Ninguém precisa saber que
não gosto de vulgaridade. Apenas finjo gostar. Quando não havia
ninguém em casa, Caio me pegava por trás e batia na minha bunda.
E me xingava. Eu fingia gostar. Gostava de ver que ele tava satisfeito.
Eu falo bumbum, xoxota, acho mais carinhoso. E não os nomes que
ele gosta de usar. No fundo ele é só um menino que pensa que toda
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mulher gosta disso. Acredito que nós até tenhamos perdido a virgindade um com o outro. Mas ele nega. Não acreditei naquela história
dele, era meio furada. Eu sei que o Bueno não gostava de saber que
o Caio me comia no começo do namoro, pois eu era muito novinha.
Mas ele sabia e todo mundo sabia. Depois todo mundo olhava pra
gente como homem e mulher. Hoje já não faz tanta diferença se ele
vai ligar ou não. Sendo bem sincera, prefiro até que não ligue.
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cinco
Narrador
Quando Marcela entrou em casa, os moleques que se encontravam na esquina da rua estavam sentados no sofá, e ela disse, fazendo
charme: boa noite pra todos. Os outros dois só faltaram babar em cima
dela, boas noites. Mas o de óculos disse algo inaudível e ignorou a sua
presença. Ou seja, não estava nem aí. Soninha disse à filha: Marcela, são
nossos novos amigos, vai se acostumando com a cara deles. Ela sentiu
uma vontade imensa de dizer, esses safados já mexeram comigo. Eles
também fingiram nunca a terem visto na vida, e pensou, olhando para
Negro Jorge, “o mais magro tem cara de encalhado e parece um pau de
varar tripa”. Disse igual à avó. Já que nunca na vida viu um pau de varar
tripas. Negro Jorge fez uma cara de curiosidade como se aquele fosse o
primeiro contato com a menina. “Péssimo ator”, ela pensou. O rapaz de
óculos permanecia intacto com o copo de cerveja na mão, estudando o
copo como se a cerveja fosse uma bebida quase inédita, inventada um
dia desses. Marcela olhou a cartela de cigarros em cima da mesa e pensou se ele também fumava. Como se isso fosse fazer alguma diferença.
Achou interessante a fauna de novos amigos. E nessas ocasiões sempre
ficava imaginando: “quem vai ser o primeiro que vai tentar me comer?”
Sentia um prazer insistente nisso. Primeiramente ela ia ser bajulada e
dar mole pra todo mundo. Depois que aquele que ela não ia querer de
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jeito nenhum se aproximasse, ela ia dizer não de uma forma delicada,
sempre dando um pouco de esperança. “Tipo, você é maneiro, mas nem
rola, te vejo como amigo”, e dizia isso para garotos que mal conhecia,
“Coisas da cabeça de uma mulher”, ela pensa, imaginando a frase dita
por um homem. E na sequência deitava aquela falação sobre o Caio.
Até que o cara se cansava e desistia. Ela deixou a bolsinha no quarto e
foi à cozinha beber água e ouviu a mãe dizer: que tal a gente fazer um
churrasco? Alguém perguntou: agora? E Soninha respondeu, tem carne aqui na geladeira, e soltou essa frase, ele é tão tímido... Marcela sabia
que ela estava falando do moleque calado de óculos. Que mania que a
mãe tinha de se meter. De dar palpite. Palpite, num dá palpite! Ficou
com raiva ouvindo o comentário e pensou “minha mãe viaja!”. Mas ele
não parecia tímido e sim bêbedo. Distante. Marcela sentou na sala para
se socializar, e viu que o ambiente sofreu uma mudança. O irmão foi
para a churrasqueira e ela não gostou de Magro Léo. Ele parecia de
olho na mãe. E pensou que a mãe não ia ficar de jeito nenhum com um
menino da idade de Bueno. Isso era certo. “Meu irmão é o mais gato, e
o de óculos nem é tão bonito, mas tem alguma coisa naquele jeito.” Ele
pouco deu atenção a ela. Desviava o olhar como se não tivesse ido com
a sua cara. Desculpa, mas não sei seu nome, ela disse se socializando.
Bernardo falou: Bernardo, mas pode me chamar de Berna. Ela gostou
do apelido. Ou Perna, disse o Magro Léo. A mãe riu por educação, pois
a piada não teve graça. O tal do Negro Jorge falava demais, e Marcela
o achou chato. Ele tentava agradar o tempo todo. Como se existisse a
necessidade disso. Era uma palestra só de como se fazer churrasco. E
o irmão respondia... tô ligado... tô ligado... Mas só se ouvia a voz do
Negro. Contava alguma coisa sobre algum tio idiota, que assava pão
no churrasco e jogava mais num sei o que para dar gosto e a carne ficar
macia. O Magro Léo disfarçava e olhava para Soninha. Ou para as
pernas dela. O Bernardo continuava longe. Começou um papo sobre
futebol e sempre que ele abria a boca dava para perceber que, apesar das
gírias, ele sabia falar direito, diferente dos outros garotos. E desde que a
mãe se meteu, ele começou a falar de maneira correta e evitava as gírias.
Enquanto a mãe não poupava os palavrões. Respeito aos mais velhos.
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Mas respeito é pra quem tem! Como diria o rapper Sabotage, pensou
Marcela. Depois de duas horas, Marcela percebeu que não conseguiu
se aproximar de Bernardo. Foi quando ele levantou subitamente, como
se tivesse sido espetado na bunda. O corpo ameaçou tombar para frente. Fez uma cara de quem tem ânsia de vômito. Negro Jorge olhou da
varanda, viu a cara de Bernardo e pensou: “ele vai vomitar agora, meu
Deus! Que tragédia!” Mas Bernardo apenas disse: vô embora. Negro
ficou feliz por ouvir a frase. Pronto. Estava tudo acabado. Marcela não
gostou. O sorriso de Magro Léo foi de ponta a ponta e disse não querendo dizer, que isso fera? Fica mais um pouco, toma mais um copo. E
ele respondeu, tenho que ir. Logo Magro aceitou, tudo bem, você que
sabe. Marcela pensou que iria para o quarto. Mas se o Magro estava
pensando ficar em companhia da mãe, “esse fanfarrão tá muito enganado”, ela pensou: “vou fazer de tudo para atrapalhar”. O outro levantou
cambaleante e teve dificuldade para driblar a mesa do centro da sala.
Não deu beijinhos no rosto de Soninha, apertou a mão dela a distância.
E a de Marcela também, que tentou exibir uma das faces para o beijo,
mas ficou no vácuo. Lá fora ele se despediu dos outros. Magro Léo,
com ironia, vaticinou, é que a mãe dele fica preocupada. Soninha deu
um risinho. Marcela pensou: “será que ele tem namorada? não quis nem
se aproveitar da situação. Deve ter e deve ser fiel a ela, pois não parece
viado.” Negro Jorge correu até Bernardo e perguntou, quer que eu te
leve em casa? Tá bem? Eu vou lá e volto... Parecia que você ia vomitar...
Eu tô tranquilo... Até!
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