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Do meio das árvores secas da floresta escura emergiu o
maníaco com a máscara de pele humana. Motosserra em
mãos, desceu-a entre as pernas do pobre paraplégico, cortando-o ao meio, assim como a sua cadeira de rodas. Não
teve nem chance. A menina que estava com ele se pôs a correr pela floresta, gritando feito bocó, como se alguém pudesse ajudá-la naquele fim de mundo escuro. Eu fiquei lá,
vendo tudo, paralisado. Só quando ouvi um pigarro vindo
do canto é que reparei que minha mãe estava na porta
do quarto.
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– Ludo, não tinha nada um pouco mais saudável para
você assistir?
Peguei o controle remoto e desliguei o DVD. Não porque
queria satisfazer minha mãe, mas porque sabia que não
ia conseguir assistir ao filme direito com ela lá.
– É um clássico, mãe, um clássico do horror.
Ela fez uma careta.
– Clássico do horror, pffff, nem preciso ouvir mais
nada. Vai dormir logo, que amanhã é seu primeiro dia de
aula, não esquece.
Essa é minha mãe. E essa era a véspera do meu primeiro dia de aula. Eu no meu quarto, como em tantas noites,
assistindo a um clássico do horror, para tentar pegar no
sono. Minha mãe só assiste a filmes europeus. Ou asiáticos. Só assiste a esses filmes de arte, assim como meu
pai. Eu não tenho nada contra, alguns até são legais... ou
quase. Mas ela, ele, meus pais, são bem chatos em relação
a filmes. Até para esses que ganham Oscar eles torcem
o nariz. Na verdade, são bem chatos em relação a tudo o
que tem a ver com arte, livros, música. Uns baitas esnobes
nesse ponto, posso dizer.
Não é à toa que me deram o nome de Ludovique, por
causa do Beethoven, o compositor, sabe? Nome comprido
pra caralho – Lu-do-vi-que. Prefiro Ludo. Todo mundo me
chama de Ludo. Ficou tão mais fácil me chamar de Ludo
que, hoje, até minha mãe me chama assim, quando não
está na frente do meu pai. Na frente dele, ela me chama
de Ludovique; meu pai diz que é sinal de respeito com o
compositor. Que compositor, ele já não morreu? O respeito
não devia ser em relação a mim?
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Ludovique, o compositor, talvez fosse o que meus pais
quisessem que eu fosse. Mas estou aqui para contar a minha história, e quem eu sou. Até tenho um lado musical
também. Sou compositor, até. Quero dizer, arranho umas
coisas aí, já fiz algumas músicas, umas coisas bem bizarras. Toco guitarra... Tá, arranho, arranho na guitarra. Meu pai bem que tentou que eu aprendesse piano. Eu
estudei por um bom tempo, mas acabei me empolgando mais com a guitarra mesmo. E, como tudo que meu
pai tentou em relação a mim, ele acabou desistindo. No
fundo, eu sempre consigo o que quero. O chato é que tenho sempre de insistir tanto... Mesmo quando acho que é
óbvio, que é fácil e que não deveria haver razão para ninguém contestar.
Bem, talvez eu esteja exagerando. Meus pais não são
tão chatos não. Até que são bem liberais. Deixam eu viver do meu jeito, mas tentam, bem que tentam bastante,
me levar para o lado deles. Meu pai é professor de filosofia numa faculdade. Nunca foi daqueles pais de assistir
a futebol e fazer churrasco – graças a Deus. Minha mãe
é psicóloga – quero dizer psiquiatra (e fica puta da vida
quando a chamam de psicóloga; confesso que fiz de sacanagem). Ela trata de gente louca, bem louca mesmo,
louca de internar. Não sei por que se incomoda então com
os filmes que assisto.
Eu adoro filme de terror, é o que mais gosto. Mas gosto
também de uns filmões de ação. Só para comédia que não
tenho muito saco. De música: punk rock, pós-punk, gótico, anos 80, rock alternativo em geral. É isso que gosto de
ouvir, mas tocar sozinho é meio chato. Não tenho banda.
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Não conheço muita gente com gosto parecido com o meu.
Aliás, não conheço muita gente. Não era muito popular
no meu colégio anterior, e meus pais me mudaram para
esse novo. Um colégio cabuloso, posso apostar. Bem, entrar no meio do ano numa escola já é dose...
Não sou um garoto revoltado, nem nada disso, se é o
que está pensando. Sou na minha, gosto de ficar na minha. Mas sei que quando a gente é adolescente tudo tem
de ser feito em grupo, até trabalho de escola, até bater
punheta o povo faz em grupo! A gente tem de ter amigos, ser popular, pertencer a uma tribo. Tenho ÓDIO de
quem pergunta a que tribo eu pertenço. Só porque uso
piercing, só porque tenho uma franja, o povo acha que
preciso andar num grupinho e ser igual a todo mundo,
que não posso pensar por mim mesmo. Também tenho
ÓDIO por acharem que sou problemático só porque não
faço parte de uma turma. Isso não é um problema em
mim, o problema são os outros. Acho até que tenho sorte
porque meus pais me deixam em paz, não exigem que
eu mude, que eu me enturme. Mas a sociedade em geral
não é assim, né? Se você é um moleque e não anda por aí
cheio de amigos, alguma coisa de errado tem. Acho que
até meus pais acham isso. E acho que eles têm pena, têm
pena de mim por isso.
Mas o que os pais sabem, né? Meu pai mesmo, aposto, tenho certeza, sei bem que era o nerd dos mais nerds
quando estava na escola. Tipo, ele nunca gostou de esportes, nunca teve um time de futebol para torcer, e você
sabe como é com os moleques que não jogam nem gostam
de futebol. Deviam zoar ele geral. Mas acho isso legal –
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não que zoassem com ele, claro –, acho legal que hoje
ele está aí, dando aula de filosofia, escrevendo em jornal,
enquanto outros colegas dele... Dia desses, estava com minha mãe, com meu pai, e ele encontrou um ex-colega na
rua. O cara era bem papai pançudo, camisa xadrez e tal.
Veio cumprimentar meu pai, falar que era gerente de uma
concessionária, loser total. Nem sabia do meu pai, nem
lia a coluna dele, toda segunda-feira, no maior jornal do
país. Meu pai não falou nada. Mas vi no sorrisinho dele
para minha mãe; ele dizia: “Loser total”.
Acho que meus pais preferem que eu vire hippie de
rua, daqueles que vendem artesanato de durepox, a que
eu vire vendedor de concessionária. Não que tenha risco
de eu virar uma coisa ou outra... Não gosto de carro. E
ODEIO reggae, chinelo de dedo, maconha... Sério, não é
caretice, mas não suporto maconha, coisa lerda. Não tem
jeito mesmo de eu virar hippie.
O que a gente não é parece fácil dizer. Mas a gente se
afirmar como sendo é mais difícil. É difícil a gente explicar como é realmente; até porque a gente sempre precisa
recorrer a comparações. Pros outros entenderem, a gente
tem de se comparar com os outros, e dizer: sou um pouco
assim, um pouco assado. Tenho um pouco disso, e um
pouco daquilo. E talvez, se a gente tiver reunido pedaços
suficientes para definir como a gente é, os pais possam
entender, daí alguma revista adulta pode fazer uma matéria e dizer qual é a nossa, do que a gente gosta e quais
são as nossas gírias. E o próximo moleque da fila vai ler
tudo isso e achar uma babaquice: “Eu não tenho nada a
ver com isso.”
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Bem, eu não tenho nada a ver com os próximos da
fila...
Também não tenho nada a ver com nada disso. Só estou explicando de onde eu vim, um pouco como eu sou,
para que você possa seguir a história. Não estou aqui
contando uma história? Porque eu mesmo não sei nada
sobre você, e não sei que besteiras você pode pensar dos
meus pais ou da minha franja. Não sei que idiotices pode
pensar dos meus filmes. Mas tenho de imaginar que está
do meu lado, não é? Porque não dá para eu escrever uma
história inteira – e principalmente a história que tenho
para contar – tentando criar caso com quem vai ler. Sei
que, se eu criar caso, você fecha o livro na hora e vai ver
seus próprios filmes, ou jogar videogame ou mesmo jogar
futebol. E sei que, se eu não parar de falar besteira logo e
“cativar o leitor” (é isso, “cativar o leitor”), eu vou perder
minha chance.
Por isso já comecei começando, com o psycho serrando
o cara ao meio. Mas isso nem era criação minha. Era só
um filme. Um clássico do horror.
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