equilíbrio Qual É o momento mais feliz do seu dia? “Olha, tem uma hora que adoro. É quando eu entro no lençol limpinho da minha cama, lá pelas 21h30, com aquela sensação de missão cumprida: fiz bons atendimentos, tive momentos legais com minha filha e meu marido, encontrei pessoas, li coisas boas e consegui escrever um pouco” Bel Cesar, psicóloga equilíbrio Entre mantras e mantas Praticante do budismo tibetano há 25 anos, a psicóloga Bel Cesar acompanha pacientes terminais e encontrou no tricô uma forma de terapia Por Eliane Trindade | Fotos Claus Lehmann 50 51 Ao colocar 108 pontos na agulha, o mesmo número de contas de um rosário, e começar a tricotar suas mantas temáticas de lã, a psicóloga e musicoterapeuta Bel Cesar, 55, mergulha em uma terapia muito particular. Cada uma de- las é dedicada a uma pessoa ou a uma situação. “Sempre gostei de fazer tricô, desde menina. A intenção começou há quase quatro anos, quando minha mãe teve o diagnóstico de leucemia mieloide aguda”, explica. “Decidi que ia fazer uma colcha até que a história se resolvesse, para que lado fosse.” Durante dois anos, Bel tricotou uma manta que a acompanhou em todas as fases do tratamento do câncer e nas muitas internações da mãe: da quimioterapia ao bem-sucedido transplante de medula. “Quando você está nessas situações, tem muito tempo de silêncio. Precisava de concentração e foco.” Depois de comemorar a implantação da nova 52 medula, sinal de que sua mãe, Elisa, estava curada, Bel fez o arremate final de uma colcha. Àquela altura, a peça artesanal tinha seis metros de comprimento. Outras mantas vieram. A atual é tricotada em nome da filha Fernanda, 26, que está passando por uma fase de mudanças e definições. “Isso me dá força”, afirma a caçula, que trabalha com cinema e vive em São Paulo. Já o primogênito virou monge e divide-se entre o Tibete, a Itália e o Brasil. “É um privilégio gigantesco ter um irmão e um guru ao mesmo tempo”, diz Fernanda, ao falar do lama Michel Rinpoche, 30. A história da família parece filme, e vai virar um. Desde 2008, os dois filhos de Bel estão empenhados na produção de um documentário sobre a linhagem do budismo que praticam. Já filmaram no Tibete e na Índia, em um roteiro que começa no Brasil. Em 1987, Bel organizou a primeira vinda do lama Gangchen Rinpoche ao Ocidente. Três dias depois “Ter várias demandas ao mesmo tempo é uma situação que nos desregula. Eu optei por fazer menos” fotos arquivo pessoal equilíbrio de se conhecerem, decidiram abrir o Centro Dharma da Paz Shi De Choe Tso, na capital paulista. A psicóloga esteve à frente da instituição por 16 anos. Formada também em musicoterapia na Áustria, Bel recusa o carimbo de esotérica. “Se esoterismo for projetar na vida e nas situações algo que nos distancie da realidade, então não sou esotérica.” E complementa com uma visão bem pé no chão do que é a busca da espiritualidade para ela: “É ter coerência entre o seu mundo interno, suas emoções, e o mundo externo”. O segredo é estar “colada em si mesma”, diz Bel. “Não no sentido de ser egocentrada, mas de ser capaz de se autossustentar e se responsabilizar diante da vida.” O encontro com o budismo também foi definidor na vida do seu filho Michel. Aos 8 anos, o garoto teve uma visão, que levou Gangchen a reconhecê-lo como a reencarnação de um mestre tibetano. Aos 12 anos, Michel, até então criado em São Paulo, decidiu entrar para um monastério na Índia. Bel tornou-se assim mãe de um pequeno lama. “O primeiro momento foi muito difícil, eu não estava preparada. Com o decorrer do tempo, e vendo como ele estava bem, percebi que não podia misturar a minha dor com o bem-estar do meu filho.” Em sentido horário, a partir do alto: com o mestre, Lama Gangchen Rinpoche; ao lado da sobrinha, Bel Rebeca, mais a filha, Fernanda, a mãe, Elisa, e o Lama Michel Rinpoche; abraço no filho ainda préadolescente, quando se tornou monge; e cerimônia budista no sítio. Abaixo, com o marido Peter Webb Do começo ao fim Há 25 anos, Bel fez a lição de casa do desapego e é hoje a orgulhosa mãe de um lama adulto, que é seu parceiro de fé e guru. A psicóloga faz do budismo tibetano mais do que uma religião. Para ela, ser budista é dar prioridade à busca do equilíbrio. “Muitas situações nos desregulam, como ter várias demandas ao mesmo tempo. Você está lendo algo, o telefone toca, entra um e-mail pedindo não sei o quê. Eu optei por fazer menos.” A filosofia virou também base para o seu trabalho como terapeuta de pacientes 53 equilíbrio terminais. “Minha missão na vida é lidar com os sofrimentos humanos, com as questões ligadas ao nascimento, às doenças, ao envelhecimento e à morte.” Acompanhar pacientes em UTIs e dividir com familiares a dor dos últimos instantes de vida de um ente querido são situações corriqueiras para ela desde 1992. “Procuro criar espaços para a expressão das necessidades, dos desejos e das aflições dos meus pacientes e fazê-los se sentirem menos solitários frente à morte”, diz. Lidar com o próprio medo da morte a levou a trabalhar com doentes terminais. “Atendo sempre a apenas um paciente por vez. Tenho de estar disponível para ir à casa ou ao hospital a qualquer hora, inclusive nos fins de semana”, relata. Os atendimentos duram, em média, dois meses. Não há regras. “Escutamos músicas, mantras e melodias que nos ajudam a resgatar a leveza da alma”, relata a psicóloga, sobre algumas experiências descritas no livro Morrer não se improvisa (editora Gaia). Produção Ana Rosa Sardenberg Make Vanessa Barone em busca de inspiração 54 Ao se deparar cotidianamente com as profundas questões dos seus pacientes, Bel critica a superficialidade da vida moderna. “Quando se vive em função de agradar os outros e cumprir metas, deixando-se levar pela pressão do mundo externo, não sobra tempo para o reconhecimento das nossas necessidades internas”, diz a psicóloga. “As pessoas estão muito ligadas às tarefas pequenas e imediatas. Cada um do seu jeito precisa voltar para si e buscar suas fontes de nutrição e inspiração interiores.” Vivência que já rendeu seis livros, um deles intitulado O sutil desequilíbrio do estresse (editora Gaia), em parceria com o filho Michel e o psiquiatra Sérgio Klepacz. “Bel é uma pessoa aberta a todas as novidades e experiências da vida. Não é escrava de teorias, o que é raro na área dela”, diz o amigo Sérgio, com quem trabalha no bairro de Perdizes, em São Paulo. A psicoterapeuta trata sua insônia com o psiquiatra. Nada de remédio tarja preta. Vitaminas e reposição hormonal são as armas para garantir a Bel o sono dos justos. “Procuro também ir me desligando. Evito o computador depois das 20h30. Tomo uma taça de vinho e vou desacelerando.” Viver uma paixão na maturidade explica o brilho no olhar de Bel. Uma intensa e bela história de amor a uniu ao australiano Peter Webb, 57, seu terceiro marido. O romance teve início há uma década, quando a psicóloga buscava um lugar para acomodar estátuas gigantes de Buda que traria para o Brasil. “Paixão pode durar mais de dez anos. Não é passageira se você está com uma pessoa que tem os mesmos valores e quer o mesmo da vida que você”, afirma. Peter devolve a declaração de amor. “Nos apaixonamos”, resume ele, sobre o encontro em um curso de permacultura, em que ele era o professor e ela, uma das alunas. Foi para entender o que era o método holístico de planejar espaços ambientalmente sustentáveis que Bel se matriculou no tal curso. Ela andava ansiosa para encontrar um lugar que também pudesse funcionar como hospice, uma casa em que os pacientes terminais recebessem cuidados paliativos e espirituais em contato com a natureza. Era o embrião do sítio Vida de Clara Luz, inaugurado em 2004, em Itapevi, onde Bel e Peter realizam cerimônias budistas e plantios coletivos, entre outras atividades. O hospice ainda não foi aberto, já que no Brasil esse tipo de estrutura não é legalizada. Antes de chegar ao misto de casa e centro budista no campo, o casal passou por um grande teste. “Conforme fomos nos conhecendo para fazer o projeto do sítio, vimos que tínhamos o mesmo propósito de vida. Ele era casado e eu, também. Nos separamos para ficar juntos.” Pouco tempo depois da separação o “ Quando se vive em função de agradar, não sobra tempo para o reconhecimento das nossas necessidades internas” ex-companheiro se suicidou. Sobre o episódio trágico, Bel prefere não falar, mas sugere a leitura de um trecho na página 191 do O livro das emoções: “A clareza sobre a minha vulnerabilidade diante do seu sofrimento me protegeu do sentimento de culpa que tão comumente surge naqueles que continuam vivos”, escreve Bel. “Não podemos nos anular, isto é, morrer internamente, para que outros vivam da nossa energia.” No Brasil há 26 anos, Peter se mudou da região montanhosa de Aiuroca, em Minas, onde vivia de forma autossutentável, para São Paulo. Bel divide-se entre o consultório na zona oeste e o sítio. É no refúgio onde o marido trabalha que ela encontra a paz para ouvir seus CDs, recitar seus mantras e se conectar com a natureza. Sob as bênçãos de 11 estátuas de Buda, em tamanho natural, e o aconchego de várias mantas tricotadas por ela mesma. 55