PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DIANE PORTUGUEIS
Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na
constituição de identidades “teuto-brasileiras”
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO
Programa de Estudos pós-graduados em Psicologia Social
DIANE PORTUGUEIS
Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na
constituição de identidades “teuto-brasileiras”
Dissertação
apresentada
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em PSICOLOGIA SOCIAL, sob a
orientação do Professor Doutor Antônio da
Costa Ciampa.
SÃO PAULO
2013
2
BANCA EXAMINADORA
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___________________________________________
___________________________________________
RESUMO
PORTUGUEIS, D. (2013). Quem somos nós, descendentes? Da História à
socialização na constituição de identidades “teuto-brasileiras”. Dissertação de
mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
A pesquisa discorre sobre a constituição identitária de descendentes alemães no Brasil,
especificamente nas regiões Sul e Sudeste. A relevância deste estudo decorre da
abrangência da influência dos descendentes alemães no Brasil, mais visível nas
dimensões cultural e econômica do país. Constatou-se a escassez de estudos que
contemplem esta população tanto na ótica da identidade e dos estudos culturais, quanto
nos estudos em Psicologia Social, sobre sua socialização no mundo globalizado. O
método utilizado foi a História Oral, na modalidade de Histórias de Vida, sendo que as
análises de seis relatos permitiram que se constatassem diferenciações entre dois grupos
distintos: os descendentes entre 20 e 30 anos e os descendentes mais velhos, entre 50 e
60 anos. Para os jovens, apontou-se a busca pela reposição da identidade pressuposta,
vinculada às políticas de identidade mediadas pelo Deutschtum, o que ficou mais
evidente naqueles que não viveram na Alemanha. Nos descendentes mais velhos,
observou-se aproximação com o hibridismo cultural (H. BHABHA, 2001), entendido
como busca pela complementaridade de elementos de ambas as culturas (Brasil e
Alemanha) que conflui com a apropriação crítica que fazem das tradições, bem como
com a reinvenção de si no local onde vivem a ponto de tendencialmente se revelarem
identidades políticas. Palavras chave: descendentes alemães, identidade, políticas de
identidade, imigração, hibridismo cultural.
4
ABSTRACT
PORTUGUEIS, D. (2013). Who Are We, the Descendents? From History to
Socialization in the Establishment of the “German-Brazilian Identities.”
Master’s Thesis. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
This paper addresses the establishment of the identities of German descendents in
Brazil, specifically in the Southern and Southeastern regions. The relevance of this
study arose from the vast influence of German descendents in Brazil, which is more
visible
in
the
cultural
and
economic
dimensions
of
the
country.
It was noticed that there was a lack of studies addressing this population, both in terms
of identity and cultural studies, as well as those related to social psychology in relation
to
their
socialization
in
the
globalized
world.
The method used was Oral History, namely life stories. The analysis of 6 stories made it
possible for us to note the differences between two groups: descendents 20 to 30 years
of age and those who are older, aged 50 to 60 years old. For the younger population, we
pointed out to the recovery of their supposed identity in connection to identity policies
mediated by the “Germanness,” and that was more evident for those who had not lived
in
Germany.
For the older descendents, we noted a close connection with cultural hybridism (H.
BHABHA, 2001), which was understood as the search to complement elements of both
cultures (Brazil and Germany), and which added to the critical ownership that they
make of traditions, as well as their own reinvention in the place where they live to the
point
that
political
identities
are
biasedly
revealed.
Keywords: German descendents, identity, identity policies, immigration, cultural
hybridism.
5
ABSTRACT
PORTUGUEIS, D. (2013). Wer sind wir, die Nachfahren? Von der Geschichte zur
Sozialisation in der Identitätsbildung der "Deutsch-Brasilianer". Masterarbeit.
Päpstliche Katholische Universität von São Paulo.
In der Diskussion dieser Masterarbeit geht es um die Identitätsbildung von deutschen
Nachfahren in Brasilien, besonders im Süden und Südosten. Die Wichtigkeit dieser
Studie ergibt sich aus dem Umfang des Einflusses dieser Personengruppe und ist am
deutlichsten sichtbar in den kulturellen und wirtschaftlichen Bereichen des Landes. Es
fehlen Studien die diese Bevölkerungsgruppe beruecksichtigen, sowohl in dem Aspekt
der Identität und der Erkenntnisse über die Kultur als auch der Sozialpsychologie in
bezug deren Sozialisation in der globalisierten Welt. Als Methode wurde Oral History
in Form von Lebensgeschichten verwendet, sowie die Analyse von sechs Berichten, aus
denen sich zwei verschiedene Gruppen herausstellten: Nachfahren im Alter von 20 bis
30 Jahren und von 50 bis 60 Jahren. Bei den Juengeren stellte sich die Suche nach
einem Ersatz der vorausgesetzten Identität fest, in Verbindung mit der im Sinne des
Deutschtums vermittelten Identität. Diese Suche zeigte sich intensiver für diejenigen,
die nicht in Deutschland gelebt haben. Bei den aelteren Nachkommen beobachtet man
eine Annäherung an die kulturelle Hybridität (H. BHABHA, 2001), welche als Suche
nach ergänzenden Elementen beider Kulturen (aus Brasilien und Deutschland)
verstanden wird. Dies geschieht mit einer kritischen Aneignung der Traditionen sowie
mit einer Sich-Wieder-Entdeckung an dem Ort an dem sie leben, so dass sich eine
Moeglichkeit der Entwicklung politischer Identitaeten ergibt. Keywords: Deutsche
Nachfahren, Identität, Identitätspolitik, Einwanderung, kulturelle Hybridität.
6
DEDICATÓRIA
Àqueles que têm coragem de serem felizes em sendo sinceros com seus
sonhos. Em especial, às famílias Portugueis, Stoffelshaus e Frauz, por não
terem temido tal desafio e outros tantos, enfrentados para muito além do
oceano Atlântico...
Ao mestre Ardans, meu carinho, admiração e amizade eterna!
7
“(...) extinguir em si tudo o
que é simples mundo e
introduzir consenso em todas
as suas transformações (...)
ele deve exteriorizar tudo o
que é interior e formar tudo o
que é exterior.” (Schiller)
“(...) eu sou desde o momento
em que cheguei à consciência
de mim mesmo, aquele que
eu fizer de mim com
liberdade e sou isso pela
razão de ser eu mesmo quem
faz isso de mim.” (Fichte)
“Dream on, dream yourself a
dream come true, dream on
and dream until your dream
comes true.” (Steven Tyler)
8
Agradecimentos
Há quem diga que o trabalho acadêmico é uma construção solitária. No meu
caso, digo com propriedade que longe disso, o resultado deste trabalho se deve a uma
configuração coletiva (lembrando a amiga Vanessa- “esse trabalho é fruto de uma
construção coletiva”) que se iniciou muito tempo atrás com algumas vivências na
graduação, passando pelas experiências na Alemanha, chegando finalmente à PUCSP,
local de minha “morada” atual. Quando falo em configuração coletiva, penso em
figuras importantes que passaram ou que ainda estão em minha vida, inspirando-me,
seja com ideias, como no compartilhamento de reflexões, opiniões, sentimentos,
experiências, exemplos, trocas e, sobretudo, apoio. Este trabalho começou a tomar
corpo quando eu vivia no exterior. Enquanto lidava com o “ser estrangeira”
vislumbrava a compreensão de mim mesma, de minha identidade em suas múltiplas
facetas e formas, advindas de minha origem, mas também da minha atividade em local
tão diferente daquele onde nasci e vivi. Percebi que tais questionamentos não eram
somente meus. Assim, nasceu algo que posso arriscar nomear como um projeto de vida.
A tal projeto devo a inspiração propiciada pelas trocas com amigos do Camarões,
Guatemala, Marrocos, Bósnia, Etiópia, Turquia, Romênia e Alemanha.
Gostaria de expressar nesta lista (limitada pelo tamanho, mas não por minhas
intenções!) meu sincero reconhecimento às pessoas que proporcionaram que eu fosse
quem sou hoje e que ainda estarão comigo, naquilo que serei amanhã. Estas pessoas a
serem aqui mencionadas, são parte da minha constituição enquanto sujeito que almeja
uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais emancipadora.
Na tentativa de não ser injusta (com quem aqui nomeio e também comigo
mesma, não sendo traída pelos lapsos da memória) inicio meu muito obrigada de forma
mais ou menos cronológica. Darei início agradecendo professores que me
acompanharam no primário e ginásio. São eles: professora Ana Cristina, que me
apresentou aos primeiros livros e incitou-me o gosto pela leitura; professora Célia, por
acreditar que mesmo não sabendo matemática poderia ser boa em outras coisas,
mesmo não entendendo a lógica dos números. Da graduação agradeço imensamente
aos professores vindos da Escola de São Paulo; destes, destaco meu mestre Ardans,
pelo bom encontro que mudaria minha vida e por sempre ter acreditado em mim, antes
mesmo que eu o fizesse. Mestre, obrigada! Nesta fase conheci quatro amigas, que me
acompanhariam em outras tantas caminhadas: Joyce Peu, Renata Pavani, Keila Sgobi
e Clarissa de Franco. Obrigada pela parceria, pela força em tantos momentos, pelo
“holding” e principalmente pela longa amizade. À Clarissa um agradecimento
especial, por me ajudar no lado objetivo da concretização deste projeto, desde sua
concepção até os tantos telefonemas amigos e força espiritual, sempre acolhedora e
bem vinda. Valeu querida amiga! Depois, devo agradecer a minha família, que mesmo
achando que deveria trilhar algo mais “prático” esteve ao meu lado navegando pelos
mesmos mares. Desta, agradeço especialmente ao Pedro, sempre presente, nos bons e
maus momentos da vida, aos Masullo, pela acolhida sempre gentil na Serra da
Cantareira, proporcionando-me um espaço de afetos e de “cafés”. Parte importante de
minha família também se constitui daqueles que não estão no Brasil, mas ainda assim
próximos, na Alemanha. Em especial agradeço a minha tia Hannelore S. Kuepper por
9
todo apoio e compreensão em fases diversas da vida, minha prima Irene Kroeber, meus
primos e meus amigos tão especiais: Sanne, Saba, Sabine Schaller, Pepe Tharun, Uta,
Natascha, Lindi e Steffi. Vocês talvez não saibam, penso em vocês todos os dias e sou
grata por ter tido a chance de viver coisas incríveis ao vosso lado. Sanne, Saba e Pepe,
sem vocês talvez não tivesse tido a coragem de iniciar tal empreitada- o retorno para o
Brasil. Vocês fizeram a diferença quando eu “era a diferente”. Chegando finalmente à
fase atual, agradeço todos que proporcionaram que o mestrado se tornasse uma
indescritível experiência, em sentidos diversos, que vão desde o aprendizado até as
experiências políticas. A lista aqui é grande e espero contemplar todos: em primeiro
lugar agradeço ao meu orientador Antônio da Costa Ciampa, por ter me aceito entre
seus orientandos quando eu nem mesmo estava no Brasil e já tinha recebido muitos
nãos vida afora; ao Jura por ter me recebido de braços abertos no NEPIM, pela
amizade, conversas e tantas outras coisas mais. Agradeço aos colegas do núcleo de
pesquisa em identidade- a todos vocês mesmo! E em especial àqueles que se tornaram
mais do que colegas: Mariana, Alê Campos, Clau Mazur, Paulinha, Serginho, Carol
Andery. Vocês tornaram minhas Quartas-Feiras melhores e a pesquisa mais leve!
Agradeço ao meu querido “QG” que tornou a universidade um espaço ampliado de
debates, trocas e tantas outras conquistas. Obrigada Ive, Tiago, Lívia e Vanessa.
Agradeço também aos colegas da regional ABRAPSO São Paulo, pelas ricas discussões
e aos tantos outros amigos que pude conhecer nesta Universidade: Taynã, Graça Lima,
Jean, Sérgio Garcia, Mário, Gabriel, Fátima, Mariana, Luciana, Adriana Eiko, Mi
Veronese, Henrique (Capeta)- sempre me salvando na hora dos apertos ou me enviando
um oi!! Agradeço aos ótimos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social, os quais fico muito honrada em ter conhecido: Salvador Sandoval,
Maria do Carmo Guedes, Raul Pacheco, Odair Furtado, Bader B. Sawaia, sem me
esquecer da Marlene Camargo, sem a qual todas as burocracias ficariam muito mais
difíceis e as pausas para o café menos alegres! Atesto que a experiência na PUCSP foi
tão rica que pude ainda ter o privilégio de conhecer amigos e professores em outros
programas. Aos colegas da Geografia, História, Relações Internacionais, EHPS,
Ciências Sociais, Ciências da Religião muito obrigada pela acolhida e em especial,
agradeço aos professores dos respectivos programas: Márcia Cabreira, Estefânia
Knotz Cangaçu Fraga, Marijane Lisboa, Carlos, Lili e Terezinha Bernardo. Devo
agradecer também aos funcionários desta universidade, do PAC, do bandejão e da
biblioteca. Obrigada por estarem sempre abertos a ajudar, por tornarem minhas tardes
na PUC mais agradáveis. Agradeço imensamente ao CUCA, coral desta universidade,
há quarenta anos regido pelo incrível maestro Renato Teixeira. Este coral trouxe novas
cores à minha vida, bem como uma grande amiga, Sabrina de Paula. Devo agradecer
também tantas outras pessoas que compartilharam deste projeto comigo, Nicki, pelas
conversas e apoio nas tardes na USP; Anne e Kathrin pela tradução para o alemão
(Anne te agradeço pelo colo também!); Patrícia Rocha, pela ajuda sempre pontual
com as traduções para o inglês; Andrea por ter retornado do México, estava com
saudades! Agradeço ainda a Capes e ao CNPq pelo apoio no primeiro e segundo ano
do curso, sem o qual não teria sido possível concretizar tal projeto. Agradeço
finalmente aos colaboradores desta pesquisa. Sem vocês as coisas teriam tomado outro
rumo, certamente.
10
Sumário
Prólogo ...................................................................................................................................... 13
Introdução: delineando o objeto de estudo ............................................................................ 15
Objetivos ............................................................................................................................ 25
O caminho metodológico ................................................................................................... 25
Dos procedimentos de pesquisa às considerações éticas ................................................... 28
Capítulo 1 – Localização histórica do objeto de estudo ........................................................ 33
Localizando o sujeito a partir de um breve resumo da história da colonização alemã no
Brasil .................................................................................................................................. 34
Barreiras interétnicas e o Deutschtum ................................................................................ 41
São
Paulo:
uma
cidade
em
desenvolvimento-
a
relação
com
Santo
Amaro...................................................................................................................................48
A campanha de nacionalização e o Estado Novo: pela criação de um povo “abrasileirado”..
..............................................................................................................................................56
A liga pangermânica e o nazismo no Brasil ....................................................................... 61
Campos de concentração no Brasil .................................................................................... 65
Capítulo 2 – A identidade como questão ................................................................................ 68
A construção social da realidade- contribuições de Peter Berger, Thomas Luckmann e
Georg H. Mead ................................................................................................................... 71
Fases do self ..................................................................................................................... 75
Sociedade: uma realidade subjetiva e objetiva ................................................................... 76
Não se nasce imigrante, torna-se um - Identidade e o fenômeno migratório ..................... 77
11
Vivenciar papéis em uma nova realidade ........................................................................... 82
Capítulo 3 – Anamorfose e o sujeito imigrante: usos do conceito na compreensão das
(de)formações identitárias ....................................................................................................... 87
Capítulo 4 - Dando voz aos narradores. Significados e sentidos emanados quando da
pergunta “quem é você, quem pretende ser”? ....................................................................... 99
O descendente por ele mesmo- para além do alemão a construção de si no cotidiano................99
Primeiro bloco- “jovens
descendentes”.............................................................................................................................100
Ponderações acerca do bloco “jovens descendentes”.................................................................143
Segundo bloco- “descendentes mais velhos”.............................................................................147
Ponderações acerca do bloco “descendentes mais velhos”........................................................207
Capítulo 5- Quem somos nós, descendentes? Algumas
reflexões.....................................................................................................................................213
Considerações, finais (?)............................................................................................................225
Referências bibliográficas ...................................................................................................... 228
ANEXOS ........................................................................................................................................
Anexo 1 Termo de consentimento livre e esclarecido ..................................................... 241
Anexo 2 Entrevista com Lya Luft. .................................................................................... 242
Anexo 3 Uma horinha com Deus ...................................................................................... 245
12
Prólogo
Era uma vez... Do enraizamento pessoal à questão de pesquisa
A construção deste trabalho envolve uma trajetória pessoal, necessariamente.
Trajetória esta de uma menina nascida em São Paulo na década de 80, criada por sua
avó, filha de alemães adventistas, agricultora, nascida no interior de Santa Catarina e
também por seu avô, alemão, nascido em Muehlheim an der Ruhe (Alemanha)
emigrado em meados de 1907 para o Brasil e que, em sua herança geracional traz
também um avô judeu-russo, nascido em um barco aportado no Uruguai e uma avó,
também judia, filha de um alemão e uma austro-húngara, vindos para o Brasil em
condições de provável perseguição.
É uma história que se inicia com o despertar da consciência de “quem era eu”.
Ainda menina, foi somente na escola que percebi falar um idioma diferente e que minha
altura e aparência chamavam a atenção. De brincadeiras sobre a “girafa branquela” foi
um longo caminho até que na idade adulta, já na faculdade, nasceu o desejo de aprender
a língua alemã culta na escola de idiomas, que propiciou o vislumbrar de um universo
simbólico, correspondente a muitos quilômetros de oceano e dois continentes.
Quem eu era, quem sou e o que representa ser descendente de alemães e também
de judeus no Brasil em uma constelação familiar tanto quanto peculiar, é uma busca
atual que permeará também o futuro, tanto no que se refere à vida pessoal, como
também de estudante interessada em entender os fenômenos migratórios e seu
desenrolar.
Foi finalmente no ano de 2007 que resolvi emigrar, deixando para trás 25 anos
de Brasil rumo a uma nova vida, em um mundo antigo (de alguma forma, também meu
mundo) destino: Alemanha. De um encontro com o desconhecido (ainda que
procurando eu mesma) surgiram encontros e desencontros com partes de mim em
identificação
com
diversos
personagens
(que também
aparentavam
“girafas
branquelas”), mas que não necessariamente me eram familiares.
13
Encontro também com o estrangeiro, com a África, com o Oriente Médio...
Descubro assim o significado do companheirismo, da amizade, da parceria que
ultrapassam barreiras, credos, línguas e costumes transformando, desta forma,
dificuldades em reais possibilidades.
Justamente destes encontros nasceu a curiosidade em entender quem seria o
teuto-brasileiro. Mistura interessante, de um mundo antigo com um mundo novo,
choque entre o quente e o frio, entre o cinza e múltiplos tons, ginga, cheiros e sabores
tropicais. Como ocorreu esta emigração, em quais condições históricas e como se deu a
adaptação em local tão diverso?
Emigrantes rumo a sonhos e conquistas; ser estrangeiro não é algo fácil. Envolve
a descoberta de um novo mundo e também um novo si mesmo. Para mim, o sentido e o
significado disto abarcam um retorno à história do Brasil que, por sua vez, compõe
minha pessoa, o meu ser na atualidade.
Teço um estudo que envolve o desafio de falar também sobre mim, sobre o
alemão, o brasileiro enfim, o descobrir-se sujeito. Busco alcançar a compreensão da
identidade na alteridade, o tornar-se humano frente ao adverso no mundo atual, cujos
desafios foram também herdados do mundo de outrora. Desafios estes em que
identidades se constituem em movimento, em metamorfoses rumo à emancipação.
14
Introdução- o delineamento da questão de pesquisa
O foco desta pesquisa foi a investigação do processo de construção da identidade de
descendentes de imigrantes alemães que vivem no Brasil, nas regiões Sul e Sudeste do
país1. Nestas, o fluxo imigratório da referida população deu-se em maior número. A
pesquisa contemplou membros de diferentes gerações de descendentes alemães (filhos,
netos e bisnetos) cujos ancestrais se estabeleceram em solo brasileiro até o período final
da Segunda Guerra Mundial2. A escolha por tal momento histórico levou em
consideração a entrada no país dos imigrantes “pioneiros”, assim reconhecidos pela
literatura que refere a imigração desta população como a imigração alemã antiga.
(SIRIANI, 2003)
A expectativa deste estudo foi de que se desvelassem os meandros e enquadramentos
sociais da constituição identitária dos teuto-brasileiros face à sua socialização em
território brasileiro, bem como, a compreensão deste processo junto à composição da
população brasileira pensando-se em espectro ampliado sobre suas influências na
cultura.
Em tempo de deslocamentos frequentes muito diversos do que foram nos séculos
XIX e início do século XX, o advento da globalização e da modernidade tardia
promovem a circulação facilitada de um número cada vez maior de pessoas de diversas
origens, que se encontram e convivem em um mesmo espaço social (BECK, 1999).
Estas trazem consigo, em sua bagagem a cultura na qual foram socializadas. Neste
contexto de espaços e deslocamentos, tem-se no Brasil – país cuja miscigenação
advinda de sua colonização é parte essencial de sua história e que no século XXI revelase mais uma vez como grande receptor de imigrantes – um importante “laboratório
social” cujas formas até então empregadas na recepção de estrangeiros aguçam nossa
curiosidade quanto a este movimento (a recepção dos que emigram e seu desenrolar).
1
Estas regiões foram contempladas em nossa pesquisa por expressarem o fluxo imigratório de alemães
em maior número não desconsiderando-se a existência de outras, também receptoras desta população.
2
Período que contempla o início da imigração alemã para o Brasil até meados de 1945.
15
Desta forma, o interesse em estudar sobre descendentes de imigrantes alemães
(chamados“teuto-brasileiros”) no Brasil abarcou, para além do interesse pessoal a
peculiaridade da condição de vida nos trópicos à época, as experiências vivenciadas em
ambiente muito diverso de sua Pátria natal e as posteriores dificuldades ocasionados
pelo contexto político brasileiro. Dado o modo encontrado para sua integração social,
estes sujeitos continuaram a construir o país, não mais com o caráter de imigrantes, mas
como parte da nação que se tornou sua pátria e onde raízes foram criadas, modificandose a paisagem e estabelecendo-se características próprias à cultura local. “Ao longo dos
anos de permanência dos imigrantes e seus descendentes no Brasil, as misturas entre a
cultura local e a germânica moldaram sua identidade, única e hifenizada”. (MIRANDA,
2008)
A escolha pela referida população não teve por base a porcentagem de
imigrantes europeus que escolheram o Brasil como o país de morada uma vez que, de
acordo com Seyferth (1994, p.3):
O contingente imigratório de origem alemã não foi o mais significativo,
apesar da sua continuidade: entre 1850 e 1938 não houve interrupção do
fluxo, entrando no país entre 1 e 2 mil alemães por ano (numa estimativa
aproximada); só a década de 1920 registrou um fluxo mais intenso (cerca de
75.000 imigrantes, aproximadamente 30 % do total desde 1824). O total de
imigrantes assinalados por diversos estudiosos da imigração varia entre
235.846 (Carneiro, 1950) e 257.114 (Diegues Jr., 1964) (...). A relevância e a
especificidade dessa imigração, contudo, pouco tem a ver com as estatísticas
ou seu privilegiamento pelo governo imperial (...) o fato mais significativo
constituiu no estabelecimento em frentes pioneiras (Waibel, 1958), ao longo
de todo o século XIX e nas primeiras décadas do século XX - inicialmente
com exclusividade e, mais tarde, compartilhando os assentamentos com
imigrantes de outras etnias européias (principalmente italianos e poloneses) formando uma sociedade étnica, econômica e culturalmente diversa da
brasileira. Essa diversidade, marcada em todos os planos da vida social,
transformou-se numa questão nacional durante toda a Primeira República,
atingindo seu ponto máximo de conflito durante o Estado Novo, no contexto
da campanha de nacionalização (dirigida a todos os imigrantes e
descendentes, mas particularmente dura com os chamados tento-brasileiros).
Ainda que a imigração da referida população não tenha tido expressividade
numérica, ressaltam-se dados que registram 5% do total de europeus que escolheram o
Brasil como pátria, sendo de alemães (fonte: IBGE/DW-WORLD, 2010). Segundo
dados de Stehling (1979) calculam-se em 18 milhões os descendentes alemães em solo
brasileiro, cerca de 10% de nossa população, número que para os termos de nossa
16
pesquisa é expressivo, visto que o estudo de Stehling é datado de 1979. De acordo com
Magalhães (1998), o Brasil está atrás apenas dos Estados Unidos da América em
número de falantes da língua alemã,
sendo o segundo país mais escolhido pelos
alemães para emigrar.
A idéia de estudar os aspectos da constituição da identidade de descendentes
alemães surgiu durante estadia da autora (2007-2011) na Alemanha, período no qual
verificou inúmeras vezes a dificuldade de integração de descendentes turcos à cultura e
língua locais. Dados da imprensa alemã3 expressam grande preocupação com as
chamadas políticas de integração4 ao país. Tal fato suscitou questionamentos acerca de
como teria se dado no Brasil a integração de descendentes alemães, como teria sido sua
adaptação ao local e à cultura? Quem são estes indivíduos, como lidaram (ou ainda
lidam) com o deslocamento de seus antecessores e como a memória influenciou e/ou
influencia a construção de suas identidades?
Outro aspecto relevante que nos levou a escolha deste objeto, foram os
sentimentos da autora (neta de alemães e de judeus russos), muitas vezes confrontada na
Alemanha com questionamentos referentes a seu pertencimento: “Você é brasileira ou
alemã? Talvez ambos?”; “Sim você é alemã, pois aqui o que vale é o sangue, pouco
importa o local de seu nascimento”; “Tem o passaporte, então é alemã de verdade”;
“Ah sim você não é alemã, é teuto-brasileira.” Ao final, caber-nos-ia responder quem
éramos/quem somos a nós mesmos, compreender tal construção. Neste constante
autoquestionamento sobre o “eu” em uma nação que não aquela de nosso nascimento
fomos tomados, muitas vezes, pela ideia de “duplo pertencimento” e por um sentimento
de encontrarmo-nos em um “entre lugares” (BHABHA, 2001) tema este, sem dúvida,
disparador de conflitos que nos coloca frente à (re)construção permanente de
3
Welt online. A integração dos turcos - um mal entendido. WELT ONLINE. Türkische Integration- ein
Missverständnis.
Integração
dos
turcosum
mal
entendido.
Disponível
em<http://www.welt.de/satire/article1663983/Tuerkische_Integration_ein_Missverstaendnis.html>
(acesso em 10.09.2011)
4
Política que visa a integração como um processo de diminuição das diferenças entre migrantes e não
migrantes na Alemanha. Maiores informações em Friedrich HECKMAN. A evolução recente da política de
integração na Alemanha e na Europa, 2010.
17
identidade(s) a partir de suas metamorfoses. Este tipo de questionamento acabou por
tornar-se cada vez mais pertinente, à medida que nossos colaboradores da pesquisa
mencionavam semelhante conflito, muitas vezes, cercados de incômodos.
Em diversas localidades do Brasil, em especial na região Sul, marcas da
imigração alemã são evidentes. O Estado de Santa Catarina é considerado o mais
“alemão” do Brasil. Aproximadamente 35% (a maior porcentagem dentre os Estados
brasileiros) da sua população possui ascendência alemã. As cidades do interior do
Estado ainda preservam a arquitetura germânica das casas, bem como, a língua alemã e
festas populares, como a Oktoberfest. Importa ressaltar que a imigração alemã no Sul do
Brasil deixou marcas profundas na composição da população. Nos Estados de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul a cada três pessoas, uma tem origem alemã. Números
menores encontram-se no Paraná e em todo o Sudeste e Centro-Oeste do país. No ano
2004, a imigração alemã no Brasil completou 180 anos. Estima-se que haja um milhão
de falantes do idioma alemão no Brasil, sendo em sua grande maioria bilíngues. (fonte:
DW-WORLD,2011)
Dentre alguns aspectos históricos desta imigração, houve um muito significativo
dado na história recente do Brasil, que provocou influências importantes no modo de
vida de imigrantes alemães5 e seus descendentes. Segundo Seyferth (1989, 1991) e
Willems (1980) o Governo Federal Brasileiro determinou durante o Estado Novo a
extinção das instituições comunitárias, proibiu o uso da língua alemã e publicações em
alemão. Enviou unidades do exército a várias cidades situadas nas regiões de
colonização. Tal fato, justificado pelo chamado “perigo alemão”6 ocorreu em 1937
perdurando até o final da Segunda Guerra Mundial em 1945. O plano de construção do
Estado Nacional no Brasil do período de Vargas visava acabar com a descentralização
do poder e promover um projeto de “uniformização e consolidação de uma identidade
nacional.” (SANTANA, 2010, p. 245).
5
As influências do período do Estado Novo não foram privilégio dos imigrantes alemães, mas também
dos japoneses, italianos e judeus.
6
O perigo alemão constituiu-se pelo temor de que a Alemanha anexasse áreas de colonização alemã no
Brasil, ou ainda, que mantivesse algum tipo de influência nestas regiões (GERTZ, 1991).
18
Diversos aspectos definem este período, sendo de especial relevância a proibição
de manifestações de qualquer ordem por grupos estrangeiros. Deu-se, por exemplo, o
ataque ás chamadas ideologias alienígenas, denominação dada ao modo de viver
próprio dos grupos de estrangeiros e a preocupação com a fixação da língua portuguesa
e da cultura brasileira. “Neste período se inicia a afirmação de uma identidade nacional,
na qual os colonos alemães de alguma maneira serão assimilados” (idem, 2010). Estes
fatos e outras informações históricas serão contemplados no primeiro capítulo deste
trabalho.
Partindo-se do pressuposto de que as colônias alemãs da época já teriam lugar e
papel definidos no Brasil, bem como por parte se deus componentes, sentimentos de
acolhimento, como se constituiriam identidades a partir daí?
Para Hall (2011) a identidade torna-se uma “questão” quando se está em crise,
quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza. A identidade não existe senão como um processo de construção e
pressupõe o reconhecimento da alteridade para sua afirmação.
De acordo com Santos (2010), a Identidade Nacional seria “uma identidade
coletiva organizada em torno do Estado-Nação7 e estaria fundada sobre o princípio da
autoridade, colocado acima da solidariedade. O nacionalismo constrói a idéia de
totalidade: um povo, uma nação, uma cultura, uma língua” (p.30-31). Contudo, o
nacionalismo possui um caráter étnico, uma vez que na origem da idéia de nação está a
de uma comunidade étnica.
4A
idéia de Estado-nação nasceu na Europa em finais do século XVIII e inícios do século XIX. Provém do
conceito de "Estado da Razão" do Iluminismo, diferente da "Razão de Estado" dos séculos XVI e XVII. A
Razão passou a ser a força constituidora da dinâmica do Estado-nação, principalmente quanto a
administração dos povos. A ideia de pertença a um grupo com cultura, língua e história próprias, a uma
nação, foi sempre uma das marcas dos europeus nos últimos séculos, ideal que acabariam por
transportar para as suas projeções coloniais. Há um efeito psicológico na emergência do Estado-nação,
pois a pertença do indivíduo a tal estrutura confere-lhe segurança e certeza, enquadramento e
referência civilizacional. O Estado-Nação afirma-se por meio de uma ideologia, uma estrutura jurídica, a
capacidade de impor uma soberania sobre um povo, num dado território com fronteiras, com uma
moeda e forças armadas próprias. É na sua essência conservador e tendencialmente totalitário. Mais
informações em Benedict Anderson “Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e difusão do
nacionalismo.” Tradução Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 2008
19
Na prática, o nacionalismo está ligado à ideia de pertencimento e justamente
por isso, o imigrante que possui uma identidade dupla, é uma contradição
dentro da categoria de Estado-Nação. O duplo pertencimento coloca o
problema da lealdade nas redes de participação. (SANTOS, 2010, p.30-31)
Conforme Santos (2010a) o problema do duplo pertencimento é frequente a
partir da segunda geração de imigrantes. “A primeira geração está ligada à identidade do
país de origem, enquanto a segunda geração se sente dividida entre a identidade dos pais
e a do país de acolhida” (p. 31).
Quanto à identidade nacional, salienta Llobera (1996 apud SANTOS, 2010a, p.
31):
Nas suas origens e na sua essência, a identidade nacional é uma tentativa de
preservar os costumes dos nossos antepassados. O nacionalismo põe em
destaque a necessidade das raízes e da tradição na vida de qualquer
comunidade.
A identidade se constrói através de relações, isto é processual e relacional e,
portanto, capaz de se adaptar às transformações sociais e pode ser vista como
construção social de pertencimento. Em época de globalização é oportuno lembrar que a
identidade marca distância, mas também aproximações. (SANTOS, 2010a, grifo nosso
DP)
Para que se entenda a identidade é preciso compreender o processo de sua
produção. “A identidade é a articulação da diferença e da igualdade” (CIAMPA, 2001,
p. 138). É a estrutura social mais ampla que oferece os padrões de identidade; neste
sentido, também se pode dizer que as identidades em seu conjunto refletem a estrutura
social, ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou transformando-a.
Ciampa traz a visão de que em cada momento da existência do indivíduo,
embora sendo uma totalidade, manifestam-se partes de si como desdobramento das
múltiplas determinações as quais está sujeito.
De acordo com Santos (2010a), o processo de identidade é negociado e
permanentemente construído e reconstruído nas trocas simbólicas sociais. No Brasil a
20
idéia de identidade cultural8 é utilizada para o estudo de grupos migrantes, sendo
freqüentemente intercambiada com o conceito de organização (SANTOS, 2010a;
DANTAS, 2010) e de memória (POLLAK, 1989, 1992) uma vez que esta, sendo
relativamente constituída efetua um trabalho de manutenção, coerência, unidade,
continuidade e organização. A memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo
e social, construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças
constantes. (POLLAK, 1992).
Pollak (1992) em seu estudo sobre memória e identidade social, afirma que a
memória tem características flutuantes e mutáveis, tanto individual quanto
coletivamente e na maioria das memórias existem marcos ou pontos invariantes e
imutáveis. Ao questionar quais são os elementos que constituem a memória individual
ou coletiva, entende que são os acontecimentos vividos pessoalmente e aqueles vividos
por tabela, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a
pessoa julga pertencer.
Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se
juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma
pessoa ou de um grupo. É possível que, por meio da socialização política, ou
da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação
com determinado passado, tão forte que podemos falar de uma memória
quase herdada. (POLLAK, 1992, p. 2)
O mesmo autor se refere à existência de acontecimentos regionais que
traumatizaram muito e marcaram tanto uma região ou grupo, que sua memória pode ser
transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação. Arruti (2002)
contribui neste sentido, ressalta que memórias e identidades não são entidades fixas,
8
“A identidade cultural é um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que
envolve o compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os
esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta
de várias fontes no tempo e no espaço. Como consequência do processo de globalização, as identidades
culturais não apresentam hoje contornos nítidos e estão inseridas numa dinâmica cultural fluida e
móvel”.
Identidade Cultural: Em Dicionário de direitos humanos: Disponível em
<http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Identidade+cultural>
(acesso
em
10.09.2011).
21
mas representações e construções da realidade, fenômenos mais subjetivos do que
objetivos.
Na perspectiva da transmissão psíquica dentro da família, autores como
Neuberger (1999) e Andolfi (1984) retratam a memória como transmissão capaz de
deter as informações necessárias para articular o projeto fundador da família. A história
de uma família é uma trama complexa e singular de histórias individuais, vínculos
intergeracionais e experiências compartilhadas que se sucedem em tempo que se toma
forma, não na sucessão dos anos, mas no perpetuar-se das gerações. Sugere a
necessidade da presença de uma continuidade histórica e evolutiva entre os significados
que diferenciam modelos de relação do passado e do presente, o que se trata da
identidade cultural de uma família. (ANDOLFI, 1984)
Sayad (1998) salienta a contradição dupla existente na imigração: representa um
estado provisório que se prolonga indefinidamente, ao mesmo tempo em que se torna
um estado definitivo, vivido com o sentimento de provisório. Koltai (1997) acrescenta
que para o senso comum, estrangeiro é alguém que vem de outro lugar, não está em seu
país e, ainda que em certas ocasiões possa ser bem-vindo, na maioria das vezes é
passível de ser mandado de volta para seu país de origem, repatriado. “A categoria
sócio-política que o estrangeiro ocupa o fixa numa alteridade que implica numa
exclusão, necessariamente.” (KOLTAI, 1997, p. 8).
Pensando-se tais questões na realidade social do cotidiano, iluminam-nos Berger
e Luckmann (1996) com sua descrição do mundo da vida cotidiana “não somente
tomado como uma realidade certa pelos membros da sociedade na conduta
subjetivamente dotada de sentido que imprimem às suas vidas, mas um mundo que se
origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por
eles” (p. 36). Aqui o interesse é o caráter intencional comum de toda consciência.
A realidade da vida diária não se esgota nas presenças imediatas, mas abarca
fenômenos que não estão presentes ‘aqui’ e ‘agora’. A zona da vida cotidiana
diretamente acessível a minha manipulação corporal é a zona que se acha ao
meu alcance, o mundo em que atuo a fim de modificar a realidade dele, ou o
mundo em que trabalho (...) (BERGER e LUCKMANN, 1996, p. 39).
22
Segundo os autores, o interesse nas zonas distantes (como o passado) é menos
intenso e menos urgente. O interesse maior do sujeito é o aglomerado de objetos
implicados em ocupações diárias, porém o trabalho efetuado nas zonas mais distantes
poderá afetar a vida cotidiana. Ciampa (2001) coloca que algumas personagens que
compõem nossa identidade sobrevivem até mesmo quando nossa situação objetiva
mudou radicalmente.
É a estrutura temporal que fornece a historicidade que determina a situação do
sujeito no mundo da vida cotidiana. “Nasci em certa data, entrei para escola em outra
data, comecei a trabalhar como profissional em outra, etc. (...).” (BERGER e
LUCKMANN, 1996, p. 45). Estas datas, contudo, estão localizadas em uma história
muito mais ampla e esta localização configura decisivamente a situação do indivíduo.
Logo, a estrutura temporal da vida cotidiana também impõe à biografia, uma totalidade.
E é nesta estrutura temporal que a vida cotidiana conservará para o indivíduo o sinal de
realidade.
Neste sentido, tomaremos como ponto de partida a caracterização de Ciampa
(2001), que coloca a importância da identidade como metamorfose e nunca como algo
cristalizado. Em sua visão, cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando
uma identidade pessoal, uma história de vida, um projeto de vida no emaranhado das
relações sociais. A discussão acerca das questões identitárias e seu desenrolar partindose da socialização, individualização e o sintagma desenvolvido por Ciampa (2001) serão
abordados no capítulo dois.
Nos mais de 180 anos de imigração alemã no Brasil, suas influências fizeram-se
presentes em diversos setores (sobretudo, do ponto de vista econômico, visto, por
exemplo, o grande número de empresas alemãs em território brasileiro, à exemplo de
São Paulo9). No entanto, a integração e desenvolvimento dos imigrantes e de seus
descendentes no país, sua inserção cultural, como esta se deu e vem se constituindo no
9
São Paulo é considerado o maior pólo da indústria alemã fora da Alemanha. Fonte:
<http://www.dw.de/s%C3%A3o-paulo-celebra-180-anos-da-imigra%C3%A7%C3%A3o-alem%C3%A3/a4411676> (acesso em 29.08.2013)
23
processo da construção de identidades, levando-se em conta origem, história, relações
intersubjetivas, o modo como foram socializados, além de sua busca por
reconhecimento, merecem maior visibilidade e justificam a relevância deste estudo. Sua
constituição enquanto sujeitos e cidadãos reflete diretamente suas relações sociais e
posicionamentos frente à sociedade que os acolheu, fazendo frente ao que continuarão
construindo nesta.
No que se refere à contribuição científica desta pesquisa, constatou-se que a
maior parte dos estudos encontrados sobre a referida população é predominante do
campo da História e visam em geral, um contexto político. Dentre o material encontrado
pouco se fala da história de vida e construção da identidade e metamorfoses presentes
na vida de imigrantes alemães e/ou seus descendentes no Brasil, mas sim de sua
representação social, por exemplo, seu “status” enquanto “herdeiros do nazismo”.
Assim, algumas questões envolvendo a ideia de anamorfose e o “ser estrangeiro” são
apresentadas no capítulo três.
No quarto capítulo conferiu-se espaço para o olhar dos sujeitos colaboradores
desta pesquisa, que em suas narrativas de vida trouxeram temas que iluminam os
capítulos anteriores; bem como abrem portas para a discussão de seus pontos de vista
que proporcionaram reflexões e considerações, sobre quem afinal são- no capítulo
cinco.
Desta forma, buscou-se com este estudo dar existência a um levantamento que
sirva como ferramenta útil que contribua não só com a Psicologia Social e os estudos de
identidade, mas também para maior compreensão do processo da formação da
população brasileira. Buscou-se ampliar o olhar sobre a compreensão dos movimentos
migratórios e sua influência nas relações sociais de modo que pudesse ir além de
estereótipos consolidados ou opiniões de especialistas.
Conforme as palavras de
Ciampa: “A questão da identidade deve ser vista não como questão apenas científica,
nem meramente acadêmica: é, sobretudo, uma questão social, uma questão política.”
(2001, p.127)
24
Para que se abarcassem as diferentes formas das vivências do sujeito, que ora
representam contradições de si mesmos trabalhou-se com o conceito de personagem
(CIAMPA, 2006) que não perde a relação com o papel, mas que permite considerar as
possíveis variedades, sejam elas grupais, sejam também, individuais.
Em seu conjunto as identidades constituem a sociedade (CIAMPA, 2001) e com
este olhar, o presente estudo buscou contribuir com a compreensão da construção da
identidade dos teuto-brasileiros que por sua vez, são parte da constituição da identidade
coletiva da sociedade brasileira. Buscou-se, pois, refletir criticamente sobre
desdobramentos e pertinências deste contexto, frente o processo de constituição
identitária dos descendentes entrevistados.
OBJETIVOS
Geral:
Compreender a construção da identidade de descendentes alemães (teutobrasileiros) considerando sua socialização em parte do território brasileiro, bem como, a
situação da imigração frente à autodefinição do eu.
Específicos:

Entender como se dá a compreensão de sua identidade cultural (sentimentos de
pertencimento) frente às formas de socialização vivenciadas;

Identificar fatores que possam dificultar ou facilitar a mudança que a migração
ocasiona para o sentido de quem se é e como isto difere entre os diferentes
contextos histórico-políticos.
O CAMINHO METODOLÓGICO
O enquadramento teórico desta pesquisa se vincula à escola de Frankfurt,
também conhecida como teoria crítica da sociedade, particularmente à dita segunda
geração (HABERMAS, 1983) em cujo contexto se insere a teorização de A. C. Ciampa
(1987) com sua tese de que a identidade é metamorfose. A teoria crítica da sociedade
25
propõe um pensamento questionador. Questiona, sobretudo, as relações de poder
decorrentes do sistema social em que vivemos. Considera os fenômenos estudados a
partir de suas determinações histórico-sociais e sua orientação para a emancipação
humana. Segundo Goulart (2009) Habermas manifesta a necessidade de se estudar de
forma reconstrutiva o modelo concreto de relacionamento entre o Estado, as instituições
políticas e a sociedade. Com o filósofo frankfurtiano, reportaremo-nos a uma
perspectiva de estudos críticos de macro alcance, que nos projeta nas relações políticas,
sociais e comunitárias- em múltiplas formas e modos (SPINK & SPINK, 2006).
O método escolhido para o estudo se insere na abordagem qualitativa. A
pesquisa qualitativa refere-se, em amplo sentido, a descrições detalhadas de situações
com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. “Como a
realidade social só aparece sob a forma de como os indivíduos veem este mundo, o
meio mais adequado para captar a realidade é aquele que propicia ao pesquisador ver o
mundo através dos olhos dos pesquisado” (GOLDENBERG, 2005, p. 27). As chamadas
metodologias qualitativas privilegiam de modo geral a análise de micro processos,
através do estudo das ações sociais individuais e grupais (MARTINS, 2004).
A pesquisa qualitativa debruça-se sobre o conhecimento de um objetivo
complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados simultaneamente em
diferentes processos constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que
se expressa o sujeito concreto. A história e o contexto que caracterizam o
desenvolvimento do sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e
plasticidade do fenômeno subjetivo (GONZÁLEZ-REY, 2002).
Para a coleta de dados, utilizou-se o Método de História de Vida, pertencente às
metodologias qualitativas10 (Abordagens Biográficas). Este método objetiva apreender
10
De acordo com Antunes (2012) a predileção pela pesquisa qualitativa, com uso do método de história
de vida em especial, aparece em grande parte das pesquisas desenvolvidas pelo NEPIM (Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Identidade e Metamorfose da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
caracterizando-se um fazer científico enquanto práxis social. Segundo a autora, “a aplicação de
metodologia biográfica tem contribuído com a prática de uma Psicologia Social conciliada à Teoria
Crítica, evidenciando as determinações histórico-culturais de um fenômeno atento à direção, mais ou
menos emancipatória dos sujeitos em ação e relação.” (p. 2)
26
as articulações entre a história individual e a história coletiva, em uma ponte entre a
trajetória individual e a trajetória social (SILVA, 2007). Emolduradas na metodologia
qualitativa, as abordagens biográficas caracterizam-se por um compromisso com a
história como processo de rememorar, com o qual a vida vai sendo revisitada pelo
sujeito. O método da História de vida funciona como possibilidade de acesso do
indivíduo a realidade que lhe transforma e é por ele transformada, na busca da
apreensão do vivido social, das práticas do sujeito por sua própria maneira de negociar a
realidade onde está inserido (BARROS, 2000). Este método tem como objetivo o acesso
a uma realidade que ultrapassa o narrador. Por meio da história de vida contada da
maneira que é própria do sujeito, tenta-se compreender o universo do qual o indivíduo
faz parte. Isto nos mostra a faceta do mundo subjetivo em relação permanente e
simultânea com os fatos sociais. (CAMARGO, 1984)
Segundo Goldenberg (2005) a utilização do método biográfico em ciências
sociais e humanas é uma maneira de se revelar como as pessoas universalizam, através
de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem. O método biográfico
pode acrescentar a visão do lado subjetivo dos processos institucionais estudados, como
as pessoas concretas experimentam estes processos e levantar questões sobre esta
experiência mais ampla. Becker (1994) enfatiza o valor das biografias, atribuindo
grande importância às interpretações que as pessoas fazem de suas próprias experiências
como explicação para o comportamento social. Para Ferrarotti (1983) citado por
Goldenberg (2005), cada indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma
estrutura social e é possível “ler uma sociedade através de uma biografia conhecer o
social
partindo-se
da
especificidade
irredutível
de
uma
vida
individual”
(GOLDENBERG, 2005, p.36). Queiroz (1988) complementa, com sua visão de que o
indivíduo é um fenômeno social e desta forma, aspectos importantes de sua sociedade e
grupo, bem como, comportamentos, valores e ideologias podem ser apanhados através
de sua história. “A história de vida é, portanto, técnica que capta o que sucede na
encruzilhada da vida individual com o social.” (p.36)
A análise do conteúdo expresso pelos colaboradores da pesquisa contemplou a
perspectiva hermenêutica-crítica, que consiste em explorarem-se ou deduzirem-se
27
definições de situação que o texto transmitido pressupõe, a partir do mundo da vida do
autor e de seus destinatários (HABERMAS, 1987). A interpretação hermenêutica no
âmbito das metodologias qualitativas busca reconstruir os processos interativos que
produzem o sentido prático ou a construção social da realidade (KÖLLER, 2003).
Minayo (1996, p. 220) apud Szymanski (2002, p.65) define a hermenêutica como “a
busca de compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos”. A
autora enfatiza a importância que a hermenêutica dá para as condições da vida, situadas
sócio-historicamente.
Dos procedimentos de pesquisa às considerações éticas - o caminhar do
pesquisador
Em um primeiro momento a coleta de dados dar-se-ia por meio da execução de
entrevistas abertas com membros de três gerações de famílias de descendentes alemães
(por exemplo, avô, pai e filho) em uma cidade do Sul do Brasil. Este procedimento fora
elaborado em virtude do contato já estabelecido com a AMIG (Associação PróMemória da Imigração Germânica) que proporcionaria indicações de pessoas a
contribuírem com relatos. Visava-se a indicação de sujeitos que tivessem vivido o
período conhecido por “Estado Novo”11 ainda que não pessoalmente, em forma de
memórias.
Contudo, tal contato não se desenvolveu de acordo com as expectativas
supracitadas. As indicações cedidas pela AMIG foram de ordem bibliográfica e não o
contato direto com pessoas. Desta forma, iniciou-se um período de revisão da forma de
abordagem dos sujeitos e coleta de dados.
Posteriormente acionou-se (por meios eletrônicos, telefônicos e também
pessoalmente) cinco escolas alemãs (sendo uma suíço-brasileira), um hospital alemão,
institutos de cultura e ensino da língua, clubes recreativos, restaurantes, associações, a
Câmara de Comércio Brasil Alemanha e uma instituição de longa permanência para
11
A escolha por este período da História do Brasil apontava o impacto causado nas vidas dos sujeitos,
impacto este que pudesse ter alcançado também as gerações mais jovens de descendentes alemães.
28
idosos alemães na cidade de São Paulo. Houve ainda, a tentativa de contato com
diversos sites de relacionamento e blogs na internet, bem como, com professores da
língua alemã (encontrados por meio de anúncios, expostos em murais de duas
Universidades em São Paulo).
A mesma estratégia foi utilizada ao tentarem-se contatos com sujeitos potenciais
colaboradores, em Curitiba, Londrina, Florianópolis e Porto Alegre (cidades
representantes dos Estados contemplados12 nesta pesquisa, onde nos foram indicadas
pessoas e associações culturais). A descrição da trajetória do contato com sujeitos
colaboradores da pesquisa faz-se relevante. Demonstra o grau de dificuldade da
aproximação com esta população. Assim sendo, mudou-se a estratégia sem que,
contudo, se alterassem as premissas de investigação.
A nova tática constituiu-se em apresentar a proposta de pesquisa à pessoas de
nosso relacionamento na academia e também no convívio social cotidiano, bem como
em eventos científicos e encontros promovidos por associações comerciais e culturais
alemãs (sempre atentos, observando os lugares13 que frequentávamos) e auxílio de
informantes14, cujo conhecimento do universo dos descendentes alemães, bem como
experiências pessoais e de trabalho colaboraram muito com a pesquisa.
Sugere-se aqui o que M.J.Spink (2007) denomina “pesquisar no cotidiano” (p.7)
12
Ressalta-se que não se focalizou uma cidade em especial, mas sim a apreensão de uma diversidade
dentro do Sul e do Sudeste do Brasil, à partir de contatos indicados.
13
Cabe aqui alusão à ideia desenvolvida por Peter Spink (2008) sobre os micro lugares. Seu propósito é
de “chamar a atenção para a importância do acaso diário, dos encontros e desencontros, do falado e do
ouvido em filas, bares, salas de espera, corredores, escadas, elevadores, estacionamentos, bancos de
jardins, feiras, praias, banheiros e tantos outros lugares” (p.70) de encontros ou breves encontros, onde
o pesquisador atento está de passagem. O autor cita Law & Mol (1995) ao explicar que os micro-lugares
tratam-se de uma inserção horizontal do pesquisador nos encontros diários, encontros que não são
abstratos, mas que ocorrem sempre em lugares, com suas sociabilidades e materialidades. (P.SPINK,
2008, p. 70)
14
Agradeço imensamente o auxílio e disposição de Jorge Bodanzky e Carminha Gongora, que
cooperaram de modo inestimável com sua atenção e informações sobre o campo de pesquisa.
29
(...) se pesquisarmos no cotidiano, seremos partícipes dessas ações que se
desenrolam em espaços de convivência mais ou menos públicos. Fazemos
parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartimos de
normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão
compartilhada dessas interações.
Em meio ao olhar voltado para o cotidiano15, foi possível chegarmos a seis
colaboradores e um informante que não nos contou sua história de vida, mas sim sua
experiência junto à população foco desta pesquisa. Todavia, a ideia inicial de coletaremse relatos de gerações de uma mesma família não obteve êxito. Ora pelos entrevistados
não quererem que outras pessoas de sua família falassem, ora pela não existência de
outras gerações ou mesmo, pelos sujeitos não estarem abertos ao contato para
entrevistas.
Ressalta-se o estranhamento da obtenção de respostas negativas por todas as
outras formas de contato com colaboradores (em sendo os centros de língua, cultura e
escolas fontes supostamente “interessadas”), bem como em nosso contato pessoal com
descendentes alemães em restaurantes e/ou associações. Supõe-se, a partir deste fato
dado no campo, a existência de questões ainda não elaboradas que permeiam o
imaginário dos descendentes em formas de não ditos16. É possível que o mal estar
gerado no tocante ao tema “ser alemão” esteja associado com os acontecimentos da
Segunda Guerra Mundial, por exemplo.
Por outro lado, em se pensando o silêncio institucional, uma abertura para o
diálogo poderia promover justamente a dissolução de preconceitos e maior
15
Fausto (1991) em trabalho intitulado Historiografia da imigração para São Paulo, retrata às várias
interfaces da mobilidade social das diversas etnias que vieram para o estado de São Paulo. Em
referência às ações cotidianas, ressalta a importância de estudos que levem em conta dimensões da
experiência de vida, o que implica um fazer da história, uma história necessariamente social. Esta, diz
respeito a um olhar da vida familiar, das relações na escola, dos negócios e das especializações
profissionais.
16
Para iluminar esta relação, buscou-se inspiração em Claude Olievenstein (1989). Segue o que o autor
coloca sobre o não dito: “(...) o não dito é o que vem ao imaginário do sujeito de tal maneira que ele
sabe que o imaginário do outro sabe, mas que a lei do outro não pode aceitar saber abertamente.” (p.7)
Olievenstein acrescenta ainda, que convém analisar o não dito “nas instâncias importantes da vida e em
sua influência no plano das instituições e seu modo de interação e relação.” (p.17) O não dito é algo
instável e vivo, em constante modificação que se esforça para “manter homeostase aceitável entre um
psiquismo adaptado ao combate da vida e os grandes e pequenos medos (...).” (idem, ibidem)
30
transparência no que se refere à história e sua construção, que não se interrompe nos
acontecimentos passados, podendo ser repensada ou mesmo reformulada quando há
espaço para o debate. A não abertura para o diálogo ressalta-se, demonstra o não lidar
com o inesperado, mas também, a não abertura para uma nova possibilidade de
construção para este inesperado.
As entrevistas concedidas foram gravadas e transcritas. Posteriormente deu-se a
análise das histórias de vida, tomando-se por base categorias que nortearam os discursos
dos sujeitos, fazendo-se uso do sintagma17 desenvolvido por A. C. Ciampa (identidademetamorfose-emancipação). Deste, desdobraram-se elementos cuja análise se
estabeleceu.
A análise do material, elencada ao sintagma proposto por A. C. Ciampa, teve o
entendimento deste como metacategoria de pesquisa. Dando lugar a extração de
categorias, portanto, “fornecidas pelo próprio participante do estudo” (MOURA et al.,
1998, p. 91) e além disso, na interpretação dos dados procurou-se verificar a adequação
dos dados ao referido sintagma, pela mediação das categorias extraídas do material
coletado “buscando conhecer o modo pelo qual se daria a evolução do fenômeno no
tempo.” (CONTRANDRIOPOULOS et al., apud MOURA et al., 1998, p. 92) visando
assim “determinar até que ponto os dados obtidos se mostram úteis e informativos para
os objetivos do estudo.” (HIGHLEN & FINLEY apud MOURA et al., 1998, p. 92).
Foram observados aspectos legais, de acordo com a Resolução 196/96 de
proteção ao sigilo e procedimentos adotados em pesquisas acadêmicas. O contato com o
17
Na definição de Campos (2013, p. 20) sintagma é um segmento linguístico que expressa uma relação
de dependência. Nessa relação de dependência, diz-se que existe um elemento determinado e outro
determinante (ou subordinado), estabelecendo um elo de subordinação entre ambos. Cada um desses
elementos constitui um sintagma. Na concepção original de sintagma, essa noção era utilizada para se
referir a qualquer segmento linguístico: a palavra, a sentença e o período. Mais recentemente, o termo
sintagma é comumente empregado para se referir às partes da sentença. O sintagma IDENTIDADEMETAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO, proposto na psicologia social e trabalhado nos diferentes campos de
atividade humana revela exatamente essa interdependência, onde um não pode ser discutido sem o
outro.
31
sujeito de pesquisa exige do pesquisador uma postura ética, a qual, além dos
procedimentos rotineiros que envolvem o esclarecimento dos termos da pesquisa, o
consentimento do entrevistado e a possibilidade dos sujeitos terem acesso ao conteúdo
do trabalho após o término e de manterem contato com a entrevistadora para eventuais
dúvidas e observações posteriores ás entrevistas, pressupõe também cuidados como a
não indução de questões, a não interferência em respostas indicadas pelos sujeitos, a
proposição de questões abertas, não diretivas, que propiciem que os pesquisados
escolham como narrar suas próprias histórias, realizando seu próprio caminho na
exposição do tema.
32
Capítulo 1
Localização histórica do objeto de estudo
Localizar historicamente os objetos a serem estudados é uma forma de se partir
de princípios definidos, estabelecidos pela realidade construída materialmente e dado o
delineamento histórico, encarar tal objeto em suas nuances mais sutis, até concepções
no presente.
Pretende-se com este capítulo, emitir visão panorâmica acerca da história dita
“oficial” da imigração alemã para o Brasil, conferindo-lhe detalhes sobre aspectos
correspondentes a ambos os países- Alemanha e Brasil, que perpassaram interesses dos
indivíduos envolvidos neste processo. Almeja-se ampliar a compreensão acerca do
movimento migratório na perspectiva da história não oficial, aquela a ser relatada pelos
sujeitos colaboradores desta pesquisa, na construção de suas identidades, na apreensão
de suas histórias vividas e compartilhadas. Ao localizar o sujeito em sua história, se
alcança sua constituição com espectro ampliado, deste, enquanto ser atuante na
sociedade, na percepção que tem desta e de como a resignifica, promovendo sentido à
própria existência. Como colocado por Prost (2008, p.133) “a história está
aparentemente empenhada em conciliar contradições”:
(...) tem necessidade de fatos, extraídos de fontes; no entanto, sem que sejam
questionados, os vestígios permanecem silenciosos e nem sequer são
“fontes”. A história aparece de preferência como prática empírica, uma
espécie de atividade amadorística em que ajustes, incessantemente diferentes,
conseguem juntar materiais de textura variada ao respeitar, em maior ou
menor grau, exigências contraditórias. (PROST, 2008, p. 133)
Ainda neste sentido, é inspiradora a fala de Sérgio Buarque de Holanda em sua
introdução à Davatz (1980, p. 45):
(...) para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe,
não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição
escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que
enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais
importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história. Exercício
difícil e cheio de seduções perigosas, onde faltam pontos de apoio seguros,
levará facilmente a aceitar seus resultados como a única verdade digna de
respeito (...).
33
Localizando o sujeito a partir de um breve resumo da história da
colonização alemã no Brasil
(fonte: arquivo Martius Staden)18
A onda imigratória alemã para o Brasil teve seu início na abertura dos portos
brasileiros às nações amigas, pelo príncipe regente D. João VI, no ano de 1808. Foi
incrementada após o decreto de 25 de novembro do mesmo ano, que possibilitou o
acesso à propriedade fundiária a estrangeiros, incentivando a entrada de grupos
imigrantes de variadas procedências. Petroni (1982 apud SIRIANI, 2003) refere-se à
imigração como fator civilizatório, sobretudo. A presença dos alemães no Brasil no
período colonial, ainda que em números diminutos, representou uma imigração de
qualidade, na medida em que no país permaneceram estudiosos, artistas, engenheiros,
artífices e militares de origem alemã (SIRIANI, 2003).
Willems (1980) considera a etnia definida linguisticamente19 para chegar ao
número máximo de cerca de 500 mil imigrantes de língua alemã, desde meados de 1827
18
Foto obtida no site http://www.martiusstaden.org.br/ acesso em 06.09.2013
19
Em sendo este estudo sobre identidade, cabe menção a este fato como prática vigente a época, que
não levou em consideração as diferenças e especificidades destes grupos. Em se considerando grupos
como “iguais” ou mesmo próximos devido à língua dá-se vazão a uma série de questões ligadas ao
reconhecimento. Tenchena (2010) em seu estudo relacionado à memória de mulheres ucranianas no
Paraná ressaltou a manutenção da língua como fator principal para diferenciação entre os diversos
grupos étnicos que viviam em regiões próprias. Segundo a autora, a manutenção da língua dos
ucranianos, não era para que não se integrassem no Brasil ou mesmo, seus descendentes não se
considerassem brasileiros não falando o português, mas para que se diferenciassem dos poloneses, por
exemplo. No caso dos alemães é interessante que de modo geral (senso comum), se nomeiam
“alemães” todos aqueles que falam o idioma, independentemente de serem suíços, austríacos etc.
34
até 1940, incluindo este número também imigrantes da Áustria, Rússia, Polônia,
Tcheco-Eslováquia e Suíça.
A imigração alemã, numericamente, foi muito menos significativa do que a
italiana, portuguesa, espanhola e japonesa. Também não apresentou período de maior
afluxo; caracterizou-se por entradas mais ou menos constantes20 no período de 1850 a
1919, com aumento brusco na década de 1920, relacionados à dificuldade do pós-guerra
na Alemanha (SEYFERTH, 1994).
Ainda que menor em relação a outros grupos étnicos, sua importância no
contexto imigratório brasileiro, contudo, tem a ver com a forma de participação no
povoamento dos três estados do Sul do país (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul) que ocorreu em zonas pioneiras e com a formação cultural de comunidades com
traços específicos. Segundo Huber (2007, p. 280) especificidades étnicas visíveis na
organização comunitária dos imigrantes que se dirigiam para centros urbanos chamou a
atenção dos nacionalistas brasileiros, gerando situações de conflito que perduraram até a
década de 1940. Os pontos mais críticos foram, entretanto, alcançados na época das
duas Guerras Mundiais. Na avaliação de documentos, Magalhães (1998) refere o desejo
da realização da utopia dos alemães por conquistar o “Novo Mundo” (p.24), onde havia
terras abundantes e trabalho para todos.
De acordo com Huber (2007) a colonização começou em 1818, com a colônia
Leopoldina– nome da imperatriz que estimulou a imigração alemã, na Bahia, seguido da
fundação de Nova Friburgo na região serrana do Rio de Janeiro em 1819, por imigrantes
suíços.
Em 1824, com a fundação da bem sucedida colônia de São Leopoldo no Rio
Grande do Sul, iniciou-se a imigração considerada oficial, seguida de
20
Em 1859 o Decreto de Heydt proibiu a imigração de cidadãos prussianos (depois estendida a outros
estados alemães) para o Brasil, efeito das denúncias sobre o regime de colonato em São Paulo
agravadas pela publicação do livro de Thomas Davatz em 1858- um relato sobre a revolta dos colonos da
fazenda de Ibiacaba, em São Paulo. (mais informações em DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no
Brasil: 1850. Ed. Itatiaia, São Paulo, 1980). A proibição foi revogada apenas para os três Estados do Sul,
apesar dos relatos publicados na Europa por imigrantes retornados, que apontavam dificuldades
enfrentadas por alemães no Brasil. (SEYFERTH, 1994)
35
diversas outras colônias no Rio Grande do Sul e também em Santa Catarina e
no Paraná, além de outras, mais esparsas, em Minas, São Paulo e Espírito
Santo. Em Santa Catarina são povoadas as principais bacias hidrográficas, os
conhecidos ''vales'' de imigrantes alemães, como o Vale do Itajaí, Vale do
Cachoeira e outros. (HUBER, 2007, p. 280)
A autora enfatiza a participação dos alemães no processo de colonização do
Brasil, já desde a fundação da primeira colônia na Bahia, em 1818. Com presença
significativa em cidades como São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, a maioria encontrouse engajada em projetos baseados na pequena propriedade familiar, nas zonas rurais da
região Sul. Davatz (1980) acrescenta que no Sul do Brasil, verdadeiros colonos foram
recebidos, ou seja, entravam imediatamente na posse da terra e passavam a viver como
proprietários rurais. Seyferth (2000a) coloca que, como um todo, o sistema de
colonização produziu um campesinato com características próprias, tendo como unidade
básica a pequena propriedade familiar no curso de um processo de povoamento que
correspondeu a sucessivas levas de imigrantes, no período que foi de 1824 até o início
da década de 1930, com progressiva diminuição do fluxo imigratório na década de
1930.
A colônia alemã indicava um estilo de vida distinto21, com culturas camponesas
diversas, costumes, hábitos e organização comunitária estruturada num contexto vivido
como pioneiro22, quando o contato com a sociedade nacional abrangente era restrito à
parcela da população envolvida na atividade comercial ou residente nos núcleos urbanos
(SEYFERTH, 2000b). Ainda neste contexto, cabe ressaltar a existência de grande
heterogeneidade cultural dentre os imigrantes alemães. Grande parte deles adentrou o
21
Magalhães (1998) ressalta que os imigrantes alemães, para além de bagagens e sonhos, trouxeram
consigo o desejo de recriar seu mundo, formas de sobrevivência e de manifestações culturais inspiradas
em suas memórias, somando-se às experiências de seu novo universo. Com relação a isto o estudo de
Cabreira (2002) sobre memórias da imigração síria e libanesa em São Paulo, retrata que o desejo de
recriação do próprio mundo é comum entre imigrantes, sendo claramente compreendido pelo
referencial geográfico ligado ao estudo das paisagens, explorado pela autora.
22
“A imagem que emerge nos discursos sobre o pioneirismo é a da conquista pelo trabalho: a colônia,
como espaço construído, onde a floresta vai sendo paulatinamente substituída pelas plantações,
comércio, escolas, cooperativas, associações, igrejas e, finalmente, pelas cidades e indústrias, no curso
de um processo histórico de colonização visualizado pela ótica do progresso.” (SEYFERTH, 2000a., p.
161)
36
Brasil muito antes da unificação política da Alemanha. Pertenciam de certa forma, a
países diferentes, considerando-se mutuamente como estrangeiros. Havia grande
diferença também entre os grupos de alemães protestantes e católicos, diferenças estas
que originaram reagrupamentos na autocolonização no Brasil (WILLEMS, 1980). No
entanto, Siriani (2003) salienta que “o convívio entre os alemães de diferentes
procedências regionais jamais fora impedimento para uma conduta cordial entre os
membros dos grupos23” (p.43). Estes apresentavam imbricadas redes de relações sociais,
tanto entre si como em relação à população nativa que os acolheu. As maiores
diferenças existentes de fato, eram os dialetos e crenças religiosas.
Segundo a mesma autora, o ponto de partida para a imigração oficial foi o
decreto de D. João VI, datado em 16 de março de 1820, declarando de maneira explícita
o interesse do governo em incentivar a entrada de cidadãos alemães e daqueles outros
países que considerassem oportuno se estabelecerem em território brasileiro. Contudo, o
que o decreto não explicitava era o porquê de tal posicionamento em relação aos
alemães. Siriani (2003) e autores como Seyferth (1982, 1994, 2000a) e Lorenz (2008)
apontam a possibilidade de ter sido esta, uma política imigratória voltada para o
branqueamento. Segundo estes autores, o imigrante europeu foi considerado o tipo
racial mais adequado para purificar a raça brasileira e também o tipo de mão de obra
adequada para solucionar o problema econômico vigente, sobretudo, após a abolição do
tráfico de escravos africanos. “Simultaneamente à abolição dos escravos, surgiram no
Brasil ideias raciais: alguns abolicionistas declararam-se explicitamente contrários a
imigração de trabalhadores não brancos, como os asiáticos” (LORENZ, 2007, p. 31).
Estes defenderam o recrutamento exclusivo24 de trabalhadores brancos para aumentar a
massa ariana no Brasil.
23
Acredita-se que as diferenças procedentes da diversidade regional e religiosa eram amenizadas em
território brasileiro em vista à sobrevivência. A troca e ajuda mútuas eram uma necessidade superior,
imagina-se, às divergências existentes.
24
Lorenz (2008) aborda um dado interessante: o Império Alemão estabeleceu-se como nação imperial
em 1884 e o Brasil, teve a República proclamada em 1889. Em ambos os países, questões ligadas à
identidade nacional foram discutidas e para o Brasil, a imigração foi inserida nos discursos em torno da
raça e da cultura.
37
Á respeito do ideal de branqueamento, Nabuco (apud Lorenz, 2008 p. 31)
coloca:
O Brasil deveria se tornar um país onde, atraída pela franqueza das nossas
instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração europeia traga sem
cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásio vivaz, enérgico e
sadio, que possamos absorver sem perigo.
Neste trecho, Lorenz exemplifica um pensamento vigente à época, defendido e
aclamado por muitos intelectuais; trata-se de que da “miscigenação branca” dependeria
a homogeneização da população brasileira, processo este que não deveria ser
prejudicado por outras “raças” (aspas nossas).
Ainda para ilustrar o espírito desta época, sugerem-se dizeres de Davatz (1980,
p.31):
Como o sal permite saborear alimentos naturalmente insípidos, assim
também a mistura bem proporcionada de sangue germânico é salutar a
qualquer povo (...).
De acordo com Seyferth (2000a., 2000b) os critérios de seleção de imigrantes
visavam europeus brancos que deveriam promover e dilatar a civilização do vasto Reino
do Brasil. Trazer colonos significava povoar o território, produzir alimentos e
desenvolver artes e ofícios, mais precisamente, segundo os discursos dos imigrantistas
da época, gente “afeita” ao trabalho (SEYFERTH, 2000b., aspas da autora). A ideia de
civilização com base no apoio à vinda destes imigrantes trazia consigo pressupostos de
exclusão, cujas distinções fenotípicas eram consideradas muito importantes.
(...) o Brasil precisava de trabalhadores brancos e sadios, agricultores
exemplares oriundos do meio rural europeu, com todas as “boas qualidades”
do camponês e do artífice, obedientes á lei, dóceis e morigerados, de moral
ilibada, etc. Por outro lado, ser europeu não bastava: os “piores elementos
colonizadores” segundo diretores de colônia, eram comunistas, condenados,
ex-soldados e a “escória das cidades” que os governos europeus “expeliam” e
que o Brasil devia mandar de volta. Refugiados, deficientes físicos, ciganos,
ativistas políticos, velhos, etc., também estavam arrolados, inclusive na
legislação, como “indesejáveis”. (SEYFERTH, 2000b, p.2)
38
De acordo com Oliveira25 (2008, p. 32) A discussão sobre os interesses envolvidos
na imigração/colonização assumiu grande importância na abordagem do processo de
integração dos imigrantes e seus descendentes no Estado, na economia e sociedade
brasileira. O autor cita Luiza Iotti (2001, p. 21), quanto ao reflexo da legislação imperial
brasileira, sobre “contradições existentes na sociedade brasileira em relação à política
imigratória a ser adotada pelo império.”
Ressalta-se que os imigrantes germânicos chegaram ao Brasil em meio a uma
política excludente, seja por parte do povo brasileiro que considerava os negros mão de
obra não qualificada e, portanto, não bem vinda, seja por parte da própria Alemanha,
que conferiu a seus cidadãos condições de vida dificultosas. A partida de indivíduos
indesejados para redução de gastos também foi estimulada, como deficientes,
criminosos, doentes etc. (KARASTOJANOV, 1999; SIRIANI, 2003)
Neste contexto cabe a reflexão acerca da situação em que se deu a imigração. A
ideologia excludente deve ser considerada, sobretudo, quanto ao processo de
assimilação à nova cultura. Consideram-se aqui os dizeres de Sayad (1998) no tocante a
imigração sofrer de uma dupla contradição - esta representa, portanto, um estado
provisório que se prolonga indefinidamente, ao mesmo tempo em que se torna um
estado definitivo e vivido com o sentimento de ser provisório. Como estas condições
excludentes, em suas variadas formas, viriam a ser vivenciadas por estes sujeitos?
Em 1824, iniciou-se o povoamento sistemático do Brasil meridional por imigrantes
germânicos e mais a frente, em 1859, emigraram, da Saxônia para o Brasil, algumas
centenas de famílias de artífices e operários (entres estes carpinteiros, serralheiros,
costureiras, etc.) em circunstâncias diferentes daqueles que adentraram o Brasil
anteriormente. A situação econômica destes emigrantes não era exatamente precária.
Eles não queriam trabalhar em fábricas e tal desejo, de evitar a proletarização que
acometia seu país, foi o que os induziu a emigrar. Dentre aqueles que podiam escolher
25
O historiador questiona ao longo de seu estudo, o real interesse na concessão de cidadania efetiva e
garantia de amplos direitos como cidadãos aos imigrantes que vieram a substituir a mão de obra
escrava. Tais questionamentos assumem, na visão do autor, função central em qualquer estudo que se
proponha analisar a cidadania dos imigrantes que se dirigiam ao Brasil ao longo do século XIX.
39
entre o trabalho rural ou industrial ou emigrar para onde as terras eram baratas e férteis,
a segunda opção fora a de muitos. A forma de administração dos territórios de sua terra
natal, também foi um fato importante, que levou a emigração coletiva. A Alemanha
estava sob um regime político que promovia altíssimos impostos que forçaram a
população ao êxodo. Muitas famílias fugiam, abandonando propriedades, evitando
assim autoridades fiscais e policiais. (WILLEMS, 1980)
No Brasil, os imigrantes foram alocados na periferia das grandes propriedades
escravistas, iniciando um processo de ocupação que, após a independência, seria
deslocado para o extremo sul, onde a colonização aparece como sinônimo de
povoamento. A imigração subsidiada pelo Brasil, com intensa propaganda nos países da
Europa, sobretudo Alemanha, devia atender ao princípio geopolítico de consolidação de
território, mais nitidamente delineado a partir da fundação da colônia de São Leopoldo,
no Rio Grande do Sul, em 1824, e de três outras colônias em Santa Catarina e no
Paraná, estabelecidas em 1829 em caminhos de cargueiros que ligavam o litoral ao
planalto e este à província de São Paulo (SEYFERTH, 2000a). A forma como foram
localizadas as colônias alemãs fomentou uma espécie de autossegregação dos colonos o
que culminou em pouca miscigenação junto à população local (LORENZ, 2008) muito
diferente do que fora almejado pelos defensores do projeto de branqueamento da
população brasileira. Isolados, os alemães e seus descendentes mantiveram a
preservação de sua individualidade “étnica e nacional” (LORENZ, 2008, p. 32) em um
movimento que até então não preocupava as autoridades brasileiras.
De acordo com Siriani (2003, p. 46) artigos contidos no decreto de 1820
possibilitaram a entrada de grandes contingentes populacionais durante todo o primeiro
Reinado e serviram de base para a fundação de várias colônias por todo o território.
Entre estas está a colônia Leopoldina, no Sul da Bahia, a Frankental, fundada na mesma
região, em 1822, por iniciativa de Georg Anton Von Schaeffer (principal agente de
imigração do período e amigo pessoal de D. Pedro I e D. Leopoldina), a Nova Friburgo,
no Rio de Janeiro, a São Leopoldo, no sul do país e, na Província de São Paulo, os
núcleos de Santo Amaro e Itapecerica. O mesmo decreto estabelecia ainda os direitos à
cidadania e liberdade de culto, porém não cumprido pelo governo do Império, “pelo fato
de a Igreja Católica estar vinculada ao Estado durante todo o primeiro Reinado,
40
causando grandes problemas aos imigrantes de origem protestante, deixados, muitas
vezes, à própria sorte” (p.46).
Uma melhora ocorreu a partir 1832, já no período regencial, com a lei que
estabelecia que os imigrantes no Brasil, há mais de quatro anos, poderiam naturalizar-se
e garantir o direito à cidadania. Contudo, ainda que tais questões fossem discutidas por
deputados e demais autoridades, suas consequências quase arrasaram a vários núcleos
coloniais. Os recursos financeiros26 destinados aos colonos e à introdução de novos
estrangeiros foram suspensos. Nesta condição, os imigrantes alemães viram-se sem
chances de sobreviver, corroborando com maior desconfiança quanto ao Estado
Brasileiro. Desta forma, a solidariedade étnica se tornou estratégia de sobrevivência e
também um meio para prosperar. (SIRIANI, 2003)
A partir de 1870, outros grupos de trabalhadores se deslocam para o Brasil,
segundo Magalhães (1998) trouxeram consigo uma experiência de nação; tornaram-se
cidadãos do Reich - uma Alemanha unificada que incutiu sentimentos de pertença
naqueles que emigraram, perpetuando tais sentimentos em um público cada vez mais
fiel, no novo país de moradia, seja por meio das escolas primárias, como também por
meio da literatura. Nesta época, o número de imigrantes foi mais expressivo do que em
tempos anteriores, sobretudo devido ao sucesso da propaganda imigrantista do Brasil.
Barreiras interétnicas e o Deutschtum
Quanto à localização das colônias alemãs, esta revela interesses mais diretos da
política de colonização dos imigrantes, como já mencionado, que era povoar terras
desabitadas, consideradas mais apropriadas à instalação de colonos estrangeiros livres e
26
Fernandes (2011) em referência a imigração alemã para a cidade de São Paulo, relata que as
promessas feitas pelas propagandas imigrantistas eram descabidas frente à realidade das condições
econômicas e estruturais da cidade. Com a vinda de números significativos de imigrantes, o orçamento
público ficou sobrecarregado, uma vez que era necessário garantir subsídios diários para os imigrantes
alemães, assim como arcar com os salários do funcionalismo público; tais salários deixaram, entretanto,
de ser pagos, para que o governo pudesse honrar com os subsídios prometidos. Neste ínterim, os
alemães tornaram-se vítimas de desafetos diversos; jornais publicavam artigos críticos relacionados a
esta população, acusada ainda pelos cidadãos paulistanos como responsáveis pelos problemas
econômicos da cidade.
41
europeus (ou seja, brancos) num processo controlado pelo Estado. Nestas terras, os
imigrantes ficaram isolados27 em zonas pioneiras não ocupadas pela grande propriedade
o que propiciou a formação de laços de ajuda entre os mesmos, devido à falta de
infraestrutura oferecida pelo Estado, tais como fundação de escolas, espaços de
convivência, estradas, pontes etc. (SEYFERTH, 2000a, HUBER, 2007)
Conforme Huber (2007) após 1850, o governo imperial passou a
responsabilidade da colonização às províncias e vieram a vigorar as companhias
particulares de colonização. A continuidade da ação dos agenciadores durante o Império
e a propaganda oficial das empresas particulares de colonização na Alemanha, atraíram
camponeses, sobretudo, mas também trabalhadores urbanos e artífices, em busca de
melhores condições de vida: ser ''proprietário'' (p.281, aspas da autora). São atraídos
ainda professores, artesãos, operários, refugiados políticos e pessoas com recursos
financeiros para dedicar-se a atividades comerciais e industriais. Ainda que as colônias
tivessem planejamento cuidadoso, em sua maioria não havia demarcação prévia de
linhas e lotes. Tal trabalho foi realizado pelos imigrantes-colonos na abertura de
picadas28 ou linhas, na construção de pontes e pontilhões, estradas, edificação de
alojamentos públicos e outras obras. Havia com isto o auxílio ao pagamento das dívidas
para com as companhias.
27
Giralda Seyferth (1982) entende o sentimento de pertencimento identitário dos imigrantes alemães
como consequência do sistema de colonização do Brasil. Uma vez que estavam isolados, fortaleceramse nas relações de colaboração junto aos seus semelhantes a partir do que trouxeram (e conheciam) de
sua cultura comum. Isto pode explicar a manutenção da língua e perpetuação da cultura entre os
descendentes provindos de comunidades mais isoladas. Cabe ressaltar que isto não é exclusivo deste
grupo de imigrantes, mas tendência existente também em outros grupos pertencentes a outras
correntes migratórias.
28
Picadas ou linhas se constituíram como unidades sociais básicas do sistema, de cujo traçado
(correspondente a uma via de comunicação) eram demarcados os lotes. Por exigência legal o colono
devia residir na sua propriedade, fato que impediu a formação de povoados ou aldeias semelhantes às
europeias, o que levou os geógrafos a definir essa forma de ocupação como “rural dispersa” (ROCHE,
1969; WAIBEL, 1958 apud SEYFERTH, 2000). Houve uma tendência a reunir na mesma linha, ou em
linhas contíguas, imigrantes de mesma nacionalidade e em alguns casos, até da mesma procedência
regional. (mais informações em SEYFERTH, G. As identidades dos imigrantes e o melting pot nacional,
2000, p. 147).
42
Nos relatos e histórias de vida dos imigrantes, na documentação oficial e
também nas narrativas da literatura teuto-brasileira, ao longo do processo de
colonização, são descritos conflitos de terra, o cansaço para derrubar a mata e
cultivar os lotes sem usar os métodos tradicionais europeus. Problemas como
o povoamento disperso, a precariedade das estradas e o transporte, das
doenças e enchentes, o endividamento e a dependência em relação aos
comerciantes estabelecidos, entre outros. As dificuldades enfrentadas, ao
longo do período de ocupação territorial ajudam a elaborar a figura do
''pioneiro'' – como desbravador da floresta e o fundador das colônias alemãs –
algo que aparece com frequência na literatura teuto-brasileira. (HUBER,
2007, p. 281)
Um exemplo que ilustra o isolamento das colônias é tema do estudo de Úrsula
Albersheim (1962) denominado “Uma Comunidade Teuto-Brasileira”. Neste, a autora
analisa a relação entre os problemas causados pelo isolamento da população de alemães
do Vale do Itajaí no sul do Brasil, em região denominada Jarim. Nesta, o isolamento da
população foi equiparado a uma ilha nacional possibilitando que se observassem
modificações sofridas pela cultura dos imigrantes, à maneira como se adaptaram ao
novo meio, aos elementos da cultura local e também, inversamente, características
especiais que emprestaram à região que ocuparam tal qual hábitos da população,
processo este nomeado pela autora como “variante teuto-brasileira da cultura nacional”
(p.176) - sobre as relações sociais dos diferentes grupos postos em contato (brasileiros,
teuto-brasileiros e luso-brasileiros) maneira como se adaptaram reciprocamente e as
consequências que este tipo de contato trouxe à cultura de ambos em um processo
mútuo.
Algo que retrata o isolamento mencionado pode ligar-se ao fato de a população
de Jarim nunca ter tomado conhecimento de fato, dos acontecimentos mundiais e de
suas proporções. “Mantiveram a visão idealizada da Alemanha retratada pela memória
de pais e avós, em detrimento do Brasil, como um lugar de poucos recursos”.
(ALBERSHEIM, 1962, p.182)
O desenvolvimento posterior à fase pioneira dos colonos, bem como a migração
para centros urbanos maiores, como a cidade de São Paulo29, além da emancipação de
29
Davatz (1980) defende que a imigração dos alemães a São Paulo ocorreu de modo diverso do que fora
em outros Estados do Brasil. Em São Paulo, por exemplo, foi a repressão do tráfico de escravos negros e
o encarecimento destes que a estimulou. Contudo, há relatos discutidos por este mesmo autor sobre
alemães que nesta cidade se sentiam tratados como “escravos brancos” (aspas nossas).
43
algumas colônias ainda no período imperial, promoveram diferenças culturais
significativas,
aumentando
os
discursos
sobre
assimilação
dos
estrangeiros,
preocupando nacionalistas com a possível formação de minorias ou quistos nacionais30
(SEYFERTH, 2000b.). Cabe ressaltar que a maior notoriedade da imigração alemã,
deve-se a concentração espacial em áreas coloniais e urbanas (bairros etnicamente
configurados) e suas especificidades culturais- incluindo o uso da língua, evidenciandose um discurso étnico fundamentado na noção de germanidade ou germanismo –
Deutschtum (germanidade)31 veiculado nas instituições comunitárias (escolas,
associações, igrejas), na imprensa e também na literatura publicada em língua alemã. O
surgimento de uma etnicidade teuto-brasileira32 deu-se junto à emancipação das
colônias (transformadas em município) configurando-se uma classe média urbana e
rural que exercia sua cidadania e também proposições políticas (SEYFERTH, 2000c).
É possível propor um exemplo do “exercício” do Deutschtum, no fragmento que
segue, trazido por uma das interlocutoras desta pesquisa:
“O jornal que corria em casa, a Colônia tem dois jornais, um é o Deutsche
Zeitung e outro, um era para os alemães que vieram depois da Segunda
Guerra ou no intervalo entre guerras e o outro é dirigido para uma Colônia
mais antiga, que ainda fala alemão, mas com uns pedaços de português no
meio, sabe? Esse jornal corre muito pelos lados de Blumenau, Rio Grande
do Sul, áreas de colônias de alemães mesmo né, mas ele é editado aqui em
São Paulo. E na minha casa sempre tinham os dois jornais, na casa da
minha vó também, minha vó lia sempre, eu ia no jornaleiro em Santo Amaro,
30
Em seu ensaio, Arjun Appadurai (2009) propõe reflexões sobre a violência em larga escala de nossa
época relacionando esta, sobretudo, à aspectos culturais. Discute a posição das minorias considerando
estas como muito vulneráveis- sujeitos vítimas do processo de expiação de medos e outras projeções
em caráter conhecido popularmente como “bode espiatório”. A busca da identidade nacional que se
perde meio à fluidez promovida por mudanças de ordem política, exacerbaria este processo e
“encontrar um culpado.” Pode por vezes, promover um tipo de “certeza identitária” resultando na
unificação e propagação de um Etnhos nacional.
31
Deutschtum demarca a etnicidade a partir de crença na origem racial comum, engloba a língua, cultura
e determina a solidariedade do povo alemão. (SEYFERTH, 2000c)
32
A categoria de identificação “teuto-brasileiro” afirma uma condição de pertencimento à nação alemã
e à cidadania brasileira como coisas compatíveis. Os imigrantes pensavam o Brasil como um Estado
etnicamente plural e não como uma Nação (SEYFETH, 2000c, p.3). Em nossa estadia na Alemanha fomos
identificados pelas pessoas como teuto-brasileiros- Deutschbrasilianer o que demonstra ser este termo
comumente usado em referência à descendentes alemães nascidos no Brasil.
44
lá sempre tinha, ele era semanal. Eu ia pro colégio e minha avó falava: traga o jornal.”(S.)
O Deutschtum foi assunto de grande destaque de editoriais e artigos de jornais e
almanaques. Tais publicações visavam à manutenção da língua, dos costumes, das
instituições étnicas dos alemães. Tais publicações configuram não só o entendimento da
natureza da ideologia étnica, mas também as preocupações brasileiras com o perigo
alemão existentes na época - “pois nelas se enfatizava o direito à especificidade como
grupo nacional, muitas vezes sob o argumento da superioridade germânica.”
(SEYFERTH, 1994, p. 6)
Seyferth sugere alguns conceitos importantes para a definição do Deutschtum:
(...) a nova pátria é a colônia, a nova cidadania é brasileira, mas a etnia continua sendo alemã; o
ato de emigrar significou o rompimento com o país de origem, mas não com o Volk (povo)
alemão. O pertencimento sugerido por tal categoria remete, por um lado, a uma entidade supra
territorial - a nação alemã, concebida como entidade cultural e linguística que une um povo de
mesma origem e, por outro lado, à cidadania e a um território considerado como Heimat (casa)
ou Vaterland (terra paterna) - no caso, o Estado brasileiro. (...) a ligação com a Alemanha,
portanto, baseia-se se na comunidade de sangue e língua, naturalizada através de um modo de
vida alemão preservado nas colônias, numa reapropriação da ideologia nacionalista anterior a
unificação alemã, que podia falar de uma Nação sem Estado. De certa forma isso explica porque
a endogamia e até mesmo a nova sociedade, imaginada como produto da capacidade herdada de
trabalho, portanto associada à raça, são concebidos como fronteira étnica a preservar. O modelo
étnico de nação tem seus mitos de descendência e eles são necessários à mobilização interna.
Nesse caso, o mito da união espiritual e cultural de todos os alemães e seu passado original,
serve de base a formulação do Deutschtum, que também incorpora um outro mito, o da
capacidade inata de trabalho que produziu uma sociedade civilizada em plena selva.
(SEYFERTH, 1994, p. 6, tradução nossa)
Seyferth expõe o conceito Pátria, implícito na categorização étnica e no próprio
Deutschtum. Se por um lado a etnicidade supõe o pertencimento à nação alemã pelo
direito de sangue, por outro, a ideia de se ter no Brasil uma pátria, proporciona a
condição de brasileiros. Pátria tem dois significados distintos, que se completam, um
deles remetido à colônia enquanto comunidade étnica, o outro ao Estado enquanto
entidade política e territorial. No primeiro caso, prevalece o conceito de Heimat (termo
derivado da palavra Heim = lar) que remete ao processo histórico de colonização- pois a
pátria é a colônia germanicamente construída. No segundo caso, prevalece o conceito de
Vaterland, remetido à cidadania e associado ao trabalho.
Essa duplicidade da noção de pátria inclui os dois princípios que regem a
identidade étnica: uma pequena pátria alemã no Brasil construída com
45
esforço coletivo dos colonos pioneiros e a pátria brasileira, que remete a
cidadania referenciada pelo direito de solo. (SEYFERTH, 1994, p. 7)
Magalhães (1998) acrescenta ainda, que o Deutschtum, enquanto sentimento de
pertença “denota uma noção orgânica de comunidade, em que imagens da família, do
corpo, do sangue, não são utilizados como uma metáfora, mas constituem essência
mesma de suas premissas” (p.109). Por exemplo, a língua materna, teria para o
indivíduo o mesmo significado que uma mãe para seu filho.
Neste outro exemplo, também tratado por um de nossos interlocutores,
percebem-se algumas proporções o Deutschtum pode alcançar, influenciando o projeto
de vida.
“(...) ser descendente de alemã me afeta 100%. Muitas das minhas
características de personalidade vêm, com certeza, disso. Seja genético ou
comportamental... Muitas pessoas acham que sou efetivamente estrangeira e
que vim parar no Brasil em algum momento da vida por causa de coisinhas
simples, que para mim, minha mãe, minha tia e qualquer alemão considera
básico: pensar nas suas ações e se elas poderiam incomodar ou prejudicar o
próximo. Exemplo besta: procurar um local adequado para atravessar a rua.
Com certeza influenciou no meu projeto de vida, pois nunca me senti lá
muito brasileira e isso fez com que eu buscasse alternativas de locais onde
eu talvez me sentisse mais em paz. Antes de pensar em algo radical, como
voar pelo Atlântico, pensei muito em mudar para o interior, ou para o Sul,
ou para o interior do Sul.” (P.)
O escritor Hans Tolten (apud MAGALHÃES, 1998, p. 110) retrata uma
experiência na família para falar de seus sentimentos perante à pátria que não conheceu:
A saudade que minha mãe tinha da pátria era tão grande e tão vivamente
narrada que ela fazia com que eu me sentisse em minha fantasia muito mais
na terra distante do que no mundo de hoje, em que estou eu. (TOLTEN,
1934, p.12 )
A partir das definições do Deutschtum e de como os alemães lidavam com esta
forma de pertencimento étnico, é possível contextualizar o que se deu durante o governo
de Getúlio Vargas, na criação do Estado Novo. De acordo com Seyferth (2002) a maior
crise33 nas relações com os brasileiros se iniciou em 1939, durante a campanha de
33
A imigração pode ter sido a principal impulsionadora da campanha de nacionalização. Para mais
detalhes acerca deste tema ver SEYFERTH, G. Os imigrantes e a Política de Nacionalização do Estado
Novo. in: PANDOLFI, D. (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. p. 257-288.
46
nacionalização forçada imposta pelo Estado Novo. Decorreu um projeto de assimilação
que visava todos os imigrantes e descendentes estabelecidos no país, contudo, foi
especialmente rigoroso com alemães e japoneses. Durante toda a campanha repressiva
das manifestações étnicas, os descendentes de imigrantes (brasileiros por nascimento)
foram classificados como alienígenas, estrangeiros que deveriam ser abrasileirados,
misturados a sociedade nacional.
A questão do reconhecimento e da assimilação de estrangeiros e seus
descendentes no Brasil durante este período gerou marcas. Jornais34 da época trataram
estas pessoas de forma particular e estigmatizada promovendo conflitos35, revoltas e
retaliações. Questões importantes quanto à posição destes sujeitos frente sua relação
com o Brasil são pertinentes: de imigrantes, ora convidados a adentrar e permanecer no
país, foram de alguma forma “enganados”, levando-se em conta as condições objetivas
encontradas. Pressionados a mudar hábitos e manifestações culturais, iniciar-se-ia uma
segunda etapa de adaptação36, etapa esta por certo não esperada, sobretudo por aqueles
já há anos no Brasil. Paradoxalmente, a tese do branqueamento da população
vislumbrava europeus como imigrantes ideais à formação da nova racialidade, estes, no
34
Não somente os jornais da época, os livros didáticos também compunham este momento político que
o Brasil atravessava. Conforme Cabreira (1996, p. 50), os livros didáticos produzidos neste período
refletiam em seu conteúdo o ideário político de cunho nacionalista e patriótico propagado pelo
governo. A Geografia deveria contribuir para o desenvolvimento cívico e patriótico das crianças, que
aprendiam que os imigrantes, assim como comunistas e anarquistas, eram elementos nocivos à
sociedade e que este contingente populacional era considerado fator de problemas sociais, gerador de
crimes entre outros.
35
Para maiores informações acerca da expressão da mídia em relação aos imigrantes e seus
descendentes durante o Estado Novo consultar FERNANDES, L. N. P. “Perigo alemão ou germanofobia?”
Os alemães em São Paulo entre 1889 e 1918. Mestrado em História Social, Departamento de História
Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
36
“O antigermanismo e a guerra causaram um movimento que de certa forma dividiu os imigrantes
alemães. Uma boa parcela alinhou-se aos interesses brasileiros voluntaria ou involuntariamente e outra,
apenas deixou de manifestar em público seus interesses pela Alemanha. Aqueles que se mantiveram
comprometidos com a germanidade, exacerbaram ainda mais suas posições, criticando ainda mais a
sociedade de modo geral, esta concebida ainda, como receptora. Comportavam-se como minoria étnica
e se auto nomeavam uma nação oprimida, reagindo de forma semelhante as minorias do império
austro-húngaro, por exemplo. Este comportamento pode ser considerado uma reedição das
experiências sofridas na Europa.” (MAGALHÃES, 1998, p. 99-100)
47
entanto, deveriam integrar-se ao abrasileiramento cultural, o que significou uma forma
de
sentenciarem37-se
etnicidades
produzidas
pelos
processos
imigratórios.
(SEYFERTH, 2000)
São Paulo: uma cidade em desenvolvimento- a relação com Santo Amaro
Viaduto do Chá (São Paulo) com a estrutura metálica importada da Alemanha. Acervo do Instituto Martius-Staden
A imigração alemã para São Paulo teve início em 1827. Segundo dados da
historiadora Siriani (2003, p. 57) esta se deu após aviso expedido pelo governo imperial
ao presidente da Província, o qual informava sobre o envio de um grupo de imigrantes
alemães que deveria ser estabelecido pelas autoridades locais, onde melhor lhes
conviesse. Tal notificação foi motivo de grande surpresa (ainda que, segundo a autora,
já houvesse um aviso anterior). Após quarenta dias desta notificação, atracaria no porto
de Santos o primeiro e numeroso grupo de alemães. Estes, não passaram por uma prévia
seleção o que Siriani (2003) coloca ter sido um grande problema posteriormente.
37
Acrescentamos, contudo, uma questão valorizada e ressaltada em alusão ao Brasil: sua multiplicidade
étnica e a tolerância para com as diversas culturas e credos em seu vasto território.
48
Dados do instituto Martius Staden38 revelam que os primeiros alemães que
chegaram a São Paulo não eram, em sua maioria, afeitos ao trabalho agrícola, mas sim
artesãos e ou profissionais de áreas técnicas, motivo que levou à grande dificuldade na
adaptação ao trabalho nas fazendas de café.
Um retrato dos momentos iniciais dos imigrantes alemães em São Paulo e do
despreparo da Província é descrito por Siriani (2003);
Despreparado, o governo provincial não sabia como agir. O que fazer com
estes indivíduos? Sem um núcleo colonial formado e nem sequer planejado,
os alemães foram enviados temporariamente ao Hospital Militar de São
Paulo. Ali instalados, deu-se início a uma verdadeira via sacra, que durou
aproximadamente dois anos, até que obtivessem os prometidos lotes de terra.
Eram duzentos e vinte e seis indivíduos, aos quais foram se juntando outros
grupos menores, que ao cabo de dois anos já representavam quase mil almas.
(p. 58)
Siriani acrescenta que, também devido ao despreparo para o recebimento dos
alemães em São Paulo, estes foram mal recebidos pela população. Sua presença
representou prejuízo aos cofres públicos. Para tanto, a autora menciona nota publicada
em jornal de grande circulação na época, que ilustra a situação:
Não havemos de chorar amargamente a quantia de 400.000$000 de réis para
mais que mensalmente sai dos cofres nacionais da província, para sustentar
os colonos? (...) não nos havemos de lembrar sem dor que esse dinheiro é
sangue dos nossos concidadãos e que estes, por estas e outras ficarem
reduzidos à mendicidade hão de mandá-los à taboa, ao mesmo passo que se
importa gente estranha (...) facinorosa, com inauditos sacrifícios, para
colonizar um país que não precisa, senão que o deixem prosperar... (nota do
jornal Farol Paulistano de 12 de julho de 1828 apud SIRIANI, 2003, p. 59)
A autora comenta este fato (entre outros com o mesmo caráter) enquanto
desagrado que passou rapidamente à xenofobia. As autoridades responsáveis pelo
assentamento dos imigrantes alemães demoraram até chegar ao consenso de que seu
destino seriam as terras devolutas do sertão de Santo Amaro. Os imigrantes, durante
dois anos, ainda não estavam assentados e enquanto “sobrecarregaram os cofres
38
Instituto Martius Staden- vídeo informativo sobre a imigração alemã em São Paulo:
<http://www.martiusstaden.org.br/ >( acesso em 06.09.2013)
49
públicos” (idem,ibidem) tinham também seu descontentamento aumentado pelo
crescente sentimento de não pertencerem a lugar algum, aliado à impotência e ao fato de
não serem bem quistos na cidade. “A cidade de São Paulo nos primeiros anos do
império era um local de parcos recursos, acanhado e pouco habitado. Dessa forma deve
ter sido para seus habitantes um choque a chegada de tantos estrangeiros39, de uma só
vez...” (idem, ibidem).
Após a esperada definição do local de assentamento, houve grande decepção
frente à realidade apresentada, sobretudo quanto às dificuldades locais. De acordo com
Siriani (2003), a diferença das condições de vida, comparadas à vida na terra natal eram
gigantescas; muito bem representadas pelo quadro que se pode visualizar, no trecho que
segue:
(...) estavam habituados à paisagem idílica de suas florestas, encobertas por
uma aura de contos de fada, onde imensas clareiras alternavam com a
sombria atmosfera proporcionada pelos olmos, carvalhos e pinheiros e
cascatas jorravam a água gélida, pura e cristalina que, em suas torrentes,
alimentavam grandes rios como o Reno, Mosel, Oder entre outros (...). Toda
essa doce memória ressurgiu nos espíritos dos colonos ao se depararem com
a cerrada e exuberante Mata Atlântica. Ali, no sertão de Santo Amaro,
centenas de espécies de árvores emaranhavam-se através de seus cipós,
tecendo uma vegetação compacta e de difícil transposição. Ambiente belo e
assustador, abrigo das mais coloridas e variadas bromélias e morada de
vistosos pássaros, mas também de animais ferozes como as suçuaranas e
onças pintadas, que causavam calafrios nos estrangeiros com o seu rugido
trovejante que, vez ou outra, ecoava no interior da mata. O descontentamento
foi, portanto, uma reação natural frente ao choque de perspectivas que
enfrentavam. (SIRIANI, 2003, p. 60)
Com o intuito de que esta realidade seja ainda descrita com maior clareza e
realismo, apresentam-se falas de uma representante40 ainda viva, parte da história da
colonização do Brasil.
39
Muitos imigrantes, devido à demora da resolução de sua situação, ficaram sem trabalho, vagando
pelas ruas de São Paulo, gerando ainda maior descontentamento da população para com os
considerados “intrusos”. (SIRIANI, 2003, p.59)
40
Otillie, 93 anos de idade. Primeira de seis filhos de imigrantes alemães, cujo relato está no programa
da peça de teatro “Brasilien 13 caixas” apresentado em julho de 2013 no Sesc Pompéia em São Paulo.
Esta peça é parte do projeto da diretora de teatro Karin Beier, que busca retratar a identidade de
descendentes alemães no Brasil. Esta produção, é resultado de longa pesquisa realizada pela autora e
assistentes, nas principais zonas de colonização alemã no Brasil (englobam-se aqui São Paulo, Paraná,
50
(...) então pegamos a urutu, a cobra, com uma foice grande, que tínhamos
levado para cortar as folhas da árvore e a carregamos para casa. Eu carreguei
o animal para casa (...). Eu não quero me elogiar, mas para mim tudo é
simples. E o que eu quero e o que eu preciso e o que deve ser isso eu sei. Não
me falta nada, sim, porque sou assim. E o que deve ser, deve ser e é assim
mesmo. Na floresta sim, uma pessoa tem que provar que é uma pessoa
inteira. (fonte: programa peça de teatro Brasilien 13 caixas, 2013)
Após os sorteios que definiriam quais lotes pertenceriam a quais famílias, estas,
jamais receberam os títulos de posse dos mesmos. Assim, sem a existência de contrato
formal de vinculação a estes núcleos, os alemães não se sentiram presos ao local e sem
segurança, muitos se dirigiram à vila de São Paulo, arrumando ocupação e trabalho nas
regiões centrais (SIRIANI, 2003, p. 62-63). Ainda que pelos registros oficiais não se
possa saber com exatidão o número de famílias que seguiu para a vila de São Paulo,
consta que, no ano de 1860, a população alemã da região de Santo Amaro girava em
torno de 500 indivíduos. (idem, p. 68)
Santo Amaro não tardou a tornar-se autossuficiente, possuindo dinamicidade de
vida própria.
Produtora e consumidora de gêneros possuía um comércio local de relativa
movimentação, principalmente por estar na rota de muitos viajantes que
vinham do litoral sul em direção à capital, cuja entrada principal era pela
Estrada do Vergueiro, a mesma que levava ao sertão. Em sua paróquia,
reuniam-se os sitiantes da região para as comemorações religiosas (...). Esses
sitiantes se confraternizavam em torno do estandarte armado no centro do
Largo do Jogo da Bola, espinha dorsal do aglomerado de casas, e pequenas
armações de secos e molhados. (SIRIANI, 2003, p. 71)
A região passou a contribuir diretamente para o abastecimento da cidade de São
Paulo (gêneros da terra, madeira e pedra de cantaria) e de vilarejo rudimentar. Fez desta
forma, parte do quadro de sobrevivência da capital sobretudo após a chegada dos
Santa Catarina e Rio Grande do Sul) entrevistando descendentes de alemães e, à partir destes relatos,
foi concebida a peça. Primeiramente apresentada em São Paulo, seguirá em turnê pela Alemanha, no
primeiro semestre de 2014. Esta peça foi também contemplada como parte das atividades ligadas ao
ano Brasil-Alemanha 2013-2014.
51
imigrantes alemães (SIRIANI, 2003, p. 71). Pode-se dizer que o crescimento de Santo
Amaro acompanhou o crescimento41 urbano da capital paulista.
Vistas do Largo 13 de Maio, 1920.
l
42
(Fonte das imagens )
Siriani (2003) convida os leitores de sua obra a refletirem sobre os caminhos (e
descaminhos) trilhados pelos imigrantes alemães em seu estabelecimento em Santo
Amaro. Coloca claramente sua importância da emancipação da região, enfrentando o
“isolamento, a pobreza e rusticidade dos sítios, a perda da identidade cultural com um
crescente processo de acaboclamento43, além das dificuldades de cultivar um solo
acidentado como o da região (...).” (idem, p.80)
41
“ ‘O caráter agrícola da região, que fazia parte de uma espécie de cinturão de abastecimento’ da
capital(...). Os alemães introduziram inovações como, por exemplo, a cultura da batata, na qual foram
pioneiros, abastecendo os mercados da capital e a produção de laticínios, como o queijo e a manteiga,
que não faziam parte da mesa do paulistano e, por isso, tiveram grande aceitação. Sendo assim, Santo
Amaro passou a dinamizar-se, contribuindo cada vez mais para o abastecimento dos mercados da
capital e de seus arredores.” (SIRIANI, 2003, p. 72-73, aspas da autora)
A autora ressalta ainda que “o elemento alemão no campo das atividades agrícolas não se fez sentir
apenas nas áreas do núcleo de Santo Amaro e Itapecerica, mas também na própria capital, em
freguesias como Brás, Tatuapé e Penha, onde o predomínio de Chácaras- com pequenos roçadoscolaborava diretamente para o abastecimento dos mercados locais e, também, para a heterogeneidade
do trabalho alemão em São Paulo (...)” (idem, p. 77)
42
Fotos
deste
site
são
de
domínio
público.<http://santoamarocity.blogspot.com.br/2010_01_01_archive.html> acesso em 10.09.2013
43
Siriani (2003) explica a origem do caboclo partindo do verbo “acaboclar” cujo significado implica o
“tornar-se rústico” ou “acaipirar-se” (p.82, aspas da autora). Cita também o termo acaboclado cujo
52
Ainda que, em meio às supracitadas adversidades, os alemães contribuíram para
transformar o sertão de Santo Amaro em uma importante zona de abastecimento da
capital, cuja produção de alimentos era parte significativa das necessidades da cidade.
Também aqueles que abandonaram o núcleo colonial, dirigindo-se às vilas de São
Paulo, puderam enfim exercer seus ofícios, como os de pedreiro, ferreiro, carpinteiro,
padeiro, tipógrafo, taberneiros (entre outros em uma gama gigantesca) contribuindo com
técnicas até então desconhecidas para o desenvolvimento do que viria a se tornar
importante metrópole da América do Sul. (SIRIANI, 2003)
De acordo com a autora, a questão envolvendo os caboclos da região, foi tema
de grande interesse jornalístico por décadas. O “acaboclamento” (idem, p.81) decorreu
de um lento processo que envolveu “os percalços dos primeiros anos de colonização até
a integração do elemento alemão.” (idem, ibid)
Os fatores contribuintes do que se considerou como “acaboclamento” de parte da
população de imigrantes das regiões do sertão de Santo Amaro, decorreu do isolamento
e da dificuldade de comunicação com a vila de São Paulo, representadas pelas
condições das estradas de ligação, falta de escolas e profissionais capacitados para
alfabetizar a população local, necessidade do trabalho infantil nas lavouras familiares e
as más condições econômicas locais, entre outros. (SIRIANI, 2003)
A autora menciona Willems (1980) que apresenta o acaboclamento como “um
dos aspectos da assimilação do imigrante alemão na sociedade de acolhida através de
seus contatos primários, ou seja, através do meio local em que viviam e dos valores
locais que lhes eram apresentados” (WILLEMS, 1980, p.82). Logo, o contato com os
caboclos da região é aqui interpretado como importante fator na reprodução de um
modo de vida simples e rústico.
Cabe destacar um interessante dado tratado por Siriani (2003), referente à
existência de aldeamentos indígenas na região, algo que contribuiu para “uma salada de
significado: “que tem o aspecto do caboclo. Próprio de caboclo, ou semelhante a este, nos modos ou no
comportamento rústico, caipira.” (FERREIRA, 1999, p. 20 apud SIRIANI, 2003, p. 82, grifo nosso)
53
cabelos pretos com olhos azuis e cor morena, com olhos pretos, cabelos louros e pele
branca.” ( p.83)
Willems (1980) ressalta o surgimento do processo de acaboclamento como
decorrente das difíceis condições climáticas, naturais e também das adversidades
religiosas44 existentes entre os grupos alemães que ali habitavam. Os imigrantes viam,
na aproximação com o caboclo, uma relação de apoio para sobreviver em tais
condições, fomentando assim, uma relação nomeada por Willems (1980) como
simbiótica. “(...) o caboclo nativo45 derrubaria as matas e prepararia as roças a sua
maneira para que os alemães pudessem cultivar.” (WILLEMS, 1980, p. 82)
No trecho que segue, Zenha (1950) traz um exemplo que pode explicitar a
simbiose tratada por Willems (1980), no parágrafo anterior.
(...) colocados junto a uma sociedade primária, muito depressa adquiriramlhe as poucas formulas de comportamento, alijando também depressa grande
parte do acervo cultural que traziam. Os hábitos nativos, bons e maus, foram
sendo incorporados sem nenhuma relutância. Alguns teuto-brasileiros
praticavam até a limagem dos dentes, fazendo-os pontudos, à moda de certos
caboclos da região. Dentes de “traíra” diziam. (ZENHA, 1950, p. 55 apud
SIRIANI, 2003, p. 88 aspas do autor)
Os dizeres de Holanda (1979) iluminam o entendimento desta problemática, em
se pensando as proporções alcançadas pelo acaboclamento do imigrante alemão em
Santo Amaro;
Para análise histórica das influências que podem transformar os modos de
vida de uma sociedade, é preciso nunca perder de vista a presença, no interior
44
Siriani (2003) menciona que os grupos de alemães protestantes não apoiavam os grupos de alemães
não protestantes, que, pela falta de pastores de sua religião e também pela ausência de cemitérios para
enterrarem seus mortos, batizavam-se na igreja católica.
45
No contato com as entrevistas realizadas com descendentes alemães para produção do citado projeto
da peça de teatro “Brasilien 13 caixas” o termo “caboclas” foi usado com frequência para nomear
àqueles não pertencentes às colônias alemãs, mas especificamente, os considerados brasileiros “puros”,
possuidores de características como a pele mais escura. Percebeu-se que este termo foi usado por
descendentes alemães do Sul do Brasil (mais especificamente de cidades de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul conforme as entrevistas que tivemos acesso) diferentemente dos entrevistados de São Paulo. Tal
termo (caboclo) foi mencionado por nossa entrevistada nascida e criada em Santo Amaro, contudo, esta
os nomeou como caipiras- alemães caipiras- como exemplo ao que era considerado o caboclo.
54
do corpo social, de fatores que ajudam a admitir ou a rejeitar a intrusão de
hábitos, condutas, técnicas e instituições estranhos à sua herança de cultura.
Longe de representarem aglomerados inânimes e aluviais, sem defesa contra
sugestões ou imposições externas, as sociedades, inclusive e sobretudo povos
naturais, dispõem normalmente de forças seletivas que agem em benefício de
sua unidade orgânica, preservando-se de tudo quanto possa transformar essa
unidade. Ou modificando as novas aquisições até ao ponto em que se
integrem na estrutura tradicional. (HOLANDA, 1949, p. 176-290 apud
SIRIANI, 2003, p. 86)
No que diz respeito à alimentação, o fato de os alemães mudarem seus hábitos
cotidianos, como alimentarem-se de salsichas, por exemplo, para ingerir basicamente
milho, ovos, feijão, galinhas e palmito (produtos abundantes da região) também é algo a
ser levado em consideração em se tratando seu processo de adaptação à nova situação
de vida e ao convívio com o caboclo. Este possibilitou, além do contato mais amplo
com os “diferentes” tipos de alimentos, o conhecimento de inúmeras ervas e raízes
utilizadas em chás e infusões, sobretudo usados para curar febres, problemas intestinais
e demais doenças, além de picadas de cobras, acidente muito frequente, vindo inclusive
a aprenderem no contato com os caboclos a identificação das cobras mais venenosas da
região. (SIRIANI, 2003)
(...) o processo de acaboclamento não pode ser visto como algo puramente
pejorativo ou que caiba dentro de categorias conceituais estanques como, por
exemplo, “aculturação” ou “assimilação”. O acaboclamento foi um fenômeno
além dessas definições. Ele pressupôs uma relação de benefícios mútuos, de
completude e complementação entre o elemento teuto-brasileiro e a
população nativa do sertão de Santo Amaro. Significou a integração dos
grupos dando origem a um tipo característico da região 46. Não podemos
negar que o imigrante introduziu técnicas de transporte e cultivo nunca antes
utilizadas pela “cultura da enxada”, própria do caboclo. O arado, a adubação
do solo, a cultura de hortaliças, a produção de manteiga e derivados do leite e
a alteração no eixo fixo das rodas dos tradicionais carros de boi, facilitando o
transporte dos gêneros que vendiam nos mercados da capital, assim como a
seleção e a incorporação de práticas capazes de facilitar a sobrevivência no
local, passaram a fazer parte do quotidiano das populações habitantes do
planalto. Esses fatores totalmente ignorados pelos jornais paulistanos, que
46
Aqui torna-se claro o que o Homi Bhabha (2001) coloca sobre hibridismo, deste enquanto espaço no
qual são produzidas novas significações. Em suas palavras: “É o Terceiro Espaço, que embora em si
irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que garantem que o significado e os
símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser
apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo”. (p. 67-68)
55
mostraram o “caboclo-alemão47” como uma alegoria circense. (SIRIANI,
2003, p. 91 aspas da autora)
A campanha de nacionalização e o Estado Novo: pela criação de um
povo “abrasileirado”
Instituída em nome da unidade nacional, a campanha de nacionalização do
Estado Novo, iniciada em 1937 com a pretensão de forçar a assimilação dos alienígenas
(indicação de ausência de abrasileiramento), produziu a maior crise enfrentada por
alemães e seus descendentes: houve intervenção nas escolas e outras instituições
comunitárias, o uso da língua materna foi proibido em público e os militares procuraram
impor civismo através do elogio à miscigenação étnico/racial. Tal fato teve efeitos
decisivos, dentre eles, o desaparecimento da imprensa e das escolas étnicas e de
algumas instituições culturais (ALVES, 2006; SEYFERTH, 2000a, 2000b) as situações
de conflito produzidas marcaram a vida cotidiana destes alemães até o final da década
de 1940, todavia, cabe aqui o questionamento constante no que toca a expressão destes
fatos, sobre marcas ainda presentes, mesmo em dias atuais.
No trecho que segue, Seyferth (2000a) indica motivações econômicas e
geopolíticas consideradas quanto ao planejamento da colonização, nem sempre
consoantes com os princípios do nacionalismo.
(...) para os propósitos de formação da nação, os imigrantes e seus
descendentes deviam ser assimilados, ou melhor, caldeados num
abrasileiramento de concepção cultural e racial; mas a colonização, tal como
47
Com relação ao citado “caboclo alemão” faz-se necessário pensar também o modo como a cultura
alemã é expressa, por exemplo, em festividades. Citamos como exemplo a festa alemã intitulada
“Maifest” que acontece anualmente no bairro do Brooklin em São Paulo, na qual estivemos presentes. A
impressão, quando de nossa visita, com exceção da venda de bebidas e salsichas ter sido algo de
proporção muito maior do que de fato é em comparação a Alemanha, foi que grande parte dos
descendentes presentes remontam uma Alemanha não mais existente, talvez a Alemanha de outrora,
de seus antepassados. Na festa foram apresentadas danças e roupas típicas (apenas da região da
Bavaria) que hoje já não existem na Alemanha. O que se propõe com este comentário é o total
esquecimento com relação ao imigrante pioneiro em São Paulo, que passou pelo processo de
acaboclamento, relacionando-se com os caboclos brasileiros, assemelhando-se a estes em costumes e
modos de vida constituindo a seu modo, uma relação de parceria. Manter e perpetuar a imagem da
“pátria distante” pode ter um sentido neste tipo de festividade, entretanto, seu significado afasta-se do
teuto-brasileiro que se constituiu no cotidiano e labuta em São Paulo.
56
foi implementada no sul, deixou, a princípio, uma população estrangeira
numericamente expressiva afastada da sociedade nacional. (...) temos, por um
lado, uma concepção de nação elaborada, num sentido mais geral, por
nacionalistas de diferentes matizes compartilhando ideais assimilacionistas e
princípios de desigualdade racial e, por outro lado, os interesses econômicos
e políticos provincianos (ou não) que preferiam o “colono estrangeiro” no seu
lugar- isto é, explorando morigeradamente e sem reivindicações cívicas o seu
lote colonial. Nessa perspectiva, os colonos não deviam ter
representatividade política. (SEYFERTH, 2000a, p. 150)
A autora acrescenta que oficialmente, elites brasileiras nunca deixaram de falar
em assimilação e miscigenação, negando a existência de minorias. Contudo, na prática,
a especificidade social e cultural das diversas colônias, bem como a segregação
resultante da política oficial de colonização, gerou um discurso de exclusão. “Os
indivíduos étnicos não podiam ser considerados brasileiros - estigmatizados como
cidadãos ilegítimos porque não eram nacionais”. (SEYFERTH, 2000a, p. 151)
(...) Vargas, tomando como parâmetro o perfil político de Hitler, defendia a
manutenção de um Estado forte e centralizado, que instrumentalizasse o
surgimento da “nação brasileira unificada e poderosa. Essa era a fórmula
adotada tanto pelos regimes totalitários, caso da Alemanha, como
autoritários, caso do Brasil. Interessava a ambos os ditadores, ainda que em
graus diferenciados, legitimar o processo de dominação social. (GIL, 1995,
apud ALVES, 2006, p. 70)
Os alemães no Brasil sofreram com a política nacionalista do governo Vargas
uma série de decretos publicados que atingiram costumes, o cotidiano e valores desta
comunidade de imigrantes. Ficou proibido falar seu idioma48 em público, reunir-se para
atividades políticas ou manter escolas essencialmente alemãs. Tais medidas foram
naquela época, cumpridas a risca na região sul do país, região que detinha maior número
de estrangeiros e descendentes alemães, medidas adotadas também em outros Estados
do país. (PERAZZO, 2009)
48
“O espírito de identidade nacional, envolvendo sentimentos de amizade, solidariedade e fraternidade,
esteve nas bases do patriotismo das comunidades alemãs. Esteve também na base da organização de
comunidades, da formação de pequenas associações a partir do final do século XVIII, que reforçaram
tais sentimentos e valorizaram a língua como forma de cultivar costumes e tradições artístico-culturais
dos grupos. A fragmentação territorial da Alemanha parece ter traduzido um tipo de configuração de
sociedade que, baseada no patriotismo cultural e popular, fomentou tanto o sentimento de
desenraizamento como também uma noção de identidade fortemente calcada na unidade. A noção de
unidade aqui presente foi integrada, sobretudo pelo idioma.” (CAMPOS, C. M. A política da língua na era
Vargas. Proibição do falar alemão e resistências no Sul do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2006, p. 35)
57
Vivência esta, também relatada por uma colaboradora de nossa pesquisa:
“E essa coisa do Getúlio ainda pega muito. É porque você teve uma geração
que praticamente não leu o alemão e quando você não lê, não escreve, você
fica ruim da língua e aí você teve depois uma geração que, praticamente, é
eu fiz o último ano do primário lá em Pomerode e não se podia falar o
alemão na escola, não se podia, não tinha nenhuma coisa de incentivar a
língua.” (S.)
“(...) e aí vem o negócio da guerra, mas mesmo assim, toda repressão do
Getúlio, mesmo assim o grupo se manteve! Os colégios voltaram, entendeu?
Voltam a ensinar alemão, os colonos voltaram às suas associações e sei lá,
você tem pessoas, na verdade, não da minha idade, um pouco mais velhas,
que não podia dar nome alemão então os caras foram descolar nomes
alemães antiquíssimos, que você não via como alemão.” (S.)
Entre 1930 e 1940, as comunidades teuto-brasileiras eram formadas pelos netos
de descendentes dos alemães que imigraram para o Brasil no final do século XIX, sendo
estes, portanto, a terceira geração germânica. No entanto, ainda que nascidos no Brasil,
mantinham hábitos, costumes e tradições alemãs e viviam como comunidades
estrangeiras. Isto determinou um controle mais rigoroso sobre estes grupos, altamente
atingidos pela campanha nacionalizadora de Vargas. “Estas medidas modificaram o
cotidiano, relações e valores morais, culturais e sociais de crianças, jovens e adultos e
idosos” (PERAZZO, 2009, p. 168). Tal tratamento dispensado aos alemães e, também,
aos demais súditos do eixo49, deixou de ser apenas uma questão nacional, passando a
denotar uma aproximação entre Brasil e Estados unidos.
A proibição de se falar o alemão (em público) silenciou50 cerca de 50% da
população de alemães no Sul do Brasil; a substituição rápida das escolas alemãs por
49
A expressão “Súditos do Eixo” foi utilizada para designar alemães, japoneses e italianos que se
encontravam no Brasil. A conotação em torno do termo súdito remete à submissão à vontade do outro
e ao dever de obediência. O Eixo inicialmente foi formado pela aliança entre a Itália, Alemanha e Japão,
em 1936. Os “eixistas” passaram a ser considerados submissos aos ideais políticos de seus países de
origem e desta forma, considerados como ameaça potencial. A disseminação deste termo transformou
estes cidadãos em representantes de perigo à segurança nacional, fator este que legitimava
determinadas práticas de repressão. Os alemães, contudo, foram o alvo principal da campanha da
política de repressão aos estrangeiros. (PERAZZO, 2009, p. 28-176)
50
No Filme-documentário feito por uma de nossas colaboradoras há um emocionante depoimento do
que se deu nesta época. Há relatos de como as pessoas literalmente emudeceram e passaram a sentir
medo de desconhecidos, que por ventura pudessem escutá-las falando alemão e denuncia-las. Há
58
escolas brasileiras criou problemas para que se encontrasse número suficiente de
professores, o que fez com que o nível de muitas escolas fosse rebaixado. Muitas vezes,
professores e alunos não se entendiam, uma vez que falavam idiomas diferentes. O
fechamento das associações recreativas interrompeu a vida social da população, a
apropriação pelo Estado de escolas, hospitais e prédios assumiu, aos olhos da
população, caráter de “roubo legal.” (ALBERSHEIM, 1962, p.183)
Selecionamos alguns comentários de entrevistas realizadas por Albersheim
(1962, p.184-185) com membros de uma comunidade em Jarim, no Vale do ItajaíSanta Catarina (local citado anteriormente) que ilustram a reação da população à
campanha de nacionalização.
“Senti-me como membro de uma tropa de ocupação em
território estrangeiro.” (diretor de um grupo escolar luso
brasileiro, enviado para a região em 1944). (p. 184)
“A campanha de nacionalização fechou as boas escolas,
substituindo-as, e apenas em parte, por outras que estão longe
de chegar aos pés das alemãs e deu margem a uma série de
perseguições de ordem pessoal, sob a falsa bandeira de
nacionalização.” (p.184)
“A população falava alemão porque nunca lhe haviam dado
bons professores de português; mas, os que falavam português
sabiam-no melhor que muito brasileiro e não cometiam erros de
gramática e ortografia.” (p.184)
“Toda minha família foi presa; tinham uma pequena fábrica e
falavam alemão. Como é que meu avô depois de velho vai
aprender outra língua? Lá na prisão davam óleo de espingarda
para beber, como castigo. Muitos devem ter bebido gasolina,
com um fósforo aceso para não esquecer tão
facilmente.”(p.185)
“Os soldados saiam para a colônia e prendiam os colonos que
falavam alemão; uma vez trouxeram um que falou em alemão
com seus cavalos. Deixaram os animais e o arado no campo e
trouxeram o homem...”(p.185)
também o seguinte relato: “uma língua não se aprende por decreto” em alusão à abrupta
obrigatoriedade em se falar somente a língua portuguesa.
59
“As ruas esvaziaram-se, ninguém queria sair de casa e os
colonos pediam ao leiteiro para comprar o que necessitavam.
Morreram os clubes todos, não havia mais vida na colônia
(...).” (p.185)
“O tempo de guerra foi terrível e sem razão. Não havia nazistas
em Jarim; nunca houvera. O que interessava era o que se
plantasse e colhesse, não importa em que língua. O que
ocorrera durante a guerra causara o atraso de Jarim, que
nunca mais se recuperará.”(p.185)
“O mal que os nazistas fizeram foi muito inferior ao que foi
causado pela campanha de nacionalização.” (depoimento de
um luso-brasileiro radicado na região) (p.185)
Albersheim salienta que, com exceção de parte mais idosa da população, o
bilinguismo (alemão-português) foi tornando-se geral, tanto no que se refere à língua
falada normalmente, como a utilizada em apresentações públicas, no teatro, igreja,
discursos, no jornal ou no rádio; caracterizando-se como forma de resistência às
medidas impostas.
Além de questões específicas contra os chamados Súditos do Eixo a instauração
do Estado Novo por parte do governo brasileiro buscou ainda, de acordo com Carneiro
(2007), impedir a imigração dos judeus refugiados do nazismo. Indiferentes à situação
vivenciada pelos mesmos na Europa, optou-se pela adoção de uma política imigratória
seletiva e restritiva. Sob argumentos antissemitas, a imigração de judeus foi considerada
ameaçadora à integridade étnica e religiosa da população brasileira (branca e católica).
Ao Estado coube selecionar o tipo de imigrante que ingressaria no Brasil e ao conter a
entrada de judeus, buscou-se evitar a proliferação de doutrinas perigosas à segurança
nacional e ainda a entrada no país de uma “raça considerada inferior” (CARNEIRO,
2007, p.1).
A lógica era de que o equilíbrio social, racial e político só poderia ser
alcançado por meio da intervenção direta do Estado que, sob a liderança de
Getulio Vargas (1897-1954), se apresentava como capacitado a transformar o
Brasil numa nação forte e gerar um “novo homem” brasileiro. Por meio de
ações preventivas e punitivas, o governo Vargas sustentou uma política
imigratória antissemita com o objetivo de garantir uma imigração saudável e
civilizada. É importante lembrar que os refugiados judeus eram, em grande
parte, profissionais liberais, comerciantes, intelectuais e ativistas políticos
excluídos da sociedade alemã e dos países ameaçados de ocupação pelos
nazistas desde 1933. (CARNEIRO, 2007, p.1)
60
A liga pangermânica e o nazismo no Brasil
Em 1891, foi criada na Alemanha a Liga Pangermânica (Alldeutscher Verband).
Seu intuito era preservar a nacionalidade alemã, “divulgando e propagando os planos
expansionistas da germanidade e a união integral da germanidade em todo o mundo,
bem como campanha pela germanidade no exterior.” (MAGALHÃES, 1998, p. 105)
No século seguinte, soma-se a estes objetivos, a extensão dos direitos de
cidadania dos alemães no exterior, sob argumentos baseados no jus sanguinis (direito de
sangue). Conforme Fernandes (2011) as ideias propagadas incentivavam a conservação
do Deutschtum, uma vez que a germanidade era uma questão herdada por laços culturais
sendo considerado alemão quem possuía o sangue alemão.
O mesmo autor refere que a Liga Pangermânica considerava os colonos no
Brasil como “alemães no exterior” e estes representando, portanto, o reino alemão e,
além disso, um atrativo mercado consumidor de produtos alemães. (p. 14, aspas do
autor)
A Liga Pangermânica tinha interesses econômicos no Brasil e era consenso
considerar o local de residência de alemães, também como território alemão. Assim,
criava contornos a ideia de se constituir “uma nova Alemanha na América do Sul”
(HELL, 2008 apud FERNANDES, 2011 p. 14). Alemães residentes no Brasil, por sua
vez, propagavam estas ideias e desta forma, foram considerados resistentes à integração
a sociedade brasileira. Muito além dos interesses econômicos, os pangermanistas
visavam:
expandir o território alemão e manter a consciência nacionalista dos alemães
que imigraram, pregando a necessidade de manterem seus costumes e
auxiliando financeira e ideologicamente instituições como escolas, igrejas e
demais instituições culturais. (FERNANDES, 2011, p. 16)
Tais ideias eram divulgadas por periódicos alemães de circulação no Sul do
Brasil e sua influência mais direta recaiu sobre as escolas de língua alemã, que
preparavam crianças e jovens para o pangermanismo do futuro. (MAGALHÃES, 1998)
61
A liga Pangermânica, portanto, não só era partidária de uma
Grossdeutschland, mas também de uma entidade que incluiria todos os
alemães do mundo, não importando o país em que vivessem. Esta
comunidade seria possível porque a nacionalidade, para o alemão, é obtida
por direito de sangue e não pelo fato de ter nascido na Alemanha. Neste
sentido o cidadão pode ser vinculado a um Estado, mas não ao nacional. Por
isso, na concepção pangermânica, todos os alemães e descendentes em todo o
mundo, poderiam formar uma unidade nacional sem se constituírem,
necessariamente, em traidores dos estados dos quais são cidadãos. E assim
sendo, trabalharem para tornar a Alemanha uma forte potencia mundial, seja
abrigando mercados para a indústria e comercio alemães, seja divulgando a
cultura alemã. (SEYFERTH, 1976, p. 45-46)
Conforme Perazzo (2009, p. 243) “o pangermanismo permitia a preservação da
imagem, da língua e dos aspectos culturais da pátria- mãe”. A partir de 1933, a causa
nazista atraía a simpatia dos alemães no Brasil, que desenvolviam a ideia de
constituírem um “pedaço da Alemanha” no Brasil, tomando-se como exemplo a forma
como foram capazes de superar traumas e humilhações do passado, despertando formas
de identificação e também o orgulho de ser alemão. “Mais que uma consciência
ideológica propulsora de uma adesão partidária, o que estava em jogo nesse momento
era a afeição pelo nazismo como manifestação de endosso àquilo que vinha da pátriamãe.” (PERAZZO, 2009, p. 243). Um dos entrevistados desta pesquisa corrobora com
esta colocação de Perazzo ao mencionar esta questão como algo importante para os
alemães, no sentido de exaltarem seu pertencimento, sem que se soubesse exatamente o
significado ou intenções do partido de Hitler.
Albersheim (1962) acrescenta ainda que em ambiente em que os elementos da
cultura alemã eram valorizados em detrimento da brasileira, a admiração e amor pela
longínqua Alemanha tornou muitas pessoas presas fáceis para os movimentos da
propaganda nazista no Brasil. Para esta população, a nacionalização incitada pelo
governo Vargas representou grande surpresa e injustiça; não se podia entender o
significado desta ação dentro da atmosfera vigente.
Dados de Dietrich (2007) revelam a existência de um Partido Nazista em São
Paulo. Segundo estes, houve uma expressão relevante do partido na cidade, ainda que
grande parte da comunidade não tenha se filiado formalmente. Ainda assim, havia
partidários e representantes deste partido em praticamente todos os segmentos sociais e
culturais, de modo direto ou indireto. “O partido tinha uma organização própria com
62
vários cargos, desde diretores a auxiliares e células nazistas ligadas a ele” (DIETRICH,
2007, p. 74). O principal objetivo era unir a comunidade alemã do Brasil à causa do
Terceiro Reich, “chamando os alemães do exterior a formar a grande Comunidade
Nacional.” (DIETRICH, 2007, p. 74)
À exemplo do que ocorreu na cidade de São Paulo, Perazzo (2009, p. 238)
coloca:
A manutenção dos laços da comunidade alemã com a terra natal
proporcionou as condições para que parte dos alemães de São Paulo aderisse
às propostas do nacional-socialismo de Hitler e cultivasse no seu imaginário
a identidade coletiva nazista que, associada ao sentimento de pertencer à
nação alemã e à representação de heterogeneidade cultural da capital, fizera
crer que, poderia preencher São Paulo com a sua cidade particular.
No Sul do país, o Partido Nazista não se apresentou tão ativo como em São
Paulo, ainda assim, o projeto de expansão da Liga Pangermânica mostrou-se interessado
na região, sobretudo devido a suas características geográficas e ao clima, pontos
considerados ideais para a expansão da raça ariana. De acordo com Lorenz (2008) a
procura de possibilidades de instalação de brancos em regiões tropicais e de formação
de um sistema colonial que pudesse preservar a identidade nacional alemã fora o grande
objetivo na colonização da região Sul do Brasil. Havendo inclusive, debates científicos
a este respeito:
(...) que levaram à distinção entre o Brasil (mais precisamente a região Sul,
zona de clima temperado) e outras regiões de emigração ou colonização
alemã no mundo: os cientistas consideraram o Brasil um caso excepcional
pelas possibilidades de manutenção da saúde física e da identidade cultural e,
através disso, da endogamia “racial” das comunidades alemãs ali residentes
há diversas gerações (...) aptidão extraordinária do sul do Brasil para as
expansões alemãs. (LORENZ, 2008, p.34)
Questões relacionadas ao nazismo, bem como a forma que este se expressou no
Brasil, podem servir de pano de fundo quanto à forma como surge no imaginário social,
ainda na atualidade. De alguma maneira, “o ser alemão51” é associado a este
51
De acordo com Moscovici (2003) no tocante às representações sociais, fruto de crenças fortemente
cristalizadas e enraizadas estas passam a adquirir vida própria circulando e se encontrando, capazes de
influenciar os comportamentos dos indivíduos, gerando movimentos que extrapolam grupos e
englobam coletividades.
63
acontecimento e momento histórico e o reflexo disto é relacionado de modos diversos
aos descendentes alemães até mesmo, diferentes gerações em suas famílias continuam
lidando com desdobramentos de marcas cujo conflito advindo da representação social
que lhes é atribuída em associação ao nazismo, ainda lhe ocasionam. Pudemos perceber
a presença do referido conflito de forma pontual, na fala de dois de nossos
interlocutores:
“(...) eu sempre fui chamado de nazista assim, por apelido no colégio, depois
na faculdade. Eu andava de cabelo raspado, então as pessoas me chamavam
de nazista e eu não sei por que, mas esse pessoal também não se misturava
com o meu grupo, entendeu?”(E.)
“No colégio eu tive amigos espetaculares que conseguiram isolar esse fator
histórico, sabe?”(E.)
“Isso na faculdade eu fiquei com um pouquinho de raiva, isso tocou pra
mim. Eu nunca tive raiva, mas desse pessoal aí, nossa, como é que pode, me
chamavam mesmo de nazista, essas coisas... Bom, eu levava numa boa, numa
boa... Mas era um apelido meio chato assim...”(E.)
Este mesmo narrador relata um episódio ocorrido após o falecimento de sua avó
em uma pequena cidade do litoral sul de São Paulo. Cabe ressaltar, que seus avós
alemães construíram esta casa, que possuía características típicas da arquitetura alemã
em sua composição em madeira. Sua avó era velha conhecida da cidadezinha, moradora
por mais de 40 anos no bairro. Não se relacionava com quase ninguém, com exceção de
alguns alemães e descendentes, moradores da região. Comunicava-se muito mal em
português.
“ Aí ficamos 6 meses ainda, a casa ficou lá 6 meses e aí em 6 meses os caras
arrebentaram a casa, foi ladrão, arrebentaram com pé de cabra, todas as
janelas de madeira, aquelas partes de madeira e , nossa, o medo é que
botassem fogo na casa...” (E. )
Aqui se coloca em questão a origem do medo de E. Possivelmente os saques
tenham ocorrido por ladrões, contudo, o medo associado ao “colocar fogo” extrapola
condições apenas ligadas ao roubo de bens materiais. Destruir uma casa com
64
características germânicas pode ter outro significado para esta família, cujo avô fora
sobrevivente de um navio ligado à SS, em missão na América do Sul.
Algo que também pode ilustrar a presença desta questão para nosso narrador, é a
forma como isto foi tratado pela família. No relato que segue pode-se perceber que é
algo considerado como uma não verdade, ou meia verdade.
“minha avó falou um negócio, durante a Segunda Guerra mundial eu não
sabia que tinha campo de concentração, eu não sabia que isso tava
acontecendo. Ela foi enfermeira durante a guerra e não tinha noção do que
tava acontecendo, na cidade dela, ela morava em Erzgebierge bem perto da
fronteira com a República Tcheca, ela simplesmente notava que os vizinhos
ali, recebiam convites, os vizinhos judeus, eles também nunca eram de se
misturar com os alemães, recebiam convites pra passar um tempo em algum
lugar que ninguém nunca falava onde que era, e minha avó, isso antes da
guerra estourar ainda, minha avó sempre estranhava e o pessoal ia brincar e
tal e não se misturavam com a turma dela. No colégio, também era tudo
separado, ficavam isolados... Eu não sei, mas ela me falou bem claro, eu
nunca tive noção do que tavam fazendo, eu até duvido que tenha havido tanto
extermínio como falam, porque eu fui enfermeira e não vi uma pessoa sendo
sacrificada, da raça judaica e não vi uma pessoa ali, implorando por ajuda,
eles simplesmente sumiram, simplesmente sumiram....” (E.)
“Você vê tantos filmes de Hollywood e eu, eu não sei, eu não acho que foi um
negócio tão forte como falam, como mostram. Ela me jurou, eu nunca vi isso.
E lá na Alemanha me falaram a mesma coisa. Me disseram que sabem que
foi uma decisão errada, eles não sabiam o que tava acontecendo, eram
induzidos, pelo exército, pela massa, então sabe, isso.” (E.)
Campos de concentração no Brasil
Durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil vivia o período conhecido por
Estado Novo. Entretanto, ainda que este momento político visasse o “abrasileiramento”
dos estrangeiros, a posição do Brasil frente à Guerra era, até 1939, de pretensa
“neutralidade”. Dados de Dietrich et al.(1997) mostram que o Brasil, durante o período
inicial do conflito mundial, desfrutou de poder de barganha. Getúlio Vargas manteve
dissimulada neutralidade perante aliados e eixistas, favorecendo suas negociações
comerciais. Contudo, após receber ajuda financeira norte-americana para a construção
da siderúrgica de Volta Redonda, o governo brasileiro aliou-se aos Estados Unidos,
Inglaterra e França na luta contra os países do Eixo, em 31 de agosto de 1942
(DIETRICH et. al, 1997; RAMOS et. al, 2009). A partir de então, imigrantes alemães
não eram mais bem vindos. Passaram a ser perseguidos e até mesmo presos em campos
65
de concentração, criados para abrigar exclusivamente prisioneiros do Eixo - alemães,
italianos e japoneses - nas cidades de Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Bauru,
Ribeirão Preto e Pirassununga, no interior Paulista. (PERAZZO, 2009)
Segundo relatos levantados pela revista Época online (2004)52 os prisioneiros
foram amontoados em caminhões e levados para o confinamento em chamados
“Centros de imigração”. O Brasil manteve presos por anos pessoas devido a sua origem,
cuja justificativa era tratarem-se de “prisioneiros de guerra.”
Magalhães (1998) coloca que discriminações sofridas por imigrantes alemães e
seus descendentes em virtude de sua origem, provocou nestes a convicção de que eram
efetivamente estrangeiros e o seriam para sempre no Brasil. A discriminação sempre
esteve presente, já no início das imigrações no século XIX, mesmo que de forma sútil.
Seja pelo fato de professarem a religião protestante, utilizarem idioma
estrangeiro ou mesmo por serem trabalhadores braçais. Com o surgimento do ideário
nacionalista das elites brasileiras, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, o
anti-germanismo revelou-se de maneira contundente.
Naqueles anos de guerra, em nome da defesa da Pátria, depredaram-se lojas,
associações e entidades de cultura teutas. Os retratos de familiares e também de seus
ídolos nacionais eram quebrados, suas bandeiras rasgadas e a circulação de periódicos
em língua alemã foi proibida. Nos jornais, notícias de toda ordem justificavam e
estimulavam tais represálias: os teuto-brasileiros eram condenados como espiões,
traidores e perigosos inimigos de todos os povos, merecedores, portanto, de uma pena
capital - “Viva o Brasil, morte à Alemanha, gritavam os populares nas ruas das
cidades.” (MAGALHÃES, 1998, p. 15)
Desde 1938, alemães, japoneses e italianos vinham sofrendo cerceamento de
sua cidadania no Brasil. Por representarem uma ameaça ao projeto nacional
moderno sustentado pelo governo estado-novista, as colônias de imigrantes
52
Para maiores informações consultar http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR649266014,00.html.
66
estiveram sob constante vigilância policial, e os seus membros eram
suspeitos em potencial de praticarem atividades políticas contrarias as
propostas brasileiras” (PERAZZO, 2009, p. 77)
No calor da atmosfera da campanha nacionalista de Getúlio Vargas, o intuito era
que o cidadão indesejável fosse retirado do meio social, logo, em nome da manutenção
da ordem, foram criados locais de internamento em quase todos os Estados brasileiros:
Colônias penais agrícolas, escolas, asilos e hospitais eram transformados em
prisões. Este sistema de internamento passou a ocorrer a partir do segundo
semestre de 1942, com a entrada do Brasil na guerra em agosto. Desde então
os prisioneiros do Eixo, como eram denominados foram recolhidos pela
Policia Política ou pelo Exército que os encaminhava para campos recémcriados ou para presídios e colônias penais que adaptavam parte de suas
instalações para acomodação da nova categoria de prisioneiros. (PERAZZO,
2009, p.97)
Estes campos eram regulamentados pelas leis estaduais e voltados para trabalhos
agrícolas ou pecuários desenvolvidos pelos internos. Eram compostos, em sua maioria,
por alemães e em segundo lugar, por italianos seguidos dos japoneses. Eram presas
pessoas consideradas como envolvidas em atividades políticas, de espionagem ou de
sabotagem53. Os alojamentos eram em geral parecidos e bastante precários, a
alimentação era complementada pela família dos internos. Havia certa liberdade de
locomoção dentro dos limites dos campos ou cidades onde estavam localizados, embora
sempre sob supervisão. Correspondências e encomendas eram censuradas. Houve
muitos casos de desnutrição, doenças e falta de atendimento médico. (PERAZZO, 2009)
53
Segundo Fernandes (op. cit.) chamam a atenção alguns limites de veracidade apontados por
denúncias contra alemães, demonstrando até mesmo, certo despreparo policial. O autor traz para
tanto, como exemplo, a história de um consumidor que teve a boca ferida após comer pão originário de
uma padaria alemã. A acusação era de tentativa de envenenamento.
67
Capítulo 2:
A identidade como questão
“[...] a realidade, sendo sempre síntese do subjetivo,
determina que os conflitos sempre se expressem (e sempre
sejam decididos) sob formas historicamente dadas, levandonos a recusar o modelo biológico da filosofia da história
(passando então a ser importante explicitar o que queremos
dizer quando falamos em sociedade ou cultura). A liberdade
para virmos a ser humanos (não a liberdade vazia de qualquer
coisa), recusando a coerção (uma objetividade em que
subjetividade não se reconhece), cria o interesse de garantir a
autoconservação da espécie, o interesse pela libertação- um
interesse racional e não uma razão interesseira- o interesse
pela progressiva humanização da espécie humana, que se
elevou acima das condições da existência animal. Esse
interesse é que determina o que merece ser vivido nas
condições dadas.” (Antônio da Costa Ciampa)
“[...] a identidade nunca existe a priori, nunca é um produto
acabado; sempre é apenas o processo problemático de acesso
de uma imagem de totalidade.” (Homi K. Bhabha)
A exploração deste tema envolve um questionamento: a resposta dada por um
indivíduo quando perguntado sobre quem é sua pessoa produziria um efeito que o torna
perfeitamente previsível? É com esta indagação que Ciampa (2001[1987]) inicia a
explanação do que entende por identidade. Esta, segundo o autor, configura uma
totalidade contraditória, múltipla e mutável, onde o indivíduo sempre é único na
multiplicidade e na mudança e se revela naquilo que oculta. O processo de mudança é
constante e nos tornamos algo que não éramos ou nos tornamos algo que já éramos e
que estava embutido dentro de cada um.
Identidade é uma junção de vários fatores. Iniciada por nosso nome, escolhido
pelo grupo familiar, passa por várias expectativas que outros colocam em nós, chegando
então no decorrer da existência em um ponto onde o indivíduo consiga nomear suas
vontades, desejos, qualidades e ações. “O sujeito deixa de ser substantivo, ser nomeado,
para ser verbo, ser ação” (CIAMPA, 2001, p. 170).
68
Ciampa coloca que para compreender o que é identidade é preciso ter claro o
processo de sua produção. “A identidade é a articulação da diferença e da igualdade” (p.
138). É a estrutura social mais ampla que oferece os padrões de identidade; neste
sentido, também se pode dizer que as identidades em seu conjunto, refletem a estrutura
social, ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou transformando-a.
Em cada momento da existência do indivíduo, embora sendo uma totalidade,
manifestam-se partes de si como desdobramento das múltiplas determinações as quais
está sujeito. Isto configura a identidade como algo não fixo e sim mutável, uma
construção, um efeito, processo de produção e até mesmo um ato performativo. Ligada
a estruturas discursivas, narrativas e ainda a sistemas de representação. (SILVA, 2003)
Nas palavras de Almeida (2005):
A noção de identidade tem se mostrado fecunda para o conhecimento de
processos de mudança nas formas como os indivíduos se situam no mundo e
em suas relações a partir de redefinições pessoais e da adoção ou manutenção
de modos autônomos de gerir a vida. Ela nos permite desvelar como os
processos de conformação e de alocação de lugares sociais informam a
formação dos indivíduos e normatizam a expressão de seus desejos e projetos
em nome da reprodução de sistemas de vida nem sempre propícios à
ampliação das experiências sociais e à mudança de padrões tradicionais de
reconhecimento social. Permite, também, considerar a participação do
indivíduo na construção de seu modo de ser no mundo e de sua apresentação
nas relações interpessoais. Tendo em mente o interesse emancipatório, a
identidade afigura-se uma ferramenta importante para dar conta, por um lado,
dos processos de ‘emudecimento do outro’, que induzem a conformidade e a
mesmice e, por outro lado, dos processos de auto-reflexão e entendimento
que estão na base da autonomia e da assertividade pessoal. (p. 3-4)
Almeida (2005) posiciona a identidade como “um jogo dialético entre a
diferença que se estabelece na interação de indivíduos, envolvendo autoimagens e
representações alheias reciprocamente orientadas.” (p. 52). É ainda produto da ideia que
fazemos de nós mesmos e a ideia que outros fazem de nós em um encontro dialético dos
modos que nos representamos e somos representados. A identidade é algo “suposto ou
pressuposto” (idem, p. 53) uma vez que é formada a partir daquilo que nos é mostrado
e, portanto visto ou percebido.
O autor coloca que identidade “é algo que se constitui através de práticas,
conhecimentos, envolvimentos pessoais, numa contínua articulação significativa das
experiências vivenciadas pelos indivíduos em suas relações com os outros e consigo
69
mesmos(...).”
(p.53-54).
Está
em
processo
contínuo
de
transformação
e
simultaneamente de interiorização. A identidade forma-se na dialética indivíduo
sociedade.
De acordo com Jacques (1998) existe um panorama de autores que empregam
distintas expressões como imagem, representação e conceito de si na discussão de
identidade. Em comum, caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de
autonomia e consideram a identidade como gerada pela socialização garantida pela
individualização. Na Psicologia Social, a identidade como problemática ocupa lugar
importante na tradição interacionista simbólica, em trabalhos pioneiros de George H.
Mead. “(...) o processo do qual surge a pessoa é um processo social que envolve a
interação dos indivíduos do grupo e envolve a pré existência do grupo.” (MEAD, 1972,
p. 193)
Ciampa (2001) em acordo com as noções tratadas por Mead acrescenta que o
conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados
através de um determinado grupo social, grupo este que acaba por ser determinante na
configuração subjetiva do indivíduo. Pode-se exemplificar com crianças em seu
processo de desenvolvimento que, logo nas idades iniciais passam a compreender como
os outros são enquanto aumentam sua compreensão de senso de si mesmas.
Reconhecer-se e ter sua identidade em grupos que existam objetivamente, onde se
trabalha ou se tem alguma prática são fatores que levam a existência em atividade, esta
é reconhecida por meio da ação praticada pelo indivíduo. “Nós somos nossas ações, é
pelo agir que se é (...). Onde a identidade aparece e se estabelece pelas ações do sujeito”
(Ciampa, 2001, p. 203).
Os sistemas identificatórios são por vezes subdivididos e a identidade passa a ser
qualificada como identidade pessoal - atributos específicos do indivíduo (JACQUES,
1998) e identidade coletiva - atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias
(CIAMPA, 2012). Esta última, ainda recebe predicativos mais específicos como
identidade étnica, religiosa, profissional etc. (JACQUES, 1998)
70
A identidade tem seu desenvolvimento determinado por condições históricas,
sociais e materiais dadas, somadas ainda às formas como o próprio indivíduo elabora
tais condições. Desta maneira, a concretude da identidade está em sua temporalidade:
passado, presente, futuro. É, portanto, síntese de múltiplas e distintas determinações.
(CIAMPA, 2001[1987])
A construção social da realidade- contribuições de Peter Berger,
Thomas Luckmann e Georg H. Mead
A realidade é construída socialmente e desta forma não há como se pensar a
constituição de identidades à parte deste fato.
A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens
e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um
mundo coerente. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 35)
O mundo da vida cotidiana é tomado como realidade pelos membros da
sociedade em sua subjetividade, no modo como apreendem este à sua conduta, no
sentido que imprimem às suas vidas. “mundo que se afirma no pensamento e ação dos
homens comuns, sendo afirmado como real por eles.” (idem p.36)
Peter Berger e Thomas Luckmann apontam a formação de intersubjetividades e
a apreensão destas nas experiências subjetivas da vida cotidiana. Interessa-lhes o caráter
intencional, comum de toda consciência e estudam a vida cotidiana, uma vez que ocorre
nesta, a tensão da consciência em seu máximo. Logo, se configura no cotidiano a
realidade experimentada pelos sujeitos, que neste contexto, desenvolvem sua atitude
natural. Trata-se de uma realidade instituída antes do sujeito “entrar” nesta, com seus
objetos, valores. Realidade esta, anteriormente dotada até mesmo pelo local geográfico
onde o sujeito nasce, com seu relevo, clima e territórios já definidos.
A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do ‘aqui’ de meu
corpo e do ‘agora’ do meu presente. Este ‘aqui e agora’ é o foco de minha
atenção à realidade da vida cotidiana (...). A realidade da vida diária, porém
não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça fenômenos que não
estão presentes no ‘aqui e agora. ’ (BERGER & LUCKMANN, 2011, p.39)
71
O elemento da realidade cotidiana mais próximo do sujeito é aquele em que o
mesmo tem acesso, quase que por sua manipulação corporal. É aquela realidade em que
o indivíduo pode atuar modificando-a, implementando-lhe aspectos seus como, por
exemplo, por meio da atuação pelo trabalho. Cabe ressaltar, que o “aqui e agora” da
atuação do sujeito não impede que zonas distantes também estejam presentes nas ações,
por meio da memória e também através do que os autores nomeiam como mundo
intersubjetivo.
A realidade da vida cotidiana apresenta-se a mim como um mundo
intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com outros homens.
Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras
realidades das quais tenho consciência. Estou sozinho no mundo de meus
sonhos, mas sei que o mundo da vida cotidiana é tão real para os outros
quanto para mim mesmo. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 39)
Não há existência na vida cotidiana senão em-relação. A noção de
intersubjetividade acontece no encontro com o outro e também agrega o sujeito à vida
em sociedade, ao mesmo tempo em que promove seu desenvolvimento pessoal (social e
também cognitivo).
É possível reconhecer a alusão de Berger & Luckmann (2011) às proposições de
Georg H. Mead e a compreensão destas para a interação do homem na realidade
cotidiana, quando colocam:
Sei que minha atitude natural com relação a este mundo corresponde à atitude
natural dos outros, que eles também compreendem as objetivações graças às
quais este mundo é ordenado, que eles também organizam este mundo em
torno do aqui e agora de seu estar nele e têm projetos de trabalho nele. Sei
também que os outros têm uma perspectiva deste mundo comum que não é
idêntica à minha. Meu ‘aqui’ é o ‘lá’ deles (...) de todo modo sei que vivo
com eles em um mundo comum. (BERGER & LUCKMANN p.40)
Cabe a reflexão sobre a inter-relação existente entre a intencionalidade do sujeito
elaborada à partir da aquisição do “outro generalizado” ou seja, partindo-se das
proposições de Mead quanto a formação do self. A formação do self (que caminhará
junto ao desenvolvimento da personalidade) contém a apreensão do “outro” enquanto
instituição relevante na vida do sujeito, na adoção das atitudes desta, ou seja, o assim
chamado “outro generalizado” (SOUZA, 2006).
72
O comportamento passa a ter sentido para o indivíduo quando este se exterioriza,
tornando-se atitude, disposição para a conduta. Logo, para Souza (2006) em sua leitura
de Mead, a natureza da consciência é social, dialeticamente funcional e passa a ser o
princípio que permite ao sujeito compartilhar conceitos, viabilizando assim sua
participação, ação e também inserção na sociedade, o que marca uma fase decisiva na
socialização (SOUZA, 2006; BERGER & LUCKMANN, 2011).
Berger & Luckmann colocam que a formação na consciência do outro
generalizado marca uma fase decisiva na socialização. “Implica a interiorização da
sociedade enquanto tal e da realidade objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o
estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e continua” (p.173). A sociedade,
a identidade e a realidade cristalizam subjetivamente no mesmo processo de
interiorização. Esta cristalização ocorre juntamente com a interiorização da linguagem.
Aquilo que é “real fora passa a ser real dentro”. (idem, p. 173)
É pelo compartilhamento intersubjetivo por meio da linguagem que o sujeito se
constitui. Isto se inicia ainda na infância, quando a criança gradualmente aprende o
processo de apropriação da atitude do outro durante o brincar (conceito nomeado como
play and the game)54, organizando este outro para si, como o outro generalizado
(SOUZA, 2006). No game a criança aprende jogos “de regras” algo extremamente
importante para a convivência social.
A criança desenvolve o seu self ao mesmo tempo em que compartilha, apreende
e treina experiências com os outros. A formação de seu próprio repertório dá-se emrelação com outros selves em processo reflexivo e sempre social. A organização do
repertório comportamental da criança se desenvolve em atos e também em atos-resposta
às atitudes do outro (MEAD, 1972, interpretação nossa55). De acordo com Mead a
54
Conceito amplamente explicado e exemplificado na obra original de Mead intitulada “Mind, self and
society. From the Standpoint of a social behaviorist. Chicago: The University of Chicago Press, 1934”.
55
“(...) These responses must be, in some degree, present in his own make-up. In the game, then, there
is a set of responses of such others so organized that the attitude of one calls out the appropriate
attitudes of the other.” (Mead, 1972, p. 151)
73
experiência do self reflete a sociedade de modo total (cabe ressaltar que o self é uma
instância construída na interação em sociedade, não “está” no sujeito desde o
nascimento).
É, portanto, nas trocas simbólicas, por meio da linguagem (incluindo- se também
gestos) que a comunicação interna se desenvolve. Constitui-se uma forma de
consciência de si mesmo a partir do contato com o outro. É como “tornar-se objeto para
si mesmo” (MEAD, 1972, p.138) aquisição esta mediada pela intersubjetividade
promovida pela comunicação. Registramos e pensamos a partir de nossas experiências
vividas e compartilhadas.
Conforme Souza (2006, p. 53) o outro generalizado seria uma espécie de
influência da socialização na constituição do self e assim na própria individuação do
sujeito. Um outro “outro”, que possibilitará a internalização de regras sociais. Desta
forma, a personalidade estaria relacionada ao social e com o meio linguístico de modo
intrínseco. O sujeito passa a interagir no mundo pela apropriação do outro, o que
permite, por sua vez, também a reflexão de si mesmo.
Nas palavras de Mead (1972) citado por Sass (2004, p. 280):
É na forma do outro generalizado que os processos sociais influenciam o
comportamento dos indivíduos neles envolvidos e que são executados, quer
dizer que é nessa forma que a comunidade exerce seu controle sobre o
comportamento de seus membros; porque é nessa forma que o processo entra
como um fator determinante do pensamento individual. Pelo pensamento
abstrato o indivíduo assume para si a atitude do outro generalizado, sem
referencia à expressão que esse outro generalizado possa assumir para
qualquer outro individuo particular; e pelo pensamento concreto assume essa
atitude em que é expressa nas atitudes para o seu comportamento, por parte
daqueles outros indivíduos com quem está envolvido na situação ou no ato
social. Mas, unicamente adotando a atitude do outro generalizado para si, por
uma dessas maneiras, pode o indivíduo pensar, porque apenas assim pode se
dar o pensamento. E somente através da apropriação pelos indivíduos da
atitude ou das atitudes do outro generalizado para si mesmo que pode existir
um universo de discurso, como um sistema de significados comuns ou sociais
que o pensamento pressupõe.
74
Fases do self
Georg H. Mead explica as fases do self determinando o “eu” e o “mim”.
Segundo a leitura de Souza (2006, p.58) o mim exprime convencionalidade, tradição e
adaptação e o eu, indica a novidade, originalidade e criação.
No meio social, são as atitudes do outro que constituem o mim organizado e
então o sujeito reage a estas atitudes com o eu. O self, produzido no confronto entre o eu
e o mim, assegura a incorporação de atitudes sociais o que possibilita a socialização do
sujeito. (SASS, 2004; SOUZA, 2006)
De acordo com Werle (2008, p. 44) a consciência deve ser entendida como fluxo
de pensamento e vivências originadas na relação dinâmica entre uma pessoa e seu
ambiente significativo. Mead compreende, desta forma, a construção da identidade
como um processo de aprendizagem social intersubjetiva. Logo, “ver o seu próprio
comportamento a luz do comportamento do outro é o que modela o self ”. (idem p. 44)
Trata-se de pensar a identidade dos indivíduos socializados como sendo
formada, ao mesmo tempo, por meio do entendimento linguístico com os
outros e por meio de uma compreensão intra-subjetiva, histórica e vital
consigo mesmo. A individualidade forma-se nas práticas e estruturas de
reconhecimento
intersubjetivo
e
na
autocompreensão
mediada
intersubjetivamente. (WERLE, 2008, p.43)
O autor refere Mead em seu entendimento da identidade, não como algo que o
individuo “possui”, mas sim uma construção desta em meio a processos comunicativos,
que envolvem constantes “ajustes reflexivos do comportamento” sempre em
consideração a conduta de outros cujos papéis assumimos. (WERLE, 2008, p. 45)
Na leitura de Juergen Habermas56, a obra de Mead auxilia a conceber a
identidade pessoal enquanto processo de aprendizagem mútua, que possibilita que se
56
Para um maior aprofundamento acerca da discussão feita por Habermas sobre George H. Mead
consultar: Juergen Habermas- Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo brasileiro, 2002.
75
vislumbrem potenciais emancipatórios de uma razão comunicativa na realidade social
do indivíduo que pode até mesmo resultar em formas e modos de maior liberdade,
formas de inclusão e participação democrática na vida em sociedade. (WERLE, 2008)
Sociedade: uma realidade subjetiva e objetiva
A sociedade é um produto humano e o ser humano é produtor da sociedade em
dialética permanente. Logo, a compreensão da interação sociedade-sujeito envolverá
aspetos objetivos e subjetivos. A sociedade a ser entendida nestes dois âmbitos, leva em
conta três momentos: exteriorização, objetivação e interiorização. O sujeito em
sociedade exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este como realidade
objetiva. (BERGER & LUCKMANN, 2011).
O indivíduo não nasce membro de uma sociedade, mas sim apto a tomar parte da
dialética desta. Processo este que abarcará o ambiente em que o sujeito será socializado,
sendo o ponto inicial deste processo a interiorização- a apreensão de um acontecimento
objetivo dotado de sentido, por meio da manifestação subjetiva de outrem. A
subjetividade do outro é acessível e base da interiorização que passa a ser a base
primeira da “apreensão do mundo como realidade dotada de sentido” (BERGER &
LUCKMANN, 2011, p. 168)
Por meio da interiorização, o indivíduo não só compreende a subjetividade do
outro como também o meio em que vive e este meio, por sua vez, passará também a ser
o seu mundo. Somente depois de acessar a interiorização é que o sujeito se torna
membro da sociedade. O processo pelo qual isto se realiza chama-se socialização,
definido como a introdução do indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou setor
dela. A primeira socialização que o sujeito experimenta na infância acontece junto às
figuras centrais, aquelas mais próximas nesta fase de vida (por exemplo: pai e mãe).
Posteriormente ocorre a socialização secundária que é o processo que introduzirá o
sujeito, já socializado, a novos setores do mundo objetivo da sociedade. Cabe ressaltar
que a socialização secundária decorre da forma como se deu a socialização primária,
como os elementos subjetivos foram apreendidos em forma de outros significativos e o
modo como junto a estes decorreu a sua mediação com o mundo.
76
É a percepção destes “outros significativos” que irá permear a forma que se
percebe o mundo (incluem-se também tradições e culturas). A interiorização dos
elementos do mundo ocorrerá pela identificação com os outros significativos- a criança
absorve os papéis destes e os interioriza por identificação de modo dialético.
Importa-nos mais aqui (...) o fato do indivíduo não somente absorver os
papéis e atitudes dos outros, mas nesse mesmo processo assumir o mundo
deles. De fato, a identidade é objetivamente definida como localização em
um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com
este mundo. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 171)
Desta forma, entende-se que as identificações sempre se realizam em mundos
sociais específicos. Apropriação subjetiva da identidade e do mundo social são aspectos
do mesmo processo de interiorização. (BERGER & LUCKMANN, 2011)
Não se nasce imigrante, torna-se um - Identidade e o fenômeno
migratório.
Para que se inicie este tópico da discussão, faz-se interessante a colocação de
Sayad (1998) quanto à imigração enquanto objeto sobre o qual pesam várias
representações coletivas. Segundo o autor, a imigração submete-se a estas
representações que, uma vez constituídas, transformam-se em realidades parcialmente
autônomas- “com eficiência tanto maior quanto essas mesmas representações
corresponderem a transformações objetivas, ou seja, estas condicionam o surgimento
daquelas.” (p. 57).
Em se tratando a identidade de importante categoria no auxílio do entendimento do
sujeito em sua totalidade, é relevante a compreensão das metamorfoses que os sujeitos
vivenciarão no contexto migratório. Ciampa (2001) ressalta a identidade compreendida
como metamorfose e nunca como algo cristalizado. Em sua visão, cada indivíduo
encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida,
no emaranhado das relações sociais.
Stuart Hall, importante autor ligado aos estudos culturais, corrobora com este
prisma, quando afirma:
77
(...) a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo (...) não algo
inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre
algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. (HALL,
2011, p. 39)
(...) Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada,
deveríamos falar de identificação e vê-la como um processo em andamento.
A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a
partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser
vistos por outros. (idem p.38-39)
De acordo com Stuart Hall (2011) o sujeito fala sempre a partir de uma posição
histórica e cultural específica. O autor discute para tanto, a ideia de identidade culturalesta enquanto exemplo de comunidade, que busca recuperar a verdade sobre o passado
na unicidade de uma história e de uma cultura partilhadas. Hall, em sua concepção de
identidade cultural, refere a questão tanto do tornar-se quanto de ser. Não significa
negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que ao reivindicá-la, pode-se
reconstruí-la; o passado sofre constante transformação na forma do presente. Esse
passado é parte de uma “co-munidade imaginada57” comunidade de sujeitos que se
apresentam como sendo um “nós”.
O autor argumenta que construída na diferença, a identidade não tem significado
fixo – não é completamente fixa ou completa, de modo que sempre existem formas de
deslizamento- com esta posição Hall enfatiza a fluidez da identidade. “Ao ver a
identidade como um ‘tornar-se’ visa àqueles que são capazes de posicionarem-se a si
próprios e de reconstruir e transformar identidades históricas herdadas de um suposto
passado comum”. (WOODWARD, p. 28)
Não se pode pensar a identidade sem sua base na constituição de sujeito
construído históricamente. Para Castells (1999), a construção da identidade vale-se da
matéria prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e
reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e
57
Para maior esclarecimento acerca das comunidades imaginadas consultar Benedict AndersonComunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das letras, 2008. “Mais que inventadas, as nações são
imaginadas, no sentido de que fazem sentido para a alma e constituem objetos de desejos e projeções”
(Anderson, 2008, p.10)
78
revelações de cunho religioso. Todos estes materiais são processados pelos indivíduos,
grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências
sociais e projetos enraizados na sua estrutura social. Logo, quem constrói a identidade
coletiva e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes
do conteúdo simbólico desta identidade, bem como, seu significado para aqueles que
com ela se identificam ou dela se excluem. “A construção da identidade sempre ocorre
em um contexto marcado por relações de poder.” (CASTELLS, 1999 p. 24).
Neste contexto, em se tratando das relações de poder existentes nos diversos
campos sociais58 tem-se na teoria crítica da sociedade, um aporte que ilumina a
compreensão do modo como identidades se constituem. A estrutura lógica da teoria
crítica capta a dimensão histórica dos fenômenos, dos indivíduos e das sociedades.
Também nessa lógica, trabalha inicialmente com determinações abstratas. Ao tratar o
momento histórico, parte de uma concepção da economia baseada na troca. Os
conceitos marxistas de mercadoria, valor, dinheiro, acumulação podem funcionar como
conceitos gerais aos quais uma realidade concreta pode ser assimilada. A teoria crítica
procura integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado, relacionando-o sempre
com o conhecimento que já se tem do homem e da natureza naquele momento histórico.
(FREITAG, 1986)
A teoria começa, pois, com uma idéia relativamente geral da troca simples de
mercadorias, representada por conceitos relativamente gerais. Pressupondo todo o
conhecimento disponível e assimilando todo o material resultante de pesquisas próprias
e alheias, procura mostrar como a economia de troca nas condições atualmente dadas,
conduz necessariamente ao agravamento das contradições na sociedade, o que na época
da criação do Instituto de Investigações Sociais em Frankfurt (Institut fuer
Sozialforschung) foi um grande tema, que levava a guerras e revoluções. (FREITAG,
58
Woodward (2003, p. 30) aponta os “Campos sociais” em alusão a Pierre Bourdieu. Os campos sociais
englobam famílias, grupos de colegas, instituições educacionais, grupos de trabalho, partidos políticos
etc. Os sujeitos participam destes, exercendo variados graus de escolha e autonomia, cada um contendo
seu contexto material e um conjunto de recursos simbólicos. Uma casa é o exemplo de um espaço onde
as pessoas vivem diferentes identidades familiares.
79
1986). A teoria crítica abarca tais fenômenos em sua compreensão sócio-histórica. O
teórico não tradicional assume a condição de analista e crítico da situação, procurando
colaborar na intervenção e no redirecionamento do processo histórico em favor da
emancipação dos homens em uma ordem social justa e igualitária. Para Horkheimer,
praticar teoria e filosofia é algo inseparável da ideia de nortear a reflexão com base em
juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a autonomia do homem.
(FREITAG, 1986; SLATER, 1978)
Tais contradições na sociedade levam, ainda no momento atual, a guerras e
conflitos59, bem como, fluxos migratórios são parte integrante e também consequente
deste processo que decorre, além dos conflitos em si, em mudanças econômicas,
mudanças nas relações de trabalho e no relacionamento entre as pessoas envolvidas:
aqueles que migram, aqueles que permanecem em suas culturas e aqueles que convivem
(ou virão a conviver) com os “estrangeiros”.
Segundo Guareschi et al. (2003) e Ulrich Beck (1999) mudanças trazidas pela
globalização envolvem a interação entre fatores econômicos e culturais, promovendo
rápidas mudanças sociais e deslocamento de culturas. Tais mudanças certamente abalam
a vida local. Local já sem identidade objetiva fora de sua relação com o global, em
resposta decorre uma tendência à homogeneização60 da cultura.
Questiona-se o fenômeno migratório aqui compreendido, não como mero
deslocamento de pessoas a espaços diversos, mas este reconhecido como agente da
hibridização de culturas que, ao se misturarem em contexto possibilitado pela
globalização, abrem portas para a manutenção de ideais xenofóbicos, fruto da não
59
Há diversos exemplos na atualidade que ilustram esta questão, como os conflitos ligados ao advento
do 11 de setembro nos Estados Unidos, a Primavera árabe, a guerra civil na Síria entre outros.
60
Cabe a discussão de Berger & Luckmann (2005) sobre a crise de sentido vigente na sociedade
moderna. “Talvez o fator mais importante no surgimento de crises de sentido na sociedade e na vida do
indivíduo não seja o pretenso secularismo moderno, mas o moderno pluralismo. Modernidade significa
um aumento quantitativo e qualitativo da pluralização. São conhecidas as causas estruturais desse fato:
crescimento populacional e migração e, com isso, um aumento de cidades- pluralização no sentido físico
e demográfico; economia de mercado e industrialização que misturam pessoas dos mais diferentes tipos
e que as forçam a chegar a um entendimento mais ou menos pacífico (...).” (p.49)
80
incorporação destas pessoas em movimento, das necessidades do mercado e das
dificuldades com a receptação do que difere. “O outro cultural é sempre um problema,
pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade. A questão da
identidade, da diferença e do outro é um problema social e, ao mesmo tempo
pedagógico (...)”. (SILVA, 2002, p. 97)
Almeida (2005) refere o desenvolvimento do indivíduo em uma relação dialética
entre a singularidade e a individualidade. Expõe, como exemplo, a individualidade
segundo a ótica de Juergen Habermas: “a individualidade não é pensada, em primeira
linha, como singularidade, (...) mas como realização própria, - e a individualização
como uma realização própria do indivíduo (HABERMAS, 1990 apud ALMEIDA, 2005
p. 33).
Habermas considera o agir orientado para o entendimento como possibilidade de
existência de uma sociedade livre de coerção. As pessoas, através do consenso
propiciado pelas ações comunicativas, viabilizam a própria reflexão e por sua vez,
autonomia. Nas palavras do autor:
Somente na medida em que crescermos no interior desse ambiente social,
poderemos constituir-nos como indivíduos capazes de agir de maneira
responsável e desenvolver pelo caminho da internalização dos controles
sociais a capacidade de seguir por conta própria as expectativas tidas como
legítimas ou de ir contra elas. (HABERMAS, 2002, p.215)
De acordo com Habermas, tornar-se indivíduo leva em conta a socialização do
sujeito em seu meio social, sempre mediado pela linguagem. Contudo, a individuação
ocorre por vezes de modo forçado, irrefletido. O indivíduo tem que se adequar para
estar e viver em sociedade tem de aceitar normas e regras para a vida comum como que
em um “engolir goela abaixo” (CIAMPA, 2012). Por outro lado, o sujeito que consegue
transpor a individuação acrítica se individualiza. Sabe, portanto, separar o que é seu
daquilo que foi imposto.
(...) os sujeitos precisam criar suas formas de vida integradas socialmente
reconhecendo-se reciprocamente como sujeitos capazes de agir
autonomamente e, além disso, como sujeitos que são responsáveis pela
continuidade de sua vida, assumida de modo responsável. (HABERMAS,
2002 p. 233)
81
Exemplos de individualização são trazidos por nossa colaboradora, nos trechos
que seguem:
“(...) então aquilo foi despertando em mim uma ideia de que não era pra eu
me dirigir pra esse lado, entendeu, uma ideia assim de que eu tinha que ter
profissão, tanto que sou a primeira mulher da família a ter diploma , um
curso superior, a trabalhar fora, a primeira a separar né, então tem isso e eu
acho que fui ficando assim. eu tinha isso sempre claro, que eu tinha que ser
uma pessoa assim, quando falavam esse negócio de “não varre que você vai
ter a vida inteira pra fazer isso” eu já pensava não, não quero fazer isso a
vida inteira, já imaginava, falava não, não quero, entendeu?”(S.)
“(...) Eu vivi essas coisas aí e tenho, exatamente por ter essa formação
histórica, eu consigo ver minhas origens claramente, meus movimentos, os
movimentos que a família fez, pra lá, pra cá (...). Então mais aí, essa
independência econômica, financeira que eu sempre tive me deu mais
independência, xingar a pessoa, brigar, a universidade, briga em empresa,
isso realmente faz a diferença, eu acho que fez a diferença eu acho que eu
vivi assim, ainda vejo, eu espero continuar assim, vendo o que ta
acontecendo, entendeu?(S.)
“O meu irmão mais velho, tem a nacionalidade austríaca, ele tem eu nunca
pediria, jamais, que acho assim terrível, a gente já viveu muita coisa, viveu
na ditadura e tal, terrível e agora que tá moleza viver no Brasil, não vou
pedir outra nacionalidade, eu sou contra, eu não quero pedir essa
nacionalidade.” (S.)
Vivenciar papéis em uma nova realidade
Ao se tratarem questões ligadas à imigração e ao relacioná-las com a
constituição de identidades, propõem-se também noções de personagem sugeridas por
Ciampa (2006). O personagem não perde a relação com o papel em que atua. Numa
linguagem dramatúrgica, somos atores sociais quando desempenhamos papéis sociais
determinados. Porém, eventualmente, além de simples ator, cada um pode construir sua
personagem, com maior ou menor criatividade, tornando-se assim também autor. De
alguma maneira, esta noção de personagem contém sempre algum grau de transgressão,
porque assim se deixa de seguir simplesmente o que é convencionalmente posto. É uma
transgressão que ao mesmo tempo exige criatividade, pois, ao abandonar o
convencional, há que haver originalidade. “Logo, uma identidade concretiza uma
política e dá corpo a uma ideologia” (CIAMPA, 2006, p.10).
Almeida (2005) acrescenta que a interpretação de papéis viabiliza a participação do
indivíduo em seu meio social uma vez que aprender um papel implica na aquisição de
elementos cognitivos e afetivos, embutidos também de normas, valores e emoções
82
vinculados ao papel interpretado. Fonseca, 1988 citado por Almeida (2005, p. 56)
salienta: “o desempenho de papéis entranha-se em nossa existência cotidiana até o nível
de formas extremamente diluídas (...) estruturam pontualmente nossas ações, até os
níveis mais sutis.”
Pensando-se o fenômeno migratório à luz da identidade de papel desempenhada
pelo imigrante em sua condição no novo país, é importante destacar-se como este
imigrante virá a alcançar o desenvolvimento da sua identidade do EU (emprestamos este
conceito de Habermas, 1983). Na leitura de Pescatore (1989), a identidade do eu tratada
por Habermas, coloca o sujeito se descobrindo como alguém independente dos papéis
que desempenha e que, justamente assim, se torna pessoa, passando de uma identidade a
partir do desempenho de papéis, para uma identidade do EU- a ação adquire nova
forma: Na fase em que adquire a identidade do eu, o sujeito é capaz de compreender e
aplicar normas reflexivas e a partir de princípios, distingue autonomia de heteronomia.
Porém, nem todos chegam à identidade do eu, pois é a identidade de papéis colocada
pela sociedade que muitas vezes se mantém. A identidade de papéis pode ser mantida e
estimulada, ganhando forma de identidade pressuposta, por vezes associada a uma
trama que prende o indivíduo à repetição e assim, à mesmice de seu personagem que o
impede de alcançar a mesmidade.
Ao refletir acerca de tais questões, inspira-nos mais uma vez, Ciampa (2003)
quanto ao sentido da vida, a ser entendido como luta ininterrupta e incansável pela
emancipação humana:
A identidade, individual ou coletiva é sempre a história de nossa
metamorfose em busca de emancipação que nos humanize. A emancipação,
que dá o sentido ético à metamorfose, pode ser impedida ou prejudicada pela
violência, pela coerção, invertendo a metamorfose como desumanização. É
assim que se revela a natureza intrinsecamente política da identidade. A
destruição, a degradação e a indignidade de pessoas e grupos são formas de
metamorfose, em última análise, provocadas pelo modo heterônomo por um
poder interiorizado subjetivamente e- ou apenas- exteriorizado
objetivamente. Ou seja, quase sempre, senão sempre, há um conflito político
que se estabelece entre a pretensão de uma identidade social, de um lado,
como auto-afirmação e hetero- reconhecimento de um projeto emancipatório
e, de outro, hetero-afirmação de um projeto coercitivo ou de dominação. (p.3)
83
O autor entende a metamorfose humana como progressiva e infindável
concretização histórica do vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das
limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades
(CIAMPA, 2012). É desta forma, no enfrentamento e na superação das dificuldades, que
seres humanos podem nascer e renascer para a vida. A partir da compreensão do
processo de metamorfose enquanto construção das personagens pode-se vislumbrar a
questão da emancipação enquanto resultado das metamorfoses do eu.
Metamorfosear pode ser entendido como reconhecer-se e ser reconhecido como
humano auto determinar-se (CIAMPA, 2012). O projeto emancipatório está relacionado
ao momento histórico e social, bem como, com a inserção do indivíduo nestes. O
desenvolvimento da identidade nestes âmbitos estará ligado ao projeto de emancipação
individual, mas também com suas relações ao longo da vida.
(...) a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente
individual, mas acima de tudo relacional. Ela se constitui a partir de nossas
relações sociais, definindo, consequentemente, nossa localização na
sociedade. (CIAMPA, 2003 p. 8).
Como as experiências migratórias marcam a vida dos sujeitos? Além disto,
questiona-se a condição de opressão muitas vezes vivenciada por estrangeiros em suas
experiências cotidianas no novo país de residência e a influência disto na constituição
de suas identidades.
Poderia esta condição colaborar com o surgimento de possibilidades
emancipatórias na luta por sobrevivência e melhores condições de vida? Na busca pelo
descobrimento do mundo, realização de sonhos e vivência de liberdade, qual é o
significado de ser um imigrante? Propõe-se ir além, pensando-se a condição específica
destes sujeitos: O que significa estar preso a uma condição da qual não se pode fugir e
nem se pode negar: - a própria origem! Como se configura o futuro a partir desta
condição posta? Desta forma, como se dá a constituição da identidade do imigrante?
Como ela é elaborada em seu cotidiano e por que compreender este processo é
relevante?
84
Pescatore (1989) explica que, na busca da concepção de si mesmo, o sujeito
recolhe em si valores que constituem o ambiente social e integra as concepções que os
outros têm dele. Esta busca por si mesmo e a necessidade de inventar o que deve ser,
caminha junto à internalizações sociais ocorridas desde a infância e com consequentes
papéis assumidos e desempenhados até então. Logo, ao migrar, o sujeito traz uma
concepção de si que deverá ser de alguma forma reestruturada no novo país, de acordo
com a nova realidade e também com o novo papel que desempenha.
Sayad (1998) ao explanar a condição do imigrante traz reflexões que
contemplam as colocações supracitadas:
(...) contradição fundamental, que parece ser constitutiva da própria condição
do imigrante, impõe a todos a manutenção da ilusão coletiva de um estado
que não é nem provisório nem permanente, ou, o que dá na mesma, de um
estado que só é admitido ora como provisório (de direito), com a condição de
que esse “provisório” possa durar indefinidamente, ora como definitivo (de
fato), com a condição de que esse “definitivo” jamais seja anunciado como
tal. E, se todos os atores envolvidos pela imigração acabam concordando com
essa ilusão, é sem dúvida porque ela permite que cada um componha com as
contradições próprias à posição que ocupa, e isso sem ter o sentimento de
estar infringindo as categorias habituais pelas quais os outros pensam e se
constituem os imigrantes, ou ainda pelas quais eles próprios se pensam e se
constituem (...). (p.46)
De acordo com o autor, a sociedade daria a devida importância (lê-se existência)
aos imigrantes apenas quando constituem um “problema”, ou seja, quando não mais
fazem aquilo que se espera deles (trabalhar, por exemplo), ou mesmo quando começam
a buscar participação na vida social em contextos de atuação política. Desta forma,
pensa-se o imigrante situado entre o ser e o não ser social 61. Em resposta a tal
61
Em evento intitulado “Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio”
discutiram-se políticas públicas relacionadas às questões dos imigrantes e refugiados. Neste debate foi
feita a relação entre imigrantes e a loucura. A palestrante, Professora Felícia Knobloch discutiu sobre a
loucura como sendo o grande tema em saúde pública nos anos 80 e 90 e atualmente, o imigrante é
colocado junto ao “status” de louco, uma vez que é visto em todas as instituições por onde passa como
portador da síndrome stress pós-traumático, e assim enquadrado como sofredor de um problema
mental originado pelo “trauma da imigração.” Parte-se do pressuposto que a imigração em si será
sempre problemática, ocasionadora de grandes problemas para o indivíduo e sociedade. Os
desdobramentos disto para a identidade do sujeito, bem como, os impactos emocionais são enormes.
(Simpósio Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio. 8 e 9 de novembro,
2013. Memorial da América Latina. Coordenação: Miriam Debieux Rosa, Sandra Luzia de Souza Alencar,
Taeco Toma Carignato, IIana Mountian, Luiz Palma).
85
problemática gerada pelo entorno, o indivíduo pode responder com a mesmice de seu
personagem, encarnando o que dele se espera.
Ainda nas palavras deste mesmo autor:
(...) é por fim, a sociedade de imigração que, embora tenha definido para o
trabalhador imigrante um estatuto que o instala na provisoriedade enquanto
estrangeiro e que, assim, nega-lhe todo o direito a uma presença reconhecida
como permanente, ou seja, que exista de outra forma, que não na modalidade
de uma presença apenas tolerada, consente em tratá-lo, ao menos, enquanto
encontra nisso algum interesse, como se esse provisório pudesse ser
definitivo ou pudesse se prolongar de maneira indeterminada. (SAYAD,
1998, p.46)
Com a desculpa do uso do etnocentrismo para descrever qual imigrante é
“educável”, ou “consertável” ou “evoluível”, sobretudo quando este é reforçado por
aqueles que estão na posição de dominantes é assim todo o incentivo ao discurso
proferido sobre todas as iniciativas moralizantes às quais os migrantes são submetidos.
Salienta-se a inter-relação que se pode fazer entre os estudos de identidade e
suas contribuições para a compreensão das relações migratórias, trazendo a junção
destas idéias para o que se entende constituir-se de um amplo projeto de Psicologia
Social; Traduzido nos dizeres de Guareschi et al. (2003, p. 32):
Uma das marcas da Psicologia Social, tomada como um projeto mais amplo é
a importância que esta deve dar ao contexto onde se dá a ação social, ao foco
localizado e historicamente específico, à atenção às especificidades e
particularidades articuladas a uma conjuntura histórica determinada,
produzindo, então, pesquisas e teorias engajadas nas práticas e lutas sociais e
nas diferenças culturais que constituem e são constituídas através das
relações das pessoas. O interesse central da pesquisa dentro da área da
Psicologia Social é perceber intersecções entre as estruturas sociais, os
grupos sociais, a cultura, a história e as relações que as pessoas constroem e
passam a ser construídas por elas (...).
Finalmente, a importância da concepção de identidade, junto aos fenômenos
migratórios, proporciona a criação de novas formas do coletivo e também propicia a
reflexão acerca dos modos de socialização dos indivíduos em um mundo globalizado.
Lembrando que o conhecimento do sujeito deve ser deste em movimento, possuidor e
também buscador de possibilidades emancipatórias e que se faz conhecer,
necessariamente, por sua subjetividade.
86
Capítulo 3
Anamorfose e o sujeito imigrante: usos do conceito na compreensão
das (de)formações identitárias
Uma fronteira não é o ponto onde algo
termina,
mas,
como
os
gregos
reconheceram, a fronteira é o ponto a
partir do qual algo começa a ser fazer
presente. (Martin Heidegger)
As ideias a serem desenvolvidas neste capítulo baseiam-se no estudo de Juracy
Armando Mariano de Almeida (2005) intitulado: “Sobre a anamorfose: identidade e
emancipação na velhice”. Propõe-se relacionar suas proposições com a constituição das
identidades de imigrantes, tomando-se a imigração como problemática que decorre no
trânsito entre sociedades e que suscita transformações sucessivas, tanto naqueles
envolvidos diretamente com o movimento migratório, como também para o entorno.
Almeida propõe uma exploração teórica do uso da noção de anamorfose nos
estudos de identidade humana. Realiza para tanto, analogias do modo como esta noção é
usada nas artes. A anamorfose é trabalhada pelo autor como “lente para o estudo dos
fenômenos de dominação e exclusão social que recaem sobre as chamadas minorias
sociais- afetando os modos como suas identidades são construídas.” (ALMEIDA, 2005,
em resumo de sua tese- sem número de página)
O autor propõe a utilização dos elementos teóricos da identidade para pensar a
ação coletiva, não de indivíduos em si, em seus enfrentamentos de situações pessoais
restritivas ou como parte de tendências sociais, mas sim como integrantes de categorias
sociais sujeitos a processos de dominação. Aprofunda desta forma, possíveis
aproximações entre a identidade e seu entorno social, tratando como ponto nevrálgico, a
discussão das relações entre processos de emancipação individual e grupal e também
possibilidades de mudanças nas relações sociais existentes, constituindo o que pode ser
considerado um processo capaz de mudar formas de sociabilidade e de favorecer que
seres humanos sejam reconhecidos como sujeitos. “Trata-se de considerar as
possibilidades de um conjunto de práticas e valores transcender particularismos,
87
fomentando a busca por novos critérios de existência e de convívio.” (ALMEIDA,
2005, p. 3)
O foco da perspectiva em anamorfose é tomado pelo autor a exemplo desta
inicialmente, como representada pela arte (a anamorfose pode ser utilizada ainda em
outras áreas do conhecimento tais como Geometria, Geologia, Matemática, Arquitetura
e Geografia). A perspectiva adotada por Almeida (2005) “Trata-se de uma inovação
estética cujos pioneiros são Donatello (1386-1466, escultor), Brunelleschi (1377-1446,
arquiteto), Masaccio (1401-1428, pintor) e Alberti (1404-1472, autor do tratado Della
pintura, datado de 1435), os artistas Florentinos do Renascimento. Esta inovação foi
consagrada nas pinturas de Fra Angélico, Botticelli, Leonardo da Vinci e
Michelangelo.” (ALMEIDA, 2005, p.96). Tal forma de representação de objetos tratouse de uma nova técnica, diversa daquela adotada na pintura durante a Idade Media, cuja
percepção baseava-se na religiosidade do mundo. Nesta dimensão renovada, os valores
são traduzidos no tamanho entre as figuras, suas posições e também no material
utilizado para pintar. Logo, como colocado por Martins (apud ALMEIDA, 2005, p. 96)
“valores e costumes, por conseguinte, apresentam-se correlatos a ordenações visuais”.
Baxandall citado por Almeida (2005, p. 98) retrata a adoção da perspectiva na
pintura como tradução de um modo de pensar existente à época que, por um lado,
predisporia o olhar das pessoas ao entendimento das obras de arte que se utilizassem
dessa técnica e também, permitiria aos pintores explorarem esse recurso, certos de que
suas produções seriam compreendidas pelos seus apreciadores, sem causar grande
estranhamento. Na Renascença, era comum a ideia de medida, a utilização da geometria
e o cálculo matemático de proporções, elementos usados no comércio local e nos
projetos arquitetônicos da cidade: estes elementos favoreceriam certo “estilo cognitivo”
propício à difusão e ao entendimento do novo padrão pictórico. (ALMEIDA, p. 98,
aspas do autor)
Silva Júnior (2001) apud Almeida (2005, p.31) propõe uma explanação do que
ocorre com a figura em anamorfose:
A anamorfose é uma figura em perspectiva deformada que, para ser
reconhecida, exige do observador um deslocamento, um abandono de sua
88
posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista. Este ponto é
sempre extremamente preciso, mas desconhecido, e sua descoberta revela, na
figura ali incompreensível, formas finalmente reconhecíveis.
De acordo com Almeida, o uso da anamorfose como perspectiva corresponde a
uma nova organização da experiência visual correspondente na arte a um sentido
admitido como uma potência do ser, possibilitando aos sujeitos desenvolverem formas
de autoconsciência. A perspectiva é o “fruto de uma combinação entre arte e ciência,
que tem na observação e descrição do referente exterior seu modo peculiar de afirmar
um universo laico e empírico, não mais sujeito às constrições da religião” (FABRIS,
1998, apud ALMEIDA, 2005, p. 99). A anamorfose propõe uma nova
proporcionalidade de visão da vida, como uma reiteração de formas de acordo com o
olhar do expectador e também do lugar de ele onde olha. Supõe um novo olhar da
mesma forma que também, uma deformação deste.
(...) o modo como identidades são pensadas e tratadas socialmente, ou seja,
como deformações dos modelos estabelecidos e hegemônicos nas relações
interpessoais, surgindo aos olhos das pessoas comuns como distorções dos
modos de ser considerados corretos e desejáveis; em outras palavras, a
anamorfose corresponde ao significado atribuído a identidades pessoais e
grupais que ultrapassam os limites consensuais. Por extensão, a noção
também se refere ao modo como as pessoas podem se sentir quando vistas e
avaliadas pelos outros sob o prisma dos modelos identitários dominantes.
(ALMEIDA, 2009, p.3)
Berger (1999) apud Flores (2007) salienta:
A maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que
acreditamos. (...) Nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre
olhando para a relação entre as coisas e nós mesmos.
Flores (2007) coloca a significação da representação do mundo e das coisas do
mundo como implicada com a forma de se olhar, de se perceber e, portanto, conceber o
mundo. A forma como estas representações se dão é histórica e dependem ao mesmo
tempo em que são parte da cultura. O espaço é o que um grupo humano toma como
possível e em sua possibilidade interpretada, o representa. Modos de olhar são culturais
e interagem com as formas de representação.
(...) a formatação de um modo de olhar que busca a harmonia, a ordem, o
acordo, a similaridade, a identidade e a significação intrínseca às coisas.
Além disso, a convicção de que há sempre uma dualidade no mundo: o real e
o aparente. E de que o aparente, que se dá na representação, é tão semelhante
89
ao real que chega a valer por ele. Ele é tão verdadeiro como o que está por
detrás da representação. Desse modo, consideramos que por trás de um
burguês há uma classe burguesa, uma forma de ser burguês; por detrás de
uma mulher há sempre uma natureza materna (...) há uma estrutura básica do
pensamento que se construiu e que se consolidou de tal forma que já não
mais questionamos esses pressupostos. (FLORES, 2007, p.126)
Segundo Flores, existe uma relação dicotômica entre saber e o olhar em relação
ao mundo externo e ao sujeito. É mister que o modo de olhar e representar é trabalhado,
construído e fabricado socialmente e resulta, por sua vez, em novas ordens de
representação. Ordens estas que são ditadas por um a priori “relação de identidade, que
se dá a partir de um modo perspectivado de olhar.” (FLORES, 2007, p. 129)
Para olhar o mundo, o sujeito deve posicionar-se corretamente (lê-se de acordo
com regras e normas sociais) e o papel da anamorfose aqui “está ligado ao modo
peculiar de sentir e se relacionar com o mundo, de olhar e de saber.” (FLORES, 2007, p.
134)
Em sendo a migração processo, foco nesta discussão, propõe-se pensá-la a partir
da concepção de Sayad (1998). O autor conceitua imigração como um deslocamento de
populações por todas as formas de espaços socialmente qualificados (por exemplo, o
espaço econômico, político- espaço de nacionalidade e o espaço geopolítico, espaço
cultural, o espaço linguístico, espaço religioso etc.).
Não existe um discurso sobre o imigrante que não seja um discurso imposto;
mais do que isto até mesmo a imigração enquanto problemática da ciência
social é uma problemática imposta. E uma das formas dessa imposição é
perceber o imigrante, defini-lo, pensá-lo ou, mais simplesmente, sempre falar
dele como um problema social (...). (SAYAD, 1998. p. 56)
O imigrante é reconhecido, muitas vezes, como alógeno, um não nacional e que
em alusão a este título passa a estar excluído do campo político.
(...) o imigrante tem a obrigação de ser reservado: a forma de polidez que o
estrangeiro deve adotar e que ele se sente na obrigação de adotar- constitui de
uma dessas malícias sociais pelas quais são impostos imperativos políticos e
consegue-se a submissão a esses imperativos. (SAYAD, 1998, p.57)
90
Sayad retrata um quadro que implica no modo como o grupo social espera que
o indivíduo estigmatizado se apresente ou se enquadre62. Desta forma, o sujeito faz
parte do todo social, mas sempre com ressalvas, sempre de um “modo especial”.
Ciampa (2002) organiza esta relação quando discute as identidade políticas e as
políticas de identidade. O autor levanta importante questionamento acerca de como
características “embutidas” no sujeito (às quais se espera que o mesmo corresponda)
permitam ser possível o desenvolvimento da autodefinição do eu, de modo autêntico. A
questão que se coloca, neste contexto, seria sobre a existência de espaços para o
desenvolvimento de autonomia na condição de imigrante? Se tais espaços são possíveis,
quais os desdobramentos deste processo?
O estudo das políticas de identidade conforme proposto por Ciampa (2002) e
também por Almeida (2005) em alusão às questões anamórficas, possibilita a discussão,
sobretudo, de lutas por emancipação em diferentes grupos sociais, cujas ações revelam
formas de opressão, cada vez mais veladas na sociedade totalmente administrada.
Lima (2009) em reflexão sobre as proposições de Almeida (2005) quanto à
anamorfose, refere condições sociais e pessoais restritivas, sentidas e vividas pelos
indivíduos como deformações de seus projetos (anamorfoses, portanto). Á luz de tais
formulações, voltamo-nos a condição do imigrante esta, primordialmente dificultosa
visto que não se espelham as identidades pressupostas pela sociedade (imigrante como
aquele que vai trabalhar e se comporta “de acordo”, obedece, assimila-se à cultura e
depois vai embora, por exemplo) ao mesmo tempo em que passam por novas
experiências pessoais e sociais em si, geradoras de crises identitárias.
Quanto às experiências geradoras de possíveis crises identitárias, em acordo com
as colocações acima, segue exemplo relatado por nosso colaborador, que é brasileirodescendente de alemães- e não confia em brasileiros:
“Olha só, isso tem tudo a ver, você confia em brasileiro, gente que é
brasileira que todos esses (...) que me sacanearam eram brasileiros(...) Toda
62
Sugerem-se os apontamentos de E. Goffman (1988) sobre Estigma.
91
vez que eu dependi de um brasileiro ou brasileira (...) eu me ferrei,
entendeu?” (M.)
Dubar (2009) ressalta a existência do dilema de naturalização proveniente do
desenraizamento e da construção identitária decorrente do processo que envolve aquele
que migra e assim passa a vivenciar o “multipertencimento” (p.220). O autor considera
este momento como propulsor de crise e esta incitaria, portanto, novos modos de
revelação do sujeito a si mesmo, bem como, necessidades de reflexão e luta, resultando
por fim em aquisição de liberdade em um processo de “inventar a si mesmo com os
outros” (idem p. 255). Todavia, inventar o novo a partir do contato com o outro
dependerá também da relação de significação imposta pelos olhares (representações)
existentes na relação.
O imigrante não é considerado “um nacional” e isso justifica a economia de
exigências que se tem para com ele em matéria de igualdade de tratamento frente à lei e
na prática. Faz-se presente uma lógica de segregação e de dominação geradoras de
racismo63- e falta da igualdade de direitos. “(...) usando-se como pretexto as
desigualdades de fato e a igualdade de fato, por sua vez, torna-se impossível devido à
desigualdade de direito” (SAYAD, 1998, p. 59).
Nesta perspectiva, sugere-se que o imigrante só tenha existência na sociedade
em função do trabalho, ou seja, este é concebido ao trabalho de modo indissociado. “(...)
um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho
provisória, temporária, em trânsito (...) é um trabalhador revogável a qualquer
momento”. (SAYAD, 1998, p. 54-55). Aqui, anamorfose clara de seus projetos, de suas
existências.
63
Para Boaventura de Souza Santos “o racismo esta a progredir como parte do desenvolvimento do
sistema mundial capitalista. (...) o racismo resulta da divisão entre força de trabalho central e periférica,
ou seja, da etnicização da força de trabalho como estratégia para remunerar um grande setor da força
de trabalho abaixo dos salários capitalistas normais, sem com isto correr o risco da agitação política.”
(2010b, p. 145)
92
O imigrante é impensável sem o trabalho e a dificuldade deste modo, consiste na
conciliação de dois objetos em sua essência inconciliáveis: desempregado 64 e imigrante.
É de fato um “não lugar”, uma “não existência” do indivíduo e, portanto, assumir
legitimidade para estar no país de permanência só se torna possível se ligado ao
trabalho. O paradoxo deste modo de existência, contudo, está no papel exercido
socialmente pelos imigrantes enquanto sujeitos que “têm função”. Função esta,
determinada não por suas características, aspirações ou aptidões pessoais, mas pela
ordem sistêmica vigente; uma ordem mediada por ditames econômicos e interesses que
vão muito além dos sujeitos que adentram um novo país. Logo:
Enquanto a expansão econômica, grande consumidora de imigração,
precisava de uma mão de obra imigrante permanente e sempre mais
numerosa, tudo concorria para assentar e fazer com que todos dividissem a
ilusão coletiva que se encontra na base da imigração (...) ao reconhecer a
utilidade econômica e social dos imigrantes, ou seja, as “vantagens” que eles
ofereciam para a economia que os utilizava se queria agradecer-lhes ou ainda
defender seus direitos. (SAYAD, 1998, p.47)
A sobrevivência do imigrante, pensando-se as colocações até aqui abordadas,
dependeria, para Bhabha (2001) da descoberta de “como o novo entra no mundo”
(p.311), ou seja, a questão central é a elaboração de ligações através dos elementos
instáveis da vida- em encontro marcado com o intraduzível em uma reelaboração de sua
condição. Nestes termos, o indivíduo passaria ao estado de permanente estrangeiro no
país onde vive em contínua “provisoriedade do presente” (BHABHA, 2001, p. 297). O
que neste caso começa a ter relevância política é a “necessidade de passar além das
narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais” (idem p. 20). Os
entre lugares (termo cunhado por Bhabha) fornecem o terreno para a elaboração de
estratégias de “subjetivação singular ou coletiva que dão início a novos signos de
64
Conforme mencionado em nota anterior (nota 61), de acordo com proposições tratadas no Simpósio
Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio, o imigrante adquire também
o ”status de louco.”
93
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria
ideia de sociedade65”
(...) na sobreposição e deslocamento de domínios da diferença que as
experiências intersubjetivas e coletivas de nação, interesse comunitário ou o
valor cultural são negociados. De que modo se formam os sujeitos nos entre
lugares, nos excedentes da soma das partes da diferença (...) (BHABHA, p.
20)
Bhabha defende uma ideia de comunidades híbridas, uma vez que culturas
nacionais são construídas a partir da perspectiva de minorias destituídas (BHABHA,
2001, p.25). Há desta forma, uma revisão radical do conceito de comunidade humana
proposta pelo autor, sobretudo, quando este pensa o espaço geopolítico como realidade
nacional ou transnacional, que se interroga e se reinaugura com o constante trânsito
humano (BHABHA, 2001, p.25). Cabe lembrar também, que Friedrich Ratzel66 (18441904), em sua concepção de Geografia, inaugura a ideia de movimento como
característica central do mundo vivo, ou seja, o movimento como característica central
do homem e de como este, portanto, concebe o seu mundo (CLAVAL, 2006, grifo
nosso DP).
Desta forma, o sujeito deve ser compreendido como parte estruturante de sua
cultura, nas palavras de Geertz (1989) “o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo tece, portanto, a cultura pode ser assim assumida como
sendo estas teias e também a sua análise” (p. 4).
Para Thompson (apud
ESCOSTEGUY, 2004) cultura é uma rede de práticas e relações que constituem a vida
cotidiana dentro da qual o papel do indivíduo configura em primeiro plano, o autor
entende cultura como forma de luta entre formas de vida e olhares diferentes (grifo
65
Faz-se alusão à ideia de sociedade composta por homens em movimento, como concebe Silvia Lane
(1984, p.19) “(...) o homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da sua sociedade
(...).” O homem é movimento na manifestação de sua totalidade.
66
Geógrafo e etnólogo alemão, precursor da geografia política. Criou uma disciplina chamada geografia
humana e reconheceu a importância do papel desempenhado pela circulação humana. Maiores
informações ver CLAVAL, P. História da Geografia. Tradução de José Braga Costa. Lisboa: Edições 70,
2006.
94
nosso DP). Já no entendimento de Castells (1999) cultura e identidades são
interdependentes; o processo de construção de significados tem sua base em atributos
culturais, ou um conjunto de atributos culturais. Assim, a relação homem sociedade
envolve necessariamente movimento, seja como parte da cultura, levada para os
diferentes espaços de trânsito, como também sua recriação nestes, como novos espaços
de pertencimento. A relação cultura- movimento - migração67 é intrínseca ao homem.
As colocações de Almeida (2005) p. 83 iluminam as considerações acima
colocadas:
Movendo-se no tecido socialmente construído, o indivíduo pode estabelecer
as pontes e as mediações entre sua condição e suas possibilidades, tipificando
e ao mesmo tempo, individualizando sua trajetória. As relações entre a
biografia e o contexto social onde ela se desenrola, a sociedade em última
instância, têm múltiplas direções; não constituem vias de mão única. A
existência do projeto dificulta se não impede uma acomodação passiva do
sujeito diante das circunstâncias, provocando uma atitude de reserva, e
mesmo de resistência, nas suas relações com seu entorno social, isto é, com
seus outros significativos e com o meio social mais geral. Evidentemente, a
realização do projeto exige do indivíduo uma boa dose de criatividade a às
vezes de discernimento frente a oportunidades inesperadas para delinear uma
ação consequente, condizente com sua realidade. (Almeida, 2005, p. 84)
Almeida (2005) acrescenta
ainda a existência de um processo de
“desterritorialização dos eus” (p.69) devido a inadaptação e ao sentimento de
desorientação dos sujeitos frente às novas tendências e exigências da modernidade, que
substituem aquelas formas ou modos de ser que existiam e que eram de seu costume.
Segue um trecho relatado por um colaborador desta pesquisa, no tocante a
vivência da desterritorialização do eu:
“As minhas primas, que tem hoje 14, 15 anos, você já nota a contaminação
de brasileirismo nelas. Elas já estão no mesmo ritmo de não querer estudar,
aquelas coisas, achar que a vida é passear, transar, viajar etc. E isso eu
chamo de contaminação de Brasil, de ser brasileiro, sabe?” (M.)
Patarra (2006) menciona a ocorrência de uma “desterritorialização da identidade
social” (p.12) quando da transformação pelo sujeito “do antigo focus de submissão e
67
Sugere-se pensar a migração entre cidades, mundos etc., mas também migração de ideias, aspiraçõese por fim metamorfoses.
95
fidelidade em favor da sobreposição, permeabilidade e formas múltiplas de
identificação.” (p.12-13). Questiona-se se o mesmo ocorre com descendentes de
imigrantes, integrados no país de seu nascimento.
De acordo com a autora, na era da globalização o imigrante é visto ainda como
estrangeiro ou um quase cidadão. Ainda que a globalização estimule a mobilidade
frequente, o fluxo constante é daqueles que saem dos países pobres para os ricos, donde
se entende que o quase cidadão migrante o faz “estimulado” pelas facilidades
proporcionadas pela globalização, cuja real intenção, prevê o trânsito do capital e não de
pessoas. A imigração é discutida por Patarra como decorrente de movimentos ditados
pelas circunstâncias do país de origem, ou seja, não necessariamente há o desejo de
partir e estabelecer uma nova vida. No tocante ao mundo globalizado e às formas de
migração daí provindas, Appadurai (2009) realiza a análise crítica da extrema violência
coletiva formada neste contexto, como algo não exclusivo aos Estados totalitários,
tamanha semelhança.
O questionamento disparador de Appadurai contempla a tentativa de se
compreender como, em um período conhecido por “alta globalização” no capitalismo
tardio, se estabelece um período de violência em grande escala em um amplo leque de
sociedades e regimes políticos; globalização esta que propõe a circulação de pessoas,
mercados, bens e também culturas, traz consigo, muito aquém do “aumento de
liberdade” aparente, um tipo de devastação tanto quanto mascarado. De fato, na era da
globalização, a desigualdade mantém-se e nas palavras do autor “(...) só os partidários
mais fundamentalistas da globalização econômica ilimitada pensam que o efeito dominó
do livre comércio e o alto grau de integração de mercados e do fluxo de capitais entre
nações é sempre positivo.” (p.14)
Boaventura Santos (2010 b) retrata em panorama atual, o que se pode relacionar
às migrações no contexto da globalização e do capitalismo tardio:
A recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas está a
conduzir uma reformulação das inter-relações entre os diferentes vínculos,
nomeadamente entre o vinculo nacional classista, racial, étnico e sexual. Tal
reformulação é exigida pela verificação de fenômenos convergentes
ocorrendo nos mais díspares lugares do sistema mundial: o novo racismo na
96
Europa; o declínio geral da política de classe, sobretudo nos EUA, onde
parece substituída pela política étnica do multiculturalismo (...) o colapso
dos estados Nação, afinal, multinacionais e os conflitos étnicos no campo
devastado do ex império soviético, a transnacionalização do
fundamentalismo islâmico; a etnicização da força de trabalho em todo o
sistema mundial como forma de a desvalorizar etc. (SANTOS, 2010 p. 145)
O conceito de imigração substitui o que por muito tempo fora considerado como
conceito de “raça”. Para Balibar, citado por Santos (2010, p. 145), “o neo-racismo
europeu é novo na medida em que o seu tema dominante não é a superioridade
biológica, mas antes as insuperáveis diferenças culturais, a conduta racial em vez da
pertença racial.” (p. 145).
Na visão de Haesbaert, pensar multiterritorialmente seria a única perspectiva
para a construção de outra sociedade, mais universalmente igualitária e, ao mesmo
tempo,
mais
multiculturalmente
reconhecedora
das
diferenças
humanas.
(HAESBAERT, 2005, p. 6791)
Lima (2010, p. 206) levanta a hipótese de que o potencial da anamorfose “sofre
a neutralização na atualidade por conta de um reconhecimento perverso que reduziria as
identidades a personagens fetichizadas (...).” e desta forma, a proposta de um trabalho
crítico no estudo da identidade auxilia “o sentido de explicitar aquilo que o capitalismo
tardio tende a manter e reproduzir com base na dinâmica de reconhecimento das
identidades.” (p. 207)
No caso dos imigrantes, sua situação é instável desde a concepção do projeto de
migrar até as posteriores fases de adequação/adaptação à nova situação de vida. Além
deste motivo, provavelmente, também seja a partir das políticas de identidade
massificadoras que estes têm seu potencial emancipatório reprimido- as amarras sociais
os impelem de seguir, deformando seus projetos. Contudo, são estas personagens
anamórficas uma “espécie de deformação em relação ao que estava antes estabelecido
(...) gerando uma nova proporcionalidade.” (LIMA, 2010, p.201) devem-se encará-las
de outra perspectiva, com o olhar em paralaxe.
Á guisa de encerramento deste capítulo (mas não de nossas reflexões que
elencar-se-ão as ideias até manifestadas nas discussões que seguem os próximos
97
capítulos), apresenta-se uma última proposição de Almeida (2005) ressaltada por Lima
(2010, p. 203):
A anamorfose dá conta da constituição de identidades por parte de indivíduos
que procuram superar suas condições identitárias, as quais geram identidades
sem lugar na vida coletiva ou, em outros termos, uma contraditória
identidade desidentificadora.
98
Capítulo 4
Dando voz aos narradores. Significados e sentidos emanados quando
da pergunta “quem é você, quem pretende ser”?
O descendente por ele mesmo- para além do “alemão”- a construção de si no
cotidiano
“O narrador conta o que ele extrai da
experiência - sua própria ou aquela contada por
outros. E, de volta, ele a torna experiência
daqueles que ouvem a sua história"
(Walter Benjamin)
Até aqui foi apresentado o aporte teórico que apoia a pesquisa. A partir de agora
retratar-se-á o problema de pesquisa tal qual, compreendendo-se como a ascendência
alemã aparece nas histórias de vida de nossos sujeitos e como isto entremeia sua
constituição identitária à luz dos referenciais até aqui expostos. Analisar-se-ão
articulações das personagens encarnadas nos sujeitos (CIAMPA, 2001; LIMA, 2005) e
a partir destas, obter-se-ão diretrizes norteadoras para a compreensão da realidade
objetiva destes sujeitos no que envolve a normatividade e também a intersubjetividade.
Destas articulações serão possibilitadas ocorrências de re-posições ou mesmo superação
de personagens pelos indivíduos, apontando-se as metamorfoses de suas identidades em
seus diversos modos de apresentação.
Neste capítulo pretende-se, portanto, dar voz aos colaboradores interlocutores
desta pesquisa que em suas narrativas revelam pistas do caminho que percorreram e a
forma como teceram e tecem suas vidas. Respondendo às perguntas: quem sou eu?
Quem gostaria de ser? De que forma a ascendência alemã me afeta? Nossos narradores
falaram da sociedade enquanto realidade objetiva, produto e produtora do homem e
deste em constante movimento dialético nesta. Os narradores, ao falarem de si mesmos,
falaram também da sociedade e de um tempo, do modo como o interpretam e à
realidade, em confluência com a construção que fazem de si mesmos.
Vamos, portanto, analisar pela dialética. Temos que partir do empírico, mas a
reflexão teórica vai ser fundamental para acompanhar o concreto, do
99
contrário, não se sai do empírico. O empírico tem que se converter em
concreto e o concreto em múltiplas determinações, determinações não
casuais, mas categorias. Eu só posso apanhar o concreto se eu apanho cada
uma das suas determinações ou categorias- é uma propriedade essencial desse
concreto. (CARONE, s/d, p. 09)
Cabe ressaltar que a produção identitária vislumbrada a partir das histórias de
vida, cujas narrativas ouvimos foi identificada partindo-se da interação com o
pesquisador no sentido dado ao momento da entrevista em face ao método usado, que
permitiu, quando da contação das histórias, que os colaboradores refletissem sobre suas
narrativas, reformulando memórias, repensando ou mesmo ressignificando si mesmos
mediante a questão de pesquisa dada.
Foram entrevistados seis sujeitos com idade, procedência e sexo diferentes,
sendo estes, para efeito de melhor compreensão, inseridos em dois blocos: 1º bloco- 3
colaboradores entre 25 e 30 anos, dois rapazes e uma mulher. Todos possuem curso
superior completo, dois deles são naturais de São Paulo e um é natural de Santa
Catarina. 2º bloco- 3 colaboradoras, com idade entre 50 e 60 anos. Todas mulheres com
curso superior ou cursando, duas naturais de São Paulo e uma do Rio Grande do Sul.
Iniciar-se-há com a problematização dos temas emergidos das narrativas dos
colaboradores do primeiro bloco. Logo, para que se destaquem as narrativas que
chamaremos como “principais”, optou-se por resumir duas histórias de vida de cada
bloco, que servirão como pano de fundo para uma terceira tida como “principal”, desta
forma, analisada e comentada em maior amplitude.
Primeiro bloco- “jovens descendentes”
E. 28 anos. Neto de alemães. Natural de São Paulo
“Então, mas eu sempre, sempre, sempre falei: eu preciso fazer um negócio sozinho! Preciso fazer, não
sei o que, mas eu preciso. Trabalhar sozinho, sabe, preciso ter ideias de vários lugares, mas preciso ter
ideias minhas, porque senão eu não vou me sentir feliz.”
100
Nosso colaborador é formado em administração de empresas, mora com a mãe,
tem um irmão mais velho que reside em Salvador. Sua família veio para o Brasil em
meados de 1940. Seu avô era tripulante do navio de guerra Graf Spee68 que, em virtude
de uma emboscada feita por navios ingleses, obteve ordem de Hitler para que não se
entregassem para que a tecnologia do navio, considerada avançada para a época, não
fosse descoberta pelos inimigos. Assim, o navio foi afundado, seu comandante
suicidou-se e o restante da tripulação seguiu espalhada pela America Latina,
concentrando-se entre Argentina, Uruguai e Chile. O avô de E., inicialmente transitou
entre Argentina e Uruguai, chegando posteriormente ao Brasil, onde permaneceu.
Atualmente E. trabalha com investimentos na bolsa de valores (seu escritório é
na própria casa) e com o desenvolvimento de um site de vendas de artigos para
presentes na internet. Tem muitos amigos, é comunicativo e gosta de sair para bares e
discotecas. Atualmente busca desenvolver sua espiritualidade, faz para este fim muitas
viagens a lugares que considera místicos, pratica experiências com energização, reiki e
meditação. Jovem alegre, espontâneo, tem facilidade em se comunicar, não apresentou
dificuldades em falar sobre sua história ou retratar fatos sobre seus familiares. E. nos foi
apresentado por um amigo em comum e desde o início de nossos contatos mostrou-se
interessado em colaborar apresentando seu relato.
Chamou nossa atenção a forma fluída com que falou sobre sua história de vida,
mesmo com relação a dados como morte e doenças (câncer de seu pai e avó). Quase não
foram feitas perguntas/intervenções por parte da entrevistadora. O colaborador mostrou
muito interesse em participar da pesquisa (disse gostar do tema) e de falar de sua vida,
enviando-nos, inclusive, um e-mail posterior à entrevista no qual retratou reflexões
sobre a conversa que tivemos.
Por cerca de três horas falou quase que ininterruptamente, sem que fossem feitas
perguntas ou que se incitassem determinados aspectos. Ao final da entrevista, comentou
68
Foi realizado um filme - documentário sobre o navio, intitulado “The Battle of the River Plate” de
1956. Maiores informações sobre o navio ver EUGEN, M.D. A batalha do Rio da Prata. Flamboyant,
1967.
101
sentir-se muito à vontade com a situação (sobre o falar de si mesmo) salientando tentar ser
aberto e falar sobre tudo, sobretudo com os amigos. Falar sobre si mesmo é algo
importante para nosso colaborador e bastante natural.
E. inicia a entrevista relatando o impacto de sua vivência na Alemanha. Traz
detalhes sobre sua adaptação neste país ainda na infância (por volta dos 7, 8 anos de
idade), quando sua família mudou-se de São Paulo para a Alemanha. Falou sobre as
dificuldades vividas, mas também sobre os bons amigos que fez, sobre a infância feliz que
tivera na Alemanha, local onde acredita que as crianças vivam uma infância “de verdade”
brincando na natureza, indo à escola de bicicleta e sem muito contato com jogos
eletrônicos, quando comparado ao Brasil. E. demonstra ter adquirido neste país uma
experiência em grupo marcante, mesmo que inicialmente, ele e o irmão tenham
enfrentado dificuldades para se enturmar.
“a gente era bem estranho na cidade, por mais que a gente seja loirinho, do
olho azul, verde, meu irmão também né, muito alemão, a gente sofreu um
baita preconceito, a gente ficou numa cidade pequena e assim a cidade,
como era pequena, devia ter uns 8.000 habitantes, então, qualquer coisa que
chegasse ali era, sabe, chegava no ouvido de todo mundo né uma novidade e
chegou que a gente era brasileiro (eleva o tom de voz) e você vê, foi muito
recente da queda do muro de Berlim, então é, o pessoal era bem fechadão
ainda naquela época (pausa). Bom... Voltando eu sofri bastante (fala
pausadamente) lá na Alemanha, sofri bastante (ênfase) assim, por pessoas
mais velhas assim, a gente sempre ia de bicicleta pra escola, ou a pé né
andava uns dois quilômetros numa boa, e teve ali um pessoal ali que pegava
pesado, assim de bater, de bater mesmo, em mim e no meu irmão, porque era
brasileiro, porque era brasileiro... (pequena pausa) era aquela maldita
justificativa, você tá roubando nosso espaço, não te queremos aqui. Teve
disso, teve disso.”
Após este episódio inicial houve experiências positivas que fizeram com que E.
desenvolvesse laços afetivos na Alemanha, o que busca manter até hoje, mesmo vivendo
no Brasil. Ao longo da entrevista trouxe a importância dos amigos, referindo-se à solidão
de sua avó alemã que não tinha amizades no Brasil, com exceção de alguns conhecidos
alemães ou descendentes, residentes próximos a ela.
A forma como seu pai faleceu (câncer que E. agrega ao grande sacrifício que seu
pai fez ao longo da vida junto à empresa) fez com que repensasse sua própria vida e
iniciasse um processo de mudança (decidiu mudar tanto seu aspecto físico, como também,
a forma de se relacionar com as pessoas E. era obeso e muito tímido). Fez uma tatuagem
102
no braço em homenagem ao pai, marcando na pele a nova fase de sua vida, iniciada a
partir do falecimento do mesmo.
E. deu muita ênfase ao modo como cuidou de sua avó alemã quando esta esteve
doente (vivia sozinha em uma cidade do litoral paulistano na casa construída pelo marido,
nunca quis se mudar). Com riqueza de detalhes, falou também sobre sua relação com a
religião e espiritualidade, algo que o ajudou após esta fase. No entanto, inicialmente,
aspectos ligados à religião foram vivenciados na Alemanha de modo a gerar “sequelas” a
ele e seu irmão, devido à forma como esta lhes fora “imposta”. Tal vivência alterou a
maneira como E. passou a ver a igreja, sendo este um tema recorrente em sua narrativa. E.
relata não ter sido batizado até sua mudança para a Alemanha. Houve preocupação por
parte da família de que E. sofresse preconceito na escola, uma vez que se mudariam para
uma comunidade católica. E. considera a atitude de sua mãe estranha e comenta:
“É minha mãe me batizou seis meses antes de irmos pra Alemanha. Foi um
negócio assim bem estranho, até hoje fico me questionando o motivo real. É
que hoje ainda tem a liberdade religiosa né, assim um pouquinho mais, mas
antigamente era bem estreito, então minha mãe resolveu se prevenir pra não
afetar na escola.”
Ainda nesta temática, E. comenta sobre um episódio ocorrido com seu irmão que
o marcou muito, algo que o levaria futuramente a escolher outras formas de
espiritualidade, que não ligadas à igreja.
“(...) nossa! tem um episódio com meu irmão assim, que foi lamentável ele...
Bom criança, ia na igreja tudo lá e tinha aula de religião na escola e ele
tirou a pior nota de religião da escola. E aí a diretora mandou chamar
minha mãe e meu pai, falando que ele tava indo assim pra um lado do diabo,
nossa achei tão lamentável isso, tão arcaico (...). Meu irmão hoje em dia, a
gente ri disso, mas meu irmão hoje em dia ele é ateu. Foi tão decepcionante
isso. Ele não segue mais religião, mas nossa, esse episódio foi tão forte,
assim, o pessoal fica ali, tentando te convencer, tem que seguir o caminho,
tem que seguir alguma coisa, então Deus é tudo então, aquilo pesou muito
pra ele. Pesou muito, muito, muito, pra ele (pausa).”
Neste relato, E. retrata seu posicionamento frente ao modo como a religião lhes foi
imposta. Além disto, um tema importante na relação de E. com a Alemanha foi a
percepção de que neste país havia um “direcionamento das pessoas”. De certa forma, a
maneira como a cultura e as relações sociais se davam, geravam, na percepção de E.,
imposições. No exemplo que segue E. retrata a imposição vivenciada, tece críticas, bem
103
como, demonstra o reflexo disto em sua vida nos dias atuais:
“Sabe eu fui induzido na Alemanha a ser católico. Fui induzido à força a
acreditar numa crença que eu não acreditava, vi muita história cruel dos
católicos lá, eu conheci muitos museus de tortura dos católicos lá, conheci
todas as igrejas, nossa, a igreja de Colônia, nossa, tem aquelas gaiolas lá em
cima, aquilo era pra pendurar as pessoas lá em cima! E tem museu de tortura
lá em Colônia, da época das Cruzadas. Nossa, então sabe, toda essa história
da igreja... Quem quis fazer isso? Eu sei, foram os homens que fizeram, mas
todas as palavras que me disseram, não me convenceu. Vou na igreja, eu sinto
um sono, um sono tão grande! E é chato, mas pelo menos, me identifiquei aqui
no Brasil com algumas pessoas que tem o pensamento bem parecido com o
meu, de que ó, eu sou cabeça aberta, mas nossa, me fez bem, eu pensava assim,
nossa eu sou um cara diferente, não acredito em Deus (...)”
Posteriormente, outras imposições foram também percebidas pelo pai de E. Este
veio a ser o motivo que o levou a decidir que a família retornaria ao Brasil. Era chegado
o momento na vida escolar em que tanto E. como seu irmão, deveriam fazer uma
escolha que implicaria em futuramente serem direcionados para o ensino técnico ou à
faculdade. Uma vez que o sistema de ensino alemão funciona de modo a tais escolhas
serem feitas a partir do rendimento escolar das crianças até o final do ciclo básico,
ocorre o direcionamento ao tipo de educação que a criança terá após o mesmo (tipos de
escola são indicadas conforme o aproveitamento do aluno e destas, posteriormente serão
direcionadas à faculdade, ao ensino técnico ou profissionalizante). O pai de E. entendeu
que independente do modo de vida que levavam (conforto, segurança, etc.) seus filhos
deveriam ter liberdade para escolherem quem gostariam de ser. Não era o sistema
escolar ou o Estado que deveriam fazê-lo.
“(...) eu tava na quarta série e o meu irmão tava na quinta, ou tava indo pra
quinta(...) e a gente ia precisar fazer a escolha do que queria fazer pra vida
nessa idade. E meu pai não achou justo crianças né, fazerem essa escolha
nessa idade. Então a gente voltou pro Brasil, bem decepcionado, eu não
sabia o que tava acontecendo direito, só fui saber assim, lá na sexta série, o
motivo real da nossa volta... Provavelmente pelas notas eu teria ficado na
Hauptschule69 né, porque né eu não me focava na escola eu não entendi nada
69
“Hauptschule é um dos tipos de escolas secundárias existentes na Alemanha. O aluno ingressa nesta
após concluir o quarto ano da Grundschule (escola primária). A partir daí deve seguir um dos tipos de
escola secundária existentes: a Hautpschule, a Realschule ou o Gymnasium. A Hauptschule costuma ser
recomendada para aqueles que gostam de coisas práticas e preferem o concreto em vez do abstrato. A
Hauptschule é o caminho mais curto para uma qualificação profissional, chamada Berufschule. Concluise a Hautpschule prestando uma prova chamada Hauptschulabschluss (Conclusão da Escola Elementar)
ou Qualifizierter, com aproximadamente 14 anos de idade. Após o término da Hauptschule, o aluno
deverá frequentar uma Berufschule (Escola Técnica), onde aprenderá uma profissão. Critica-se
104
né, meu professor falou: -há você vai voltar pro Brasil em breve né, eu falei:
hã? Mas todos meus amigos foram pra Hauptschule né, meus melhores
amigos. Mas assim, essa decisão do meu pai, assim, foi bem aceitável isso
não tem nem o que falar, assim, embora o Brasil não seja lá grande coisa, a
gente pode criar o que você quiser né, você pode construir sua carreira, se
esforçar, começar um negócio novo e ter o livre arbítrio, você escolhe o que
quer ser e eu, eu demorei pra descobrir tudo isso aí (...) meus amigos lá
viraram encanadores, técnicos em aquecimento, não que eu ache isso ruim
mas, então (...)”
E. demonstra entender as razões de seu pai e, ainda que “o Brasil não seja lá
grande coisa” reconhece que há flexibilidade e chances para que as pessoas possam fazer
suas escolhas orientadas por seus desejos e não por imposições do Estado. Retratar o
Brasil como não sendo grande coisa, denota a forma como o país é percebido por E.,
quanto ao seu funcionamento e desorganização, ainda assim, é o lugar onde pôde optar
com maior liberdade.
A ascendência alemã aparece em alguns momentos como fator importante, seja
pela forma como seus avós viveram no Brasil, seja quanto ao modo empreendedor de seu
pai e avós como também, questões ligadas à rigidez e certa “distância emocional”
retratadas por E. com ressalvas e críticas, algo que busca mudar em seus relacionamentos.
Percebeu-se que E. referiu grande necessidade de contato com amigos e expressou
grande necessidade de afeto. Em certos momentos, nos pareceu sentir-se sozinho quanto
a uma série de enfrentamentos, por exemplo, a mudança à Alemanha na infância, o
retorno ao Brasil, a doença do pai, transição escola - faculdade, final da faculdade e
doença da avó, cuidados com a avó, venda da casa da avó após seu falecimento e o modo
como a casa fora saqueada após sua morte. “achei que iam até botar fogo, levaram tudo,
tudo, é difícil.”
a Hauptschule e o modo como as escolas secundárias são divididas na Alemanha. O argumento usado é
que nesta escola é oferecida menor capacitação, fazendo com que seus concluintes ingressem no
mercado de trabalho em desvantagem, comparados aos estudantes de escolas com maior capacitação,
como a Realschule e o Gymnasium. É comum encontrarem-se muitos descendentes de imigrantes na
Hauptschule,
devido
à
dificuldade
com
a
língua
alemã.”
(fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hauptschule)
105
Entretanto, demonstrou-se altruísta, gosta de resolver os próprios problemas e
ajudar ao próximo. Refere gostar de desafios e vive no momento a busca pelo
desenvolvimento profissional e por rearranjar seu “lugar” na família. Seu irmão casou-se
recentemente e após a morte do pai e da avó, a família diminuiu.
E. sente necessidade de “dar certo profissionalmente” em memória ao pai e não
quer trabalhar para outros (não quer ser empregado) sendo este um ponto central em seu
projeto de vida (supõe-se a formulação deste projeto de vida mediante à percepção da
relação de exploração vivida por seu pai no trabalho). Acredita ser melhor ter o próprio
negócio e seguir seu caminho de modo empreendedor. Acha que o ambiente corporativo
tem, além da grande competição, falsidades.
“No mundo corporativo a pessoa não
cresce, não há desenvolvimento pessoal, mas sim o desenvolvimento da empresa e de
metas”. Acha desgastante e não lhe agrada a ideia de trabalhar em uma empresa, além de
possuir ressalvas relativas ao “ser controlado” acredita que seu pai desenvolveu um
câncer em função da sua relação com o trabalho; existe ainda a hipótese de que o “ser
controlado” tenha relação com as vivências das imposições na Alemanha, por exemplo,
quanto à religião e quanto ao rendimento escolar. No Brasil E., com maior flexibilidade,
escolhe seguir o próprio caminho profissional, empreendendo e desta forma banindo à sua
maneira o controle.
Admira seus avós (imigrantes alemães) pela forma como lidaram com a imigração
e se aventuraram no Brasil, no entanto, não consegue compreender por que não tinham
amigos e não se relacionavam com outras pessoas, além do pequeno núcleo familiar e
alguns conhecidos, estes também alemães. Considera a vida sem amigos isenta de sentido,
o que explicita como ponto muito importante em sua vivência cotidiana e em seus
projetos para o futuro “estar sempre com os amigos- sou viciado em amigos”.
No momento, além da busca profissional tem lugar importante em sua vida a busca
pela espiritualidade. Ainda que se considere ateu, coloca a importância do homem
desenvolver o lado espiritual, conhecer-se melhor e energizar-se. Acha que “suga”
energias de pessoas ou ambientes e quer aprender a lidar com isto, além de sentir-se muito
bem quando tem “experiências espirituais.”
106
Em um primeiro momento achamos nosso colaborador bastante aberto e seguro em
suas atitudes e ideias. Num segundo momento, ainda que nossa visão não tenha sido
equivocada com relação ao “ser aberto”, percebeu-se grande carência e necessidade de
aprovação exterior, tendo nosso colaborador demonstrado dificuldades em ficar sozinho
(está sempre em busca de contatos, programas, pessoas etc.). Após lidar com importantes
perdas na família e com responsabilidades que arcou sozinho, este momento (de busca por
contatos) pode tratar-se de uma transição. E. possui elementos que lhe ajudam a manter
seu projeto de futuro em andamento (ter o próprio negócio- próprias ideias- não ser
controlado), consegue trabalhar bem sozinho (é acostumado a resolver problemas e assim
sente-se seguro) e também está abrindo um negócio em sociedade (site na internet), de
modo a experimentar responsabilidades em conjunto. Vive um processo de metamorfose
com a mudança que iniciou em seu corpo e comportamento (resolveu emagrecer, ir atrás
de meninas, falar abertamente sobre seus sentimentos com amigos etc.).
A ênfase dada ao “ser ateu” e a raiva que possui da igreja nos chama a atenção,
uma vez que mantém a busca por assuntos metafísicos. Pode-se dizer, ainda que de forma
cuidadosa, que tanto sua avó como seu pai, pessoas que E. coloca como referência em sua
vida, seguiram caminhos “solitários” e nosso colaborador, mesmo não concordando com
isto e buscando apoio e reconhecimento externos (de amigos, etc.) trilha da mesma forma
um caminho igualmente solitário. É possível que a influência dos personagens solitários
em sua vida seja forte, evitando que E. usufrua como almeja das companhias que tanto
busca.
Observações sobre dados coletados sob outras formas:
Passados alguns dias da entrevista E. enviou-nos um E-mail. Neste, contou sobre
lembranças evocadas pela conversa que tivemos: falou-nos das lições da família.
“Só mais uma coisa. Ontem me perguntou sobre a lição que ficou sobre os
costumes, acho que a maior lição mesmo é não desistir nunca e não ter medo
de reconstruir uma nova vida. Foi isso que vovó e papai me ensinaram.”
Algum tempo após a entrevista ocorreu uma festa típica alemã, no colégio onde
nosso colaborador estudou e este nos convidou a participar da mesma. Fomos ao local e
percebemos que para nosso colaborador a escola ainda é muito importante. Ele nos
107
apresentou aos amigos, a seus professores, mostrou-nos sua sala de aula e fez questão de
nos oferecer as comidas alemãs que ali eram servidas. Esta experiência, que se tornou
uma experiência de campo quase etnográfica, revelou um dado importante sobre E.
“dependente de amigos.” Nosso colaborador se comporta de forma diferente de seus
amigos do colégio. Mostrou-se mais aberto, espontâneo, bastante ligado afetivamente às
pessoas e sempre preocupado em ajudar, orientar as pessoas presentes na festa etc. Seus
colegas mostraram certo distanciamento, não pareciam tão animados com a festa ou com
os reencontros que ali se davam.
O sentido da festa para E., diferiu do de seus colegas conforme nossa percepção.
Para E. a festa aparentou um resgate de suas raízes e de sua infância. Ao caminhar pela
escola, o brilho de seus olhos ao nos mostrar suas dependências, as mudanças no prédio,
as professoras queridas, permitiu que pudéssemos apreender sobre uma fase que lhe fora
importante. A escola alemã fora o elo de algo que E. não perdeu. Era o local onde
estudava antes da mudança para a Alemanha e foi o lugar para onde voltou e reencontrou
amigos; percebeu que foi bem recebido e não teve dificuldades em readaptar-se, ao
contrário, foi valorizado por ter morado na Alemanha. Suas experiências nesta escola
foram menos direcionadoras, quando comparadas às vividas na escola na Alemanha.
Em dado momento passamos por um mural de fotos de adolescentes que foram
junto com a escola para a Alemanha. E., imediatamente relatou-nos que tal viagem fizera
também com sua turma. Colocou que a viagem foi muito importante, mas diferente do que
fora para seus colegas, muitos indo a primeira vez para a Alemanha, para E. se tratou de
uma viagem interessante por estar entre amigos e por ajudá-los com o idioma que
dominava, por outrora ter vivido no país. Para E. estar entre pessoas que lhe são
significativas e compartilhar experiências é algo muito significativo, não importando em
qual país vive. Busca lidar com as mudanças que acometeram sua família e naturalmente,
si mesmo. Algumas tradições tem espaço em sua vida (como algumas comidas feitas no
natal), contudo, estas retratam os sentimentos de E. para com sua avó e seu pai e não,
necessariamente, algo que sinta com relação ao país de seus ancestrais ou ao significado
atribuído ao ser descendente de alemães.
108
M. 30 anos. Neto de alemães. Natural de Santa Catarina
“(...) e nós sempre tivemos é, dificuldades normais de estrangeiros, porque nós, nós não nos sentimos
brasileiros, esse é o, a questão interessante e ao mesmo tempo, não temos a cidadania alemã. Então nós
somos, estamos num lugar onde nós somos brasileiros pelo documento, mas na prática o espírito não é.
Essa é a grande situação, que é a dificuldade.”
M. é um jovem doutorando que chamou nossa atenção quando o escutamos
falando alemão. O fato de não se ouvir o idioma comumente pelos locais onde
transitamos, bem como termos percebido sua desenvoltura em compartilhar seu
conhecimento do idioma com outros, foi o que despertou nosso interesse em obter seu
relato.
M. colocou-se muito disponível para falar de sua história. Totalizaram-se dois
encontros de cerca de 3 horas cada um em que M. discorreu sobre sua vida e sua
dificuldade em ser “um alemão no Brasil” colocando por diversas vezes, ainda que em
outras palavras, o sentimento de ser um estrangeiro não adaptado à cultura onde está
inserido e ao modo como as pessoas agem, devido à “contaminação de brasileirismo” e a
forma como é visto pelos outros por, por exemplo, vestir-se com sobriedade, gostar muito
de estudar e por ser muito crítico.
Acredita que sua forma de ser será melhor aceita na Alemanha (ou até mesmo nos
Estados Unidos, qualquer lugar fora do Brasil, uma vez que sente estar perdendo tempo
neste país), pois pensa que não haverá preconceito como no Brasil, sua intelectualidade e
trabalho serão valorizados. Acredita ainda, que por ser acostumado à dificuldade de ser
um alemão no Brasil, poderá gerenciar bem as adversidades, caso as encontre na
Alemanha.
O retorno à Alemanha foi o projeto idealizado por seu avô, tendo este o alimentado
durante toda a sua vida e compartilhou disto com M. Nosso colaborador tem assim, o
mesmo projeto como algo que o motiva a continuar os estudos e a vida em São Paulo.
“Então é, como te falei, aqui não vejo muita perspectiva. Meu futuro é
arrumar a documentação que eu preciso e arrumar alguma coisa com
relação à pesquisa, pra depois arrumar um trabalho na Alemanha ou em
algum lugar fora, ou mesmo nos Estados Unidos, enfim, eu não gosto tanto,
109
mas, porque aqui eu, eu noto que não sou valorizado pela minha
competência, eu sou desvalorizado pela minha, pelo meu problema, de
saúde.(...) por esse motivo, eu assim, alguma coisa me diz pode ser algo
ingênuo, eu sei o quão dura a vida é fora é porque eu já tenho a experiência
um pouco de ser brasileiro e de não ser, ao mesmo tempo. Eu sei o quanto a
vida é dura fora, mas alguma coisa me mim diz: olha, você tá perdendo
tempo. Essa noção eu tenho desde criança. Aqui você perde tempo, você não
sabe, por exemplo é, tem alguém que entenda, outra coisa, você pode passar
em todas as Universidades do meu Estado Santa Catarina e você pode
perguntar se tem alguém que entende a lógica dos partidos políticos melhor
do que eu, você não vai achar ninguém. E nem na cátedra de filosofia
política da federal de Santa Catarina você vai achar. Isso também vale pra
filosofia alemã. E se eu for lá, todo mundo me conhece e pedir se posso fazer
um concurso? Nem um concurso vou poder fazer (risos) nem me inscrever!
Entendeu?”
M. inicia sua história de vida relatando como seus avós chegaram ao Rio Grande
do Sul em 1929. Estes fugiram do que seria o início do governo do partido nazista. Nas
palavras de M. se percebe que enquanto conta o fato, confunde-se com este:
“(...) nós viemos (pausa), nós viemos não né, eles vieram, porque eu nasci
aqui, é, em 29 da Alemanha fugidos da, do início do processo do nazismo e
muito do que as pessoas acham que os alemães todos são nazistas, na
verdade não é bem assim.”
Em 1947, motivados por uma grande seca e ao que M. nomeia como
“perseguição” a família migrou para Santa Catarina, onde nascem M. e também seu pai.
A subsistência da família foi proporcionada pela criação de suínos e posteriormente,
pela produção de leite. M. desde a infância ajudou no trabalho com os animais e aos 19
anos, mudou para São Paulo à convite de uma ordem religiosa para fazer o noviciado.
Em São Paulo estudou filosofia e devido a problemas de saúde (M. tem problemas
neurológicos e também de visão) foi expulso da ordem religiosa que o convidara,
retornando à Santa Catarina. M. tem grande dificuldade em lidar com o modo como fora
tratado pela ordem, algo que mesmo depois de passados alguns anos, lhe causa grande
tristeza. Associa, entretanto, alguns dos comportamentos dos padres e integrantes da
ordem ao fato de serem brasileiros.
“Olha só, isso tem tudo a ver, você confia em brasileiro, gente que é
brasileira que todos esses padres que me sacanearam eram brasileiros, não
tinha nenhum que era nem descendente de italiano e não faz diferença
nenhuma (...), entendeu? (pausa) Toda vez que eu dependi de um brasileiro
ou brasileira que não tenha ... Eu me ferrei, entendeu?”
110
O fato de relacionar algumas das dificuldades que passa com o fato destas
advirem de “brasileiros” o coloca em sofrimento constante e o afasta por vezes de novos
contatos ou novas possibilidades. Suas dificuldades tornam-se maiores e constantes,
pois vive no Brasil e não se reconhece como pertencente a este país.
“No seminário eu fui muito mais ridicularizado com relação a meu problema
de saúde do que nós fomos em Santa Catarina. Pra você ter uma ideia, era
porque eu convivi com brasileiros (se refere a convivência com brasileiros
no seminário). No seminário aqui em São Paulo só tinha um cara que era de
Santa Catarina, mas nem era de lá direito.(...) eu era ridicularizado por
causa do meu problema, faziam piada que eu não podia estar na ordem
porque eu não enxergo (...)”
Após algum tempo, recebeu um convite de um professor de São Paulo para que
fizesse o mestrado, uma vez que tinha grande conhecimento dos textos em alemão de
Kant e outros filósofos. M. refere grandes dificuldades com relação à orientação para
seu trabalho, que veio a fazer praticamente sozinho. Ainda assim, decidiu continuar
trilhando a vida acadêmica, desta vez inscrevendo-se no doutorado e mais uma vez,
estudando filósofos alemães. M. demonstra predileção por estes, indicando
identificação com seus pensamentos e ao mesmo tempo, é algo que lhe remete a um
saber que o diferencia dos demais, o saber filosófico alemão e na língua alemã.
Com exceção da vida acadêmica M. não considera suas experiências bem
sucedidas. Em São Paulo passou em um concurso para lecionar filosofia para o ensino
médio, mas considerou tal vivência muito difícil. Com os alunos coloca ter tido uma
boa relação, contudo, relata ter sofrido preconceito relacionado à deficiência visual, por
parte da coordenação e também do corpo docente.
“(...) o problema não era os alunos, era a escola (levanta o tom de vozexaltado) que eu tava dando aula. Tinha uma diretora que era morena e
racista com gente que tinha problema, outro problema e dizem que racismo
só é a gente que tem (pausa) né... Então, e ela era advogada, entre aspas e
eu, eu engoli muita coisa, que não deveria ter feito, não deveria ter feito eu
tive muito problema com ela, eu não tinha condições de trabalho eu tinha
que preencher tudo em papel e eu praticamente não enxergo e eu pedi várias
vezes, fui na secretaria de educação, até o dia que não deu mais e eu larguei.
Sofrer preconceito é algo que M. menciona por vários momentos em sua história
de vida e este, para além das questões de saúde, entende advir também de sua origem
alemã. Contudo, mesmo que a origem alemã possa ser por ele compreendida como fator
111
gerador de preconceitos, é algo que lhe diferencia dos demais e de certa forma, passa a
ser algo desejado, representando e ao mesmo tempo demarcando sua forma de ser no
mundo. O “personagem alemão” é constituído por M. de modo a isolá-lo de outros
contatos “não alemães”. No exemplo que segue, pode-se perceber como M. repõe esta
personagem em sua experiência como professor na escola.
“Eu me dei muito bem em sala de aula (sorri) até porque eu sou alemão né,
um grito lá né (risos) eles já né (risos) (em alusão ao medo que as pessoas
têm da figura do alemão) então eu nunca tive problemas. Eu dava aula de
filosofia (...). Então eu na verdade me divertia né, porque eu pegava muitos
textos gregos né e dava pros alunos, muitos textos em alemão, textos em
inglês e os professores meus colegas me odiavam por causa disso. O
comentário na escola era eu (eleva o tom de voz) tipo como um professor que
é cego, faz todas essas coisas e ainda faz doutorado? E os outros, que estão
lá há duzentos anos né, naquele marasmo, como nós alemães dizemos
Faulheit (preguiça) né, a preguiça diária, o sujeito na verdade é podre né,
pra ser mais exato (risos), então eu era assunto na escola (risos) entendeu?”
A reposição do personagem “alemão” tem como aspecto fundador a relação de
M. com sua família, a forma que compreende suas vivências e relações no Brasil, o
modo como os alemães foram tratados na colônia em que viviam; M. parte do modo
como percebe si mesmo para interagir com o meio.
“(...) eu cresci, desde pequeno ouvindo o mantra de que um dia nós voltaríamos
pra nossa terra natal. Infelizmente meu avô morreu e (pausa) não conseguiu
então eu sinto um pouco a responsabilidade de continuar este projeto, até por
causa das dificuldades que a gente passa em Santa Catarina até hoje. A
Família passa... A discriminação em relação, porque nós somos descendentes
de alemães. E ao contrário do que a maioria dos brasileiros dizem, o
brasileiro, especialmente o de cidade, ele é um povo muito (pausa) digamos
assim, mesquinho, ele diz que não tem preconceito, mas é o que mais tem.
Enquanto que o povo que é mais do interior e que na maioria são imigrantes ou
descendentes de imigrantes, é um povo muito receptivo. (...) pra mim, tem um
pouco isso tipo do, o brasileiro é mesquinho, mesmo, hipócrita, eles dizem uma
coisa e fazem outra. Um exemplo típico, tipo na minha cidade, apregoa-se que
existem oportunidades iguais né, para todos, e eu sou a única pessoa na cidade
que está fazendo o doutorado e fez mestrado, mas serei o último a ter emprego,
justamente por causa disso.”
O preconceito que M. relata sofrer é por ele relacionado ao fato de ser descendente
de alemães e a seu problema de saúde que o colocam e o mantém como estigmatizado.
Desta forma, entende ter menos oportunidades, idealizando-as em outro lugar, onde possa
ser aceito. Tal processo lhe causa sofrimento, uma vez que se sente excluído e não
vislumbra possibilidades de mudança. É possível compreender assim a reposição de seu
personagem “alemão” como meio de inclusão na academia, onde é reconhecido pelo
112
diferencial que lhe confere posição de destaque – conhece os filósofos alemães e fala
alemão. Em suas palavras: “Existem oportunidades iguais para os iguais, os iguais entre
eles (frisa), os que não são imigrantes, ou descendentes de imigrantes, os que estão fora.
E ainda tem o agravante pra mim, que eu tenho um problema de saúde então... (longa
pausa).”
Repondo o personagem alemão M. mantém o projeto do retorno de seu avô em
andamento, ao mesmo tempo em que se destaca como diferente na academia, fazendo de
seu “ser descendente de imigrantes alemães” um diferencial positivo. Por outro lado,
questiona-se até que ponto a escolha pela reposição de tal personagem não o aprisione de
modo a mantê-lo no papel do estigmatizado que não tem chances iguais a outros.
Possibilitar a metamorfose do personagem encarnado possivelmente viabilizaria outras
formas de estar no mundo, outros olhares e outras maneiras de se relacionar, consigo e
com outros.
M. sempre escutou as notícias da Alemanha pelo rádio junto a seu avô em Santa
Catarina e ainda o faz, em São Paulo. Coloca a importância de atualizar-se sobre a
situação política e econômica da Alemanha, outro ponto alto de seu desejo de
pertencimento a esta sociedade, a qual considera mais justa, igualitária. Usa tal
argumento também, quando fala de questões políticas do Brasil, salientando exemplos
de conflitos vivenciados por sua família com relação ao pagamento exagerado de
tributos, injustiças no trato com os agricultores quanto ao acesso à saúde, direitos e
cidadania de modo geral. Na percepção de M. há o esquecimento dos imigrantes (não
somente dos descendentes alemães, mas também dos poloneses, italianos etc.) que
precisaram e ainda precisam prosperar por meios e esforços próprios, recebendo pouco
incentivo do Estado70. Desta forma, é possível que tais questões tenham incentivado M.
a considerar o Brasil como não sendo o seu lugar.
70
Neste momento podemos nos remeter ao início da colonização alemã no Brasil, conforme discutido
no capítulo 1. O modo como M. relata o esquecimento dos imigrantes e seus descendentes por parte do
Estado, o modo como se ajudaram para constituir meios de sobrevivência etc., é muito próximo ao que
fora no final do século XIX e início do século XX. Permanece a indagação sobre tal percepção dos
membros destas áreas outrora colonizadas, quanto à vivência destas afirmações como experiências
113
“Então enfim, como te disse no início, nós somos brasileiros por nascimento,
mas nós não nos sentimos, com o espírito do brasileiro. E isso também é
angustiante porque, como diria o Heidegger né, o sujeito se faz das
experiências da existência né, é como se você não tivesse uma esperança de
futuro. É como se o tempo do futuro fosse roubado de você, você sabe só o
que vai acontecer hoje, mas você não sabe se é, o trabalho, se você vai
conseguir, é enfim... Se você vai trabalhar naquilo que realmente entende ou
se vai ficar a vida inteira dando um jeito pra sobreviver (frisa) só sobreviver
que é isso que os brasileiros querem que a gente viva, só sobreviva e pague
imposto pra eles poderem usufruir, isso é típico, é. Lá se nota isso, meus
pais, por exemplo, tiveram que pôr telefonia rural particular há dez anos
atrás, porque não existia, o governo não coloca, porque é uma colônia
alemã, uma comunidade fora da cidade e... Mas todo mês cobram o imposto
do meu pai, do que ele compra na ração pro gado, do cliente que ele vende,
então, se meu pai faz 10.000 reais por mês, 2.000 são de imposto (eleva o
tom de voz) então eu não entendo a regra, por que que nós temos que
contribuir igual aos outros e não temos direito a nada, saúde por exemplo?”
Uma vez que M. se sentiu (e se sente) abandonado pelo Estado e não pertencente
ao Brasil, aliado ao medo do futuro em um lugar onde seus talentos não são
reconhecidos e seu problema de saúde o coloca na posição de estigmatizado, é possível
compreender a importância de seu avô em sua história de vida. O avô alemão de M.
sempre o incentivou a fazer as atividades normalmente, a despeito dos problemas. Seu
avô não considerava problemas de saúde como impedimento para um desenvolvimento
pleno.
“(...) meu avô me blindou bastante por causa do meu problema e isso fez
com que eu me desenvolvesse bastante, especialmente intelectualmente, como
pessoa e tudo. Porque o que ele dizia era assim: você tem uma dificuldade,
mas essa dificuldade só você consegue superar, ninguém vai poder te ajudar.
Então você pode fazer todas as coisas, por exemplo, quem me ensinou a
cozinhar praticamente foi ele, quem me ensinou a fazer fogo em casa e fazer
comida, foi ele. Quem me ensinou a lavar um carro, o carro, que é um
Brasília, que meu pai tem hoje era dele, era ele. (...) então ele tava junto de
um monte de coisas, que meu pai não podia, trabalhando na roça, longe e ele
que me ensinou alemão, era ele, que lia a bíblia, textos, tudo e ele me
corrigia e tudo (...). Ele me ensinou a fazer chimarrão, eu tomava com ele é
que mais, ele me ensinou a dirigir (sorri) então imagine, o menino não pode
dirigir né... Meu avô falava me dá a chave do carro (risos) minha avó ficava
louca de raiva. Então tinha uns lugar que era tranquilo assim né, aberto e
ele sentava do meu lado e falava você vai dirigir e falava você tem que fazer
assim, assim e assim e nunca aconteceu nada.”
próprias ou destas como percepções de oralidades de familiares e outros descendentes, que passaram a
transmitir e perpetuar sentimentos de exclusão e abandono no Brasil.
114
A relação com o avô alemão proporcionou que M. pudesse desenvolver
potencialidades a despeito das dificuldades objetivas. Contudo, com seu falecimento,
em meio ao grande vazio M. buscou outras figuras significativas que admirava (padres),
estas o decepcionaram, “blindando-o” para outras experiências.
“Então quando meu avô morreu eu senti muito que tinha que tomar conta da
minha vida e que eu tava sozinho. Mas sempre como referência as coisas, o
jeito, as coisas que ele me, eu posso ser considerado um sujeito
ultrapassado, mas tem muita gente aqui (se refere à universidade) que acha
que sou um sujeito do século 18 né, eu acho engraçado, eu não sei se to
evoluído ou não (risos). Então, é por essas coisas eles acham que eu sou, eu
sou da idade da pedra. Excessivamente exato. Ué mas foi isso que eu aprendi
né? Especialmente com o meu avô, uma coisa é, não é mais ou menos assim,
sabe?(...) Muito do meu jeito é por causa dele, o jeito de me posicionar em
público é muito parecido com ele, eu tenho um pouco de dificuldade de falar
rápido português porque eu não consigo articular o pensamento em
português o tempo todo tenho que ficar pegando as ideias e retrabalhando
(...). Estranho isso, mas, a forma incisiva e polêmica de se posicionar é
igualzinho (Risos) é, inclusive jeito de vestir, jeito de andar, ah, enfim, até
ele morrer a gente tinha uma relação muito de amizade assim é, quem me
ajudou realmente com meu problema foi ele(...).”
M. tem em seu avô um ideal, uma base para seus projetos, um exemplo
vinculado a seus objetivos. Tal identificação mantém M. próximo à figura do avô, ao
ponto de ser reconhecido como “alemão do século 18”.
Uma borboleta ainda presa ao casulo...
Atualmente M. segue repondo o personagem alemão, comportando-se como os
alemães de antigamente, vestindo-se como eles e seguindo adiante na academia, onde se
destaca com primor, rumo ao sonho de viver na Alemanha. Contudo, teme de certa
forma, encontrar dificuldades junto ao sistema de saúde neste país, o que também lhe
impossibilitaria algumas coisas, conforme já vivencia no Brasil. Desta forma, ao
vislumbrar dificuldades em ambos os países, M. sente-se sozinho e por vezes,
paralisado. Para tanto, a breve citação de Almeida (1999, p.116) alude ao que se passa
com M. “Cabe ao sujeito integrar as expectativas de papéis e ter clareza mental na
resposta a elas, aprender a não se deixar aprisionar (...)” (p.116). M., para manter o avô
vivo (de certa maneira) alimenta o personagem alemão no dia à dia no Brasil,
ocasionando-lhe dificuldades em se adequar, sentir-se confortável em situações
cotidianas.
115
Cabe o retorno a Ciampa (2001) que ao falar sobre metamorfoses, fala também
de morte e de vida. Para manter o avô vivo, M. não vive a inteireza de sua própria
existência, persegue um sonho que não construiu somente para si. Talvez deixar morrer
seja também um modo de se permitir o nascimento do novo. Enquanto M. não abre
espaço para metamorfoses outras de sua identidade, mantém a visão do mundo e o seu
posicionamento em anamorfose, que o leva a mesmice, impedindo a mesmidade. Deste
modo, a solução que M. encontra para lidar com as dificuldades é retornar ao mundo
que considera melhor (Santa Catarina) e aguardar que outros possam reconhecer o
potencial da borboleta, ainda presa ao casulo71:
“Quando tiver de saco cheio destas situações, onde sou ridicularizado e tudo
mais, eu posso pegar minhas coisas e voltar pra minha casa, entendeu? Eu
acho que não é a melhor solução, mas sabe, chega uma hora que você fica
de saco cheio sabe, chega um limite, schon voll weisse (saco cheio, sabe?) e
você já sabe, quando eu venho pedir aqui, quando eu terminei o meu
mestrado, aqui sempre precisa de professor assistente, não tem pra
graduação sempre falta professor. Aí eu perguntei, aí a moça lá, a psicóloga
do RH deu risada onde eles fazem seleção, ela falou : o que, você quer dar
aula? Você não enxerga! Aí eu falei: Olha o meu curriculum, tem 15 páginas
e tal e ela falou: Você não enxerga, vai dar aula como? (risos) Aí meu
orientador brinca e fala: eles não sabem, eles não sabem com quem estão
falando, literalmente não sabem!”
71
A metáfora da borboleta presa ao casulo foi associada à história de M., pois, assim como o professor
lhe disse que as pessoas não sabem com quem estão falando, o fazem por não conhecerem seu
potencial, suas predicações. O mesmo ocorre com o próprio M. que, mantendo-se preso a certos
olhares e modos de vida, não se abre para possibilidades de metamorfoses que lhe proporcionariam
outros horizontes, perspectivas; ele mesmo em metamorfose, como uma borboleta, alçaria vôos,
desenvolveria novas formas, cores e movimentos.
116
Um projeto de vida, alemão (?)
“(...)o que eu pretendo ser é uma descendente de alemã na Alemanha: tento
conscientemente unir o melhor que o meu lado alemão tem a oferecer com o
melhor do que minha vivência e educação no Brasil tem a oferecer. Sei que não
conseguirei ser alemã de tudo, nem é meu objetivo. Descendente de alemã na
Alemanha para mim é um objetivo que talvez consiga equilibrar as balancinhas
internas da minha cabeça, sabe?”
117
A história de P.
P. natural de São Paulo, 29 anos, filha de uma alemã e um brasileiro
O interesse em obter o relato de P. surgiu após conversa com um informante que
nos contou sobre seu plano de mudança para a Alemanha, devido sua decepção com
relação ao Brasil. P. foi muito receptiva ao nosso contato, dizendo-se interessada no
tema da pesquisa que realizávamos. Nosso encontro se deu em um café em São Paulo,
por cerca de duas horas, continuando posteriormente com questões enviadas por correio
eletrônico.
P. demonstra ter tido sempre grande interesse em conhecer as particularidades da
história de emigração de sua família para o Brasil. Inicia seu relato retratando a
trajetória de sua família, desde a Alemanha até a chegada em Guarulhos-SP. Sua bisavó
veio para o Brasil depois da Primeira Guerra Mundial. Passava fome, frio e muitas
necessidades na Alemanha. A família decidiu vir para o Brasil devido à onda
imigratória e às promessas da vida e ascensão nos trópicos, no início do século XX. Em
um navio (P. comenta não lembrar o seu nome) chegaram ao Brasil já com seus lotes
determinados, localizados em Guarulhos- Grande São Paulo.
A avó de P. também nasceu na Alemanha, chegou ao Brasil com cerca 1 ano de
idade. P. se exalta ao mesmo tempo em que se surpreende com o desafio travado pela
família ao empreender tamanha viagem:
“Você imagina a situação precária que deveriam estar lá, pra você botar uma
criança de um ano em um navio e viajar durante semanas?”
Sua avó, ainda que tenha chegado ao Brasil bebê, fora criada em ambiente
“muito alemão” devido ao entorno em que cresceu (posteriormente veremos que este
foi o mesmo ambiente em que P. também cresceu). Guarulhos, conforme P. nos relata,
era “cheio de alemães” o que nos remete de certa forma, às possíveis semelhanças com
colônias do Sul do Brasil, onde língua e costumes se mantiveram pela ajuda e trocas
mútuas entre os membros imigrantes, mesmo que em contexto bastante diferenciado da
cidade de São Paulo com relação à forma como os colonos foram organizados no Sul do
Brasil; tal semelhança aparece no relato de nossa colaboradora ao menos, na forma
118
como vivenciou “a Guarulhos alemã72”, sobretudo, sua bisavó, avó e mãe. “Então minha
avó foi criada aqui e também em ambiente muito alemão, porque só tinha alemão, a língua era
alemã, tudo.”
A família de P. já se adaptara à vida no Brasil quando, antes da Segunda Guerra
Mundial, a avó decidiu retornar a Alemanha.
“Pelo jeito lá estava melhor do que aqui, não tenho muita certeza, porque as
histórias que tenho vão sendo passadas de segunda mão, mas parece que a
situação lá, pré Segunda Guerra estava melhor do que aqui.”
Sabe-se que com a ascensão do partido nazista, muitos postos de trabalho foram
criados na Alemanha. Contudo, uma vez que P. não nos deixou claro o ano do retorno
de sua avó, não há como se saber com exatidão qual era o momento histórico-político
em que se encontravam Alemanha e Brasil. Supõe-se que vigorava o regime do Estado
Novo de Getúlio Vargas, iniciado em 1937, configurando um momento de dificuldades
para os alemães e outros grupos de imigrantes considerados pertencentes ao “eixo”. É
possível também que o retorno já vigorasse como um projeto desta família, que poderia
aguardar que a Alemanha estivesse em melhores condições para recebê-los de volta.
Na Alemanha sua avó não estaria sozinha. Seus irmãos já tinham retornado à
Hamburgo, cidade de sua bisavó, demonstrando ser este um projeto familiar- o retorno à
Alemanha. Nesta cidade a avó de P. conheceu o marido e teve filhas, uma delas, a mãe
de P. Ao deflagrar-se a Segunda Guerra, a família tentou o retorno para o Brasil, sem
sucesso. Permaneceram e viveram uma Alemanha em conflito.
Outra questão importante, vivida pela família de P., foi o fato de seu avô ter sido
prisioneiro de guerra, enviado ao Texas. P. soube da existência de cartas que relatavam
o episódio, nas quais sua avó descreve que isto fora a melhor coisa que podia ter
acontecido para o avô. Preso no Texas ficou isolado das atrocidades que aconteciam na
Alemanha. P. concorda, toma partido, imagina que caso seu avô tivesse ficado na
72
Não era de nosso conhecimento anterior que em São Paulo, além de Santo Amaro, houvesse outro
polo de semelhante colonização e organização alemã. Acerca de Guarulhos e a influência alemã não
foram encontradas informações na literatura consultada.
119
Alemanha até o final da guerra, teria sido muito pior. Este avô, contudo, retornou doente
a Alemanha após o longo período preso. Com o físico muito enfraquecido veio a falecer
rapidamente. Nesta época a mãe de P. tinha cerca de 8 anos de idade. Não se notou
perplexidade ou tristeza em P. com relação a este fato. É possível que, conforme o modo
como tais lembranças lhe foram passadas, possíveis marcas deixadas pela Segunda
Guerra Mundial na Alemanha não a tenham afetado, nem mesmo ao imaginar sua
família em meio a tal condição.
Sua avó, então viúva com filhas, vivia uma situação de sobrevivência
complicada. Mais uma vez o Brasil surge como chance para a família de P. Quando a
avó retornou para o Brasil, a mãe de P. tinha cerca de onze anos, sua tia treze. Ambas
terão papel importante na socialização de P. Conforme veremos mais a frente. P. falou
muito sobre “idas e vindas” de sua família, para tanto fez a seguinte leitura associada à
sua condição atual:
“Parece até que é sina eu ir pra lá, porque uma geração tem que ir e voltar toda
hora.”
Esta constatação feita por P. demonstra que de alguma forma, estar entre ambos
os países foi uma constante em sua família, algo que justifica e qualifica sua escolha
atual em “retornar” a Alemanha frente ao descontentamento que sente no Brasil.
P. segue contando a história de sua mãe. Esta precisou fazer um curso logo que
chegou ao Brasil, pois não sabia português. Avó e filhas ficaram na casa da bisavó, até
comprarem um terreno, sendo este um difícil recomeço. Sua mãe foi à escola por cerca
de dois ou três anos para ser alfabetizada em português e enquanto isso, sua avó
conseguiu comprar um terreno em Guarulhos e começou a construir sua casa. P.
menciona com muito orgulho o esforço de sua avó e a grande força de vontade em
perseverar. Entretanto, não nos revela detalhes acerca dos recursos para tanto, tornando
a história do retorno e do esforço da família um grande sucesso, sem o seu desenrolar de
fato. Desta forma, percebe-se também a construção do papel das mulheres- alemãsbatalhadoras-vencedoras de sua família e destes exemplos enquanto modelo para P.
120
Com 14 anos a mãe de P. começou a trabalhar, frequentou desta forma, por
pouco tempo a escola. Tanto a mãe como a tia começaram suas vidas profissionais no
Brasil como secretárias assistentes, tendo obtido tal oportunidade de trabalho devido ao
conhecimento do idioma alemão. Trabalharam muitos anos em uma grande empresa
alemã e foram estudando conforme puderam. Estudaram inglês, informática e espanhol.
Cabe ressaltar, que retornaram ao Brasil devido às condições que viviam no pós-guerra
na Alemanha, aprenderam o português, entretanto, sua fonte de renda (e estabilidade)
foi mediada pelo conhecimento do idioma alemão e da oportunidade em uma empresa
igualmente alemã.
Ainda nesta temática, P. comenta com certa crítica ao Brasil que quando tinha 13
anos, sua mãe e sua tia precisaram fazer supletivo, pois o mercado de trabalho já não
buscava pessoas com experiência de trabalho ou conhecimento de línguas, mas sim,
com curso superior. Já não bastava o domínio do alemão para mantê-las no trabalho,
eram necessários outros conhecimentos. Frente a isto, P. também precisou “entrar no
esquema” e jovem adolescente, já ajudava a família. Ficava em casa cuidando dos
afazeres domésticos enquanto mãe e tia estudavam para as provas.
Tais questões tornar-se-ão peças centrais na vida de P. Questões estas que
parecem ter relevância na visão que P. construiu do mundo do trabalho, das
oportunidades que “não existem” no Brasil e da importância de se saber o idioma
alemão e até mesmo “ser alemã”.
Mãe e tia estudaram até a 8ª série e depois, até o terceiro colegial no supletivo.
Continuaram trabalhando como secretárias trilíngues, tendo seu esforço sempre
ressaltado por P.
Na família de P. a língua alemã tem um papel importante, algo que P. passa
também a buscar com afinco.
“Então em casa eu não tinha muito como falar alemão, minha avó falava um
pouco comigo e tal, mas não sei o que aconteceu depois, um dia cheguei da
escolinha e falei eu não vou mais falar alemão porque sou muito pequena pra issonossa se fosse eu, ia encher a criança de porrada e dizer não, você não tem opção
mas minha mãe falou não, tudo bem, se não quer não quer. E eu acabei perdendo
121
muito do que já tinha e aí, até hoje eu estudo pra conseguir acompanhar. Eu acho
que se tivesse ficado firme, falando desde criança teria sido mais fácil,
especialmente a gramática que você aprende por osmose de criança e como adulto
não consegue assumir simplesmente.”
P. vê grande relevância no conhecimento da língua alemã em sua vida, algo que,
além de auxiliar na aquisição de trabalho das mulheres empreendedoras de sua família
(mesmo que não sendo mais a única ou principal prerrogativa para tanto). Quando
menciona este tema coloca “ser mais misturada”, pois seu pai é brasileiro. O que
nomeia “ser mais misturada” é o fato de ser filha de um brasileiro e devido a tal
mistura, não saber o idioma com fluência. P. é “misturada” e sua mãe “alemã pura” o
que passa a ser um pequeno impeditivo no ideal que busca- o ser alemã falando o
idioma com fluência. P. demonstra incômodo por não ter fluência no idioma, algo que
busca retomar com persistência, uma vez que é parte importante de seu projeto de vidaviver na Alemanha.
P. aprendeu alemão com sua mãe e sua avó em casa, seu pai não falava o idioma
“só palavrão, é só isso que eles aprendem né (risos).”
Para além do projeto de vida de P. cabe compreender o papel da língua como
peça fundamental para concretização deste, mas também do significado que a língua
tem para a comunidade alemã. Uma vez que é meio de expressão e apreensão da
cultura- sentido proposto pelo Deutschtum (mencionado no capítulo 1). O Deutschtum é
uma forma de expressão da germanidade que atravessa Nações em termos geográficos,
permeando o sentido de identidade para os alemães ao redor do mundo. Esta leitura
pode ser feita por todos os descendentes que crescem perpetuando costumes, língua,
alimentação, tradições, adquirindo assim um modo de ser alemão no exterior e no caso
de nosso estudo, no Brasil. (MALTZAHN, 2011). P. pode “ser menos alemã ” ao não
falar a língua ou ao falar com pouca propriedade.
Foetsch (2007, p.61-62) exemplifica a forma como o propósito do Deutschtum
pode ser constituído, uma vez que pode ser visto como:
(...) comunidade simbólica e é isso que explica seu poder de gerar sentimento
de identidade e lealdade, onde os sentidos estão contidos nas histórias que
são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu
122
passado e imagens que dela são construídas e contribuem para o imaginário e
sendo, portanto, muito mais do que uma porção de terras demarcadas por
limites políticos.
Em se tratando do Deutschtum, para o qual o conhecimento do alemão é
prerrogativa fundamental, P. passa boa parte da entrevista falando sobre suas questões
com relação à língua. Diz-se irritada por sua mãe não ter insistido que falasse alemão na
infância, algo que hoje em dia lhe é custoso retomar. Em se tratando de sua mãe, abre se
um parêntese para comentar a hipótese de que, uma vez que o conhecimento do idioma
não bastou para que esta permanecesse estável no trabalho (por exemplo) e também
pelo marido não falar o idioma, pode ter achado razoável que a filha determinasse qual
seria o momento certo para aprender a língua, desta forma, não sendo uma imposição.
Com o falecimento de seu pai há 10 anos, P. ficou ainda mais próxima de sua
mãe e sua tia, tendo a chance de falar somente alemão em casa, se assim o quisesse. P.
busca de modo bastante claro a apreensão da língua como expressão de sua identidade,
de sua identidade “alemã”.
Ao dizer quem é fala de seu projeto de vida e de seu desejo em saber a língua
com propriedade. Sobre sua profissão, retrata em detalhes a empresa onde trabalha e a
função que exerce. Conta que primeiramente formou-se em hotelaria, mas cansada de
lidar com gente, resolveu mudar de rumo e por indicação da mãe, que já trabalhava
nesta empresa (alemã), decidiu candidatar-se a uma vaga na mesma. Inicialmente foi
assistente no departamento de planejamento e controle da produção e gostou muito.
“É um trabalho muito concreto, por exemplo, eu vou lá, recebo uma lista da
engenharia, processo aquilo de x maneiras e aí eu vejo a máquina saindo montada
da fábrica e aí eu falo meu, eu tenho um dedo nisso! É uma coisa assim bem mais,
como se fala, uma coisa mais feliz eu acho porque o seu trabalho não fica perdido
no limbo(...) em hotelaria se você tá fazendo direito ou não o cara vai tar sempre
reclamando. O hóspede é o ser mais chato do universo, não me adptei.”
P. resolveu, após iniciar o trabalho na empresa em que sua mãe já trabalhava
fazer um curso de tecnologia e gestão industrial. Não existe um departamento de
engenharia industrial na empresa onde trabalha, somente na matriz na Alemanha. No
Brasil P. é a representante deste setor, sente-se ali reconhecida e também diferenciada
com o posto que ocupa. É a única mulher do setor e também dá ordens. No entanto,
123
comenta ter demorado a galgar os degraus para ascender, algo que acredita ocorrer de
modo diferente na Alemanha. Exemplifica:
“Aqui você tem que ter ensino superior de 80 anos para fazer café. Lá na
Alemanha você tem várias opções, se não quiser fazer faculdade direto, pode fazer
um curso profissionalizante, pode ir para outro país, tem várias possibilidades
incríveis e aqui, se você quer ir para o Rio de Janeiro, você já deixa as calças.”
P. sugere compreender as categorias educação e trabalho de modo imbricado.
Considera que suas chances seriam outras na Alemanha, uma vez que no Brasil tem-se
maior dificuldade para obter sucesso. O reconhecimento que almeja é de certa forma,
mais difícil de acontecer no Brasil.
Veremos, contudo, que a obtenção de “sucesso” de sua família foi algo
igualmente demorado, fruto de luta e idas e vindas entre Brasil-Alemanha, intercalados
por crises, guerras e perdas. Em seu projeto de vida P. associa a mudança para a
Alemanha ao sucesso praticamente garantido, mas parece não destacar a elaboração
destas idas e vindas de sua família, bem como, a construção da vida no Brasil como fato
que pôde manter a família ao ponto de P. poder alcançar o que atualmente tem e assim
vislumbrar o projeto de mudança para a Alemanha como possibilidade. Logo, devido ao
momento em que a família se encontra no Brasil é possível que A.P. possa formular seu
projeto de mudança para a Alemanha sem maiores percalços, guardando dinheiro,
dando-se tempo para planejar melhor cada detalhe etc. A despeito de seu
descontentamento para com o Brasil, há a falta de reconhecimento do sucesso que sua
família conquistou neste país. O desejo em conhecer a Alemanha é antigo, algo que P.
sempre quis. Questiona-se até que ponto o desejo antigo não a tenha, de certa forma,
direcionado à forma como se sente atualmente no Brasil.
P. tinha grande curiosidade em conhecer a Alemanha desde a infância, mas era
muito caro e então decidiu: “falei não, vou começar a me preparar para isso, vou
começar a guardar dinheiro e vou me preparar pra isso também.” Aqui se sugere o que
foi abordado quanto a vida da família de P. no Brasil enquanto facilitador de sua tomada
de resolução, que em termos práticos, pôde organizar-se financeiramente para a viagem.
Explica-nos como tal preparação se deu:
124
“Eu tava numa empresa alemã já, então falei bom, já é um passo. Trabalhei muito,
até que um dia pedi transferência e o pessoal ficava me enrolando, até que um dia
falei não, cheguei pro meu chefe e falei pra ele, meu último dia é dia tal e eu tô
indo embora, eu ia pedir demissão pronto e acabou.”
Seu chefe informou haver uma vaga na Alemanha e que eles aguardariam o
contrato para sua transferência. Entretanto, tal contrato ainda não chegou e P. diz que
dará um “ultimato”, propondo seu último dia de trabalho. Posteriormente, informou-nos
que seu plano dera certo e que viajaria em 7 semanas para a Alemanha, com a vaga de
trabalho garantida. P. conta que “precisa” tentar qualquer coisa e mesmo que não dê
certo com o trabalho, viverá na Alemanha, mesmo trabalhando no que considera
“subempregos”. Mesmo com preparo, P. demonstra receio, mesmo com a vaga de
trabalho seja certa.
A passagem já havia sido comprada por P., mesmo antes de saber a resposta
definitiva de seu chefe. Precavida, levará consigo passagem de ida e volta para sua
segurança, mesmo tendo parentes na Alemanha e sabendo não “passar fome”.
Curiosamente relata ter mais contato com sua família alemã (na Alemanha) do
que com a família no Brasil. “Nossa com a família da parte de meu pai eu não tenho
contato nenhum.” Com relação a isto, conta-nos um episódio marcante:
“Um dia apareceram duas mulheres no portão de casa e eu odeio visita não
programada, assim, essa coisa bem alemã, não apareça na minha casa que não
vou abrir a porta, você nem me ligou pra perguntar se podia! Sabe? A minha avó
já deixou muita gente na porta já e eu aprendi isso com ela, é o suprassumo da
falta de educação né, pra eles. Então aí eu falei mãe tem duas mulheres ai no
portão, batendo palmas. Ai minha mãe, nossa, é sua tia! Nossa, minha tia mora
aqui do lado sabe (risos) e eu nem sabia que existia! Ela veio trazer convite de
casamento de minha prima, que eu nem sabia que existia! Aí eu falei assim, que
situação esquisita né?”
Com o advento do Facebook (rede social ligada à internet) P. pede que sua mãe
lhe dê o nome de todos os parentes. “Vou adicionar né, só pra lembrar que existe.”
Demonstra como se deu tal processo, sem grande comoção:
“Aí ela foi me mostrando, essa é sua tia, essa é sua prima, então (...)”
125
Mesmo que seus parentes brasileiros tenham sido adicionados à sua rede social
na internet, estes não parecem configurar papel importante. O episódio destes no portão
fora marcante devido ao fator surpresa, por existirem parentes e estes surgirem em seu
portão sem aviso prévio, do que pelos laços ou busca por conhecimento ou
pertencimento. Outro dado que promove curiosidade, foi o fato de P. ter mencionado
muito pouco sobre seu pai, sobre os sentimentos envolvendo seu falecimento, sua
relação com ele etc. Talvez se configure aí a razão para o elo faltante com a família
brasileira.
Ao revelar que a família era “separada mesmo” gera interesse o fato de P. não
ter questionado ou procurado por seus parentes brasileiros, ao contrário do que se deu (e
se dá) com os parentes alemães- na Alemanha. Desta forma, tal fato contribuiu para que
sua socialização primária ocorresse de modo distante de costumes ligados ao Brasil, o
que ainda se mantém durante a socialização secundária. P. escolhe permanecer em
contato com os familiares ligados a Alemanha que lhe remetem ao pertencimento e
reconhecimento almejados. P. diz ter mais contato com seus primos da Alemanha, o que
relata com entusiasmo, diferente da forma como retratou o encontro junto aos parentes
brasileiros no portão.
P. não sabe dizer o motivo do distanciamento dos parentes brasileiros, conheceu
apenas a avó, com quem teve pouco contato e deste encontro revela-nos apenas uma
lembrança:
“(...) tive pouco contato com ela, eu só lembro do doce de figo, nossa era
sensacional, ela tinha um pé de figo, nossa era um doce caseiro de verdade, acho
que a descendência dela era portuguesa.”
A lembrança que traz de sua avó envolve o doce e este é relacionado à
descendência portuguesa desta. Tal associação remete P. a outra parte de sua família e à
origem desta- novamente europeia. De alguma forma a busca pela construção identitária
não brasileira parece ser uma constante, que leva P. a negar suas origens brasileiras.
Parte significativa da entrevista foi baseada nas diversas viagens que P. fez à
Alemanha e de como estas a levaram ao que viria ser seu projeto de vida.
126
Ao falar da primeira viagem a Alemanha, P. menciona o falecimento de sua avó
alemã. “Acho que ela ficou muito feliz de ter me visto indo (...)”. Sua avó faleceu logo
depois que P. foi à Alemanha pela primeira vez, a isto P. acrescenta:
“(...) quando fiz 15 anos o pessoal falou você quer uma festa ou uma viagem? E eu
falei não, quero viagem! Então imagina gastar dinheiro com uma festa que dura 4
horas? Acho dinheiro jogado pela janela. E eu falei quero muito conhecer a
Alemanha. Aí passei um mês lá conhecendo todos os parentes, pagando mico assim
sabe? Típico. Teve um que eu lembro o primeiro choque que eu falei peraí a
cultura é realmente diferente, embora eu não me pareça, porque eu me sinto mais
diferente do pessoal daqui do Brasil, mas o que aconteceu que me deixou assim,
opa, foi no trem, numa viagem e aí eu tinha 14 nem tinha completado 15 anos
ainda. Aí eu tava no trem e do meu lado tinha uma menina nova assim, devia ter
uns 18, 19 anos e eu abri a bolacha e ofereci, você quer? Ela, não, não, obrigada
(faz um gesto imitando a garota, esta, perplexa ante o oferecimento da bolacha)
então eu fiquei assim, sem entender, mas agora entendo.”
P. estranha a reação causada por seu gesto espontâneo. Desta forma percebe
também que, ainda que tenha descendência alemã e se sinta diferente das pessoas no
Brasil, também não pertence àquele lugar- Alemanha, onde seu gesto espontâneo é
interpretado de modo tão díspar. Tal episódio leva P. a refletir sobre o seu
pertencimento, o que revela o prenúncio de um conflito:
“Não dá pra você ser as duas coisas, mas você também não é nenhuma das duas
individualmente.”
Aqui se abre um parêntese para relembrar-se o que foi citado em capítulo
anterior, sobre um aspecto aventado por Hommi Bhabha (2001). Fica clara a situação de
“entre lugares” vivenciada por nossa colaboradora, bem como o conflito que disto
advém. Quando colocada em uma situação onde sua atitude não é reconhecida tal qual,
seu pertencimento também é colocado em cheque, ocasionando conflito. No entanto, o
mesmo autor, ao falar sobre hibridismo cultural, aponta para a formação de um terceiro
elemento que de certa forma, poderia levar à superação criativa do conflito.
Naturalmente não é algo simples, mas algo a ser levado em consideração, sobretudo, em
uma nação (aqui se pensando o Brasil) onde a população miscigenada tem em si
presentes elementos e tradições diversas que, frente ao impasse da “escolha” podem
agregar e assim transitar na composição identitária do terceiro elemento como
possibilidade de superação do sentir-se “entre lugares”.
127
“Acho que tem uma coisa, justamente os dois, a gente não tá nem lá nem cá, eu
sinto muito assim, especialmente aqui, mesmo porque lá eu tinha uma situação
diferente, eu tenho muitos parentes lá. Eu tenho uma prima, que ela é adotada, tem
cabelo enroladinho, então é assim, ela fala alemão fluentíssimo, muito melhor que
eu, mas é assim, ela, andando na rua o pessoal não fala que ela é alemã. Então
ela, pra arranjar amigos também foi muito mais difícil e ela acabou é
conseguindo, mas assim, fez amigos do Cazaquistão, russos é estrangeiros em
geral e aí através disso. O ex- namorado dela era do Cazaquistão e o pai dele
tinha cidadania alemã e fez uma coisa parecida com o que minha avó fez, tinha
todo tipo de problema no Cazaquistão, inverno é menos trinta graus (...) passando
fome, falaram que tinham que comer pomba aí ele vendeu tudo o que tinham e veio
com a família pra Alemanha, chegou numa prefeitura qualquer e falou: eu quero
morar aqui, eu preciso de ajuda e ele conseguiu, conseguiu apartamento, num
desses programas do governo, que são muito diferentes dos daqui né, e aí ele falou
assim: olha, foi a melhor coisa que eu fiz, então é assim, eles são tecnicamente
alemães, mas não são também né e foi assim, assim até que ela chegou nos
alemães mesmo, que já tinham outros amigos e tal (...)”
De alguma forma P. busca encaixar-se no que acredita ser “alemão” e o é,
ironicamente, no Brasil. Neste país se vê como diferente das pessoas em seu
comportamento, em sua aparência e em sua forma de pensar. Após o episódio da
bolacha, retrata o exemplo da prima adotada, compara-a como também sendo “nem lá e
nem cá” algo que tranquiliza P., uma vez que diferente da prima, P. se parece
fisicamente com os alemães, então “é” alemã. Com base nisto legitima seu personagem,
diminuindo o conflito gerado por não ser nem uma coisa e nem outra.
Outro dado, demonstra que a história de vida de sua família tem pontos de
aproximação com a história da família do namorado desta prima. Este emigrou devido
às necessidades que passavam no Cazaquistão, assim como a família de P. Para ela a
descendência alemã e sua aparência são considerados facilitadores de sua inclusão na
sociedade alemã, enquanto a prima e o namorado do Cazaquistão, tiveram dificuldades
“até chegarem, nos alemães mesmo.” Logo P. com tais colocações realiza alguns
ensaios que a afastam de maiores dificuldades com a adaptação, pois é alemã.
Após mais um parêntese para falar das bolachas e da associação com a história
de emigração da prima e do namorado, seguiremos com apontamentos sobre outra
viagem de P. a Alemanha.
“Então assim eu lá já conheci um monte de alemães por causa disso, mas por
causa do trabalho também né, quando eu fui pra lá, por exemplo, (visitou a
empresa cuja filial trabalha aqui no Brasil), conheci a cidade (diz o nome da
128
idade) e achei horrível, não quero sair de São Paulo para ir pra uma cidade assim.
Então fui a cidade (diz o nome da cidade) e lá tem um riozinho tranquilo e não era
verão era outono já, e as pessoas são muito felizes lá e eu perguntei pra onde
vocês vão quando tiram férias, porque isso aqui já é tão lindo e eles viajam muito
porque tem condições também e aqui né, só de pedágio...”
P. expressa o desejo de viver uma vida tranquila, em uma cidade diferente de
São Paulo “onde as pessoas são felizes” e percebe que isto é possível na Alemanha,
onde há uma cidade em que não se precisa viajar para se estar em férias... O contrário
do que vive em seu cotidiano. Desta forma, para viver o que pretende ser seu projeto,
valeria a pena arriscar-se, até mesmo em algo que em um primeiro momento, P. não
pretende ser...
“Então é esse tipo de coisa, se for pra ser vendedora, faxineira, garçonete,
qualquer coisa, qualquer coisa. E essas situações acabam fazendo você crescer
muito né, esse tipo de coisa e eu falei, eu preciso ir pra lá, pra fazer qualquer
coisa. Eu preciso ver, tirar, tentar, tirar isso do meu sistema porque eu não me
sinto feliz aqui no Brasil, é muito barulho, o barulho me incomoda muito.”
P. vislumbra a vida em uma cidade que mesmo próxima à estrada é silenciosa e
cheia de estrangeiros, é civilizada.
“A casa da minha prima fica em uma zona industrial e a cidade tem muito
estrangeiro, um alto grau de estrangeiros e assim sem preconceito, mas uma
cidade que tem mais estrangeiros, você imagina, também é um lugar mais sujo e
tal e não, ali é lindo e mesmo assim, um silêncio absurdo, minha tia pediu
desculpas pelo barulho e eu falei barulho, que barulho, ah o barulho da Autobahn
(estrada) e que Autobahn, imagina, eu tô ouvindo o barulho do Bach (riacho) e na
verdade não era o Bach era a Autobahn! Um silêncio magnífico.”
Quando P. se refere ao barulho pode associar este ao ruído da cidade grande
onde mora atualmente e está descontente. Menciona para tanto, a paz que pretende
encontrar na Alemanha- lugar onde mesmo um bairro “cheio de estrangeiros” pode ser
silencioso e agradável.
Ainda sobre o silêncio, P. comenta:
“E aí um dia ia ter jogo Alemanha versus Áustria, e aí a gente foi assistir, eles tem
um Party keller (salão de festas no porão) é tipo um pedaço do porão que eles
usam quando querem fazer festas, pra não fazer barulho e não incomodar os
vizinhos! E a gente chegou lá e eles puseram a TV e tal e eu falei e aí vocês não
iam fazer barulho? Mas mesmo se não tivesse no Keller (porão) não ia ter barulho
algum, então eu sinto muita falta disso do silêncio.”
129
O silêncio o qual P. sente falta parece representar a relação que ela faz deste com
o respeito, ou com os preceitos que aprendeu em casa pela forma como foi educada
(lembramos que é fato, os alemães costumam falar baixo em reuniões, ou restaurantes.
Falam alto onde lhes “é permitido” como em festas de carnaval ou bares, por exemplo)
e espera que outros correspondam. P. vivencia um desencontro entre o local onde vive
sua conduta e forma que espera que outros se comportem. P. vive assim um conflito
constante.
“Então tipo sabe têm umas coisas assim né, hoje eu fui pra academia e um cara
parou atrás de mim e bloqueou totalmente a minha saída eu fiquei doida, é muita
falta de respeito entendeu e o cara achava que tava com razão, ah porque eu não
achei lugar... E tive que chamar ele e ficar esperando... Então sabe esse tipo de
detalhe e eu tenho uma amiga que mora em Cotia e eu tava devendo uma visita pra
ela e aí, era aniversário dela e eu fui lá. Ela marcou o evento começando às 19
horas e eu, me esforçando pra me atrasar, geralmente me esforço, faço um esforço
tremendo pra me atrasar pras coisas e era 7:20 e eu já tava lá, não tinha ninguém
e ela nem tinha tomado banho ainda e aí eu ficava assim, tipo sentada no sofá e as
pessoas arrumando as coisas e tipo assim né...”
P. demonstra sua insatisfação, não se sente confortável em um ambiente onde
sua forma de ser não seja a norma, não é comum. Acredita que foi criada deste modo e
isto contribui para seu descontentamento atual.
“Com certeza, eu acho que fui criada assim na coisa alemã de pensar o que quê a
situação vai fazer para os próximos, sempre minha mãe, tudo o que eu ia fazer
minha mãe falava você vai incomodar o próximo então, isso foi ficando foi
ficando, então é assim se você marcar um horário e chegar mais tarde pô é falta
de respeito a pessoa se preparou pra aquilo, pra aquele horário. É que nem você
vai no médico, você marcou às sete horas e ficou até às 9 você vai ter que justificar
duas horas pro seu chefe entendeu, o que na verdade, não tem por quê todo mundo
perder seu tempo então era assim, ah não faz isso que você vai incomodar e assim
isso você chega numa conclusão, se todo mundo fizesse isso, ninguém se
incomodaria com ninguém né, é meio impossível mas, assim acho que foi de
criação mesmo assim, com certeza.”
Curiosamente, o barulho também pode fazer falta, quando este denota uma
forma (brasileira?) de expressarem-se emoções.
“Pra você ter uma noção a gente tava numa festa na Alemanha e tava tendo o jogo
Alemanha versus Áustria, não era um jogo tão importante, tipo amistoso não sei e
aí o tio do namorado da minha prima, a gente tava na casa dele (...) e ai a gente
vendo o jogo e aí assim, não acompanho muito futebol, mas assim, quando tem
algum jogo assim internacional, algum time de países aí acho legal e aí tava
sentada no banquinho lá né, vendo aquela tevezona (...) aí a gente assistindo o
130
jogo e tava emocionante tal e o pessoal tão quieto! Eu parei, olhei pra minha mãe,
minha mãe pra mim... É ta bom, em Roma, faça como os romanos né , aí tava
ficando emocionante e saiu um gol da Alemanha e todo mundo quieto! Aí eu mãe,
foi gol mãe? Será que foi mesmo gol? Nem o narrador gritou gol, nem um tipo de
indicação, ai falou ah... 1 X 0 para Alemanha... Aí eu falei pro cara, vocês sempre
assistem jogo assim? E ele ah, não tá valendo nada... Tá bom né...”
Após percorrer-se o sentido do silêncio para P. o modo como percebeu as
mulheres empreendedoras de sua família, a forma como se sente estrangeira no Brasil e
algumas impressões iniciais que teve nas visitas à Alemanha, pode-se atentar para a
compreensão de seu desejo de viver na Alemanha como um projeto de vida em
construção permanente, reforçado a cada viagem, a cada experiência desagradável no
Brasil.
“O desejo de ir pra Alemanha acho que veio depois que fui a primeira vez, com 14
anos. Achei tudo muito bonito, muito organizado e aí eu falei gente é isso que
quero pra mim, me identifico com isso e acho assim, isso deveria ser o normal. Aí
fui crescendo e tal e aí assim, a vida entrou no caminho das coisas e aí em 2008
sabe quando dá a última crise de adolescência minha amiga me chamou pra ir no
Wacken (festival de música na Alemanha) aí eu falei quer saber de uma
coisa?Vamos! ”
P. relaciona esta viagem com o início de sua vida adulta e independente. Percebe
ainda que neste país é possível concretizar coisas com menos dinheiro e novamente
reforça a ideia de uma vida melhor do que a que vive no Brasil.
“Na época eu tinha um salário ridículo, mas dividi em 12 vezes, a gente vai lá e
começa a contar as moedas e eu fiquei lá, nem sei, 8 dias (...) eu já tava adulta
pagando tudo sozinha e aí eu percebi que o dinheiro que gastei lá eu não passaria
8 dias aqui, então assim, mesmo fazendo vezes três e aí eu falei nossa como eles
conseguem?”
P. desfruta a experiência no exterior percebendo a cidade, os espaços e a questão
econômica, sempre como muito diferentes do que a realidade no Brasil. Entende que a
Alemanha é um lugar que combina com o que pensa e também sente-se inserida nesta
forma de organização. Sobre o Brasil retrata ainda o descontentamento produzido por
sua dificuldade em encontrar roupas e sapatos para o seu tipo físico. P., em comparação,
conta-nos sobre sua incursão por lojas na Alemanha, aonde as calças “chegavam até o
chão”.
131
Faz ainda uma comparação entre a pequena cidade alemã que tem tudo e
Guarulhos:
“(...) falei gente como eles conseguem, Guarulhos tem milhões de pessoas e só tem
uma livraria e ainda uma loja que é dentro do shopping... e eu falei assim como
eles conseguem, tem tudo nesta cidade, eles não precisam ir pra uma cidade
grande pra ter as coisas.”
Em 2008 decidiu que “tinha que fazer alguma coisa” e relaciona este desejo à
vivencia que teve na viagem. Hamburgo é a cidade natal de sua mãe, considerada linda
por P. “eu fiquei apaixonada por aquela cidade”. E para explicar seu encantamento,
segue trazendo exemplos.
“A mulher contando as histórias de Hamburg, nossa eu achei fantástico, ela foi
contando, naqueles passeios que a gente fez nos ônibus com dois andares que
Hamburg é feita igualmente de um terço de água e um terço de natureza e nossa, é
visível esse equilíbrio.”
A cidade reflete o equilíbrio que P. busca para si, contudo, é questionável até
que ponto tal equilíbrio provindo da ideia que P. faz da cidade, pode proporcionar
equilíbrio pessoal? Talvez P. em sua busca identitária e desta associada a um local,
ainda não tenha percebido que, o quê pretende ser não está somente relacionado ao que
vai encontrar no lugar idealizado, mas ao que está sendo neste lugar, como, e porque o
percebe de determinada maneira.
O que se pensa aqui é a possibilidade de P. estar aprisionada a uma identidade
pressuposta, ou seja, ligada ao papel que um “alemão” deve exercer, como deve
comportar-se e como tudo ao seu redor funciona bem e de modo equilibrado. Questionase se este equilíbrio por P. almejado não seja o equilíbrio sugerido pela alusão a tal
identidade pressuposta e assim re-posta por P. que em outros termos, pode aprisioná-la
ao invés de libertar. Alude-se à questão ligada à política de identidade neste caso
retratada. O funcionamento ideal, a limpeza, a educação, a ordem, o silêncio, entre
outras prerrogativas do “ser alemão” ou do “modo alemão de ser” manifestam-se com
frequência no projeto de quem P. gostaria de ser.
Na Alemanha, P. acredita poder ser ela mesma, não precisar fingir sentir o que
não sente. Para tanto, fala de características culturais tanto do Brasil como da Alemanha
no modo como as pessoas se expressam no cotidiano.
132
“(...) lá isso é (...) muito claro e você não tem a obrigação de ficar sempre sorrindo
o tempo tudo, acho que esse é o ponto e aqui você tem a obrigação de estar
sorrindo o tempo tudo. Teve uma dia que eu não tava muito feliz no geral, no
trabalho, eu tava assim, normal, mas não tava muito feliz e as pessoas nossa e aí tá
tudo bem? E eu nossa sim, só não tô né... Mas lá você não tem essa obrigação,
entendeu. Se eu tiver sem sorrir o tempo todo ninguém vai achar estranho, porque
eles recebem melhor essas variações de humor eu acho. Aqui a gente aprende isso,
desde criança se você não tá sorrindo o tempo todo, tem alguma coisa errada.(...) é
impossível né a gente estar feliz assim, sorrindo o tempo todo, não é nem saudável
eu
acho.”
No desenrolar da entrevista percebeu-se o descontentamento de P. com a vida
que leva no Brasil e com a forma que as pessoas se comportam. Isto ilumina o que se
referiu sobre a manutenção do ideal proporcionado pela identidade pressuposta (a partir
de uma política de identidade) e a busca que se acredita emancipatória pelo sujeito (no
caso de P. mudança para Alemanha com um contrato com a empresa onde já trabalha
revela sua luta por autonomia e emancipação em outro país). A dita “emancipação”
pode estar mascarada como sucesso- ascensão no trabalho e mudança para um país que
corresponda o que se vislumbre como ideal. Incita-se “mascarada”, pois, no caso do
sujeito vinculado à identidade pressuposta, o aprisionamento causado pode impedir-lhe
o acesso a metamorfoses, gerando manutenção de preconceitos e visões em anamorfose,
por exemplo, o impedimento a metamorfoses aqui compreendido como reposição da
personagem ligada ao ideal de ordem, ao jeito que se construiu o “ser alemão”
ocasionando a não abertura a críticas proporcionadas pelas situações que se vive. As
situações podem ser analisadas, por vezes, com olhar enviesado. O dar-se da identidade
como constante transformação, perpassa modelos, ideais, situações políticas, históricas
e econômicas que vão se refletir no sujeito, no modo como faz suas escolhas e também
na busca por um modelo que acredite condizente com o projetos de vida que formula.
Seguir-se-á com um exemplo que poderá iluminar o que se explanou até aqui:
“Meu vizinho faz dois anos cortou todas as árvores do quintal dele e minha tia foi
lá e falou o que quê você tá fazendo cara? E ele disse que faz muito trabalho, faz
muita sujeira... Então é com esse tipo de coisa que eu não consigo lidar, não é
possível, não é normal.. E aí, ah eu preciso ir embora... E aí a vez passada eu já
queria ficar na Alemanha, mas ai a vida entrou de novo no caminho, a gente foi só
de férias.”
Fica claro o pensamento de P. com relação ao comportamento que não é aquele
por ela aprendido, muito menos almejado como ideal. Contudo, ainda que queira
133
encontrar um outro lugar onde comportamentos que não concorde não aconteçam, a
vida ainda a prendeu a um lugar no qual não queria permanecer, onde não se reconhece.
Como lidou com isto?
P. fala da forma encontrada para lidar com tais conflitos, partindo da elaboração
de seu projeto de vida. Novamente, conta-nos sobre outra viagem à Alemanha que desta
vez, envolveu um planejamento para quando “ficasse de vez...”
“Nossa, essa viagem foi muito legal, tava todo mundo junto e foi a primeira vez
que minha mãe voltou pra Alemanha, então foi uma coisa muito especial. E aí a
gente já foi com essa visão de ah será que a gente conseguiria morar aqui, vamo
ver como é que é ficamos vendo os preços, anotando comparando, porque todo
mundo fala ah mas lá você vai ter que pagar aquecimento e aqui você não paga
aquecimento, mas em compensação você come lá um terço do preço que você
come aqui né... As pessoas conseguem morar sozinhas e aqui eu jamais
conseguiria morar sozinha, ou eu moro sozinha ou eu vivo né...”
O projeto de P. vai além da identificação com a Alemanha ou com o modo de ser
alemão, demonstra a dificuldade que o jovem tem no Brasil de sair da casa dos pais, ter
autonomia, independência financeira. Cabe a reflexão de que todo projeto identitário
envolve as condições sociais e históricas as quais o individuo está inserido. Estes
decorrerão de uma falta sentida ou de uma meta visada (CIAMPA, 2012) um ou outro,
impulsionam ao movimento.
“Aí na última semana que eu tava lá fui pra cidade (tal) conhecer a empresa que
trabalho, mas não tava legalmente a trabalho fui lá conhecer a cidade e aí tinha os
meninos que eu já conhecia que sempre vêm na empresa aqui no Brasil trabalhar e
eles ah legal vamos sair tal vamos fazer o que, aí tinha um jogo de futebol aí fomos
no centro, nos barzinhos pra assistir ai falei bom, vai tar todo mundo quieto, mas
nossa outra coisa, tinha até cavalaria no centro da cidade! (fala animada) me senti
assim meio no centro de São Paulo só que um pouco mais seguro, porque né, eu
não senti medo em nenhum momento, eu peguei trem, todo mundo vestindo as
cores do time, com alguma coisa, era camiseta, chaveiro e tal, mas muito legal.
Peguei o metrô cheio, era senhora, criança, cachorro era todo mundo com alguma
coisa e a gente foi na Kneipe (bar), assistiu o jogo, todo mundo curtiu muito e ele
ainda me pagou uma dose de, como chama, um licor de alcaçuz, uma coisa forte,
um gosto forte, imagina né, fortíssimo, nossa que coisa e vamo embora , vamo
embora, já era quase uma hora da manhã e a gente foi andando pelo meio da rua
assim, sossegado, já tava tudo limpo, aí ah tô com fome, fomos comer, pegamos o
metrô e quando fomos fazer a baldeação, perdemos o último trem(...) a gente
andou na cidade no meio da madrugada e em nenhum momento eu vi alguma coisa
estranha, muito sossegado.”
134
Neste contexto, P. traz mais um exemplo de como as coisas podem funcionar em
outro lugar em detrimento de como funcionam no Brasil, que a encorajam a seguir com
sua mudança, seu projeto. A isto acrescenta ainda, sua decepção pelo o fato de possuir
algumas coisas apenas porque sua família a proporcionou em crítica às condições (não)
proporcionadas pela sociedade onde vive.
“Eu tenho carro porque eu herdei do meu pai, se ele não tivesse morrido, acho que
eu não teria e minha prima de lá, assim, com todo respeito, é um zero a esquerda,
ela tem carro, tem Ausbildung (formação técnica- curso profissionalizante
financiado pelo Estado) tem emprego dela, então acho que assim,
profissionalmente eu acho que consigo mais do que eles, então tenho que tentar.”
Ainda que tudo funcione do modo como P. entende ser o melhor e o mais
adequado para si, não sabe se será reconhecida em suas potencialidades. Está posto o
conflito do que fazer caso seu ideal não se concretize. P. mostra-se pensativa...
“Sabe eu li um estudo psicológico, uma matéria que diz que quando a pessoa vai
pra lá ela tem muito trabalho em se adaptar, mas também, quando volta pra cá,
daí nunca mais se adapta.”
“(...) lá, vou ter que trabalhar que nem uma camela, eu não vou ter nenhum amigo,
eu tô fixando muito nisso pra não chegar lá e ter um choque.”
“Eu acho que tô muito preparada pra esse tipo de coisa, eu tô realmente
esperando, porque assim você idealiza o normal, o ser humano idealiza sempre
por bom(...).”
Chegar ao lugar idealizado e ver que as coisas podem ser diferentes passa a ser
uma possibilidade a ser considerada por P. que têm dúvidas sobre como será a
adaptação em outro lugar. De outra forma, ponderaria ela regressar ao Brasil caso seu
projeto não dê certo? A dúvida surge, mesmo que P. evite mencioná-la textualmente. O
tema ocupa seus pensamentos.
Surge ainda durante o relato, um descontentamento frente à sua luta por
reconhecimento ao comparar-se a outros (na Alemanha) que não travaram semelhante
esforço para atingir objetivos de ascensão e estabilidade como os buscados por P.
“Então é revoltante, sabe eu estudei tanto, trabalhei tanto e chego lá às vezes a
pessoa mal terminou a escola e fez só um curso assim pra pegar o certificado, mas
pegou o certificado alemão”
135
Neste relato, P. revela sua revolta para com aqueles que não precisaram lutar
como ela (lutou muito por estar no Brasil, em posição desprivilegiada) e ainda assim
conseguiram obter o certificado alemão, algo que por si só, já é compreendido como
sinônimo de êxito certo. Ao mesmo tempo, certifica-se que estará preparada para
encarar as dificuldades no exterior, pois está muito acostumada no Brasil...
“Então onde eu trabalho eu sou a única mulher na fábrica então já estou
acostumada (colocação sobre ter que se esforçar mais do que os alemães para ter
uma posição de destaque no trabalho) você tem que fazer muito mais que os outros
pra ter uma posição.”
Enquanto refere preparo para as dificuldades devido sua experiência no Brasil,
menciona também um outro olhar, de alguém que admira e que, de modo semelhante a
ela, viveu a experiência de morar e trabalhar em outros países. P. menciona este
exemplo como o de alguém que, além de ter “dado certo” em seu plano de mudança (no
caso- emigração), passou após a experiência fora do país a ter outro olhar para com os
trabalhadores brasileiros.
“(...) o meu chefe que passou quatro anos na Alemanha me disse que nunca
conheceu uma pessoa assim tão alemã pra trabalhar como eu. Pra mim é assim ,
ou é , ou não é e por ex, na fábrica tem uma pintura no chão pras coisas, porque é
muito difícil as coisas ficarem no lugar aqui no Brasil né, então tem uma pintura
no chão lá na fábrica pra deixar o lixinho, do tamanho certinho, pra ele saber que
o lixinho vermelho vai no quadradinho vermelho e o preto, no preto, uma coisa
assim, super intuitiva e você imagina que a pessoa vai entender e aí você vira as
costas e chega lá o negócio tá torto e aí você volta lá e fala, não, dentro! Outro dia
eu falei pra ele que não aguento mais é uma coisa muito óbvia, muito simples e já
tá pintado no chão pra facilitar a vida deles e eles não conseguem é tudo torto,
nada tá reto e também, eu trabalho com tecnologia, engenharia e pra mim as
coisas são todas retas, pra mim as coisas tem que estar retas, minha mesa esta
sempre assim, 90 graus e eu ouvi uma expressão uma vez que é assim se não é um
ângulo reto é um ângulo errado (risos) e eu achei o máximo porque me sinto
assim, e aí eu cheguei na fábrica e disse assim que as pessoas são bagunceiras,
não tem o menor método de trabalho sabe, não aguento mais e ele(chefe) falou
assim você tá exigindo muito do pessoal. E eu tô exigindo uma coisa básica, ou é
ou não é e ele falou assim não, pensa comigo, e ele passou 4 anos na Alemanha e
eu, fiquei abismada com esse pensamento. Olha na rua, não tem uma rua reta, não
tem uma calçada reta, não existe uma casa reta né, essas pessoas vem de classes
mais pobres e não tem é, uma lei reta, não tem um serviço reto, então aí eu fiquei
assim nossa é realmente, então assim a pessoa cresceu nesse ambiente, que não
tinha nada, o natural é não ser reto e eu nunca tinha me tocado disso. E agora eu
tô um pouco mais leniente com a coisa, mas mesmo assim eu acho que ou é ou não
é e isso acho que vem muito da minha mãe e da minha avó porque ou é ou não é,
se você pôs no prato vai comer, entendeu?”
136
No relato abaixo, P. exemplifica o pensamento “em ângulos retos” de sua mãe e
sua avó, que justificam seu modo de ser e até mesmo de permanecer com estas
referências.
“Minha mãe, por exemplo, nunca teve paciência pra esse tipo de coisa. Eu acho
que isso bem muito dela assim. Minha avó também não, era um amor, mas não me
venha com churumelas. Assim, exatamente, sejamos práticas isso é, isso não é, não
é.”
Neste exemplo P. nos apresenta o modo como foi socializada por sua mãe, tia e
avó e como esta socialização promoveu internalizações de olhares unilaterais em P.
Entretanto, na conversa com um outro significativo (seu chefe- quem respeita por ter
vivido e trabalhado na Alemanha) que P. percebe haver a chance de ampliar seu olhar e
sua compreensão para o que ocorre ao seu redor, ainda que escolha não fazê-lo.
Nota-se que o personagem “alemão” ou a “trabalhadora-alemã” repõe-se
mantendo P. na mesmice, mesmo conhecendo uma outra forma de pensar os fenômenos.
Este exemplo dá pistas sobre como P. vivência o mundo através de seu personagem que
“em ângulos retos” não permite curvar-se, ressignificando modos de ver o mundo.
Aqui, mais uma vez, um olhar ou talvez um modo de viver em anamorfose.
Compreende-se o porquê de muitas vezes P. não conseguir adaptar-se às situações com
as quais não concorda, sentindo-se como uma estrangeira. Foi socializada em ângulos
retos e entende estes como corretos e assim, busca-os, também para seu projeto de vida.
Esta questão, longe de ser algo meramente descritivo, causa sofrimento,
expresso em palavras por A.P.
“Eu acho que a gente sofre porque exatamente isso aqui é tudo muito torto e a
gente foi criado de um jeito muito reto os móveis da minha casa, por exemplo, as
pessoas vão em casa e dizem nossa sua casa é diferente, por que tá tudo alinhado
de uma certa maneira sabe, é um cômodo pra isso, outro pra aquilo não é assim
aquela coisa meio bagunçada né, que tem, que eu vejo nas outras casas então as
coisas são todas mais altas, você entra no metrô e bate a cabeça, entendeu, as
coisas não são adaptadas. Eu sinto que a gente não é...(pausa) Você viu os metrôs
novos da linha amarela? Eu quase chorei! Eu nunca consegui sentar né, mas tudo
bem, por que tá sempre cheio, mas você sempre tem que abaixar a cabeça pra
entrar, um dia, eu entrei tive que abaixar a cabeça entendeu? E ai fico pensando
assim, gente, não é normal. Isso por que são os trens novos e a tendência mundial
é crescer por mais que a média brasileira ainda esteja bem atrás, você tem que
pensar quando está fazendo uma linha de metrô, primeiro tem que pensar que vai
137
demorar pra ficar pronto e vai botar pra funcionar pra sempre, entendeu, então eu
abaixei a cabeça assim pra entrar e meu, esse tipo de coisa assim, entendeu? Não
sei falta um pouco de, sei lá, não sei só sei que me sinto muito estrangeira aqui
assim, sabe? Até andando na rua as pessoas olham pra você assim e falam é
estrangeira.”
P. vivencia o lugar onde vive em anamorfose e busca uma forma perfeita para se
encaixar. Contudo, qual será a fórmula para criação de formas em ângulos perfeitos,
para se ter a vida perfeita? Uma alternativa seria talvez permitir-se enxergar outras
formas que possam moldar-se às diferentes pressões, meios, temperaturas do ambiente
etc; nestes exemplos que partem da concretude das formas para pensar-se o social e o
sujeito em movimento, há que se exaltar a existência do sofrimento produzido pela
crença da existência de tais “formas perfeitas” – formas de ser que no aprisionamento
do indivíduo, também o impossibilitam de constituírem projetos pautados na autonomia
que lhes viabilizaria liberdade para além dos modelos pré-moldados. Liberdade para
construírem-se formas novas, deformar, mudar, permitir o surgimento da maleabilidade.
Não é isto que o funcionamento capitalista ensina às pessoas? A lógica de
funcionamento em ângulos retos mantém o aprisionamento aos modelos estabelecidos.
P. coloca-se no mundo como forma angular e entende esta, como a forma ideal
que compõe o personagem que re-põe e ainda, que cabe em seu projeto. Projeto este que
combine com o modo como foi criada.
“Então as pessoas falam que eu sou antissocial é isso de cumprimentar com
beijinho, eu trabalho num setor que são, sei lá 20 pessoas, todo dia todo mundo
cumprimenta todo mundo com beijinhos e eu já falei gente não, sem beijinho, bom
dia tá ótimo, te vejo todo santo dia e eles ai você é muito fria, gelada. Aí eu falei
eu, se você vê a pessoa uma vez no mês, mas todo dia fica difícil, então, não gosto
dessas coisas de cumprimentar com beijinho e tal e coisa eu acho que é muito de
criação porque na verdade, não sei, não sei...”
P. repõe a personagem trabalhadora-alemã-antissocial e entende isto como
parte de sua criação. Tal fato combina com o que busca nas formas perfeitas, mas, a
longo prazo, ainda não sabe muito bem. Segue frente ao “não saber” repondo seu
personagem, ainda que tente não dar respostas germânicas:
“Ai outro dia o cara da produção ficou olhando pra mim e dizendo nossa que
coisa feia você está toda de bota, pô eu trabalho de bota, é questão de segurança e
aí eu fiquei olhando pra ele e pensando, bom eu vou me segurar, não vou ser
138
germânica nessa resposta. Porque na Alemanha eles não tem dó né, você faz uma
pergunta idiota eles vão te responder né... A altura.”
O que é uma “resposta germânica”?
“Uma resposta germânica é quando você aponta uma resposta óbvia que os caras
não enxergam. É uma coisa óbvia. Tem muita coisa assim, que eu penso eu não
vou responder. Por exemplo eu sempre pego um café grande, já faz 6 anos que
trabalho na empresa e sempre pego um café grande. Aí eles me falam, nossa vai
tomar tudo isso eu digo não! É enfeite, sabe, esse tipo de coisa, não tenho
paciência, eu respiro fundo, internalizo...”
A resposta germânica passa a ser a resposta do ângulo reto, uma vez que, frente
ao óbvio, não há que se questionar.
Por um lado, existe a dificuldade no sentir-se estrangeira no Brasil, lugar onde
nasceu e cresceu, entretanto, é algo por P. compreendido como positivo e mesmo que
não seja a forma ideal, em um país onde os meios de transporte, as roupas e os
comportamentos não lhe caibam. P. escolhe manter-se nesta posição e ser assim
reconhecida. P. é a forma errada num lugar certo, ou melhor dizendo, possui a forma
certa e o lugar está errado. Como estrangeira no lugar errado, mantém a mesmice de seu
personagem que só caberá perfeitamente no encaixe proporcionado no país onde tudo é
perfeitamente encaixável, lugar onde o modelo estruturado nos ângulos corretos é a
norma, o aceitável e o propagado. Logo, o fato de ser estrangeira no Brasil pode não ser
a motivação ideal para partir, mas ao perpetuar este personagem, busca ser reconhecida
como uma outra P. que não brasileira dos de ângulos errados, passando a ser força
motriz para a partida. Não é o ser estrangeira que a faz partir, mas sim ser reconhecida
como P. alemã.
Na concepção de ângulos corretos, parece não haver espaço para o improviso,
para a constituição identitária diferente do planejado, diferente do que compõe a política
de identidade na qual o indivíduo está inserido (ou almeja estar).
Neste exemplo, ao comparar a cultura japonesa a alemã, P. se surpreende com o
que encontra.
“(...) no meu bairro tem muito japonês e eu sempre achei a cultura deles muito
interessante, sabe eu acho muito, muito interessante, eu jamais moraria lá né, que
139
nem eu quero morar na Alemanha, mas acho muito interessante, muito curioso eu
leio bastante e realmente os japoneses que eu conheço que tem minha idade, não
têm a menor relação com a nave mãe. (se refere ao Japão). Isso que é pra eles é
uma coisa mais opcional e eu nunca tinha pensado nisso, tenho uma colega de
trabalho que é assim, japa de tudo e aí você fala e aí vamo fazer não sei o que lá,
tipo comer sushi e ela assim, não... É uma prerrogativa nossa achar que o cara
gosta né (risos) e aí não, não gosto. Mas tá bom e você viu aquele negócio e ela,
não, então qualquer coisa relacionada ao Japão ela mantém uma distância e eu
fico assim, nossa, mas por que será né? Eu até brinco com ela, nossa,, você nasceu
no Paraguai né, porque... (risos) você não é japonesa de verdade, e eu achei isso
curioso, nunca tinha pensado nisso assim, objetivamente. Não sei porque que os
alemães são assim mais próximos (pausa) eu acho... (pausa) não sei mesmo...”
Houve neste exemplo espaço para P. observar outro descendente de imigrantes
atuando em algo considerado fora da norma, algo diferente do que se espera de um
japonês. Na concepção de P., um japonês do Paraguai é um não japonês, um japonês
falso. Neste comentário P., além de seu estranhamento para com a postura da amiga,
traz a ideia de que as tradições e costumes sejam mais propagados e mantidos entre os
alemães.
Ainda falando dos japoneses, P. lembra-se do fator pontualidade. Algo muito
importante:
“Eu tô pensando aqui em algumas variáveis que não se repitam nas outras
culturas, porque com relação a pontualidade, é uma coisa que os japoneses
também têm e é uma coisa que me atrai demais pontualidade especialmente, tanto
que assim, por exemplo a gente vai sair em turma e eu, eu tenho pavor de pegar
carona, eu não pego carona, só eu vou dirigindo então eu é que dou carona pra
todo mundo. Então eu falo assim: 10:20 eu passo na sua casa, 10:27 vou na casa
do fulano e ai o pessoal começou a tirar sarro de mim. Eles imprimiam a lista que
eu mandava e ficavam assim com o relógio do lado, aí eu encostava o carro e eles
falavam não é possível! Como que você faz isso? Eu não sei, é instinto, não sei
como que eu faço isso porque mesmo com ônibus e metrô eu consigo calcular o
tempo correto e chego na hora que tenho que chegar, se eu não tenho certeza do
horário que vou chegar então eu aviso, olha, entre 10 para as 3 e 3 e 10 eu estarei
ai, mas nunca passo disso e no fim eu acabo chegando 3 horas em ponto,
entendeu?”
A questão ligada ao ser pontual vale um comentário à parte. Em nossa
experiência na Alemanha esse era um ponto que provocava debates. Ouviam-se as
pessoas discutindo este fato, de modo geral, de reuniões sociais a encontros na
universidade e até mesmo, no bate papo em filas, ou nos transportes públicos. A
pontualidade é vista como algo muito importante, muitas vezes associada à boa
140
educação e ao caráter do sujeito. A pessoa que atrasa, não importa o tipo de
compromisso, seja este social, ou compromissos como trabalho ou entrevista de
emprego é igualmente vista com maus olhos, com menor valor como alguém que não
respeita normas e não respeita aos outros, sendo assim pouco confiável.
Percebemos também, em nossa experiência com outras nacionalidades que o fato
destes tenderem a atrasos os tipificava como estrangeiros, ou melhor dizendo,
estrangeiros enquanto estigma. Logo, eram considerados “estrangeiros” por seu
comportamento, por não adequarem-se às regras locais de convivência. Muitos sofriam
consideravelmente, pois, ao não se adaptarem eram também vistos como
“irrecuperáveis”.
P. percebe os alemães mais próximos de sua cultura do que os japoneses, isto
mesmo ambos há tempos no Brasil. Tal fato pode ser explicado pelo Deutschtum (já
mencionado) que na história de P. se configura como a política identitária, na qual está
inserida.
Em termos gerais, P. faz um balanço e ao final da entrevista coloca as seguintes
reflexões sobre quem é:
“Eu não sei, não me sinto os dois ao mesmo tempo, tem momentos que me sinto
meia brasileira e tem momentos que me sinto meia alemã mas em geral alemã. Eu
tô tentando pensar aqui... (pausa) Não sei realmente. Talvez quando eu tiver lá eu
consiga identificar isso, eu pensaria pô acho que isso seria mais legal no Brasil,
ah esse ponto, esse...”
“(...) ser descendente de alemã me afeta 100%. Muitas das minhas características
de personalidade vêm, com certeza, disso. Seja genético ou comportamental...
Muitas pessoas acham que sou efetivamente estrangeira e que vim parar no Brasil
em algum momento da vida, por causa de coisinhas simples, que para mim, minha
mãe, minha tia e qualquer alemão considera básico: pensar nas suas ações e se
elas poderiam incomodar ou prejudicar o próximo. Exemplo besta: procurar um
local adequado para atravessar a rua. Com certeza influenciou no meu projeto de
vida, pois nunca me senti lá muito brasileira e isso fez com que eu buscasse
alternativas de locais onde eu talvez me sentisse mais em paz. Antes de pensar em
algo radical como voar pelo atlântico, pensei muito em mudar para o interior, ou
para o sul, ou para o interior do sul (Risos). E o que eu pretendo ser é uma
descendente de alemã na Alemanha: tento conscientemente unir o melhor que o
meu lado alemão tem a oferecer com o melhor do que minha vivência e educação
no Brasil tem a oferecer. Sei que não conseguirei ser alemã de tudo, nem é meu
141
objetivo. Descendente de alemã na Alemanha para mim é um objetivo que talvez
consiga equilibrar as balancinhas internas da minha cabeça, sabe? ”
Demonstra o que ficou da entrevista: uma questão para se pensar...
“Olha agora eu vou ficar matutando sobre isso... Da onde viemos e quem somos
não é uma coisa que pensamos todo dia né!”
A identidade pressuposta “alemã” lhe é condicionada e P. busca nesta seu
pertencimento, quando repõe o personagem “alemã” no cotidiano, na sua forma de
trabalhar, pensar e também de agir. Questiona-se, contudo, o grau de idealização
implicado em seu projeto. A Alemanha construída por P. é a Alemanha que já visitou
algumas vezes, mas também, aquela relatada por seus familiares que de alguma forma,
supomos terem mantido o projeto de retorno. P. parece lançar-se a este desafio, em que
repondo o personagem alemão, mantém o plano da família em funcionamento de modo
a “equilibrar as balancinhas internas.”
142
Ponderações acerca do bloco “jovens descendentes”:
Neste bloco trouxemos o que chamamos “jovens descendentes”. Foi possível
observar características distintas entre estes e também, algumas semelhanças.
Com E. foi possível perceber a importância da questão relacionada ao ser
descendente de alemães quando falou sobre sua relação com os familiares, a forma
como os avós vieram para o Brasil, a questão quase épica envolvendo o navio Graf
Spee, o modo de vida da família no Brasil, forma como empreenderam e a relação
com a casa que seu avô construiu no litoral. O valor que E. associa à sua ascendênciavincula-se à experiência e histórias de sua família, pautadas no empreendedorismo,
trabalho e força de vontade. Elementos que busca desenvolver enquanto qualidades
assimiladas de seus familiares.
A forma como se deu sua socialização, sobretudo, mediante a relação com o pai
e as experiências da infância na Alemanha, permitiu-lhe criticar algumas posturas ou
mesmo o modo de vida de seus familiares, por exemplo, quando questiona o fato de sua
avó alemã não ter tido amigos no Brasil e ter optado por não aprender o português.
Outro ponto importante foi a observação da relação de seu pai com o trabalho, o
modo como foi levado a viver para trabalhar, culminando em adoecimento e por último,
a crítica que pôde desenvolver partindo de suas experiências ligadas à religião na
Alemanha- país de origem de seus ancestrais que, contudo, segmentaria o seu vir a ser
quando escolhas para sua vida seriam impostas pelo Estado. Sua crítica quanto ao modo
como a religião fora praticada na Alemanha, o levou à percepção de que fora
direcionado, faltavam-lhe meios que proporcionassem autonomia para refletir sobre
suas escolhas, no momento que tal direcionamento ocorria.
Neste contexto, o papel do pai de E. foi relevante. Quando decidiu que a família
deveria retornar ao Brasil para que os filhos pudessem frequentar a escola para no futuro
poderem escolher quem queriam ser, mostrou-se como ponto importante para que E.
percebesse o Brasil como um país onde há maior liberdade de escolha. No entanto, E.
expressa também considerar o país como sendo “não grande coisa”, revelando com isto
143
sua insatisfação quanto a desorganização do país, entre outros aspectos. Importa
ressaltar que o “não ser grande coisa” é fruto da crítica; Não nos parecendo algo
construído a partir da visão de terceiros, parte da própria reflexão.
E. apresentou em sua narrativa o modo como construiu a visão de que caberia a
ele o desenvolvimento de sua autonomia para ser quem quer ser, aliando isto aos valores
familiares somados à sua história construída no Brasil e na Alemanha. Seu projeto de
vida visa o “trabalhar- ser seu próprio chefe- ter autonomia” algo que parece refletir seu
posicionamento frente à vida, no modo como age. Foi possível observar que a relação
que tem com sua ascendência alemã levou-o a construir o seu estar no mundo de modo
crítico e não de maneira a aprisioná-lo a modelos, ou padrões pré-estabelecidos.
Na história de M. observou-se a alusão significativa de suas percepções
relacionadas ao meio onde cresceu e se socializou. O fato de ter crescido em uma
família de trabalhadores do ramo agropecuário, em uma pequena comunidade de
colonização alemã em Santa Catarina, foi preponderante no que apreendeu sobre como
se comportar, bem como no entendimento que desenvolveu sobre questões relacionadas
ao modo como sua comunidade fora tratada pelo Estado (lê-se como fora tratada pelo
Brasil, em seu entendimento).
M. desenvolveu-se em um meio cujas circunstâncias o levaram a relacionar sua
descendência alemã ao abandono pelo Estado, à falta de infraestrutura como, por
exemplo, falta de recursos para a saúde. Entendeu que deveria conquistar seu espaço por
meios e esforços próprios, a exemplo do que se deu com a colonização alemã outrora,
conforme o modo como seu avô e familiares se constituíram no Brasil.
Associa o fato de ser descendente de alemães com algo considerado ruim (ou de
menor valor) pelos brasileiros e entende que devido aos problemas de saúde, é
estigmatizado, não tendo chances de trabalho iguais a outros. Logo, compreende que ser
descendente de alemães no Brasil, aliado ao fato de ter problemas de saúde, o coloca em
uma condição difícil no país, cujo sentimento de “ser estrangeiro” lhe causa sofrimento
constante.
144
Devido à ligação afetiva com o avô alemão, quem lhe incentivou a prosseguir a
despeito das dificuldades e o ensinou sobre costumes e tradições da cultura, relaciona-o
a um modelo a ser continuado, implementando desta forma características deste, que
vão desde a vestimenta até o modo de se comportar, o que lhe dá um caráter de
personagem- um personagem “alemão do século 18 ” conforme relatou.
O fato de querer ser alemão (enquanto identidade pressuposta) é o que M.
entende ser seu meio de destaque nas atividades que exerce, contudo, de alguma forma é
também algo que ao mesmo tempo lhe aprisiona. Ao repor tal personagem, M. repõe
também ideias de preconceito contra sua origem e também a dificuldade de
relacionamento com outros diferentes dele, o que lhe afasta das possibilidades de
metamorfoses com sentido emancipatório, restringindo-lhe oportunidades outras de
experimentar-se no meio, encarnando outros personagens.
M. tem como projeto viver em uma Alemanha distante, confundida com o
projeto de retorno de seu avô. Fixado ao plano ideal afasta-se, contudo, do
conhecimento da Alemanha atual, onde também existem preconceitos e dificuldades de
ordens diversas, tal qual no Brasil. M. ao não ter claro seu local de pertencimento, não
enxerga outras perspectivas para si e ao manter-se na mesmice de seu personagem,
cabe-lhe almejar dias melhores, em local que se sinta compreendido em seu jeito de ser.
P. é uma jovem paulistana, cuja forma de socialização pôde revelar muito sobre
quem é e também, sobre as origens de seu projeto de vida. Cresceu em meio a uma
família com histórico de idas e vindas para a Alemanha e para a qual, educação e
valores como pontualidade, regras e prosperidade pelo trabalho foram tomadas à risca.
P. encaixa-se a estas prerrogativas de ordem e disciplina, buscando mantê-las de modo a
muitas vezes, isolá-la de quem difere deste padrão. Pretende morar e trabalhar na
Alemanha e para conquistar seu objetivo, se prepara há alguns anos com afinco.
Demonstra certa insegurança para com o que lhe espera neste país, mas acredita
que viver tal experiência possa trazer-lhe algumas respostas e até mesmo, equilíbrio
emocional. Pensa viver de modo melhor na Alemanha, uma vez que no Brasil (à
semelhança de M.) se sente estrangeira, devido sua educação, hábitos e visão de mundo.
145
É possível observar em P. o destaque dado à família alemã e à língua em
detrimento da família brasileira, com a qual teve pouco contato. Isto pode tê-la levado a
fixar-se no exemplo de conduta e costumes alemães, não possibilitando o conhecimento
e ampliação de experiências sobre outros modos de vida, ou mesmo, negando-as.
P. revelou o trilhar do tornar-se adulta independente, buscando tal independência
em local que lhe proporcionasse meios para tanto. P. acredita ser este local a Alemanha,
por julgar que existam condições sociais melhores de modo que os jovens possam
ascender e viver vidas independentes da família (P. faz alusão aos jovens que vivem
muitos anos na casa dos pais devido aos fatores econômicos, o que também é seu caso).
Entende que seu projeto se vida - viver na Alemanha pode contemplar o seu ideal de
independência relacionado, ao mesmo tempo, ao que gostaria e ao que busca ser:
“descendente de alemães na Alemanha” enquanto solução para o conflito identitário que
se apresenta - ser estrangeira no Brasil.
Sua socialização contribuiu para que visse o mundo e também se reconhecesse
como diferente - o que acarretou em alguns momentos, na mesmice de sua personagem
cuja re-posição manteve-a presa a opiniões ora estereotipadas, com ausência de crítica
ampliada sobre algumas de suas vivências; podendo tais questões, estarem relacionadas
à política identitária delineada pelo Deutschtum.
Dos três casos apresentados, notou-se aproximação entre dois, M.e P. enquanto
socialização que os levou à manutenção de personagens ligados a uma identidade
pressuposta, ou seja, deu-se a reprodução do que é considerado o “modo de ser alemão”,
reproduzindo aspectos da política identitária que propõe como devem ser, e cuja
manutenção da mesmice por vezes, os aprisiona, fixando-os em um “funcionamento”
que lhes afastam da mesmidade, constituindo desta forma o que experienciam enquanto
“estrangeiros” no Brasil.
E., entretanto, ainda que tenha tido vivências parecidas enquanto descendente de
alemães (estudou em escola alemã, conviveu com a família alemã, aprendeu o idioma
em casa etc.) viveu alguns anos de sua infância na Alemanha (re)formulando opiniões a
partir desta experiência, bem como, ressignificou a atitude de seu pai, quanto ao retorno
146
para o Brasil. Logo, é provável, que além de ideais transmitidos pela família e
comunidade alemã no Brasil, E. teve a oportunidade de, pelas próprias experiências,
formular suas críticas, fomentar escolhas ou mesmo, comparações consistentes.
Tais fatos não excluem aspectos valorizados pela socialização alemã vivenciada
por E., que, de um modo diferente, constrói sua identidade com base nas experiências
vividas em ambos os países que lhe proporcionam um leque maior de opções para
estruturar opiniões. Não tendo E. uma visão idealizada ou construída por terceiros, mas
a própria, pôde abarcar para si aspectos diversos que envolvem cultura, tradição e
apropriação crítica desta.
Importa ressaltar que E., mesmo apresentando uma visão mais otimista do Brasil
enquanto país que proporciona flexibilidade às pessoas, também o considera “não
grande coisa.” Tal ressalva deve ser levada em consideração sobre a forma como
jovens atualmente enxergam o país, apontando a existência de uma possível tendência73.
Segundo bloco - “descendentes mais velhos”
S. natural de São Paulo, 60 anos, bisneta de alemães e filha de um austríaco
“(...) me defino como uma pessoa que viveu o seu tempo, entendeu? Eu acho isso. Eu vivi adolescência,
vivi infância, vivi na época da ditadura, vivi aventura, entendeu, eu tô sempre mais ou menos né, vendo
as coisas acontecendo e fazendo parte, hoje já não faço parte mais das organizações lá, mas você vê,
você tá lendo, você tá escrevendo, então eu vejo assim, sou uma pessoa que sempre to envolvida com os
73
Especula-se a existência de uma tendência crescente (diferente do que fora a emigração dos anos 80
para o Japão, por exemplo, devido à instabilidade da economia brasileira) do desejo de saída do país por
jovens, contudo, não se encontraram números que apontem sua saída atualmente (2013), mas sim
dados do censo do IBGE (2010) que referem que a faixa de brasileiros entre 20 a 34 anos de idade
corresponde a 60% de brasileiros no exterior. Segundo esta fonte, a principal motivação para o
deslocamento de brasileiros foi a busca de emprego de forma individual, sem o acompanhamento de
outros
membros
da
família.
(mais
informações
em:
http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/noticias/censo-ibge-estima-brasileiros-no-exteriorem-cerca-de-500-mil).
Outro dado que desperta curiosidade sobre a possibilidade de tal tendência, consta em uma reportagem
do ano de 2013, que aponta ser a viagem internacional o sonho de consumo de jovens de 18 a 30 anos,
diferindo do que fora tempos atrás, quando o sonho era a aquisição de um carro, por exemplo. (fonte:
http://cmais.com.br/paraospais/viagem-internacional-e-sonho-de-consumo-dos-jovens-brasileiros).
147
acontecimentos, com a transformação, com a mudança e que eu vivi mesmo o meu tempo, entendeu, eu
vivi mesmo, coisas boas, ruins, sabe?”
S. nos foi apresentada por uma pessoa que havia sido sua professora. O interesse
em conhecer sua história surgiu, pois, para além de sua descendência alemã (objeto de
nosso estudo), S. interessava-se por estudar fatos relacionados à colonização alemã no
Brasil, vindo a iniciar um doutorado sobre o assunto.
S. recebeu-nos em seu apartamento, muito aberta para compartilhar sua história.
Seu relato durou cerca de 5 horas, entre conversa e um passeio por sua residência, onde
mostrou-nos suas lembranças (livros, quadros e o esboço em nanquim da Catedral da Sé
feito por seu avô, bem como, a vasta biblioteca composta dentre outros, por muitos
livros sobre a imigração alemã para o Brasil).
S. preocupou-se em relatar sua história de modo didático, trazendo exemplos e
datas cronologicamente. Disto, pôde-se observar que além de seu ofício-professora e
historiadora S. demonstrou com a organização de seu relato em datas e aspectos
históricos, o cuidado em transmitir-nos informações sobre a história da imigração alemã
no Brasil perpassada por sua família, ao mesmo tempo em que nos mostrou o quanto
isto, de certa forma, a influenciou no que veio a se tornar: professora- historiadoramilitante.
Nossa colaboradora descende de uma geração de colonos alemães que fundaram
a cidade de Blumenau em Santa Catarina. Inicia seu relato ressaltando aspectos
históricos da imigração tanto de seu pai- austríaco como de sua mãe, terceira geração de
descendentes de imigrantes alemães fundadores da cidade de Blumenau-SC.
Seu avô austríaco veio para o Brasil em meados de 1909. Estabeleceu-se em São
Paulo onde conseguiu um emprego na Catedral que estava sendo construída (Catedral
da Sé). Ele fez muitas plantas de construções famosas da cidade, tendo S. inclusive uma
destas guardada em sua casa- o esboço original em papel e nanquim da Catedral da Sé.
Esta é uma amostra de como a história da imigração de sua família é presente em sua
vida. S. possui materializadas em sua casa algumas destas lembranças, como
documentos, quadros, livros e fotos.
148
Sua história de vida é entrelaçada por fatos como a participação de alguns de
seus ancestrais na fundação de Blumenau (estes vieram junto à comitiva do Dr.
Blumenau74 para o Brasil) e posteriormente, também do desenvolvimento de alguns
negócios de destaque no ramo da construção e gastronomia, bem como, a fundação de
uma escola em Santo Amaro o colégio Humboldt75 existente até os dias atuais.
A partir do envolvimento com a escola, S. relata-nos algo ocorrido na política
brasileira da época:
“(...) na década de 40, o colégio sofreu a questão do Getúlio e então ele era lá do
colégio alemão de Santo Amaro e que chamava-se assim, puseram o nome de
Humboldt por causa da guerra por um nome que é alemão, mas mesmo assim, é
um alemão que veio pro Brasil, é um cientista.”
Este dado retrata a participação de sua família e da escola, imbricadas ao
momento político do Brasil, bem como, traz um exemplo da mudança do nome do
colégio ligada ao projeto de nacionalização, vigente à época.
Sua mãe migrou para São Paulo, partindo de Blumenau ainda criança, durante a
crise de 1929. Seu avô era confeiteiro e perdeu seus negócios no Sul. Em São Paulo
fundou uma fábrica de mostardas, muito apreciada em Santo Amaro.
Ao contar sobre sua mãe, S. recorda algo interessante:
“(...) minha mãe então, de origem lá das colônias do Sul né, ela é descendente do
Fritz Mueller76, ele foi um chamado príncipe da observação assim, era um
cientista veio pro Brasil por questões políticas filosóficas e na colônia, era auxiliar
do Dr. Blumenau, então eu sou descendente dessa pessoa. Essa pessoa é
importante porque ele era um correspondente do Darwin, o Darwin o cita muito e
eles mandavam suas pesquisas para o Darwin, então, ele está envolvido na
74
Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau, farmacêutico e filósofo, partiu do porto de Hamburgo em 1846
com destino ao Brasil. Seu intuito era fazer uma viagem de reconhecimento e exploração e encantado
com Santa Catarina, decidiu comprar terras para a formação de uma colônia própria na região. Para
mais informações consultar: http://www.arquivodeblumenau.com.br/museufamcolonial_3a.html
75
Hoje o colégio fica em Interlagos, São Paulo.
76
Para maiores informações sobre Fritz Mueller ver FONTES, L.R; HAGEN, S. Para Darwin- fuer Darwin,
1864 por Fritz Mueller. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.
149
formação do evolucionismo do Darwin, ele (...) era considerado um cientista e
acabou saindo da colônia, foi pra Florianópolis e aí ele tinha um cargo do Museu
Nacional, Fundado por Dom Pedro II (...) no Rio de Janeiro, ele tinha um cargo e
tal de professor e pesquisador desse museu e tem sua importância por ter sido
correspondente do Darwin.”
Ao falar de si e de sua mãe, S. retrata o movimento emigratório de sua família e
ressalta um ascendente que considera ilustre. Este, um cientista, assim como S.
envolvido com as questões do saber.
“Então eu também tenho essa origem assim, bonita (...) minha mãe vem assim de
origem mesmo, lá da fundação de Blumenau, os parentes dela chegaram juntos
com o Dr. Blumenau. Então, já que toda família tem o seu herói, eu tenho aí um
cientista darwiniano (risos). Então eu acho interessante esse movimento das
pessoas e assim quanto à identidade dessa geração, eu já sou, sei lá, neta por um
lado e por outro lado, já acabaram né, a raiz é 1850 né, eu acho assim que a
identidade fica assim como um elemento né, assim, eu tenho um passado diferente
do meu vizinho e do outro entendeu? Então eu sou lá de Blumenau, eu sou lá do
pessoal que fundou a colônia de Santo Amaro, então eu sou, eu fui importante,
então se tem sempre essa ideia de pessoa que tem um passado importante.”
Nossa interlocutora ao falar sobre a própria identidade retrata sua origem e um
personagem “famoso” que é parte de sua família e assim parte dela. Retrata isto como
um ponto relevante, de um passado que a diferencia de outras famílias. Aqui cabe a
observação a algo que Ciampa (2001) já ressaltara, acerca da relação existente entre
História e identidade. Ambas imbricam-se, necessariamente. Destarte, parte
significativa da constituição identitária de S. é permeada pela participação de sua
família na História do Brasil.
S., ao contar quem é, retrata ainda um dado sobre seu nome. S. tem dois nomes
(nome composto) um considerado brasileiro “pras pessoas falarem” e o outro, alemão.
Isto se deu, também com seus irmãos e em casa todos eram chamados pelos nomes
alemães, na escola, pelo nome “brasileiro”. É possível que esta tenha sido uma
estratégia adotada pela família para que seus filhos não sofressem preconceito na escola
por possuírem nomes alemães, bem como, para “abrasileirá-los” frente ao momento
político vivido no Brasil: o Estado-Novo.
A narrativa de S., permeada por aspectos históricos da constituição de sua
família revelou detalhes da formação de Santo Amaro, sobre como sua família
150
participou da constituição desta região (seu avô tem inclusive seu nome em uma rua) e
de como as transformações da paisagem, devido às mudanças da sociedade marcaram S.
Suas memórias de outrora, já não mais condizem com aspectos atuais de Santo Amaro e
arredores. Mudanças e o crescimento da cidade fizeram com que Santo Amaro se
integrasse a São Paulo, transformando a dinâmica de seu funcionamento77 e o seu
espaço. Assim, foi possível perceber a relação existente entre o valor histórico das
propriedades da família e da cidade como materialidade da história e identidade de S.
Questões envolvendo o pioneirismo e o empreendedorismo de sua família são
constantes em sua narrativa, bem como a forma como a mesma se estabeleceu no Brasil.
S. acrescenta algumas considerações relacionadas à língua alemã (falavam o idioma em
casa) e tradições, como frequentar a igreja luterana, participar de atividades em clubes e
associações recreativas alemães, contudo, a presença de tradições alemãs nunca se deu
em detrimento das origens brasileiras. S. foi socializada em meio às tradições alemãs,
sem que isto impedisse ou negasse a existência de outros elementos culturais.
“(...) vejo isso tudo como dados, sabe história, diferenciação, mas não acho nada
excepcional. Todo mundo que é imigrante, vem com aquelas histórias assim de ah,
não sei quem, porque meu avô era não sei o que lá e eu acho para! Ninguém veio
rico pra cá, entendeu? (risos). Podiam até ter estudado, mas tavam falidos, não é?
Possivelmente a vivência da guerra por seu pai (durante a infância viveu na
Europa durante a Primeira Guerra) e o fato de sua família ter tido participação na
constituição tanto de Blumenau, como de Santo Amaro, possam ter agregado valor ao
pertencimento de S. no Brasil, bem como as condições dos imigrantes que saíram da
Alemanha na era de Bismark78. S. considera ainda, que sua formação teve um “cunho
politizado”.
77
Sobre a Santo Amaro de outrora ver mais informações no capítulo 1.
78
Otto von Bismarck foi o estadista mais importante da Alemanha do século 19. Coube a ele lançar as
bases do Segundo Império, ou 2º Reich (1871-1918), que levou os países germânicos a conhecer pela
primeira vez na sua história a existência de um Estado nacional único. Para formar a unidade alemã,
Bismarck desprezou os recursos do liberalismo político, preferindo a política da força. (fonte:
http://educacao.uol.com.br/biografias/otto-von-bismarck.jhtm)
151
“(...) o meu lugar, o lugar daqueles de origem alemã, daqueles de origem alemã
mais de 1850 pegou, porque eles não, eles se sentiam numa cultura, na língua,
numa coisa, mas num país que já não existia mais, a Alemanha que eles gostavam
não existia, era a Alemanha do Bismark, talvez até antes né, aliás nem era
Alemanha, eram os estados germânicos né então você vê assim, aí os caras devem
ter sofrido uma dificuldade muito grande(...). Até hoje os mais velhos falam disso
(...)”
Este comentário demonstra que devido às condições desfavoráveis que os
alemães viviam no final do século XIX sua emigração para o Brasil teve um sentido de
reconstrução tanto da própria vida, como de uma nação, um lugar para se viver. Daí o
pertencimento que S. demonstra sentir - este fora por sua família construído
objetivamente, expressos nos exemplos que traz sobre as condições de vida à época da
emigração de seus familiares e posteriormente, nos significados atribuídos pór S. aos
movimentos da família no Brasil e, ao mesmo tempo, de si mesma.
S. não frequentou a escola alemã, mas sim a escola pública “ não tinha a questão
de ir pra escola alemã. Não tinha mais isso porque tinham se tornado escolas caras.”
Este fato será importante na socialização de S.
“Eu vivi num colégio muito democrático que era a escola pública, era mesmo
muito democrática, você tinha influências eu tive professores maravilhosos, assim,
o Tragtenberg, Celso Antunes, Alcione Abrãao, tudo isso era professor lá,
entendeu? Não era pouca porcaria, eles eram bons mesmo e a gente ia , sei lá, no
meu colégio, vários foram pra esquerda e tal e eu tinha isso sempre claro, que eu
tinha que ser uma pessoa assim (...).”
O mesmo avô que participara da fundação do colégio Humboldt, afastou-se do
grupo fundador quando a escola começou a não conceder bolsas para filhos de
imigrantes recém-chegados. “ele saiu fora, ele discutiu, disse que a escola tinha sido
feita para que os filhos de alemães e austríacos tivessem uma escola e que estavam
cobrando mensalidade e isso não podia, podia só de quem podia pagar e os novos não
era pra fazer isso.”
O avô, figura importante presente na narrativa de S., ao romper relações com a
escola que já não compartilhava dos mesmos valores de sua fundação, fez com que S.
de certa forma seguisse seu exemplo:
152
“Minhas filhas não estudaram em colégio alemão, porque eu não gosto, porque
acho que é muito enquistamento e tal e nós vamos manter a tradição de não
estudarmos em escolas alemãs (...).”
S. relata que seu pai não gostava do contato com os considerados “novos
alemães”. Estes vieram para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Havia
divergências entre eles e os teuto-brasileiros, já há gerações no Brasil que falavam o
idioma misturado (alemão com português) e adquiriram outros hábitos e costumes:
“(...) não havia muita relação e um não gostava do outro, assim, os alemães
antigos não falavam direito, erravam a língua e estavam às vezes muito
abrasileirados e os outros se achavam importantes, porque vinham da Alemanha,
então não combinava muito bem. Então eram os auslandsdeutsche (alemães do
exterior) e os outros. Não havia muita colaboração entre esses dois grupos.”
Com relação à diferença entre estes dois grupos, S. sugere que os alemães
antigos “têm uma outra perspectiva.”
“Nessas coisas que ainda implicam muito a origem, o colégio, por exemplo,
poucos descendentes dos alemães antigos colocam seus filhos nos colégios
alemães, ao passo que aqueles alemães da Alemanha mesmo, fazem questão de
colocar nos colégios alemães. Às vezes um ou outro coloca, mas não por ser um
colégio alemão, mas sim por ser um bom colégio, é uma outra perspectiva
entendeu? Você não tem essa fixação, lembra das origens alemãs e tudo(...).”
A forma como S. era vista na escola não foi considerada por ela um problema.
Assim como colocado acima, sua perspectiva era outra... Em sua fala se percebe não
haver motivos para chatear-se com comentários jocosos acerca da sua origem.
Provavelmente a origem, bem como estar no Brasil, não era motivo de conflito para S.
“(...) no colégio a gente encontrava muito alemão, assim, carinha loira e tal e
inclusive, chamavam a gente de alemão batata essas coisas, tinha sardas, os
loirinhos às vezes tinham alguma discriminação assim, mas a gente era criança e
antigamente não tinha essa coisa, ninguém morreu por causa disso.”
S. sugere ter tido uma visão crítica para o que acontecia a sua volta e a forma
democrática como foi educada, levou-a a tomar partido contra situações as quais não
concordava. Desde muito jovem participou ativamente do movimento em oposição à
ditadura no Brasil, algo que nos relata com visível comoção: “Então é assim né, a
história de vida, eu ainda muito jovem me envolvi com a esquerda, eu ah, militava em
partido comunista, meu marido também e sofremos (...), sofremos a repressão e tal, eu
153
não fui presa, mas meu marido foi preso (...) e eu consegui ficar escondida (...).” A isto
S. acrescenta:
“Mas aí a gente se envolveu com esta questão e é por isso que eu não quero ser
outra coisa, entendeu? Porque ser brasileira, naquele tempo, se eu tivesse uma
identidade estrangeira era facílimo pra sair, mas a gente ficou aí, não foi pro
exterior, aguentou a repressão etc., viu todo mundo e tal, então agora não
interessa ter outra nacionalidade, entendeu? Não tenho absoluto interesse nisso.
Eu tenho esse sentimento assim, realmente, nunca me passou pedir, meu irmão
ainda fala ah, vai lá, eu não quero, não quero, as pessoas ficam assim, não, eu não
quero! Aí levanta aí lá do seu avô materno e eu falei, não, eu não quero não me
interessa! (S. se exalta) e então eu tenho isso, a gente se considera, eu, as pessoas
pedem passaporte, pra entrar lá na fila dos outros mais fácil, mas é só isso não é?
Vão passar pros seus filhos, mas eu nunca me interessei.”
S. demonstra ter ligações importantes com sua origem e também com a forma
como foi socializada; Contudo, a educação que nomeou como “democrática” parece ter
lhe empregado um diferencial. Diferencial este que a levou a lutar por questões
consideradas injustas e que considera possuir tal característica como parte de sua
criação. “eu acho que eu, eu tive uma, não sei por que, talvez personalidade, talvez
algumas coisas de criação, não é uma palavra que até não se usa mais né, criação é
uma coisa muito específica né, como você é criado.”
O fato de ter tido experiências cujo entorno permitiu que fizesse suas escolhas,
sobretudo pensando-se o modo democrático de ver o mundo, a levou a um
pertencimento às causas que acreditava e não à busca por identificar-se com uma
nacionalidade, por exemplo. S. transita entre as culturas que consigo carrega e
demonstra seu pertencimento junto ao Brasil, pautado na luta, enquanto Alemanha e
Áustria são igualmente partes de si advindos e construídos junto às suas relações
familiares.
S. finaliza seu depoimento resgatando mais um exemplo de sua mãe, que
exprime o caminho percorrido até chegar ao quem é .
“(...) eu lembro que se eu quisesse pegar uma vassoura pra eu varrer minha mãe
falava: você vai ter a vida inteira pra fazer isso então não faça agora (imitando a
voz da mãe) ela falava assim: você vai ter a vida inteira pra fazer isso, não faça
agora! Então aquilo foi despertando em mim uma ideia de que não era pra eu me
dirigir pra esse lado, entendeu, uma ideia assim de que eu tinha que ter profissão,
tanto que sou a primeira mulher da família a ter diploma, um curso superior, a
154
trabalhar fora, a primeira a separar né, então tem isso e eu acho que fui ficando
assim.(...) não varre que você vai ter a vida inteira pra fazer isso eu já pensava
não, não quero fazer isso a vida inteira, já imaginava, falava não, não quero,
entendeu? Eu já meio assim, a minha mãe lá já me orientou. Então eu sempre tive
uma vida bastante independente, (...) mas aí eu acho que eu me orientei pra
estudar, trabalhar e tal, (...) não sei, me defino como uma pessoa que viveu o seu
tempo, entendeu? Eu acho isso(...). Eu vivi essas coisas aí e tenho, exatamente por
ter essa formação histórica, eu consigo ver minhas origens claramente, meus
movimentos, os movimentos que a família fez, pra lá, pra cá (...)”
Pode-se dizer que S é uma mulher se seu tempo (assim como ela mesma se
define), cujas metamorfoses ocasionadas por seus movimentos e pelo conhecimento dos
movimentos de seus outros significativos permitiram-lhe enxergar os fenômenos para
muito além das aparências.
A.58 anos, natural de São Paulo, filha de uma alemã e um belga
“Eu quero viver minha vida na essência, na alma, sabe, é isso que busco (...). Desencanada no sentido de
talvez não me prender a estereótipos, tipo ah você é alemã. Bom eu posso ser e ser uma alemã tipo essa
que te falei (... )que eu fiquei impressionadíssima, pela delicadeza que ela tinha para lidar com as
pessoas.”
Conhecemos A. em uma palestra promovida por um instituto de ensino da língua
alemã em São Paulo. Desde o começo, interessou-nos a forma como esta nos abordou.
Naquele momento, acabávamos de fazer uma pergunta ao palestrante, relativa à
pesquisa que realizávamos79. Ao final do debate em questão, A. se aproximou. Muito
sorridente e aberta, dizia achar o tema de pesquisa muito interessante e prontamente
começou a falar de si, mesmo sem ter sido questionada.
Compartilhou que era professora de alemão e que em muitos momentos sentia se estranha, por “não ser nem uma coisa e nem outra” (falava sobre não ser nem
brasileira e nem alemã) e também relatou como a língua alemã entrara em sua vida. A.
fora, ainda na infância, obrigada a falar o idioma em casa de um modo coercitivo, algo
que lhe marcou.
79
Tratou-se de uma pergunta referente ao tema desta dissertação.
155
Quando se tornou mãe, soube desde o início que não seria desta forma que
ensinaria a língua alemã aos filhos. Descreveu-nos, para tanto, a imagem que lhe veio à
cabeça: os filhos chegando animados da escola, querendo compartilhar seu dia, suas
emoções e ela interrompendo-os - “Bitte auf Deutsch!”- Por favor, em alemão! Mais a
frente nos diz que “o mais importante é que eles possam falar comigo assim, o que tá
no coração deles(...).”
Logo, percebemos que A. tinha muito a dizer e mais, queria fazê-lo,
compartilhar sua experiência, refletir sobre quem é.
Nossa interlocutora nos recebeu em sua residência por duas vezes (a primeira
entrevista durou cerca de duas horas e a segunda, cerca de quatro horas) de modo muito
afetuoso, algo incomum para pessoas que pouco se conhecem, sobretudo, em se
tratando da experiência que tivemos com alemães, usualmente reservados. Sentimo-nos
à vontade em uma casa com aspecto ligeiramente “alemão” com muitas plantas e um
sofá típico80 o qual A. nos descreve como sendo este seu “cantinho alemão” onde nos
convida para um chá com biscoitos.
A. inicia a conversa contando sobre o encontro que tivemos no instituto de
línguas. Conta que naquele dia, tinha um programa totalmente diferente e ao receber um
e-mail pela manhã, que falava sobre o debate de uma peça de teatro envolvendo
alemães e descendentes no Brasil81, mudou seus planos e foi para o local onde se
realizaria o colóquio.“Quando vi aquilo de manhã, aquele e-mail pensei, nossa, mas
isso é muito interessante! Essa conversa, nossa, eu vou aproveitar isso! Desmarquei
tudo, mudei todo o meu programa, então eu vou lá né!” Seu entusiasmo acerca do tema
80
Na Alemanha muitas casas possuem o chamado “cantinho alemão” trata-se de um sofá que fica
posicionado em um canto em “L” de modo que uma mesa pode ser posicionada em sua frente para que
as pessoas assim se reúnam para as refeições, para beber ou também conversar, jogar.
81
Brasilien 13 Caixas. Uma exposição humana de Karin Beier com um epílogo de Elfriede Jelinek. Direção
Karin Beier, realização: Sesc São Paulo e Goethe Institut; Cooprodução: Deutsches Schauspielhaus in
Hamburg e produção. art.br; Patrocínio: Fundação Federal de Cultura da Alemanha. (exibição de 2 a 7
de julho, 2013 em São Paulo).
156
“ser descendente de alemães” visava uma busca pelo entendimento de si mesma, de sua
construção identitária.
Ao iniciar sua história, A. coloca existirem complicadores que não se tratam “só
da descendência alemã”...
“aí tem uns complicadores que não seria só essa questão da descendência alemã,
porque, na realidade, minha mãe era alemã e meu pai era belga. Eu nasci aqui,
minha mãe saiu de lá ainda bebê, meus avós, foram pra Argentina em 1924, meu
avô era mestre cervejeiro e se não me engano (...) depois veio para São Paulo.”
A. denota sua origem e os diversos movimentos de seus familiares, até a chegada
ao Brasil. Ser descendente de alemães passa a ser um complicador para A. devido ao
desenrolar de sua história familiar, permeada por regras (pouca flexibilidade), questões
relativas à participação de seu pai na Segunda Guerra Mundial (aspectos presentes na
vida de A. ainda hoje) bem como, a adequação da imigração à vida de A. que por vezes
não se sente “nem cá e nem lá”.
Os avós e a mãe de A. vieram para o Brasil em 1932, anteriormente viveram na
Argentina, onde chegaram em 1924. No Brasil, migraram algumas vezes, A. não sabe a
ordem exata das cidades onde sua família morou, mas conta ter descoberto, “mais ou
menos”, após ler e separar as correspondências de sua mãe, depois de seu falecimento.
Descobriu pelo endereçamento das cartas a ordem das cidades de moradia da família de
seus avós e de seus pais. Comenta ter sido Corumbá, Curitiba, Santos e depois São
Paulo, onde A. veio a nascer “No Pro Matre, sou bem paulistana (risos)!” O avô é
considerado por A. “um pouco aventureiro”, por ter se mudado diversas vezes, da
Argentina para o Brasil, primeiramente e depois, algumas vezes dentro do Brasil. O avô,
mestre cervejeiro, recebeu uma oferta de emprego e assim mudou-se para o Brasil,
vindo a trabalhar por anos em uma famosa cervejaria (existente até hoje).
Quando a mãe se casou, A. comenta que era uma época de “colonizar as terras
do Paraná” e seus pais foram para lá com este fim, depois seguiram para o Rio Grande
do Sul e retornaram para São Paulo. Ao falar de si, A. nos conta sobre todos estes
lugares e o local em que a família finalmente fixou-se, Guarulhos (São Paulo). Neste
local existe um núcleo alemão ainda muito ativo atualmente. A. nos conta sobre os
157
clubes alemães ali existentes, sobre vínculos entre os descendentes que se reúnem,
mantendo um grande grupo de atividades entre si. A., no entanto, não costuma
participar destas reuniões.
Sua mãe conheceu seu pai em São Paulo e segundo A. “Aí vem a parte mais
complicada, digamos, da história, porque o meu pai era fugitivo de guerra, então meu
pai veio com nome falso (pausa)... E isso foi uma história que pesou muito.”
A. conta que tal questão traz “todo um peso” Em suas palavras:
“ Você sabe que estas questões, não é você dizer agora eu tou aqui e tá todo bem,
isso traz todo um peso, não é?”
A. possui uma tia na Bélgica que é o único elo vivo entre A. e seu pai. A. nos
conta sobre a viagem à Bélgica que fez recentemente, com grande riqueza de detalhes.
Detalhes de quem realiza mais do que uma viagem, um resgate de sua história, de sua
origem e da necessidade da completude, face ao entendimento do que fora a fuga de seu
pai para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial.
“Ela (a tia) disse que meu pai era um aventureiro, não, ela usou outra palavra
(pausa) então e ele se encantou com a juventude de Hitler, com tudo o que eles
propunham da juventude, grupos, música, cantos e né e o meu pai se encantou com
tudo aquilo. Só que aí ele foi contra a própria terra dele. A coisa andou assim, ele
acabou se envolvendo e foi preso.”
A tia revela alguns detalhes sobre a fuga do pai de A. para o Brasil e do
envolvimento dele com a juventude de Hitler, algo até então não claro para A.
“O que a tia contou foi a questão do envolvimento dele com o nazismo. Isto
exatamente a gente não sabia a gente ficou sabendo, assim, sabíamos da fuga,
mas não sabíamos exatamente qual era a situação. E eu imagino que ele deve ter
sofrido muito porque imagino o que é alguém chegar pra você e falar seu próprio
nome, e bem agora você vai se chamar Maria e não vai mais poder viver no
Brasil, no caso dele, ele tinha uma família né, e aquilo ficou, ele não tinha mais
acesso a família dele.Isso é muito doído, se voltasse poderia ser preso.”
Em algum momento, seu pai e mais um amigo planejaram fugir: “(...) foi uma
coisa meio de filme, tipo de fazer uma corda com lençol, descer pela janela e minha avó
fez roupas pros dois, pra eles tirarem a roupa de onde estavam internados, porque se
saíssem pra rua seriam reconhecidos”. Eles estavam em um hospital, de onde lhes foi
158
possível empreender a fuga. O outro irmão de seu pai não sabia dirigir, aprendeu a guiar
e foi no hospital à noite, resgatar os dois jovens. Isto ocorreu em meados de 1945.
O avô de A. tinha uma gráfica na Bélgica, onde os papéis fora feitos com o então
novo nome a ser empregado por seu pai. O nome que seu pai passou a carregar era de
um parente, já falecido (Posteriormente A. comenta a história de seu nome e do nome
de seus irmãos, todos de alguma forma relacionados a amigos ou parentes da
Alemanha).
A. relata imaginar o quão difícil fora “carregar um nome que não é seu” por
tanto tempo, ou melhor, por grande parte da vida, a vida de seu pai em terras
estrangeiras. De certa forma, fora um modo de adquirir outra roupagem e em sendo um
novo personagem, construir a vida em outro lugar.
A relação com o nome, não é uma relação qualquer. Como nos lembra Ciampa
(1999, p. 63) o nome é um substantivo e como tal, nomeia o nosso ser.
Nós nos identificamos com nosso nome, que nos identifica num conjunto de
outros seres, que indica nossa singularidade: nosso nome próprio (...) nós nos
chamamos da forma como os outros nos chamam. Nós nos ‘tornamos’ nosso
nome.
Segundo Ciampa, ao não sabermos algo relevante a respeito da identidade de
outro que nos é próximo, questionamos nossa própria identidade “(...) a identidade do
outro reflete na minha e a minha na dele (...) ele só é meu pai porque sou seu filho.”
(CIAMPA, 1999, p. 59)
Esta ressalva cabe, para que se compreenda a relação de A. com o pai, quanto
ao seu nome e quanto ao personagem deste junto à juventude de Hitler. Algo que A.
ainda busca resolver, sentindo o que seu pai sentia, caminha de modo a ressignificar as
experiências dele junto às suas. Tenta apreender o pai completo, uma vez que a parte do
pai que conhecia não era o seu todo. Aliado a isto, está também a relação de A. com a
Alemanha e até mesmo, alguns medos que acredita ter desenvolvido frente a esta
história, frente ao não dito da família. Ainda conforme Ciampa nos alerta, A.
reconfigura sua a própria identidade a partir da nova identidade do pai que desvelou.
159
“Hoje eu tenho consciência de que ele existe, mas não consegui ainda chegar a ter
a pretensão que não vou ter mais medos. De colocar isso num nível, digamos assim
aceitável, pra que eu possa, assim, isso muitas vezes, eu acho que eu tenho um
potencial muito maior, que eu posso usar e que fica abafado por esses medos.
Então acho que tem alguma coisa disso também. Por que a dor que senti naquele
dia foi assim, inesquecível, assim, nossa eu chorei muito naquele dia, muito, muito
e imagina meu pai faleceu fazia 40 anos! Parece que eu entrei em contato com a
dor que ele tinha, e eu acho que dessa forma tem ligação com a Alemanha também
porque ele entrou nessa história pelo nazismo né, pela simpatia, pelo fascínio, pela
juventude nazista, que né, cantava e que, nossa minha tia conta que o que era por
eles oferecido, era tudo o que os jovens queriam na época, eles tavam sedentos
disso e aí, os jovens não conseguiam ter a visão mais ampliada, do que tava por
trás daquilo. Então teve essa questão apesar do meu pai ser belga (silêncio).”
Desta forma, é possível compreender que a questão que envolve seu pai e sua
relação com a Alemanha amedrontam A., uma vez que uma parte de si é também uma
parte de um passado difícil de elaborar.
Com papéis e um novo nome o pai de A. teve a sua entrada possibilitada no
Brasil. A. relata que houve uma outra pessoa que o ajudou na fuga, cujo nome, anos
depois, lhe fora dado por seu pai. “(...) teve uma pessoa, o nome dela era A. e era filha
desse senhor que ajudou o meu pai, não sei como, mas ajudou, isso já na Alemanha,
essa pessoa era da Alemanha.” Fica clara a fuga do pai encarnada em A. em forma de
nome. A. não soube recompor em detalhes a chegada de seu pai no Brasil, pois sua tia,
quem lhe contou grande parte desta história, não participou mais do desenrolar da
mesma, uma vez que ficou na Bélgica não mais em contato com o irmão no Brasil.
“Mas aí lógico toda essa questão de você fugir, né, o meu pai nunca mais pôde
voltar pra Bélgica, tanto é que ele depois em algum momento trabalhou em uma
empresa e ela mandou ele pra Inglaterra e aí ele mandou carta pra mãe e eles
acabaram se encontrando, se não me engano, em Paris, porque ele não podia ir
pra Bélgica”
A. coloca as questões de seu pai como de grande dificuldade para a família. Sua
mãe não falava no assunto e seu pai, ainda que tenha tido sucesso em seus empregos no
Brasil, tinha momentos de reclusão em que não se comunicava com ninguém,
mesclados com momentos de grande euforia. A. coloca que na época, seu pai fora
diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva (hoje transtorno bipolar).
“Em algum momento da vida ficou claro pra mim que meu pai deve ter sofrido
muito com essa fuga, com essa fuga dele,é não sei exatamente se ele em algum
160
momento teve a conscientização de pensar nossa mas como eu fui me interessar,
como fui me envolver a esse ponto, nessa situação. Não sei, chegou a ter algum
arrependimento alguma coisa, minha mãe nunca comentou sobre isso. Ou se ele
defendeu essa postura até o final, né isso eu não sei e minha tia também não falou
sobre isso.”
A. relata-nos um episódio que demonstra que estas questões relacionadas ao
passado de seu pai são fortes e retornam ao presente, como em uma aula na faculdade
que frequenta atualmente.
“Logo na primeira aula, eu cheguei e (...) eu cheguei e ele falou ah, eu não sei ele
fez um comentário irônico na hora que eu entrei e depois, ah alemã, é nazista. Eu
olhei assim pra ele... Então ele tem isso, às vezes faz uns comentários assim, então
assim, depois passou, mas e aí.... E na época do nazismo eu nem era viva.Eu fiquei
alguns dias com isso, cheguei a pensar em levar isso pra direção. Essa associação
existe, as pessoas acham... Outro dia na classe, a professora perguntou quem aqui
tem algum trabalho diferente? E eu falei ah eu dou aula de alemão e todo mundo
ficou olhando, você percebe que as pessoas da classe, os que são brasileiros,
brasileiros mesmo, eles te olham como se você fosse um ser extra terrestre, nossa
você dá aula de alemão?(...) Eu percebo que às vezes as pessoas me olham como
se eu fosse um E.T.”
A questão ligada à forma como A. é reconhecida quando chamada de alemã, lhe
causa desconforto, como se tal reconhecimento fosse sempre associado a algo ruim e
quando A. se compara a um E.T. demonstra sentir-se como pertencendo de fato a outro
mundo, outro universo, tamanho incômodo que sua condição oferece aos outros e por
vezes, a si mesma.
Com relação à língua alemã, A. retrata com emoção o modo como o idioma
alemão lhes foi ensinado em casa:
“A gente tinha que falar alemão, como não? E eu, às vezes ainda conto isso pros
meus alunos, as pessoas querem saber, você não é nativa? E eu digo não, mas é
quase, porque em casa era assim. Era uma coisa assim, imprescindível, (...) não
era uma coisa leve, acabou ficando uma coisa pesada, entendeu? Por exemplo,
quando a gente era criança ela (a mãe) fazia um cartão, com o nome dos quatro e
aí a gente tinha que falar alemão dentro de casa, a gente podia falar português no
quarto ou o quintal se a gente falasse português em algum lugar e ela ouvisse aí
ela ia lá e fazia uma marquinha, aí no dia de receber mesada ela ia lá, contava e
tipo assim, 10 centavos menos cada marquinha, entendeu?”
O valor agregado ao conhecimento da língua extrapola o valor apenas da
importância de se saber uma língua, que rompe fronteiras, mas sim, torna estas pessoas
161
conhecedoras do idioma alemão, sobretudo os descendentes pertencentes a um grupo.
(como também observado na história de P., neste capítulo).
“(...) quando vieram os filhos, minha mãe começou não, mas você tem que falar
alemão, tem que falar alemão com eles e tal e aquilo foi uma coisa que me pesou
muito e fiquei durante alguns anos muito angustiada com isso, porque era difícil, o
meu pai e minha mãe, a língua de comunicação entre eles era o alemão, então eles
falaram entre eles o alemão, mas a língua de comunicação minha com o pai dos
meus filhos não era o alemão! A língua não era espontânea pra ele!”
A. demonstra sua dificuldade em romper com algo tão importante para sua mãe
e de certa forma, com a tradição que lhe fora passada. Contudo, um dia resolve mudar:
“Eu fiquei por muito tempo angustiada com isso, até um dia, não me lembro
exatamente quando foi isso, eu pensei nossa, espera, eu tenho que ter diálogo com
os meus filhos! É , alemão, não é a prioridade, eu tenho que ter diálogo com eles!
(...)E isso foi um dia que eu lembro que pensei assim, eles chegando da escola
animados, dizendo ah mãe olha, e eu “Auf deutsch bitte”(em alemão, por favor). E
aí eles iriam me contar.... Eu não cheguei a fazer isso, fiquei imaginando a cena...”
A. remonta com este cenário a forma que usou para quebrar a tradição, para
romper com a angústia que vinha sentindo. Esta quebra deu-se alavancada pela
emoção. A própria angústia que sentira pela forma que o idioma lhe fora transmitido
não quis que se repetisse com seus filhos. Foi então, ao pensar a relação de afeto e
comunicação com estes, o quanto isto poderia ser prejudicado pela imposição da língua
é que proporcionou que A. conseguisse dar este salto. Ao romper com a tradição vinda
de sua mãe, A. pôde ser mãe, metamorfoseou-se ao permitir-se a apropriação deste
papel, no que passou a tomar as rédeas da forma de educação que daria aos filhos dali
em diante.
Abre-se um parêntese ligado a este fato. Há que se comentar que, tempos depois
desta entrevista, A. enviou-nos um e-mail com indicação de um curso, por achar a
temática muito interessante e já ter participado de workshops do mesmo. A temática do
curso versa sobre “comunicação não violenta”, ministrado em uma universidade no
interior de São Paulo, por um alemão. A inter-relação que se faz aqui é clara. Talvez a
comunicação “violenta” seja um tema importante para A. que percebeu a importância
desta junto aos filhos e também à profissão que exerce (professora de alemão), bem
como a não comunicação existente, quanto ao não dito na família. Ainda relacionado a
162
este parêntese aberto, compreendendo-se a identidade em movimento constante, se
percebe que questões ocorridas na infância de A. ainda estão em atividade, em sendo
reinventadas, por exemplo, na forma que A. se relaciona com os filhos e também no
modo que exerce sua profissão.
Supõe-se, nesta relação, pela forma como A. nos conta que a importância da
transmissão da língua foi algo muito forte e importante para sua mãe. Uma forma de
estar ligada a Alemanha, à família, às origens e também à tradição. Contudo, expressarse apenas em alemão e querer que todos ao seu redor correspondessem, foi algo que
dificultou o relacionamento da avó com a neta, filha de A.“(...) minha mãe não
conseguiu perceber que acima disso está a relação dela, com os netos, com as
pessoas.”
A. conta que a filha distanciou-se da Alemanha e de questões ligadas ao país. A.
acredita que isto tem a ver “com essa questão dessa imposição, você tem que falar
alemão. Eu acho que isso tinha que ser um pouco mais solto, uma coisa mais... sei que
é difícil encontrar o equilíbrio e aquilo às vezes é uma coisa que te mantém, que te da
força e ai você solta aquilo e parece que fica sem força, que a força ta indo embora eu
não sei minha mãe segurava aquilo, né...”
A relação existente entre a mãe e o idioma envolve o verbo “segurar”- destarte,
segurar o idioma é exercitar uma parte de si, uma parte da Alemanha, parte de seus pais
que fica viva em forma de idioma praticado no dia a dia. Perpetuar o idioma é muito
mais do que a língua em si, mas traz indícios do pertencimento, da ligação com a cultura
e também do que isso significa para o “ser” .
Pensemos a relação desenvolvida com a língua pela mãe de A. para compreender
os meandros da constituição identitária de A. A força da língua, perpetuada por sua mãe
envolveu o medo da perda, uma transmissão obrigatória. No entanto, A. em sua
experiência tornou a língua, antes obrigatória em sua forma de emancipar-se,
conquistando trabalho e reconhecimento, bem como, mantendo sua mãe por perto
simbólicamente. Nesse momento da entrevista, A. mostra-nos um papel, um
163
manuscrito82 original com a letra de sua mãe, encontrado nas arrumações que fez na
casa desta.
“(...) mexendo nas coisas dela achei esse papelzinho no meio de um monte de
coisas, e daí olha achei isso aqui, e acho muito interessante, porque ela escreveu
isso aqui em português!” (consultar o manuscrito nos anexos)
A. Tem o hábito de distribuir o verso escrito por sua mãe que encontra para as
pessoas e assim, em meio a sua forma afetiva de ser “segura a língua” e mantém sua
mãe viva em si, diferentemente de uma obrigatoriedade, ressignifica a língua e por meio
de seu afeto compartilha o amor que sente por sua mãe e o significado que vê nas
palavras por ela escritas para outros.
“acho interessante assim se você olhar cada um deles (versos) ela fez diferente.
Ela fez isso quando ainda andava sozinha por aí (...)... Então aqui assim como se
ela definisse, eu posso ter uma horinha com deus em qualquer circunstância, ela
faz uma súplica por ela, mas fala também do próximo, é dividido.”
Uma questão que nos chama a atenção, assim como chamou a atenção de A. foi
de como uma pessoa que buscou perpetuar a língua alemã de modo tão rigoroso
escreveu sua conversa com Deus justamente em português? Talvez este fosse também
um conflito para sua mãe, pois precisava “segurar” o alemão para “não perder a força”.
Estar no Brasil e falar o português significaria um desenraizamento83. Cabe-nos
entender este movimento para A., que precisou estabelecer a própria relação com a
língua, ainda que sua mãe a quisesse “segurar”.
A. nos conta que quando criança não gostava dos livros e faz uma relação
interessante que nos mostra que o não gostar, não era exatamente relacionado aos
estudos:
82
O verso na íntegra encontra-se no Anexo 3 (página 240).
83
Maalouf (2005) em sua tese faz uma interessante análise sobre esta questão. Segundo o autor, o
desenraizamento é um processo que pode deixar feridas profundas no sentimento de si mesmo do
imigrante e também de seus descendentes. Ao longo de seu trabalho, Maalouf retrata a importância do
enraizar-se, a importância das experiências positivas de aproximação à cultura de acolhimento. Para
maiores informações consultar: MAALOUF, J.F. O sofrimento de imigrantes: Um estudo Clínico sobre os
efeitos do desenraizamento no self. Doutorado em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2005.
164
“ Não sei dizer se isso poderia ter alguma ligação com o fato de ela, disso, dessa
imposição, com relação ao alemão, a escola, né eu nunca me senti bem no Porto
Seguro, nunca, porque era uma escola de elite, ali tavam fillhos de presidente da
Volkswagen e a gente que ainda por cima morava em Guarulhos!”
A menina que não gostava de estudar- trabalhou muito e apenas com a
qualificação do ginásio, conseguiu trabalho em várias empresas alemãs. Conta que,
naquela época, chegar em uma empresa e apenas mostrar que estudou no Porto Seguro
já lhe garantia a vaga. Conta ainda sobre altos cargos em grandes empresas alemãs e que
chegou a ser secretaria do diretor adjunto de uma destas grandes empresas.
Vale ressaltar que a questão da língua, ainda que impositiva, ajudou A. a
conquistar emprego e “ainda que não gostasse de estudar” foi o grande apoio da família
e teve sucesso profissional. Ainda assim, de certa forma, A. continua seguindo o modelo
da mãe. Trabalha em algo que foi aprovado por esta, trabalha com o mesmo ofício. A.
iniciou o trabalho como auxiliar de secretaria e depois foi crescendo, sempre em
empresas estrangeiras, o idioma esteve sempre presente “o idioma foi o meu
diferencial.”
Interessante pensar neste percurso de uma menina que não gostava de ir à escola
dando se tão bem profissionalmente e escolhendo seguir aprofundando seus
conhecimentos de alemão, língua que, até então era vista como imposição. Neste caso, a
relação com a língua que até então lhe fora imposta, passou a ter caráter emancipatório
A. obteve reconhecimento e êxito. Era enfim boa em algo, uma vez que não gostava de
estudar. A. denota com isto o caráter progressivo e regressivo da identidade (LIMA,
2005), o caminho dinâmico do ir e vir e do ressignificar, abarcar novos sentidos às
experiências vividas.
No instituto Goethe faz uma prova, obtém a melhor nota e ganha uma bolsa para
estudar alemão na Alemanha, então com 21 anos, esta foi a primeira vez que foi ao país.
Seu chefe na época apoiou totalmente sua ida à Alemanha. A. é reconhecida pelo seu
saber, mas além deste, por sua competência.
“O alemão me deu o diferencial eu não teria chegado nestes cargos não fosse o
alemão. Mas assim, essa questão da escola e você não gosta de estudar, foi uma
165
coisa que prevaleceu muitos anos. Minha mãe chegou a essa conclusão, você não
gosta de estudar, você gosta de trabalhar.”
O valor do trabalho tem ligação com a ascensão pelo trabalho, mas é também um
valor de ordem, de disciplina e de caráter. Está ligado também com o sucesso nos
estudos, valor observado também em nossos outros entrevistados.
Mais à frente, A. nos conta que anos depois, ao levar o filho para a terapia tem
uma conversa com a terapeuta que lhe diz:
“ não gosta de estudar? Não acredito nisso, você o teu perfil é de fazer tudo o que
faz da melhor maneira possível e eu não acredito que você não goste de estudar,
tem alguma coisa aí. Aquilo ficou, tem alguma coisa aí, tem alguma coisa aí... e
quando aconteceu minha separação, a primeira coisa que fui fazer, eu fui fazer
supletivo!(...)E daí aquela coisa interessante, aquela coisa germânica (risos) eu me
lembro que tinha ido super bem nas provas e aí eu liguei pra minha mãe e ai ela
falou: é mas também na realidade você, também já tinha feito o primeiro colegial,
então na verdade, sim, eu já tinha feito mas eu não tinha concluído, e eu fiquei
muito feliz que tinha ido muito bem e ai eu liguei pra ela e ela e... Sabe, mas você
já tinha feito o colegial, não tem nada demais você ter ido bem né(...) isso então é
bem germânico”
O valor agregado ao estudo foi buscado por A., mesmo quando já estabilizada
profissionalmente. Era algo importante para si mesma, mas, de alguma forma, algo
ligado também à busca de reconhecimento junto a esta mãe, cujos valores são
“germânicos” ao ponto de não transcenderem a formalidade perante a emoção que A.
sentia, algo que vê com crítica.
A realização pelo próprio esforço em níveis diversos, que não só pelo trabalho,
foi importante para nossa interlocutora, que buscou a escola depois de adulta e
divorciada. A. fez da questão transformar o “não gostar de estudar” em realização que
extrapolou o que dela era esperado. A. era novamente estudante,“(...) e aí a mãe de uma amiga de minha filha disse que eu tinha o alemão perfeito
e que poderia dar aula de alemão. Aula de alemão?? Eu? Eu nunca dei aula de
alemão... tá bom então tá eu vou pensar...aí resolvi fazer letras, pensei na usp, mas
teria dificuldade em passar no vestibular, o nível de exigência seria muito maior. E
na época eu conversei muito com uma pessoa que tinha sido professora de fonética
na USP e ela falou que em termos de alemão a USP não me acrescentaria, pois
meu alemão era perfeito.E aí quando comecei a fazer o curso, minha mãe também
começou a pensar, nossa né ela ta fazendo faculdade e aí ela me deu dois livros do
166
Schiller que eram dela (que depois A. nos mostrou) aí ela pensou, nossa ela gosta
de estudar!”
A. recebe o reconhecimento de sua mãe, a sua maneira de demonstrar incentivo
e afeto, lhe dá um livro de Schiller. Reconhece que A. agora gostando de estudarpoderia ler tal obra... Mais uma vez uma obra complexa, cujo alemão erudito implica
em dedicação para a leitura, mais uma forma de “segurar a língua”... Importa ressaltar a
trajetória de A. que ao tornar-se estudante, possibilitou o surgimento da professora de
alemão, não sendo esta uma escolha feita pela relação com sua mãe, mas pelo
reconhecimento de uma capacidade que já tinha (trabalhou como secretária com o uso
do idioma) e que agora poderia usá-lo de outra maneira.
A. segue adiante e não para mais de estudar. Percebe-se que o estudo está, no
entanto, sempre relacionado à temática alemã, letras, literatura84 etc.
“depois que eu terminei letras acabei indo como aluna ouvinte na USP e participei
de um curso de pós- graduação. Fui lá, falei com o professor e acabei assistindo
as aulas de literatura. Ele deu um seminário de pós-graduação de autobiografias e
eu achei muito interessante! Teve a autobiografia do Goethe e eu achei muito
interessante.”
Depois disto, A. retoma o assunto de quando acompanhou o seminário sobre
autobiografias como ouvinte e retoma o quanto gostou de ter feito o trabalho sobre a
vida de Goethe. Posteriormente nos mandou o trabalho e pensa em continuar a escrita
deste, mas ainda não sabe ao certo como. A. “a menina que não gostava de estudar”
que agora estuda, frequenta seminários da pós-graduação e escreve um texto sobre
Goethe! Sim, A. sabe que gosta de estudar, buscou o reconhecimento de sua mãe e desta
forma, manteve-se fiel à língua. Seus estudos são sempre relacionados de alguma
maneira a Alemanha. Mais uma vez sua forma de “segurar o idioma” que não implica
em uma obrigação, mas desta vez, o faz com prazer e por sua própria escolha.
84
A. mostra-nos muitos livros que guardou de sua mãe, contando que ela os comprava em São Paulo e
que tais livros circulavam com certa facilidade na cidade. Isto retrata-nos um pouco da importância,
para os alemães, de manterem seus costumes, perpetuarem sua cultura, circularem seus saberes na
cidade onde viviam.
167
Ao retomar a entrevista em um segundo encontro, A. diz ter a impressão de não
ter assimilado às perguntas anteriormente feitas: “quem sou eu e quem gostaria de ser”.
Responde-as, contudo, com absoluta clareza:
“Bom quem eu sou? É na realidade eu me sinto como te disse não me sinto nem
bem brasileira e nem bem alemã, acho que sou uma mistura meio que dos dois
porque nasci de mãe alemã, mas me criei no Brasil e é, então alguns aspectos
percebo que sou alemã mesmo assim, digo assim de, disciplina em alguns aspectos
e de responsabilidade e comprometimento com aquilo que eu faço e eu me sinto ás
vezes, bem, eu uso o termo germânica (risos). Às vezes me incomoda é, por
exemplo, você manda um e-mail pra uma pessoa e a pessoa às vezes não te dá um
retorno, e eu já percebi que isso é meio normal, e isso pra mim não é. Então
quando recebo um e- mail, às vezes fico ali, quero dar um retorno e às vezes não
consigo dar logo mas aquilo fica alí né... Então nestas coisas, eu me percebo mais
alemã, então se a pessoa disse que ia enfim fazer determinada coisa então pra mim
tá claro, vai ser feito e tal e às vezes não consegue e tal, e aí eu percebo que meu
nível de cobrança é alto e aí eu olho às vezes à minha volta e percebo que as
pessoas não cobram tanto, cobram menos né... Em parte acho que é bom, é você
fica menos neurótico (risos) eu gosto disso então fico observando esses dois é
lados, aspectos, sei lá como pode chamar. Mas, por exemplo, em questão de
horário, ihhh... aí eu sou brasileiríssima (risos) eu vivo atrasada no final de
semana então piorou, porque não consigo manter horário, se falo que vou chegar
às 3, daí eu chego às 4, então isso é terrível.(...) confesso que tenho uma
dificuldade grande com horário, uma fraqueza minha assim eu não sou nem um
pouco alemã.”
Ressalta-se que A. coloca a dificuldade com o horário como uma fraqueza sua,
provavelmente por considerar este o ponto alto da disciplina que denomina
“germânica” e parte de um valor alemão, que deveria ser, portanto, uma parte de si
conforme foi socializada. A irmã, neste modo de entender a questão do horário e da
disciplina, não tem “fraqueza” é forte. “Minha irmã é muito mais alemã nessa coisa de
horário e eu né, já levei até bronca né, porque chego atrasada nos lugares né,
principalmente se é uma festa e a pessoa fala que vai começar as sete, ah, aí eu vou
chegar lá uma umas oito e meia né, por ai (risos)!”
Logo A. atrasada é autêntica e mais, permite-se ser desta forma e revela:
“Então assim eu não gosto que fica me cobrando, isso, se me cobrar horário assim,
isso me incomoda. Então não sou germânica nisso.”
Ainda que tenha a ideia de fraqueza, isto não parece incomodar A., que entende
que pode ser flexível quando quer, talvez sendo mais brasileira.
168
“Na realidade eu acho que gostaria até de ser um pouco mais brasileira. Mais
desencanada (risos) menos perfeccionista, também não sei se a gente pode atribuir
isso tudo só ao fato de ser alemão ou não, acho que também tem muito da própria
pessoa. Então acho que se eu fosse mais brasileira seria mais desencanada e isso,
acho que eu gostaria.(...) mas também não negar isso, isso é meu também, mas me
abrir para os outros aspectos da vida também, pra outras formas de não deixar
isso totalmente de lado, mas me abrir pra outras formas de vida.”
A. nos fala que foi sua história que a fez como é hoje, desta forma, se percebe o
movimento que a família precisou fazer quando do falecimento de seu pai e este
movimento com sentido deveras “econômico”. Teria sido sua mãe tão exigente com os
filhos para que estes tivessem boas chances na vida, estudassem, progredissem etc?
Não é impossível... Assim como não é impossível que o “estilo alemão” tenha se
misturado a esta questão.
“Hoje não saberia te dizer onde começa uma coisa e onde termina outra, ela se
mistura um pouco. Eu acho que não tem a ver só, não, todas as pessoas alemãs
são, digamos assim responsáveis, cumpridoras de suas obrigações, não todas né,
então aí, é, por isso eu digo não necessariamente tem a ver com isso, tem a ver,
minha mãe realmente deixou esse exemplo e eu penso que até pelo fato de, ela
nunca falou nossa, eu tô com medo, eu tô preocupada, isso nunca ouvi minha mãe
falar.”
A fala de A. pode ser entendida à luz da perspectiva retratada por RochaTrindade (2006, p. 90):
(...) as identidades de grupos e comunidades imigradas em terra estrangeira
ou fruto da multiplicação das respectivas gerações acabam por revestir
características híbridas de dupla pertença, podendo esta afirmar-se por via de
traços simbólicos, exteriormente expressos ou, simplesmente, por uma teia de
ligações afetivas à cultura e à terra dos seus ascendentes. Serão, em qualquer
dos casos, identidades recriadas.
A. relata ter participado de uma atividade a qual atribui grande sentido - uma
atividade chamada “constelação familiar85” :
85
“Trata-se de uma prática fenomenológica e sua fundamentação é principalmente antropológica,
filosófica e humanística. A base conceitual desta abordagem pode ser assim resumida: Além do
inconsciente individual e do inconsciente coletivo existe um inconsciente familiar compartilhado pelos
membros de uma mesma família e que se transmite às gerações seguintes e que é estruturado a partir
de todos os acontecimentos que compõem a história da família (nascimentos, mortes, uniões,
separações, rejeições e exclusões, sucessos, fracassos, padrões de conduta, etc...). Este inconsciente
familiar influencia de forma intensa alguns membros da família afetando significativamente suas vidas.
169
“a constelação familiar é para você estar em paz com a tua família, não importa o
que ela seja, não importa se teu pai é assassino, se tua mãe é prostituta, mas você
estar em paz com a tua família de origem e cada um ter um espaço na sua vida,
não tem aquela coisa, o fulano não existe mais pra mim.”
Coloca que a constelação familiar é muito recomendada para trabalhar assuntos
de imigração. Falecimentos, separação e suicídio. “No meu caso tinha a questão do meu
pai, da separação, falecimento do meu irmão. E são coisas que vai te impregnando
né(...) a imigração já marca e se ainda existe um fator agravante desses, os medos que
ele tinha, a forma como ele, a postura de vida dele em função desses medos, então, ele
vai transmitindo pra gente né, não precisa falar.”
Após as reflexões que fez, a partir desta atividade A. resolveu cursar psicologia e
assim segue em seu projeto de vida - ser “mais desencanada” buscando maior reflexão
sobre si mesma e sobre o seu mundo - sua constelação.
Estes membros ficam de alguma forma identificados ou "emaranhados" a outros membros da família,
freqüentemente de gerações anteriores, que foram ¨excluídos¨ ou que tiveram um percurso de vida
sofrido. Algumas vezes o membro emaranhado nem sequer tem conhecimento consciente do episódio
de exclusão que ocorreu com os seus familiares. Porém, ele capta estas informações do inconsciente
familiar e retoma/revive o “destino” desta pessoa, ou tenta compensar ou fazer o que outro familiar
“deveria” ter feito. Pode acontecer ainda que ao perceber que um dos pais está emaranhado e tenta
repetir o destino de alguém, um filho decide inconscientemente tomar para si esta “missão reparadora“
equivocada e, por exemplo, adoece ou fracassa ou deprime no lugar de seu pai ou mãe.” (Fonte:
http://www.latec.ufrj.br/desenvolvimentopessoal/index.php/artigos/110-constelacaofamiliar.html)
170
Um projeto de Liberdade
Porque o improviso... É o frescor da vida!
171
A História de J.
50 anos, natural do Rio Grande do Sul. Bisneta de alemães por parte de pai e mãe
“A questão é a gente definir o que é mais importante pra gente. Pra mim, o mais importante nunca foi
ficar do lado de alguém, ter uma estabilidade (...) o mais importante era poder estar onde eu quisesse,
ser livre. (...) cada um com seu caminho, não fazer muito o que os outros acham que é bom.”
Conhecemos J. na apresentação que fez de seu filme em um cinema. Os
elementos apresentados e as palavras por ela proferidas ao final da sessão foram de
grande motivação para que quiséssemos saber mais sobre sua história. Além do
comovente filme, J. trouxe memórias de sua infância e mensagens de liberdade para os
presentes. Muitos se emocionaram e logo a atmosfera se transformou e a sessão de
cinema virou uma grande roda de conversa, onde as pessoas se sentiram à vontade para
compartilhar lembranças e experiências.
J. nasceu e cresceu em uma pequena cidade86 de colonização alemã no Rio
Grande do Sul. Fundada em meados de 1870, data que J. calcula terem chegado seus
familiares ao Brasil. Nesta cidadezinha, mantém-se o dialeto e costumes alemães até
hoje, sendo assim, um lugar semelhante ao que fora a Alemanha do final do século XIX.
O dialeto falado, o Hunsruckisch, não é mais ouvido na Alemanha atualmente, o que
torna a cidade um lugar parte de uma história viva, legado de uma população pioneira.
Na colônia a vida é simples, as pessoas trabalham na roça e as crianças, em
geral, aprendem o português somente quando são alfabetizadas na escola por volta dos
sete anos de idade.
Este é o contexto por onde J. inicia sua história de vida87. Nossa interlocutora
morou nesta comunidade até os nove anos de idade quando, devido às irmãs
expressarem o desejo de estudar (nesta comunidade a escola vai até o ensino
86
O nome da cidade não será revelado em razão do sigilo.
87
A entrevista teve duração de cerca de 7 horas em um mesmo dia, sendo a mais longa de todas
realizadas.
172
fundamental) seus pais optaram pela mudança de cidade, com a expectativa de
proporcionarem outras oportunidades às filhas.
Assim, J. estudou, trabalhou muito e se tornou atriz de destaque e diretora de
cinema. Sua história revelou-nos não apenas o alcance do sucesso, mas sim deste
construído com base em sua busca por emancipação e esta, envolvendo um caminho de
metamorfoses almejadas. O elemento “descendente de alemães” permeia a vida de J.,
conforme veremos ao longo das páginas que seguem.
Ao iniciar sua história de vida, além de nos contar sobre sua “aldeia” J. colocou
de modo enfático “já ser a pessoa que sempre quis ser.” Algo que ao aparecer em sua
narrativa logo nos primeiros minutos de conversa, nos surpreendeu.
“É sobre quem eu sou e quem eu gostaria de ser, eu acho que não tenho mais essa
pergunta de quem eu gostaria de ser (risos) eu acho que já sou a pessoa que
gostaria de ser (sorri) que eu quis ser né. Porque eu sempre quis, engraçado, eu
mesma me pergunto, vendo minha própria história, eu mesma me assombro com
esta pessoa que me tornei sabe?”
J. revela seu assombro em ter seguido um caminho totalmente diferente de seus
familiares, bem como das pessoas que permaneceram na colônia. Revela-nos:
“(...) é muito distante a minha trajetória né, a trajetória da mulher que sou hoje do
lugar de onde eu vim, do meio cultural que vivo né, trabalho com cinema, com
teatro, televisão, eu sou atriz, fiz uma faculdade de artes cênicas né, eu me
relaciono num universo muito cosmopolita e ter nascido no lugar onde nasci não
é... A discrepância disto é muito grande, quando olho pra trás assim né, de um
lugar de quando eu tinha sete anos, sete não, acho que até uns oito, eu nem
conhecia um aparelho de televisão. Eu fui apresentada à TV quando já tinha uns 9
anos, por aí, eu nem sequer falava português, eu era uma pessoa muito, muito
tímida, eu não tenho nenhuma influência familiar no sentido do campo das artes,
não tem nenhum registro disso na minha família, não tem um músico, não tem um
artista plástico, não tem ator, nada.”
Retrata o modo simples de sua família. O pai ferreiro e mãe que trabalhava na
roça. J. era uma menina tímida, que não sabia falar o português e assim, não
vislumbraria chegar onde chegou.
“É especialmente porque eu venho de uma família de gente muito simples né, de
roça, meu pai era ferreiro, minha mãe trabalhava na roça né e todos eles
estudaram até o 4º ano primário e não tinha assim, não tenho ninguém na família
173
assim com alguma erudição. No meu núcleo familiar assim, pai, mãe e irmãs, acho
que sou a pessoa mais desenvolvida assim, intelectualmente. Fui a única que me
formei (...).”
Este é o pano de fundo do início da trajetória de J., que pertence a uma família
“sem erudição” e que cresceu na roça. Aos poucos J. vai aprender que a erudição é uma
construção e como tal, possibilidade...
J. tenta explicar-nos como se tornou quem é, mas não encontra meios concretos
para fazê-lo. Para ela, isto é um “assombro”.
“(...) eu fui uma célula que se desgarrou disso tudo e né (risos) fiz um outro rumo,
né outro rumo na minha vida assim muito diferente de tudo, de todo esse núcleo de
onde eu vim. Então, às vezes eu acho, eu falo do assombro assim eu tô falando
disso, eu também não sei explicar direito porque, como eu me tornei essa pessoa
que eu sou.”
J. acredita que uma explicação possível para que tenha sido esta “célula” seja
seu gosto pela arte. Para nos falar deste gosto, revela-nos uma história, a qual define
como “muito bonitinha” da forma como foi socializada por suas irmãs mais velhas, suas
cuidadoras com criatividade, imaginação e com um idioma diferente daquele que
falavam na comunidade, no caso, o português:
“(...) quando eu fui pra escola com 7 anos de idade, eu não falava português, como
a maioria das crianças, mas as minhas irmãs, eu tenho 4 irmãs mais velhas eu sou
a mais nova e as minhas irmãs gostavam muito de ler fotonovela. Então assim, eu
me lembro da minha infância, eu fiquei muito rapidamente familiarizada com este
universo da fotonovela, porque elas liam muito fotonovela. E aí eu via aquelas
revistas, aquelas imagens, aqueles desenhos e eu acho, uma suspeita, que isso
tenha aguçado um pouco o meu desejo, dessa coisa fantasiosa né, essa fantasia, da
novela, da fotonovela e eu aprendi a ler em casa e isso foi uma coisa que eu não
sei explicar, eu aprendi a ler sem falar português né, eu aprendi a ler português
é...”
Furtado (2013) discorre sobre imaginação e criação enquanto capacidades
humanas voltadas para o exercício da liberdade e deste exercício como potencializador
da liberdade, permitindo um agir-em-liberdade. Para a autora, imaginação e criação
permitem a transformação da natureza enquanto ação que transcende capacidades
biológicas do homem. Desta forma, o agir- em- liberdade também pode ser considerado
uma ferramenta política. Tal embasamento permite-nos compreender mais à frente
aspectos do desenvolvimento político de nossa interlocutora.
174
“Claro que tinha uma familiaridade com o português, porque as minhas irmãs já
falavam, mas em casa a gente só falava o dialeto, era o dialeto do Hunsruck88 que
essa região fala. Mas elas falavam, já tinham saído mais do que eu e então elas
tinham já o domínio do português, elas liam em português, já tinham ido pra
escola. E então elas falavam, escutavam músicas no rádio, a gente ouvia né,
aquelas músicas da jovem guarda, eu ouvia as músicas do Jerry Adriani no rádio,
eu achava bonito é e essa coisa delas lerem as fotonovelas e eu tenho uma vaga
lembrança de eu perguntar pra elas o que tava escrito ali o que as pessoas tavam
falando e elas diziam: ah ta falando isso pra ela e aquilo me aguçava a
imaginação né e eu sei que um belo dia, essa cena tenho muito presente assim,
minha mãe tava no fogão e eu tava grudada nas revistas sempre e minha mãe
cozinhando e eu disse pra ela, por que que você não faz um dia essa comida que tá
aqui escrito na revista? Daí ela disse assim, que comida? E eu mostrei pra ela a
página da revista e ela disse assim: mas tu nem sabe o que é isso eu disse sei sim e
ela disse, como? E eu disse ué, eu sei ler. Como sabe ler? Então pra minha mãe foi
uma surpresa eu saber ler né.”
A mãe que não acredita que a filha tenha aprendido a ler o português sem ir à
escola torna-se peça central no incentivo que daria a J. para tornar-se a pequenanotável.
“Então aí ela não acreditou e falou como é que é isso? E me pediu pra ler e eu li,
algumas frases e ela ficou impressionadíssima (eleva o tom de voz) não acreditou e
disse: não é, isso aí tuas irmãs te ensinaram, e você decorou estas palavras né?
Então aí eu disse me mostra aí qualquer outra coisa e ela virava a revista e eu lia,
eu tava lendo”.
Logo, a pequena J. ficou conhecida na colônia, tinha aprendido o português sem
ir a escola!
“Isso virou um acontecimento na colônia assim, eu já era uma pequena notável
(risos) eu me lembro muito disso, virou um acontecimento assim, quase um milagre
assim, como é que essa criança sabe ler? Eu tinha recém 7 anos, como é que sabe
ler, então e aí eu me lembro disso, de me levarem nas casas assim à noite, porque
tinha essa tradição nos sábados os colonos se visitavam, iam tomar um chimarrão
na casa de um ou iam comer então né, essas visitas entre parentes, entre vizinhos
se fazia e eu me lembro disso assim, de terminar a comida, as pessoas terminarem
de comer e se fazia uma grande roda na sala e eu ficava no meio, no centro da
roda
lendo
e
era
a
88
Região localizada no estado da Renânia-Palatinado, no sudoeste da Alemanha.
175
atração, porque a minha mãe meio que me exibia assim como né... E eu claro, não
é que eu lesse trechos inteiros, assim, mas lia.”
J. passa rapidamente de uma menina-comum-da-colônia que falava somente o
dialeto em casa e ainda não sabia o português, para a pequena-notável reconhecida
como uma criança com talento especial, notada e diferenciada na comunidade.
Desta forma, J. ainda tentando responder quem é compartilha que tornar-se uma
pequena-notável pode ter sido fator disparador para ser quem é hoje.
“(...) diria que talvez isso, essa aceitação né, ser uma coisa diferente, fazer uma
coisa diferente né, é uma aceitação, as pessoas olham pra você, gostam de você,
você é valorizada né, então acho que essa coisa do ego né, de me sentir
importante. E eu acho que isso motivou a coisa de querer o palco. Eu tenho um
pouco essa sensação, essa coisa da infância de ter sido o destaque, por ter
aprendido a ler é, me dá uma aceitação assim, uma coisa de né...”
Seu reconhecimento como pequena-notável continuou, não somente entre as
pessoas próximas na colônia, mas também na escola. Nesta, J. destaca o método usado
pela professora para que as crianças aprendessem o português. Este a incentivava a
continuar aprendendo:
“A gente chegou na escola lá e a gente só falava alemão e a professora tinha um
método engraçado (sorri) de que, quando ela tava alfabetizando, quem acertasse a
palavra que ela escrevia no quadro negro, quem acertasse ganhava uma figurinha
(risos), era um prêmio assim pra quem soubesse ler e eu ganhava todas né! Sabia
ler... E aí eu tinha assim muitas figurinhas.”
Cabe aqui um pequeno parêntese para refletir-se sobre a socialização na escola;
no caso de J., a socialização com a inserção da Língua Portuguesa. Além de J. ter sido
positivamente incentivada a continuar aprendendo o português, nota-se no exemplo
desta colônia, a importância dada à língua como fator de ascensão das crianças na
comunidade e também, como chance futura de seu desenvolvimento no país. Ao reverse a História da colonização alemã no Brasil sabe-se que os colonos, muitas vezes, não
tinham acesso à aprendizagem da língua, portanto, não saber português não se tratava de
uma escolha em muitos casos. A escola nesta colônia tem o papel de alfabetizar e de
ampliar o universo da criança com o ensino da língua. Desta forma, saber o português
era um elemento propiciador de emancipação.
176
Para explicar o desejo por atuar, J. refere um episódio que considera marcante
vivenciado na escola e a relação disto com o português. Coloca ainda que, para os
membros de sua comunidade, não saber a língua não era algo desejado, ao contrário,
motivo de vergonha:
“É e aí, teve um episódio que é muito marcante pra mim que sempre quando
perguntam assim, de onde vem essa coisa da atuação é a primeira coisa que eu me
lembro assim, desse registro. Que quando, assim, a gente tinha um único aluno na
sala de aula que sabia falar o português bem, porque ele não era de lá, nasceu na
cidade e a família depois mudou. Ele era o queridinho das professoras, era um
garotinho muito bonito, ele usava sapato, meia né, isso eu me lembro muito claro.
A gente andava de pé no chão, chinelo de dedo né a gente era pobre né, roça né,
todo mundo era da roça e a gente não tinha esses luxos. Ele era todo arrumadinho,
todo almofadinha assim e ele sabia ler, também chegou na escola já sabendo
algumas coisas então ele era, assim, tinha eu e ele na turma que já sabíamos ler.
Mas ele por outras razões, de família que não morava lá então, ele não era colono,
não era da roça. É, e aí eu me lembro que num dia, ele era todo queridinho, tudo
que era assim especial, ele era o queridinho da professora, então tudo era o (diz
o nome do garoto) e aí no dia, era pra ter uma encenação pro dia das mães, tipo
teatrinhos que as crianças montam era uma encenação pro dia das mães era pra
ler um discurso em português e aí a professora perguntou quem gostaria de ler e
ele, claro, levantou a mão e tal e eu me lembro que eu, muito, muito timidamente,
eu era muito tímida, levantei a mão (reproduz o gesto de levantar a mão) também
levantei o dedo, eu também queria ler. E aí ela (professora) ficou sem graça,
porque ela achou que ninguém mais ia querer ler, ele era o preferido e obviamente
ele leria e ela então teve que optar em quem faria o discurso e então ela falou,
vamos para a diretora, os dois vão ler pra diretora e ela vai escolher quem lê
melhor.”
A diretora (lê-se figura de autoridade maior na escola) tem a tarefa de escolher o
melhor leitor (lê-se legitimar o melhor leitor como tal) e para a surpresa de J., o que
seguiu foi o seguinte:
“(...) tenho essa lembrança assim tão forte, eu tenho essa lembrança viva assim,
essa ida pra sala da diretora foi um suplício pra mim, porque eu pensava, porque
fui dizer que queria ler? E agora? O que vai acontecer? Vou pra sala da diretora,
aquilo foi tão assim eu pensei porque fui inventar isso de querer ler, já fui assim
pensando em desistir no caminho, aí então é vamo pra sala da diretora né e aí
assim, aquele corredor largo que ia pra sala da diretora né, então foi assim um
negócio, até hoje tenho essa lembrança assim. E nós chegamos na sala da diretora
e ele leu e eu li e a diretora disse uma coisa que sempre ficou muito marcada, ela
disse: o (diz o nome do garoto) lê melhor, ele tem melhor pronúncia né, ele sabe
ler melhor, mas a J. tem mais interpretação. Nossa eu fico arrepiada até hoje
quando penso nisso é, a J. tem mais interpretação, acho que ela que deveria fazer
o poema pro dia das mães. E aí essa palavra: interpretação, eu nem sabia o que
significava né.”
177
A pequena-notável mantém seu status notável agora, além de ter o
reconhecimento que já tinha de sua mãe e da colônia, tem este legitimado pela diretora
da escola que acrescenta um novo fator: a interpretação. Com este novo elemento J. se
sobrepôs ao queridinho da professora, almofadinha que já sabia o português porque
morava em uma cidade maior onde o acesso à língua era diferente daquele que as
pessoas tinham na pequena colônia de onde J. vinha. Logo, a pequena-notável se
metamorfoseia em alguém que tem interpretação e é esta que fará toda a diferença em
seu caminho. Ter interpretação a elevaria a um patamar outro, uma vez que o
almofadinha só sabia ler bem, porque teve outras condições sociais.
“Outra coisa que os professores diziam é que eu era muito inteligente e eu também
não sabia o que queria dizer inteligente, então achava uma palavra muito
comprida né, enorme, achava muito estranha, do que que elas tão me chamando
né? Então eu até perguntava pras minhas irmãs, eu achava que tava até sendo
xingada, porque a professora tinha dito que eu era muito inteligente e aí as
pessoas diziam assim você é muito bobinha, tal e me explicavam.”
J. interpreta e é inteligente! Mas o ser inteligente é uma construção que J. ainda
faria, uma vez que não entendia o significado disto. Contudo, o reconhecimento
recebido fez com que J. desse saltos cada vez maiores, assumindo rapidamente para si o
sentido do ser inteligente somado à interpretação. J. recita o poema para o dia das
mães e o reconhecimento obtido, agora não mais pela professora, diretora e mãe, mas
também da plateia, fica marcado. J. se consolida como pequena-notável-inteligenteboa-intérprete
“(...) eu me lembro desse reconhecimento, dos aplausos né, tal e isso foi pra mim a
motivação da vida inteira, de continuar fazendo é todas as horas cívicas na escola,
era dia das mães, dia dos pais, dia da bandeira, dia da pátria, eram todas (ênfase)
todas as horas cívicas eu preparava alguma coisa, teatrinho, ou lia né, eu sempre,
essa coisa teatral acabou nascendo ali, nessa coisa né e aí assim, de novo, do
ponto de vista psicológico acho que é bem mais fácil identificar acho que é, era
uma maneira de ser aceita né, eu era muito tímida, me sentia, era muito
pequenininha em relação ao resto da turma, era uma criança muito pequena,
muito mirrada, minguadinha, não me achava bonita, era assim uma menininha da
roça e aí o fato de, né, desse dom de fazer as coisas bem, nesse sentido, dava uma
certa destacada né, na turma tal. Então acho que essa coisa da aceitação vem
muito daí, acho, minha vontade de teatro, de palco.”
178
J. nos fala do reconhecimento que a menininha-da-roça obteve por ler o
português e interpretar e deste como muito importante, algo que lhe incentivou a buscar
ainda maior reconhecimento, repondo o personagem que criara para si.
No entanto, há uma passagem anterior em sua vida, que poderia ter mudado o
rumo da história quanto ao reconhecimento positivo e à forma como J. passaria a ser
vista pela família, pela colônia e principalmente por si mesma. Deixemos que J. nos
conte:
“(...) eu tive uma perda muito séria na minha infância, eu perdi uma irmã, menor
do que eu mais nova é... De uma maneira muito trágica, assim... Ela caiu dentro
do poço (pausa) eu tinha (pausa) 5 anos, mais ou menos, 5 pra 6 e ela devia ter 2 e
eu encontrei ela, então assim, é uma coisa muito, muito forte, nem quero falar
muito disso porque é uma coisa que ainda mexe muito comigo até hoje (pausa) é
esse fato, esse acontecimento muito marcante de minha infância é, eu usava luto
com 6 anos, me vestia de preto com 5 anos, é eu me senti muito responsável pela
vida inteira, por isso a terapia, as coisas todas que foram acontecendo depois na
minha vida assim foram importantes pra me reconectar um pouco, mas eu fiquei
muito marcada por isso né, uma tragédia muito grande pra uma criança viver e, e
aí assim, ela era a mais nova e eu passei a ser a mais nova. Então é como se eu
não merecesse ocupar aquele lugar sabe?89
J. carrega consigo a lembrança de tal episódio, faz terapia, busca
alternativas para lidar com o fato e segue adiante.
“No fundo, a sensação que eu tinha de que eu, quando diz ah ela é a pequeninha
da família, é... É porque a outra morreu né, então, é, era um lugar muito difícil pra
mim, sempre foi né, então eu era uma criança, fui uma criança muito triste, eu
acho assim, por muito tempo da minha vida eu... Isso me marcou e marca né,
marcaria qualquer criança, assim, nessa idade (respira fundo) e talvez pelo fato, é
de eu ter me sentido responsável por isso, também porque eu tava eu tava com ela
né, quando isso aconteceu e minha mãe tinha ido pra missa, tinha deixado ela com
a gente em casa, mas era, nunca ninguém usou essa acusação, mas é uma coisa
minha né eu introjetei isso, então, eu fiquei com essa carga da minha infância
muito grande assim, era a irmãzinha que eu perdi, uma coisa muito forte.”
J. já adulta buscou entender o que se passava consigo e após a terapia, pensa ser
a perda de sua irmã o motivo de alguns dos comportamentos que tem e do seu modo de
89
Este episódio da vida de J. nos remete ao filme sobre a vida de Ray Charles, em passagem onde ele vê
a morte do irmão mais novo afogado em um tacho com água escaldante. Pouco tempo após este fato, o
pequeno Ray começa a ficar cego e ao longo de sua vida, desenvolve problemas com álcool e drogas,
tendo sempre em sua memória tal fato relacionado à culpa que sentiu por não ter conseguido evitar a
morte do irmão.
179
ser atual. É possível que o reconhecimento positivo obtido por meio de sua atuação a
tenha ajudado a conquistar seu espaço frente à perda sofrida ou mesmo, na criação e
recriação de personagens, afastar-se da menina-tímida-medrosa-da-roça que
vivenciara tamanho trauma. Contudo, mais a frente veremos que não é somente com
relação ao ocorrido com a irmã, mas também o modo como fora socializada e como
buscou lidar com seus personagens que influenciou seu modo de ser na atualidade.
Percebeu-se que desde muito cedo, J. pensa muito em suas ações, procurando
observar-se para entender sua forma de estar no mundo.
“Depois, muitos anos depois na terapia, fazendo um trabalho de psicanálise, eu fui
entender que assim, muitas coisas do meu comportamento né (pausa) de ser uma
pessoa muito responsável, de nunca querer errar porque ai, meu, meu psicanalista
me dizia isso, o erro podia ser a morte né? É... qualquer distração pode significar
tragédia né, então eu acho que introjetei um pouco isso, eu acho que adquiri um
pouco essa personalidade muito, como vou dizer, uma personalidade muito
perseverante não é isso, muito, sempre muito alerta, sempre muito ligada nas
coisas, assim, sempre muito no controle das coisas assim, no sentido de, como se
eu não pudesse abrir minha guarda assim.”
O controle passa a ser algo importante e consciente. Evita que J. erre mantémna a frente conduzindo seus objetivos.
A morte da irmã pode ser interpretada como perda devido a falta de controle,
controle que uma criança de 5 anos deveria ter tido? Sim, J. entendeu desta forma por
anos, como um erro seu. A falta de controle fez com que perdesse a irmã mais nova de
quem deveria tomar conta. O lugar que J. passa a assumir após tal perda não é, portanto,
legítimo.
“(...) já pra dizer que isso também revela e acho que é um dos pontos dessa coisa
quando eu falo que o teatro quando eu comecei a fazer teatro, quando eu comecei
a fazer uma representação essa aceitação, ser uma pessoa aceita, querida, né é
elogiada, é isso me fazia muito bem, porque acho que no fundo preenchia também
uma coisa que tinha ligação com essa história do falecimento da minha irmã
(pausa) então, quando eu era muito ligada nas minhas amiguinhas da colônia e ai
a distância de mim os minhas irmãs mais velhas já era maior, então assim, eu não
tive mais uma irmã mais próxima, ela era minha irmã mais próxima (...)
180
O teatro a ajudou, por meio da representação a ser aceita, mas também, a aceitarse enquanto criava uma nova perspectiva. Por intermédio das personagens surge vida
após a morte, como já nos ensinou a Severina desvelada tão bem por Ciampa (2001).
Voltemos à mudança da colônia para a cidade grande, importante marco na
história de J. vivido como um processo que de certa forma, foi uma vida nova com
outros personagens implicados. Mais uma vez morte-vida...
Aos nove anos de idade J., após o falecimento da irmã e suas vivências bem
sucedidas com as leituras do português na escola, J. mudou-se com sua família para
uma cidade maior, também no Rio Grande do Sul (o nome não será revelado). Retrata
com esta mudança o medo da perda do espaço conquistado na colônia, onde era a
pequena-notável que lia português e que interpretava. Na nova cidade seria tudo novo,
uma nova forma de viver.
“Aí me lembro que quando a gente se mudou eu tinha 9 anos, então foi na metade
do ano e bem na metade do ano na escola eu peguei uma turma que já tava
habituada né, no meio do ano e eu era uma criança estranha pra essa turma e eu
era uma criança estranhíssima pra aquela turma, porque eu não falava português
direito né, embora já soubesse tinha um sotaque muito forte e tinha dificuldade
com algumas palavras, que eu não sabia dizer (...)”
De pequena-notável J. ganha o posto de criança-estranhíssima o que para uma
menina medrosa, era motivo de ainda maior assombro. Novamente J. tem frente a si um
desafio, comparado em sua devida proporção, ao desafio de resolver o luto da irmã. Era
como lidar com o luto de sua própria personagem.
“(...) então eu era muito medrosa sempre fui uma criança muito medrosa, então
tinha medo das coisas, assim, tinha medo de escuro, tinha medo de gente (risos) as
minhas irmãs, quando elas me veem e às vezes assim, são perguntadas, assim, até
por jornalistas e coisas né, elas falam ela é um fenômeno uma coisa, não
imaginamos ela tão solta e desinibida como ela é hoje. Eu era um bicho-do-mato,
tinha medo de gente então, quando as pessoas apareciam em casa eu me escondia
no quarto e não saía nem pra comer enquanto a pessoa não fosse embora. Tinham
que trazer comida no quarto... Eu tinha medo de várias coisas era muito medrosa,
tinha medo de gente, de linguiça (risos) porque a linguiça era, depois né tu vai
identificando os signos, mas eu imagino que era porque meu pai matava porco e
eu tinha pânico do grito do porco, eram umas coisas assim, mais horríveis pra
mim, eu me lembro do grito do porco morrendo e esse dia da matança do porco
era o dia pra mim assim de morte que eu não queria sair de casa, ficava no quarto,
pela história do porco e pela sujeira que dava o cheiro ruim daquilo ali tudo,
181
daquela coisa do porco, tudo, que é muito nojento, assim. Quando tudo terminava,
aquele pesadelo chegava ao fim o que que sobrava? As linguiças penduradas...
Então eu acho né, identifico assim, as minhas irmãs contam isso melhor, assim eu
só me lembro desse medo, mas elas brincam, elas falam que era a maneira de me
segurar assim, se eu quisesse ir pra rua, sair, era só botar uma linguiça na porta
(risos) e eu recuava (...).
J. fala sobre o medos ao contar sobre a nova cidade. Neste momento faz menção
à sua relação com a morte e conta sobre a morte do porco, do terror que a acometia. A
morte é algo assustador, como resolver? Talvez transformando a morte em vida mais
uma vez, em recomeço criativo. Sigamos; a cidade grande era uma ameaça para uma
menina pequena-e-estranhíssima que ali precisaria ainda constituir seu lugar em local
novo e com questões totalmente amedrontadoras.
J. descreve este processo:
“(...) aí perdi minhas referências minhas amiguinhas, minha prima e aí eu tinha
medo de negros, né isso é também importante porque, não tinham negros, não
havia negros no lugar e quando a gente muda pra cidade, assim, e meu pai, que
sempre foi racista, é, nunca assumiu claro, mas era, nunca teve um comportamento
racista, mas eu digo isso porque ele tinha essa coisa pejorativa com os negros,
então qualquer coisa era, ah isso é coisa de negrão, de negro, ou então uma coisa
horrível que ele fazia era, se você não fizer tal coisa vou chamar um negro, bem
preto, pra te levar, né, vou chamar o negro com saco, vai te botar dentro do saco,
então assim, era muito perverso, então eu digo, pra mim, negro era uma coisa
assustadora só a palavra e quando eu vi um negro, pela primeira vez, foi um
andarilho que passava pelas estradas ali e todo sujo, maltrapilho, um mendigo,
praticamente, então eu tinha essa imagem do negro, e então, eu tinha medo, eu
lembro quando a gente mudou eu pedia, rezava assim silenciosamente pra não ter
um negro na minha sala de aula, porque tinha medo.”
A nova cidade lhe trazia elementos desconhecidos e o entorno amedrontador.
Algo que era de certa maneira, reforçado por seu pai.
J. vai se acostumando e à medida que interage, busca vencer seus medos frente
ao novo elemento que encontra - o estigma.
“E aí com o tempo fui me acostumando, fui vendo que negros eram pessoas e
pessoas legais tal, tanto que não tenho nenhuma, isso passou, já tive namorado
negro, meu parceiro hoje é mulato né, não tenho essa, felizmente, mas era uma
questão forte da minha infância. Então, quando a gente se mudou eu tinha muitas
coisas adversas nesse sentido, eu tava num lugar que eu não queria estar, que era
ao lado do lugar que eu gostava muito, que eu não queria ir embora de lá
(colônia) é, cheguei numa escola que de certa maneira, crianças são muito cruéis
182
né, elas debochavam de mim, pelo jeito que eu falava elas me chamavam de
alemoa batata e alemoa batata é pejorativo (...). Essa visão que essa visão de que
ah é bacana ser alemão, esse status não, não tinha nada disso, era o contrário,
falar, ser de origem alemã significava ser da roça, ser colono naquela região e ser
colono era uma coisa pejorativa, não era uma coisa positiva, o jeito que eu falava
denotava isso, que eu era da colônia então era negativo, não era bacana.”
A menina pequena-notável passa a ser estigmatizada, vira a alemoa-batatacolona.
J. começa a ir mal na escola, seu rendimento não era mais o mesmo e as crianças
zombavam dela. Definitivamente tinha perdido seu lugar como pequena-notável.
Precisaria criar um novo personagem.
Preocupada com o rendimento escolar e com o sofrimento da filha, sua mãe lhe
faz a promessa de que caso passe de ano na escola, poderia voltar a morar na colônia. J
acredita na promessa da mãe, se esforça e consegue passar de ano.
“(...) quando terminou o ano eu fui pedir pra minha mãe e ela disse: mas tu
acreditou nessa bobagem que eu te falei? E... eu me lembro que chorei muito,
fiquei muito triste com minha mãe por ter feito isso e claro que, minha mãe era
uma pessoa boníssima, querida, adorável, eu tinha uma relação assim, é, incrível
com ela, era assim, ela falou aquilo por falar, não tinha dimensão né, do que isso
pudesse, do que pudesse acontecer comigo(...)”
Pode-se entender que o mecanismo do medo de J. tem razão de ser. Para além
das experiências que lha causaram medo de fato, promessas feitas por pessoas
significativas não são cumpridas. Logo, desenvolve-se algo novo. J. começa a ser
independente. Desta forma as promessas não precisarão mais ser cumpridas, a própria J.
poderá construir seu caminho sozinha.
J. em sua experiência de independência relata sobre viagens que fazia sozinha à
colônia aos 9 anos de idade, para passar os finais de semana com a prima “como uma
forma de conseguir retornar à escola na Segunda-Feira” refere certa surpresa por sua
mãe deixá-la com tão pouca idade, viajar sozinha de ônibus.
J. teve muita dificuldade em se adaptar à nova cidade e queria ir todos os finais
de semana visitar sua prima na colônia. Algo que aparentemente era ruim, lhe
possibilitou vivenciar experiências de independência:
183
“(...) pra mim era uma grande viagem que eu fazia aos finais de semana, sozinha
(ênfase) pela vontade de tar com minha prima eu acho que isso começou também
assim a talvez essa coisa que eu tive da independência assim, tive desde cedo
assim muito é, é decidida a fazer as coisas que eu quero assim, talvez isso tenha a
ver com isso já, assim que desde pequena eu já me virava (...).”
Aliado a isto, refere o papel do avô em sua vida, a quem mais a frente agregará o
início da tomada de consciência de suas ações independentes e também do sentimento
de vergonha.
“E eu era muito ligada nesse avô, esse avô era tudo pra mim e eu, era o
xodozinho do vovô, era o nenê, que ele chamava né, nenê pra cá, pra lá, eu ia
junto com ele nas coisas, então meu vô é que me mostrou a cidade, ele ia sempre
visitar uma pensão dos irmãos e eu ia com ele, então pegava o ônibus, saia né e
conhecia um pouco o mundo assim, com meu avô. Era tudo muito perto, mas era
pra mim assim, uma viagem na minha cabeça, então eu era muito ligada assim
nesse meu avô. Então quando a gente se mudou pra cidade grande ele veio com a
gente e ele não falava português, nunca falou, nunca aprendeu português e ai meu
avô não falava, ele morreu com 80 anos e nunca aprendeu o português e quando a
gente tava em Novo Hamburgo eu era a intérprete dele nos lugares, tinha que
traduzir as coisas do alemão e daí ele falava em alemão em público e isso me dava
uma vergonha (ênfase) uma vergonha assim, porque denotava né que era da
colônia, então não bastava eu não falar direito, ainda tinha o avô ali, pra dizer
que eu não sabia falar (risos) denotando a coisa do alemão é e aí tem coisas
curiosíssimas assim, da primeira vez que ele andou de elevador, que ele nunca
tinha andado, ele quis pagar o elevador, eu fiquei morrendo de vergonha.”
Com o avô J. conhecia o mundo enquanto também o ajudava a estar nesse
mundo, no entanto, sentia vergonha... Conquistar a independência tinha seus desafios.
Os primeiros ainda a serem superados na escola, lembremos.
“E bem aí esse período de adaptação na escola foi muito difícil e eu fiquei assim,
cada vez mais introjetada, cada vez mais fui me fechando com essa dificuldade da
comunicação, da coisa da língua né até aprender a falar bem tal ai até o 4º ano,
quando comecei a ir de novo bem na escola, de novo era a primeira da turma e tal
e aí comecei a me sentir melhor.”
Mais uma vez a pequena-notável-inteligente-que-interpreta revive desta vez,
na cidade grande. Ressurge porque estava viva em J. provavelmente aguardando o
melhor momento para reestrear! E reestrear envolve o teatro, conforme J. segue
contando-nos.
“Mas aí me lembro que o teatro, aí entra o teatro, é com 10, 11 anos eu já fazia
peças, de novo, fazia todas as horas cívicas da escola, teatrinhos, estava sempre
metida nas coisas, inventando coisas e aí me chamaram pra fazer uma peça na
184
escola, uma peça que depois saiu, eu tinha uns 11 anos acho e eu me senti muito
bem naquele lugar, o teatro era uma libertação pra mim (ênfase na voz), acho que
essa coisa da timidez, do jeito que eu era, o teatro tirava tudo isso, o palco era, era
o lugar que eu me sentia muito bem. E o aplauso, a valorização das pessoas tal
acho que daí vem essa semente assim, da arte na minha vida.”
O teatro é o lugar onde J. se liberta, sente-se bem e é valorizada. No palco não é
a menina pequena e medrosa é a pequena-notável-inteligente que interpreta e é
reconhecida por seus pontos fortes, ao mesmo tempo em que toma tal experiência para
si como fator que agrega e continua a impulsiona-la a buscar mais.
De acordo com Lima (2005, p. 212) “(...) sendo o teatro um ato de comunicação
e logo, sujeito às regras do agir comunicativo, sua recepção será sempre a busca de um
consenso sobre a validade ou não da apresentação.” Para o autor, apropriar-se de outros
personagens faz com que o sujeito possa lidar consigo mesmo “tendo na sua
performance reconhecimento e validando assim seu projeto de vida.” (LIMA, 2005, p.
214)
Logo surge um novo elemento à personagem pequena-notável. O mundo do
trabalho. Para falar de sua inserção neste, J. fala também do que entende ser a rigidez
alemã, pois, mesmo não precisando de ajuda, seu pai julga que se as irmãs foram
trabalhar então J. teria que ir também, mesmo que a família não enfrentasse mais
dificuldades. Contudo isto se faz possibilidade, J. percebe que pode começar a dar vida
à tal independência...
“(...) comecei a trabalhar muito cedo, com 15 anos já trabalhava, porque tinha
essa coisa, meu pai era muito rígido e tinha uma coisa muito assim, as filhas em
determinada idade tinham que trabalhar (...). Quando eu fiz 15 anos nem acho que
precisasse mais, mas aí, essa coisa rígida alemã (ênfase) todos foram trabalhar
então você também vai trabalhar e era uma coisa que me revoltava
tremendamente, porque eu queria estudar, queria fazer o que minhas colegas na
época faziam, final de semana elas iam pra piscina, eram sócias de um clube, eu
não tinha clube nenhum, não tinha piscina nenhuma, daí e acho que essa coisa de
começar a ver as coisas que outros têm e você não tem, de querer melhorar, acho
que me deu muita energia pra conseguir construir as coisas que eu construí na
verdade.”
Nasce assim a J. trabalhadora que sabe não ter o que outros têm, mas sabe o
que pode conquistar.
185
“(...) aí eu fui trabalhar numa loja de roupas vendia roupas, era balconista. Eu fui
estudar à noite, com 16 anos fui estudar de noite e trabalhava de dia. Aí fiz o 2º
grau que foi todo assim, trabalhando de dia e estudando à noite e depois dessa loja
fui trabalhar em um estúdio fotográfico, depois fui trabalhar de assistente de um
arquiteto, secretária, até muito rapidamente já começar a fazer minhas próprias
coisas, e me libertar um pouco desta história que eu nunca gostei (ênfase) nunca
gostei de ser mandada, nunca gostei de ter patrão, nunca gostei de que dissesse o
que eu tinha que fazer.”
A trabalhadora começa a perceber de fato o que não gostava, começa a
rascunhar seus próprios planos à maneira como gostaria de viver.
“Então eu nunca coube muito nesse modelo sabe? Assim, certinho assim de
horário, acorda tal hora, trabalha de tal hora a tal hora sabe? O meu pensamento
era desde muito cedo, e sempre fazendo teatro, então eu trabalhava o dia inteiro,
estudava e teve uma época, que a gente ensaiava uma peça, que acabava a escola,
dez e meia da noite e ai a gente começava a ensaiar. O diretor da peça me buscava
na escola e me levava no teatro, na sociedade onde a gente ensaiava, e a gente
ensaiava, assim, de dez e meia até uma e meia da manha e eu ia pra casa e de
manhã trabalhar.”
O trabalho tinha a sua importância, estava ligado ao projeto de independência,
mas o teatro estava sempre muito presente, J. não cogitou abandoná-lo por nenhum
instante.
“Então assim, eu não queria nunca deixar de fazer teatro, sempre gostei muito, foi
minha grande, é, motivação. E aí com 16 anos, essa peça mesmo que era a que a
gente ensaiava, era uma peça infantil que a gente apresentou, já logo no primeiro
festival que a gente apresentou eu ganhei o prêmio de melhor atriz e isso já me
motivou também pra continuar e ai eu sempre quis.”
E assim a pequena-notável-que-sabia-interpretar retorna à cena e mais uma
vez se consolida. Agora J. não pararia mais... Queria ser outra “outra”.
“Então eu acho que assim, durante muito tempo, voltando à questão do que que eu
gostaria de ser eu tava fazendo uma coisa, mas eu queria ser outra. Eu tava numa
situação, mas eu queria outra situação pra minha vida. Então assim, aí eu comecei
a construir uma vida de independência, logo, muito cedo, é primeiro com esta
questão de não querer ser mandada, querer ter minhas próprias coisas, então com
18 anos eu comecei já a fazer minha própria vida, sempre assim estudando,
fazendo uma faculdade junto e fazendo teatro, mas eu, eu, comecei a trabalhar
com desfile de moda.”
186
Seu trabalho agora era ligado ao criar, algo que J. já dominava, desde as leituras
que fazia sozinha das fotonovelas ainda na colônia. De acordo com Catoriadis (2000,
p.51 apud FURTADO, 2013, p.87):
(...) porque o ser humano nunca faz coisas por simples reflexo ou por simples
necessidade, e que no mais simples fazer humano já existe esta dimensão
absolutamente central aos meus olhos, a dimensão imaginária: a capacidade
de formar um mundo e dar um sentido, uma significação a este mundo e a si
mesmo, ao que fazemos.
O seu criar dá resultado. J. mais uma vez tem seu talento reconhecido e não tarda
a tornar-se sócia.
“Eu era magra, alta, tinha a possibilidade de ser modelo e fui convidada a
desfilar, mas logo assim, eu gostei da exposição, mas gostava mais do que tava por
trás disso sabe? Achava mais interessante organizar aquilo tudo, fazer a
coreografia. E ai eu comecei a trabalhar com uma pessoa que tinha essa agência
de modelos e fazia produção de desfiles e a agência fazia, nessa época eu tinha por
ai, uns 17, 18 anos. (...)”
“(...) e eu virei sócia dessa pessoa! Acabei virando sócia porque eu tinha uma
coisa com o trabalho, sempre tive, muito forte assim, então a gente, eu comecei a
fazer os desfiles, e produzir e aí eu acho que essa coisa da arte, é muito inato na
gente né, não importa o que você tá fazendo ela vem né, então eu era muito
criativa, tinha ideias, fazia as coreografias, escolhia as músicas, fazia produção de
moda, via as roupas e tal e ai eu gostei desse negocio e fiquei trabalhando um
tempo com ele. E aí como a agência estava indo meio mal das pernas, ele não
tinha mais dinheiro pra pagar meu salário, ele me propôs sociedade. E eu achei
ótimo aquilo, porque eu era sócia (ênfase) não tinha mais patrão, não era mais
empregada. Mas era uma sociedade assim, furada, porque o negócio tava indo mal
e não ia segurar muito tempo. E eu me lembro claro disso, que quando falei isso
em casa, minha mãe e meu pai foram muito contra.”
A possibilidade de ser sócia era a forma real que J. daria ao seu plano de
independência, de não ter patrão e relembrando o que colocou-se anteriormente, de não
se decepcionar com promessas e manter o controle. J. sabia que o negócio ia mal, mas
vislumbrou, ainda assim, uma forma de concretizar o que buscava. A trabalhadora
agora era sócia-sem-patrão.
Contudo, sua família que visava estabilidade, algo com futuro certo para J. foi
resistente à tamanha mudança.
“Eles ficaram assim é, bravos, assim, como é que você vai deixar de fazer uma
coisa mais, mais que te deixasse capacitada, ter um trabalho certo, né como é que
187
pode isso, uma coisa que você não sabe se vai dar certo, uma coisa que você vai se
aventurar e eu falo não me importa eu não vou ter patrão, vou ser sócia nesse
negócio. Uma coisa que era forte pra mim.”
Saber o que queria e também de suas potencialidades foi a alavanca para seguir
em frente, a despeito da opinião dos pais. A sócia-sem-patrão surge com força e sabe
do que é capaz. J. tem nesta sociedade a ajuda de uma amiga que tinha posses. A amiga
entrou com o dinheiro e J. com seu trabalho.
“E aí claramente ficou assim, eu realmente tenho uma capacidade de trabalho
muito forte, assim e eu toquei aquele negócio praticamente sozinha, ela (a amiga)
não tinha aptidão pra isso, não era uma pessoa com esse negócio, mas a gente
juntas fez o negócio crescer e virou um grande negócio.”
Apesar da pouca idade, J. tinha o próprio negócio, que funcionava muito bem.
“Eu tinha 20 anos e já tinha uma, já era dona de uma agência de produção, já
tinha o curso de modelo, que funcionava super bem e aí como o curso tinha uma
sala grande, eu pensava, essa sala tinha que ser ocupada por outras coisas, e aí
tinha o curso de teatro, dança, aula de yoga, porque eu gostava de fazer yoga, e
tinha uma escola de dança, com formação de ballet, enfim, desde crianças de 4, 5
anos até e virou referência, assim, virou um grande negócio. Virou referência de
escola na cidade.”
J. nos conta que seu plano de independência também tinha outra motivação: sair
de casa.
“Minha família olhava aquilo tudo um pouco assim (pausa) no início, um pouco
assustada e depois, achando legal assim né, assim, minha mãe sempre me apoiou e
eu tinha muita dificuldade com meu pai, tinha dificuldade em relação com meu
pai. Meu pai era alcoólatra (pausa) e era um homem muito violento, era muito
difícil a relação com ele. Então eu queria muito sair logo de casa, queria muito,
não queria ficar ali, naquele ambiente que era às vezes meio pesado (...). Então eu,
eu queria sair logo.”
Na busca por independência o elemento “descendente de alemães” aparece como
fator importante. J. explana:
“E como eu comecei a trabalhar muito cedo, com 15 anos, então com 18, já tinha
três anos que eu trabalhava, com 19 meu pai tava me emancipando, eu precisava
assinar já como dona do negócio, precisava ser emancipada e ele assinou a minha
emancipação. E aí eu acho, eu entro um pouco nessa coisa de como é que é ser
descendente de alemão é isso era um diferencial assim, porque eles, embora
fossem pessoas muito simples, essa coisa da cultura alemã, da individualidade, da
independência (ênfase) que isso é muito alemão né, muito mais do que brasileiro,
188
brasileiro fica quieto, todo mundo muito em volta né, eles tinham isso mais fácil,
sabe? Eu acho que passei a ter muita admiração, pelo meu pai inclusive, pelo
trabalho, pela capacidade de fazer as coisas sozinha, de me manter, ter meu
próprio apartamento, já morar sozinha né com 20, 22 anos eu já tava comprando o
meu apartamento já, é, então enfim, acho que ele tinha o respeito, antes de mais
nada.”
Ser descendente de alemães surge para J. como um fator que lhe proporciona
emancipação, uma vez que a isto associa questões como sua capacidade de trabalho e
independência. Ressignifica ainda a relação que tem com seu pai, passa a admirá-lo em
sua forma de ser.
Ainda que tenha sido motivada a construir seu projeto de independência
motivada por querer sair de casa devido ao relacionamento com o pai, J. reconhece ter
sido ele um exemplo por ser empreendedor, assim como ela também se tornou. De
trabalhadora a sócia-sem-patrão-empreendedora.
“É e eu acho até que minha história tem tudo a ver com ele assim, o jeito de ser
assim, meu pai era bastante empreendedor. E depois eu fui saber isso que eu nem
sabia, que ele era também, foi a primeira pessoa que fez o transporte do leite. Eles
não tinham como escoar a produção e ele ia, pegava a carroça, muito cedo, saia,
recolhia o leite nas casas e levava pro entreposto (diz o nome de outra cidade onde
levava o leite) então ele começou o comércio do leite, que não, que não tinha né.
Realmente tinha uma coisa, uma coisa muito forte.”
J. entendeu, após viver e ressignificar sua trajetória como empreendedora, o
empreendedorismo de seu pai. Algo que, posto que não tinham um bom relacionamento,
foi de grande importância para que J. enxergasse seu pai de outra forma e assim
assumisse também para si elementos deste. Assim “(...) a autonomia se concretiza na
inclusão do outro, no reconhecimento das diferenças que o sujeito pode apresentar
(LIMA, 2005, p. 214) e no caso de J. também no reconhecimento de semelhanças com
seu pai.
J. segue contando como fora o tempo em que era dona da academia. Como sua
amiga não tinha muito “jeito para o negócio”, J. comprou sua parte.
“acabei comprando a parte dela e assim, tudo absolutamente independente, com
meu esforço pessoal, eu nunca tive assim um centavo de ajuda e nem pedi, porque
a situação da minha família não era uma situação assim de que pudesse me
apoiar, então tudo muito, muito, muito da minha força de vontade, da minha
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vontade de fazer as coisas darem certo. E... (pausa) então assim, eu posso dizer
isso, que nesse sentido eu triunfei profissionalmente muito rápido, rápido não, foi
um trabalho muito árduo, mas eu ainda era muito nova é... Então a coisa boa disso
e a coisa ruim disso é que eu, ao mesmo tempo também pulei uma fase da minha
vida que é a fase da adolescência dos 15, 20 anos, sabe, podia ter assim só
estudado e eu já tinha muita responsabilidade, já tinha um agência, academia, já
tinha um negócio pra cuidar, assim, já contratando gente eu já tinha uma coisa
muito precoce nesse sentido.”
J. pulou uma fase importante de sua vida, mas viveu-a ainda assim, em outro
momento conforme nos contará. Este caminho foi feito durante os tempos de estudante,
fase que se descobrirá militante.
“Então eu não fiz a faculdade que queria fazer na verdade. Aí comecei a fazer
primeiro jornalismo, uma coisa que eu achava mais próxima, comunicação social,
fiz um ano e depois entendi que não era isso. Aí depois abriu comunicação social
em uma Universidade que pra mim era mais próxima e eu me transferi, mas não
tinha jornalismo ai fui pra publicidade e propaganda, também não me achei ai fui
pra Relações Públicas e achei uma bobagem e (risos) aí me envolvi com o
movimento estudantil e aí pronto, acabou né ?(sorri). Vivia no DA (diretório
acadêmico) aí entrei pro partido a corrente política era comunista era o PC do B
era clandestino na época, então era uma aventura (ênfase) fazia reuniões
clandestinas e tal e eu me envolvi totalmente nessa coisa política e não ia mais em
sala de aula e a melhor coisa que eu ouvi de um professor na vida (ênfase) foi é,
ele fazendo avaliação, que eu tava matriculada ainda nesse curso de relações
públicas, esse que eu achava uma bobagem é, ele fez uma avaliação da turma,
aquela coisa que o professor faz no final do ano, avalia alguns alunos, fala fulano
isso, aquilo, aí ele diz: a J. poderia ser uma aluna brilhante, se ela quisesse né,
tem tudo pra isso mas ela tá muito mais interessada em fazer o movimento
estudantil e fazer teatro não é isso? Eu falei é! Ele disse: Eu não sei o quê que
você ainda está fazendo aqui que não está fazendo teatro e eu olhei pra ele, sabe
aquela coisa, quando bate assim?”
J. descobriu-se militante na faculdade e precisou ouvir uma dica de um professor
para dar o próximo passo e tomar uma atitude. Assumir que a sala de aula não era o
lugar que queria estar.
“Eu tive uma atitude incrível, eu fechei meus livros e falei muito obrigada
professor pela dica! E saí da sala de aula e nunca mais voltei! (risos) Nunca mais
voltei!”
J. continuou a integrar o movimento estudantil, mesmo fora da universidade,
movimento que nomeia não mais como estudantil, mas sim político. J. é militantepolítica, mas isto ainda não lhe bastava. J. queria fazer outra faculdade, esta era a sua
busca, conforme nos conta:
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“(...) a faculdade que queria fazer era uma coisa que pra mim era um pouco
frustrante que a faculdade que eu queria fazer era o teatro então, eu acho que essa
fase de ser estudante de ir pra escola e tal eu acabei realizando mais tarde que ai,
com 27 anos né que quando eu saí da faculdade, em paralelo tinha essa coisa da
academia né eu tava ganhando dinheiro já, também, fazer a faculdade, naquela
época também não fazia muita diferença é.”
Ao revelar sobre a faculdade que realmente queria fazer surge também o Rio de
Janeiro em seus planos.
“(...) quando resolvi vir pro Rio, aí eu entro nessa coisa né, do que você é e do que
você gostaria de ser (ênfase) então eu me encontrei num momento da minha vida,
muito dividida, que eu gostaria de fazer teatro, queria ser atriz, era isso que eu
queria ser (ênfase) eu queria trabalhar com arte, cultura, cinema, TV tal, queria
essa vida e eu tava presa, numa estrutura que eu mesma construí né, e que eu
construí porque era aquilo que eu tinha, foi a ferramenta que eu tive, foi o que
aconteceu, que né, aconteceu na minha vida naquele momento, mas eu não me
sentia é totalmente realizada assim, eu tava realizando o lado empreendedor que
eu tenho, inerente (...).”
Eis que do conflito nasce uma ideia que pode mudar o rumo da vida de J. ela,
dividida entre a estrutura que construiu e o seu lado empreendedor, viu-se presa à tal
estrutura quando tinha que fazer coisas que não gostava para mantê-la, ou seja, não era
somente dar vazão a sua criatividade, havia o outro lado.
“(...) eu botava toda a minha criatividade, fazia a luz do espetáculo, fazia os
figurinos né tal, mas eu tinha uma academia pra tomar conta né... (muda o tom de
voz, fala mais vagarosamente) eu tinha que falar com mães que tinham assuntos
que não me interessavam né, sabe, falar de sei la, do que de assunto de mãe né, de
criança, de sei La, escola, de tricô, assim, assuntos que eu não tinha o menor saco
aquilo não era meu interesse né e ao mesmo tempo, era uma dicotomia porque eu
tava bem financeiramente já né, pouquíssima idade, assim, com 24 anos já tava
super bem e pra quem não tinha nada né, eu já tinha construído uma história,
assim, sozinha, sem ajuda de ninguém então eu fiquei, ficava muito dividida e ai eu
resolvi fazer um espetáculo!”
Ao produzir o espetáculo, J. adiciona um outro elemento à empreendedora,
somado com algo que já trazia de outrora a pequena-notável que interpretava
“(...) eu produzi, chamei o diretor e fui a protagonista é claro (risos) é... (pausa).
Montei a primeira peça profissional assim, no sentido de teatro profissional em
(cidade em que vivia), que até então, tinha um movimento forte a gente fazia
teatro, mas era teatro amador né, então uma estrutura profissional, eu consegui
aprovar um dinheiro com a secretaria de cultura, chamei um diretor renomado,
um cara que renomado pra ensaiar a gente, tinha um cenógrafo, um figurinista
tinha uma estrutura profissional que eu produzi e fazia era uma atriz só e era um
191
texto de um dramaturgo (...) é uma trama complicadíssima era assim um negócio,
pesado assim (ênfase).”
J. obtém êxito, agora tem o prêmio de melhor atriz
“Mas aí assim, com este espetáculo a gente fez temporada, em Porto Alegre, aí
começou a aflorar mais essa coisa em mim, mas aí mesmo tempo, eu continuava
com a academia, continuava montando, com todo gás, eu trabalhava de dia e fazia
a temporada à noite e aí eu inscrevi o espetáculo em São Paulo, em São José do
Rio Preto, que até hoje tem um festival grande de teatro a peça foi selecionada,
nós fomos e nisso a gente ganhou o terceiro melhor espetáculo e eu ganhei o
prêmio de melhor atriz, fui premiada, imagina, esse espetáculo, imagina nível
nacional (pausa).”
J. ganha o prêmio de melhor atriz e o espetáculo que ela produziu, também foi
premiado. Lembrando que ela empreendeu e levou com sua criatividade todo o projeto
sem ter estudado (ainda) na faculdade que almejava. A pequena-notável que sabe
interpretar e empreendedora agora assume a atriz. E segue, pois o reconhecimento
que obtém tem sentido especial, conforme veremos.
“Aí foi quando eu voltei assim, aquele negócio tava muito forte e eu me lembro que
um das pessoas do Júri era o C. muito conhecido, era um dramaturgo, diretor
conceituado tudo, e ele, gostou de mim e perguntou o que você ainda tá fazendo
em? (nome da cidade). E essa pergunta nunca mais saiu da minha cabeça, por que
você não vem pra São Paulo, pro Rio, você é tão talentosa tal, podia tentar sua
carreira de atriz.”
Foi a pergunta que disparou uma mudança que já estava de certa forma embutida
em J., apenas aguardando o momento adequado para se concretizar. Foi novamente
como em outros momentos de sua história, parte de um reconhecimento que fez todo o
sentido para a busca de J.
“(...) aí eu voltei e ai viajei com a peça e de novo a peça ganhou prêmio, de novo
ganhei como melhor atriz, realmente o espetáculo tudo bem, acho que sou
talentosa, mas acho também que eu fiz um espetáculo que me colocou, é assim o
personagem era muito bom né então não era tão difícil também ser notada então
assim, recebi esses prêmios e ai assim, o resto do elenco eu queria continuar a
fazer mais o espetáculo e aí um tava preso com a família (muda a voz) tinha filho
pequeno, não podia viajar coisa e ai eu comecei a me sentir inadequada alí, sabe
não tinha mais pra onde andar dalí sabe, mesmo tendo prêmio, tendo uma peça
bacana.”
Mesmo com ideias, reconhecimento e prêmio, J. não encontra espaço para
crescer como quer. A solução foi mudar de cidade, algo semelhante ao que fora a
192
mudança da colônia para que as irmãs pudessem estudar, foi uma mudança em bosca de
novas oportunidades. Mas desta vez, J. não teve tantos medos.
“E aí começou essa história de querer vir embora pra morar no Rio foi essa coisa
que me puxou. E eu me lembro muito claro assim de uma coisa que um dia pensei,
olhei em volta e pensei assim, nisso eu tinha 25 anos, aí falei bom, ta tudo muito
bom, tá tudo muito bem mas e aí? Eu tinha um namorado lá e tinha meu
apartamento, tinha meu carro, tinha minha própria academia era independente, ia
muito a Porto Alegre, fazer as coisas que queria, ver as peças que queria tal mas
eu pensava assim e aí? O que vai ser? Vou acabar casando aqui, talvez um
empresário... Industrial do calçado (ironia pois sua cidade é muito conhecida
como a cidade do calçado) vou ter filhos né, e o teatro? E a coisa que mais quero
fazer? Ficam onde? Né minha grande realização vai ficar onde? Ai eu pensava
assim não quero ter 40 anos, me olhar no espelho e dizer: eu não tentei sabe? Não
tentei fazer aquilo que eu quis fazer.”
Estas reflexões mostram o conflito e também o preparo para o próximo passo. A
pequena-notável que sabe interpretar-empreendedora-atriz fará algo que julga
corajoso. A menina medrosa que também fora estranhíssima, agora é corajosa.
“(...) fiz a coisa mais corajosa da minha vida assim, realmente você precisa ter
muita corajem pra largar uma coisa quando ela tá bem né? Quando elas tão ruins
(...) e eu larguei tudo, larguei tudo. Deixei a academia lá ainda um tempo sendo
administrada por uma pessoa de minha confiança (...) e vim pro Rio, assim
totalmente na cara e na coragem (...). ”
J. nos explica que sua coragem nasceu por querer sair da zona de conforto. Para
ser quem queria ser era necessário migrar. Aqui, claramente a identidade em construção
constante pede movimento.
“Logo ficou essa coisa inadequada do lugar onde eu tou e que lugar eu gostaria
de estar é muito difícil tomar essa decisão porque aos olhos dos outros eu tava
num lugar muito bom e não é que era ruim, mas não era exatamente aquilo que eu
tava querendo na minha vida né, então abrir mão de uma coisa que eu construí
com tanto sacrifício, tanta dificuldade e tal foi muito difícil (...).”
J. nos fala que abrir mão de uma personagem constituída e reconhecida, como
era seu caso, frente a tudo o que construiu objetivamente é uma tarefa difícil. E daí
compreende-se porque julga ter sido a coisa mais corajosa que fez na vida.
J. decide ir para o Rio onde tinha um amigo e se emociona ao contar que este,
morava exatamente no mesmo prédio onde ela mora atualmente . Logo, sua primeira
referência de Rio de Janeiro foi no lugar onde vive até hoje. “(...) ele morava no
193
apartamento aqui do lado, este prédio onde eu moro hoje é o lugar onde foi minha referência
de Rio de Janeiro quando eu cheguei aqui!! Forte né? (suspiro)”
Sobre o negócio no Rio Grande do Sul, conta que depois de muitas idas e vindas,
sem sua participação ativa veio a falir. Algo que ao contrário do que se pensa, mesmo
que tenha deixado J. sem as condições econômicas as quais era acostumada, a deixou de
alguma forma livre. J. viveria o que há tempos queria viver. Tornar-se-ia estudante-deteatro na Universidade. J. sabe que escolher uma coisa é também abrir mão de outra e
ter consciência disto torna a perda algo “bom” fruto de uma escolha sua, à propósito de
um projeto de vida.
“De um negócio que era uma ótima coisa, acabou... Enfim... Se desfez e aí foi
muito bom, quer dizer, foi muito bom não (risos) foi triste teve uma coisa positiva
nisso que ai, quando eu vim pro Rio eu comecei a viver a vida que eu queria viver!
Ai eu fui fazer a faculdade de teatro que eu tanto quis fazer e que eu não tinha
como fazer quando eu tinha 18 ai eu fiz o vestibular, tudo direitinho, passei na
Federal, entrei na Unirio que é uma das melhores escolas de teatro que tem no
Rio, fiz a escola 4 anos e aí era isso, ai eu já não tinha mais 18 anos, entende? Ai
eu já tinha 28 já era outra cabeça e aí eu já tinha meu carro, eu já tinha, é, não é
que eu tivesse dinheiro, mas eu já tinha uma posição mais confortável um pouco, a
academia ainda me rendia um pouco e dava pra me manter então podia estudar de
dia né, ai eu ia pra escola, sabe? Então acho que vivi tardiamente esta fase, mas
eu não deixei de viver, essa meu período de estudante eu tive e isso foi muito legal,
eu vive, dessa coisa que eu quis viver e claro, produzindo, trabalhando e tal, na
hora do intervalo, eu me lembro assim, eu pegava o orelhão, ainda tinha assim
ficha né, eu ia pro orelhão trabalhar, fazer contatos, produzir é, fazer coisas
também porque eu tinha que me manter né. Aí eu comecei a fazer produção de
show, música, eventos, eu fazia muita coisa assim.”
Desponta da necessidade econômica a produtora. J. justifica que no seu caso, a
necessidade econômica não a abalava, ao contrário.
“Mas aí a coisa era essa, assim. A felicidade de estar fazendo aquela coisa que eu
queria sabe, é tão legal, isso é realmente não tem preço, você fazer aquilo que
você quer fazer, que você gosta de fazer. Aí foi um período maravilhoso que eu
vivi, assim, dura (ênfase) a diferença né, de padrão de vida era absurda, porque lá
já tava num padrão de vida super legal, aqui pegava ônibus, coisa que não fazia
mais, pegava ônibus, contava dinheiro, se dava pra comer na universidade ou não,
essa coisa de estudante, só que eu vivi isso numa fase onde eu já tinha vivido outra
coisa antes então foi bem estranho assim, mas tudo eu achava divertido, eu achava
novo, foi um período muito legal, esses quatro anos.”
“(...) me formei já com 32 (...), mas isso eu já comecei a trabalhar antes com
teatro, fiz espetáculos por aqui, fiz televisão, é fiz muitas coisa como atriz, mas
também, entendi logo, talvez por essa coisa, isso, engraçado, a gente vai falando e
194
vai pensando também, agora, pensando aqui junto, talvez até por isso, porque eu
nunca tive esse temperamento de ficar pedindo (fala pausadamente) eu detesto
pedir as coisas pra alguém, detesto ter que ficar correndo atrás, me humilhando
pra alguma coisa (...) né esse caminho que o ator tem que seguir as vezes sabe, de
ficar ali numa fila, fazendo testes, pedindo pelo amor de deus por uma vaguinha,
tendo que usar mecanismos de sedução (...) isso nunca rolou comigo, eu nunca tive
estômago pra isso, eu nunca consegui entrar nesse esquema, não tinha como, não
dava!”
Da J. produtora, à vontade de ser atriz de cinema, perpassando um momento
difícil na política brasileira;
“Aí depois é, (...) e continuei atuando e aí o cinema, é sempre foi muito, eu sempre
gostei muito, sempre gostei muito de cinema e eu me via mais no cinema
engraçado, tinha vontade de ser atriz de cinema! E olha como as coisas são eu
cheguei em 91 e em 92 acabou o ministério da cultura, que foram os anos duros do
governo Collor, (...) em 91 ele acabou com o ministério da cultura com a Câmara
filme, acabou com tudo, não tinha mais produção de cinema no Brasil e foi justo
na época que cheguei é, e depois começou a retomar.”
Devido ao momento que o cinema se encontrava, uma saída para ainda estar
próxima deste foi trabalhar na distribuição de filmes. J., depois passa para a produção e
se identifica “(...) comecei a mudar um pouco o meu pensamento, ao invés de ser a atriz do
filme comecei a pensar em fazer um filme.”
J. produtora pensava em fazer um filme, mas este não seria um filme qualquer,
como nos conta sobre a forma que sua ideia tomou.
“E aí sempre eu pensava no que falar e aí essa coisa, que eu própria vivia que
assim, isso é uma coisa que ficou muito forte pra mim (pausa) no Rio, essa questão
da, da cultura alemã e da cultura brasileira, porque no Rio Grande do Sul, tudo
bem, eu morava em (nome da cidade) né, não morava mais na colônia, tava
relacionada com o mundo, mas é uma cidade germânica né, (...) é uma cultura
ainda né, muito a forma como as pessoas fazem as coisas, a rigidez, o ritmo, a
coisa muito dedicada ao trabalho, tem muitos aspectos da Cultura alemã ali né,
nesse lugar e tinha um negócio que pra mim era muito opressor e eu acho que isso
é do alemão sabe?”
Talvez produzir um filme fosse dar vazão ao lugar de onde veio, libertá-la dos
resquícios da opressão sendo autora da própria história, literalmente.
“Tinha um negócio opressor assim (ênfase na voz), tinha uma coisa que parecia
que tinha uma redoma ali negócio que me segurava assim, que não me deixava dar
vazão (pausa) pra pessoa que eu era na verdade, entende assim, com toda a minha
criatividade (ênfase) com todo o meu fluxo, pra minha doidera, pra minha
195
maluquice é, eu me sentia um pouco presa ali, naquela sociedade, naquela coisa
formatada sabe?”
“(...) uma coisa que sentia era necessidade de me expressar. (...) meu mote foi a
expressão artística de também dizer a pessoa que sou expressar artisticamente
todas essas coisas que estão dentro de mim botar isso no trabalho. (...) essa pessoa
sou eu, que tem essa capacidade, que tem esse olhar, essa delicadeza, essa
sutileza, essa poesia, isso tudo sou eu então, e talvez, ai talvez voltando naquilo
tudo que a gente falou, talvez essa rigidez, da cultura não permitisse muito que as
pessoas vissem isso, sabe?”
Fazer um filme era ao mesmo tempo, expressão de sua arte e mostrar si mesma,
seu lugar, dando sentido para quem é hoje; há que se ter coragem para tanto, mas a
corajosa já é personagem existente há algum tempo.
“(...) tem que ter coragem, pra falar da minha história, falar das minhas coisas,
mostrar o meu lugar, é uma exposição né também você tá contanto tua vida ali,
embora eu conduzi as coisas de uma maneira que eu que é legal, é sutil, eu não me
coloco na primeira pessoa mas eu to ali totalmente assim, em várias coisas, (...)
achar o seu lugar, dessa coisa(...) de como você se sente, falando de uma língua
que não é a sua língua, do seu país, do se sentir uma pessoa desligada de tudo
porque na verdade você não é uma pessoa e nem outra e eu me senti assim né, por
muito tempo(...). Uma coisa que me deixou assim, inadequada, em situações por
muito tempo da minha vida assim é, a pessoa que eu sou e como as pessoas me
veem, as pessoas me veem muito mais dura do que sou, na verdade, entende? Não
sei se mais dura, mas isso né, germânica, alemã, rígida, organizada, metódica né,
eu tenho isso tudo dentro de mim, mas não só isso, eu sou outra pessoa também,
misturada com isso tudo e eu acho que o filme, me permitiu me mostrar dessa
maneira.”
Para sair do que denomina “coisa formatada” o Rio de Janeiro foi o grande
contraste que lhe apresentou outro modo de vida, outro modo de ser, mas também outra
forma de se reconhecer, conforme J. nos contará mais adiante. J. tornou-se livre no Rio
de Janeiro. “Liberdade de ser”
“(...) e aí o Rio foi uma libertação (ênfase) assim sabe, foi tão bom pra mim
pessoalmente, essa coisa de ser livre no Rio eu entendi o que é ser livre que é uma
coisa que pra mim é muito importante, eu sou uma pessoa livre, gosto disso
(ênfase) gosto de ter liberdade, não sei ficar presa né, às coisas. Isso já era um
componente da minha personalidade lá com 15 anos, quando né, eu não queria,
quando perguntavam o que que você quer ser profissionalmente e eu dizia alguma
coisa onde eu não tenha chefe (risos) pausa, qualquer coisa onde não tenha
ninguém que me diga o que que tenha que fazer (risos). Só que aqui eu podia
exercitar isso então essa liberdade do RJ, onde você é o que você é, onde ninguém
tá nem aí, entendeu? Pode, se você quiser sair e pegar um ônibus de biquíni
ninguém vai nem se importar, se você é gordo, se você é magra, se você é feia, se
você é bonita, né, você tem essa liberdade de ser né, acho que o Rio foi isso foi
196
muito importante isso eu, eu entendi muito claramente eu me sentia muito bem
aqui, realmente sempre me senti muito bem no Rio e ai eu acho que a coisa da
cultura alemã aqui pra mim começou a ficar muito mais evidente.”
Conforme já mencionado no capítulo 2 deste trabalho, é no contato com o outro
diferente, que muitas vezes ressaltam-se questões pessoais até então desconhecidas.
Neste caso, J. renasce mais uma vez, quando dá vazão ao personagem livre que sempre
buscou, algo que de fato lhe ficou claro ao perceber o modo “opressor” que vivia.
“Porque aí eu via muito assim, mas você é muito alemã, mas você é muito gaúcha,
e ai eu comecei a pensar, mas o que é ser muito gaúcha? O meu comportamento
era diferenciado da maioria das pessoas né, então essa coisa, era uma coisa de me
sentir, é... Eu tive por muito tempo eu me senti uma pessoa dividida, eu tinha
realmente eu tinha uma sensação de divisão eu queria tar aqui, mas eu queria tar
lá, eu tinha uma ligação, tenho até hoje uma ligação muito forte com o Rio Grande
do Sul é, mas ao mesmo tempo me atraía muito por essa cultura brasileira (ênfase)
que genuinamente é brasileira e que (...) não é a cultura do Rio Grande do Sul
essa coisa mais genuína, mais malevolente, da permissividade sabe, de você se
permitir as coisas né que é muito diferente dessa rigidez que a gente tem da
cultura alemã, que claro que talvez naquele momento eu não entendesse assim, que
eu fui entender depois, fui entender também muito quando eu fui morar em
Berlim.”
No Rio de Janeiro J. sente poder ser livre, ou permite-se assim sê-lo. Difere aqui
da vivência da rigidez que paralisa, quando coloca que a cultura não permite certas
coisas.
“Mas é, por exemplo, essa coisa que o carioca tem muito de, ou os que moram no
Rio, não precisam ser os cariocas de fazer a coisa que você tem vontade, sabe? E
de não ter tanto pudor em deixar alguém esperando, em desmarcar alguma coisa,
em não ir a uma coisa, furar com alguém. Isso é pra mim uma coisa inconcebível
(ênfase), eu não conseguiria nunca fazer isso, porque minha cultura não permite,
sabe?”
Tanta liberdade, contudo, também lhe causou estranhamento e a adaptação foi
necessária.
“Então no início claro, eu ficava muito chateada quando as pessoas faziam isso
comigo, eu ficava puta né, como marcou um negócio, nem me avisou e não
aparece, como assim? Né? Ficava muito brava. Mas depois eu fui entender você
aqui né, vamos ver, hoje é sábado eu marcar de na terça feira jantar na sua casa
né, pra alemão isso ta marcado e não importa se na terça-feira ele acordar com
dor de dente, indisposto, tá marcado ele vai no tal do jantar porque tá marcado. O
carioca tem essa possibilidade de acordar na terça-feira sem vontade de ir neste
jantar, entende? (...) e isso me irritava muito mas depois eu comecei a entender a
197
liberdade que tem nisso de você fazer o que você quer e de poder fazer isso e a
pessoa não ficar brava com você porque você fez isso, porque se eu fizesse isso no
Rio Grande do Sul ou na Alemanha, as pessoas iam ficar muito bravas comigo né,
ou não iam me aceitar direito, iam me criticar, por tar fazendo uma coisa que não
é legal, marcar uma coisa e deixar de ir.”
J. vive a liberdade de ser quem quer ser e das pessoas não ficarem bravas por
isto. Dá para ser sinuoso também no que J. aprende a “conjugar as duas coisas.”
“E aí eu comecei a perceber os dois lados disso, eu não defendo isso tá, eu sou
uma pessoa que até hoje eu tenho comigo essa cultura alemã né, muito presente,
não é nem uma cultura alemã como eu te falei a gente tá muito distante da
Alemanha, mas tem traços da cultura que tão muito enraizadas em mim, na minha
família a gente é muito responsável, a gente faz as coisas de uma maneira muito
organizada tem um metro quadrado né, tem uma coisa métrica no jeito de ser, mas
eu descobri essa coisa sinuosa do Rio, assim do jeito de ser e eu acho que hoje eu
consigo conjugar as duas coisas, o que eu acho que é perfeito que você nem é uma
pessoa totalmente desleixada, mas você também não é uma pessoa totalmente
rígida. Esse meio termo eu acho que eu, não sei se eu já alcancei ele como eu
gostaria, mas eu acho que já tô bem mais perto (Risos) do que quando eu cheguei
por exemplo(...)”
Ser sinuoso é permitir novos caminhos que a “coisa métrica” cerceia. Mas o
novo ainda a desafia...
“Eu me sentia é uma estrangeira, por muito tempo aqui no Rio, me sentia uma
pessoa de outro mundo, de uma outra cultura de outros valores mas talvez também
porque eu fui pra esse universo da arte, do teatro, da música do cinema onde as
pessoas também são livres, talvez se eu tivesse ido pra uma área um pouco mais
burocrática talvez não tivesse sentido tanto essa diferença, mas como eu fui cair
justamente numa outra coisa, então essa coisa da cultura alemã que a gente tem é
ela fica mais evidenciada, bem mais evidenciada.”
A cultura alemã fica mais evidenciada quando se está em um lugar onde é
permitido ser livre. Ou seja, o tom opressor desta cultura só é de fato percebido quando
se está em um lugar cuja cultura é totalmente diferente. Contudo, viver esta transição
não é fácil e mesmo integrada ao universo artístico, J. sentiu-se como uma estrangeira
no Rio.
“Então assim eu tive é situações de ser chamada assim e das pessoas dizerem olha
a gente gosta muito de você, do seu trabalho, você é muito competente agora você
precisa ser menos gaúcha! E ser menos gaúcha, no meu entendimento, era ser
menos alemã, né porque ah, porque você é muito do jeito que você fala as coisas,
da forma muito incisiva né a forma de dizer às vezes parece que tá dando uma
ordem né, na verdade, você ta só você tá pedindo, mas o jeito de pedir é como se
198
estivesse dando uma ordem é o jeito de falar, não é o que tem por trás disso, o jeito
de se manifestar é assusta as pessoas, as pessoas não gostam disso, então eu tive
um tempo que eu tive bastante dificuldade em alguns momentos, no trabalho, por
essa coisa um pouco mais imperativa no jeito de ser, querer que funcione (...).”
Ainda que o jeito imperativo de ser lhe tenha trazido algumas dificuldades,
compreende que a competência apreendida da cultura germânica foi importante.
“(...) uma coisa que eu descobri também, que eu acho que é muito legal é que a
gente tem um valor é que os alemães e a cultura germânica imputa a competência
né, você ser competente é muito importante, você tem que ser competente (ênfase)
é eu acho também eu sou uma pessoa que eu acho que sou competente eu gosto das
coisas bem feitas, não gosto de fazer mais ou menos(...), por exemplo só que aqui
isso não é tudo, entende? Então não basta você ser competente então se você não
tiver um jogo de cintura se você não tiver uma flexibilidade, você não vai, pode
botar, pode mandar a tua competência pra onde você quiser, pode sentar em cima
dela e ficar sentado em cima dela que você não vai pra lugar nenhum (ênfase) não
adianta só isso, não adianta só você ter essa coisa. Tem que ter essa
maleabilidade, essa flexibilidade né isso eu acho que o Rio me ajudou muito assim,
acho que eu me tornei uma pessoa melhor(...)”
Assim J. é competente e também maleável, no Rio de Janeiro entendeu que
poderia unir as coisas.
Ser mais flexível é uma prerrogativa para viver no Rio de Janeiro e para alguém
que foi socializado em uma cultura “opressora”, tal contraste poderia ter dois caminhos:
Dar errado ou dar certo, desde que J. se adequasse, ou melhor, flexibilizasse! Deixemos
que ela nos conte como se deu tal flexibilização:
“(...) às vezes eu ainda perco um pouco, eu me confundo, sabe, eu falo isso assim,
como diz uma amiga(...) tá você tá agora aí, tomando um uisquinho no ar
condicionado ligado tudo bem, agora, quando você tá no olho do furacão quero
ver você ter essa clareza né, quando você tá no meio da coisa, você não consegue
né? Porque às vezes isso ainda eu ainda perco as estribeiras, ainda boto os pés
pelas mãos, ainda me confundo, mas tenho isso claro isso na minha cabeça, acho
que essa clareza é importante, tenho claro que não basta você ser competente
então assim, hoje eu administro tentando isso, tentando entender um pouco que o
modo do lugar que funciona de outra maneira que eu gostando ou não, esse lugar
funciona assim que se eu ficar ali querendo impor a minha vontade eu só vou me
dar mal, porque eu sou minoria nisso, é assim é uma coisa que os paulistas me
perguntam sempre como é que você aguenta o Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro é
um lugar que não da pra trabalhar né, (...) você não consegue combinar nada com
ninguém e ai eu fico pensando é, realmente, é difícil né, isso me incomoda também,
não vou dizer que eu acho isso uma coisa boa, (...) aqui (Rio de Janeiro) você
nunca consegue contar com nada, não consegue, mas ai eu acho que é o
entendimento de que não existe um bom e um ruim, não existe um certo e um
199
errado existem formas das pessoas levarem as coisas e aqui as pessoas levam as
coisas assim, elas não deixam de trabalhar, de ganhar dinheiro, não deixam de
fazer suas coisas eu acho que a grande forma de aprendizado é você olhar pra
uma outra forma de organização e mesmo que você ache que ela não tá correta,
porque não é como você gostaria que fosse mas ela é, sabe é você ter a maturidade
né, de se integrar a isso, e não querer mudá-la e não querer achar que ela vai
funcionar de uma outra maneira porque você não é assim.”
J. nos ensina que não se deve impor as próprias vontades e é possível aprender
com o que está a sua volta, fazendo uso de um método pessoal criado de acordo com as
experiências vividas. J. procura adequar o que apreendeu da cultura germânica à cultura
do Rio de Janeiro de modo a integrar ambas como partes de si.
“Então o que eu te diria hoje, a minha, o meu método, a minha organização
pessoal, a forma como eu trabalho é um diferencial, então eu acho que isso me
agrega valor na verdade, as pessoas, por exemplo, me contratam pra um trabalho
é em geral gostam muito porque elas ficam tranquilas, elas sabem que eu não vou
atrasar, eu não perdi isso né, eu não perdi (...) então o que eu te diria hoje, a
minha, o meu método, a minha organização pessoal, a forma como eu trabalho é
um diferencial, então eu acho que isso me agrega valor na verdade, as pessoas,
por exemplo, me contratam pra um trabalho é em geral gostam muito porque elas
ficam tranquilas, elas sabem que eu não vou atrasar, eu não perdi isso, né, eu não
perdi a minha responsabilidade com as coisas, não perdi minha pontualidade, mas
eu sei que estou me relacionando num meio que não é assim, então eu tenho que
ter uma atenção redobrada, muito mais trabalho do que eu teria numa outra
sociedade onde as coisas funcionam métricamente né é... É chato? É... Eu fico
brava, chata, eu xingo, mando todo mundo a merda, assim tem esses momentos
também, mas eu entendo que a sociedade aqui sob essa forma mas também
entendo que também tem vantagens nisso e pra mim, particularmente,(...) esse
traço eu já tenho eu já sou uma pessoa organizada, metódica, eu já tenho tudo
isso, eu não preciso mais isso na minha vida, isso tudo eu já tenho dentro de mim
que que eu preciso eu preciso conseguir quebrar isso um pouco, pra ser uma
pessoa mais flexível e isso essa cidade, essa cultura me traz, entende?”
“(...) essa coisa cultural introjetada, que você tem desde pequena com você, você
não, eu acho que essa coisa cultural ela é muito forte assim, acho difícil você
romper, né, você traz um traço né, acho que você pode ir moldando ir
flexibilizando, relativizar um pouco as coisas, acho que é isso, você relativiza mais
as coisas né, com outras culturas, quando você começa a ter contato com outras
culturas você fica impregnado é se você for uma pessoa, lógico, né, porque você
pode vir pro Rio e nunca mudar o seu jeito de vida, mas se você quiser né, deixar
se impregnar do lugar onde você tá, quiser também absorver essa cultura acho que
você vai, você vai trazendo ela pra dentro né, mas teu eixo, tua estrutura ela se
mantém, eu acho.”
O Rio lhe trouxe a sinuosidade que precisava para ser livre. É uma forma de se
equilibrar, de dar espaço à J. empreendedora-produtora, que também buscava ser
200
livre! Liberdade conquistada pela ação e pela integração das personagens que J. possui
em si e daquelas que no novo contexto construirá, porque as estimula, permite que
existam.
“Eu vivi isso assim, além de ter saído do Sul e vindo pro Rio, depois eu ainda fui
morar em Berlim e tudo bem, foram três meses, mas lá eu entendi melhor, eu
entendi o seguinte: eu acho que isso é a grande questão, é o seguinte a
organização, a forma de vida dos alemães não tem espaço o improviso, isso é
fatal, isso é terrível eles não tem espaço pro improviso! (ênfase) E o improviso é o
frescor das coisas é alguma coisa poder acontecer diferente daquilo que tá
planejado. É tudo essa frase é tudo, eles não tem espaço pro improviso e a gente
tem muito improviso e o improviso tem esse frescor, tem essa novidade, essa coisa
de você poder ser surpreendido você acha que a coisa vai por ali mas não vai, é
uma outra coisa que vai acontecer, você começou a coisa de um jeito mas aí
alguém te jogou pra outra coisa e você foi pra outra coisa, entende? Quebrar o
protocolo e a outra coisa acabou sendo muito mais legal do que aquilo que você
tinha imaginado, então esse espaço do improviso que eu acho que te diz tudo(...).”
“(...) nos primeiros tempos que eu tava em Berlim eu ficava muito bem
impressionada, pensava nossa, mas que coisa, que maravilha, eu posso organizar,
dizer bom, eu vou sair de casa 10 pras 8, e às 8 horas e 3 vai chegar o ônibus e
chega mesmo! (ênfase) não é balela não, tu fica encantada com aquilo né tal, nos
primeiros momentos né, só que tudo traz uma coisa reboque, isso é bom? É bom,
você poder se organizar, agora, por outro lado aí tem uma coisa meio
estabelecida, tem um protocolo de um dia inteiro já organizado, traçado,
esquadrinhado que ninguém sai daquilo, as pessoas, parece que têm uma força
oculta externa que aprisiona as pessoas naquilo alí e que elas mesmas construíram
aquilo pra elas, elas que se organizaram desta forma né e quando você quebra
elas ficam, elas ficam desestruturadas, porque elas precisam daquilo alí ela não
desenvolveu internamente uma capacidade de lidar com o inesperado, eu acho que
é isso, os alemães se protegem muito neste sentido, então você fica muito protegido
naquilo ali, aquilo tá planejado e tal, uma variávelzinha aqui outra ali, mas você
tá seguro ali naquele esquema que você traçou, você tá numa zona alí que tá tudo,
tá tudo sob seu controle se alguma coisa te tira daquilo alí tu perde o controle e aí
eu acho que é uma coisa que os alemães, é muito difícil essa coisa de não ter o
controle né da gente ser levado (...) eles (alemães) não conseguem quebrar essas
regras só que quando você tá lá é mais difícil, porque aí, de novo você tá no país
deles, você tá num país que se organiza assim, você ser uma pessoa diferente disso
não é tão fácil lá.”
“Isso mais ou menos me irritava na Alemanha até aqui pode mas passou daí não
pode, mas por quê que não pode? Eu questionava e aí era assim porque não pode,
porque é regra e regra não é pra ser questionada né e eu sempre falava isso lá, se
pudesse juntar o jeitinho brasileiro com o rigor alemão seria lindo entendeu?
Seria uma mistura perfeita, mas a gente pode fazer isso na nossa vida! A gente
pode!
201
Ora, mas não era o controle o que outrora motivara J. a ser sóciaempreendedora? Percebe-se um salto, arriscamo-nos chamar de fragmento de
emancipação, o modo como J. atua e percebe o mundo, bem como, seu lugar neste. Se
foi estrangeira no Rio de Janeiro e aprendeu a ser sinuosa, J. em sua flexibilidade foi
igualmente estrangeira em Berlim. Local onde sua cultura “métrica” é aceita. O que isto
revela? J. demonstra o salto dado em sua vivência, demonstra autonomia quando
consegue produzir crítica sobre os diferentes modos de vida, bem como, reflete o seu
modo de agir adequando-se às situações. Logo, ser estrangeiro no Rio de Janeiro ou em
Berlim abriu portas para que J. se reconhecesse em ambos lugares, ao mesmo tempo em
que viu despontar-se sua singularidade. J. tem assim a oportunidade de mudar e a
medida em que muda é cada vez mais si mesma.
“(...) eu amei, eu amei Berlim eu acho que seria a cidade que eu elegeria pra
viver, acho que se não morasse no Rio seria Berlim, duas cidades pra mim que são
incríveis. Eu adorei, me senti muito bem todo tempo. E ai eu senti também uma
coisa que eu acho que é curioso acho que foi a primeira vez, depois que sai do Rio
Grande do Sul onde me senti uma igual, uma comum sabe? Nos sentido mais do
externo, assim, de não ser tratada como turista como gringa, como estrangeira, eu
era uma alemã, pra eles, até que eu falasse... Né meu comportamento denotasse,
mas assim, era normal, então me senti igual, ao mesmo tempo e também (muda
tom de voz) senti uma coisa de traço isso não sei te expressar por palavras, mas
tinha uma coisa de me achar também alí entende? Também a cultura, ai batia
também com as minhas coisas né, da minha formação e aquilo tava alí,
funcionando e dando certo é, é como se eu dissesse assim, tudo o que eu aprendi,
como uma coisa mais correta, né no Rio eu tive meio que esquecer, ou no mínimo
me adaptar a outra coisa e em Berlim aquilo tudo é isso mesmo, entendeu? Isso é
valorizado, é bacana, você ter horário, né você ser assertivo nas coisas, você ser
organizado isso é muito bem visto e aqui é assim, as pessoas ah, tudo bem elas
acham bacana que você tem isso, mas não é o mais importante então os teus
traços, aqui eu praticamente precisei descobrir outras coisas importantes.(...)
então o Rio é uma cidade que te trás outras coisas né, então, por um lado como eu
te disse, pra mim foi importante, porque quebrou muitas coisas e me tornou uma
pessoa mais maleável eu acho que hoje sou uma pessoa muito menos influenciada
pela cultura alemã né, como era quando cheguei no Rio.”
J. mais-maleável mesmo “sendo estrangeira” nos ensina que devido à
maleabilidade aprendida no Rio de Janeiro pode ser assim em qualquer outro lugar que
estiver. Pode sentir-se em casa, não importando se no Rio de Janeiro, ou em Berlim. J.
maleável pode ser também pragmática, quando expõe em que a descendência alemã a
afeta.
202
“(...) eu acho que pra voltar no que me perguntou, no que que a cultura alemã me
afeta, o fato de morar numa cidade que é tão diversa, tão diferente e ter essa
cultura germânica me afeta nas relações um pouco, as pessoas que me conhecem
bem, que são meus amigos de fato é que tão muito próximos de mim, elas brincam
agora quem não me conhece muito, às vezes me gera dificuldade, no sentido de me
acharem autoritária, me acharem é o jeito, sempre é o jeito, o jeito de falar as
coisas, sempre muito imperativa é como se eu não tivesse pedindo, mas mandando
e acho que essa coisa também pragmática sabe, a gente é muito pragmático e eu
acho isso bom eu não acho isso ruim, mas isso bate um pouco estranho, porque é,
da uma certa, as vezes da um entendimento de frieza, então você é uma pessoa fria,
você não é uma pessoa fria! Eu trabalho hoje(...) muito próxima a dois cariocas,
duas pessoas daqui, um é absolutamente carioca, o outro é um pouco, assim tem
um pézinho meio fora, assim mas, toda hora eu ouço isso, quando ele quer dar
uma sacaneada me chama de “Fraulein”(senhorita) ou diz assim mas é a J , alemã
né ? Você queria o que de uma alemã? Eu eu não sou alemã! (ênfase) que raio de
ser alemã, não sou alemã, mas sabe toda hora tem um componente e eu acho que
uma coisas também que eu te diria, que eu gosto muito dos alemães nesse sentido e
eu tenho isso em mim é a gente tem uma noção da individualidade, que eu acho
que o brasileiro não tem muito sabe? Do indivíduo, você é um indivíduo, seu jeito,
você tem um jeito de perceber as coisas, é uma fragmentação assim de entender as
coisas e de perceber que isso me toca e não me toca, se isso não me toca, isso não
me diz respeito eu não tenho nada a ver com isso (...).”
Em J. existem várias maneiras de ser, conforme o local onde está é de outra
maneira e em todos estes é ela mesma. Assim, pode ser alemã no Rio de Janeiro e
carioca, quando visita seus parentes no Rio Grande do Sul. Em Berlim é brasileira e não
é gringa, algo que acontece no Brasil, onde é gringa. J. é diversa e múltipla, também
para sua família que permaneceu no Rio Grande do Sul:
“Qualquer coisa que acontece de estranho, ah mas tava esperando o que é a tia J.
né? Então tenho fama de atrasada, não cumprir os compromissos direito e olha
que aqui, eu tenho fama de ser pouco brasileira, ser pouco carioca, porque sou
rigorosa com horários, pontualidade, com as coisas, e lá minha família, eu sou a
carioca, porque eles, minhas irmãs tem o mesmo tipo de comportamento, os
horários, assim, a vida toda muito esquadrinhada né, não tem espaço muito pro
improviso, tudo muito esquadrinhadinho90, o dia-a-dia delas, a rotina tudo, os
trabalhos, os horários, e quando elas vêm pro Rio ficam muito perdidas, por
exemplo, eu almoço quando tenho fome, posso almoçar à uma, às duas, quando
tenho fome, tem dias que acordo mais cedo, tomo café mais cedo e tal e gosto de
ter a oportunidade de quebrar isso e quando vou pra lá é muito assim, o almoço é
90
“(...) disso eu consegui me livrar, que é da cultura germânica, da coisa do sofrimento das coisas, pra
elas terem valor elas tem que ser sofridas, você tem que ter dado seu sangue, só tem valor aquilo que é
muito suado, é o prazer a coisa do prazer ta muito distante dos valores. (...) Acho que essa coisa do
prazer é muito né... E isso eu descobri na minha vida muito cedo, eu quero ter prazer no que eu faço né”
J. sobre o prazer nas coisas, sobre o livrar-se do sofrimento embutido nesta cultura.
203
meio dia, não importa e eu digo, mas gente hoje é domingo, a gente podia almoçar
mais tarde... Não não, horário é horário, sabe? Então eles continuam levando esse
ritmo de vida, muito assim, às vezes marcam as coisas comigo e eu fico meio
brava, eles marcam as coisas mais cedo comigo porque acham que eu vou me
atrasar! Aí chego na hora e eles chegaram antes! (...) a gente marcou contigo né...
Porque se tu te atrasas (risos). Então é curioso, mas eles têm assim essa coisa.”
J. diversa91 ao retornar a sua cidadezinha, sua colônia, sente-se confortável está
entre os seus. Talvez sua diversidade caiba muito bem no lugar de onde veio92, J. se
constituiu assim em sua imaginação permitida pela forma de organização deste lugar.
“(...) quando eu volto pra (colônia onde morava) eu encontro uma coisa ali que eu
gosto muito também sabe, que é da cultura alemã também e assim, é uma coisa
dividida, sabe? Eu gosto também daquilo ali, eu gosto de saber que as pessoas te
convidam pra alguma coisa, eles se preparam, elas se organizam pra te receber e
você chega e tudo tá ali, conforme foi combinado sabe? Isso também me dá um
conforto, ao mesmo tempo, eu gosto. E eu me sinto no meio dos meus, me sinto
muito, muito bem lá, tô muito mais no meio dos meus do que aqui e aqui, eu me
sinto bem por outra razão, pela possibilidade, pela liberdade, possibilidade, por
fazer porque quero, por não ter vínculos com muitas coisas tal, mas assim a coisa
interna mesmo, do teu lugar assim, lugar que é mais parecido comigo, acho que é
mais lá, eu não rompi com essas coisas93acho que com isso, a gente não rompe na
verdade, sabe?”
91
A diversidade de J. pode também ser explicada pelo aprendizado que teve com sua mãe: “(...) então
ela nunca, mesmo as minhas escolhas do teatro, as peças que eu quis fazer, minhas maluquices do
teatro que eu inventava, ela nunca fez nenhuma objeção. E isso não tem nada a ver com cultura, valor,
sociedade porque ela era uma pessoa totalmente simples. Eu sempre digo assim a informação é uma
coisa e o conhecimento é outra. Ela não tinha informação, mas tinha muito conhecimento,
conhecimento de coisas muito lindas assim, das plantas, da vida, da simplicidade das coisas.”
92
“(...) de fato acho que consegui ao longo do tempo um equilíbrio salutar. Eu sei que tenho estas coisas
dentro de mim, quando eu preciso delas eu busco elas, porque elas também são importantes, se eu não
tivesse essa disciplina toda que eu tenho eu não teria feito o filme que fiz se não tivesse a persistência
(fala o nome da cidade de onde veio) que este lugar me trouxe, que esse modo de vida, essa vida dura,
que as pessoas quando elas querem alguma coisa é tudo difícil, a gente aprendeu isso desde muito cedo
né a viver com dificuldade né, então isso me dá muita força pra seguir com as coisas. Eu tenho certeza
disso, a minha força, minha determinação de levar as coisas até o final vem muito disso e vem muito da
cultura alemã que é não largue as coisas pelo caminho.” J. sobre de onde vem sua força- do lugar de
onde veio que a possibilitou também ser diversa.
93
Neste momento J. cita Tolstói em alusão ao que sente: “É isso eu acho que aquela coisa do Tolstói (...)
eu sempre pensei isso e sempre falei isso sabe, então acho que é isso queres ser universal fala da tua
aldeia né é muito isso quando você fala de você mesma, quando você consegue falar de você, você
compartilha isso com as outras pessoas e rola uma identificação(...).”
204
J. entende que é quem é por ter vindo de onde veio. Por este lugar ter lhe dado
condições para criar uma nova forma de vida (via imaginação primeiramente) e ao
mesmo tempo, ter continuado sendo seu lugar, seu refúgio.
“Acho importante dizer que essa coisa (se reporta a sua criação na colônia) é que
me permitiu viver no Rio, ora com alguém, ora sozinha, solitária né cercada de
gente mas também muito assim, de vir me fazendo essa pergunta de o que que to
fazendo aqui? (sobre estar no Rio) eu me fiz muito essa pergunta e hoje já não faço
mais, hoje tenho claro o que que to fazendo mas muitas vezes eu me fiz essa
pergunta, nossa o que to fazendo aqui nessa cidade, aqui sozinha, minha família
toda lá meu amigos, as relações mais profundas(...), mas uma coisa que acho que
foi muito bacana foi ter nascido nesse lugar(colônia) e ter tido a possibilidade de
convívio com essas pessoas que também são as minhas pessoas, também é minha
tribo, meu time, minha família que ta lá é, me dá um alimento assim de alma, muito
bom sabe, aí as vezes eu olho tudo assim sabe e digo nossa bobagem isso a pessoa
tar estressada quando o computador não funciona, bobagem a pessoa tar aqui
querendo se matar porque perdeu não sei o quê sabe, a vida é muito mais do que
isso acho que essa relativização das coisas é muito importante e eu sou muito
agradecida de ter isso, isso meu namorado fala mas eu não sou da colônia, pra
você as coisas são diferentes! (risos).”
O namorado de J. expressa algo que a define. É diferente por ter crescido na
colônia, vê o mundo e agrega a este outros valores, outros modos de ser à sua maneira à
medida que é. J. singular.
Após horas de conversa, J. reflete sobre as coisas que nos contou e busca de
alguma forma sintetizar onde chegou, como chegou e quem é hoje...
“Eu acho que consigo simplificar um pouco e às vezes entra um pouco a questão
do pragmatismo assim um pouco, isso me ajuda. E a arte ajuda... Como isso surgiu
eu não sei, como eu me tornei essa pessoa, como a arte entrou na minha vida né e
me fez, e foi tão forte ao ponto de me fazer mudar de vida, porque eu mudei de vida
isso, eu fui atrás do meu sonho, das coisas que eu queria fazer artisticamente né,
então é, como isso se desenvolveu, eu não sei, mas que desde que entrou é muito
forte, tanto que lembro que quando eu tava no Rio Grande do Sul eu me
perguntava o quê que eu tenho, que é lógico, hoje eu tenho uma maturidade né,
lógico, uma vivência, te dá uma certa tranquilidade emocional, com o passar dos
anos você acaba abrandando um pouco as tuas questões. Mas quando mais nova
eu tinha muito esse conflito assim de mas será? Porque eu preciso disso? Eu já
não posso me contentar com o que eu tenho? Era como se esse desejo artístico
fosse uma erva daninha, em algum momento, eu tinha a impressão que ela corroia
algumas coisas, algumas bases, né, quando eu achava que tava tudo bem
estabelecido, tinha alguma coisa ali que, tava corroendo as estruturas e me fazia
ficar desconfortável dentro daquilo ali que eu tava organizando e aí eu pensava
pra que isso? Mas depois quando eu parei de me perguntar pra que e passei a me
jogar mais nisso e dar vazão pra isso eu acho que ai a coisa fluiu sabe? Porque
205
isso, uma coisa que eu diria hoje, tranquilamente pra uma pessoa mais jovem
assim, quando eu tinha 20 anos eu tinha muitas dúvidas o que vou fazer, vou por
aqui, vou por ali tal isso é uma coisa que eu diria hoje assim, muito
tranquilamente pra qualquer pessoa que me perguntasse assim o que fazer eu
diria: aquilo que teu coração mandar sabe? Que se você é uma pessoa sensível
mesmo enquanto você não fizer aquilo que seu coração mandar, você não vai
querer, faça logo cara, não postergue!”
Em sua trajetória, ter dado vazão ao pensar e agir diferente de sua família foi o
que a impulsionou a buscar sempre mais, contudo, em sendo doida94 pôde ir além,
permitiu-se não seguir tradições ou o que dela era esperado. J. doida e também curiosa
buscaria seu caminho para além das tradições, recriando sua própria história.
“Eu acho que basicamente o fato de ter saído de la, de ter saído(...) eu não me
adequava muito aquele esquema da minha família, da forma como minhas irmãs
viviam. Eu olhava tudo aquilo ali e não achava aquilo legal, assim, como exemplo
de vida pra mim, como modelo, eu sempre quis uma coisa assim mais doida pra
mim, um pouco mais desordenada, menos certinha né. Mas eu não sei te
responder, posso pensar junto aqui mas uma resposta pronta não tenho. Eu tenho
realmente essa coisa, eu gosto do desafio, sempre gostei do desafio, sempre gostei
do novo, do avesso da tapeçaria sabe? Então eu olho ali e penso, o quê que tem lá
atrás? Eu sempre fui muito curiosa, esse é um traço muito forte da minha
personalidade, eu sou muito curiosa! Quero saber, tenho interesse pelas coisas e
eu acho que isso dá uma vivacidade também né,(...) Então é assim, mais uma vez
quebrar um é, uma coisa que as pessoas esperam de ti né. Isso me ajudou nessa
história toda né, é olhar pro outro, também com curiosidade do que é novo, do que
isso pode me trazer.”
E assim J. finaliza sua entrevista, revelando algo de si que em sua simplicidade
nos ensina que identidade é metamorfose em busca de emancipação e que em suas idas
e vindas, em seu re-inventar promove que medos permaneçam em algum lugar
adormecidos, permitindo o revelar da coragem de se lançar a aventura que é conhecer e
re-conhecer si mesmo, a despeito de tradições, costumes e cultura; apenas permitir-se
ser em sua totalidade!
“É eu podia né, nunca ter saído né (da colônia)... Eu acho que tem uma coisa nisso
tudo que talvez seja uma pista, eu em algum momento da minha vida, não sei bem
94
“(...) eu tinha antes um namorado muito mais jovem e agora eu tenho um namorado muito mais
velho (risos) e doido ! (risos) Então eu acho que consegui um lugar também confortável aí dentro, eu
posso, ela pode, ela é doidinha mesmo então ela pode!” J. sobre as vantagens de ser “doida”
206
onde, (...) que em algum momento da minha vida eu acho que decidi que eu ia
fazer a vida, que eu ia levar a vida como eu quis eu disse, eu olhei em volta e disse
não, isso não é p mim, eu vou mudar isso, vou mudar esse jogo.“em algum
momento eu disse não vou ser vitima disso, eu vou dar a volta por cima disso, eu
vou reinventar! Essa história pra mim, dessa história eu não gosto eu vou inventar
uma outra , eu vou atrás dela, mas aí, eu acho que o elemento principal, acho que
é a coragem. Se existe uma coisa assim que eu acho que determina assim uma
palavra pra minha trajetória é coragem. Os eu era uma criança muito medrosa,
mas esse medo acho que ficou lá ou ele tá aqui e tá muito disfarçado, pode ser que
né, mas acho que é isso a coragem de se lançar, de fazer as coisas, de ir atrás de
mudar e... Então espero continuar fazendo isso até o fim da minha vida, sem
grandes problemas com isso(...) tudo tem outro lado, por enquanto tá muito bom,
não queria outra vida não! Não gostaria de ter outro tipo de vida!”
J. demonstra, com sua trajetória algo que segue em acordo com a colocação de
Habermas (1983, p. 69-70):
Na identidade do Eu se expressa a relação paradoxal pela qual o Eu, como
pessoa em geral, é igual a todas as outras pessoas, ao passo que enquanto
indivíduo é diverso de todos os demais indivíduos. Por isso, a identidade do
Eu pode se confirmar na capacidade que tem o adulto de construir em
situações conflitivas, novas identidades, harmonizando-as com as identidades
anteriores agora superadas, com a finalidade de organizar numa biografia
peculiar a si mesmo e às próprias interações, sob a direção de princípios e
modos de procedimento universais.
Ponderações acerca do bloco “descendentes mais velhos”:
Neste bloco ao trazerem-se relatos dos “descendentes mais velhos” observaramse semelhanças entre as entrevistadas e foi possível ainda, perceber a existência de
elementos que diferem das colocações dos jovens descendentes.
As três entrevistadas deste bloco apresentam em seus projetos o modo como sua
geração foi afetada pela relação da História junto à construção da vida de seus
antepassados no Brasil, bem como, a influência de momentos políticos do Brasil
entremeando algumas passagens de suas trajetórias.
S. trouxe “viver seu tempo” participando ativamente deste, desde sua juventude
quando pôde frequentar “um colégio democrático” que lhe suscitou novas formulações
ao ponto de decidir tomar um rumo militante, vindo a participar de movimentos contra
207
arbitrariedades na sociedade em que vivia. Atualmente, como professora e historiadora,
procura manter-se atualizada do que se passa no mundo e no Brasil, acompanhando os
fenômenos sociais, buscando compreendê-los e assim participar da sociedade. Hoje, não
mais como militante, nos bastidores mantêm-se alerta, ligada ao mundo e às suas
mudanças.
A relação que S. tem com sua descendência alemã perpassa a História do Brasil
junto à história de sua família, enquanto fundadores de Blumenau e também de Santo
Amaro. Para S., a construção de sua identidade está imbricada com a constituição de sua
família no Brasil e de como esta com isto lidou, adequando-se ao país de modo a
suscitar a não existência de conflito entre quem S. é ou quem gostaria de ser. Imagina-se
que a relação de seus pais com a guerra na Europa tenha proporcionando-lhes uma outra
concepção do Brasil como pátria que permitiu a construção de suas vidas nesta. Desta
forma, não abandonaram certas características de sua cultura, mas também não negou-se
a existência e complementaridade de elementos brasileiros que assim permitiu que se
constituísse o trânsito entre duas culturas de modo natural.
S. percebe seus movimentos e mudanças, ao mesmo tempo em que busca
compreender o movimento imigratório de sua família. Reconhece-se neste e configura
seu lugar no mundo quando escolhe, por exemplo, não fazer o passaporte de outra
nacionalidade por não ver neste importância ou sentido.
Logo, um ponto relevante em sua história que talvez tenha relação com o
exemplo dado sobre o passaporte, foi sua participação ativa nos movimentos de
resistência contra a ditadura no Brasil. Algo que nos remete à ideia de S. ter construído
seu pertencimento pautado, além dos princípios e tradições transmitidos pela família, na
luta por democracia no lugar onde nasceu e onde vive.
No caso de A., observou-se que mediante sua relação com as exigências da mãe
referentes ao aprendizado da língua, ordem e disciplina, unidas ainda a elaboração do
que fora o passado “não dito” de seu pai, desencadeou-se uma relação conflitante entre
sua origem e o local onde está, muitas vezes, vertendo em sentimentos como “ser ambas
as coisas” ou não “ser nem uma e nem outra.” (nem alemão e nem brasileiro). Desta
208
forma, A. procura ressignificar as tradições transmitidas mediadas pelo afeto, buscando
quebrar paradigmas e (re)construir seu caminho, sua identidade de modo leve, afetuoso,
conforme menciona: não quer ser identificada em estereótipos “alemães” (estes quando
ligados à rigidez).
Seu projeto de vida envolve o “ser mais desencanada” em menção ao que
acredita ser uma prerrogativa brasileira positiva. A. permite-se ser mais flexível quando
aponta, por exemplo, não ser pontual e frente à história de sua família, cuja relação com
a língua era uma obrigação: “segurar a língua”. Pôde transformar coerção em profissão
que lhe propiciou meios de se emancipar e mudar a relação com a língua, fazendo seu
uso para benefício próprio, muito além de apenas perpetuar a tradição. Aponta-se a
relevância percebida em seu discurso quando reconhece que seus filhos não deveriam
aprender a língua por obrigação, uma vez que o importante era se comunicarem e
estabelecerem o diálogo, não importando em qual língua isto se daria.
Ao ressignificar o “seu jeito de ser alemã”, reinventa-se demonstrando viver
para além dos estereótipos do alemão tido como rígido, inflexível. A. conforme se
apresenta, demonstra conseguir aliar traços como disciplina e trabalho com flexibilidade
e sensibilidade, aproximando-se do seu projeto, que visa o “ser desencanada”.
Outro ponto interessante apresentado por A. é sua relação com a história de seu
pai. Seu envolvimento com a juventude de Hitler é algo que busca ainda resolver e para
tanto, participa de atividades como constelação familiar e cursa psicologia,
demonstrando que a resolução de um conflito pode desmembrar-se em novas
possibilidades no presente e também no futuro, em meio à reflexão que fomenta a
atividade como possibilidade (no caso tornando-se psicóloga é possível, além da
compreensão sob outros prismas de sua própria história, transformar esta experiência
em trabalho e compreensão de outras pessoas e fenômenos, assim como pode
transformar a aprendizagem da língua tida como “coerção” para o tornar-se professoraafetuosa).
J.
apresenta-nos um projeto de liberdade pautado primeiramente em suas
vivências, tanto das tradições que considera “opressoras” como também, o falecimento
209
de sua irmã e a vergonha por ser colona e não falar português corretamente. Este projeto
vai acompanhá-la em todas as suas escolhas e estimular suas metamorfoses. J. desta
forma,
rompe com algumas tradições, reinventando-as enquanto recria a própria
história. Apresenta de modo claro acreditar que a união de elementos de ambas as
culturas (brasileira e alemã) podem promover o equilíbrio salutar e deste é possível
viver a liberdade em qualquer lugar do mundo.
Cabe ressaltar que J. reconhece que ter pertencido à colônia (onde se deu sua
socialização primária) cujos traços característicos como língua, trabalho na roça e o
esforço, colaborou para ser quem é hoje. Coloca que estes elementos propiciaram a
vazão à criatividade, mas também, à persistência e força de vontade de “não largar as
coisas pelo caminho” acrescentando serem estas as características germânicas que o
lugar de onde veio permitiu que internalizasse e constituísse em si.
J. percebeu que era diferente em um ambiente totalmente novo (Rio de Janeiro)
onde experienciou novas relações e modos de vida que lhe atestaram também o saber
lidar com as diferenças como algo importante. Somado a isto, pôde perceber sua
singularidade aliando sua alteridade ao cotidiano, ao mesmo tempo em que empregou
para si novos elementos oferecidos pela agregada ao Rio de Janeiro.
J. relata já ser quem gostaria de ser e vive de acordo com o seu projeto. Ainda
assim, mantém-se em constante busca por mudanças e novas ideias, pois o que a
mantém artista é a criação e o reinventar-se constantemente.
Observa-se com o discorrer das reflexões acima, a existência de diferenças
importantes entre a expressão identitária de nossos narradores “jovens descendentes”,
em comparação aos “descendentes mais velhos”.
Os jovens expressam o descontentamento com o Brasil, com o modo como
percebem o país e como pensam ser neste percebidos. Há uma busca por um modelo
identitário pautado no “ser alemão”, pertencente a uma Alemanha talvez idealizada,
retrato que fazem daquilo que lhes foi transmitido. É possível levantar-se a hipótese de
210
que, por se tratarem de gerações mais novas, viram-se distantes do que seus ancestrais
vivenciaram com as guerras, ou com os relatos do que foi esta experiência tal qual.
Outra hipótese é formulada mediante ao que representou o momento político
vivido no Brasil a partir das diretas já, nos anos 80, com a reestruturação democrática,
maior abertura e trocas comercias, mudanças nas relações via globalização e
posteriormente,
mídia
e
a
internet.
Dito
isto,
pensa-se
em
jovens
cuja
contemporaneidade lhes atribua poucos elementos para lutar por mudanças. Talvez, a
construção que fazem de si mesmos, una-se à lógica da sociedade cujo funcionamento é
pautado na individualidade. Nas gerações mais antigas, percebeu-se maior amplitude de
questões ligadas ao coletivo.
Nos jovens, notou-se maior distanciamento entre quem são e quem gostariam de
ser, quando se comparam os projetos de vida dos descendentes mais velhos; estes
próximos daquilo que de fato são. É possível que pelo fato das famílias de nossos
descendentes mais velhos terem tido no Brasil a opção de (re)construírem suas vidas
vindos de uma Alemanha destruída isto possa ter influenciado o rumo que seus
sucessores tomaram em suas vidas e identidades, implementando-lhes motivações
outras no país de acolhimento. (Tal hipótese deve ser melhor investigada, uma vez que a
família de P. também retornou ao Brasil em condições difíceis após a guerra. Nesta
manteve-se o projeto de retorno que deve ser levado em consideração para a construção
identitária de P.).
Ainda que os descendentes mais jovens, tenham tido histórias compartilhadas de
construção de suas famílias no Brasil, há uma apropriação da tradição alemã por vezes
aliada à busca de sentido e pertencimento de modo acrítico. Nos descendentes mais
velhos, percebem-se elementos de maior criticidade vinculados às tradições, bem como,
maior participação social. Vivem suas possibilidades não exatamente adequando-se à
política identitária transmitida pela tradição, mas com o exercício do questionamento,
revelando-se identidades políticas, com sentido de maior autonomia.
As histórias escolhidas como “principais” em cada bloco, apresentaram questões
comuns, embora, interpretadas de outra forma. P. apresentou a importância que “a coisa
211
métrica” ou ângulo reto tem para sua vida. Valores como organização, disciplina e
pontualidade foram colocados como relevantes e parte do que aprendeu com a cultura
alemã. Assim P. coloca-se como estrangeira no Brasil em constante desejo de viver na
Alemanha, onde acredita viver entre iguais e ser assim reconhecida.
J. nos fala das mesmas questões, com outro enfoque. Revela a “coisa métricaesquadrinhada” como falta de improviso e flexibilidade, de modo à vida caminhar sem
“frescor”. Revela ainda que mesmo pensando desta forma, valores como disciplina,
pontualidade e organização lhe são igualmente importantes. Contudo, fez-se necessária
a reinvenção destes valores de modo a flexibilizar situações, adequar-se ao ambiente e
extrair o melhor deste.
O equilíbrio foi encontrado por J., que semelhante a P. sente-se estrangeira, mas
não somente no Brasil, também o é na Alemanha. O seu recriar ou reinventar constante
lhe torna, singular: cidadã do mundo, com valores alemães e brasileiros. J. nos ensina
que é possível fazer, escolher e reinventar o próprio caminho independente da origem;
Importa o modo como esta se constituiu durante o caminhar. O ser estrangeiro pode
indicar singularidade e não vincular-se a conflitos, necessariamente.
212
Capítulo 5
Quem somos nós, descendentes? Algumas reflexões
A metamorfose humana de fato se concretiza
durante todo o caminhar, quando o caminho
inteiro se faz. (Antônio da Costa Ciampa)
A discussão deste trabalho remete-nos ao retorno das questões iniciais da
pesquisa, necessariamente. Caminho que se deu, conforme mencionado, quando ainda
vivíamos na Alemanha.
Neste país observamos a questão que abrange imigrantes turcos e seus
descendentes, muitos em sua terceira ou quarta geração no país, como distante de ser
resolvida, ao contrário. O conflito lá existente envolve o desejo por parte dos alemães,
da adequação desta população ao país, compreendida, por exemplo, pela aprendizagem
da língua, inserção nos costumes e tradições ligados, sobretudo, à educação, ordem,
disciplina e trabalho. Arriscamo-nos falar em termos do Deutschtum enquanto
expectativa de enquadramento à ordem social a partir deste princípio fundante,
enquadrado em termos da política de identidade, central nesta problemática.
Desta forma, turcos e descendentes encontram-se em um claro conflito
identitário, expresso por formas de resistência como o abandono por parte dos jovens de
suas atividades, sejam estas profissionalizantes ou mesmo a escola, comportamentos
violentos, abuso de substâncias entorpecentes, brigas, depredação do patrimônio
público, entre outros; Gerando desconforto, comoção social e para além disto,
demonstrando claramente o mal estar nesta sociedade. Estes jovens clamam para que
sua situação seja vista, buscam um espaço onde possam ser reconhecidos e
desenvolverem-se conforme suas predicações, no país onde nasceram.
Pensando-se a colonização alemã no Brasil e a vida dos seus descendentes nos
trópicos, é possível equipararem-se estas diferentes populações ao cogitarem-se os
conflitos despertados pela vivência dos teuto-brasileiros durante o Estado Novo (por
exemplo), quanto à negação da expressão de sua língua e seus costumes. Busca-se, desta
forma, demonstrar com tais exemplos que o tema imigração e a condição dos
213
descendentes de imigrantes, a constituição e expressão de suas identidades, extrapola
países, culturas e momentos históricos. Este tema revela que, em primeiro lugar, está a
condição humana de homens, mulheres e crianças em movimento, buscando melhores
condições de vida e que possuem o direito de assim estar. Voltar nosso olhar para suas
manifestações, para a expressão de suas crises e permitir vazão às alteridades, se faz
necessário.
Neste trabalho buscou-se caminhar de forma a desvelarem-se, por meio das
histórias de vida de nossos sujeitos colaboradores, questões que para além das
diferenças culturais, alcançam o indivíduo em esfera universal: como encontrar seu
lugar no mundo?
No contexto desta pesquisa se ressalta a escolha interessada pelo NEPIM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade e Metamorfose da PUC-SP) cuja
compreensão da identidade visa esta como processo, construção a qual a metamorfose
constante é o mote de sua existência. Arriscamo-nos dizer que, dar vazão às
metamorfoses da identidade é uma chave para lidar com conflitos e dificuldades, uma
vez que a singularidade do eu expressada pela articulação entre suas metamorfoses e
pela apropriação destas como novas possibilidades de ser, são condições para
enfrentamento dos desafios impostos pelo cotidiano.
Ciampa (2003, p.10-11) ilumina as considerações supracitadas, quando coloca:
“(...) a identidade de um povo se apoia no consenso que se estabelece em
torno dos sentidos que constituem sua cultura. Ou seja, identidade é sempre a
articulação atual (presente) da tradição (passado) com a inovação (futuro).(...)
incorporados pela maioria da população, numa sociedade democrática, esses
significados vão constituir os sentidos que orientam a vida das pessoas nessa
sociedade, ou seja, constituem as subjetividades individuais.”
O que isto nos sugere e por que se escolheu trazer o exemplo dos turcos como
parte introdutória da discussão para entender a questão identitária dos descentes alemães
no Brasil é o quebra-cabeças que nos leva à compreensão do tema identidade como algo
muito importante e tema de debates sempre atuais. Os jovens turcos mencionados,
(lembrando que se encaixariam várias outras culturas, com questões parecidas) retratam
o que Hommi Bhabha (2001) denomina “in between”, ou seja, eles vivem entre duas
214
culturas, ora a alemã, onde nasceram, cresceram e foram socializados, ora a turca, cuja
origem de seus pais ou avós e bisavós é também presente em seu cotidiano, em sua
constituição. Entretanto, uma crise se instala justamente quando estes jovens têm de dar
uma resposta ao meio social que lhes indaga: “quem são?” ao mesmo tempo em que
lhes impõe “serem” de determinada forma e “pertencerem” a determinado status que
lhes define.
Questão semelhante, particularmente nestes termos abordada, é amplamente
discutida na obra de Amin Maloouf (2000) intitulada “Identidades Assassinas”. Nesta, o
autor inicia suas considerações partindo da própria vivência. Maloouf é imigrante, tem
origem libanesa, é cristão e vive há muitos anos na França, onde escreve e compartilha
da cultura em vários âmbitos e aspectos. Maloouf depara-se frequentemente com
questões relativas a seu pertencimento e ao que se considera pertencente: é mais libanês
ou francês? O autor desenvolve suas considerações partindo desta vivência à
problematização da origem e da imposição deste tipo de escolha, até o que esta pode
provocar. Em seu ponto de vista, nasce deste tipo de “imposição identitária” a
perpetuação de preconceitos e segregações, seguindo o surgimento de guerras e
conflitos. Não é possível sermos duas ou mais coisas? Pertencermos a diversas culturas,
costumes, ideias, ideais e ao mesmo tempo, termos e sermos uma unicidade, ainda que
plural? Neste ponto cabe o retorno a Bhabha (2001) e suas colocações sobre o
hibridismo cultural. Tal hibridismo pode ser compreendido como negociação cultural,
enquanto condição e processo, logo, uma negociação de sentidos e significados sócioculturais.
Contempla esta discussão a proposição de Cabreira (2002, p.02):
“(...) o jogo entre a identidade e a alteridade passa a ser uma marca da
imigração, que também possui uma representação ambígua e ambivalente do
país que a acolhe, criando com isso um olhar que necessariamente irá se
construindo no decorrer de sua inserção sociocultural. Tal processo acaba
resultando num “imigrante nacional.”
Outro autor que discute a questão da identidade partindo de um questionamento
pessoal é Zygmmunt Baumman (2005). Este judeu polonês, obrigado em dado momento
de sua vida a emigrar para Londres, se depara com uma escolha: frente a uma
215
solenidade da qual participara deveria escolher qual Hino deveria representá-lo. O Hino
da Inglaterra, país que o acolheu e no qual leciona e vive há anos, ou o Hino da Polônia,
país de seu nascimento? A saída para o aparente conflito, surgiu na escolha pelo Hino
da Europa. Saída que não implica em solução, necessariamente. Prova esta, que incitou
que o autor partisse deste episódio pessoal para discorrer sobre identidade na
modernidade líquida. O que configura esta indagação com sentido tão importante para o
ser humano: “quem sou eu”? Algo que o leitor desavisado entenderia como algo dado,
uma vez que se nasce em uma família que já tem uma história, pela qual nos é
concedido um nome, uma religião, entre tantas outras coisas, em uma construção
anterior ao nascimento, mas que origina, contudo, questionamentos constantes senão,
por toda a vida.
Na perspectiva de Hommi Bhabha (2001), o citado hibridismo cultural é
compreendido como uma construção constante cujo prisma, nos permite pensar sobre as
questões identitárias de imigrantes e descendentes. O hibridismo cultural está implícito
aos processos migratórios e frente nossas observações, no decorrer da pesquisa de
campo, pôde agregar valores que permitiram o surgimento de perspectivas
emancipatórias para os sujeitos, aqui observadas no revelar de maior autonomia e
liberdade de escolha, consciência crítica acerca de si mesmo, do mundo e, sobretudo,
atuação no mundo da vida em consonância com valores construídos entre culturas e
perpetuados, ao ponto de revelarem-se identidades políticas.
Cabe, a título de ilustração, a apresentação de alguns trechos de uma entrevista
com a escritora Lya Luft, dada à Deutsche Welle online (2004) que colabora para o
entendimento da temática que se propõe discutir, ao mesmo tempo em que se vincula ao
que foi transmitido por nossos interlocutores.
“Eu nasci em Santa Cruz do Sul, que sempre foi uma cidade típica de descendentes de imigrantes
alemães. Meus antepassados de parte de pai e de mãe vieram naquelas primeiras levas, em 1825. Em
geral eu digo que alemão fica bom depois de algumas gerações amaciando no Brasil.(grifos nossos)
Passei a minha infância numa casa grande, com uma família divertida, mas com algumas coisas muito
severas. Eu contestava isso(...).” (Anexo, p 242)
“Na minha família se falava "nós, os alemães, e eles, os brasileiros". Isso era uma loucura, porque nós
estávamos há gerações no Brasil. E como eu era uma menininha muito contestadora, um dia, com 7 ou 8
216
anos, numa Semana da Pátria, me dei conta: "Por que falam “die Brasilianer und wir'?" (os brasileiros e
nós?). Eu quero ser brasileira. E aí começou essa história – claro que naquela época eu não sabia das
negras de origem africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador –, mas eu digo que sou tão brasileira
quanto qualquer negra de origem africana que vende acarajé nas ruas de Salvador. Talvez meus
antepassados tenham vindo antes dos dela, então eu sou mais brasileira do que ela.” (Anexo, p.242)
“Eu nunca concordei com essa afirmação generalizada no Brasil que diz "vocês lá no Sul nem são bem
brasileiros, vocês são meio europeus". Isso não me elogia em nada, eu não quero ser européia. Eu tenho
o maior respeito pela cultura, pelo trabalho, pelas artes, pelas tradições de vários lugares na Europa,
mas eu sou brasileira e quero gostar do Brasil.”(Anexo, p. 243)
“(...) há uma cultura alemã, como a Oktoberfest. (...) isso é simpático. Não devemos renegar as raízes.
Isso é muito legal. É como você ter CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Mas daí a morar no Brasil, ser
de várias gerações e falar em "Vaterland"(pátria pai)... Acho isso um horror. Então todos os açorianos
devem falar: "Oh, pátria portuguesa!". Eu sou uma libertária e de certa forma anarquista. Eu não gosto
disso. Tenho muito respeito e há uma raiz minha germânica, ligada à cultura e à educação, que me
agrada. Agora, há uma certa arrogância e um preconceito que me desagradam. E um sentimento
excessivo e rígido de dever. Mas eu não sou por cortar raízes ou renegar tradições.”(Anexo, p.243)
“No Reunião de família, o professor, que era um cara muito frio, muito cruel, no começo ele era de
origem alemã. Uns tipos que eu conheci na minha infância. Aí resolvi mudar. Eu não quero ser porta-voz
dos descendentes de imigrantes alemães. Eu não quero ser porta-voz de nada. Eu quero ser
completamente desligada. Eu quero minha liberdade para o exercício da minha arte, do meu trabalho.”
(Anexo, p.243)
“A cultura alemã te influenciou?
Sim, muito. Essa é a parte que eu agradeço. Havia uma literatura alemã, francesa, italiana enorme na
minha casa, além de brasileira e portuguesa. Li muito literatura alemã. Aos 11 anos decorava longos
poemas de Goethe e Schiller. Para mim era natural. O que eu sempre combati é o seguinte: na Alemanha
é melhor. Se na Alemanha é melhor, vá para lá. Eu não gosto das utopias que têm uma semente de
arrogância. O Brasil tem muita coisa bagunçada, mas sempre que eu vou para o exterior e chego aqui,
bom, esta é a minha terra. Eu gosto de morar aqui. E no Brasil, eu gosto de morar em Porto Alegre.”
(Anexo,p.243)
Nestes trechos da entrevista com Luft é possível a observação de traços
semelhantes ao que foi encontrado em alguns de nossos descendentes mais velhos. Luft
demonstra seu trânsito por duas culturas, bem como, suas escolhas e posicionamentos
frente a isto. Possui crítica e apresenta algo próximo ao que Amin Maloof expressa na
discussão sobre a necessidade de escolher-se quem se é e do que Bhabha fala sobre o
hibridismo cultural e a construção do elemento entre lugares, sendo possível associar o
que ambos autores problematizam juntamente a entrevista de Luft e ao que se observou
217
na pesquisa: vivenciar a imbricação do hibridismo cultural enquanto metamorfose da
identidade como caminho para a emancipação do sujeito imigrante e seus descendentes.
Fazer tal inferência não exclui, contudo, que esta perspectiva seja isenta de
conflitos. Defende-se, entretanto, uma alternativa para vislumbrar-se a experiência da
alteridade com perspectiva emancipatória, como salto qualitativo do indivíduo que
vivencia o hibridismo e se apropria deste, não mais tendo que atender à demanda da
escolha “quem sou” sendo híbrido, em sua totalidade singular.
Ao estudar-se a questão identitária de descentes alemães no Brasil, levou-se em
conta a construção da identidade como algo para além do que direcionaria a uma única
resposta, enquadrando o sujeito em parâmetros pré-estabelecidos que direcionam
respostas condicionadoras (estereótipos, por exemplo). Seguimos, ainda que
intuitivamente, reflexões confluentes àquelas de Amin Maalouf. Categorizar identidades
significa segregar, separar, como o ato de reconhecer o desconhecido dando-lhe, “uma
cara” na intenção de atribuir-lhe características para autoproteção. No caso dos
descendentes alemães, existem rótulos e nos coube compreender como estes são
compreendidos pelos sujeitos e como eles destes escapam ou mesmo, se deixam
aprisionar.
A questão identitária dos descendentes de alemães entrevistados revelou-se
como não sendo uma escolha, mas sim processo construído intersubjetivamente junto ao
outro, o que por vezes, representou um problema para alguns, cuja questão identitária
perpassa o ideal do reconhecimento via identidade pressuposta, geradora de sofrimento
quando não consonante com a sociedade ou modo de vida. Logo, tais experiências
corroboram com o que a literatura consultada nos ensinou: compreendida como
processo, a identidade é uma soma de fatores, construídos, reconstruídos, algumas vezes
consolidados e outras vezes, também reformulados no cotidiano, na forma como o
indivíduo é socializado, reconhecido pelo outro e que neste movimento do conhecerreconhecer-se, se individualiza. O momento social e histórico no qual o indivíduo está
inserido deve ser levado em consideração, bem como os meios que teve e tem de acesso
à informação sobre o mundo, sobre si mesmo, sua história.
218
Acredita-se que ao não aceitarem-se as possibilidades identitárias como
múltiplas e mutáveis, resultam respostas sociais em forma de violência, logo, a inserção
de verdades “goela abaixo”- retira do indivíduo seu potencial criativo de reinventar-se
em meio as tramas sociais.
De acordo com Habermas, enquanto pessoas somos todos iguais- logo, passamos
por processos sociais, educacionais e conflitos que podem nos assemelhar em nossa
condição, mas enquanto indivíduos, somos únicos, diferenciados e será a experiência
mediada intersubjetivamente, que nos tornará quem somos. Suspeita-se que a
possibilidade de uma sociedade mais igualitária pode iniciar-se deste tipo de discussão.
Do surgimento de possibilidades emancipatórias e de respeito ao que é singular no
indivíduo que pode manifestar sua singularidade em meio a pluralidade, em meio a
alteridade que o faz único e que também, sem a qual não seria possível desenvolver-se.
A singularidade de nossos entrevistados revelou-se no exercício do deslocamento das
identidades pressupostas, que os levam ao afastamento dos rótulos, ao que deles é
esperado enquanto “descendentes de alemães” bem como, à construção híbrida que
fazem de si mesmos vivendo no Brasil.
O alemão é atrelado muitas vezes a identidades pressupostas, ligadas a
estereótipos como -“o alemão”- enquanto sinônimo da figura ligada à ordem,
inflexibilidade, organização e rigor. Nossos entrevistados fizeram menção à relação
quase automática que se faz do alemão atrelado ao nazismo, fato que ainda leva
descendentes, mesmo pertencentes às gerações mais distantes, à necessidade de
elaboração do assunto. Independente das relações geradas pelos estereótipos reside o
aprisionamento do indivíduo a tais papéis, seja pela falta da apropriação crítica que os
sujeitos fazem de sua tradição (CAMPOS, 2013) via o modo como foram socializados
ou, da construção e significado que a tradição lhes implica na relação que fazem entre
suas histórias pessoais e a sociedade em que vivem.
Revelou-se no decorrer da pesquisa, a internalização acrítica do Deutschtum
pelos descendentes mais jovens, ou seja, o Deutschtum não foi ressignificado ao
contexto em que vivem no Brasil. “A rigidez do comportamento delata a fusão de
219
coerções de papel e coerções pulsionais.” (HABERMAS, 1996, p. 195, apud
ALMEIDA, 1999, p. 115)
A sociedade pode, ora contribuir para que se perpetuem papéis e se disseminem
comportamentos, contudo, será o indivíduo na concepção que tem de si mesmo, no
resgate de sua história, na consciência de seu presente, mas também na (re)formulação
de seu projeto de vida em meio à compreensão que tem de sua história de vida, que terá
a chave para lidar com conflitos gerados pelas questões que envolvem a constituição de
sua identidade, mas também e sobretudo, é o senhor de si que poderá verter tais
estigmas para viver a inteireza de sua identidade, em perspectiva emancipatória.
De acordo com Almeida (1999, p. 112):
Movendo-se no tecido socialmente construído, cabe ao indivíduo estabelecer
as pontes e as mediações entre sua condição e suas possibilidades, tipificando
e singularizando sua trajetória. As relações entre a biografia e o contexto
social onde ela se desenrola e a sociedade em última instância, têm múltiplas
direções; não constituem vias de mão única.
Percebeu-se que a relação de nossos sujeitos colaboradores desta pesquisa, com
relação à pergunta “quem é você” levou a considerações que podem ser expressas em
consonância a seguinte colocação de Maheirie (1997, p. 168 apud ALMEIDA, 1999, p.
109-110):
(...) tem componentes contraditórios que se opõem e se negam, numa
complicada dialética. Ela é concretização do contexto social, das relações
sociais, materializando um mundo (...). Portanto, o esforço de
autodeterminação não se faz com a ilusão da ausência de determinações. A
autodeterminação supõe finalidade, projeto, desejo, mas ela se concretiza no
cotidiano, através do fazer, do experienciar-se, na metamorfose que se faz
através da práxis.
Neste aspecto, sobre o “experienciar-se na práxis”, observou-se, por exemplo, a
questão do fazer ou do ser pelo trabalho, pela eficiência como questão fortemente
arraigada à cultura alemã, conforme a fala de nossa entrevistada J. e de como esta pôde
ressignificar tal questão e desta maneira, ser quem queria ser.
De acordo com Almeida (1999) é preciso aguçar a percepção para esquadrinhar
as operações do eu que permitam dissolver a manutenção pela repetição ao papel dado e
220
guardar devida distância frente ao papel- quebrar a máscara do socialmente pré formulado. O autor ressalta a importância do sujeito aprender a posicionar-se frente ao
domínio da sociedade, ou mesmo, nos casos que discutimos, frente às políticas de
identidade que engessam comportamentos e pensamentos. Em suas palavras (p.116):
“cabe ao indivíduo integrar as expectativas de papéis e ter clareza mental na resposta a
elas, aprender a não se deixar aprisionar (...).” Dar, portanto, significado ao que se é e
ao que se está sendo para que se possa, a partir daí, prefigurar o que se pretende ser.
(idem, 1999)
O mesmo autor parte da metáfora da anamorfose para discutir projetos
emancipatórios:
(...) construir um foco para a própria imagem que dê nova proporcionalidade
à articulação entre papéis e desejos como forma de superar tanto o assumir
papéis coercitivamente impostos, quanto o se deixar levar por impulsos
irrefletidos. Este é o ponto da integração dialética entre os desejos pessoais e
as expectativas dos papéis sociais, onde a autonomia se torna possível, onde o
projeto pode se concretizar, em suma: o ponto da alterização da identidade,
de sua metamorfose. (ALMEIDA, 1999, p. 116)
Ainda para falar de emancipação, cita-se mais uma vez Habermas (1987, p. 141142)
(...) capacidade de construir novas identidades a partir das identidades
rompidas ou superadas e de reintegra-las de tal modo com as velhas, que no
tecido das próprias interações se organiza na unidade de uma biografia
peculiar e que, por ser capaz de responder por ela, pode lhe ser atribuída
como sua.
Boaventura Santos (2010b, p. 324) a isto, acrescenta:
O vir a ser, projeto sonhado, é emancipação naquela que recusa a
heteronomia e de enquadramentos: é vontade, possibilidade, potência e,
também, contradição que se insere no presente. Empiricamente, é verdade,
ele só é acessível acontecendo e não pode afirmar que ela já se realiza na
existência dos sujeitos, mas ao se insinuar no presente ele anuncia como a
utopia, a recusa ao fechamento do horizonte de expectativas e de
possibilidades, a vontade de lutar por alternativas.
Ou seja, ser capaz de produzir mudanças, experimentar, não fixar-se apenas ao
condicionado, aos valores da sociedade colonizada, ou ainda, a partir de sua própria
221
imagem, prefigurar outras que diferem do que é imposto. Viver possibilidades seguidas
de potencialidades.
Segundo Habermas (1983) a ideia unificadora do desenvolvimento do eu
engloba sua formação em um sistema de delimitações: a subjetividade da natureza
interna como delimitada com relação à objetividade de uma natureza externa perceptível
com relação à normatividade da sociedade e a intersubjetividade da linguagem.
Habermas, desta forma, retrata o eu como instância que transcende os limites da
subjetividade, no que realiza tal operação ao mesmo tempo, na cognição, linguagem e
interação. O sujeito só pode tornar-se consciente de si mesmo em relação com e na
construção do mundo objetivo (HABERMAS, 1983 p.16). O autor propõe a
autoidentificação intersubjetivamente reconhecida. A autoidentificação exige o
reconhecimento intersubjetivo do outro o que torna questões como aquelas ligadas ao
estigma especialmente difíceis de serem trabalhadas ou desarticuladas dos sujeitos
quando neste tipo de interação o reconhecimento parte do grupo social.
Habermas (1983) retrata a existência de um direcionamento frente ao processo
de formação do eu marcado por uma crescente autonomia, o Eu independente que pode
então resolver com sucesso problemas adquire tal autonomia em parte “com a estrutura
simbólica não objetivada de uma cultura e de uma sociedade parcialmente
interiorizadas” (p.54). Explicita a formação de competências pela interação social, ao
passo que esta é mais tarde garantida pela individualização “crescente independência
com relação aos sistemas sociais” (HABERMAS, idem, ibid.) possível de se perceber
em passagens de nossas colaboradoras, S. e J.
Logo, o sistema social é responsável pela apresentação da cultura ao sujeito que
a internaliza, mas que pelo processo de individualização adquire crítica, produz
relações, escolhas, entre o que internaliza e o que disto elabora e de fato, interioriza. É o
mecanismo de interiorização que, portanto, permitirá que o sujeito conquiste
independência com relação aos objetos externos, pessoas de referência e até mesmo os
próprios impulsos (idem, p.54).
Quando finalmente o jovem aprende a questionar a validade de normas de
ação e de papéis sociais, o setor de seu universo simbólico volta a se ampliar:
222
emergem princípios segundo os quais podem ser julgadas as normas em
conflito recíproco (...) questões práticas podem ser esclarecidas de modo
argumentativo”. (HABERMAS, 1983, p. 59)
A autonomia é um processo construído socialmente e passível de ajustes
constantes, uma vez que é parte da luta por reconhecimento dos indivíduos.
A constituição identitária de nossos sujeitos teve como fator principal a forma
como foram socializados e o desenrolar de suas experiências no Brasil, independente da
proximidade geracional com os ancestrais alemães ou mesmo o território onde
cresceram (ex. cidades do Sul do Brasil - antigas colônias alemãs ou São Paulo).
“Onde” nossos entrevistados estão, mostrou-se como ponto importante na
construção de suas identidades, que perpassa o “de onde vêm” que, no entanto, constitui
força motriz ao modo como vão buscar os seus projetos. Logo, o “de onde vêm” é o
pano de fundo para a maneira como serão socializados, mas não necessariamente é o
que vai demarcá-los, determinar suas escolhas ou definir quem são. A forma como
lidam com sua origem no local “onde" vivem é o que estimula o modo como constituem
si mesmos e seus projetos. Será na proximidade entre o estar sendo e o vir a ser que se
darão as identidades com fragmentos emancipatórios, que proporcionarão maior
autonomia, liberdade.
Não é possível dizer que exista um à priori para “ser descendente de alemães no
Brasil.” Conforme retratado nos depoimentos, pessoas jovens e mais velhas têm
concepções, visões de mundo e buscas diferenciadas, que perpassam suas histórias com
relação à ascendência, mas também suas lutas, experiências sociais e aspirações, que
darão o tom para o que buscam ser.
Lidar com a ascendência alemã no Brasil mostrou-se um fator gerador de conflitos
(de certa maneira) para os jovens na busca pela concretização de seus projetos.
Percebeu-se dificuldade de adequação entre o que são e o ambiente onde vivem,
colocando-os em constante embate com “o ser estrangeiro em si mesmos” para além do
ser estrangeiro ao lugar, representando a dificuldade em estar entre dois mundos, cuja
integração não lhes parece possível. Os jovens buscam desta forma, na repetição de
modelos, vincular suas identidades.
223
Para os descendentes mais velhos, mais próximos da consonância entre seu eu e
seu projeto de vida, ainda que vivendo a condição do estar “entre lugares” reside na
hibridização a chave para sua autonomia, para o ser “teuto-brasileiro” enquanto junção
de aspectos considerados positivos, tanto de uma cultura como de outra. Os
descendentes mais velhos aperfeiçoaram as experiências passadas, ligadas à
ancestralidade ressignificando-as para o presente, o que possibilitou a reinvenção de
modos de vida.
Os jovens ainda constroem suas histórias e nestas há uma Alemanha idealizada
como solução para suas buscas identitárias; pertencer ao modelo ideal do “ser alemão”
conforme formularam, ou conforme suas experiências assim os levaram a formular. Os
mais velhos já têm suas histórias constituídas, já são quem querem ser, aparentemente.
Buscam então, a possível integração entre culturas, firmando um terceiro elemento
(como coloca BHABHA). Percebeu-se que os descendentes mais velhos que tiveram
experiências de militância, construíram uma outra relação com o Brasil, com o seu “ser”
brasileiro, vislumbrando o que se pode chamar como identidades políticas e estas,
vinculadas à princípios construídos em atividade. É possível que a vivência da guerra,
das memórias desta, herdadas de seus ancestrais, ou modo como as gerações lutaram
para conquistar seu lugar no Brasil tenham sido relevantes. Para os jovens este tempo e
espaço é outro, o que envolve uma construção diferente de significados com relação a
Alemanha.
Percebeu-se que descendentes mais velhos aproximam suas constiuições
identitárias dos conceitos do hibridismo cultural, formando um “entre lugares” de modo
positivo, ou seja, há o desejo e a percepção de serem e quererem ser híbridos, abarcando
características tanto da cultura alemã, como da brasileira em suas concepções de si e em
seus projetos de vida.
É possível afirmar, desta forma, que os descendentes mais velhos não têm uma
visão idealizada da Alemanha, ou do que é ser descendente de alemães. Constroem, com
os aspectos acima citados, singularidades que lhes propiciam metamorfoses com sentido
emancipatório.
224
Não se propõe dizer que os jovens descentes não caminhem para metamorfoses
igualmente emancipatórias. Ocorre que, cabe a estes ainda desconstruir imagens préestabelecidas para encontrar caminhos e formulações próprias, que propiciem integração
dos elementos de ambas culturas que não os aprisionem, mas sim, permitam-lhes viver
com apropriações críticas de valores mediados culturalmente, alcançando maior
liberdade.
Considerações... Finais (?)
Iniciar este tópico com um ponto de interrogação, expressa a intenção de apontar
a multiplicidade própria da temática que se propôs discutir: a imigração. Esta,
compreendida como tema cuja complexidade é multiforme, não gera conclusões, mas
sim possibilidades, caminhos a serem seguidos e que também podem ser mudados,
acrescidos por outras visões ou enfoques, a depender do momento histórico e político. É
nossa intenção explicitar a necessidade da abertura cada vez maior para o debate das
questões multifacetadas relativas à identidade de descendentes de imigrantes no Brasil,
bem como as mais variadas questões que envolvem a imigração na atual fase do
capitalismo tardio.
Em face disso, o trânsito de pessoas não se interromperá; ao
contrário, não deve ser associado a problemas, mas a diferentes contextos e formas
criativas de vida.
O Brasil, enquanto nação cuja população é miscigenada, tem características
como a grande abertura às diferentes nacionalidades e se estima que todos “vivam em
harmonia”. Isto deve ser discutido, sobretudo, vista a abertura que intensifica a entrada
de refugiados no país. Algo que aponta para conflitos de ordens diversas, como
economia, saúde pública, habitação etc. Como se dará a continuidade das trajetórias
destes sujeitos no país e para além, como os brasileiros os receberão e lidarão com a
alteridade que se apresentará? Logo, repete-se aqui o que ocorreu outrora, com os
grandes contingentes de europeus (alemães, no caso deste estudo) que vinham
convidados a construir o país e que precisaram enfrentar questões que se desmembram
225
ainda hoje, pela transmissão aos descendentes, pela forma que são vistos ou mesmo
inseridos na sociedade.
Assim, parte importante destas considerações, que pretendem “fechar” o
trabalho, versam sobre a necessidade da ampliação do debate sobre o tema, não se
esquecendo de que imigrantes e seus descendentes constroem suas vidas, ao mesmo
tempo em que participam da construção do país.
O decorrer desta pesquisa nos trouxe respostas, mas também se abriram novas
indagações. No que concerne aos descendentes alemães, percebemos tratar-se de um
tema por vezes “tabu”, em que instituições nos responderam com silêncio e
colaboradores, encontrados em nossas incursões no cotidiano, ao contrário, tinham
muito a falar e realmente falaram.
Foi possível perceber que a questão identidade e imigração, no caso deste
trabalho ligado aos descendentes, deve ser mais explorada, uma vez que existe a
demanda dos sujeitos por conhecerem sua própria história, compreendendo-se que tal
conhecimento promove a relação destes com a sociedade e também com a construção
do futuro desta. Pode-se dizer com segurança que são questões que não interessam
somente aos indivíduos que compartilham das mesmas, mas à sociedade, ao Brasil
enquanto grande acolhedor de imigrantes no passado e também no presente.
Dar voz aos descendentes é mostrar claramente o caminho que percorrem para
se constituírem frente às adversidades vividas por seus ancestrais e, sobretudo, frente às
representações criativas que fazem de si e que, ao mesmo tempo, colaboram com a
construção de fato do Brasil, como Nação plural.
Desta forma, é possível dizer ainda que o hibridismo cultural aliado às
metamorfoses da identidade individual é parte relevante de um processo que não se
esgota e que, se bem acolhido pelas sociedades, pode levar a convivências pacíficas,
mesmo que frente à diversidade.
Importa ressaltar a importância atribuída aos estudos de identidade enquanto
visão política e construção sócio-histórica. É possível, com tal construção, não somente
226
discorrer sobre constituições identitárias, mas aliado a isto, entender ou mesmo
estimular a participação política, a construção de uma sociedade mais justa,
emancipadora.
Ao discorrer sobre a sociedade plural, imigração e as trocas advindas deste
processo, cabe uma pequena reflexão. O ano de 2013 é o ano Brasil-Alemanha, cujo
objetivo versa sobre maior visibilidade acerca das importantes trocas comerciais,
tecnológicas ou mesmo de ensino, advindas da antiga relação entre ambos os países.
Concordamos e julgamos serem aspectos relevantes da construção e continuidade da
relação iniciada no final do século XIX. Contudo, ao escutarem-se os relatos dos
descendentes alemães surge a seguinte indagação: por que não unirem-se Alemanha e
Brasil em suas culturas de fato, conforme o processo de hibridização, vivenciado pelos
teuto-brasileiros? Onde brasileiros possam experienciar uma sociedade mais organizada,
menos corrupta e alemães, maior calor, afetividade, e musicalidade em seu dia-a-dia? O
hibridismo discutido junto a questão identitária pode ser aplicado a ambas sociedades,
elevando-se seu potencial emancipatório ao promover abertura cada vez maior à
construção dialética feita pelas pessoas nestas.
Nossa discussão mostra-se desta forma pertinente, pois partindo-se da
compreensão de como os sujeitos constroem seu pertencimento (de modo conflituoso ou
não, identificação com figuras importantes de sua vida, como outros significativos)
pode-se vislumbrar, no contexto global, tendências para violência e, em se percebendo
isso, é possível se imaginarem formas de interação entre os diferentes pertencimentos; a
ideia aqui é promover um debate que previna o conflito, uma vez que foi possível
apreender as formas de construção do pertencimento. Concordamos com Bauman
(2005) e Maloouf (2000), quando criticam a “necessidade” de se ter uma Pátria e de se
responder a todo momento “quem se é” de acordo com o local de nascimento. É,
portanto, na tentativa de contribuir com a formação de um eu autônomo, integral e livre
de preconceitos e de amarras que se configura a importância deste trabalho: juntamente
com a criação de alternativas de experiências de interiorização de diferentes culturas e
modos de vida, livres de estigmas, que se espera creditar o alcance das reflexões
propostas.
227
Quanto aos desdobramentos e indicações para novas pesquisas, desponta a
necessidade de maiores estudos sobre as questões relacionadas ao reconhecimento e sua
interface psíquica no local onde se vive. Pensar as questões identitárias, sobretudo, a
compreensão da identidade como metamorfose em busca por emancipação, surge como
interessante perspectiva para abordagens futuras no campo psicossocial ligado aos
estudos migratórios, de forma que o enfoque não seja a “assimilação” do sujeito aos
desafios impostos pela cultura, mas sim a reinvenção de modos de viver, a atualização
de tradições, bem como a hibridização como processo propiciador de fragmentos de
emancipação.
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Patrocínio: Fundação Federal de Cultura da Alemanha. (exibição de 2 a 7 de julho, 2013
em São Paulo).
HANNAH ARENDT. Margarethe Von Trotta. 113 min., 2013.
Lançamento Livro Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs, KUPFER; BOLLE
(orgs.). Goethe Institut, 18.09.2013.
OS MUCKER. Jorge Bodanzky, Wolf Gauer. Stopfilm Ltda, Embrafilme,
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Simpósio Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio. 8
e 9 de novembro, 2013. Memorial da América Latina. Coordenação: Miriam Debieux
Rosa, Sandra Luzia de Souza Alencar, Taeco Toma Carignato, IIana Mountian, Luiz
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240
Anexo 1
Termo de consentimento livre e esclarecido
Sr(a) foi selecionado(a) e está sendo convidado(a) a participar da pesquisa intitulada: “Quem
somos nós, descendentes? Da História à socialização na constituição de identidades ‘teutobrasileiras’” Esta tem por objetivo a compreensão de como se dá a constituição da identidade
dos descendentes alemães no Brasil. A pesquisa utiliza-se de metodologia qualitativa, com uso
de entrevistas abertas que abordarão histórias de vida (sem uso de roteiro prévio). Tal coleta
de dados será realizada com gravador e o material será analisado posteriormente. Fica
garantido aos sujeitos desta pesquisa o sigilo absoluto sobre os relatos, sendo resguardado o
nome dos participantes. Os relatos serão tratados de forma anônima e confidencial. A
privacidade será assegurada com o uso de pseudônimos, em caso de exemplificações
necessárias. Os dados coletados serão utilizados apenas NESTA pesquisa e os resultados
divulgados em eventos e/ou revistas científicas de circulação por meios impressos e também
eletrônicos.
Sua participação é voluntária, a qualquer momento você poderá recusar-se a responder
qualquer pergunta ou desistir de participar, retirando seu consentimento. Não haverá riscos
de qualquer natureza relacionados a sua participação. Seu envolvimento nesta pesquisa
proporcionará o aumento do conhecimento científico para a área da Psicologia Social.
A orientação desta pesquisa será feita pelo Professor Doutor Antônio da Costa Ciampa, que
fica a disposição para maiores esclarecimentos no Programa de Estudos Pós- Graduados em
Psicologia Social, situado na Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, bloco A, sala 4E-10, Perdizes,
Cep: 05015-901, São Paulo- SP. Tel: (11) 3670-8520. E-mail: [email protected]. Fico
também à disposição para esclarecimentos no mesmo endereço e E-mail:
[email protected]. Professor Doutor Antônio da Costa Ciampa- Orientador/ Diane
Portugueis- Orientanda.
CEP- Comitê de ética em Pesquisa PUC-SP
Declaro estar ciente do interior deste TERMO DE CONSENTIMENTO e estou de acordo em
participar do estudo proposto, sabendo que poderei desistir a qualquer momento, sem sofrer
qualquer tipo de constrangimento.
Assinatura:__________________________________________________
241
Anexo 2:
Entrevista de Lia Luft a Deutsche
Welle-online (2004)95
Lya Luft: "A cultura alemã me
influenciou muito
A escritora Lya Luft recebeu a DW-WORLD
para uma conversa na sua casa, em Porto
Alegre. Ela falou sobre a imigração alemã no
Brasil, sua admiração por Rainer Maria Rilke e
Günter Grass e a experiência de escrever para a
"Veja".
Gaúcha de Santa Cruz do Sul e descendente de
imigrantes alemães, Lya é uma das escritoras de
maior sucesso do Brasil na atualidade. Perdas e
ganhos vendeu
mais
de
425
mil
exemplares,Pensar é transgredir já chegou aos
180 mil e sua coluna na Vejaatinge um público
em potencial de quatro milhões de leitores. A
entrevista foi no pequeno escritório da escritora
em sua casa, entre livros, fotos da família e CDs
de Maria Bethânia, Elis Regina, Bach e
Beethoven.
DW-WORLD: Tu podes falar um pouco sobre
tua infância?
Lya Luft: Eu nasci em Santa Cruz do Sul, que
sempre foi uma cidade típica de descendentes de
imigrantes alemães. Meus antepassados de parte
de pai e de mãe vieram naquelas primeiras
levas, em 1825. Em geral eu digo que alemão
fica bom depois de algumas gerações
amaciando no Brasil.(grifos nossos DP) Passei
a minha infância numa casa grande, com uma
família divertida, mas com algumas coisas
muito severas. Eu contestava isso e coloquei um
pouco em dois ou três dos meus romances,
principalmente na Asa esquerda do Anjo.
Na minha família se falava "nós, os alemães, e
eles, os brasileiros". Isso era uma loucura,
porque nós estávamos há gerações no Brasil. E
como eu era uma menininha muito contestadora,
um dia, com 7 ou 8 anos, numa Semana da
Pátria, me dei conta: "Por que falam 'die
Brasilianer und wir'?". Eu quero ser brasileira. E
aí começou essa história – claro que naquela
época eu não sabia das negras de origem
africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador
–, mas eu digo que sou tão brasileira quanto
qualquer negra de origem africana que vende
acarajé nas ruas de Salvador. Talvez meus
antepassados tenham vindo antes dos dela, então
eu sou mais brasileira do que ela.
Eu nunca concordei com essa afirmação
generalizada no Brasil que diz "vocês lá no Sul
nem são bem brasileiros, vocês são meio
europeus". Isso não me elogia em nada, eu não
quero ser européia. Eu tenho o maior respeito
pela cultura, pelo trabalho, pelas artes, pelas
tradições de vários lugares na Europa, mas eu
sou brasileira e quero gostar do Brasil.
Tua primeira língua foi o alemão?
Eu nasci em 1938 e logo em seguida começou a
guerra. Em casa falávamos alemão, mas em
seguida tive que falar português porque o
alemão foi proibido. Minhas avós falavam
alemão. Nenhuma conheceu a Alemanha. Eu me
lembro delas sempre lendo. Isso é uma coisa
legal que eu tenho delas – todo um imaginário
dos contos de fadas.
Elas não conheceram a Alemanha, mas sempre
tiveram essa imagem...
Era o lugar ideal. Principalmente para a minha
avó materna. "Nós, os alemães..." Havia uma
utopia e que tem a ver com uma certa arrogância
européia, de um modo geral, que eu acho
detestável.
Isso de elogiar os gaúchos dizendo que eles são
europeus é tipicamente brasileiro.
95
Fonte:< http://www.dw.de/lya-luft-a-culturaalem%C3%A3-me-influenciou-muito/a1437528> acesso em 24.09.2013.
242
É um pouco de inferioridade que faz
contraponto à arrogância européia. E com a
ignorância européia e americana a nosso
respeito, que é quase total. E um pouco... o
sujeito que se sente inferior também ironiza. Há
um desprezo, no fundo. Não é um elogio. É um
distanciamento e uma coisa pejorativa. Por isso
eu não gosto.
Eu me lembro de nós recebermos, na Deutsche
Welle, e-mails de pessoas jovens falando em
"Vaterland"...
Eu acho isso uma loucura. Então devem ir
embora bem depressa. Isso é de uma pobreza...
O sujeito que não consegue amar seu próprio
país também não vai conseguir amar
o Vaterland [pátria] utópico.
Tu achas que dá para dizer que há um culto à
Alemanha entre os descendentes?
Eu nunca tinha ouvido falar nisso. Tu és a
primeira pessoa que me diz isso. Meus filhos
nem falam alemão. Fiz questão de cortar.
Querem falar alemão? Vão aprender.
Mas há uma cultura alemã, como a Oktoberfest.
Claro, mas isso é simpático. Não devemos
renegar as raízes. Isso é muito legal. É como
você ter CTG [Centro de Tradições Gaúchas].
Mas daí a morar no Brasil, ser de várias
gerações e falar em "Vaterland"... Acho isso um
horror. Então todos os açorianos devem falar:
"Oh, pátria portuguesa!". Eu sou uma libertária
e de certa forma anarquista. Eu não gosto disso.
Tenho muito respeito e há uma raiz minha
germânica, ligada à cultura e à educação, que
me agrada. Agora, há uma certa arrogância e um
preconceito que me desagradam. E um
sentimento excessivo e rígido de dever. Mas eu
não sou por cortar raízes ou renegar tradições.
No Reunião de família, o professor, que era um
cara muito frio, muito cruel, no começo ele era
de origem alemã. Uns tipos que eu conheci na
minha infância. Aí resolvi mudar. Eu não quero
ser porta-voz dos descendentes de imigrantes
alemães. Eu não quero ser porta-voz de nada.
Eu quero ser completamente desligada. Eu
quero minha liberdade para o exercício da
minha arte, do meu trabalho.
A cultura alemã te influenciou?
Sim, muito. Essa é a parte que eu agradeço.
Havia uma literatura alemã, francesa, italiana
enorme na minha casa, além de brasileira e
portuguesa. Li muito literatura alemã. Aos 11
anos decorava longos poemas de Goethe e
Schiller. Para mim era natural. O que eu sempre
combati é o seguinte: na Alemanha é melhor. Se
na Alemanha é melhor, vá para lá. Eu não gosto
das utopias que têm uma semente de arrogância.
O Brasil tem muita coisa bagunçada, mas
sempre que eu vou para o exterior e chego aqui,
bom, esta é a minha terra. Eu gosto de morar
aqui. E no Brasil, eu gosto de morar em Porto
Alegre. E em Porto Alegre, eu gosto de morar
nesta casa.
Quais teus autores favoritos em língua alemã?
Günter Grass. E Rilke. É um autor que leio
sempre. Tenho uma edição de poemas em papel
de seda que meu pai me deu quando eu era
adolescente. Uma coisa que agrada tão
imensamente por tanto tempo tem a ver com
uma afinidade. É a coisa do "belo sinistro", o
que tem muito a ver com a minha literatura.
Tem muito a ver, também, com o "belo sinistro"
dos contos de fada. Não quer dizer que Rilke
tem a ver com os contos de fada. Os contos de
fadas nórdicos são todos belos e terríveis. Os
personagens sofrem muito, todo mundo tem que
pagar um preço horroroso para ser feliz. Aquela
coisa que é bonita, mas também meio
ameaçadora. Tem um pouco desse "belo
sinistro" em Rilke, também, e tem muito na
minha literatura. Fecha uma coisa dele comigo
que eu gosto imensamente.
Como está sendo a experiência de escrever para
a "Veja"?
Muito boa. Quando a Veja me convidou, minha
primeira atitude seria dizer não. É uma loucura,
são um milhão de assinantes. Eu pensei: "Não,
eu não vou querer esse compromisso a essa
altura da minha vida". Conversei com meus
filhos. Eles acharam graça. "Mãe, só tem duas
243
razões para tu recusares. Uma é preguiça, a
gente sabe que tu és meio preguiçosa. A
segunda é covardia, e tu adoras um desafio, tu
não és covarde."
É a primeira vez que uma mulher é colunista
da Veja. Se eu recuso, vão dizer "tá vendo?
Convidamos uma mulher e ela já quer cair fora".
É a primeira vez que tem um colunista gaúcho,
tirando o Luis Fernando Verissimo. Não, eu não
podia cair fora. Nas duas primeiras colunas eu
fiquei mais tensa. Veio aquela enxurrada de emails. Mas como o ser humano se acostuma
com tudo, hoje faz parte do meu cotidiano.
244
Anexo 3
Uma Horinha com Deus...
Posso ter uma horinha com Deus quando estou na fila do ônibus ou numa sala de
espera ou em qualquer outra circunstância: quando tenho que esperar por alguém,
quando não consigo dormir. É bom saber que a qualquer instante posso me comunicar
com Deus e pedir a sua orientação.
Meu Deus, quero aproveitar estes minutos de espera para lembrar que não estou só,
que posso refazer as minhas forças pela oração, que posso pedir ajuda e consolo, na
certeza de que não serei deixada sem resposta. Quero permanecer sempre em tuas
mãos.
Suplico pelo próximo que está encontrando dificuldade para acertar na vida. Não posso
forçá-lo a subordinar-se à tua vontade, mas peço que me guies, para que a minha
atitude o ajude a aproximar-se de Ti e a reconhecer que não pode haver felicidade sem
ser em Ti.
(U. 1922-2010, mãe de A.)
245
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Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na