PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP DIANE PORTUGUEIS Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na constituição de identidades “teuto-brasileiras” MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO Programa de Estudos pós-graduados em Psicologia Social DIANE PORTUGUEIS Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na constituição de identidades “teuto-brasileiras” Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em PSICOLOGIA SOCIAL, sob a orientação do Professor Doutor Antônio da Costa Ciampa. SÃO PAULO 2013 2 BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ RESUMO PORTUGUEIS, D. (2013). Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na constituição de identidades “teuto-brasileiras”. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A pesquisa discorre sobre a constituição identitária de descendentes alemães no Brasil, especificamente nas regiões Sul e Sudeste. A relevância deste estudo decorre da abrangência da influência dos descendentes alemães no Brasil, mais visível nas dimensões cultural e econômica do país. Constatou-se a escassez de estudos que contemplem esta população tanto na ótica da identidade e dos estudos culturais, quanto nos estudos em Psicologia Social, sobre sua socialização no mundo globalizado. O método utilizado foi a História Oral, na modalidade de Histórias de Vida, sendo que as análises de seis relatos permitiram que se constatassem diferenciações entre dois grupos distintos: os descendentes entre 20 e 30 anos e os descendentes mais velhos, entre 50 e 60 anos. Para os jovens, apontou-se a busca pela reposição da identidade pressuposta, vinculada às políticas de identidade mediadas pelo Deutschtum, o que ficou mais evidente naqueles que não viveram na Alemanha. Nos descendentes mais velhos, observou-se aproximação com o hibridismo cultural (H. BHABHA, 2001), entendido como busca pela complementaridade de elementos de ambas as culturas (Brasil e Alemanha) que conflui com a apropriação crítica que fazem das tradições, bem como com a reinvenção de si no local onde vivem a ponto de tendencialmente se revelarem identidades políticas. Palavras chave: descendentes alemães, identidade, políticas de identidade, imigração, hibridismo cultural. 4 ABSTRACT PORTUGUEIS, D. (2013). Who Are We, the Descendents? From History to Socialization in the Establishment of the “German-Brazilian Identities.” Master’s Thesis. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. This paper addresses the establishment of the identities of German descendents in Brazil, specifically in the Southern and Southeastern regions. The relevance of this study arose from the vast influence of German descendents in Brazil, which is more visible in the cultural and economic dimensions of the country. It was noticed that there was a lack of studies addressing this population, both in terms of identity and cultural studies, as well as those related to social psychology in relation to their socialization in the globalized world. The method used was Oral History, namely life stories. The analysis of 6 stories made it possible for us to note the differences between two groups: descendents 20 to 30 years of age and those who are older, aged 50 to 60 years old. For the younger population, we pointed out to the recovery of their supposed identity in connection to identity policies mediated by the “Germanness,” and that was more evident for those who had not lived in Germany. For the older descendents, we noted a close connection with cultural hybridism (H. BHABHA, 2001), which was understood as the search to complement elements of both cultures (Brazil and Germany), and which added to the critical ownership that they make of traditions, as well as their own reinvention in the place where they live to the point that political identities are biasedly revealed. Keywords: German descendents, identity, identity policies, immigration, cultural hybridism. 5 ABSTRACT PORTUGUEIS, D. (2013). Wer sind wir, die Nachfahren? Von der Geschichte zur Sozialisation in der Identitätsbildung der "Deutsch-Brasilianer". Masterarbeit. Päpstliche Katholische Universität von São Paulo. In der Diskussion dieser Masterarbeit geht es um die Identitätsbildung von deutschen Nachfahren in Brasilien, besonders im Süden und Südosten. Die Wichtigkeit dieser Studie ergibt sich aus dem Umfang des Einflusses dieser Personengruppe und ist am deutlichsten sichtbar in den kulturellen und wirtschaftlichen Bereichen des Landes. Es fehlen Studien die diese Bevölkerungsgruppe beruecksichtigen, sowohl in dem Aspekt der Identität und der Erkenntnisse über die Kultur als auch der Sozialpsychologie in bezug deren Sozialisation in der globalisierten Welt. Als Methode wurde Oral History in Form von Lebensgeschichten verwendet, sowie die Analyse von sechs Berichten, aus denen sich zwei verschiedene Gruppen herausstellten: Nachfahren im Alter von 20 bis 30 Jahren und von 50 bis 60 Jahren. Bei den Juengeren stellte sich die Suche nach einem Ersatz der vorausgesetzten Identität fest, in Verbindung mit der im Sinne des Deutschtums vermittelten Identität. Diese Suche zeigte sich intensiver für diejenigen, die nicht in Deutschland gelebt haben. Bei den aelteren Nachkommen beobachtet man eine Annäherung an die kulturelle Hybridität (H. BHABHA, 2001), welche als Suche nach ergänzenden Elementen beider Kulturen (aus Brasilien und Deutschland) verstanden wird. Dies geschieht mit einer kritischen Aneignung der Traditionen sowie mit einer Sich-Wieder-Entdeckung an dem Ort an dem sie leben, so dass sich eine Moeglichkeit der Entwicklung politischer Identitaeten ergibt. Keywords: Deutsche Nachfahren, Identität, Identitätspolitik, Einwanderung, kulturelle Hybridität. 6 DEDICATÓRIA Àqueles que têm coragem de serem felizes em sendo sinceros com seus sonhos. Em especial, às famílias Portugueis, Stoffelshaus e Frauz, por não terem temido tal desafio e outros tantos, enfrentados para muito além do oceano Atlântico... Ao mestre Ardans, meu carinho, admiração e amizade eterna! 7 “(...) extinguir em si tudo o que é simples mundo e introduzir consenso em todas as suas transformações (...) ele deve exteriorizar tudo o que é interior e formar tudo o que é exterior.” (Schiller) “(...) eu sou desde o momento em que cheguei à consciência de mim mesmo, aquele que eu fizer de mim com liberdade e sou isso pela razão de ser eu mesmo quem faz isso de mim.” (Fichte) “Dream on, dream yourself a dream come true, dream on and dream until your dream comes true.” (Steven Tyler) 8 Agradecimentos Há quem diga que o trabalho acadêmico é uma construção solitária. No meu caso, digo com propriedade que longe disso, o resultado deste trabalho se deve a uma configuração coletiva (lembrando a amiga Vanessa- “esse trabalho é fruto de uma construção coletiva”) que se iniciou muito tempo atrás com algumas vivências na graduação, passando pelas experiências na Alemanha, chegando finalmente à PUCSP, local de minha “morada” atual. Quando falo em configuração coletiva, penso em figuras importantes que passaram ou que ainda estão em minha vida, inspirando-me, seja com ideias, como no compartilhamento de reflexões, opiniões, sentimentos, experiências, exemplos, trocas e, sobretudo, apoio. Este trabalho começou a tomar corpo quando eu vivia no exterior. Enquanto lidava com o “ser estrangeira” vislumbrava a compreensão de mim mesma, de minha identidade em suas múltiplas facetas e formas, advindas de minha origem, mas também da minha atividade em local tão diferente daquele onde nasci e vivi. Percebi que tais questionamentos não eram somente meus. Assim, nasceu algo que posso arriscar nomear como um projeto de vida. A tal projeto devo a inspiração propiciada pelas trocas com amigos do Camarões, Guatemala, Marrocos, Bósnia, Etiópia, Turquia, Romênia e Alemanha. Gostaria de expressar nesta lista (limitada pelo tamanho, mas não por minhas intenções!) meu sincero reconhecimento às pessoas que proporcionaram que eu fosse quem sou hoje e que ainda estarão comigo, naquilo que serei amanhã. Estas pessoas a serem aqui mencionadas, são parte da minha constituição enquanto sujeito que almeja uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais emancipadora. Na tentativa de não ser injusta (com quem aqui nomeio e também comigo mesma, não sendo traída pelos lapsos da memória) inicio meu muito obrigada de forma mais ou menos cronológica. Darei início agradecendo professores que me acompanharam no primário e ginásio. São eles: professora Ana Cristina, que me apresentou aos primeiros livros e incitou-me o gosto pela leitura; professora Célia, por acreditar que mesmo não sabendo matemática poderia ser boa em outras coisas, mesmo não entendendo a lógica dos números. Da graduação agradeço imensamente aos professores vindos da Escola de São Paulo; destes, destaco meu mestre Ardans, pelo bom encontro que mudaria minha vida e por sempre ter acreditado em mim, antes mesmo que eu o fizesse. Mestre, obrigada! Nesta fase conheci quatro amigas, que me acompanhariam em outras tantas caminhadas: Joyce Peu, Renata Pavani, Keila Sgobi e Clarissa de Franco. Obrigada pela parceria, pela força em tantos momentos, pelo “holding” e principalmente pela longa amizade. À Clarissa um agradecimento especial, por me ajudar no lado objetivo da concretização deste projeto, desde sua concepção até os tantos telefonemas amigos e força espiritual, sempre acolhedora e bem vinda. Valeu querida amiga! Depois, devo agradecer a minha família, que mesmo achando que deveria trilhar algo mais “prático” esteve ao meu lado navegando pelos mesmos mares. Desta, agradeço especialmente ao Pedro, sempre presente, nos bons e maus momentos da vida, aos Masullo, pela acolhida sempre gentil na Serra da Cantareira, proporcionando-me um espaço de afetos e de “cafés”. Parte importante de minha família também se constitui daqueles que não estão no Brasil, mas ainda assim próximos, na Alemanha. Em especial agradeço a minha tia Hannelore S. Kuepper por 9 todo apoio e compreensão em fases diversas da vida, minha prima Irene Kroeber, meus primos e meus amigos tão especiais: Sanne, Saba, Sabine Schaller, Pepe Tharun, Uta, Natascha, Lindi e Steffi. Vocês talvez não saibam, penso em vocês todos os dias e sou grata por ter tido a chance de viver coisas incríveis ao vosso lado. Sanne, Saba e Pepe, sem vocês talvez não tivesse tido a coragem de iniciar tal empreitada- o retorno para o Brasil. Vocês fizeram a diferença quando eu “era a diferente”. Chegando finalmente à fase atual, agradeço todos que proporcionaram que o mestrado se tornasse uma indescritível experiência, em sentidos diversos, que vão desde o aprendizado até as experiências políticas. A lista aqui é grande e espero contemplar todos: em primeiro lugar agradeço ao meu orientador Antônio da Costa Ciampa, por ter me aceito entre seus orientandos quando eu nem mesmo estava no Brasil e já tinha recebido muitos nãos vida afora; ao Jura por ter me recebido de braços abertos no NEPIM, pela amizade, conversas e tantas outras coisas mais. Agradeço aos colegas do núcleo de pesquisa em identidade- a todos vocês mesmo! E em especial àqueles que se tornaram mais do que colegas: Mariana, Alê Campos, Clau Mazur, Paulinha, Serginho, Carol Andery. Vocês tornaram minhas Quartas-Feiras melhores e a pesquisa mais leve! Agradeço ao meu querido “QG” que tornou a universidade um espaço ampliado de debates, trocas e tantas outras conquistas. Obrigada Ive, Tiago, Lívia e Vanessa. Agradeço também aos colegas da regional ABRAPSO São Paulo, pelas ricas discussões e aos tantos outros amigos que pude conhecer nesta Universidade: Taynã, Graça Lima, Jean, Sérgio Garcia, Mário, Gabriel, Fátima, Mariana, Luciana, Adriana Eiko, Mi Veronese, Henrique (Capeta)- sempre me salvando na hora dos apertos ou me enviando um oi!! Agradeço aos ótimos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, os quais fico muito honrada em ter conhecido: Salvador Sandoval, Maria do Carmo Guedes, Raul Pacheco, Odair Furtado, Bader B. Sawaia, sem me esquecer da Marlene Camargo, sem a qual todas as burocracias ficariam muito mais difíceis e as pausas para o café menos alegres! Atesto que a experiência na PUCSP foi tão rica que pude ainda ter o privilégio de conhecer amigos e professores em outros programas. Aos colegas da Geografia, História, Relações Internacionais, EHPS, Ciências Sociais, Ciências da Religião muito obrigada pela acolhida e em especial, agradeço aos professores dos respectivos programas: Márcia Cabreira, Estefânia Knotz Cangaçu Fraga, Marijane Lisboa, Carlos, Lili e Terezinha Bernardo. Devo agradecer também aos funcionários desta universidade, do PAC, do bandejão e da biblioteca. Obrigada por estarem sempre abertos a ajudar, por tornarem minhas tardes na PUC mais agradáveis. Agradeço imensamente ao CUCA, coral desta universidade, há quarenta anos regido pelo incrível maestro Renato Teixeira. Este coral trouxe novas cores à minha vida, bem como uma grande amiga, Sabrina de Paula. Devo agradecer também tantas outras pessoas que compartilharam deste projeto comigo, Nicki, pelas conversas e apoio nas tardes na USP; Anne e Kathrin pela tradução para o alemão (Anne te agradeço pelo colo também!); Patrícia Rocha, pela ajuda sempre pontual com as traduções para o inglês; Andrea por ter retornado do México, estava com saudades! Agradeço ainda a Capes e ao CNPq pelo apoio no primeiro e segundo ano do curso, sem o qual não teria sido possível concretizar tal projeto. Agradeço finalmente aos colaboradores desta pesquisa. Sem vocês as coisas teriam tomado outro rumo, certamente. 10 Sumário Prólogo ...................................................................................................................................... 13 Introdução: delineando o objeto de estudo ............................................................................ 15 Objetivos ............................................................................................................................ 25 O caminho metodológico ................................................................................................... 25 Dos procedimentos de pesquisa às considerações éticas ................................................... 28 Capítulo 1 – Localização histórica do objeto de estudo ........................................................ 33 Localizando o sujeito a partir de um breve resumo da história da colonização alemã no Brasil .................................................................................................................................. 34 Barreiras interétnicas e o Deutschtum ................................................................................ 41 São Paulo: uma cidade em desenvolvimento- a relação com Santo Amaro...................................................................................................................................48 A campanha de nacionalização e o Estado Novo: pela criação de um povo “abrasileirado”.. ..............................................................................................................................................56 A liga pangermânica e o nazismo no Brasil ....................................................................... 61 Campos de concentração no Brasil .................................................................................... 65 Capítulo 2 – A identidade como questão ................................................................................ 68 A construção social da realidade- contribuições de Peter Berger, Thomas Luckmann e Georg H. Mead ................................................................................................................... 71 Fases do self ..................................................................................................................... 75 Sociedade: uma realidade subjetiva e objetiva ................................................................... 76 Não se nasce imigrante, torna-se um - Identidade e o fenômeno migratório ..................... 77 11 Vivenciar papéis em uma nova realidade ........................................................................... 82 Capítulo 3 – Anamorfose e o sujeito imigrante: usos do conceito na compreensão das (de)formações identitárias ....................................................................................................... 87 Capítulo 4 - Dando voz aos narradores. Significados e sentidos emanados quando da pergunta “quem é você, quem pretende ser”? ....................................................................... 99 O descendente por ele mesmo- para além do alemão a construção de si no cotidiano................99 Primeiro bloco- “jovens descendentes”.............................................................................................................................100 Ponderações acerca do bloco “jovens descendentes”.................................................................143 Segundo bloco- “descendentes mais velhos”.............................................................................147 Ponderações acerca do bloco “descendentes mais velhos”........................................................207 Capítulo 5- Quem somos nós, descendentes? Algumas reflexões.....................................................................................................................................213 Considerações, finais (?)............................................................................................................225 Referências bibliográficas ...................................................................................................... 228 ANEXOS ........................................................................................................................................ Anexo 1 Termo de consentimento livre e esclarecido ..................................................... 241 Anexo 2 Entrevista com Lya Luft. .................................................................................... 242 Anexo 3 Uma horinha com Deus ...................................................................................... 245 12 Prólogo Era uma vez... Do enraizamento pessoal à questão de pesquisa A construção deste trabalho envolve uma trajetória pessoal, necessariamente. Trajetória esta de uma menina nascida em São Paulo na década de 80, criada por sua avó, filha de alemães adventistas, agricultora, nascida no interior de Santa Catarina e também por seu avô, alemão, nascido em Muehlheim an der Ruhe (Alemanha) emigrado em meados de 1907 para o Brasil e que, em sua herança geracional traz também um avô judeu-russo, nascido em um barco aportado no Uruguai e uma avó, também judia, filha de um alemão e uma austro-húngara, vindos para o Brasil em condições de provável perseguição. É uma história que se inicia com o despertar da consciência de “quem era eu”. Ainda menina, foi somente na escola que percebi falar um idioma diferente e que minha altura e aparência chamavam a atenção. De brincadeiras sobre a “girafa branquela” foi um longo caminho até que na idade adulta, já na faculdade, nasceu o desejo de aprender a língua alemã culta na escola de idiomas, que propiciou o vislumbrar de um universo simbólico, correspondente a muitos quilômetros de oceano e dois continentes. Quem eu era, quem sou e o que representa ser descendente de alemães e também de judeus no Brasil em uma constelação familiar tanto quanto peculiar, é uma busca atual que permeará também o futuro, tanto no que se refere à vida pessoal, como também de estudante interessada em entender os fenômenos migratórios e seu desenrolar. Foi finalmente no ano de 2007 que resolvi emigrar, deixando para trás 25 anos de Brasil rumo a uma nova vida, em um mundo antigo (de alguma forma, também meu mundo) destino: Alemanha. De um encontro com o desconhecido (ainda que procurando eu mesma) surgiram encontros e desencontros com partes de mim em identificação com diversos personagens (que também aparentavam “girafas branquelas”), mas que não necessariamente me eram familiares. 13 Encontro também com o estrangeiro, com a África, com o Oriente Médio... Descubro assim o significado do companheirismo, da amizade, da parceria que ultrapassam barreiras, credos, línguas e costumes transformando, desta forma, dificuldades em reais possibilidades. Justamente destes encontros nasceu a curiosidade em entender quem seria o teuto-brasileiro. Mistura interessante, de um mundo antigo com um mundo novo, choque entre o quente e o frio, entre o cinza e múltiplos tons, ginga, cheiros e sabores tropicais. Como ocorreu esta emigração, em quais condições históricas e como se deu a adaptação em local tão diverso? Emigrantes rumo a sonhos e conquistas; ser estrangeiro não é algo fácil. Envolve a descoberta de um novo mundo e também um novo si mesmo. Para mim, o sentido e o significado disto abarcam um retorno à história do Brasil que, por sua vez, compõe minha pessoa, o meu ser na atualidade. Teço um estudo que envolve o desafio de falar também sobre mim, sobre o alemão, o brasileiro enfim, o descobrir-se sujeito. Busco alcançar a compreensão da identidade na alteridade, o tornar-se humano frente ao adverso no mundo atual, cujos desafios foram também herdados do mundo de outrora. Desafios estes em que identidades se constituem em movimento, em metamorfoses rumo à emancipação. 14 Introdução- o delineamento da questão de pesquisa O foco desta pesquisa foi a investigação do processo de construção da identidade de descendentes de imigrantes alemães que vivem no Brasil, nas regiões Sul e Sudeste do país1. Nestas, o fluxo imigratório da referida população deu-se em maior número. A pesquisa contemplou membros de diferentes gerações de descendentes alemães (filhos, netos e bisnetos) cujos ancestrais se estabeleceram em solo brasileiro até o período final da Segunda Guerra Mundial2. A escolha por tal momento histórico levou em consideração a entrada no país dos imigrantes “pioneiros”, assim reconhecidos pela literatura que refere a imigração desta população como a imigração alemã antiga. (SIRIANI, 2003) A expectativa deste estudo foi de que se desvelassem os meandros e enquadramentos sociais da constituição identitária dos teuto-brasileiros face à sua socialização em território brasileiro, bem como, a compreensão deste processo junto à composição da população brasileira pensando-se em espectro ampliado sobre suas influências na cultura. Em tempo de deslocamentos frequentes muito diversos do que foram nos séculos XIX e início do século XX, o advento da globalização e da modernidade tardia promovem a circulação facilitada de um número cada vez maior de pessoas de diversas origens, que se encontram e convivem em um mesmo espaço social (BECK, 1999). Estas trazem consigo, em sua bagagem a cultura na qual foram socializadas. Neste contexto de espaços e deslocamentos, tem-se no Brasil – país cuja miscigenação advinda de sua colonização é parte essencial de sua história e que no século XXI revelase mais uma vez como grande receptor de imigrantes – um importante “laboratório social” cujas formas até então empregadas na recepção de estrangeiros aguçam nossa curiosidade quanto a este movimento (a recepção dos que emigram e seu desenrolar). 1 Estas regiões foram contempladas em nossa pesquisa por expressarem o fluxo imigratório de alemães em maior número não desconsiderando-se a existência de outras, também receptoras desta população. 2 Período que contempla o início da imigração alemã para o Brasil até meados de 1945. 15 Desta forma, o interesse em estudar sobre descendentes de imigrantes alemães (chamados“teuto-brasileiros”) no Brasil abarcou, para além do interesse pessoal a peculiaridade da condição de vida nos trópicos à época, as experiências vivenciadas em ambiente muito diverso de sua Pátria natal e as posteriores dificuldades ocasionados pelo contexto político brasileiro. Dado o modo encontrado para sua integração social, estes sujeitos continuaram a construir o país, não mais com o caráter de imigrantes, mas como parte da nação que se tornou sua pátria e onde raízes foram criadas, modificandose a paisagem e estabelecendo-se características próprias à cultura local. “Ao longo dos anos de permanência dos imigrantes e seus descendentes no Brasil, as misturas entre a cultura local e a germânica moldaram sua identidade, única e hifenizada”. (MIRANDA, 2008) A escolha pela referida população não teve por base a porcentagem de imigrantes europeus que escolheram o Brasil como o país de morada uma vez que, de acordo com Seyferth (1994, p.3): O contingente imigratório de origem alemã não foi o mais significativo, apesar da sua continuidade: entre 1850 e 1938 não houve interrupção do fluxo, entrando no país entre 1 e 2 mil alemães por ano (numa estimativa aproximada); só a década de 1920 registrou um fluxo mais intenso (cerca de 75.000 imigrantes, aproximadamente 30 % do total desde 1824). O total de imigrantes assinalados por diversos estudiosos da imigração varia entre 235.846 (Carneiro, 1950) e 257.114 (Diegues Jr., 1964) (...). A relevância e a especificidade dessa imigração, contudo, pouco tem a ver com as estatísticas ou seu privilegiamento pelo governo imperial (...) o fato mais significativo constituiu no estabelecimento em frentes pioneiras (Waibel, 1958), ao longo de todo o século XIX e nas primeiras décadas do século XX - inicialmente com exclusividade e, mais tarde, compartilhando os assentamentos com imigrantes de outras etnias européias (principalmente italianos e poloneses) formando uma sociedade étnica, econômica e culturalmente diversa da brasileira. Essa diversidade, marcada em todos os planos da vida social, transformou-se numa questão nacional durante toda a Primeira República, atingindo seu ponto máximo de conflito durante o Estado Novo, no contexto da campanha de nacionalização (dirigida a todos os imigrantes e descendentes, mas particularmente dura com os chamados tento-brasileiros). Ainda que a imigração da referida população não tenha tido expressividade numérica, ressaltam-se dados que registram 5% do total de europeus que escolheram o Brasil como pátria, sendo de alemães (fonte: IBGE/DW-WORLD, 2010). Segundo dados de Stehling (1979) calculam-se em 18 milhões os descendentes alemães em solo brasileiro, cerca de 10% de nossa população, número que para os termos de nossa 16 pesquisa é expressivo, visto que o estudo de Stehling é datado de 1979. De acordo com Magalhães (1998), o Brasil está atrás apenas dos Estados Unidos da América em número de falantes da língua alemã, sendo o segundo país mais escolhido pelos alemães para emigrar. A idéia de estudar os aspectos da constituição da identidade de descendentes alemães surgiu durante estadia da autora (2007-2011) na Alemanha, período no qual verificou inúmeras vezes a dificuldade de integração de descendentes turcos à cultura e língua locais. Dados da imprensa alemã3 expressam grande preocupação com as chamadas políticas de integração4 ao país. Tal fato suscitou questionamentos acerca de como teria se dado no Brasil a integração de descendentes alemães, como teria sido sua adaptação ao local e à cultura? Quem são estes indivíduos, como lidaram (ou ainda lidam) com o deslocamento de seus antecessores e como a memória influenciou e/ou influencia a construção de suas identidades? Outro aspecto relevante que nos levou a escolha deste objeto, foram os sentimentos da autora (neta de alemães e de judeus russos), muitas vezes confrontada na Alemanha com questionamentos referentes a seu pertencimento: “Você é brasileira ou alemã? Talvez ambos?”; “Sim você é alemã, pois aqui o que vale é o sangue, pouco importa o local de seu nascimento”; “Tem o passaporte, então é alemã de verdade”; “Ah sim você não é alemã, é teuto-brasileira.” Ao final, caber-nos-ia responder quem éramos/quem somos a nós mesmos, compreender tal construção. Neste constante autoquestionamento sobre o “eu” em uma nação que não aquela de nosso nascimento fomos tomados, muitas vezes, pela ideia de “duplo pertencimento” e por um sentimento de encontrarmo-nos em um “entre lugares” (BHABHA, 2001) tema este, sem dúvida, disparador de conflitos que nos coloca frente à (re)construção permanente de 3 Welt online. A integração dos turcos - um mal entendido. WELT ONLINE. Türkische Integration- ein Missverständnis. Integração dos turcosum mal entendido. Disponível em<http://www.welt.de/satire/article1663983/Tuerkische_Integration_ein_Missverstaendnis.html> (acesso em 10.09.2011) 4 Política que visa a integração como um processo de diminuição das diferenças entre migrantes e não migrantes na Alemanha. Maiores informações em Friedrich HECKMAN. A evolução recente da política de integração na Alemanha e na Europa, 2010. 17 identidade(s) a partir de suas metamorfoses. Este tipo de questionamento acabou por tornar-se cada vez mais pertinente, à medida que nossos colaboradores da pesquisa mencionavam semelhante conflito, muitas vezes, cercados de incômodos. Em diversas localidades do Brasil, em especial na região Sul, marcas da imigração alemã são evidentes. O Estado de Santa Catarina é considerado o mais “alemão” do Brasil. Aproximadamente 35% (a maior porcentagem dentre os Estados brasileiros) da sua população possui ascendência alemã. As cidades do interior do Estado ainda preservam a arquitetura germânica das casas, bem como, a língua alemã e festas populares, como a Oktoberfest. Importa ressaltar que a imigração alemã no Sul do Brasil deixou marcas profundas na composição da população. Nos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul a cada três pessoas, uma tem origem alemã. Números menores encontram-se no Paraná e em todo o Sudeste e Centro-Oeste do país. No ano 2004, a imigração alemã no Brasil completou 180 anos. Estima-se que haja um milhão de falantes do idioma alemão no Brasil, sendo em sua grande maioria bilíngues. (fonte: DW-WORLD,2011) Dentre alguns aspectos históricos desta imigração, houve um muito significativo dado na história recente do Brasil, que provocou influências importantes no modo de vida de imigrantes alemães5 e seus descendentes. Segundo Seyferth (1989, 1991) e Willems (1980) o Governo Federal Brasileiro determinou durante o Estado Novo a extinção das instituições comunitárias, proibiu o uso da língua alemã e publicações em alemão. Enviou unidades do exército a várias cidades situadas nas regiões de colonização. Tal fato, justificado pelo chamado “perigo alemão”6 ocorreu em 1937 perdurando até o final da Segunda Guerra Mundial em 1945. O plano de construção do Estado Nacional no Brasil do período de Vargas visava acabar com a descentralização do poder e promover um projeto de “uniformização e consolidação de uma identidade nacional.” (SANTANA, 2010, p. 245). 5 As influências do período do Estado Novo não foram privilégio dos imigrantes alemães, mas também dos japoneses, italianos e judeus. 6 O perigo alemão constituiu-se pelo temor de que a Alemanha anexasse áreas de colonização alemã no Brasil, ou ainda, que mantivesse algum tipo de influência nestas regiões (GERTZ, 1991). 18 Diversos aspectos definem este período, sendo de especial relevância a proibição de manifestações de qualquer ordem por grupos estrangeiros. Deu-se, por exemplo, o ataque ás chamadas ideologias alienígenas, denominação dada ao modo de viver próprio dos grupos de estrangeiros e a preocupação com a fixação da língua portuguesa e da cultura brasileira. “Neste período se inicia a afirmação de uma identidade nacional, na qual os colonos alemães de alguma maneira serão assimilados” (idem, 2010). Estes fatos e outras informações históricas serão contemplados no primeiro capítulo deste trabalho. Partindo-se do pressuposto de que as colônias alemãs da época já teriam lugar e papel definidos no Brasil, bem como por parte se deus componentes, sentimentos de acolhimento, como se constituiriam identidades a partir daí? Para Hall (2011) a identidade torna-se uma “questão” quando se está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza. A identidade não existe senão como um processo de construção e pressupõe o reconhecimento da alteridade para sua afirmação. De acordo com Santos (2010), a Identidade Nacional seria “uma identidade coletiva organizada em torno do Estado-Nação7 e estaria fundada sobre o princípio da autoridade, colocado acima da solidariedade. O nacionalismo constrói a idéia de totalidade: um povo, uma nação, uma cultura, uma língua” (p.30-31). Contudo, o nacionalismo possui um caráter étnico, uma vez que na origem da idéia de nação está a de uma comunidade étnica. 4A idéia de Estado-nação nasceu na Europa em finais do século XVIII e inícios do século XIX. Provém do conceito de "Estado da Razão" do Iluminismo, diferente da "Razão de Estado" dos séculos XVI e XVII. A Razão passou a ser a força constituidora da dinâmica do Estado-nação, principalmente quanto a administração dos povos. A ideia de pertença a um grupo com cultura, língua e história próprias, a uma nação, foi sempre uma das marcas dos europeus nos últimos séculos, ideal que acabariam por transportar para as suas projeções coloniais. Há um efeito psicológico na emergência do Estado-nação, pois a pertença do indivíduo a tal estrutura confere-lhe segurança e certeza, enquadramento e referência civilizacional. O Estado-Nação afirma-se por meio de uma ideologia, uma estrutura jurídica, a capacidade de impor uma soberania sobre um povo, num dado território com fronteiras, com uma moeda e forças armadas próprias. É na sua essência conservador e tendencialmente totalitário. Mais informações em Benedict Anderson “Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo.” Tradução Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 2008 19 Na prática, o nacionalismo está ligado à ideia de pertencimento e justamente por isso, o imigrante que possui uma identidade dupla, é uma contradição dentro da categoria de Estado-Nação. O duplo pertencimento coloca o problema da lealdade nas redes de participação. (SANTOS, 2010, p.30-31) Conforme Santos (2010a) o problema do duplo pertencimento é frequente a partir da segunda geração de imigrantes. “A primeira geração está ligada à identidade do país de origem, enquanto a segunda geração se sente dividida entre a identidade dos pais e a do país de acolhida” (p. 31). Quanto à identidade nacional, salienta Llobera (1996 apud SANTOS, 2010a, p. 31): Nas suas origens e na sua essência, a identidade nacional é uma tentativa de preservar os costumes dos nossos antepassados. O nacionalismo põe em destaque a necessidade das raízes e da tradição na vida de qualquer comunidade. A identidade se constrói através de relações, isto é processual e relacional e, portanto, capaz de se adaptar às transformações sociais e pode ser vista como construção social de pertencimento. Em época de globalização é oportuno lembrar que a identidade marca distância, mas também aproximações. (SANTOS, 2010a, grifo nosso DP) Para que se entenda a identidade é preciso compreender o processo de sua produção. “A identidade é a articulação da diferença e da igualdade” (CIAMPA, 2001, p. 138). É a estrutura social mais ampla que oferece os padrões de identidade; neste sentido, também se pode dizer que as identidades em seu conjunto refletem a estrutura social, ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou transformando-a. Ciampa traz a visão de que em cada momento da existência do indivíduo, embora sendo uma totalidade, manifestam-se partes de si como desdobramento das múltiplas determinações as quais está sujeito. De acordo com Santos (2010a), o processo de identidade é negociado e permanentemente construído e reconstruído nas trocas simbólicas sociais. No Brasil a 20 idéia de identidade cultural8 é utilizada para o estudo de grupos migrantes, sendo freqüentemente intercambiada com o conceito de organização (SANTOS, 2010a; DANTAS, 2010) e de memória (POLLAK, 1989, 1992) uma vez que esta, sendo relativamente constituída efetua um trabalho de manutenção, coerência, unidade, continuidade e organização. A memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo e social, construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. (POLLAK, 1992). Pollak (1992) em seu estudo sobre memória e identidade social, afirma que a memória tem características flutuantes e mutáveis, tanto individual quanto coletivamente e na maioria das memórias existem marcos ou pontos invariantes e imutáveis. Ao questionar quais são os elementos que constituem a memória individual ou coletiva, entende que são os acontecimentos vividos pessoalmente e aqueles vividos por tabela, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa julga pertencer. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar de uma memória quase herdada. (POLLAK, 1992, p. 2) O mesmo autor se refere à existência de acontecimentos regionais que traumatizaram muito e marcaram tanto uma região ou grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação. Arruti (2002) contribui neste sentido, ressalta que memórias e identidades não são entidades fixas, 8 “A identidade cultural é um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve o compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço. Como consequência do processo de globalização, as identidades culturais não apresentam hoje contornos nítidos e estão inseridas numa dinâmica cultural fluida e móvel”. Identidade Cultural: Em Dicionário de direitos humanos: Disponível em <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Identidade+cultural> (acesso em 10.09.2011). 21 mas representações e construções da realidade, fenômenos mais subjetivos do que objetivos. Na perspectiva da transmissão psíquica dentro da família, autores como Neuberger (1999) e Andolfi (1984) retratam a memória como transmissão capaz de deter as informações necessárias para articular o projeto fundador da família. A história de uma família é uma trama complexa e singular de histórias individuais, vínculos intergeracionais e experiências compartilhadas que se sucedem em tempo que se toma forma, não na sucessão dos anos, mas no perpetuar-se das gerações. Sugere a necessidade da presença de uma continuidade histórica e evolutiva entre os significados que diferenciam modelos de relação do passado e do presente, o que se trata da identidade cultural de uma família. (ANDOLFI, 1984) Sayad (1998) salienta a contradição dupla existente na imigração: representa um estado provisório que se prolonga indefinidamente, ao mesmo tempo em que se torna um estado definitivo, vivido com o sentimento de provisório. Koltai (1997) acrescenta que para o senso comum, estrangeiro é alguém que vem de outro lugar, não está em seu país e, ainda que em certas ocasiões possa ser bem-vindo, na maioria das vezes é passível de ser mandado de volta para seu país de origem, repatriado. “A categoria sócio-política que o estrangeiro ocupa o fixa numa alteridade que implica numa exclusão, necessariamente.” (KOLTAI, 1997, p. 8). Pensando-se tais questões na realidade social do cotidiano, iluminam-nos Berger e Luckmann (1996) com sua descrição do mundo da vida cotidiana “não somente tomado como uma realidade certa pelos membros da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem às suas vidas, mas um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles” (p. 36). Aqui o interesse é o caráter intencional comum de toda consciência. A realidade da vida diária não se esgota nas presenças imediatas, mas abarca fenômenos que não estão presentes ‘aqui’ e ‘agora’. A zona da vida cotidiana diretamente acessível a minha manipulação corporal é a zona que se acha ao meu alcance, o mundo em que atuo a fim de modificar a realidade dele, ou o mundo em que trabalho (...) (BERGER e LUCKMANN, 1996, p. 39). 22 Segundo os autores, o interesse nas zonas distantes (como o passado) é menos intenso e menos urgente. O interesse maior do sujeito é o aglomerado de objetos implicados em ocupações diárias, porém o trabalho efetuado nas zonas mais distantes poderá afetar a vida cotidiana. Ciampa (2001) coloca que algumas personagens que compõem nossa identidade sobrevivem até mesmo quando nossa situação objetiva mudou radicalmente. É a estrutura temporal que fornece a historicidade que determina a situação do sujeito no mundo da vida cotidiana. “Nasci em certa data, entrei para escola em outra data, comecei a trabalhar como profissional em outra, etc. (...).” (BERGER e LUCKMANN, 1996, p. 45). Estas datas, contudo, estão localizadas em uma história muito mais ampla e esta localização configura decisivamente a situação do indivíduo. Logo, a estrutura temporal da vida cotidiana também impõe à biografia, uma totalidade. E é nesta estrutura temporal que a vida cotidiana conservará para o indivíduo o sinal de realidade. Neste sentido, tomaremos como ponto de partida a caracterização de Ciampa (2001), que coloca a importância da identidade como metamorfose e nunca como algo cristalizado. Em sua visão, cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida, um projeto de vida no emaranhado das relações sociais. A discussão acerca das questões identitárias e seu desenrolar partindose da socialização, individualização e o sintagma desenvolvido por Ciampa (2001) serão abordados no capítulo dois. Nos mais de 180 anos de imigração alemã no Brasil, suas influências fizeram-se presentes em diversos setores (sobretudo, do ponto de vista econômico, visto, por exemplo, o grande número de empresas alemãs em território brasileiro, à exemplo de São Paulo9). No entanto, a integração e desenvolvimento dos imigrantes e de seus descendentes no país, sua inserção cultural, como esta se deu e vem se constituindo no 9 São Paulo é considerado o maior pólo da indústria alemã fora da Alemanha. Fonte: <http://www.dw.de/s%C3%A3o-paulo-celebra-180-anos-da-imigra%C3%A7%C3%A3o-alem%C3%A3/a4411676> (acesso em 29.08.2013) 23 processo da construção de identidades, levando-se em conta origem, história, relações intersubjetivas, o modo como foram socializados, além de sua busca por reconhecimento, merecem maior visibilidade e justificam a relevância deste estudo. Sua constituição enquanto sujeitos e cidadãos reflete diretamente suas relações sociais e posicionamentos frente à sociedade que os acolheu, fazendo frente ao que continuarão construindo nesta. No que se refere à contribuição científica desta pesquisa, constatou-se que a maior parte dos estudos encontrados sobre a referida população é predominante do campo da História e visam em geral, um contexto político. Dentre o material encontrado pouco se fala da história de vida e construção da identidade e metamorfoses presentes na vida de imigrantes alemães e/ou seus descendentes no Brasil, mas sim de sua representação social, por exemplo, seu “status” enquanto “herdeiros do nazismo”. Assim, algumas questões envolvendo a ideia de anamorfose e o “ser estrangeiro” são apresentadas no capítulo três. No quarto capítulo conferiu-se espaço para o olhar dos sujeitos colaboradores desta pesquisa, que em suas narrativas de vida trouxeram temas que iluminam os capítulos anteriores; bem como abrem portas para a discussão de seus pontos de vista que proporcionaram reflexões e considerações, sobre quem afinal são- no capítulo cinco. Desta forma, buscou-se com este estudo dar existência a um levantamento que sirva como ferramenta útil que contribua não só com a Psicologia Social e os estudos de identidade, mas também para maior compreensão do processo da formação da população brasileira. Buscou-se ampliar o olhar sobre a compreensão dos movimentos migratórios e sua influência nas relações sociais de modo que pudesse ir além de estereótipos consolidados ou opiniões de especialistas. Conforme as palavras de Ciampa: “A questão da identidade deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente acadêmica: é, sobretudo, uma questão social, uma questão política.” (2001, p.127) 24 Para que se abarcassem as diferentes formas das vivências do sujeito, que ora representam contradições de si mesmos trabalhou-se com o conceito de personagem (CIAMPA, 2006) que não perde a relação com o papel, mas que permite considerar as possíveis variedades, sejam elas grupais, sejam também, individuais. Em seu conjunto as identidades constituem a sociedade (CIAMPA, 2001) e com este olhar, o presente estudo buscou contribuir com a compreensão da construção da identidade dos teuto-brasileiros que por sua vez, são parte da constituição da identidade coletiva da sociedade brasileira. Buscou-se, pois, refletir criticamente sobre desdobramentos e pertinências deste contexto, frente o processo de constituição identitária dos descendentes entrevistados. OBJETIVOS Geral: Compreender a construção da identidade de descendentes alemães (teutobrasileiros) considerando sua socialização em parte do território brasileiro, bem como, a situação da imigração frente à autodefinição do eu. Específicos: Entender como se dá a compreensão de sua identidade cultural (sentimentos de pertencimento) frente às formas de socialização vivenciadas; Identificar fatores que possam dificultar ou facilitar a mudança que a migração ocasiona para o sentido de quem se é e como isto difere entre os diferentes contextos histórico-políticos. O CAMINHO METODOLÓGICO O enquadramento teórico desta pesquisa se vincula à escola de Frankfurt, também conhecida como teoria crítica da sociedade, particularmente à dita segunda geração (HABERMAS, 1983) em cujo contexto se insere a teorização de A. C. Ciampa (1987) com sua tese de que a identidade é metamorfose. A teoria crítica da sociedade 25 propõe um pensamento questionador. Questiona, sobretudo, as relações de poder decorrentes do sistema social em que vivemos. Considera os fenômenos estudados a partir de suas determinações histórico-sociais e sua orientação para a emancipação humana. Segundo Goulart (2009) Habermas manifesta a necessidade de se estudar de forma reconstrutiva o modelo concreto de relacionamento entre o Estado, as instituições políticas e a sociedade. Com o filósofo frankfurtiano, reportaremo-nos a uma perspectiva de estudos críticos de macro alcance, que nos projeta nas relações políticas, sociais e comunitárias- em múltiplas formas e modos (SPINK & SPINK, 2006). O método escolhido para o estudo se insere na abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa refere-se, em amplo sentido, a descrições detalhadas de situações com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. “Como a realidade social só aparece sob a forma de como os indivíduos veem este mundo, o meio mais adequado para captar a realidade é aquele que propicia ao pesquisador ver o mundo através dos olhos dos pesquisado” (GOLDENBERG, 2005, p. 27). As chamadas metodologias qualitativas privilegiam de modo geral a análise de micro processos, através do estudo das ações sociais individuais e grupais (MARTINS, 2004). A pesquisa qualitativa debruça-se sobre o conhecimento de um objetivo complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que se expressa o sujeito concreto. A história e o contexto que caracterizam o desenvolvimento do sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e plasticidade do fenômeno subjetivo (GONZÁLEZ-REY, 2002). Para a coleta de dados, utilizou-se o Método de História de Vida, pertencente às metodologias qualitativas10 (Abordagens Biográficas). Este método objetiva apreender 10 De acordo com Antunes (2012) a predileção pela pesquisa qualitativa, com uso do método de história de vida em especial, aparece em grande parte das pesquisas desenvolvidas pelo NEPIM (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade e Metamorfose da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) caracterizando-se um fazer científico enquanto práxis social. Segundo a autora, “a aplicação de metodologia biográfica tem contribuído com a prática de uma Psicologia Social conciliada à Teoria Crítica, evidenciando as determinações histórico-culturais de um fenômeno atento à direção, mais ou menos emancipatória dos sujeitos em ação e relação.” (p. 2) 26 as articulações entre a história individual e a história coletiva, em uma ponte entre a trajetória individual e a trajetória social (SILVA, 2007). Emolduradas na metodologia qualitativa, as abordagens biográficas caracterizam-se por um compromisso com a história como processo de rememorar, com o qual a vida vai sendo revisitada pelo sujeito. O método da História de vida funciona como possibilidade de acesso do indivíduo a realidade que lhe transforma e é por ele transformada, na busca da apreensão do vivido social, das práticas do sujeito por sua própria maneira de negociar a realidade onde está inserido (BARROS, 2000). Este método tem como objetivo o acesso a uma realidade que ultrapassa o narrador. Por meio da história de vida contada da maneira que é própria do sujeito, tenta-se compreender o universo do qual o indivíduo faz parte. Isto nos mostra a faceta do mundo subjetivo em relação permanente e simultânea com os fatos sociais. (CAMARGO, 1984) Segundo Goldenberg (2005) a utilização do método biográfico em ciências sociais e humanas é uma maneira de se revelar como as pessoas universalizam, através de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem. O método biográfico pode acrescentar a visão do lado subjetivo dos processos institucionais estudados, como as pessoas concretas experimentam estes processos e levantar questões sobre esta experiência mais ampla. Becker (1994) enfatiza o valor das biografias, atribuindo grande importância às interpretações que as pessoas fazem de suas próprias experiências como explicação para o comportamento social. Para Ferrarotti (1983) citado por Goldenberg (2005), cada indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura social e é possível “ler uma sociedade através de uma biografia conhecer o social partindo-se da especificidade irredutível de uma vida individual” (GOLDENBERG, 2005, p.36). Queiroz (1988) complementa, com sua visão de que o indivíduo é um fenômeno social e desta forma, aspectos importantes de sua sociedade e grupo, bem como, comportamentos, valores e ideologias podem ser apanhados através de sua história. “A história de vida é, portanto, técnica que capta o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social.” (p.36) A análise do conteúdo expresso pelos colaboradores da pesquisa contemplou a perspectiva hermenêutica-crítica, que consiste em explorarem-se ou deduzirem-se 27 definições de situação que o texto transmitido pressupõe, a partir do mundo da vida do autor e de seus destinatários (HABERMAS, 1987). A interpretação hermenêutica no âmbito das metodologias qualitativas busca reconstruir os processos interativos que produzem o sentido prático ou a construção social da realidade (KÖLLER, 2003). Minayo (1996, p. 220) apud Szymanski (2002, p.65) define a hermenêutica como “a busca de compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos”. A autora enfatiza a importância que a hermenêutica dá para as condições da vida, situadas sócio-historicamente. Dos procedimentos de pesquisa às considerações éticas - o caminhar do pesquisador Em um primeiro momento a coleta de dados dar-se-ia por meio da execução de entrevistas abertas com membros de três gerações de famílias de descendentes alemães (por exemplo, avô, pai e filho) em uma cidade do Sul do Brasil. Este procedimento fora elaborado em virtude do contato já estabelecido com a AMIG (Associação PróMemória da Imigração Germânica) que proporcionaria indicações de pessoas a contribuírem com relatos. Visava-se a indicação de sujeitos que tivessem vivido o período conhecido por “Estado Novo”11 ainda que não pessoalmente, em forma de memórias. Contudo, tal contato não se desenvolveu de acordo com as expectativas supracitadas. As indicações cedidas pela AMIG foram de ordem bibliográfica e não o contato direto com pessoas. Desta forma, iniciou-se um período de revisão da forma de abordagem dos sujeitos e coleta de dados. Posteriormente acionou-se (por meios eletrônicos, telefônicos e também pessoalmente) cinco escolas alemãs (sendo uma suíço-brasileira), um hospital alemão, institutos de cultura e ensino da língua, clubes recreativos, restaurantes, associações, a Câmara de Comércio Brasil Alemanha e uma instituição de longa permanência para 11 A escolha por este período da História do Brasil apontava o impacto causado nas vidas dos sujeitos, impacto este que pudesse ter alcançado também as gerações mais jovens de descendentes alemães. 28 idosos alemães na cidade de São Paulo. Houve ainda, a tentativa de contato com diversos sites de relacionamento e blogs na internet, bem como, com professores da língua alemã (encontrados por meio de anúncios, expostos em murais de duas Universidades em São Paulo). A mesma estratégia foi utilizada ao tentarem-se contatos com sujeitos potenciais colaboradores, em Curitiba, Londrina, Florianópolis e Porto Alegre (cidades representantes dos Estados contemplados12 nesta pesquisa, onde nos foram indicadas pessoas e associações culturais). A descrição da trajetória do contato com sujeitos colaboradores da pesquisa faz-se relevante. Demonstra o grau de dificuldade da aproximação com esta população. Assim sendo, mudou-se a estratégia sem que, contudo, se alterassem as premissas de investigação. A nova tática constituiu-se em apresentar a proposta de pesquisa à pessoas de nosso relacionamento na academia e também no convívio social cotidiano, bem como em eventos científicos e encontros promovidos por associações comerciais e culturais alemãs (sempre atentos, observando os lugares13 que frequentávamos) e auxílio de informantes14, cujo conhecimento do universo dos descendentes alemães, bem como experiências pessoais e de trabalho colaboraram muito com a pesquisa. Sugere-se aqui o que M.J.Spink (2007) denomina “pesquisar no cotidiano” (p.7) 12 Ressalta-se que não se focalizou uma cidade em especial, mas sim a apreensão de uma diversidade dentro do Sul e do Sudeste do Brasil, à partir de contatos indicados. 13 Cabe aqui alusão à ideia desenvolvida por Peter Spink (2008) sobre os micro lugares. Seu propósito é de “chamar a atenção para a importância do acaso diário, dos encontros e desencontros, do falado e do ouvido em filas, bares, salas de espera, corredores, escadas, elevadores, estacionamentos, bancos de jardins, feiras, praias, banheiros e tantos outros lugares” (p.70) de encontros ou breves encontros, onde o pesquisador atento está de passagem. O autor cita Law & Mol (1995) ao explicar que os micro-lugares tratam-se de uma inserção horizontal do pesquisador nos encontros diários, encontros que não são abstratos, mas que ocorrem sempre em lugares, com suas sociabilidades e materialidades. (P.SPINK, 2008, p. 70) 14 Agradeço imensamente o auxílio e disposição de Jorge Bodanzky e Carminha Gongora, que cooperaram de modo inestimável com sua atenção e informações sobre o campo de pesquisa. 29 (...) se pesquisarmos no cotidiano, seremos partícipes dessas ações que se desenrolam em espaços de convivência mais ou menos públicos. Fazemos parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartimos de normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada dessas interações. Em meio ao olhar voltado para o cotidiano15, foi possível chegarmos a seis colaboradores e um informante que não nos contou sua história de vida, mas sim sua experiência junto à população foco desta pesquisa. Todavia, a ideia inicial de coletaremse relatos de gerações de uma mesma família não obteve êxito. Ora pelos entrevistados não quererem que outras pessoas de sua família falassem, ora pela não existência de outras gerações ou mesmo, pelos sujeitos não estarem abertos ao contato para entrevistas. Ressalta-se o estranhamento da obtenção de respostas negativas por todas as outras formas de contato com colaboradores (em sendo os centros de língua, cultura e escolas fontes supostamente “interessadas”), bem como em nosso contato pessoal com descendentes alemães em restaurantes e/ou associações. Supõe-se, a partir deste fato dado no campo, a existência de questões ainda não elaboradas que permeiam o imaginário dos descendentes em formas de não ditos16. É possível que o mal estar gerado no tocante ao tema “ser alemão” esteja associado com os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Por outro lado, em se pensando o silêncio institucional, uma abertura para o diálogo poderia promover justamente a dissolução de preconceitos e maior 15 Fausto (1991) em trabalho intitulado Historiografia da imigração para São Paulo, retrata às várias interfaces da mobilidade social das diversas etnias que vieram para o estado de São Paulo. Em referência às ações cotidianas, ressalta a importância de estudos que levem em conta dimensões da experiência de vida, o que implica um fazer da história, uma história necessariamente social. Esta, diz respeito a um olhar da vida familiar, das relações na escola, dos negócios e das especializações profissionais. 16 Para iluminar esta relação, buscou-se inspiração em Claude Olievenstein (1989). Segue o que o autor coloca sobre o não dito: “(...) o não dito é o que vem ao imaginário do sujeito de tal maneira que ele sabe que o imaginário do outro sabe, mas que a lei do outro não pode aceitar saber abertamente.” (p.7) Olievenstein acrescenta ainda, que convém analisar o não dito “nas instâncias importantes da vida e em sua influência no plano das instituições e seu modo de interação e relação.” (p.17) O não dito é algo instável e vivo, em constante modificação que se esforça para “manter homeostase aceitável entre um psiquismo adaptado ao combate da vida e os grandes e pequenos medos (...).” (idem, ibidem) 30 transparência no que se refere à história e sua construção, que não se interrompe nos acontecimentos passados, podendo ser repensada ou mesmo reformulada quando há espaço para o debate. A não abertura para o diálogo ressalta-se, demonstra o não lidar com o inesperado, mas também, a não abertura para uma nova possibilidade de construção para este inesperado. As entrevistas concedidas foram gravadas e transcritas. Posteriormente deu-se a análise das histórias de vida, tomando-se por base categorias que nortearam os discursos dos sujeitos, fazendo-se uso do sintagma17 desenvolvido por A. C. Ciampa (identidademetamorfose-emancipação). Deste, desdobraram-se elementos cuja análise se estabeleceu. A análise do material, elencada ao sintagma proposto por A. C. Ciampa, teve o entendimento deste como metacategoria de pesquisa. Dando lugar a extração de categorias, portanto, “fornecidas pelo próprio participante do estudo” (MOURA et al., 1998, p. 91) e além disso, na interpretação dos dados procurou-se verificar a adequação dos dados ao referido sintagma, pela mediação das categorias extraídas do material coletado “buscando conhecer o modo pelo qual se daria a evolução do fenômeno no tempo.” (CONTRANDRIOPOULOS et al., apud MOURA et al., 1998, p. 92) visando assim “determinar até que ponto os dados obtidos se mostram úteis e informativos para os objetivos do estudo.” (HIGHLEN & FINLEY apud MOURA et al., 1998, p. 92). Foram observados aspectos legais, de acordo com a Resolução 196/96 de proteção ao sigilo e procedimentos adotados em pesquisas acadêmicas. O contato com o 17 Na definição de Campos (2013, p. 20) sintagma é um segmento linguístico que expressa uma relação de dependência. Nessa relação de dependência, diz-se que existe um elemento determinado e outro determinante (ou subordinado), estabelecendo um elo de subordinação entre ambos. Cada um desses elementos constitui um sintagma. Na concepção original de sintagma, essa noção era utilizada para se referir a qualquer segmento linguístico: a palavra, a sentença e o período. Mais recentemente, o termo sintagma é comumente empregado para se referir às partes da sentença. O sintagma IDENTIDADEMETAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO, proposto na psicologia social e trabalhado nos diferentes campos de atividade humana revela exatamente essa interdependência, onde um não pode ser discutido sem o outro. 31 sujeito de pesquisa exige do pesquisador uma postura ética, a qual, além dos procedimentos rotineiros que envolvem o esclarecimento dos termos da pesquisa, o consentimento do entrevistado e a possibilidade dos sujeitos terem acesso ao conteúdo do trabalho após o término e de manterem contato com a entrevistadora para eventuais dúvidas e observações posteriores ás entrevistas, pressupõe também cuidados como a não indução de questões, a não interferência em respostas indicadas pelos sujeitos, a proposição de questões abertas, não diretivas, que propiciem que os pesquisados escolham como narrar suas próprias histórias, realizando seu próprio caminho na exposição do tema. 32 Capítulo 1 Localização histórica do objeto de estudo Localizar historicamente os objetos a serem estudados é uma forma de se partir de princípios definidos, estabelecidos pela realidade construída materialmente e dado o delineamento histórico, encarar tal objeto em suas nuances mais sutis, até concepções no presente. Pretende-se com este capítulo, emitir visão panorâmica acerca da história dita “oficial” da imigração alemã para o Brasil, conferindo-lhe detalhes sobre aspectos correspondentes a ambos os países- Alemanha e Brasil, que perpassaram interesses dos indivíduos envolvidos neste processo. Almeja-se ampliar a compreensão acerca do movimento migratório na perspectiva da história não oficial, aquela a ser relatada pelos sujeitos colaboradores desta pesquisa, na construção de suas identidades, na apreensão de suas histórias vividas e compartilhadas. Ao localizar o sujeito em sua história, se alcança sua constituição com espectro ampliado, deste, enquanto ser atuante na sociedade, na percepção que tem desta e de como a resignifica, promovendo sentido à própria existência. Como colocado por Prost (2008, p.133) “a história está aparentemente empenhada em conciliar contradições”: (...) tem necessidade de fatos, extraídos de fontes; no entanto, sem que sejam questionados, os vestígios permanecem silenciosos e nem sequer são “fontes”. A história aparece de preferência como prática empírica, uma espécie de atividade amadorística em que ajustes, incessantemente diferentes, conseguem juntar materiais de textura variada ao respeitar, em maior ou menor grau, exigências contraditórias. (PROST, 2008, p. 133) Ainda neste sentido, é inspiradora a fala de Sérgio Buarque de Holanda em sua introdução à Davatz (1980, p. 45): (...) para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história. Exercício difícil e cheio de seduções perigosas, onde faltam pontos de apoio seguros, levará facilmente a aceitar seus resultados como a única verdade digna de respeito (...). 33 Localizando o sujeito a partir de um breve resumo da história da colonização alemã no Brasil (fonte: arquivo Martius Staden)18 A onda imigratória alemã para o Brasil teve seu início na abertura dos portos brasileiros às nações amigas, pelo príncipe regente D. João VI, no ano de 1808. Foi incrementada após o decreto de 25 de novembro do mesmo ano, que possibilitou o acesso à propriedade fundiária a estrangeiros, incentivando a entrada de grupos imigrantes de variadas procedências. Petroni (1982 apud SIRIANI, 2003) refere-se à imigração como fator civilizatório, sobretudo. A presença dos alemães no Brasil no período colonial, ainda que em números diminutos, representou uma imigração de qualidade, na medida em que no país permaneceram estudiosos, artistas, engenheiros, artífices e militares de origem alemã (SIRIANI, 2003). Willems (1980) considera a etnia definida linguisticamente19 para chegar ao número máximo de cerca de 500 mil imigrantes de língua alemã, desde meados de 1827 18 Foto obtida no site http://www.martiusstaden.org.br/ acesso em 06.09.2013 19 Em sendo este estudo sobre identidade, cabe menção a este fato como prática vigente a época, que não levou em consideração as diferenças e especificidades destes grupos. Em se considerando grupos como “iguais” ou mesmo próximos devido à língua dá-se vazão a uma série de questões ligadas ao reconhecimento. Tenchena (2010) em seu estudo relacionado à memória de mulheres ucranianas no Paraná ressaltou a manutenção da língua como fator principal para diferenciação entre os diversos grupos étnicos que viviam em regiões próprias. Segundo a autora, a manutenção da língua dos ucranianos, não era para que não se integrassem no Brasil ou mesmo, seus descendentes não se considerassem brasileiros não falando o português, mas para que se diferenciassem dos poloneses, por exemplo. No caso dos alemães é interessante que de modo geral (senso comum), se nomeiam “alemães” todos aqueles que falam o idioma, independentemente de serem suíços, austríacos etc. 34 até 1940, incluindo este número também imigrantes da Áustria, Rússia, Polônia, Tcheco-Eslováquia e Suíça. A imigração alemã, numericamente, foi muito menos significativa do que a italiana, portuguesa, espanhola e japonesa. Também não apresentou período de maior afluxo; caracterizou-se por entradas mais ou menos constantes20 no período de 1850 a 1919, com aumento brusco na década de 1920, relacionados à dificuldade do pós-guerra na Alemanha (SEYFERTH, 1994). Ainda que menor em relação a outros grupos étnicos, sua importância no contexto imigratório brasileiro, contudo, tem a ver com a forma de participação no povoamento dos três estados do Sul do país (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) que ocorreu em zonas pioneiras e com a formação cultural de comunidades com traços específicos. Segundo Huber (2007, p. 280) especificidades étnicas visíveis na organização comunitária dos imigrantes que se dirigiam para centros urbanos chamou a atenção dos nacionalistas brasileiros, gerando situações de conflito que perduraram até a década de 1940. Os pontos mais críticos foram, entretanto, alcançados na época das duas Guerras Mundiais. Na avaliação de documentos, Magalhães (1998) refere o desejo da realização da utopia dos alemães por conquistar o “Novo Mundo” (p.24), onde havia terras abundantes e trabalho para todos. De acordo com Huber (2007) a colonização começou em 1818, com a colônia Leopoldina– nome da imperatriz que estimulou a imigração alemã, na Bahia, seguido da fundação de Nova Friburgo na região serrana do Rio de Janeiro em 1819, por imigrantes suíços. Em 1824, com a fundação da bem sucedida colônia de São Leopoldo no Rio Grande do Sul, iniciou-se a imigração considerada oficial, seguida de 20 Em 1859 o Decreto de Heydt proibiu a imigração de cidadãos prussianos (depois estendida a outros estados alemães) para o Brasil, efeito das denúncias sobre o regime de colonato em São Paulo agravadas pela publicação do livro de Thomas Davatz em 1858- um relato sobre a revolta dos colonos da fazenda de Ibiacaba, em São Paulo. (mais informações em DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil: 1850. Ed. Itatiaia, São Paulo, 1980). A proibição foi revogada apenas para os três Estados do Sul, apesar dos relatos publicados na Europa por imigrantes retornados, que apontavam dificuldades enfrentadas por alemães no Brasil. (SEYFERTH, 1994) 35 diversas outras colônias no Rio Grande do Sul e também em Santa Catarina e no Paraná, além de outras, mais esparsas, em Minas, São Paulo e Espírito Santo. Em Santa Catarina são povoadas as principais bacias hidrográficas, os conhecidos ''vales'' de imigrantes alemães, como o Vale do Itajaí, Vale do Cachoeira e outros. (HUBER, 2007, p. 280) A autora enfatiza a participação dos alemães no processo de colonização do Brasil, já desde a fundação da primeira colônia na Bahia, em 1818. Com presença significativa em cidades como São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, a maioria encontrouse engajada em projetos baseados na pequena propriedade familiar, nas zonas rurais da região Sul. Davatz (1980) acrescenta que no Sul do Brasil, verdadeiros colonos foram recebidos, ou seja, entravam imediatamente na posse da terra e passavam a viver como proprietários rurais. Seyferth (2000a) coloca que, como um todo, o sistema de colonização produziu um campesinato com características próprias, tendo como unidade básica a pequena propriedade familiar no curso de um processo de povoamento que correspondeu a sucessivas levas de imigrantes, no período que foi de 1824 até o início da década de 1930, com progressiva diminuição do fluxo imigratório na década de 1930. A colônia alemã indicava um estilo de vida distinto21, com culturas camponesas diversas, costumes, hábitos e organização comunitária estruturada num contexto vivido como pioneiro22, quando o contato com a sociedade nacional abrangente era restrito à parcela da população envolvida na atividade comercial ou residente nos núcleos urbanos (SEYFERTH, 2000b). Ainda neste contexto, cabe ressaltar a existência de grande heterogeneidade cultural dentre os imigrantes alemães. Grande parte deles adentrou o 21 Magalhães (1998) ressalta que os imigrantes alemães, para além de bagagens e sonhos, trouxeram consigo o desejo de recriar seu mundo, formas de sobrevivência e de manifestações culturais inspiradas em suas memórias, somando-se às experiências de seu novo universo. Com relação a isto o estudo de Cabreira (2002) sobre memórias da imigração síria e libanesa em São Paulo, retrata que o desejo de recriação do próprio mundo é comum entre imigrantes, sendo claramente compreendido pelo referencial geográfico ligado ao estudo das paisagens, explorado pela autora. 22 “A imagem que emerge nos discursos sobre o pioneirismo é a da conquista pelo trabalho: a colônia, como espaço construído, onde a floresta vai sendo paulatinamente substituída pelas plantações, comércio, escolas, cooperativas, associações, igrejas e, finalmente, pelas cidades e indústrias, no curso de um processo histórico de colonização visualizado pela ótica do progresso.” (SEYFERTH, 2000a., p. 161) 36 Brasil muito antes da unificação política da Alemanha. Pertenciam de certa forma, a países diferentes, considerando-se mutuamente como estrangeiros. Havia grande diferença também entre os grupos de alemães protestantes e católicos, diferenças estas que originaram reagrupamentos na autocolonização no Brasil (WILLEMS, 1980). No entanto, Siriani (2003) salienta que “o convívio entre os alemães de diferentes procedências regionais jamais fora impedimento para uma conduta cordial entre os membros dos grupos23” (p.43). Estes apresentavam imbricadas redes de relações sociais, tanto entre si como em relação à população nativa que os acolheu. As maiores diferenças existentes de fato, eram os dialetos e crenças religiosas. Segundo a mesma autora, o ponto de partida para a imigração oficial foi o decreto de D. João VI, datado em 16 de março de 1820, declarando de maneira explícita o interesse do governo em incentivar a entrada de cidadãos alemães e daqueles outros países que considerassem oportuno se estabelecerem em território brasileiro. Contudo, o que o decreto não explicitava era o porquê de tal posicionamento em relação aos alemães. Siriani (2003) e autores como Seyferth (1982, 1994, 2000a) e Lorenz (2008) apontam a possibilidade de ter sido esta, uma política imigratória voltada para o branqueamento. Segundo estes autores, o imigrante europeu foi considerado o tipo racial mais adequado para purificar a raça brasileira e também o tipo de mão de obra adequada para solucionar o problema econômico vigente, sobretudo, após a abolição do tráfico de escravos africanos. “Simultaneamente à abolição dos escravos, surgiram no Brasil ideias raciais: alguns abolicionistas declararam-se explicitamente contrários a imigração de trabalhadores não brancos, como os asiáticos” (LORENZ, 2007, p. 31). Estes defenderam o recrutamento exclusivo24 de trabalhadores brancos para aumentar a massa ariana no Brasil. 23 Acredita-se que as diferenças procedentes da diversidade regional e religiosa eram amenizadas em território brasileiro em vista à sobrevivência. A troca e ajuda mútuas eram uma necessidade superior, imagina-se, às divergências existentes. 24 Lorenz (2008) aborda um dado interessante: o Império Alemão estabeleceu-se como nação imperial em 1884 e o Brasil, teve a República proclamada em 1889. Em ambos os países, questões ligadas à identidade nacional foram discutidas e para o Brasil, a imigração foi inserida nos discursos em torno da raça e da cultura. 37 Á respeito do ideal de branqueamento, Nabuco (apud Lorenz, 2008 p. 31) coloca: O Brasil deveria se tornar um país onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração europeia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásio vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo. Neste trecho, Lorenz exemplifica um pensamento vigente à época, defendido e aclamado por muitos intelectuais; trata-se de que da “miscigenação branca” dependeria a homogeneização da população brasileira, processo este que não deveria ser prejudicado por outras “raças” (aspas nossas). Ainda para ilustrar o espírito desta época, sugerem-se dizeres de Davatz (1980, p.31): Como o sal permite saborear alimentos naturalmente insípidos, assim também a mistura bem proporcionada de sangue germânico é salutar a qualquer povo (...). De acordo com Seyferth (2000a., 2000b) os critérios de seleção de imigrantes visavam europeus brancos que deveriam promover e dilatar a civilização do vasto Reino do Brasil. Trazer colonos significava povoar o território, produzir alimentos e desenvolver artes e ofícios, mais precisamente, segundo os discursos dos imigrantistas da época, gente “afeita” ao trabalho (SEYFERTH, 2000b., aspas da autora). A ideia de civilização com base no apoio à vinda destes imigrantes trazia consigo pressupostos de exclusão, cujas distinções fenotípicas eram consideradas muito importantes. (...) o Brasil precisava de trabalhadores brancos e sadios, agricultores exemplares oriundos do meio rural europeu, com todas as “boas qualidades” do camponês e do artífice, obedientes á lei, dóceis e morigerados, de moral ilibada, etc. Por outro lado, ser europeu não bastava: os “piores elementos colonizadores” segundo diretores de colônia, eram comunistas, condenados, ex-soldados e a “escória das cidades” que os governos europeus “expeliam” e que o Brasil devia mandar de volta. Refugiados, deficientes físicos, ciganos, ativistas políticos, velhos, etc., também estavam arrolados, inclusive na legislação, como “indesejáveis”. (SEYFERTH, 2000b, p.2) 38 De acordo com Oliveira25 (2008, p. 32) A discussão sobre os interesses envolvidos na imigração/colonização assumiu grande importância na abordagem do processo de integração dos imigrantes e seus descendentes no Estado, na economia e sociedade brasileira. O autor cita Luiza Iotti (2001, p. 21), quanto ao reflexo da legislação imperial brasileira, sobre “contradições existentes na sociedade brasileira em relação à política imigratória a ser adotada pelo império.” Ressalta-se que os imigrantes germânicos chegaram ao Brasil em meio a uma política excludente, seja por parte do povo brasileiro que considerava os negros mão de obra não qualificada e, portanto, não bem vinda, seja por parte da própria Alemanha, que conferiu a seus cidadãos condições de vida dificultosas. A partida de indivíduos indesejados para redução de gastos também foi estimulada, como deficientes, criminosos, doentes etc. (KARASTOJANOV, 1999; SIRIANI, 2003) Neste contexto cabe a reflexão acerca da situação em que se deu a imigração. A ideologia excludente deve ser considerada, sobretudo, quanto ao processo de assimilação à nova cultura. Consideram-se aqui os dizeres de Sayad (1998) no tocante a imigração sofrer de uma dupla contradição - esta representa, portanto, um estado provisório que se prolonga indefinidamente, ao mesmo tempo em que se torna um estado definitivo e vivido com o sentimento de ser provisório. Como estas condições excludentes, em suas variadas formas, viriam a ser vivenciadas por estes sujeitos? Em 1824, iniciou-se o povoamento sistemático do Brasil meridional por imigrantes germânicos e mais a frente, em 1859, emigraram, da Saxônia para o Brasil, algumas centenas de famílias de artífices e operários (entres estes carpinteiros, serralheiros, costureiras, etc.) em circunstâncias diferentes daqueles que adentraram o Brasil anteriormente. A situação econômica destes emigrantes não era exatamente precária. Eles não queriam trabalhar em fábricas e tal desejo, de evitar a proletarização que acometia seu país, foi o que os induziu a emigrar. Dentre aqueles que podiam escolher 25 O historiador questiona ao longo de seu estudo, o real interesse na concessão de cidadania efetiva e garantia de amplos direitos como cidadãos aos imigrantes que vieram a substituir a mão de obra escrava. Tais questionamentos assumem, na visão do autor, função central em qualquer estudo que se proponha analisar a cidadania dos imigrantes que se dirigiam ao Brasil ao longo do século XIX. 39 entre o trabalho rural ou industrial ou emigrar para onde as terras eram baratas e férteis, a segunda opção fora a de muitos. A forma de administração dos territórios de sua terra natal, também foi um fato importante, que levou a emigração coletiva. A Alemanha estava sob um regime político que promovia altíssimos impostos que forçaram a população ao êxodo. Muitas famílias fugiam, abandonando propriedades, evitando assim autoridades fiscais e policiais. (WILLEMS, 1980) No Brasil, os imigrantes foram alocados na periferia das grandes propriedades escravistas, iniciando um processo de ocupação que, após a independência, seria deslocado para o extremo sul, onde a colonização aparece como sinônimo de povoamento. A imigração subsidiada pelo Brasil, com intensa propaganda nos países da Europa, sobretudo Alemanha, devia atender ao princípio geopolítico de consolidação de território, mais nitidamente delineado a partir da fundação da colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, em 1824, e de três outras colônias em Santa Catarina e no Paraná, estabelecidas em 1829 em caminhos de cargueiros que ligavam o litoral ao planalto e este à província de São Paulo (SEYFERTH, 2000a). A forma como foram localizadas as colônias alemãs fomentou uma espécie de autossegregação dos colonos o que culminou em pouca miscigenação junto à população local (LORENZ, 2008) muito diferente do que fora almejado pelos defensores do projeto de branqueamento da população brasileira. Isolados, os alemães e seus descendentes mantiveram a preservação de sua individualidade “étnica e nacional” (LORENZ, 2008, p. 32) em um movimento que até então não preocupava as autoridades brasileiras. De acordo com Siriani (2003, p. 46) artigos contidos no decreto de 1820 possibilitaram a entrada de grandes contingentes populacionais durante todo o primeiro Reinado e serviram de base para a fundação de várias colônias por todo o território. Entre estas está a colônia Leopoldina, no Sul da Bahia, a Frankental, fundada na mesma região, em 1822, por iniciativa de Georg Anton Von Schaeffer (principal agente de imigração do período e amigo pessoal de D. Pedro I e D. Leopoldina), a Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, a São Leopoldo, no sul do país e, na Província de São Paulo, os núcleos de Santo Amaro e Itapecerica. O mesmo decreto estabelecia ainda os direitos à cidadania e liberdade de culto, porém não cumprido pelo governo do Império, “pelo fato de a Igreja Católica estar vinculada ao Estado durante todo o primeiro Reinado, 40 causando grandes problemas aos imigrantes de origem protestante, deixados, muitas vezes, à própria sorte” (p.46). Uma melhora ocorreu a partir 1832, já no período regencial, com a lei que estabelecia que os imigrantes no Brasil, há mais de quatro anos, poderiam naturalizar-se e garantir o direito à cidadania. Contudo, ainda que tais questões fossem discutidas por deputados e demais autoridades, suas consequências quase arrasaram a vários núcleos coloniais. Os recursos financeiros26 destinados aos colonos e à introdução de novos estrangeiros foram suspensos. Nesta condição, os imigrantes alemães viram-se sem chances de sobreviver, corroborando com maior desconfiança quanto ao Estado Brasileiro. Desta forma, a solidariedade étnica se tornou estratégia de sobrevivência e também um meio para prosperar. (SIRIANI, 2003) A partir de 1870, outros grupos de trabalhadores se deslocam para o Brasil, segundo Magalhães (1998) trouxeram consigo uma experiência de nação; tornaram-se cidadãos do Reich - uma Alemanha unificada que incutiu sentimentos de pertença naqueles que emigraram, perpetuando tais sentimentos em um público cada vez mais fiel, no novo país de moradia, seja por meio das escolas primárias, como também por meio da literatura. Nesta época, o número de imigrantes foi mais expressivo do que em tempos anteriores, sobretudo devido ao sucesso da propaganda imigrantista do Brasil. Barreiras interétnicas e o Deutschtum Quanto à localização das colônias alemãs, esta revela interesses mais diretos da política de colonização dos imigrantes, como já mencionado, que era povoar terras desabitadas, consideradas mais apropriadas à instalação de colonos estrangeiros livres e 26 Fernandes (2011) em referência a imigração alemã para a cidade de São Paulo, relata que as promessas feitas pelas propagandas imigrantistas eram descabidas frente à realidade das condições econômicas e estruturais da cidade. Com a vinda de números significativos de imigrantes, o orçamento público ficou sobrecarregado, uma vez que era necessário garantir subsídios diários para os imigrantes alemães, assim como arcar com os salários do funcionalismo público; tais salários deixaram, entretanto, de ser pagos, para que o governo pudesse honrar com os subsídios prometidos. Neste ínterim, os alemães tornaram-se vítimas de desafetos diversos; jornais publicavam artigos críticos relacionados a esta população, acusada ainda pelos cidadãos paulistanos como responsáveis pelos problemas econômicos da cidade. 41 europeus (ou seja, brancos) num processo controlado pelo Estado. Nestas terras, os imigrantes ficaram isolados27 em zonas pioneiras não ocupadas pela grande propriedade o que propiciou a formação de laços de ajuda entre os mesmos, devido à falta de infraestrutura oferecida pelo Estado, tais como fundação de escolas, espaços de convivência, estradas, pontes etc. (SEYFERTH, 2000a, HUBER, 2007) Conforme Huber (2007) após 1850, o governo imperial passou a responsabilidade da colonização às províncias e vieram a vigorar as companhias particulares de colonização. A continuidade da ação dos agenciadores durante o Império e a propaganda oficial das empresas particulares de colonização na Alemanha, atraíram camponeses, sobretudo, mas também trabalhadores urbanos e artífices, em busca de melhores condições de vida: ser ''proprietário'' (p.281, aspas da autora). São atraídos ainda professores, artesãos, operários, refugiados políticos e pessoas com recursos financeiros para dedicar-se a atividades comerciais e industriais. Ainda que as colônias tivessem planejamento cuidadoso, em sua maioria não havia demarcação prévia de linhas e lotes. Tal trabalho foi realizado pelos imigrantes-colonos na abertura de picadas28 ou linhas, na construção de pontes e pontilhões, estradas, edificação de alojamentos públicos e outras obras. Havia com isto o auxílio ao pagamento das dívidas para com as companhias. 27 Giralda Seyferth (1982) entende o sentimento de pertencimento identitário dos imigrantes alemães como consequência do sistema de colonização do Brasil. Uma vez que estavam isolados, fortaleceramse nas relações de colaboração junto aos seus semelhantes a partir do que trouxeram (e conheciam) de sua cultura comum. Isto pode explicar a manutenção da língua e perpetuação da cultura entre os descendentes provindos de comunidades mais isoladas. Cabe ressaltar que isto não é exclusivo deste grupo de imigrantes, mas tendência existente também em outros grupos pertencentes a outras correntes migratórias. 28 Picadas ou linhas se constituíram como unidades sociais básicas do sistema, de cujo traçado (correspondente a uma via de comunicação) eram demarcados os lotes. Por exigência legal o colono devia residir na sua propriedade, fato que impediu a formação de povoados ou aldeias semelhantes às europeias, o que levou os geógrafos a definir essa forma de ocupação como “rural dispersa” (ROCHE, 1969; WAIBEL, 1958 apud SEYFERTH, 2000). Houve uma tendência a reunir na mesma linha, ou em linhas contíguas, imigrantes de mesma nacionalidade e em alguns casos, até da mesma procedência regional. (mais informações em SEYFERTH, G. As identidades dos imigrantes e o melting pot nacional, 2000, p. 147). 42 Nos relatos e histórias de vida dos imigrantes, na documentação oficial e também nas narrativas da literatura teuto-brasileira, ao longo do processo de colonização, são descritos conflitos de terra, o cansaço para derrubar a mata e cultivar os lotes sem usar os métodos tradicionais europeus. Problemas como o povoamento disperso, a precariedade das estradas e o transporte, das doenças e enchentes, o endividamento e a dependência em relação aos comerciantes estabelecidos, entre outros. As dificuldades enfrentadas, ao longo do período de ocupação territorial ajudam a elaborar a figura do ''pioneiro'' – como desbravador da floresta e o fundador das colônias alemãs – algo que aparece com frequência na literatura teuto-brasileira. (HUBER, 2007, p. 281) Um exemplo que ilustra o isolamento das colônias é tema do estudo de Úrsula Albersheim (1962) denominado “Uma Comunidade Teuto-Brasileira”. Neste, a autora analisa a relação entre os problemas causados pelo isolamento da população de alemães do Vale do Itajaí no sul do Brasil, em região denominada Jarim. Nesta, o isolamento da população foi equiparado a uma ilha nacional possibilitando que se observassem modificações sofridas pela cultura dos imigrantes, à maneira como se adaptaram ao novo meio, aos elementos da cultura local e também, inversamente, características especiais que emprestaram à região que ocuparam tal qual hábitos da população, processo este nomeado pela autora como “variante teuto-brasileira da cultura nacional” (p.176) - sobre as relações sociais dos diferentes grupos postos em contato (brasileiros, teuto-brasileiros e luso-brasileiros) maneira como se adaptaram reciprocamente e as consequências que este tipo de contato trouxe à cultura de ambos em um processo mútuo. Algo que retrata o isolamento mencionado pode ligar-se ao fato de a população de Jarim nunca ter tomado conhecimento de fato, dos acontecimentos mundiais e de suas proporções. “Mantiveram a visão idealizada da Alemanha retratada pela memória de pais e avós, em detrimento do Brasil, como um lugar de poucos recursos”. (ALBERSHEIM, 1962, p.182) O desenvolvimento posterior à fase pioneira dos colonos, bem como a migração para centros urbanos maiores, como a cidade de São Paulo29, além da emancipação de 29 Davatz (1980) defende que a imigração dos alemães a São Paulo ocorreu de modo diverso do que fora em outros Estados do Brasil. Em São Paulo, por exemplo, foi a repressão do tráfico de escravos negros e o encarecimento destes que a estimulou. Contudo, há relatos discutidos por este mesmo autor sobre alemães que nesta cidade se sentiam tratados como “escravos brancos” (aspas nossas). 43 algumas colônias ainda no período imperial, promoveram diferenças culturais significativas, aumentando os discursos sobre assimilação dos estrangeiros, preocupando nacionalistas com a possível formação de minorias ou quistos nacionais30 (SEYFERTH, 2000b.). Cabe ressaltar que a maior notoriedade da imigração alemã, deve-se a concentração espacial em áreas coloniais e urbanas (bairros etnicamente configurados) e suas especificidades culturais- incluindo o uso da língua, evidenciandose um discurso étnico fundamentado na noção de germanidade ou germanismo – Deutschtum (germanidade)31 veiculado nas instituições comunitárias (escolas, associações, igrejas), na imprensa e também na literatura publicada em língua alemã. O surgimento de uma etnicidade teuto-brasileira32 deu-se junto à emancipação das colônias (transformadas em município) configurando-se uma classe média urbana e rural que exercia sua cidadania e também proposições políticas (SEYFERTH, 2000c). É possível propor um exemplo do “exercício” do Deutschtum, no fragmento que segue, trazido por uma das interlocutoras desta pesquisa: “O jornal que corria em casa, a Colônia tem dois jornais, um é o Deutsche Zeitung e outro, um era para os alemães que vieram depois da Segunda Guerra ou no intervalo entre guerras e o outro é dirigido para uma Colônia mais antiga, que ainda fala alemão, mas com uns pedaços de português no meio, sabe? Esse jornal corre muito pelos lados de Blumenau, Rio Grande do Sul, áreas de colônias de alemães mesmo né, mas ele é editado aqui em São Paulo. E na minha casa sempre tinham os dois jornais, na casa da minha vó também, minha vó lia sempre, eu ia no jornaleiro em Santo Amaro, 30 Em seu ensaio, Arjun Appadurai (2009) propõe reflexões sobre a violência em larga escala de nossa época relacionando esta, sobretudo, à aspectos culturais. Discute a posição das minorias considerando estas como muito vulneráveis- sujeitos vítimas do processo de expiação de medos e outras projeções em caráter conhecido popularmente como “bode espiatório”. A busca da identidade nacional que se perde meio à fluidez promovida por mudanças de ordem política, exacerbaria este processo e “encontrar um culpado.” Pode por vezes, promover um tipo de “certeza identitária” resultando na unificação e propagação de um Etnhos nacional. 31 Deutschtum demarca a etnicidade a partir de crença na origem racial comum, engloba a língua, cultura e determina a solidariedade do povo alemão. (SEYFERTH, 2000c) 32 A categoria de identificação “teuto-brasileiro” afirma uma condição de pertencimento à nação alemã e à cidadania brasileira como coisas compatíveis. Os imigrantes pensavam o Brasil como um Estado etnicamente plural e não como uma Nação (SEYFETH, 2000c, p.3). Em nossa estadia na Alemanha fomos identificados pelas pessoas como teuto-brasileiros- Deutschbrasilianer o que demonstra ser este termo comumente usado em referência à descendentes alemães nascidos no Brasil. 44 lá sempre tinha, ele era semanal. Eu ia pro colégio e minha avó falava: traga o jornal.”(S.) O Deutschtum foi assunto de grande destaque de editoriais e artigos de jornais e almanaques. Tais publicações visavam à manutenção da língua, dos costumes, das instituições étnicas dos alemães. Tais publicações configuram não só o entendimento da natureza da ideologia étnica, mas também as preocupações brasileiras com o perigo alemão existentes na época - “pois nelas se enfatizava o direito à especificidade como grupo nacional, muitas vezes sob o argumento da superioridade germânica.” (SEYFERTH, 1994, p. 6) Seyferth sugere alguns conceitos importantes para a definição do Deutschtum: (...) a nova pátria é a colônia, a nova cidadania é brasileira, mas a etnia continua sendo alemã; o ato de emigrar significou o rompimento com o país de origem, mas não com o Volk (povo) alemão. O pertencimento sugerido por tal categoria remete, por um lado, a uma entidade supra territorial - a nação alemã, concebida como entidade cultural e linguística que une um povo de mesma origem e, por outro lado, à cidadania e a um território considerado como Heimat (casa) ou Vaterland (terra paterna) - no caso, o Estado brasileiro. (...) a ligação com a Alemanha, portanto, baseia-se se na comunidade de sangue e língua, naturalizada através de um modo de vida alemão preservado nas colônias, numa reapropriação da ideologia nacionalista anterior a unificação alemã, que podia falar de uma Nação sem Estado. De certa forma isso explica porque a endogamia e até mesmo a nova sociedade, imaginada como produto da capacidade herdada de trabalho, portanto associada à raça, são concebidos como fronteira étnica a preservar. O modelo étnico de nação tem seus mitos de descendência e eles são necessários à mobilização interna. Nesse caso, o mito da união espiritual e cultural de todos os alemães e seu passado original, serve de base a formulação do Deutschtum, que também incorpora um outro mito, o da capacidade inata de trabalho que produziu uma sociedade civilizada em plena selva. (SEYFERTH, 1994, p. 6, tradução nossa) Seyferth expõe o conceito Pátria, implícito na categorização étnica e no próprio Deutschtum. Se por um lado a etnicidade supõe o pertencimento à nação alemã pelo direito de sangue, por outro, a ideia de se ter no Brasil uma pátria, proporciona a condição de brasileiros. Pátria tem dois significados distintos, que se completam, um deles remetido à colônia enquanto comunidade étnica, o outro ao Estado enquanto entidade política e territorial. No primeiro caso, prevalece o conceito de Heimat (termo derivado da palavra Heim = lar) que remete ao processo histórico de colonização- pois a pátria é a colônia germanicamente construída. No segundo caso, prevalece o conceito de Vaterland, remetido à cidadania e associado ao trabalho. Essa duplicidade da noção de pátria inclui os dois princípios que regem a identidade étnica: uma pequena pátria alemã no Brasil construída com 45 esforço coletivo dos colonos pioneiros e a pátria brasileira, que remete a cidadania referenciada pelo direito de solo. (SEYFERTH, 1994, p. 7) Magalhães (1998) acrescenta ainda, que o Deutschtum, enquanto sentimento de pertença “denota uma noção orgânica de comunidade, em que imagens da família, do corpo, do sangue, não são utilizados como uma metáfora, mas constituem essência mesma de suas premissas” (p.109). Por exemplo, a língua materna, teria para o indivíduo o mesmo significado que uma mãe para seu filho. Neste outro exemplo, também tratado por um de nossos interlocutores, percebem-se algumas proporções o Deutschtum pode alcançar, influenciando o projeto de vida. “(...) ser descendente de alemã me afeta 100%. Muitas das minhas características de personalidade vêm, com certeza, disso. Seja genético ou comportamental... Muitas pessoas acham que sou efetivamente estrangeira e que vim parar no Brasil em algum momento da vida por causa de coisinhas simples, que para mim, minha mãe, minha tia e qualquer alemão considera básico: pensar nas suas ações e se elas poderiam incomodar ou prejudicar o próximo. Exemplo besta: procurar um local adequado para atravessar a rua. Com certeza influenciou no meu projeto de vida, pois nunca me senti lá muito brasileira e isso fez com que eu buscasse alternativas de locais onde eu talvez me sentisse mais em paz. Antes de pensar em algo radical, como voar pelo Atlântico, pensei muito em mudar para o interior, ou para o Sul, ou para o interior do Sul.” (P.) O escritor Hans Tolten (apud MAGALHÃES, 1998, p. 110) retrata uma experiência na família para falar de seus sentimentos perante à pátria que não conheceu: A saudade que minha mãe tinha da pátria era tão grande e tão vivamente narrada que ela fazia com que eu me sentisse em minha fantasia muito mais na terra distante do que no mundo de hoje, em que estou eu. (TOLTEN, 1934, p.12 ) A partir das definições do Deutschtum e de como os alemães lidavam com esta forma de pertencimento étnico, é possível contextualizar o que se deu durante o governo de Getúlio Vargas, na criação do Estado Novo. De acordo com Seyferth (2002) a maior crise33 nas relações com os brasileiros se iniciou em 1939, durante a campanha de 33 A imigração pode ter sido a principal impulsionadora da campanha de nacionalização. Para mais detalhes acerca deste tema ver SEYFERTH, G. Os imigrantes e a Política de Nacionalização do Estado Novo. in: PANDOLFI, D. (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. p. 257-288. 46 nacionalização forçada imposta pelo Estado Novo. Decorreu um projeto de assimilação que visava todos os imigrantes e descendentes estabelecidos no país, contudo, foi especialmente rigoroso com alemães e japoneses. Durante toda a campanha repressiva das manifestações étnicas, os descendentes de imigrantes (brasileiros por nascimento) foram classificados como alienígenas, estrangeiros que deveriam ser abrasileirados, misturados a sociedade nacional. A questão do reconhecimento e da assimilação de estrangeiros e seus descendentes no Brasil durante este período gerou marcas. Jornais34 da época trataram estas pessoas de forma particular e estigmatizada promovendo conflitos35, revoltas e retaliações. Questões importantes quanto à posição destes sujeitos frente sua relação com o Brasil são pertinentes: de imigrantes, ora convidados a adentrar e permanecer no país, foram de alguma forma “enganados”, levando-se em conta as condições objetivas encontradas. Pressionados a mudar hábitos e manifestações culturais, iniciar-se-ia uma segunda etapa de adaptação36, etapa esta por certo não esperada, sobretudo por aqueles já há anos no Brasil. Paradoxalmente, a tese do branqueamento da população vislumbrava europeus como imigrantes ideais à formação da nova racialidade, estes, no 34 Não somente os jornais da época, os livros didáticos também compunham este momento político que o Brasil atravessava. Conforme Cabreira (1996, p. 50), os livros didáticos produzidos neste período refletiam em seu conteúdo o ideário político de cunho nacionalista e patriótico propagado pelo governo. A Geografia deveria contribuir para o desenvolvimento cívico e patriótico das crianças, que aprendiam que os imigrantes, assim como comunistas e anarquistas, eram elementos nocivos à sociedade e que este contingente populacional era considerado fator de problemas sociais, gerador de crimes entre outros. 35 Para maiores informações acerca da expressão da mídia em relação aos imigrantes e seus descendentes durante o Estado Novo consultar FERNANDES, L. N. P. “Perigo alemão ou germanofobia?” Os alemães em São Paulo entre 1889 e 1918. Mestrado em História Social, Departamento de História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. 36 “O antigermanismo e a guerra causaram um movimento que de certa forma dividiu os imigrantes alemães. Uma boa parcela alinhou-se aos interesses brasileiros voluntaria ou involuntariamente e outra, apenas deixou de manifestar em público seus interesses pela Alemanha. Aqueles que se mantiveram comprometidos com a germanidade, exacerbaram ainda mais suas posições, criticando ainda mais a sociedade de modo geral, esta concebida ainda, como receptora. Comportavam-se como minoria étnica e se auto nomeavam uma nação oprimida, reagindo de forma semelhante as minorias do império austro-húngaro, por exemplo. Este comportamento pode ser considerado uma reedição das experiências sofridas na Europa.” (MAGALHÃES, 1998, p. 99-100) 47 entanto, deveriam integrar-se ao abrasileiramento cultural, o que significou uma forma de sentenciarem37-se etnicidades produzidas pelos processos imigratórios. (SEYFERTH, 2000) São Paulo: uma cidade em desenvolvimento- a relação com Santo Amaro Viaduto do Chá (São Paulo) com a estrutura metálica importada da Alemanha. Acervo do Instituto Martius-Staden A imigração alemã para São Paulo teve início em 1827. Segundo dados da historiadora Siriani (2003, p. 57) esta se deu após aviso expedido pelo governo imperial ao presidente da Província, o qual informava sobre o envio de um grupo de imigrantes alemães que deveria ser estabelecido pelas autoridades locais, onde melhor lhes conviesse. Tal notificação foi motivo de grande surpresa (ainda que, segundo a autora, já houvesse um aviso anterior). Após quarenta dias desta notificação, atracaria no porto de Santos o primeiro e numeroso grupo de alemães. Estes, não passaram por uma prévia seleção o que Siriani (2003) coloca ter sido um grande problema posteriormente. 37 Acrescentamos, contudo, uma questão valorizada e ressaltada em alusão ao Brasil: sua multiplicidade étnica e a tolerância para com as diversas culturas e credos em seu vasto território. 48 Dados do instituto Martius Staden38 revelam que os primeiros alemães que chegaram a São Paulo não eram, em sua maioria, afeitos ao trabalho agrícola, mas sim artesãos e ou profissionais de áreas técnicas, motivo que levou à grande dificuldade na adaptação ao trabalho nas fazendas de café. Um retrato dos momentos iniciais dos imigrantes alemães em São Paulo e do despreparo da Província é descrito por Siriani (2003); Despreparado, o governo provincial não sabia como agir. O que fazer com estes indivíduos? Sem um núcleo colonial formado e nem sequer planejado, os alemães foram enviados temporariamente ao Hospital Militar de São Paulo. Ali instalados, deu-se início a uma verdadeira via sacra, que durou aproximadamente dois anos, até que obtivessem os prometidos lotes de terra. Eram duzentos e vinte e seis indivíduos, aos quais foram se juntando outros grupos menores, que ao cabo de dois anos já representavam quase mil almas. (p. 58) Siriani acrescenta que, também devido ao despreparo para o recebimento dos alemães em São Paulo, estes foram mal recebidos pela população. Sua presença representou prejuízo aos cofres públicos. Para tanto, a autora menciona nota publicada em jornal de grande circulação na época, que ilustra a situação: Não havemos de chorar amargamente a quantia de 400.000$000 de réis para mais que mensalmente sai dos cofres nacionais da província, para sustentar os colonos? (...) não nos havemos de lembrar sem dor que esse dinheiro é sangue dos nossos concidadãos e que estes, por estas e outras ficarem reduzidos à mendicidade hão de mandá-los à taboa, ao mesmo passo que se importa gente estranha (...) facinorosa, com inauditos sacrifícios, para colonizar um país que não precisa, senão que o deixem prosperar... (nota do jornal Farol Paulistano de 12 de julho de 1828 apud SIRIANI, 2003, p. 59) A autora comenta este fato (entre outros com o mesmo caráter) enquanto desagrado que passou rapidamente à xenofobia. As autoridades responsáveis pelo assentamento dos imigrantes alemães demoraram até chegar ao consenso de que seu destino seriam as terras devolutas do sertão de Santo Amaro. Os imigrantes, durante dois anos, ainda não estavam assentados e enquanto “sobrecarregaram os cofres 38 Instituto Martius Staden- vídeo informativo sobre a imigração alemã em São Paulo: <http://www.martiusstaden.org.br/ >( acesso em 06.09.2013) 49 públicos” (idem,ibidem) tinham também seu descontentamento aumentado pelo crescente sentimento de não pertencerem a lugar algum, aliado à impotência e ao fato de não serem bem quistos na cidade. “A cidade de São Paulo nos primeiros anos do império era um local de parcos recursos, acanhado e pouco habitado. Dessa forma deve ter sido para seus habitantes um choque a chegada de tantos estrangeiros39, de uma só vez...” (idem, ibidem). Após a esperada definição do local de assentamento, houve grande decepção frente à realidade apresentada, sobretudo quanto às dificuldades locais. De acordo com Siriani (2003), a diferença das condições de vida, comparadas à vida na terra natal eram gigantescas; muito bem representadas pelo quadro que se pode visualizar, no trecho que segue: (...) estavam habituados à paisagem idílica de suas florestas, encobertas por uma aura de contos de fada, onde imensas clareiras alternavam com a sombria atmosfera proporcionada pelos olmos, carvalhos e pinheiros e cascatas jorravam a água gélida, pura e cristalina que, em suas torrentes, alimentavam grandes rios como o Reno, Mosel, Oder entre outros (...). Toda essa doce memória ressurgiu nos espíritos dos colonos ao se depararem com a cerrada e exuberante Mata Atlântica. Ali, no sertão de Santo Amaro, centenas de espécies de árvores emaranhavam-se através de seus cipós, tecendo uma vegetação compacta e de difícil transposição. Ambiente belo e assustador, abrigo das mais coloridas e variadas bromélias e morada de vistosos pássaros, mas também de animais ferozes como as suçuaranas e onças pintadas, que causavam calafrios nos estrangeiros com o seu rugido trovejante que, vez ou outra, ecoava no interior da mata. O descontentamento foi, portanto, uma reação natural frente ao choque de perspectivas que enfrentavam. (SIRIANI, 2003, p. 60) Com o intuito de que esta realidade seja ainda descrita com maior clareza e realismo, apresentam-se falas de uma representante40 ainda viva, parte da história da colonização do Brasil. 39 Muitos imigrantes, devido à demora da resolução de sua situação, ficaram sem trabalho, vagando pelas ruas de São Paulo, gerando ainda maior descontentamento da população para com os considerados “intrusos”. (SIRIANI, 2003, p.59) 40 Otillie, 93 anos de idade. Primeira de seis filhos de imigrantes alemães, cujo relato está no programa da peça de teatro “Brasilien 13 caixas” apresentado em julho de 2013 no Sesc Pompéia em São Paulo. Esta peça é parte do projeto da diretora de teatro Karin Beier, que busca retratar a identidade de descendentes alemães no Brasil. Esta produção, é resultado de longa pesquisa realizada pela autora e assistentes, nas principais zonas de colonização alemã no Brasil (englobam-se aqui São Paulo, Paraná, 50 (...) então pegamos a urutu, a cobra, com uma foice grande, que tínhamos levado para cortar as folhas da árvore e a carregamos para casa. Eu carreguei o animal para casa (...). Eu não quero me elogiar, mas para mim tudo é simples. E o que eu quero e o que eu preciso e o que deve ser isso eu sei. Não me falta nada, sim, porque sou assim. E o que deve ser, deve ser e é assim mesmo. Na floresta sim, uma pessoa tem que provar que é uma pessoa inteira. (fonte: programa peça de teatro Brasilien 13 caixas, 2013) Após os sorteios que definiriam quais lotes pertenceriam a quais famílias, estas, jamais receberam os títulos de posse dos mesmos. Assim, sem a existência de contrato formal de vinculação a estes núcleos, os alemães não se sentiram presos ao local e sem segurança, muitos se dirigiram à vila de São Paulo, arrumando ocupação e trabalho nas regiões centrais (SIRIANI, 2003, p. 62-63). Ainda que pelos registros oficiais não se possa saber com exatidão o número de famílias que seguiu para a vila de São Paulo, consta que, no ano de 1860, a população alemã da região de Santo Amaro girava em torno de 500 indivíduos. (idem, p. 68) Santo Amaro não tardou a tornar-se autossuficiente, possuindo dinamicidade de vida própria. Produtora e consumidora de gêneros possuía um comércio local de relativa movimentação, principalmente por estar na rota de muitos viajantes que vinham do litoral sul em direção à capital, cuja entrada principal era pela Estrada do Vergueiro, a mesma que levava ao sertão. Em sua paróquia, reuniam-se os sitiantes da região para as comemorações religiosas (...). Esses sitiantes se confraternizavam em torno do estandarte armado no centro do Largo do Jogo da Bola, espinha dorsal do aglomerado de casas, e pequenas armações de secos e molhados. (SIRIANI, 2003, p. 71) A região passou a contribuir diretamente para o abastecimento da cidade de São Paulo (gêneros da terra, madeira e pedra de cantaria) e de vilarejo rudimentar. Fez desta forma, parte do quadro de sobrevivência da capital sobretudo após a chegada dos Santa Catarina e Rio Grande do Sul) entrevistando descendentes de alemães e, à partir destes relatos, foi concebida a peça. Primeiramente apresentada em São Paulo, seguirá em turnê pela Alemanha, no primeiro semestre de 2014. Esta peça foi também contemplada como parte das atividades ligadas ao ano Brasil-Alemanha 2013-2014. 51 imigrantes alemães (SIRIANI, 2003, p. 71). Pode-se dizer que o crescimento de Santo Amaro acompanhou o crescimento41 urbano da capital paulista. Vistas do Largo 13 de Maio, 1920. l 42 (Fonte das imagens ) Siriani (2003) convida os leitores de sua obra a refletirem sobre os caminhos (e descaminhos) trilhados pelos imigrantes alemães em seu estabelecimento em Santo Amaro. Coloca claramente sua importância da emancipação da região, enfrentando o “isolamento, a pobreza e rusticidade dos sítios, a perda da identidade cultural com um crescente processo de acaboclamento43, além das dificuldades de cultivar um solo acidentado como o da região (...).” (idem, p.80) 41 “ ‘O caráter agrícola da região, que fazia parte de uma espécie de cinturão de abastecimento’ da capital(...). Os alemães introduziram inovações como, por exemplo, a cultura da batata, na qual foram pioneiros, abastecendo os mercados da capital e a produção de laticínios, como o queijo e a manteiga, que não faziam parte da mesa do paulistano e, por isso, tiveram grande aceitação. Sendo assim, Santo Amaro passou a dinamizar-se, contribuindo cada vez mais para o abastecimento dos mercados da capital e de seus arredores.” (SIRIANI, 2003, p. 72-73, aspas da autora) A autora ressalta ainda que “o elemento alemão no campo das atividades agrícolas não se fez sentir apenas nas áreas do núcleo de Santo Amaro e Itapecerica, mas também na própria capital, em freguesias como Brás, Tatuapé e Penha, onde o predomínio de Chácaras- com pequenos roçadoscolaborava diretamente para o abastecimento dos mercados locais e, também, para a heterogeneidade do trabalho alemão em São Paulo (...)” (idem, p. 77) 42 Fotos deste site são de domínio público.<http://santoamarocity.blogspot.com.br/2010_01_01_archive.html> acesso em 10.09.2013 43 Siriani (2003) explica a origem do caboclo partindo do verbo “acaboclar” cujo significado implica o “tornar-se rústico” ou “acaipirar-se” (p.82, aspas da autora). Cita também o termo acaboclado cujo 52 Ainda que, em meio às supracitadas adversidades, os alemães contribuíram para transformar o sertão de Santo Amaro em uma importante zona de abastecimento da capital, cuja produção de alimentos era parte significativa das necessidades da cidade. Também aqueles que abandonaram o núcleo colonial, dirigindo-se às vilas de São Paulo, puderam enfim exercer seus ofícios, como os de pedreiro, ferreiro, carpinteiro, padeiro, tipógrafo, taberneiros (entre outros em uma gama gigantesca) contribuindo com técnicas até então desconhecidas para o desenvolvimento do que viria a se tornar importante metrópole da América do Sul. (SIRIANI, 2003) De acordo com a autora, a questão envolvendo os caboclos da região, foi tema de grande interesse jornalístico por décadas. O “acaboclamento” (idem, p.81) decorreu de um lento processo que envolveu “os percalços dos primeiros anos de colonização até a integração do elemento alemão.” (idem, ibid) Os fatores contribuintes do que se considerou como “acaboclamento” de parte da população de imigrantes das regiões do sertão de Santo Amaro, decorreu do isolamento e da dificuldade de comunicação com a vila de São Paulo, representadas pelas condições das estradas de ligação, falta de escolas e profissionais capacitados para alfabetizar a população local, necessidade do trabalho infantil nas lavouras familiares e as más condições econômicas locais, entre outros. (SIRIANI, 2003) A autora menciona Willems (1980) que apresenta o acaboclamento como “um dos aspectos da assimilação do imigrante alemão na sociedade de acolhida através de seus contatos primários, ou seja, através do meio local em que viviam e dos valores locais que lhes eram apresentados” (WILLEMS, 1980, p.82). Logo, o contato com os caboclos da região é aqui interpretado como importante fator na reprodução de um modo de vida simples e rústico. Cabe destacar um interessante dado tratado por Siriani (2003), referente à existência de aldeamentos indígenas na região, algo que contribuiu para “uma salada de significado: “que tem o aspecto do caboclo. Próprio de caboclo, ou semelhante a este, nos modos ou no comportamento rústico, caipira.” (FERREIRA, 1999, p. 20 apud SIRIANI, 2003, p. 82, grifo nosso) 53 cabelos pretos com olhos azuis e cor morena, com olhos pretos, cabelos louros e pele branca.” ( p.83) Willems (1980) ressalta o surgimento do processo de acaboclamento como decorrente das difíceis condições climáticas, naturais e também das adversidades religiosas44 existentes entre os grupos alemães que ali habitavam. Os imigrantes viam, na aproximação com o caboclo, uma relação de apoio para sobreviver em tais condições, fomentando assim, uma relação nomeada por Willems (1980) como simbiótica. “(...) o caboclo nativo45 derrubaria as matas e prepararia as roças a sua maneira para que os alemães pudessem cultivar.” (WILLEMS, 1980, p. 82) No trecho que segue, Zenha (1950) traz um exemplo que pode explicitar a simbiose tratada por Willems (1980), no parágrafo anterior. (...) colocados junto a uma sociedade primária, muito depressa adquiriramlhe as poucas formulas de comportamento, alijando também depressa grande parte do acervo cultural que traziam. Os hábitos nativos, bons e maus, foram sendo incorporados sem nenhuma relutância. Alguns teuto-brasileiros praticavam até a limagem dos dentes, fazendo-os pontudos, à moda de certos caboclos da região. Dentes de “traíra” diziam. (ZENHA, 1950, p. 55 apud SIRIANI, 2003, p. 88 aspas do autor) Os dizeres de Holanda (1979) iluminam o entendimento desta problemática, em se pensando as proporções alcançadas pelo acaboclamento do imigrante alemão em Santo Amaro; Para análise histórica das influências que podem transformar os modos de vida de uma sociedade, é preciso nunca perder de vista a presença, no interior 44 Siriani (2003) menciona que os grupos de alemães protestantes não apoiavam os grupos de alemães não protestantes, que, pela falta de pastores de sua religião e também pela ausência de cemitérios para enterrarem seus mortos, batizavam-se na igreja católica. 45 No contato com as entrevistas realizadas com descendentes alemães para produção do citado projeto da peça de teatro “Brasilien 13 caixas” o termo “caboclas” foi usado com frequência para nomear àqueles não pertencentes às colônias alemãs, mas especificamente, os considerados brasileiros “puros”, possuidores de características como a pele mais escura. Percebeu-se que este termo foi usado por descendentes alemães do Sul do Brasil (mais especificamente de cidades de Santa Catarina e Rio Grande do Sul conforme as entrevistas que tivemos acesso) diferentemente dos entrevistados de São Paulo. Tal termo (caboclo) foi mencionado por nossa entrevistada nascida e criada em Santo Amaro, contudo, esta os nomeou como caipiras- alemães caipiras- como exemplo ao que era considerado o caboclo. 54 do corpo social, de fatores que ajudam a admitir ou a rejeitar a intrusão de hábitos, condutas, técnicas e instituições estranhos à sua herança de cultura. Longe de representarem aglomerados inânimes e aluviais, sem defesa contra sugestões ou imposições externas, as sociedades, inclusive e sobretudo povos naturais, dispõem normalmente de forças seletivas que agem em benefício de sua unidade orgânica, preservando-se de tudo quanto possa transformar essa unidade. Ou modificando as novas aquisições até ao ponto em que se integrem na estrutura tradicional. (HOLANDA, 1949, p. 176-290 apud SIRIANI, 2003, p. 86) No que diz respeito à alimentação, o fato de os alemães mudarem seus hábitos cotidianos, como alimentarem-se de salsichas, por exemplo, para ingerir basicamente milho, ovos, feijão, galinhas e palmito (produtos abundantes da região) também é algo a ser levado em consideração em se tratando seu processo de adaptação à nova situação de vida e ao convívio com o caboclo. Este possibilitou, além do contato mais amplo com os “diferentes” tipos de alimentos, o conhecimento de inúmeras ervas e raízes utilizadas em chás e infusões, sobretudo usados para curar febres, problemas intestinais e demais doenças, além de picadas de cobras, acidente muito frequente, vindo inclusive a aprenderem no contato com os caboclos a identificação das cobras mais venenosas da região. (SIRIANI, 2003) (...) o processo de acaboclamento não pode ser visto como algo puramente pejorativo ou que caiba dentro de categorias conceituais estanques como, por exemplo, “aculturação” ou “assimilação”. O acaboclamento foi um fenômeno além dessas definições. Ele pressupôs uma relação de benefícios mútuos, de completude e complementação entre o elemento teuto-brasileiro e a população nativa do sertão de Santo Amaro. Significou a integração dos grupos dando origem a um tipo característico da região 46. Não podemos negar que o imigrante introduziu técnicas de transporte e cultivo nunca antes utilizadas pela “cultura da enxada”, própria do caboclo. O arado, a adubação do solo, a cultura de hortaliças, a produção de manteiga e derivados do leite e a alteração no eixo fixo das rodas dos tradicionais carros de boi, facilitando o transporte dos gêneros que vendiam nos mercados da capital, assim como a seleção e a incorporação de práticas capazes de facilitar a sobrevivência no local, passaram a fazer parte do quotidiano das populações habitantes do planalto. Esses fatores totalmente ignorados pelos jornais paulistanos, que 46 Aqui torna-se claro o que o Homi Bhabha (2001) coloca sobre hibridismo, deste enquanto espaço no qual são produzidas novas significações. Em suas palavras: “É o Terceiro Espaço, que embora em si irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que garantem que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo”. (p. 67-68) 55 mostraram o “caboclo-alemão47” como uma alegoria circense. (SIRIANI, 2003, p. 91 aspas da autora) A campanha de nacionalização e o Estado Novo: pela criação de um povo “abrasileirado” Instituída em nome da unidade nacional, a campanha de nacionalização do Estado Novo, iniciada em 1937 com a pretensão de forçar a assimilação dos alienígenas (indicação de ausência de abrasileiramento), produziu a maior crise enfrentada por alemães e seus descendentes: houve intervenção nas escolas e outras instituições comunitárias, o uso da língua materna foi proibido em público e os militares procuraram impor civismo através do elogio à miscigenação étnico/racial. Tal fato teve efeitos decisivos, dentre eles, o desaparecimento da imprensa e das escolas étnicas e de algumas instituições culturais (ALVES, 2006; SEYFERTH, 2000a, 2000b) as situações de conflito produzidas marcaram a vida cotidiana destes alemães até o final da década de 1940, todavia, cabe aqui o questionamento constante no que toca a expressão destes fatos, sobre marcas ainda presentes, mesmo em dias atuais. No trecho que segue, Seyferth (2000a) indica motivações econômicas e geopolíticas consideradas quanto ao planejamento da colonização, nem sempre consoantes com os princípios do nacionalismo. (...) para os propósitos de formação da nação, os imigrantes e seus descendentes deviam ser assimilados, ou melhor, caldeados num abrasileiramento de concepção cultural e racial; mas a colonização, tal como 47 Com relação ao citado “caboclo alemão” faz-se necessário pensar também o modo como a cultura alemã é expressa, por exemplo, em festividades. Citamos como exemplo a festa alemã intitulada “Maifest” que acontece anualmente no bairro do Brooklin em São Paulo, na qual estivemos presentes. A impressão, quando de nossa visita, com exceção da venda de bebidas e salsichas ter sido algo de proporção muito maior do que de fato é em comparação a Alemanha, foi que grande parte dos descendentes presentes remontam uma Alemanha não mais existente, talvez a Alemanha de outrora, de seus antepassados. Na festa foram apresentadas danças e roupas típicas (apenas da região da Bavaria) que hoje já não existem na Alemanha. O que se propõe com este comentário é o total esquecimento com relação ao imigrante pioneiro em São Paulo, que passou pelo processo de acaboclamento, relacionando-se com os caboclos brasileiros, assemelhando-se a estes em costumes e modos de vida constituindo a seu modo, uma relação de parceria. Manter e perpetuar a imagem da “pátria distante” pode ter um sentido neste tipo de festividade, entretanto, seu significado afasta-se do teuto-brasileiro que se constituiu no cotidiano e labuta em São Paulo. 56 foi implementada no sul, deixou, a princípio, uma população estrangeira numericamente expressiva afastada da sociedade nacional. (...) temos, por um lado, uma concepção de nação elaborada, num sentido mais geral, por nacionalistas de diferentes matizes compartilhando ideais assimilacionistas e princípios de desigualdade racial e, por outro lado, os interesses econômicos e políticos provincianos (ou não) que preferiam o “colono estrangeiro” no seu lugar- isto é, explorando morigeradamente e sem reivindicações cívicas o seu lote colonial. Nessa perspectiva, os colonos não deviam ter representatividade política. (SEYFERTH, 2000a, p. 150) A autora acrescenta que oficialmente, elites brasileiras nunca deixaram de falar em assimilação e miscigenação, negando a existência de minorias. Contudo, na prática, a especificidade social e cultural das diversas colônias, bem como a segregação resultante da política oficial de colonização, gerou um discurso de exclusão. “Os indivíduos étnicos não podiam ser considerados brasileiros - estigmatizados como cidadãos ilegítimos porque não eram nacionais”. (SEYFERTH, 2000a, p. 151) (...) Vargas, tomando como parâmetro o perfil político de Hitler, defendia a manutenção de um Estado forte e centralizado, que instrumentalizasse o surgimento da “nação brasileira unificada e poderosa. Essa era a fórmula adotada tanto pelos regimes totalitários, caso da Alemanha, como autoritários, caso do Brasil. Interessava a ambos os ditadores, ainda que em graus diferenciados, legitimar o processo de dominação social. (GIL, 1995, apud ALVES, 2006, p. 70) Os alemães no Brasil sofreram com a política nacionalista do governo Vargas uma série de decretos publicados que atingiram costumes, o cotidiano e valores desta comunidade de imigrantes. Ficou proibido falar seu idioma48 em público, reunir-se para atividades políticas ou manter escolas essencialmente alemãs. Tais medidas foram naquela época, cumpridas a risca na região sul do país, região que detinha maior número de estrangeiros e descendentes alemães, medidas adotadas também em outros Estados do país. (PERAZZO, 2009) 48 “O espírito de identidade nacional, envolvendo sentimentos de amizade, solidariedade e fraternidade, esteve nas bases do patriotismo das comunidades alemãs. Esteve também na base da organização de comunidades, da formação de pequenas associações a partir do final do século XVIII, que reforçaram tais sentimentos e valorizaram a língua como forma de cultivar costumes e tradições artístico-culturais dos grupos. A fragmentação territorial da Alemanha parece ter traduzido um tipo de configuração de sociedade que, baseada no patriotismo cultural e popular, fomentou tanto o sentimento de desenraizamento como também uma noção de identidade fortemente calcada na unidade. A noção de unidade aqui presente foi integrada, sobretudo pelo idioma.” (CAMPOS, C. M. A política da língua na era Vargas. Proibição do falar alemão e resistências no Sul do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2006, p. 35) 57 Vivência esta, também relatada por uma colaboradora de nossa pesquisa: “E essa coisa do Getúlio ainda pega muito. É porque você teve uma geração que praticamente não leu o alemão e quando você não lê, não escreve, você fica ruim da língua e aí você teve depois uma geração que, praticamente, é eu fiz o último ano do primário lá em Pomerode e não se podia falar o alemão na escola, não se podia, não tinha nenhuma coisa de incentivar a língua.” (S.) “(...) e aí vem o negócio da guerra, mas mesmo assim, toda repressão do Getúlio, mesmo assim o grupo se manteve! Os colégios voltaram, entendeu? Voltam a ensinar alemão, os colonos voltaram às suas associações e sei lá, você tem pessoas, na verdade, não da minha idade, um pouco mais velhas, que não podia dar nome alemão então os caras foram descolar nomes alemães antiquíssimos, que você não via como alemão.” (S.) Entre 1930 e 1940, as comunidades teuto-brasileiras eram formadas pelos netos de descendentes dos alemães que imigraram para o Brasil no final do século XIX, sendo estes, portanto, a terceira geração germânica. No entanto, ainda que nascidos no Brasil, mantinham hábitos, costumes e tradições alemãs e viviam como comunidades estrangeiras. Isto determinou um controle mais rigoroso sobre estes grupos, altamente atingidos pela campanha nacionalizadora de Vargas. “Estas medidas modificaram o cotidiano, relações e valores morais, culturais e sociais de crianças, jovens e adultos e idosos” (PERAZZO, 2009, p. 168). Tal tratamento dispensado aos alemães e, também, aos demais súditos do eixo49, deixou de ser apenas uma questão nacional, passando a denotar uma aproximação entre Brasil e Estados unidos. A proibição de se falar o alemão (em público) silenciou50 cerca de 50% da população de alemães no Sul do Brasil; a substituição rápida das escolas alemãs por 49 A expressão “Súditos do Eixo” foi utilizada para designar alemães, japoneses e italianos que se encontravam no Brasil. A conotação em torno do termo súdito remete à submissão à vontade do outro e ao dever de obediência. O Eixo inicialmente foi formado pela aliança entre a Itália, Alemanha e Japão, em 1936. Os “eixistas” passaram a ser considerados submissos aos ideais políticos de seus países de origem e desta forma, considerados como ameaça potencial. A disseminação deste termo transformou estes cidadãos em representantes de perigo à segurança nacional, fator este que legitimava determinadas práticas de repressão. Os alemães, contudo, foram o alvo principal da campanha da política de repressão aos estrangeiros. (PERAZZO, 2009, p. 28-176) 50 No Filme-documentário feito por uma de nossas colaboradoras há um emocionante depoimento do que se deu nesta época. Há relatos de como as pessoas literalmente emudeceram e passaram a sentir medo de desconhecidos, que por ventura pudessem escutá-las falando alemão e denuncia-las. Há 58 escolas brasileiras criou problemas para que se encontrasse número suficiente de professores, o que fez com que o nível de muitas escolas fosse rebaixado. Muitas vezes, professores e alunos não se entendiam, uma vez que falavam idiomas diferentes. O fechamento das associações recreativas interrompeu a vida social da população, a apropriação pelo Estado de escolas, hospitais e prédios assumiu, aos olhos da população, caráter de “roubo legal.” (ALBERSHEIM, 1962, p.183) Selecionamos alguns comentários de entrevistas realizadas por Albersheim (1962, p.184-185) com membros de uma comunidade em Jarim, no Vale do ItajaíSanta Catarina (local citado anteriormente) que ilustram a reação da população à campanha de nacionalização. “Senti-me como membro de uma tropa de ocupação em território estrangeiro.” (diretor de um grupo escolar luso brasileiro, enviado para a região em 1944). (p. 184) “A campanha de nacionalização fechou as boas escolas, substituindo-as, e apenas em parte, por outras que estão longe de chegar aos pés das alemãs e deu margem a uma série de perseguições de ordem pessoal, sob a falsa bandeira de nacionalização.” (p.184) “A população falava alemão porque nunca lhe haviam dado bons professores de português; mas, os que falavam português sabiam-no melhor que muito brasileiro e não cometiam erros de gramática e ortografia.” (p.184) “Toda minha família foi presa; tinham uma pequena fábrica e falavam alemão. Como é que meu avô depois de velho vai aprender outra língua? Lá na prisão davam óleo de espingarda para beber, como castigo. Muitos devem ter bebido gasolina, com um fósforo aceso para não esquecer tão facilmente.”(p.185) “Os soldados saiam para a colônia e prendiam os colonos que falavam alemão; uma vez trouxeram um que falou em alemão com seus cavalos. Deixaram os animais e o arado no campo e trouxeram o homem...”(p.185) também o seguinte relato: “uma língua não se aprende por decreto” em alusão à abrupta obrigatoriedade em se falar somente a língua portuguesa. 59 “As ruas esvaziaram-se, ninguém queria sair de casa e os colonos pediam ao leiteiro para comprar o que necessitavam. Morreram os clubes todos, não havia mais vida na colônia (...).” (p.185) “O tempo de guerra foi terrível e sem razão. Não havia nazistas em Jarim; nunca houvera. O que interessava era o que se plantasse e colhesse, não importa em que língua. O que ocorrera durante a guerra causara o atraso de Jarim, que nunca mais se recuperará.”(p.185) “O mal que os nazistas fizeram foi muito inferior ao que foi causado pela campanha de nacionalização.” (depoimento de um luso-brasileiro radicado na região) (p.185) Albersheim salienta que, com exceção de parte mais idosa da população, o bilinguismo (alemão-português) foi tornando-se geral, tanto no que se refere à língua falada normalmente, como a utilizada em apresentações públicas, no teatro, igreja, discursos, no jornal ou no rádio; caracterizando-se como forma de resistência às medidas impostas. Além de questões específicas contra os chamados Súditos do Eixo a instauração do Estado Novo por parte do governo brasileiro buscou ainda, de acordo com Carneiro (2007), impedir a imigração dos judeus refugiados do nazismo. Indiferentes à situação vivenciada pelos mesmos na Europa, optou-se pela adoção de uma política imigratória seletiva e restritiva. Sob argumentos antissemitas, a imigração de judeus foi considerada ameaçadora à integridade étnica e religiosa da população brasileira (branca e católica). Ao Estado coube selecionar o tipo de imigrante que ingressaria no Brasil e ao conter a entrada de judeus, buscou-se evitar a proliferação de doutrinas perigosas à segurança nacional e ainda a entrada no país de uma “raça considerada inferior” (CARNEIRO, 2007, p.1). A lógica era de que o equilíbrio social, racial e político só poderia ser alcançado por meio da intervenção direta do Estado que, sob a liderança de Getulio Vargas (1897-1954), se apresentava como capacitado a transformar o Brasil numa nação forte e gerar um “novo homem” brasileiro. Por meio de ações preventivas e punitivas, o governo Vargas sustentou uma política imigratória antissemita com o objetivo de garantir uma imigração saudável e civilizada. É importante lembrar que os refugiados judeus eram, em grande parte, profissionais liberais, comerciantes, intelectuais e ativistas políticos excluídos da sociedade alemã e dos países ameaçados de ocupação pelos nazistas desde 1933. (CARNEIRO, 2007, p.1) 60 A liga pangermânica e o nazismo no Brasil Em 1891, foi criada na Alemanha a Liga Pangermânica (Alldeutscher Verband). Seu intuito era preservar a nacionalidade alemã, “divulgando e propagando os planos expansionistas da germanidade e a união integral da germanidade em todo o mundo, bem como campanha pela germanidade no exterior.” (MAGALHÃES, 1998, p. 105) No século seguinte, soma-se a estes objetivos, a extensão dos direitos de cidadania dos alemães no exterior, sob argumentos baseados no jus sanguinis (direito de sangue). Conforme Fernandes (2011) as ideias propagadas incentivavam a conservação do Deutschtum, uma vez que a germanidade era uma questão herdada por laços culturais sendo considerado alemão quem possuía o sangue alemão. O mesmo autor refere que a Liga Pangermânica considerava os colonos no Brasil como “alemães no exterior” e estes representando, portanto, o reino alemão e, além disso, um atrativo mercado consumidor de produtos alemães. (p. 14, aspas do autor) A Liga Pangermânica tinha interesses econômicos no Brasil e era consenso considerar o local de residência de alemães, também como território alemão. Assim, criava contornos a ideia de se constituir “uma nova Alemanha na América do Sul” (HELL, 2008 apud FERNANDES, 2011 p. 14). Alemães residentes no Brasil, por sua vez, propagavam estas ideias e desta forma, foram considerados resistentes à integração a sociedade brasileira. Muito além dos interesses econômicos, os pangermanistas visavam: expandir o território alemão e manter a consciência nacionalista dos alemães que imigraram, pregando a necessidade de manterem seus costumes e auxiliando financeira e ideologicamente instituições como escolas, igrejas e demais instituições culturais. (FERNANDES, 2011, p. 16) Tais ideias eram divulgadas por periódicos alemães de circulação no Sul do Brasil e sua influência mais direta recaiu sobre as escolas de língua alemã, que preparavam crianças e jovens para o pangermanismo do futuro. (MAGALHÃES, 1998) 61 A liga Pangermânica, portanto, não só era partidária de uma Grossdeutschland, mas também de uma entidade que incluiria todos os alemães do mundo, não importando o país em que vivessem. Esta comunidade seria possível porque a nacionalidade, para o alemão, é obtida por direito de sangue e não pelo fato de ter nascido na Alemanha. Neste sentido o cidadão pode ser vinculado a um Estado, mas não ao nacional. Por isso, na concepção pangermânica, todos os alemães e descendentes em todo o mundo, poderiam formar uma unidade nacional sem se constituírem, necessariamente, em traidores dos estados dos quais são cidadãos. E assim sendo, trabalharem para tornar a Alemanha uma forte potencia mundial, seja abrigando mercados para a indústria e comercio alemães, seja divulgando a cultura alemã. (SEYFERTH, 1976, p. 45-46) Conforme Perazzo (2009, p. 243) “o pangermanismo permitia a preservação da imagem, da língua e dos aspectos culturais da pátria- mãe”. A partir de 1933, a causa nazista atraía a simpatia dos alemães no Brasil, que desenvolviam a ideia de constituírem um “pedaço da Alemanha” no Brasil, tomando-se como exemplo a forma como foram capazes de superar traumas e humilhações do passado, despertando formas de identificação e também o orgulho de ser alemão. “Mais que uma consciência ideológica propulsora de uma adesão partidária, o que estava em jogo nesse momento era a afeição pelo nazismo como manifestação de endosso àquilo que vinha da pátriamãe.” (PERAZZO, 2009, p. 243). Um dos entrevistados desta pesquisa corrobora com esta colocação de Perazzo ao mencionar esta questão como algo importante para os alemães, no sentido de exaltarem seu pertencimento, sem que se soubesse exatamente o significado ou intenções do partido de Hitler. Albersheim (1962) acrescenta ainda que em ambiente em que os elementos da cultura alemã eram valorizados em detrimento da brasileira, a admiração e amor pela longínqua Alemanha tornou muitas pessoas presas fáceis para os movimentos da propaganda nazista no Brasil. Para esta população, a nacionalização incitada pelo governo Vargas representou grande surpresa e injustiça; não se podia entender o significado desta ação dentro da atmosfera vigente. Dados de Dietrich (2007) revelam a existência de um Partido Nazista em São Paulo. Segundo estes, houve uma expressão relevante do partido na cidade, ainda que grande parte da comunidade não tenha se filiado formalmente. Ainda assim, havia partidários e representantes deste partido em praticamente todos os segmentos sociais e culturais, de modo direto ou indireto. “O partido tinha uma organização própria com 62 vários cargos, desde diretores a auxiliares e células nazistas ligadas a ele” (DIETRICH, 2007, p. 74). O principal objetivo era unir a comunidade alemã do Brasil à causa do Terceiro Reich, “chamando os alemães do exterior a formar a grande Comunidade Nacional.” (DIETRICH, 2007, p. 74) À exemplo do que ocorreu na cidade de São Paulo, Perazzo (2009, p. 238) coloca: A manutenção dos laços da comunidade alemã com a terra natal proporcionou as condições para que parte dos alemães de São Paulo aderisse às propostas do nacional-socialismo de Hitler e cultivasse no seu imaginário a identidade coletiva nazista que, associada ao sentimento de pertencer à nação alemã e à representação de heterogeneidade cultural da capital, fizera crer que, poderia preencher São Paulo com a sua cidade particular. No Sul do país, o Partido Nazista não se apresentou tão ativo como em São Paulo, ainda assim, o projeto de expansão da Liga Pangermânica mostrou-se interessado na região, sobretudo devido a suas características geográficas e ao clima, pontos considerados ideais para a expansão da raça ariana. De acordo com Lorenz (2008) a procura de possibilidades de instalação de brancos em regiões tropicais e de formação de um sistema colonial que pudesse preservar a identidade nacional alemã fora o grande objetivo na colonização da região Sul do Brasil. Havendo inclusive, debates científicos a este respeito: (...) que levaram à distinção entre o Brasil (mais precisamente a região Sul, zona de clima temperado) e outras regiões de emigração ou colonização alemã no mundo: os cientistas consideraram o Brasil um caso excepcional pelas possibilidades de manutenção da saúde física e da identidade cultural e, através disso, da endogamia “racial” das comunidades alemãs ali residentes há diversas gerações (...) aptidão extraordinária do sul do Brasil para as expansões alemãs. (LORENZ, 2008, p.34) Questões relacionadas ao nazismo, bem como a forma que este se expressou no Brasil, podem servir de pano de fundo quanto à forma como surge no imaginário social, ainda na atualidade. De alguma maneira, “o ser alemão51” é associado a este 51 De acordo com Moscovici (2003) no tocante às representações sociais, fruto de crenças fortemente cristalizadas e enraizadas estas passam a adquirir vida própria circulando e se encontrando, capazes de influenciar os comportamentos dos indivíduos, gerando movimentos que extrapolam grupos e englobam coletividades. 63 acontecimento e momento histórico e o reflexo disto é relacionado de modos diversos aos descendentes alemães até mesmo, diferentes gerações em suas famílias continuam lidando com desdobramentos de marcas cujo conflito advindo da representação social que lhes é atribuída em associação ao nazismo, ainda lhe ocasionam. Pudemos perceber a presença do referido conflito de forma pontual, na fala de dois de nossos interlocutores: “(...) eu sempre fui chamado de nazista assim, por apelido no colégio, depois na faculdade. Eu andava de cabelo raspado, então as pessoas me chamavam de nazista e eu não sei por que, mas esse pessoal também não se misturava com o meu grupo, entendeu?”(E.) “No colégio eu tive amigos espetaculares que conseguiram isolar esse fator histórico, sabe?”(E.) “Isso na faculdade eu fiquei com um pouquinho de raiva, isso tocou pra mim. Eu nunca tive raiva, mas desse pessoal aí, nossa, como é que pode, me chamavam mesmo de nazista, essas coisas... Bom, eu levava numa boa, numa boa... Mas era um apelido meio chato assim...”(E.) Este mesmo narrador relata um episódio ocorrido após o falecimento de sua avó em uma pequena cidade do litoral sul de São Paulo. Cabe ressaltar, que seus avós alemães construíram esta casa, que possuía características típicas da arquitetura alemã em sua composição em madeira. Sua avó era velha conhecida da cidadezinha, moradora por mais de 40 anos no bairro. Não se relacionava com quase ninguém, com exceção de alguns alemães e descendentes, moradores da região. Comunicava-se muito mal em português. “ Aí ficamos 6 meses ainda, a casa ficou lá 6 meses e aí em 6 meses os caras arrebentaram a casa, foi ladrão, arrebentaram com pé de cabra, todas as janelas de madeira, aquelas partes de madeira e , nossa, o medo é que botassem fogo na casa...” (E. ) Aqui se coloca em questão a origem do medo de E. Possivelmente os saques tenham ocorrido por ladrões, contudo, o medo associado ao “colocar fogo” extrapola condições apenas ligadas ao roubo de bens materiais. Destruir uma casa com 64 características germânicas pode ter outro significado para esta família, cujo avô fora sobrevivente de um navio ligado à SS, em missão na América do Sul. Algo que também pode ilustrar a presença desta questão para nosso narrador, é a forma como isto foi tratado pela família. No relato que segue pode-se perceber que é algo considerado como uma não verdade, ou meia verdade. “minha avó falou um negócio, durante a Segunda Guerra mundial eu não sabia que tinha campo de concentração, eu não sabia que isso tava acontecendo. Ela foi enfermeira durante a guerra e não tinha noção do que tava acontecendo, na cidade dela, ela morava em Erzgebierge bem perto da fronteira com a República Tcheca, ela simplesmente notava que os vizinhos ali, recebiam convites, os vizinhos judeus, eles também nunca eram de se misturar com os alemães, recebiam convites pra passar um tempo em algum lugar que ninguém nunca falava onde que era, e minha avó, isso antes da guerra estourar ainda, minha avó sempre estranhava e o pessoal ia brincar e tal e não se misturavam com a turma dela. No colégio, também era tudo separado, ficavam isolados... Eu não sei, mas ela me falou bem claro, eu nunca tive noção do que tavam fazendo, eu até duvido que tenha havido tanto extermínio como falam, porque eu fui enfermeira e não vi uma pessoa sendo sacrificada, da raça judaica e não vi uma pessoa ali, implorando por ajuda, eles simplesmente sumiram, simplesmente sumiram....” (E.) “Você vê tantos filmes de Hollywood e eu, eu não sei, eu não acho que foi um negócio tão forte como falam, como mostram. Ela me jurou, eu nunca vi isso. E lá na Alemanha me falaram a mesma coisa. Me disseram que sabem que foi uma decisão errada, eles não sabiam o que tava acontecendo, eram induzidos, pelo exército, pela massa, então sabe, isso.” (E.) Campos de concentração no Brasil Durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil vivia o período conhecido por Estado Novo. Entretanto, ainda que este momento político visasse o “abrasileiramento” dos estrangeiros, a posição do Brasil frente à Guerra era, até 1939, de pretensa “neutralidade”. Dados de Dietrich et al.(1997) mostram que o Brasil, durante o período inicial do conflito mundial, desfrutou de poder de barganha. Getúlio Vargas manteve dissimulada neutralidade perante aliados e eixistas, favorecendo suas negociações comerciais. Contudo, após receber ajuda financeira norte-americana para a construção da siderúrgica de Volta Redonda, o governo brasileiro aliou-se aos Estados Unidos, Inglaterra e França na luta contra os países do Eixo, em 31 de agosto de 1942 (DIETRICH et. al, 1997; RAMOS et. al, 2009). A partir de então, imigrantes alemães não eram mais bem vindos. Passaram a ser perseguidos e até mesmo presos em campos 65 de concentração, criados para abrigar exclusivamente prisioneiros do Eixo - alemães, italianos e japoneses - nas cidades de Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Bauru, Ribeirão Preto e Pirassununga, no interior Paulista. (PERAZZO, 2009) Segundo relatos levantados pela revista Época online (2004)52 os prisioneiros foram amontoados em caminhões e levados para o confinamento em chamados “Centros de imigração”. O Brasil manteve presos por anos pessoas devido a sua origem, cuja justificativa era tratarem-se de “prisioneiros de guerra.” Magalhães (1998) coloca que discriminações sofridas por imigrantes alemães e seus descendentes em virtude de sua origem, provocou nestes a convicção de que eram efetivamente estrangeiros e o seriam para sempre no Brasil. A discriminação sempre esteve presente, já no início das imigrações no século XIX, mesmo que de forma sútil. Seja pelo fato de professarem a religião protestante, utilizarem idioma estrangeiro ou mesmo por serem trabalhadores braçais. Com o surgimento do ideário nacionalista das elites brasileiras, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, o anti-germanismo revelou-se de maneira contundente. Naqueles anos de guerra, em nome da defesa da Pátria, depredaram-se lojas, associações e entidades de cultura teutas. Os retratos de familiares e também de seus ídolos nacionais eram quebrados, suas bandeiras rasgadas e a circulação de periódicos em língua alemã foi proibida. Nos jornais, notícias de toda ordem justificavam e estimulavam tais represálias: os teuto-brasileiros eram condenados como espiões, traidores e perigosos inimigos de todos os povos, merecedores, portanto, de uma pena capital - “Viva o Brasil, morte à Alemanha, gritavam os populares nas ruas das cidades.” (MAGALHÃES, 1998, p. 15) Desde 1938, alemães, japoneses e italianos vinham sofrendo cerceamento de sua cidadania no Brasil. Por representarem uma ameaça ao projeto nacional moderno sustentado pelo governo estado-novista, as colônias de imigrantes 52 Para maiores informações consultar http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR649266014,00.html. 66 estiveram sob constante vigilância policial, e os seus membros eram suspeitos em potencial de praticarem atividades políticas contrarias as propostas brasileiras” (PERAZZO, 2009, p. 77) No calor da atmosfera da campanha nacionalista de Getúlio Vargas, o intuito era que o cidadão indesejável fosse retirado do meio social, logo, em nome da manutenção da ordem, foram criados locais de internamento em quase todos os Estados brasileiros: Colônias penais agrícolas, escolas, asilos e hospitais eram transformados em prisões. Este sistema de internamento passou a ocorrer a partir do segundo semestre de 1942, com a entrada do Brasil na guerra em agosto. Desde então os prisioneiros do Eixo, como eram denominados foram recolhidos pela Policia Política ou pelo Exército que os encaminhava para campos recémcriados ou para presídios e colônias penais que adaptavam parte de suas instalações para acomodação da nova categoria de prisioneiros. (PERAZZO, 2009, p.97) Estes campos eram regulamentados pelas leis estaduais e voltados para trabalhos agrícolas ou pecuários desenvolvidos pelos internos. Eram compostos, em sua maioria, por alemães e em segundo lugar, por italianos seguidos dos japoneses. Eram presas pessoas consideradas como envolvidas em atividades políticas, de espionagem ou de sabotagem53. Os alojamentos eram em geral parecidos e bastante precários, a alimentação era complementada pela família dos internos. Havia certa liberdade de locomoção dentro dos limites dos campos ou cidades onde estavam localizados, embora sempre sob supervisão. Correspondências e encomendas eram censuradas. Houve muitos casos de desnutrição, doenças e falta de atendimento médico. (PERAZZO, 2009) 53 Segundo Fernandes (op. cit.) chamam a atenção alguns limites de veracidade apontados por denúncias contra alemães, demonstrando até mesmo, certo despreparo policial. O autor traz para tanto, como exemplo, a história de um consumidor que teve a boca ferida após comer pão originário de uma padaria alemã. A acusação era de tentativa de envenenamento. 67 Capítulo 2: A identidade como questão “[...] a realidade, sendo sempre síntese do subjetivo, determina que os conflitos sempre se expressem (e sempre sejam decididos) sob formas historicamente dadas, levandonos a recusar o modelo biológico da filosofia da história (passando então a ser importante explicitar o que queremos dizer quando falamos em sociedade ou cultura). A liberdade para virmos a ser humanos (não a liberdade vazia de qualquer coisa), recusando a coerção (uma objetividade em que subjetividade não se reconhece), cria o interesse de garantir a autoconservação da espécie, o interesse pela libertação- um interesse racional e não uma razão interesseira- o interesse pela progressiva humanização da espécie humana, que se elevou acima das condições da existência animal. Esse interesse é que determina o que merece ser vivido nas condições dadas.” (Antônio da Costa Ciampa) “[...] a identidade nunca existe a priori, nunca é um produto acabado; sempre é apenas o processo problemático de acesso de uma imagem de totalidade.” (Homi K. Bhabha) A exploração deste tema envolve um questionamento: a resposta dada por um indivíduo quando perguntado sobre quem é sua pessoa produziria um efeito que o torna perfeitamente previsível? É com esta indagação que Ciampa (2001[1987]) inicia a explanação do que entende por identidade. Esta, segundo o autor, configura uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, onde o indivíduo sempre é único na multiplicidade e na mudança e se revela naquilo que oculta. O processo de mudança é constante e nos tornamos algo que não éramos ou nos tornamos algo que já éramos e que estava embutido dentro de cada um. Identidade é uma junção de vários fatores. Iniciada por nosso nome, escolhido pelo grupo familiar, passa por várias expectativas que outros colocam em nós, chegando então no decorrer da existência em um ponto onde o indivíduo consiga nomear suas vontades, desejos, qualidades e ações. “O sujeito deixa de ser substantivo, ser nomeado, para ser verbo, ser ação” (CIAMPA, 2001, p. 170). 68 Ciampa coloca que para compreender o que é identidade é preciso ter claro o processo de sua produção. “A identidade é a articulação da diferença e da igualdade” (p. 138). É a estrutura social mais ampla que oferece os padrões de identidade; neste sentido, também se pode dizer que as identidades em seu conjunto, refletem a estrutura social, ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou transformando-a. Em cada momento da existência do indivíduo, embora sendo uma totalidade, manifestam-se partes de si como desdobramento das múltiplas determinações as quais está sujeito. Isto configura a identidade como algo não fixo e sim mutável, uma construção, um efeito, processo de produção e até mesmo um ato performativo. Ligada a estruturas discursivas, narrativas e ainda a sistemas de representação. (SILVA, 2003) Nas palavras de Almeida (2005): A noção de identidade tem se mostrado fecunda para o conhecimento de processos de mudança nas formas como os indivíduos se situam no mundo e em suas relações a partir de redefinições pessoais e da adoção ou manutenção de modos autônomos de gerir a vida. Ela nos permite desvelar como os processos de conformação e de alocação de lugares sociais informam a formação dos indivíduos e normatizam a expressão de seus desejos e projetos em nome da reprodução de sistemas de vida nem sempre propícios à ampliação das experiências sociais e à mudança de padrões tradicionais de reconhecimento social. Permite, também, considerar a participação do indivíduo na construção de seu modo de ser no mundo e de sua apresentação nas relações interpessoais. Tendo em mente o interesse emancipatório, a identidade afigura-se uma ferramenta importante para dar conta, por um lado, dos processos de ‘emudecimento do outro’, que induzem a conformidade e a mesmice e, por outro lado, dos processos de auto-reflexão e entendimento que estão na base da autonomia e da assertividade pessoal. (p. 3-4) Almeida (2005) posiciona a identidade como “um jogo dialético entre a diferença que se estabelece na interação de indivíduos, envolvendo autoimagens e representações alheias reciprocamente orientadas.” (p. 52). É ainda produto da ideia que fazemos de nós mesmos e a ideia que outros fazem de nós em um encontro dialético dos modos que nos representamos e somos representados. A identidade é algo “suposto ou pressuposto” (idem, p. 53) uma vez que é formada a partir daquilo que nos é mostrado e, portanto visto ou percebido. O autor coloca que identidade “é algo que se constitui através de práticas, conhecimentos, envolvimentos pessoais, numa contínua articulação significativa das experiências vivenciadas pelos indivíduos em suas relações com os outros e consigo 69 mesmos(...).” (p.53-54). Está em processo contínuo de transformação e simultaneamente de interiorização. A identidade forma-se na dialética indivíduo sociedade. De acordo com Jacques (1998) existe um panorama de autores que empregam distintas expressões como imagem, representação e conceito de si na discussão de identidade. Em comum, caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de autonomia e consideram a identidade como gerada pela socialização garantida pela individualização. Na Psicologia Social, a identidade como problemática ocupa lugar importante na tradição interacionista simbólica, em trabalhos pioneiros de George H. Mead. “(...) o processo do qual surge a pessoa é um processo social que envolve a interação dos indivíduos do grupo e envolve a pré existência do grupo.” (MEAD, 1972, p. 193) Ciampa (2001) em acordo com as noções tratadas por Mead acrescenta que o conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social, grupo este que acaba por ser determinante na configuração subjetiva do indivíduo. Pode-se exemplificar com crianças em seu processo de desenvolvimento que, logo nas idades iniciais passam a compreender como os outros são enquanto aumentam sua compreensão de senso de si mesmas. Reconhecer-se e ter sua identidade em grupos que existam objetivamente, onde se trabalha ou se tem alguma prática são fatores que levam a existência em atividade, esta é reconhecida por meio da ação praticada pelo indivíduo. “Nós somos nossas ações, é pelo agir que se é (...). Onde a identidade aparece e se estabelece pelas ações do sujeito” (Ciampa, 2001, p. 203). Os sistemas identificatórios são por vezes subdivididos e a identidade passa a ser qualificada como identidade pessoal - atributos específicos do indivíduo (JACQUES, 1998) e identidade coletiva - atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias (CIAMPA, 2012). Esta última, ainda recebe predicativos mais específicos como identidade étnica, religiosa, profissional etc. (JACQUES, 1998) 70 A identidade tem seu desenvolvimento determinado por condições históricas, sociais e materiais dadas, somadas ainda às formas como o próprio indivíduo elabora tais condições. Desta maneira, a concretude da identidade está em sua temporalidade: passado, presente, futuro. É, portanto, síntese de múltiplas e distintas determinações. (CIAMPA, 2001[1987]) A construção social da realidade- contribuições de Peter Berger, Thomas Luckmann e Georg H. Mead A realidade é construída socialmente e desta forma não há como se pensar a constituição de identidades à parte deste fato. A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 35) O mundo da vida cotidiana é tomado como realidade pelos membros da sociedade em sua subjetividade, no modo como apreendem este à sua conduta, no sentido que imprimem às suas vidas. “mundo que se afirma no pensamento e ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles.” (idem p.36) Peter Berger e Thomas Luckmann apontam a formação de intersubjetividades e a apreensão destas nas experiências subjetivas da vida cotidiana. Interessa-lhes o caráter intencional, comum de toda consciência e estudam a vida cotidiana, uma vez que ocorre nesta, a tensão da consciência em seu máximo. Logo, se configura no cotidiano a realidade experimentada pelos sujeitos, que neste contexto, desenvolvem sua atitude natural. Trata-se de uma realidade instituída antes do sujeito “entrar” nesta, com seus objetos, valores. Realidade esta, anteriormente dotada até mesmo pelo local geográfico onde o sujeito nasce, com seu relevo, clima e territórios já definidos. A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do ‘aqui’ de meu corpo e do ‘agora’ do meu presente. Este ‘aqui e agora’ é o foco de minha atenção à realidade da vida cotidiana (...). A realidade da vida diária, porém não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça fenômenos que não estão presentes no ‘aqui e agora. ’ (BERGER & LUCKMANN, 2011, p.39) 71 O elemento da realidade cotidiana mais próximo do sujeito é aquele em que o mesmo tem acesso, quase que por sua manipulação corporal. É aquela realidade em que o indivíduo pode atuar modificando-a, implementando-lhe aspectos seus como, por exemplo, por meio da atuação pelo trabalho. Cabe ressaltar, que o “aqui e agora” da atuação do sujeito não impede que zonas distantes também estejam presentes nas ações, por meio da memória e também através do que os autores nomeiam como mundo intersubjetivo. A realidade da vida cotidiana apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com outros homens. Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras realidades das quais tenho consciência. Estou sozinho no mundo de meus sonhos, mas sei que o mundo da vida cotidiana é tão real para os outros quanto para mim mesmo. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 39) Não há existência na vida cotidiana senão em-relação. A noção de intersubjetividade acontece no encontro com o outro e também agrega o sujeito à vida em sociedade, ao mesmo tempo em que promove seu desenvolvimento pessoal (social e também cognitivo). É possível reconhecer a alusão de Berger & Luckmann (2011) às proposições de Georg H. Mead e a compreensão destas para a interação do homem na realidade cotidiana, quando colocam: Sei que minha atitude natural com relação a este mundo corresponde à atitude natural dos outros, que eles também compreendem as objetivações graças às quais este mundo é ordenado, que eles também organizam este mundo em torno do aqui e agora de seu estar nele e têm projetos de trabalho nele. Sei também que os outros têm uma perspectiva deste mundo comum que não é idêntica à minha. Meu ‘aqui’ é o ‘lá’ deles (...) de todo modo sei que vivo com eles em um mundo comum. (BERGER & LUCKMANN p.40) Cabe a reflexão sobre a inter-relação existente entre a intencionalidade do sujeito elaborada à partir da aquisição do “outro generalizado” ou seja, partindo-se das proposições de Mead quanto a formação do self. A formação do self (que caminhará junto ao desenvolvimento da personalidade) contém a apreensão do “outro” enquanto instituição relevante na vida do sujeito, na adoção das atitudes desta, ou seja, o assim chamado “outro generalizado” (SOUZA, 2006). 72 O comportamento passa a ter sentido para o indivíduo quando este se exterioriza, tornando-se atitude, disposição para a conduta. Logo, para Souza (2006) em sua leitura de Mead, a natureza da consciência é social, dialeticamente funcional e passa a ser o princípio que permite ao sujeito compartilhar conceitos, viabilizando assim sua participação, ação e também inserção na sociedade, o que marca uma fase decisiva na socialização (SOUZA, 2006; BERGER & LUCKMANN, 2011). Berger & Luckmann colocam que a formação na consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva na socialização. “Implica a interiorização da sociedade enquanto tal e da realidade objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e continua” (p.173). A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam subjetivamente no mesmo processo de interiorização. Esta cristalização ocorre juntamente com a interiorização da linguagem. Aquilo que é “real fora passa a ser real dentro”. (idem, p. 173) É pelo compartilhamento intersubjetivo por meio da linguagem que o sujeito se constitui. Isto se inicia ainda na infância, quando a criança gradualmente aprende o processo de apropriação da atitude do outro durante o brincar (conceito nomeado como play and the game)54, organizando este outro para si, como o outro generalizado (SOUZA, 2006). No game a criança aprende jogos “de regras” algo extremamente importante para a convivência social. A criança desenvolve o seu self ao mesmo tempo em que compartilha, apreende e treina experiências com os outros. A formação de seu próprio repertório dá-se emrelação com outros selves em processo reflexivo e sempre social. A organização do repertório comportamental da criança se desenvolve em atos e também em atos-resposta às atitudes do outro (MEAD, 1972, interpretação nossa55). De acordo com Mead a 54 Conceito amplamente explicado e exemplificado na obra original de Mead intitulada “Mind, self and society. From the Standpoint of a social behaviorist. Chicago: The University of Chicago Press, 1934”. 55 “(...) These responses must be, in some degree, present in his own make-up. In the game, then, there is a set of responses of such others so organized that the attitude of one calls out the appropriate attitudes of the other.” (Mead, 1972, p. 151) 73 experiência do self reflete a sociedade de modo total (cabe ressaltar que o self é uma instância construída na interação em sociedade, não “está” no sujeito desde o nascimento). É, portanto, nas trocas simbólicas, por meio da linguagem (incluindo- se também gestos) que a comunicação interna se desenvolve. Constitui-se uma forma de consciência de si mesmo a partir do contato com o outro. É como “tornar-se objeto para si mesmo” (MEAD, 1972, p.138) aquisição esta mediada pela intersubjetividade promovida pela comunicação. Registramos e pensamos a partir de nossas experiências vividas e compartilhadas. Conforme Souza (2006, p. 53) o outro generalizado seria uma espécie de influência da socialização na constituição do self e assim na própria individuação do sujeito. Um outro “outro”, que possibilitará a internalização de regras sociais. Desta forma, a personalidade estaria relacionada ao social e com o meio linguístico de modo intrínseco. O sujeito passa a interagir no mundo pela apropriação do outro, o que permite, por sua vez, também a reflexão de si mesmo. Nas palavras de Mead (1972) citado por Sass (2004, p. 280): É na forma do outro generalizado que os processos sociais influenciam o comportamento dos indivíduos neles envolvidos e que são executados, quer dizer que é nessa forma que a comunidade exerce seu controle sobre o comportamento de seus membros; porque é nessa forma que o processo entra como um fator determinante do pensamento individual. Pelo pensamento abstrato o indivíduo assume para si a atitude do outro generalizado, sem referencia à expressão que esse outro generalizado possa assumir para qualquer outro individuo particular; e pelo pensamento concreto assume essa atitude em que é expressa nas atitudes para o seu comportamento, por parte daqueles outros indivíduos com quem está envolvido na situação ou no ato social. Mas, unicamente adotando a atitude do outro generalizado para si, por uma dessas maneiras, pode o indivíduo pensar, porque apenas assim pode se dar o pensamento. E somente através da apropriação pelos indivíduos da atitude ou das atitudes do outro generalizado para si mesmo que pode existir um universo de discurso, como um sistema de significados comuns ou sociais que o pensamento pressupõe. 74 Fases do self Georg H. Mead explica as fases do self determinando o “eu” e o “mim”. Segundo a leitura de Souza (2006, p.58) o mim exprime convencionalidade, tradição e adaptação e o eu, indica a novidade, originalidade e criação. No meio social, são as atitudes do outro que constituem o mim organizado e então o sujeito reage a estas atitudes com o eu. O self, produzido no confronto entre o eu e o mim, assegura a incorporação de atitudes sociais o que possibilita a socialização do sujeito. (SASS, 2004; SOUZA, 2006) De acordo com Werle (2008, p. 44) a consciência deve ser entendida como fluxo de pensamento e vivências originadas na relação dinâmica entre uma pessoa e seu ambiente significativo. Mead compreende, desta forma, a construção da identidade como um processo de aprendizagem social intersubjetiva. Logo, “ver o seu próprio comportamento a luz do comportamento do outro é o que modela o self ”. (idem p. 44) Trata-se de pensar a identidade dos indivíduos socializados como sendo formada, ao mesmo tempo, por meio do entendimento linguístico com os outros e por meio de uma compreensão intra-subjetiva, histórica e vital consigo mesmo. A individualidade forma-se nas práticas e estruturas de reconhecimento intersubjetivo e na autocompreensão mediada intersubjetivamente. (WERLE, 2008, p.43) O autor refere Mead em seu entendimento da identidade, não como algo que o individuo “possui”, mas sim uma construção desta em meio a processos comunicativos, que envolvem constantes “ajustes reflexivos do comportamento” sempre em consideração a conduta de outros cujos papéis assumimos. (WERLE, 2008, p. 45) Na leitura de Juergen Habermas56, a obra de Mead auxilia a conceber a identidade pessoal enquanto processo de aprendizagem mútua, que possibilita que se 56 Para um maior aprofundamento acerca da discussão feita por Habermas sobre George H. Mead consultar: Juergen Habermas- Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2002. 75 vislumbrem potenciais emancipatórios de uma razão comunicativa na realidade social do indivíduo que pode até mesmo resultar em formas e modos de maior liberdade, formas de inclusão e participação democrática na vida em sociedade. (WERLE, 2008) Sociedade: uma realidade subjetiva e objetiva A sociedade é um produto humano e o ser humano é produtor da sociedade em dialética permanente. Logo, a compreensão da interação sociedade-sujeito envolverá aspetos objetivos e subjetivos. A sociedade a ser entendida nestes dois âmbitos, leva em conta três momentos: exteriorização, objetivação e interiorização. O sujeito em sociedade exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este como realidade objetiva. (BERGER & LUCKMANN, 2011). O indivíduo não nasce membro de uma sociedade, mas sim apto a tomar parte da dialética desta. Processo este que abarcará o ambiente em que o sujeito será socializado, sendo o ponto inicial deste processo a interiorização- a apreensão de um acontecimento objetivo dotado de sentido, por meio da manifestação subjetiva de outrem. A subjetividade do outro é acessível e base da interiorização que passa a ser a base primeira da “apreensão do mundo como realidade dotada de sentido” (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 168) Por meio da interiorização, o indivíduo não só compreende a subjetividade do outro como também o meio em que vive e este meio, por sua vez, passará também a ser o seu mundo. Somente depois de acessar a interiorização é que o sujeito se torna membro da sociedade. O processo pelo qual isto se realiza chama-se socialização, definido como a introdução do indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou setor dela. A primeira socialização que o sujeito experimenta na infância acontece junto às figuras centrais, aquelas mais próximas nesta fase de vida (por exemplo: pai e mãe). Posteriormente ocorre a socialização secundária que é o processo que introduzirá o sujeito, já socializado, a novos setores do mundo objetivo da sociedade. Cabe ressaltar que a socialização secundária decorre da forma como se deu a socialização primária, como os elementos subjetivos foram apreendidos em forma de outros significativos e o modo como junto a estes decorreu a sua mediação com o mundo. 76 É a percepção destes “outros significativos” que irá permear a forma que se percebe o mundo (incluem-se também tradições e culturas). A interiorização dos elementos do mundo ocorrerá pela identificação com os outros significativos- a criança absorve os papéis destes e os interioriza por identificação de modo dialético. Importa-nos mais aqui (...) o fato do indivíduo não somente absorver os papéis e atitudes dos outros, mas nesse mesmo processo assumir o mundo deles. De fato, a identidade é objetivamente definida como localização em um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com este mundo. (BERGER & LUCKMANN, 2011, p. 171) Desta forma, entende-se que as identificações sempre se realizam em mundos sociais específicos. Apropriação subjetiva da identidade e do mundo social são aspectos do mesmo processo de interiorização. (BERGER & LUCKMANN, 2011) Não se nasce imigrante, torna-se um - Identidade e o fenômeno migratório. Para que se inicie este tópico da discussão, faz-se interessante a colocação de Sayad (1998) quanto à imigração enquanto objeto sobre o qual pesam várias representações coletivas. Segundo o autor, a imigração submete-se a estas representações que, uma vez constituídas, transformam-se em realidades parcialmente autônomas- “com eficiência tanto maior quanto essas mesmas representações corresponderem a transformações objetivas, ou seja, estas condicionam o surgimento daquelas.” (p. 57). Em se tratando a identidade de importante categoria no auxílio do entendimento do sujeito em sua totalidade, é relevante a compreensão das metamorfoses que os sujeitos vivenciarão no contexto migratório. Ciampa (2001) ressalta a identidade compreendida como metamorfose e nunca como algo cristalizado. Em sua visão, cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida, no emaranhado das relações sociais. Stuart Hall, importante autor ligado aos estudos culturais, corrobora com este prisma, quando afirma: 77 (...) a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo (...) não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. (HALL, 2011, p. 39) (...) Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (idem p.38-39) De acordo com Stuart Hall (2011) o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. O autor discute para tanto, a ideia de identidade culturalesta enquanto exemplo de comunidade, que busca recuperar a verdade sobre o passado na unicidade de uma história e de uma cultura partilhadas. Hall, em sua concepção de identidade cultural, refere a questão tanto do tornar-se quanto de ser. Não significa negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que ao reivindicá-la, pode-se reconstruí-la; o passado sofre constante transformação na forma do presente. Esse passado é parte de uma “co-munidade imaginada57” comunidade de sujeitos que se apresentam como sendo um “nós”. O autor argumenta que construída na diferença, a identidade não tem significado fixo – não é completamente fixa ou completa, de modo que sempre existem formas de deslizamento- com esta posição Hall enfatiza a fluidez da identidade. “Ao ver a identidade como um ‘tornar-se’ visa àqueles que são capazes de posicionarem-se a si próprios e de reconstruir e transformar identidades históricas herdadas de um suposto passado comum”. (WOODWARD, p. 28) Não se pode pensar a identidade sem sua base na constituição de sujeito construído históricamente. Para Castells (1999), a construção da identidade vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e 57 Para maior esclarecimento acerca das comunidades imaginadas consultar Benedict AndersonComunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das letras, 2008. “Mais que inventadas, as nações são imaginadas, no sentido de que fazem sentido para a alma e constituem objetos de desejos e projeções” (Anderson, 2008, p.10) 78 revelações de cunho religioso. Todos estes materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos enraizados na sua estrutura social. Logo, quem constrói a identidade coletiva e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico desta identidade, bem como, seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem. “A construção da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder.” (CASTELLS, 1999 p. 24). Neste contexto, em se tratando das relações de poder existentes nos diversos campos sociais58 tem-se na teoria crítica da sociedade, um aporte que ilumina a compreensão do modo como identidades se constituem. A estrutura lógica da teoria crítica capta a dimensão histórica dos fenômenos, dos indivíduos e das sociedades. Também nessa lógica, trabalha inicialmente com determinações abstratas. Ao tratar o momento histórico, parte de uma concepção da economia baseada na troca. Os conceitos marxistas de mercadoria, valor, dinheiro, acumulação podem funcionar como conceitos gerais aos quais uma realidade concreta pode ser assimilada. A teoria crítica procura integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado, relacionando-o sempre com o conhecimento que já se tem do homem e da natureza naquele momento histórico. (FREITAG, 1986) A teoria começa, pois, com uma idéia relativamente geral da troca simples de mercadorias, representada por conceitos relativamente gerais. Pressupondo todo o conhecimento disponível e assimilando todo o material resultante de pesquisas próprias e alheias, procura mostrar como a economia de troca nas condições atualmente dadas, conduz necessariamente ao agravamento das contradições na sociedade, o que na época da criação do Instituto de Investigações Sociais em Frankfurt (Institut fuer Sozialforschung) foi um grande tema, que levava a guerras e revoluções. (FREITAG, 58 Woodward (2003, p. 30) aponta os “Campos sociais” em alusão a Pierre Bourdieu. Os campos sociais englobam famílias, grupos de colegas, instituições educacionais, grupos de trabalho, partidos políticos etc. Os sujeitos participam destes, exercendo variados graus de escolha e autonomia, cada um contendo seu contexto material e um conjunto de recursos simbólicos. Uma casa é o exemplo de um espaço onde as pessoas vivem diferentes identidades familiares. 79 1986). A teoria crítica abarca tais fenômenos em sua compreensão sócio-histórica. O teórico não tradicional assume a condição de analista e crítico da situação, procurando colaborar na intervenção e no redirecionamento do processo histórico em favor da emancipação dos homens em uma ordem social justa e igualitária. Para Horkheimer, praticar teoria e filosofia é algo inseparável da ideia de nortear a reflexão com base em juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a autonomia do homem. (FREITAG, 1986; SLATER, 1978) Tais contradições na sociedade levam, ainda no momento atual, a guerras e conflitos59, bem como, fluxos migratórios são parte integrante e também consequente deste processo que decorre, além dos conflitos em si, em mudanças econômicas, mudanças nas relações de trabalho e no relacionamento entre as pessoas envolvidas: aqueles que migram, aqueles que permanecem em suas culturas e aqueles que convivem (ou virão a conviver) com os “estrangeiros”. Segundo Guareschi et al. (2003) e Ulrich Beck (1999) mudanças trazidas pela globalização envolvem a interação entre fatores econômicos e culturais, promovendo rápidas mudanças sociais e deslocamento de culturas. Tais mudanças certamente abalam a vida local. Local já sem identidade objetiva fora de sua relação com o global, em resposta decorre uma tendência à homogeneização60 da cultura. Questiona-se o fenômeno migratório aqui compreendido, não como mero deslocamento de pessoas a espaços diversos, mas este reconhecido como agente da hibridização de culturas que, ao se misturarem em contexto possibilitado pela globalização, abrem portas para a manutenção de ideais xenofóbicos, fruto da não 59 Há diversos exemplos na atualidade que ilustram esta questão, como os conflitos ligados ao advento do 11 de setembro nos Estados Unidos, a Primavera árabe, a guerra civil na Síria entre outros. 60 Cabe a discussão de Berger & Luckmann (2005) sobre a crise de sentido vigente na sociedade moderna. “Talvez o fator mais importante no surgimento de crises de sentido na sociedade e na vida do indivíduo não seja o pretenso secularismo moderno, mas o moderno pluralismo. Modernidade significa um aumento quantitativo e qualitativo da pluralização. São conhecidas as causas estruturais desse fato: crescimento populacional e migração e, com isso, um aumento de cidades- pluralização no sentido físico e demográfico; economia de mercado e industrialização que misturam pessoas dos mais diferentes tipos e que as forçam a chegar a um entendimento mais ou menos pacífico (...).” (p.49) 80 incorporação destas pessoas em movimento, das necessidades do mercado e das dificuldades com a receptação do que difere. “O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade. A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social e, ao mesmo tempo pedagógico (...)”. (SILVA, 2002, p. 97) Almeida (2005) refere o desenvolvimento do indivíduo em uma relação dialética entre a singularidade e a individualidade. Expõe, como exemplo, a individualidade segundo a ótica de Juergen Habermas: “a individualidade não é pensada, em primeira linha, como singularidade, (...) mas como realização própria, - e a individualização como uma realização própria do indivíduo (HABERMAS, 1990 apud ALMEIDA, 2005 p. 33). Habermas considera o agir orientado para o entendimento como possibilidade de existência de uma sociedade livre de coerção. As pessoas, através do consenso propiciado pelas ações comunicativas, viabilizam a própria reflexão e por sua vez, autonomia. Nas palavras do autor: Somente na medida em que crescermos no interior desse ambiente social, poderemos constituir-nos como indivíduos capazes de agir de maneira responsável e desenvolver pelo caminho da internalização dos controles sociais a capacidade de seguir por conta própria as expectativas tidas como legítimas ou de ir contra elas. (HABERMAS, 2002, p.215) De acordo com Habermas, tornar-se indivíduo leva em conta a socialização do sujeito em seu meio social, sempre mediado pela linguagem. Contudo, a individuação ocorre por vezes de modo forçado, irrefletido. O indivíduo tem que se adequar para estar e viver em sociedade tem de aceitar normas e regras para a vida comum como que em um “engolir goela abaixo” (CIAMPA, 2012). Por outro lado, o sujeito que consegue transpor a individuação acrítica se individualiza. Sabe, portanto, separar o que é seu daquilo que foi imposto. (...) os sujeitos precisam criar suas formas de vida integradas socialmente reconhecendo-se reciprocamente como sujeitos capazes de agir autonomamente e, além disso, como sujeitos que são responsáveis pela continuidade de sua vida, assumida de modo responsável. (HABERMAS, 2002 p. 233) 81 Exemplos de individualização são trazidos por nossa colaboradora, nos trechos que seguem: “(...) então aquilo foi despertando em mim uma ideia de que não era pra eu me dirigir pra esse lado, entendeu, uma ideia assim de que eu tinha que ter profissão, tanto que sou a primeira mulher da família a ter diploma , um curso superior, a trabalhar fora, a primeira a separar né, então tem isso e eu acho que fui ficando assim. eu tinha isso sempre claro, que eu tinha que ser uma pessoa assim, quando falavam esse negócio de “não varre que você vai ter a vida inteira pra fazer isso” eu já pensava não, não quero fazer isso a vida inteira, já imaginava, falava não, não quero, entendeu?”(S.) “(...) Eu vivi essas coisas aí e tenho, exatamente por ter essa formação histórica, eu consigo ver minhas origens claramente, meus movimentos, os movimentos que a família fez, pra lá, pra cá (...). Então mais aí, essa independência econômica, financeira que eu sempre tive me deu mais independência, xingar a pessoa, brigar, a universidade, briga em empresa, isso realmente faz a diferença, eu acho que fez a diferença eu acho que eu vivi assim, ainda vejo, eu espero continuar assim, vendo o que ta acontecendo, entendeu?(S.) “O meu irmão mais velho, tem a nacionalidade austríaca, ele tem eu nunca pediria, jamais, que acho assim terrível, a gente já viveu muita coisa, viveu na ditadura e tal, terrível e agora que tá moleza viver no Brasil, não vou pedir outra nacionalidade, eu sou contra, eu não quero pedir essa nacionalidade.” (S.) Vivenciar papéis em uma nova realidade Ao se tratarem questões ligadas à imigração e ao relacioná-las com a constituição de identidades, propõem-se também noções de personagem sugeridas por Ciampa (2006). O personagem não perde a relação com o papel em que atua. Numa linguagem dramatúrgica, somos atores sociais quando desempenhamos papéis sociais determinados. Porém, eventualmente, além de simples ator, cada um pode construir sua personagem, com maior ou menor criatividade, tornando-se assim também autor. De alguma maneira, esta noção de personagem contém sempre algum grau de transgressão, porque assim se deixa de seguir simplesmente o que é convencionalmente posto. É uma transgressão que ao mesmo tempo exige criatividade, pois, ao abandonar o convencional, há que haver originalidade. “Logo, uma identidade concretiza uma política e dá corpo a uma ideologia” (CIAMPA, 2006, p.10). Almeida (2005) acrescenta que a interpretação de papéis viabiliza a participação do indivíduo em seu meio social uma vez que aprender um papel implica na aquisição de elementos cognitivos e afetivos, embutidos também de normas, valores e emoções 82 vinculados ao papel interpretado. Fonseca, 1988 citado por Almeida (2005, p. 56) salienta: “o desempenho de papéis entranha-se em nossa existência cotidiana até o nível de formas extremamente diluídas (...) estruturam pontualmente nossas ações, até os níveis mais sutis.” Pensando-se o fenômeno migratório à luz da identidade de papel desempenhada pelo imigrante em sua condição no novo país, é importante destacar-se como este imigrante virá a alcançar o desenvolvimento da sua identidade do EU (emprestamos este conceito de Habermas, 1983). Na leitura de Pescatore (1989), a identidade do eu tratada por Habermas, coloca o sujeito se descobrindo como alguém independente dos papéis que desempenha e que, justamente assim, se torna pessoa, passando de uma identidade a partir do desempenho de papéis, para uma identidade do EU- a ação adquire nova forma: Na fase em que adquire a identidade do eu, o sujeito é capaz de compreender e aplicar normas reflexivas e a partir de princípios, distingue autonomia de heteronomia. Porém, nem todos chegam à identidade do eu, pois é a identidade de papéis colocada pela sociedade que muitas vezes se mantém. A identidade de papéis pode ser mantida e estimulada, ganhando forma de identidade pressuposta, por vezes associada a uma trama que prende o indivíduo à repetição e assim, à mesmice de seu personagem que o impede de alcançar a mesmidade. Ao refletir acerca de tais questões, inspira-nos mais uma vez, Ciampa (2003) quanto ao sentido da vida, a ser entendido como luta ininterrupta e incansável pela emancipação humana: A identidade, individual ou coletiva é sempre a história de nossa metamorfose em busca de emancipação que nos humanize. A emancipação, que dá o sentido ético à metamorfose, pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela coerção, invertendo a metamorfose como desumanização. É assim que se revela a natureza intrinsecamente política da identidade. A destruição, a degradação e a indignidade de pessoas e grupos são formas de metamorfose, em última análise, provocadas pelo modo heterônomo por um poder interiorizado subjetivamente e- ou apenas- exteriorizado objetivamente. Ou seja, quase sempre, senão sempre, há um conflito político que se estabelece entre a pretensão de uma identidade social, de um lado, como auto-afirmação e hetero- reconhecimento de um projeto emancipatório e, de outro, hetero-afirmação de um projeto coercitivo ou de dominação. (p.3) 83 O autor entende a metamorfose humana como progressiva e infindável concretização histórica do vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades (CIAMPA, 2012). É desta forma, no enfrentamento e na superação das dificuldades, que seres humanos podem nascer e renascer para a vida. A partir da compreensão do processo de metamorfose enquanto construção das personagens pode-se vislumbrar a questão da emancipação enquanto resultado das metamorfoses do eu. Metamorfosear pode ser entendido como reconhecer-se e ser reconhecido como humano auto determinar-se (CIAMPA, 2012). O projeto emancipatório está relacionado ao momento histórico e social, bem como, com a inserção do indivíduo nestes. O desenvolvimento da identidade nestes âmbitos estará ligado ao projeto de emancipação individual, mas também com suas relações ao longo da vida. (...) a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente individual, mas acima de tudo relacional. Ela se constitui a partir de nossas relações sociais, definindo, consequentemente, nossa localização na sociedade. (CIAMPA, 2003 p. 8). Como as experiências migratórias marcam a vida dos sujeitos? Além disto, questiona-se a condição de opressão muitas vezes vivenciada por estrangeiros em suas experiências cotidianas no novo país de residência e a influência disto na constituição de suas identidades. Poderia esta condição colaborar com o surgimento de possibilidades emancipatórias na luta por sobrevivência e melhores condições de vida? Na busca pelo descobrimento do mundo, realização de sonhos e vivência de liberdade, qual é o significado de ser um imigrante? Propõe-se ir além, pensando-se a condição específica destes sujeitos: O que significa estar preso a uma condição da qual não se pode fugir e nem se pode negar: - a própria origem! Como se configura o futuro a partir desta condição posta? Desta forma, como se dá a constituição da identidade do imigrante? Como ela é elaborada em seu cotidiano e por que compreender este processo é relevante? 84 Pescatore (1989) explica que, na busca da concepção de si mesmo, o sujeito recolhe em si valores que constituem o ambiente social e integra as concepções que os outros têm dele. Esta busca por si mesmo e a necessidade de inventar o que deve ser, caminha junto à internalizações sociais ocorridas desde a infância e com consequentes papéis assumidos e desempenhados até então. Logo, ao migrar, o sujeito traz uma concepção de si que deverá ser de alguma forma reestruturada no novo país, de acordo com a nova realidade e também com o novo papel que desempenha. Sayad (1998) ao explanar a condição do imigrante traz reflexões que contemplam as colocações supracitadas: (...) contradição fundamental, que parece ser constitutiva da própria condição do imigrante, impõe a todos a manutenção da ilusão coletiva de um estado que não é nem provisório nem permanente, ou, o que dá na mesma, de um estado que só é admitido ora como provisório (de direito), com a condição de que esse “provisório” possa durar indefinidamente, ora como definitivo (de fato), com a condição de que esse “definitivo” jamais seja anunciado como tal. E, se todos os atores envolvidos pela imigração acabam concordando com essa ilusão, é sem dúvida porque ela permite que cada um componha com as contradições próprias à posição que ocupa, e isso sem ter o sentimento de estar infringindo as categorias habituais pelas quais os outros pensam e se constituem os imigrantes, ou ainda pelas quais eles próprios se pensam e se constituem (...). (p.46) De acordo com o autor, a sociedade daria a devida importância (lê-se existência) aos imigrantes apenas quando constituem um “problema”, ou seja, quando não mais fazem aquilo que se espera deles (trabalhar, por exemplo), ou mesmo quando começam a buscar participação na vida social em contextos de atuação política. Desta forma, pensa-se o imigrante situado entre o ser e o não ser social 61. Em resposta a tal 61 Em evento intitulado “Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio” discutiram-se políticas públicas relacionadas às questões dos imigrantes e refugiados. Neste debate foi feita a relação entre imigrantes e a loucura. A palestrante, Professora Felícia Knobloch discutiu sobre a loucura como sendo o grande tema em saúde pública nos anos 80 e 90 e atualmente, o imigrante é colocado junto ao “status” de louco, uma vez que é visto em todas as instituições por onde passa como portador da síndrome stress pós-traumático, e assim enquadrado como sofredor de um problema mental originado pelo “trauma da imigração.” Parte-se do pressuposto que a imigração em si será sempre problemática, ocasionadora de grandes problemas para o indivíduo e sociedade. Os desdobramentos disto para a identidade do sujeito, bem como, os impactos emocionais são enormes. (Simpósio Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio. 8 e 9 de novembro, 2013. Memorial da América Latina. Coordenação: Miriam Debieux Rosa, Sandra Luzia de Souza Alencar, Taeco Toma Carignato, IIana Mountian, Luiz Palma). 85 problemática gerada pelo entorno, o indivíduo pode responder com a mesmice de seu personagem, encarnando o que dele se espera. Ainda nas palavras deste mesmo autor: (...) é por fim, a sociedade de imigração que, embora tenha definido para o trabalhador imigrante um estatuto que o instala na provisoriedade enquanto estrangeiro e que, assim, nega-lhe todo o direito a uma presença reconhecida como permanente, ou seja, que exista de outra forma, que não na modalidade de uma presença apenas tolerada, consente em tratá-lo, ao menos, enquanto encontra nisso algum interesse, como se esse provisório pudesse ser definitivo ou pudesse se prolongar de maneira indeterminada. (SAYAD, 1998, p.46) Com a desculpa do uso do etnocentrismo para descrever qual imigrante é “educável”, ou “consertável” ou “evoluível”, sobretudo quando este é reforçado por aqueles que estão na posição de dominantes é assim todo o incentivo ao discurso proferido sobre todas as iniciativas moralizantes às quais os migrantes são submetidos. Salienta-se a inter-relação que se pode fazer entre os estudos de identidade e suas contribuições para a compreensão das relações migratórias, trazendo a junção destas idéias para o que se entende constituir-se de um amplo projeto de Psicologia Social; Traduzido nos dizeres de Guareschi et al. (2003, p. 32): Uma das marcas da Psicologia Social, tomada como um projeto mais amplo é a importância que esta deve dar ao contexto onde se dá a ação social, ao foco localizado e historicamente específico, à atenção às especificidades e particularidades articuladas a uma conjuntura histórica determinada, produzindo, então, pesquisas e teorias engajadas nas práticas e lutas sociais e nas diferenças culturais que constituem e são constituídas através das relações das pessoas. O interesse central da pesquisa dentro da área da Psicologia Social é perceber intersecções entre as estruturas sociais, os grupos sociais, a cultura, a história e as relações que as pessoas constroem e passam a ser construídas por elas (...). Finalmente, a importância da concepção de identidade, junto aos fenômenos migratórios, proporciona a criação de novas formas do coletivo e também propicia a reflexão acerca dos modos de socialização dos indivíduos em um mundo globalizado. Lembrando que o conhecimento do sujeito deve ser deste em movimento, possuidor e também buscador de possibilidades emancipatórias e que se faz conhecer, necessariamente, por sua subjetividade. 86 Capítulo 3 Anamorfose e o sujeito imigrante: usos do conceito na compreensão das (de)formações identitárias Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a ser fazer presente. (Martin Heidegger) As ideias a serem desenvolvidas neste capítulo baseiam-se no estudo de Juracy Armando Mariano de Almeida (2005) intitulado: “Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice”. Propõe-se relacionar suas proposições com a constituição das identidades de imigrantes, tomando-se a imigração como problemática que decorre no trânsito entre sociedades e que suscita transformações sucessivas, tanto naqueles envolvidos diretamente com o movimento migratório, como também para o entorno. Almeida propõe uma exploração teórica do uso da noção de anamorfose nos estudos de identidade humana. Realiza para tanto, analogias do modo como esta noção é usada nas artes. A anamorfose é trabalhada pelo autor como “lente para o estudo dos fenômenos de dominação e exclusão social que recaem sobre as chamadas minorias sociais- afetando os modos como suas identidades são construídas.” (ALMEIDA, 2005, em resumo de sua tese- sem número de página) O autor propõe a utilização dos elementos teóricos da identidade para pensar a ação coletiva, não de indivíduos em si, em seus enfrentamentos de situações pessoais restritivas ou como parte de tendências sociais, mas sim como integrantes de categorias sociais sujeitos a processos de dominação. Aprofunda desta forma, possíveis aproximações entre a identidade e seu entorno social, tratando como ponto nevrálgico, a discussão das relações entre processos de emancipação individual e grupal e também possibilidades de mudanças nas relações sociais existentes, constituindo o que pode ser considerado um processo capaz de mudar formas de sociabilidade e de favorecer que seres humanos sejam reconhecidos como sujeitos. “Trata-se de considerar as possibilidades de um conjunto de práticas e valores transcender particularismos, 87 fomentando a busca por novos critérios de existência e de convívio.” (ALMEIDA, 2005, p. 3) O foco da perspectiva em anamorfose é tomado pelo autor a exemplo desta inicialmente, como representada pela arte (a anamorfose pode ser utilizada ainda em outras áreas do conhecimento tais como Geometria, Geologia, Matemática, Arquitetura e Geografia). A perspectiva adotada por Almeida (2005) “Trata-se de uma inovação estética cujos pioneiros são Donatello (1386-1466, escultor), Brunelleschi (1377-1446, arquiteto), Masaccio (1401-1428, pintor) e Alberti (1404-1472, autor do tratado Della pintura, datado de 1435), os artistas Florentinos do Renascimento. Esta inovação foi consagrada nas pinturas de Fra Angélico, Botticelli, Leonardo da Vinci e Michelangelo.” (ALMEIDA, 2005, p.96). Tal forma de representação de objetos tratouse de uma nova técnica, diversa daquela adotada na pintura durante a Idade Media, cuja percepção baseava-se na religiosidade do mundo. Nesta dimensão renovada, os valores são traduzidos no tamanho entre as figuras, suas posições e também no material utilizado para pintar. Logo, como colocado por Martins (apud ALMEIDA, 2005, p. 96) “valores e costumes, por conseguinte, apresentam-se correlatos a ordenações visuais”. Baxandall citado por Almeida (2005, p. 98) retrata a adoção da perspectiva na pintura como tradução de um modo de pensar existente à época que, por um lado, predisporia o olhar das pessoas ao entendimento das obras de arte que se utilizassem dessa técnica e também, permitiria aos pintores explorarem esse recurso, certos de que suas produções seriam compreendidas pelos seus apreciadores, sem causar grande estranhamento. Na Renascença, era comum a ideia de medida, a utilização da geometria e o cálculo matemático de proporções, elementos usados no comércio local e nos projetos arquitetônicos da cidade: estes elementos favoreceriam certo “estilo cognitivo” propício à difusão e ao entendimento do novo padrão pictórico. (ALMEIDA, p. 98, aspas do autor) Silva Júnior (2001) apud Almeida (2005, p.31) propõe uma explanação do que ocorre com a figura em anamorfose: A anamorfose é uma figura em perspectiva deformada que, para ser reconhecida, exige do observador um deslocamento, um abandono de sua 88 posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista. Este ponto é sempre extremamente preciso, mas desconhecido, e sua descoberta revela, na figura ali incompreensível, formas finalmente reconhecíveis. De acordo com Almeida, o uso da anamorfose como perspectiva corresponde a uma nova organização da experiência visual correspondente na arte a um sentido admitido como uma potência do ser, possibilitando aos sujeitos desenvolverem formas de autoconsciência. A perspectiva é o “fruto de uma combinação entre arte e ciência, que tem na observação e descrição do referente exterior seu modo peculiar de afirmar um universo laico e empírico, não mais sujeito às constrições da religião” (FABRIS, 1998, apud ALMEIDA, 2005, p. 99). A anamorfose propõe uma nova proporcionalidade de visão da vida, como uma reiteração de formas de acordo com o olhar do expectador e também do lugar de ele onde olha. Supõe um novo olhar da mesma forma que também, uma deformação deste. (...) o modo como identidades são pensadas e tratadas socialmente, ou seja, como deformações dos modelos estabelecidos e hegemônicos nas relações interpessoais, surgindo aos olhos das pessoas comuns como distorções dos modos de ser considerados corretos e desejáveis; em outras palavras, a anamorfose corresponde ao significado atribuído a identidades pessoais e grupais que ultrapassam os limites consensuais. Por extensão, a noção também se refere ao modo como as pessoas podem se sentir quando vistas e avaliadas pelos outros sob o prisma dos modelos identitários dominantes. (ALMEIDA, 2009, p.3) Berger (1999) apud Flores (2007) salienta: A maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos. (...) Nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre olhando para a relação entre as coisas e nós mesmos. Flores (2007) coloca a significação da representação do mundo e das coisas do mundo como implicada com a forma de se olhar, de se perceber e, portanto, conceber o mundo. A forma como estas representações se dão é histórica e dependem ao mesmo tempo em que são parte da cultura. O espaço é o que um grupo humano toma como possível e em sua possibilidade interpretada, o representa. Modos de olhar são culturais e interagem com as formas de representação. (...) a formatação de um modo de olhar que busca a harmonia, a ordem, o acordo, a similaridade, a identidade e a significação intrínseca às coisas. Além disso, a convicção de que há sempre uma dualidade no mundo: o real e o aparente. E de que o aparente, que se dá na representação, é tão semelhante 89 ao real que chega a valer por ele. Ele é tão verdadeiro como o que está por detrás da representação. Desse modo, consideramos que por trás de um burguês há uma classe burguesa, uma forma de ser burguês; por detrás de uma mulher há sempre uma natureza materna (...) há uma estrutura básica do pensamento que se construiu e que se consolidou de tal forma que já não mais questionamos esses pressupostos. (FLORES, 2007, p.126) Segundo Flores, existe uma relação dicotômica entre saber e o olhar em relação ao mundo externo e ao sujeito. É mister que o modo de olhar e representar é trabalhado, construído e fabricado socialmente e resulta, por sua vez, em novas ordens de representação. Ordens estas que são ditadas por um a priori “relação de identidade, que se dá a partir de um modo perspectivado de olhar.” (FLORES, 2007, p. 129) Para olhar o mundo, o sujeito deve posicionar-se corretamente (lê-se de acordo com regras e normas sociais) e o papel da anamorfose aqui “está ligado ao modo peculiar de sentir e se relacionar com o mundo, de olhar e de saber.” (FLORES, 2007, p. 134) Em sendo a migração processo, foco nesta discussão, propõe-se pensá-la a partir da concepção de Sayad (1998). O autor conceitua imigração como um deslocamento de populações por todas as formas de espaços socialmente qualificados (por exemplo, o espaço econômico, político- espaço de nacionalidade e o espaço geopolítico, espaço cultural, o espaço linguístico, espaço religioso etc.). Não existe um discurso sobre o imigrante que não seja um discurso imposto; mais do que isto até mesmo a imigração enquanto problemática da ciência social é uma problemática imposta. E uma das formas dessa imposição é perceber o imigrante, defini-lo, pensá-lo ou, mais simplesmente, sempre falar dele como um problema social (...). (SAYAD, 1998. p. 56) O imigrante é reconhecido, muitas vezes, como alógeno, um não nacional e que em alusão a este título passa a estar excluído do campo político. (...) o imigrante tem a obrigação de ser reservado: a forma de polidez que o estrangeiro deve adotar e que ele se sente na obrigação de adotar- constitui de uma dessas malícias sociais pelas quais são impostos imperativos políticos e consegue-se a submissão a esses imperativos. (SAYAD, 1998, p.57) 90 Sayad retrata um quadro que implica no modo como o grupo social espera que o indivíduo estigmatizado se apresente ou se enquadre62. Desta forma, o sujeito faz parte do todo social, mas sempre com ressalvas, sempre de um “modo especial”. Ciampa (2002) organiza esta relação quando discute as identidade políticas e as políticas de identidade. O autor levanta importante questionamento acerca de como características “embutidas” no sujeito (às quais se espera que o mesmo corresponda) permitam ser possível o desenvolvimento da autodefinição do eu, de modo autêntico. A questão que se coloca, neste contexto, seria sobre a existência de espaços para o desenvolvimento de autonomia na condição de imigrante? Se tais espaços são possíveis, quais os desdobramentos deste processo? O estudo das políticas de identidade conforme proposto por Ciampa (2002) e também por Almeida (2005) em alusão às questões anamórficas, possibilita a discussão, sobretudo, de lutas por emancipação em diferentes grupos sociais, cujas ações revelam formas de opressão, cada vez mais veladas na sociedade totalmente administrada. Lima (2009) em reflexão sobre as proposições de Almeida (2005) quanto à anamorfose, refere condições sociais e pessoais restritivas, sentidas e vividas pelos indivíduos como deformações de seus projetos (anamorfoses, portanto). Á luz de tais formulações, voltamo-nos a condição do imigrante esta, primordialmente dificultosa visto que não se espelham as identidades pressupostas pela sociedade (imigrante como aquele que vai trabalhar e se comporta “de acordo”, obedece, assimila-se à cultura e depois vai embora, por exemplo) ao mesmo tempo em que passam por novas experiências pessoais e sociais em si, geradoras de crises identitárias. Quanto às experiências geradoras de possíveis crises identitárias, em acordo com as colocações acima, segue exemplo relatado por nosso colaborador, que é brasileirodescendente de alemães- e não confia em brasileiros: “Olha só, isso tem tudo a ver, você confia em brasileiro, gente que é brasileira que todos esses (...) que me sacanearam eram brasileiros(...) Toda 62 Sugerem-se os apontamentos de E. Goffman (1988) sobre Estigma. 91 vez que eu dependi de um brasileiro ou brasileira (...) eu me ferrei, entendeu?” (M.) Dubar (2009) ressalta a existência do dilema de naturalização proveniente do desenraizamento e da construção identitária decorrente do processo que envolve aquele que migra e assim passa a vivenciar o “multipertencimento” (p.220). O autor considera este momento como propulsor de crise e esta incitaria, portanto, novos modos de revelação do sujeito a si mesmo, bem como, necessidades de reflexão e luta, resultando por fim em aquisição de liberdade em um processo de “inventar a si mesmo com os outros” (idem p. 255). Todavia, inventar o novo a partir do contato com o outro dependerá também da relação de significação imposta pelos olhares (representações) existentes na relação. O imigrante não é considerado “um nacional” e isso justifica a economia de exigências que se tem para com ele em matéria de igualdade de tratamento frente à lei e na prática. Faz-se presente uma lógica de segregação e de dominação geradoras de racismo63- e falta da igualdade de direitos. “(...) usando-se como pretexto as desigualdades de fato e a igualdade de fato, por sua vez, torna-se impossível devido à desigualdade de direito” (SAYAD, 1998, p. 59). Nesta perspectiva, sugere-se que o imigrante só tenha existência na sociedade em função do trabalho, ou seja, este é concebido ao trabalho de modo indissociado. “(...) um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito (...) é um trabalhador revogável a qualquer momento”. (SAYAD, 1998, p. 54-55). Aqui, anamorfose clara de seus projetos, de suas existências. 63 Para Boaventura de Souza Santos “o racismo esta a progredir como parte do desenvolvimento do sistema mundial capitalista. (...) o racismo resulta da divisão entre força de trabalho central e periférica, ou seja, da etnicização da força de trabalho como estratégia para remunerar um grande setor da força de trabalho abaixo dos salários capitalistas normais, sem com isto correr o risco da agitação política.” (2010b, p. 145) 92 O imigrante é impensável sem o trabalho e a dificuldade deste modo, consiste na conciliação de dois objetos em sua essência inconciliáveis: desempregado 64 e imigrante. É de fato um “não lugar”, uma “não existência” do indivíduo e, portanto, assumir legitimidade para estar no país de permanência só se torna possível se ligado ao trabalho. O paradoxo deste modo de existência, contudo, está no papel exercido socialmente pelos imigrantes enquanto sujeitos que “têm função”. Função esta, determinada não por suas características, aspirações ou aptidões pessoais, mas pela ordem sistêmica vigente; uma ordem mediada por ditames econômicos e interesses que vão muito além dos sujeitos que adentram um novo país. Logo: Enquanto a expansão econômica, grande consumidora de imigração, precisava de uma mão de obra imigrante permanente e sempre mais numerosa, tudo concorria para assentar e fazer com que todos dividissem a ilusão coletiva que se encontra na base da imigração (...) ao reconhecer a utilidade econômica e social dos imigrantes, ou seja, as “vantagens” que eles ofereciam para a economia que os utilizava se queria agradecer-lhes ou ainda defender seus direitos. (SAYAD, 1998, p.47) A sobrevivência do imigrante, pensando-se as colocações até aqui abordadas, dependeria, para Bhabha (2001) da descoberta de “como o novo entra no mundo” (p.311), ou seja, a questão central é a elaboração de ligações através dos elementos instáveis da vida- em encontro marcado com o intraduzível em uma reelaboração de sua condição. Nestes termos, o indivíduo passaria ao estado de permanente estrangeiro no país onde vive em contínua “provisoriedade do presente” (BHABHA, 2001, p. 297). O que neste caso começa a ter relevância política é a “necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais” (idem p. 20). Os entre lugares (termo cunhado por Bhabha) fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de “subjetivação singular ou coletiva que dão início a novos signos de 64 Conforme mencionado em nota anterior (nota 61), de acordo com proposições tratadas no Simpósio Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio, o imigrante adquire também o ”status de louco.” 93 identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade65” (...) na sobreposição e deslocamento de domínios da diferença que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, interesse comunitário ou o valor cultural são negociados. De que modo se formam os sujeitos nos entre lugares, nos excedentes da soma das partes da diferença (...) (BHABHA, p. 20) Bhabha defende uma ideia de comunidades híbridas, uma vez que culturas nacionais são construídas a partir da perspectiva de minorias destituídas (BHABHA, 2001, p.25). Há desta forma, uma revisão radical do conceito de comunidade humana proposta pelo autor, sobretudo, quando este pensa o espaço geopolítico como realidade nacional ou transnacional, que se interroga e se reinaugura com o constante trânsito humano (BHABHA, 2001, p.25). Cabe lembrar também, que Friedrich Ratzel66 (18441904), em sua concepção de Geografia, inaugura a ideia de movimento como característica central do mundo vivo, ou seja, o movimento como característica central do homem e de como este, portanto, concebe o seu mundo (CLAVAL, 2006, grifo nosso DP). Desta forma, o sujeito deve ser compreendido como parte estruturante de sua cultura, nas palavras de Geertz (1989) “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo tece, portanto, a cultura pode ser assim assumida como sendo estas teias e também a sua análise” (p. 4). Para Thompson (apud ESCOSTEGUY, 2004) cultura é uma rede de práticas e relações que constituem a vida cotidiana dentro da qual o papel do indivíduo configura em primeiro plano, o autor entende cultura como forma de luta entre formas de vida e olhares diferentes (grifo 65 Faz-se alusão à ideia de sociedade composta por homens em movimento, como concebe Silvia Lane (1984, p.19) “(...) o homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da sua sociedade (...).” O homem é movimento na manifestação de sua totalidade. 66 Geógrafo e etnólogo alemão, precursor da geografia política. Criou uma disciplina chamada geografia humana e reconheceu a importância do papel desempenhado pela circulação humana. Maiores informações ver CLAVAL, P. História da Geografia. Tradução de José Braga Costa. Lisboa: Edições 70, 2006. 94 nosso DP). Já no entendimento de Castells (1999) cultura e identidades são interdependentes; o processo de construção de significados tem sua base em atributos culturais, ou um conjunto de atributos culturais. Assim, a relação homem sociedade envolve necessariamente movimento, seja como parte da cultura, levada para os diferentes espaços de trânsito, como também sua recriação nestes, como novos espaços de pertencimento. A relação cultura- movimento - migração67 é intrínseca ao homem. As colocações de Almeida (2005) p. 83 iluminam as considerações acima colocadas: Movendo-se no tecido socialmente construído, o indivíduo pode estabelecer as pontes e as mediações entre sua condição e suas possibilidades, tipificando e ao mesmo tempo, individualizando sua trajetória. As relações entre a biografia e o contexto social onde ela se desenrola, a sociedade em última instância, têm múltiplas direções; não constituem vias de mão única. A existência do projeto dificulta se não impede uma acomodação passiva do sujeito diante das circunstâncias, provocando uma atitude de reserva, e mesmo de resistência, nas suas relações com seu entorno social, isto é, com seus outros significativos e com o meio social mais geral. Evidentemente, a realização do projeto exige do indivíduo uma boa dose de criatividade a às vezes de discernimento frente a oportunidades inesperadas para delinear uma ação consequente, condizente com sua realidade. (Almeida, 2005, p. 84) Almeida (2005) acrescenta ainda a existência de um processo de “desterritorialização dos eus” (p.69) devido a inadaptação e ao sentimento de desorientação dos sujeitos frente às novas tendências e exigências da modernidade, que substituem aquelas formas ou modos de ser que existiam e que eram de seu costume. Segue um trecho relatado por um colaborador desta pesquisa, no tocante a vivência da desterritorialização do eu: “As minhas primas, que tem hoje 14, 15 anos, você já nota a contaminação de brasileirismo nelas. Elas já estão no mesmo ritmo de não querer estudar, aquelas coisas, achar que a vida é passear, transar, viajar etc. E isso eu chamo de contaminação de Brasil, de ser brasileiro, sabe?” (M.) Patarra (2006) menciona a ocorrência de uma “desterritorialização da identidade social” (p.12) quando da transformação pelo sujeito “do antigo focus de submissão e 67 Sugere-se pensar a migração entre cidades, mundos etc., mas também migração de ideias, aspiraçõese por fim metamorfoses. 95 fidelidade em favor da sobreposição, permeabilidade e formas múltiplas de identificação.” (p.12-13). Questiona-se se o mesmo ocorre com descendentes de imigrantes, integrados no país de seu nascimento. De acordo com a autora, na era da globalização o imigrante é visto ainda como estrangeiro ou um quase cidadão. Ainda que a globalização estimule a mobilidade frequente, o fluxo constante é daqueles que saem dos países pobres para os ricos, donde se entende que o quase cidadão migrante o faz “estimulado” pelas facilidades proporcionadas pela globalização, cuja real intenção, prevê o trânsito do capital e não de pessoas. A imigração é discutida por Patarra como decorrente de movimentos ditados pelas circunstâncias do país de origem, ou seja, não necessariamente há o desejo de partir e estabelecer uma nova vida. No tocante ao mundo globalizado e às formas de migração daí provindas, Appadurai (2009) realiza a análise crítica da extrema violência coletiva formada neste contexto, como algo não exclusivo aos Estados totalitários, tamanha semelhança. O questionamento disparador de Appadurai contempla a tentativa de se compreender como, em um período conhecido por “alta globalização” no capitalismo tardio, se estabelece um período de violência em grande escala em um amplo leque de sociedades e regimes políticos; globalização esta que propõe a circulação de pessoas, mercados, bens e também culturas, traz consigo, muito aquém do “aumento de liberdade” aparente, um tipo de devastação tanto quanto mascarado. De fato, na era da globalização, a desigualdade mantém-se e nas palavras do autor “(...) só os partidários mais fundamentalistas da globalização econômica ilimitada pensam que o efeito dominó do livre comércio e o alto grau de integração de mercados e do fluxo de capitais entre nações é sempre positivo.” (p.14) Boaventura Santos (2010 b) retrata em panorama atual, o que se pode relacionar às migrações no contexto da globalização e do capitalismo tardio: A recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas está a conduzir uma reformulação das inter-relações entre os diferentes vínculos, nomeadamente entre o vinculo nacional classista, racial, étnico e sexual. Tal reformulação é exigida pela verificação de fenômenos convergentes ocorrendo nos mais díspares lugares do sistema mundial: o novo racismo na 96 Europa; o declínio geral da política de classe, sobretudo nos EUA, onde parece substituída pela política étnica do multiculturalismo (...) o colapso dos estados Nação, afinal, multinacionais e os conflitos étnicos no campo devastado do ex império soviético, a transnacionalização do fundamentalismo islâmico; a etnicização da força de trabalho em todo o sistema mundial como forma de a desvalorizar etc. (SANTOS, 2010 p. 145) O conceito de imigração substitui o que por muito tempo fora considerado como conceito de “raça”. Para Balibar, citado por Santos (2010, p. 145), “o neo-racismo europeu é novo na medida em que o seu tema dominante não é a superioridade biológica, mas antes as insuperáveis diferenças culturais, a conduta racial em vez da pertença racial.” (p. 145). Na visão de Haesbaert, pensar multiterritorialmente seria a única perspectiva para a construção de outra sociedade, mais universalmente igualitária e, ao mesmo tempo, mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas. (HAESBAERT, 2005, p. 6791) Lima (2010, p. 206) levanta a hipótese de que o potencial da anamorfose “sofre a neutralização na atualidade por conta de um reconhecimento perverso que reduziria as identidades a personagens fetichizadas (...).” e desta forma, a proposta de um trabalho crítico no estudo da identidade auxilia “o sentido de explicitar aquilo que o capitalismo tardio tende a manter e reproduzir com base na dinâmica de reconhecimento das identidades.” (p. 207) No caso dos imigrantes, sua situação é instável desde a concepção do projeto de migrar até as posteriores fases de adequação/adaptação à nova situação de vida. Além deste motivo, provavelmente, também seja a partir das políticas de identidade massificadoras que estes têm seu potencial emancipatório reprimido- as amarras sociais os impelem de seguir, deformando seus projetos. Contudo, são estas personagens anamórficas uma “espécie de deformação em relação ao que estava antes estabelecido (...) gerando uma nova proporcionalidade.” (LIMA, 2010, p.201) devem-se encará-las de outra perspectiva, com o olhar em paralaxe. Á guisa de encerramento deste capítulo (mas não de nossas reflexões que elencar-se-ão as ideias até manifestadas nas discussões que seguem os próximos 97 capítulos), apresenta-se uma última proposição de Almeida (2005) ressaltada por Lima (2010, p. 203): A anamorfose dá conta da constituição de identidades por parte de indivíduos que procuram superar suas condições identitárias, as quais geram identidades sem lugar na vida coletiva ou, em outros termos, uma contraditória identidade desidentificadora. 98 Capítulo 4 Dando voz aos narradores. Significados e sentidos emanados quando da pergunta “quem é você, quem pretende ser”? O descendente por ele mesmo- para além do “alemão”- a construção de si no cotidiano “O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história" (Walter Benjamin) Até aqui foi apresentado o aporte teórico que apoia a pesquisa. A partir de agora retratar-se-á o problema de pesquisa tal qual, compreendendo-se como a ascendência alemã aparece nas histórias de vida de nossos sujeitos e como isto entremeia sua constituição identitária à luz dos referenciais até aqui expostos. Analisar-se-ão articulações das personagens encarnadas nos sujeitos (CIAMPA, 2001; LIMA, 2005) e a partir destas, obter-se-ão diretrizes norteadoras para a compreensão da realidade objetiva destes sujeitos no que envolve a normatividade e também a intersubjetividade. Destas articulações serão possibilitadas ocorrências de re-posições ou mesmo superação de personagens pelos indivíduos, apontando-se as metamorfoses de suas identidades em seus diversos modos de apresentação. Neste capítulo pretende-se, portanto, dar voz aos colaboradores interlocutores desta pesquisa que em suas narrativas revelam pistas do caminho que percorreram e a forma como teceram e tecem suas vidas. Respondendo às perguntas: quem sou eu? Quem gostaria de ser? De que forma a ascendência alemã me afeta? Nossos narradores falaram da sociedade enquanto realidade objetiva, produto e produtora do homem e deste em constante movimento dialético nesta. Os narradores, ao falarem de si mesmos, falaram também da sociedade e de um tempo, do modo como o interpretam e à realidade, em confluência com a construção que fazem de si mesmos. Vamos, portanto, analisar pela dialética. Temos que partir do empírico, mas a reflexão teórica vai ser fundamental para acompanhar o concreto, do 99 contrário, não se sai do empírico. O empírico tem que se converter em concreto e o concreto em múltiplas determinações, determinações não casuais, mas categorias. Eu só posso apanhar o concreto se eu apanho cada uma das suas determinações ou categorias- é uma propriedade essencial desse concreto. (CARONE, s/d, p. 09) Cabe ressaltar que a produção identitária vislumbrada a partir das histórias de vida, cujas narrativas ouvimos foi identificada partindo-se da interação com o pesquisador no sentido dado ao momento da entrevista em face ao método usado, que permitiu, quando da contação das histórias, que os colaboradores refletissem sobre suas narrativas, reformulando memórias, repensando ou mesmo ressignificando si mesmos mediante a questão de pesquisa dada. Foram entrevistados seis sujeitos com idade, procedência e sexo diferentes, sendo estes, para efeito de melhor compreensão, inseridos em dois blocos: 1º bloco- 3 colaboradores entre 25 e 30 anos, dois rapazes e uma mulher. Todos possuem curso superior completo, dois deles são naturais de São Paulo e um é natural de Santa Catarina. 2º bloco- 3 colaboradoras, com idade entre 50 e 60 anos. Todas mulheres com curso superior ou cursando, duas naturais de São Paulo e uma do Rio Grande do Sul. Iniciar-se-há com a problematização dos temas emergidos das narrativas dos colaboradores do primeiro bloco. Logo, para que se destaquem as narrativas que chamaremos como “principais”, optou-se por resumir duas histórias de vida de cada bloco, que servirão como pano de fundo para uma terceira tida como “principal”, desta forma, analisada e comentada em maior amplitude. Primeiro bloco- “jovens descendentes” E. 28 anos. Neto de alemães. Natural de São Paulo “Então, mas eu sempre, sempre, sempre falei: eu preciso fazer um negócio sozinho! Preciso fazer, não sei o que, mas eu preciso. Trabalhar sozinho, sabe, preciso ter ideias de vários lugares, mas preciso ter ideias minhas, porque senão eu não vou me sentir feliz.” 100 Nosso colaborador é formado em administração de empresas, mora com a mãe, tem um irmão mais velho que reside em Salvador. Sua família veio para o Brasil em meados de 1940. Seu avô era tripulante do navio de guerra Graf Spee68 que, em virtude de uma emboscada feita por navios ingleses, obteve ordem de Hitler para que não se entregassem para que a tecnologia do navio, considerada avançada para a época, não fosse descoberta pelos inimigos. Assim, o navio foi afundado, seu comandante suicidou-se e o restante da tripulação seguiu espalhada pela America Latina, concentrando-se entre Argentina, Uruguai e Chile. O avô de E., inicialmente transitou entre Argentina e Uruguai, chegando posteriormente ao Brasil, onde permaneceu. Atualmente E. trabalha com investimentos na bolsa de valores (seu escritório é na própria casa) e com o desenvolvimento de um site de vendas de artigos para presentes na internet. Tem muitos amigos, é comunicativo e gosta de sair para bares e discotecas. Atualmente busca desenvolver sua espiritualidade, faz para este fim muitas viagens a lugares que considera místicos, pratica experiências com energização, reiki e meditação. Jovem alegre, espontâneo, tem facilidade em se comunicar, não apresentou dificuldades em falar sobre sua história ou retratar fatos sobre seus familiares. E. nos foi apresentado por um amigo em comum e desde o início de nossos contatos mostrou-se interessado em colaborar apresentando seu relato. Chamou nossa atenção a forma fluída com que falou sobre sua história de vida, mesmo com relação a dados como morte e doenças (câncer de seu pai e avó). Quase não foram feitas perguntas/intervenções por parte da entrevistadora. O colaborador mostrou muito interesse em participar da pesquisa (disse gostar do tema) e de falar de sua vida, enviando-nos, inclusive, um e-mail posterior à entrevista no qual retratou reflexões sobre a conversa que tivemos. Por cerca de três horas falou quase que ininterruptamente, sem que fossem feitas perguntas ou que se incitassem determinados aspectos. Ao final da entrevista, comentou 68 Foi realizado um filme - documentário sobre o navio, intitulado “The Battle of the River Plate” de 1956. Maiores informações sobre o navio ver EUGEN, M.D. A batalha do Rio da Prata. Flamboyant, 1967. 101 sentir-se muito à vontade com a situação (sobre o falar de si mesmo) salientando tentar ser aberto e falar sobre tudo, sobretudo com os amigos. Falar sobre si mesmo é algo importante para nosso colaborador e bastante natural. E. inicia a entrevista relatando o impacto de sua vivência na Alemanha. Traz detalhes sobre sua adaptação neste país ainda na infância (por volta dos 7, 8 anos de idade), quando sua família mudou-se de São Paulo para a Alemanha. Falou sobre as dificuldades vividas, mas também sobre os bons amigos que fez, sobre a infância feliz que tivera na Alemanha, local onde acredita que as crianças vivam uma infância “de verdade” brincando na natureza, indo à escola de bicicleta e sem muito contato com jogos eletrônicos, quando comparado ao Brasil. E. demonstra ter adquirido neste país uma experiência em grupo marcante, mesmo que inicialmente, ele e o irmão tenham enfrentado dificuldades para se enturmar. “a gente era bem estranho na cidade, por mais que a gente seja loirinho, do olho azul, verde, meu irmão também né, muito alemão, a gente sofreu um baita preconceito, a gente ficou numa cidade pequena e assim a cidade, como era pequena, devia ter uns 8.000 habitantes, então, qualquer coisa que chegasse ali era, sabe, chegava no ouvido de todo mundo né uma novidade e chegou que a gente era brasileiro (eleva o tom de voz) e você vê, foi muito recente da queda do muro de Berlim, então é, o pessoal era bem fechadão ainda naquela época (pausa). Bom... Voltando eu sofri bastante (fala pausadamente) lá na Alemanha, sofri bastante (ênfase) assim, por pessoas mais velhas assim, a gente sempre ia de bicicleta pra escola, ou a pé né andava uns dois quilômetros numa boa, e teve ali um pessoal ali que pegava pesado, assim de bater, de bater mesmo, em mim e no meu irmão, porque era brasileiro, porque era brasileiro... (pequena pausa) era aquela maldita justificativa, você tá roubando nosso espaço, não te queremos aqui. Teve disso, teve disso.” Após este episódio inicial houve experiências positivas que fizeram com que E. desenvolvesse laços afetivos na Alemanha, o que busca manter até hoje, mesmo vivendo no Brasil. Ao longo da entrevista trouxe a importância dos amigos, referindo-se à solidão de sua avó alemã que não tinha amizades no Brasil, com exceção de alguns conhecidos alemães ou descendentes, residentes próximos a ela. A forma como seu pai faleceu (câncer que E. agrega ao grande sacrifício que seu pai fez ao longo da vida junto à empresa) fez com que repensasse sua própria vida e iniciasse um processo de mudança (decidiu mudar tanto seu aspecto físico, como também, a forma de se relacionar com as pessoas E. era obeso e muito tímido). Fez uma tatuagem 102 no braço em homenagem ao pai, marcando na pele a nova fase de sua vida, iniciada a partir do falecimento do mesmo. E. deu muita ênfase ao modo como cuidou de sua avó alemã quando esta esteve doente (vivia sozinha em uma cidade do litoral paulistano na casa construída pelo marido, nunca quis se mudar). Com riqueza de detalhes, falou também sobre sua relação com a religião e espiritualidade, algo que o ajudou após esta fase. No entanto, inicialmente, aspectos ligados à religião foram vivenciados na Alemanha de modo a gerar “sequelas” a ele e seu irmão, devido à forma como esta lhes fora “imposta”. Tal vivência alterou a maneira como E. passou a ver a igreja, sendo este um tema recorrente em sua narrativa. E. relata não ter sido batizado até sua mudança para a Alemanha. Houve preocupação por parte da família de que E. sofresse preconceito na escola, uma vez que se mudariam para uma comunidade católica. E. considera a atitude de sua mãe estranha e comenta: “É minha mãe me batizou seis meses antes de irmos pra Alemanha. Foi um negócio assim bem estranho, até hoje fico me questionando o motivo real. É que hoje ainda tem a liberdade religiosa né, assim um pouquinho mais, mas antigamente era bem estreito, então minha mãe resolveu se prevenir pra não afetar na escola.” Ainda nesta temática, E. comenta sobre um episódio ocorrido com seu irmão que o marcou muito, algo que o levaria futuramente a escolher outras formas de espiritualidade, que não ligadas à igreja. “(...) nossa! tem um episódio com meu irmão assim, que foi lamentável ele... Bom criança, ia na igreja tudo lá e tinha aula de religião na escola e ele tirou a pior nota de religião da escola. E aí a diretora mandou chamar minha mãe e meu pai, falando que ele tava indo assim pra um lado do diabo, nossa achei tão lamentável isso, tão arcaico (...). Meu irmão hoje em dia, a gente ri disso, mas meu irmão hoje em dia ele é ateu. Foi tão decepcionante isso. Ele não segue mais religião, mas nossa, esse episódio foi tão forte, assim, o pessoal fica ali, tentando te convencer, tem que seguir o caminho, tem que seguir alguma coisa, então Deus é tudo então, aquilo pesou muito pra ele. Pesou muito, muito, muito, pra ele (pausa).” Neste relato, E. retrata seu posicionamento frente ao modo como a religião lhes foi imposta. Além disto, um tema importante na relação de E. com a Alemanha foi a percepção de que neste país havia um “direcionamento das pessoas”. De certa forma, a maneira como a cultura e as relações sociais se davam, geravam, na percepção de E., imposições. No exemplo que segue E. retrata a imposição vivenciada, tece críticas, bem 103 como, demonstra o reflexo disto em sua vida nos dias atuais: “Sabe eu fui induzido na Alemanha a ser católico. Fui induzido à força a acreditar numa crença que eu não acreditava, vi muita história cruel dos católicos lá, eu conheci muitos museus de tortura dos católicos lá, conheci todas as igrejas, nossa, a igreja de Colônia, nossa, tem aquelas gaiolas lá em cima, aquilo era pra pendurar as pessoas lá em cima! E tem museu de tortura lá em Colônia, da época das Cruzadas. Nossa, então sabe, toda essa história da igreja... Quem quis fazer isso? Eu sei, foram os homens que fizeram, mas todas as palavras que me disseram, não me convenceu. Vou na igreja, eu sinto um sono, um sono tão grande! E é chato, mas pelo menos, me identifiquei aqui no Brasil com algumas pessoas que tem o pensamento bem parecido com o meu, de que ó, eu sou cabeça aberta, mas nossa, me fez bem, eu pensava assim, nossa eu sou um cara diferente, não acredito em Deus (...)” Posteriormente, outras imposições foram também percebidas pelo pai de E. Este veio a ser o motivo que o levou a decidir que a família retornaria ao Brasil. Era chegado o momento na vida escolar em que tanto E. como seu irmão, deveriam fazer uma escolha que implicaria em futuramente serem direcionados para o ensino técnico ou à faculdade. Uma vez que o sistema de ensino alemão funciona de modo a tais escolhas serem feitas a partir do rendimento escolar das crianças até o final do ciclo básico, ocorre o direcionamento ao tipo de educação que a criança terá após o mesmo (tipos de escola são indicadas conforme o aproveitamento do aluno e destas, posteriormente serão direcionadas à faculdade, ao ensino técnico ou profissionalizante). O pai de E. entendeu que independente do modo de vida que levavam (conforto, segurança, etc.) seus filhos deveriam ter liberdade para escolherem quem gostariam de ser. Não era o sistema escolar ou o Estado que deveriam fazê-lo. “(...) eu tava na quarta série e o meu irmão tava na quinta, ou tava indo pra quinta(...) e a gente ia precisar fazer a escolha do que queria fazer pra vida nessa idade. E meu pai não achou justo crianças né, fazerem essa escolha nessa idade. Então a gente voltou pro Brasil, bem decepcionado, eu não sabia o que tava acontecendo direito, só fui saber assim, lá na sexta série, o motivo real da nossa volta... Provavelmente pelas notas eu teria ficado na Hauptschule69 né, porque né eu não me focava na escola eu não entendi nada 69 “Hauptschule é um dos tipos de escolas secundárias existentes na Alemanha. O aluno ingressa nesta após concluir o quarto ano da Grundschule (escola primária). A partir daí deve seguir um dos tipos de escola secundária existentes: a Hautpschule, a Realschule ou o Gymnasium. A Hauptschule costuma ser recomendada para aqueles que gostam de coisas práticas e preferem o concreto em vez do abstrato. A Hauptschule é o caminho mais curto para uma qualificação profissional, chamada Berufschule. Concluise a Hautpschule prestando uma prova chamada Hauptschulabschluss (Conclusão da Escola Elementar) ou Qualifizierter, com aproximadamente 14 anos de idade. Após o término da Hauptschule, o aluno deverá frequentar uma Berufschule (Escola Técnica), onde aprenderá uma profissão. Critica-se 104 né, meu professor falou: -há você vai voltar pro Brasil em breve né, eu falei: hã? Mas todos meus amigos foram pra Hauptschule né, meus melhores amigos. Mas assim, essa decisão do meu pai, assim, foi bem aceitável isso não tem nem o que falar, assim, embora o Brasil não seja lá grande coisa, a gente pode criar o que você quiser né, você pode construir sua carreira, se esforçar, começar um negócio novo e ter o livre arbítrio, você escolhe o que quer ser e eu, eu demorei pra descobrir tudo isso aí (...) meus amigos lá viraram encanadores, técnicos em aquecimento, não que eu ache isso ruim mas, então (...)” E. demonstra entender as razões de seu pai e, ainda que “o Brasil não seja lá grande coisa” reconhece que há flexibilidade e chances para que as pessoas possam fazer suas escolhas orientadas por seus desejos e não por imposições do Estado. Retratar o Brasil como não sendo grande coisa, denota a forma como o país é percebido por E., quanto ao seu funcionamento e desorganização, ainda assim, é o lugar onde pôde optar com maior liberdade. A ascendência alemã aparece em alguns momentos como fator importante, seja pela forma como seus avós viveram no Brasil, seja quanto ao modo empreendedor de seu pai e avós como também, questões ligadas à rigidez e certa “distância emocional” retratadas por E. com ressalvas e críticas, algo que busca mudar em seus relacionamentos. Percebeu-se que E. referiu grande necessidade de contato com amigos e expressou grande necessidade de afeto. Em certos momentos, nos pareceu sentir-se sozinho quanto a uma série de enfrentamentos, por exemplo, a mudança à Alemanha na infância, o retorno ao Brasil, a doença do pai, transição escola - faculdade, final da faculdade e doença da avó, cuidados com a avó, venda da casa da avó após seu falecimento e o modo como a casa fora saqueada após sua morte. “achei que iam até botar fogo, levaram tudo, tudo, é difícil.” a Hauptschule e o modo como as escolas secundárias são divididas na Alemanha. O argumento usado é que nesta escola é oferecida menor capacitação, fazendo com que seus concluintes ingressem no mercado de trabalho em desvantagem, comparados aos estudantes de escolas com maior capacitação, como a Realschule e o Gymnasium. É comum encontrarem-se muitos descendentes de imigrantes na Hauptschule, devido à dificuldade com a língua alemã.” (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hauptschule) 105 Entretanto, demonstrou-se altruísta, gosta de resolver os próprios problemas e ajudar ao próximo. Refere gostar de desafios e vive no momento a busca pelo desenvolvimento profissional e por rearranjar seu “lugar” na família. Seu irmão casou-se recentemente e após a morte do pai e da avó, a família diminuiu. E. sente necessidade de “dar certo profissionalmente” em memória ao pai e não quer trabalhar para outros (não quer ser empregado) sendo este um ponto central em seu projeto de vida (supõe-se a formulação deste projeto de vida mediante à percepção da relação de exploração vivida por seu pai no trabalho). Acredita ser melhor ter o próprio negócio e seguir seu caminho de modo empreendedor. Acha que o ambiente corporativo tem, além da grande competição, falsidades. “No mundo corporativo a pessoa não cresce, não há desenvolvimento pessoal, mas sim o desenvolvimento da empresa e de metas”. Acha desgastante e não lhe agrada a ideia de trabalhar em uma empresa, além de possuir ressalvas relativas ao “ser controlado” acredita que seu pai desenvolveu um câncer em função da sua relação com o trabalho; existe ainda a hipótese de que o “ser controlado” tenha relação com as vivências das imposições na Alemanha, por exemplo, quanto à religião e quanto ao rendimento escolar. No Brasil E., com maior flexibilidade, escolhe seguir o próprio caminho profissional, empreendendo e desta forma banindo à sua maneira o controle. Admira seus avós (imigrantes alemães) pela forma como lidaram com a imigração e se aventuraram no Brasil, no entanto, não consegue compreender por que não tinham amigos e não se relacionavam com outras pessoas, além do pequeno núcleo familiar e alguns conhecidos, estes também alemães. Considera a vida sem amigos isenta de sentido, o que explicita como ponto muito importante em sua vivência cotidiana e em seus projetos para o futuro “estar sempre com os amigos- sou viciado em amigos”. No momento, além da busca profissional tem lugar importante em sua vida a busca pela espiritualidade. Ainda que se considere ateu, coloca a importância do homem desenvolver o lado espiritual, conhecer-se melhor e energizar-se. Acha que “suga” energias de pessoas ou ambientes e quer aprender a lidar com isto, além de sentir-se muito bem quando tem “experiências espirituais.” 106 Em um primeiro momento achamos nosso colaborador bastante aberto e seguro em suas atitudes e ideias. Num segundo momento, ainda que nossa visão não tenha sido equivocada com relação ao “ser aberto”, percebeu-se grande carência e necessidade de aprovação exterior, tendo nosso colaborador demonstrado dificuldades em ficar sozinho (está sempre em busca de contatos, programas, pessoas etc.). Após lidar com importantes perdas na família e com responsabilidades que arcou sozinho, este momento (de busca por contatos) pode tratar-se de uma transição. E. possui elementos que lhe ajudam a manter seu projeto de futuro em andamento (ter o próprio negócio- próprias ideias- não ser controlado), consegue trabalhar bem sozinho (é acostumado a resolver problemas e assim sente-se seguro) e também está abrindo um negócio em sociedade (site na internet), de modo a experimentar responsabilidades em conjunto. Vive um processo de metamorfose com a mudança que iniciou em seu corpo e comportamento (resolveu emagrecer, ir atrás de meninas, falar abertamente sobre seus sentimentos com amigos etc.). A ênfase dada ao “ser ateu” e a raiva que possui da igreja nos chama a atenção, uma vez que mantém a busca por assuntos metafísicos. Pode-se dizer, ainda que de forma cuidadosa, que tanto sua avó como seu pai, pessoas que E. coloca como referência em sua vida, seguiram caminhos “solitários” e nosso colaborador, mesmo não concordando com isto e buscando apoio e reconhecimento externos (de amigos, etc.) trilha da mesma forma um caminho igualmente solitário. É possível que a influência dos personagens solitários em sua vida seja forte, evitando que E. usufrua como almeja das companhias que tanto busca. Observações sobre dados coletados sob outras formas: Passados alguns dias da entrevista E. enviou-nos um E-mail. Neste, contou sobre lembranças evocadas pela conversa que tivemos: falou-nos das lições da família. “Só mais uma coisa. Ontem me perguntou sobre a lição que ficou sobre os costumes, acho que a maior lição mesmo é não desistir nunca e não ter medo de reconstruir uma nova vida. Foi isso que vovó e papai me ensinaram.” Algum tempo após a entrevista ocorreu uma festa típica alemã, no colégio onde nosso colaborador estudou e este nos convidou a participar da mesma. Fomos ao local e percebemos que para nosso colaborador a escola ainda é muito importante. Ele nos 107 apresentou aos amigos, a seus professores, mostrou-nos sua sala de aula e fez questão de nos oferecer as comidas alemãs que ali eram servidas. Esta experiência, que se tornou uma experiência de campo quase etnográfica, revelou um dado importante sobre E. “dependente de amigos.” Nosso colaborador se comporta de forma diferente de seus amigos do colégio. Mostrou-se mais aberto, espontâneo, bastante ligado afetivamente às pessoas e sempre preocupado em ajudar, orientar as pessoas presentes na festa etc. Seus colegas mostraram certo distanciamento, não pareciam tão animados com a festa ou com os reencontros que ali se davam. O sentido da festa para E., diferiu do de seus colegas conforme nossa percepção. Para E. a festa aparentou um resgate de suas raízes e de sua infância. Ao caminhar pela escola, o brilho de seus olhos ao nos mostrar suas dependências, as mudanças no prédio, as professoras queridas, permitiu que pudéssemos apreender sobre uma fase que lhe fora importante. A escola alemã fora o elo de algo que E. não perdeu. Era o local onde estudava antes da mudança para a Alemanha e foi o lugar para onde voltou e reencontrou amigos; percebeu que foi bem recebido e não teve dificuldades em readaptar-se, ao contrário, foi valorizado por ter morado na Alemanha. Suas experiências nesta escola foram menos direcionadoras, quando comparadas às vividas na escola na Alemanha. Em dado momento passamos por um mural de fotos de adolescentes que foram junto com a escola para a Alemanha. E., imediatamente relatou-nos que tal viagem fizera também com sua turma. Colocou que a viagem foi muito importante, mas diferente do que fora para seus colegas, muitos indo a primeira vez para a Alemanha, para E. se tratou de uma viagem interessante por estar entre amigos e por ajudá-los com o idioma que dominava, por outrora ter vivido no país. Para E. estar entre pessoas que lhe são significativas e compartilhar experiências é algo muito significativo, não importando em qual país vive. Busca lidar com as mudanças que acometeram sua família e naturalmente, si mesmo. Algumas tradições tem espaço em sua vida (como algumas comidas feitas no natal), contudo, estas retratam os sentimentos de E. para com sua avó e seu pai e não, necessariamente, algo que sinta com relação ao país de seus ancestrais ou ao significado atribuído ao ser descendente de alemães. 108 M. 30 anos. Neto de alemães. Natural de Santa Catarina “(...) e nós sempre tivemos é, dificuldades normais de estrangeiros, porque nós, nós não nos sentimos brasileiros, esse é o, a questão interessante e ao mesmo tempo, não temos a cidadania alemã. Então nós somos, estamos num lugar onde nós somos brasileiros pelo documento, mas na prática o espírito não é. Essa é a grande situação, que é a dificuldade.” M. é um jovem doutorando que chamou nossa atenção quando o escutamos falando alemão. O fato de não se ouvir o idioma comumente pelos locais onde transitamos, bem como termos percebido sua desenvoltura em compartilhar seu conhecimento do idioma com outros, foi o que despertou nosso interesse em obter seu relato. M. colocou-se muito disponível para falar de sua história. Totalizaram-se dois encontros de cerca de 3 horas cada um em que M. discorreu sobre sua vida e sua dificuldade em ser “um alemão no Brasil” colocando por diversas vezes, ainda que em outras palavras, o sentimento de ser um estrangeiro não adaptado à cultura onde está inserido e ao modo como as pessoas agem, devido à “contaminação de brasileirismo” e a forma como é visto pelos outros por, por exemplo, vestir-se com sobriedade, gostar muito de estudar e por ser muito crítico. Acredita que sua forma de ser será melhor aceita na Alemanha (ou até mesmo nos Estados Unidos, qualquer lugar fora do Brasil, uma vez que sente estar perdendo tempo neste país), pois pensa que não haverá preconceito como no Brasil, sua intelectualidade e trabalho serão valorizados. Acredita ainda, que por ser acostumado à dificuldade de ser um alemão no Brasil, poderá gerenciar bem as adversidades, caso as encontre na Alemanha. O retorno à Alemanha foi o projeto idealizado por seu avô, tendo este o alimentado durante toda a sua vida e compartilhou disto com M. Nosso colaborador tem assim, o mesmo projeto como algo que o motiva a continuar os estudos e a vida em São Paulo. “Então é, como te falei, aqui não vejo muita perspectiva. Meu futuro é arrumar a documentação que eu preciso e arrumar alguma coisa com relação à pesquisa, pra depois arrumar um trabalho na Alemanha ou em algum lugar fora, ou mesmo nos Estados Unidos, enfim, eu não gosto tanto, 109 mas, porque aqui eu, eu noto que não sou valorizado pela minha competência, eu sou desvalorizado pela minha, pelo meu problema, de saúde.(...) por esse motivo, eu assim, alguma coisa me diz pode ser algo ingênuo, eu sei o quão dura a vida é fora é porque eu já tenho a experiência um pouco de ser brasileiro e de não ser, ao mesmo tempo. Eu sei o quanto a vida é dura fora, mas alguma coisa me mim diz: olha, você tá perdendo tempo. Essa noção eu tenho desde criança. Aqui você perde tempo, você não sabe, por exemplo é, tem alguém que entenda, outra coisa, você pode passar em todas as Universidades do meu Estado Santa Catarina e você pode perguntar se tem alguém que entende a lógica dos partidos políticos melhor do que eu, você não vai achar ninguém. E nem na cátedra de filosofia política da federal de Santa Catarina você vai achar. Isso também vale pra filosofia alemã. E se eu for lá, todo mundo me conhece e pedir se posso fazer um concurso? Nem um concurso vou poder fazer (risos) nem me inscrever! Entendeu?” M. inicia sua história de vida relatando como seus avós chegaram ao Rio Grande do Sul em 1929. Estes fugiram do que seria o início do governo do partido nazista. Nas palavras de M. se percebe que enquanto conta o fato, confunde-se com este: “(...) nós viemos (pausa), nós viemos não né, eles vieram, porque eu nasci aqui, é, em 29 da Alemanha fugidos da, do início do processo do nazismo e muito do que as pessoas acham que os alemães todos são nazistas, na verdade não é bem assim.” Em 1947, motivados por uma grande seca e ao que M. nomeia como “perseguição” a família migrou para Santa Catarina, onde nascem M. e também seu pai. A subsistência da família foi proporcionada pela criação de suínos e posteriormente, pela produção de leite. M. desde a infância ajudou no trabalho com os animais e aos 19 anos, mudou para São Paulo à convite de uma ordem religiosa para fazer o noviciado. Em São Paulo estudou filosofia e devido a problemas de saúde (M. tem problemas neurológicos e também de visão) foi expulso da ordem religiosa que o convidara, retornando à Santa Catarina. M. tem grande dificuldade em lidar com o modo como fora tratado pela ordem, algo que mesmo depois de passados alguns anos, lhe causa grande tristeza. Associa, entretanto, alguns dos comportamentos dos padres e integrantes da ordem ao fato de serem brasileiros. “Olha só, isso tem tudo a ver, você confia em brasileiro, gente que é brasileira que todos esses padres que me sacanearam eram brasileiros, não tinha nenhum que era nem descendente de italiano e não faz diferença nenhuma (...), entendeu? (pausa) Toda vez que eu dependi de um brasileiro ou brasileira que não tenha ... Eu me ferrei, entendeu?” 110 O fato de relacionar algumas das dificuldades que passa com o fato destas advirem de “brasileiros” o coloca em sofrimento constante e o afasta por vezes de novos contatos ou novas possibilidades. Suas dificuldades tornam-se maiores e constantes, pois vive no Brasil e não se reconhece como pertencente a este país. “No seminário eu fui muito mais ridicularizado com relação a meu problema de saúde do que nós fomos em Santa Catarina. Pra você ter uma ideia, era porque eu convivi com brasileiros (se refere a convivência com brasileiros no seminário). No seminário aqui em São Paulo só tinha um cara que era de Santa Catarina, mas nem era de lá direito.(...) eu era ridicularizado por causa do meu problema, faziam piada que eu não podia estar na ordem porque eu não enxergo (...)” Após algum tempo, recebeu um convite de um professor de São Paulo para que fizesse o mestrado, uma vez que tinha grande conhecimento dos textos em alemão de Kant e outros filósofos. M. refere grandes dificuldades com relação à orientação para seu trabalho, que veio a fazer praticamente sozinho. Ainda assim, decidiu continuar trilhando a vida acadêmica, desta vez inscrevendo-se no doutorado e mais uma vez, estudando filósofos alemães. M. demonstra predileção por estes, indicando identificação com seus pensamentos e ao mesmo tempo, é algo que lhe remete a um saber que o diferencia dos demais, o saber filosófico alemão e na língua alemã. Com exceção da vida acadêmica M. não considera suas experiências bem sucedidas. Em São Paulo passou em um concurso para lecionar filosofia para o ensino médio, mas considerou tal vivência muito difícil. Com os alunos coloca ter tido uma boa relação, contudo, relata ter sofrido preconceito relacionado à deficiência visual, por parte da coordenação e também do corpo docente. “(...) o problema não era os alunos, era a escola (levanta o tom de vozexaltado) que eu tava dando aula. Tinha uma diretora que era morena e racista com gente que tinha problema, outro problema e dizem que racismo só é a gente que tem (pausa) né... Então, e ela era advogada, entre aspas e eu, eu engoli muita coisa, que não deveria ter feito, não deveria ter feito eu tive muito problema com ela, eu não tinha condições de trabalho eu tinha que preencher tudo em papel e eu praticamente não enxergo e eu pedi várias vezes, fui na secretaria de educação, até o dia que não deu mais e eu larguei. Sofrer preconceito é algo que M. menciona por vários momentos em sua história de vida e este, para além das questões de saúde, entende advir também de sua origem alemã. Contudo, mesmo que a origem alemã possa ser por ele compreendida como fator 111 gerador de preconceitos, é algo que lhe diferencia dos demais e de certa forma, passa a ser algo desejado, representando e ao mesmo tempo demarcando sua forma de ser no mundo. O “personagem alemão” é constituído por M. de modo a isolá-lo de outros contatos “não alemães”. No exemplo que segue, pode-se perceber como M. repõe esta personagem em sua experiência como professor na escola. “Eu me dei muito bem em sala de aula (sorri) até porque eu sou alemão né, um grito lá né (risos) eles já né (risos) (em alusão ao medo que as pessoas têm da figura do alemão) então eu nunca tive problemas. Eu dava aula de filosofia (...). Então eu na verdade me divertia né, porque eu pegava muitos textos gregos né e dava pros alunos, muitos textos em alemão, textos em inglês e os professores meus colegas me odiavam por causa disso. O comentário na escola era eu (eleva o tom de voz) tipo como um professor que é cego, faz todas essas coisas e ainda faz doutorado? E os outros, que estão lá há duzentos anos né, naquele marasmo, como nós alemães dizemos Faulheit (preguiça) né, a preguiça diária, o sujeito na verdade é podre né, pra ser mais exato (risos), então eu era assunto na escola (risos) entendeu?” A reposição do personagem “alemão” tem como aspecto fundador a relação de M. com sua família, a forma que compreende suas vivências e relações no Brasil, o modo como os alemães foram tratados na colônia em que viviam; M. parte do modo como percebe si mesmo para interagir com o meio. “(...) eu cresci, desde pequeno ouvindo o mantra de que um dia nós voltaríamos pra nossa terra natal. Infelizmente meu avô morreu e (pausa) não conseguiu então eu sinto um pouco a responsabilidade de continuar este projeto, até por causa das dificuldades que a gente passa em Santa Catarina até hoje. A Família passa... A discriminação em relação, porque nós somos descendentes de alemães. E ao contrário do que a maioria dos brasileiros dizem, o brasileiro, especialmente o de cidade, ele é um povo muito (pausa) digamos assim, mesquinho, ele diz que não tem preconceito, mas é o que mais tem. Enquanto que o povo que é mais do interior e que na maioria são imigrantes ou descendentes de imigrantes, é um povo muito receptivo. (...) pra mim, tem um pouco isso tipo do, o brasileiro é mesquinho, mesmo, hipócrita, eles dizem uma coisa e fazem outra. Um exemplo típico, tipo na minha cidade, apregoa-se que existem oportunidades iguais né, para todos, e eu sou a única pessoa na cidade que está fazendo o doutorado e fez mestrado, mas serei o último a ter emprego, justamente por causa disso.” O preconceito que M. relata sofrer é por ele relacionado ao fato de ser descendente de alemães e a seu problema de saúde que o colocam e o mantém como estigmatizado. Desta forma, entende ter menos oportunidades, idealizando-as em outro lugar, onde possa ser aceito. Tal processo lhe causa sofrimento, uma vez que se sente excluído e não vislumbra possibilidades de mudança. É possível compreender assim a reposição de seu personagem “alemão” como meio de inclusão na academia, onde é reconhecido pelo 112 diferencial que lhe confere posição de destaque – conhece os filósofos alemães e fala alemão. Em suas palavras: “Existem oportunidades iguais para os iguais, os iguais entre eles (frisa), os que não são imigrantes, ou descendentes de imigrantes, os que estão fora. E ainda tem o agravante pra mim, que eu tenho um problema de saúde então... (longa pausa).” Repondo o personagem alemão M. mantém o projeto do retorno de seu avô em andamento, ao mesmo tempo em que se destaca como diferente na academia, fazendo de seu “ser descendente de imigrantes alemães” um diferencial positivo. Por outro lado, questiona-se até que ponto a escolha pela reposição de tal personagem não o aprisione de modo a mantê-lo no papel do estigmatizado que não tem chances iguais a outros. Possibilitar a metamorfose do personagem encarnado possivelmente viabilizaria outras formas de estar no mundo, outros olhares e outras maneiras de se relacionar, consigo e com outros. M. sempre escutou as notícias da Alemanha pelo rádio junto a seu avô em Santa Catarina e ainda o faz, em São Paulo. Coloca a importância de atualizar-se sobre a situação política e econômica da Alemanha, outro ponto alto de seu desejo de pertencimento a esta sociedade, a qual considera mais justa, igualitária. Usa tal argumento também, quando fala de questões políticas do Brasil, salientando exemplos de conflitos vivenciados por sua família com relação ao pagamento exagerado de tributos, injustiças no trato com os agricultores quanto ao acesso à saúde, direitos e cidadania de modo geral. Na percepção de M. há o esquecimento dos imigrantes (não somente dos descendentes alemães, mas também dos poloneses, italianos etc.) que precisaram e ainda precisam prosperar por meios e esforços próprios, recebendo pouco incentivo do Estado70. Desta forma, é possível que tais questões tenham incentivado M. a considerar o Brasil como não sendo o seu lugar. 70 Neste momento podemos nos remeter ao início da colonização alemã no Brasil, conforme discutido no capítulo 1. O modo como M. relata o esquecimento dos imigrantes e seus descendentes por parte do Estado, o modo como se ajudaram para constituir meios de sobrevivência etc., é muito próximo ao que fora no final do século XIX e início do século XX. Permanece a indagação sobre tal percepção dos membros destas áreas outrora colonizadas, quanto à vivência destas afirmações como experiências 113 “Então enfim, como te disse no início, nós somos brasileiros por nascimento, mas nós não nos sentimos, com o espírito do brasileiro. E isso também é angustiante porque, como diria o Heidegger né, o sujeito se faz das experiências da existência né, é como se você não tivesse uma esperança de futuro. É como se o tempo do futuro fosse roubado de você, você sabe só o que vai acontecer hoje, mas você não sabe se é, o trabalho, se você vai conseguir, é enfim... Se você vai trabalhar naquilo que realmente entende ou se vai ficar a vida inteira dando um jeito pra sobreviver (frisa) só sobreviver que é isso que os brasileiros querem que a gente viva, só sobreviva e pague imposto pra eles poderem usufruir, isso é típico, é. Lá se nota isso, meus pais, por exemplo, tiveram que pôr telefonia rural particular há dez anos atrás, porque não existia, o governo não coloca, porque é uma colônia alemã, uma comunidade fora da cidade e... Mas todo mês cobram o imposto do meu pai, do que ele compra na ração pro gado, do cliente que ele vende, então, se meu pai faz 10.000 reais por mês, 2.000 são de imposto (eleva o tom de voz) então eu não entendo a regra, por que que nós temos que contribuir igual aos outros e não temos direito a nada, saúde por exemplo?” Uma vez que M. se sentiu (e se sente) abandonado pelo Estado e não pertencente ao Brasil, aliado ao medo do futuro em um lugar onde seus talentos não são reconhecidos e seu problema de saúde o coloca na posição de estigmatizado, é possível compreender a importância de seu avô em sua história de vida. O avô alemão de M. sempre o incentivou a fazer as atividades normalmente, a despeito dos problemas. Seu avô não considerava problemas de saúde como impedimento para um desenvolvimento pleno. “(...) meu avô me blindou bastante por causa do meu problema e isso fez com que eu me desenvolvesse bastante, especialmente intelectualmente, como pessoa e tudo. Porque o que ele dizia era assim: você tem uma dificuldade, mas essa dificuldade só você consegue superar, ninguém vai poder te ajudar. Então você pode fazer todas as coisas, por exemplo, quem me ensinou a cozinhar praticamente foi ele, quem me ensinou a fazer fogo em casa e fazer comida, foi ele. Quem me ensinou a lavar um carro, o carro, que é um Brasília, que meu pai tem hoje era dele, era ele. (...) então ele tava junto de um monte de coisas, que meu pai não podia, trabalhando na roça, longe e ele que me ensinou alemão, era ele, que lia a bíblia, textos, tudo e ele me corrigia e tudo (...). Ele me ensinou a fazer chimarrão, eu tomava com ele é que mais, ele me ensinou a dirigir (sorri) então imagine, o menino não pode dirigir né... Meu avô falava me dá a chave do carro (risos) minha avó ficava louca de raiva. Então tinha uns lugar que era tranquilo assim né, aberto e ele sentava do meu lado e falava você vai dirigir e falava você tem que fazer assim, assim e assim e nunca aconteceu nada.” próprias ou destas como percepções de oralidades de familiares e outros descendentes, que passaram a transmitir e perpetuar sentimentos de exclusão e abandono no Brasil. 114 A relação com o avô alemão proporcionou que M. pudesse desenvolver potencialidades a despeito das dificuldades objetivas. Contudo, com seu falecimento, em meio ao grande vazio M. buscou outras figuras significativas que admirava (padres), estas o decepcionaram, “blindando-o” para outras experiências. “Então quando meu avô morreu eu senti muito que tinha que tomar conta da minha vida e que eu tava sozinho. Mas sempre como referência as coisas, o jeito, as coisas que ele me, eu posso ser considerado um sujeito ultrapassado, mas tem muita gente aqui (se refere à universidade) que acha que sou um sujeito do século 18 né, eu acho engraçado, eu não sei se to evoluído ou não (risos). Então, é por essas coisas eles acham que eu sou, eu sou da idade da pedra. Excessivamente exato. Ué mas foi isso que eu aprendi né? Especialmente com o meu avô, uma coisa é, não é mais ou menos assim, sabe?(...) Muito do meu jeito é por causa dele, o jeito de me posicionar em público é muito parecido com ele, eu tenho um pouco de dificuldade de falar rápido português porque eu não consigo articular o pensamento em português o tempo todo tenho que ficar pegando as ideias e retrabalhando (...). Estranho isso, mas, a forma incisiva e polêmica de se posicionar é igualzinho (Risos) é, inclusive jeito de vestir, jeito de andar, ah, enfim, até ele morrer a gente tinha uma relação muito de amizade assim é, quem me ajudou realmente com meu problema foi ele(...).” M. tem em seu avô um ideal, uma base para seus projetos, um exemplo vinculado a seus objetivos. Tal identificação mantém M. próximo à figura do avô, ao ponto de ser reconhecido como “alemão do século 18”. Uma borboleta ainda presa ao casulo... Atualmente M. segue repondo o personagem alemão, comportando-se como os alemães de antigamente, vestindo-se como eles e seguindo adiante na academia, onde se destaca com primor, rumo ao sonho de viver na Alemanha. Contudo, teme de certa forma, encontrar dificuldades junto ao sistema de saúde neste país, o que também lhe impossibilitaria algumas coisas, conforme já vivencia no Brasil. Desta forma, ao vislumbrar dificuldades em ambos os países, M. sente-se sozinho e por vezes, paralisado. Para tanto, a breve citação de Almeida (1999, p.116) alude ao que se passa com M. “Cabe ao sujeito integrar as expectativas de papéis e ter clareza mental na resposta a elas, aprender a não se deixar aprisionar (...)” (p.116). M., para manter o avô vivo (de certa maneira) alimenta o personagem alemão no dia à dia no Brasil, ocasionando-lhe dificuldades em se adequar, sentir-se confortável em situações cotidianas. 115 Cabe o retorno a Ciampa (2001) que ao falar sobre metamorfoses, fala também de morte e de vida. Para manter o avô vivo, M. não vive a inteireza de sua própria existência, persegue um sonho que não construiu somente para si. Talvez deixar morrer seja também um modo de se permitir o nascimento do novo. Enquanto M. não abre espaço para metamorfoses outras de sua identidade, mantém a visão do mundo e o seu posicionamento em anamorfose, que o leva a mesmice, impedindo a mesmidade. Deste modo, a solução que M. encontra para lidar com as dificuldades é retornar ao mundo que considera melhor (Santa Catarina) e aguardar que outros possam reconhecer o potencial da borboleta, ainda presa ao casulo71: “Quando tiver de saco cheio destas situações, onde sou ridicularizado e tudo mais, eu posso pegar minhas coisas e voltar pra minha casa, entendeu? Eu acho que não é a melhor solução, mas sabe, chega uma hora que você fica de saco cheio sabe, chega um limite, schon voll weisse (saco cheio, sabe?) e você já sabe, quando eu venho pedir aqui, quando eu terminei o meu mestrado, aqui sempre precisa de professor assistente, não tem pra graduação sempre falta professor. Aí eu perguntei, aí a moça lá, a psicóloga do RH deu risada onde eles fazem seleção, ela falou : o que, você quer dar aula? Você não enxerga! Aí eu falei: Olha o meu curriculum, tem 15 páginas e tal e ela falou: Você não enxerga, vai dar aula como? (risos) Aí meu orientador brinca e fala: eles não sabem, eles não sabem com quem estão falando, literalmente não sabem!” 71 A metáfora da borboleta presa ao casulo foi associada à história de M., pois, assim como o professor lhe disse que as pessoas não sabem com quem estão falando, o fazem por não conhecerem seu potencial, suas predicações. O mesmo ocorre com o próprio M. que, mantendo-se preso a certos olhares e modos de vida, não se abre para possibilidades de metamorfoses que lhe proporcionariam outros horizontes, perspectivas; ele mesmo em metamorfose, como uma borboleta, alçaria vôos, desenvolveria novas formas, cores e movimentos. 116 Um projeto de vida, alemão (?) “(...)o que eu pretendo ser é uma descendente de alemã na Alemanha: tento conscientemente unir o melhor que o meu lado alemão tem a oferecer com o melhor do que minha vivência e educação no Brasil tem a oferecer. Sei que não conseguirei ser alemã de tudo, nem é meu objetivo. Descendente de alemã na Alemanha para mim é um objetivo que talvez consiga equilibrar as balancinhas internas da minha cabeça, sabe?” 117 A história de P. P. natural de São Paulo, 29 anos, filha de uma alemã e um brasileiro O interesse em obter o relato de P. surgiu após conversa com um informante que nos contou sobre seu plano de mudança para a Alemanha, devido sua decepção com relação ao Brasil. P. foi muito receptiva ao nosso contato, dizendo-se interessada no tema da pesquisa que realizávamos. Nosso encontro se deu em um café em São Paulo, por cerca de duas horas, continuando posteriormente com questões enviadas por correio eletrônico. P. demonstra ter tido sempre grande interesse em conhecer as particularidades da história de emigração de sua família para o Brasil. Inicia seu relato retratando a trajetória de sua família, desde a Alemanha até a chegada em Guarulhos-SP. Sua bisavó veio para o Brasil depois da Primeira Guerra Mundial. Passava fome, frio e muitas necessidades na Alemanha. A família decidiu vir para o Brasil devido à onda imigratória e às promessas da vida e ascensão nos trópicos, no início do século XX. Em um navio (P. comenta não lembrar o seu nome) chegaram ao Brasil já com seus lotes determinados, localizados em Guarulhos- Grande São Paulo. A avó de P. também nasceu na Alemanha, chegou ao Brasil com cerca 1 ano de idade. P. se exalta ao mesmo tempo em que se surpreende com o desafio travado pela família ao empreender tamanha viagem: “Você imagina a situação precária que deveriam estar lá, pra você botar uma criança de um ano em um navio e viajar durante semanas?” Sua avó, ainda que tenha chegado ao Brasil bebê, fora criada em ambiente “muito alemão” devido ao entorno em que cresceu (posteriormente veremos que este foi o mesmo ambiente em que P. também cresceu). Guarulhos, conforme P. nos relata, era “cheio de alemães” o que nos remete de certa forma, às possíveis semelhanças com colônias do Sul do Brasil, onde língua e costumes se mantiveram pela ajuda e trocas mútuas entre os membros imigrantes, mesmo que em contexto bastante diferenciado da cidade de São Paulo com relação à forma como os colonos foram organizados no Sul do Brasil; tal semelhança aparece no relato de nossa colaboradora ao menos, na forma 118 como vivenciou “a Guarulhos alemã72”, sobretudo, sua bisavó, avó e mãe. “Então minha avó foi criada aqui e também em ambiente muito alemão, porque só tinha alemão, a língua era alemã, tudo.” A família de P. já se adaptara à vida no Brasil quando, antes da Segunda Guerra Mundial, a avó decidiu retornar a Alemanha. “Pelo jeito lá estava melhor do que aqui, não tenho muita certeza, porque as histórias que tenho vão sendo passadas de segunda mão, mas parece que a situação lá, pré Segunda Guerra estava melhor do que aqui.” Sabe-se que com a ascensão do partido nazista, muitos postos de trabalho foram criados na Alemanha. Contudo, uma vez que P. não nos deixou claro o ano do retorno de sua avó, não há como se saber com exatidão qual era o momento histórico-político em que se encontravam Alemanha e Brasil. Supõe-se que vigorava o regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, iniciado em 1937, configurando um momento de dificuldades para os alemães e outros grupos de imigrantes considerados pertencentes ao “eixo”. É possível também que o retorno já vigorasse como um projeto desta família, que poderia aguardar que a Alemanha estivesse em melhores condições para recebê-los de volta. Na Alemanha sua avó não estaria sozinha. Seus irmãos já tinham retornado à Hamburgo, cidade de sua bisavó, demonstrando ser este um projeto familiar- o retorno à Alemanha. Nesta cidade a avó de P. conheceu o marido e teve filhas, uma delas, a mãe de P. Ao deflagrar-se a Segunda Guerra, a família tentou o retorno para o Brasil, sem sucesso. Permaneceram e viveram uma Alemanha em conflito. Outra questão importante, vivida pela família de P., foi o fato de seu avô ter sido prisioneiro de guerra, enviado ao Texas. P. soube da existência de cartas que relatavam o episódio, nas quais sua avó descreve que isto fora a melhor coisa que podia ter acontecido para o avô. Preso no Texas ficou isolado das atrocidades que aconteciam na Alemanha. P. concorda, toma partido, imagina que caso seu avô tivesse ficado na 72 Não era de nosso conhecimento anterior que em São Paulo, além de Santo Amaro, houvesse outro polo de semelhante colonização e organização alemã. Acerca de Guarulhos e a influência alemã não foram encontradas informações na literatura consultada. 119 Alemanha até o final da guerra, teria sido muito pior. Este avô, contudo, retornou doente a Alemanha após o longo período preso. Com o físico muito enfraquecido veio a falecer rapidamente. Nesta época a mãe de P. tinha cerca de 8 anos de idade. Não se notou perplexidade ou tristeza em P. com relação a este fato. É possível que, conforme o modo como tais lembranças lhe foram passadas, possíveis marcas deixadas pela Segunda Guerra Mundial na Alemanha não a tenham afetado, nem mesmo ao imaginar sua família em meio a tal condição. Sua avó, então viúva com filhas, vivia uma situação de sobrevivência complicada. Mais uma vez o Brasil surge como chance para a família de P. Quando a avó retornou para o Brasil, a mãe de P. tinha cerca de onze anos, sua tia treze. Ambas terão papel importante na socialização de P. Conforme veremos mais a frente. P. falou muito sobre “idas e vindas” de sua família, para tanto fez a seguinte leitura associada à sua condição atual: “Parece até que é sina eu ir pra lá, porque uma geração tem que ir e voltar toda hora.” Esta constatação feita por P. demonstra que de alguma forma, estar entre ambos os países foi uma constante em sua família, algo que justifica e qualifica sua escolha atual em “retornar” a Alemanha frente ao descontentamento que sente no Brasil. P. segue contando a história de sua mãe. Esta precisou fazer um curso logo que chegou ao Brasil, pois não sabia português. Avó e filhas ficaram na casa da bisavó, até comprarem um terreno, sendo este um difícil recomeço. Sua mãe foi à escola por cerca de dois ou três anos para ser alfabetizada em português e enquanto isso, sua avó conseguiu comprar um terreno em Guarulhos e começou a construir sua casa. P. menciona com muito orgulho o esforço de sua avó e a grande força de vontade em perseverar. Entretanto, não nos revela detalhes acerca dos recursos para tanto, tornando a história do retorno e do esforço da família um grande sucesso, sem o seu desenrolar de fato. Desta forma, percebe-se também a construção do papel das mulheres- alemãsbatalhadoras-vencedoras de sua família e destes exemplos enquanto modelo para P. 120 Com 14 anos a mãe de P. começou a trabalhar, frequentou desta forma, por pouco tempo a escola. Tanto a mãe como a tia começaram suas vidas profissionais no Brasil como secretárias assistentes, tendo obtido tal oportunidade de trabalho devido ao conhecimento do idioma alemão. Trabalharam muitos anos em uma grande empresa alemã e foram estudando conforme puderam. Estudaram inglês, informática e espanhol. Cabe ressaltar, que retornaram ao Brasil devido às condições que viviam no pós-guerra na Alemanha, aprenderam o português, entretanto, sua fonte de renda (e estabilidade) foi mediada pelo conhecimento do idioma alemão e da oportunidade em uma empresa igualmente alemã. Ainda nesta temática, P. comenta com certa crítica ao Brasil que quando tinha 13 anos, sua mãe e sua tia precisaram fazer supletivo, pois o mercado de trabalho já não buscava pessoas com experiência de trabalho ou conhecimento de línguas, mas sim, com curso superior. Já não bastava o domínio do alemão para mantê-las no trabalho, eram necessários outros conhecimentos. Frente a isto, P. também precisou “entrar no esquema” e jovem adolescente, já ajudava a família. Ficava em casa cuidando dos afazeres domésticos enquanto mãe e tia estudavam para as provas. Tais questões tornar-se-ão peças centrais na vida de P. Questões estas que parecem ter relevância na visão que P. construiu do mundo do trabalho, das oportunidades que “não existem” no Brasil e da importância de se saber o idioma alemão e até mesmo “ser alemã”. Mãe e tia estudaram até a 8ª série e depois, até o terceiro colegial no supletivo. Continuaram trabalhando como secretárias trilíngues, tendo seu esforço sempre ressaltado por P. Na família de P. a língua alemã tem um papel importante, algo que P. passa também a buscar com afinco. “Então em casa eu não tinha muito como falar alemão, minha avó falava um pouco comigo e tal, mas não sei o que aconteceu depois, um dia cheguei da escolinha e falei eu não vou mais falar alemão porque sou muito pequena pra issonossa se fosse eu, ia encher a criança de porrada e dizer não, você não tem opção mas minha mãe falou não, tudo bem, se não quer não quer. E eu acabei perdendo 121 muito do que já tinha e aí, até hoje eu estudo pra conseguir acompanhar. Eu acho que se tivesse ficado firme, falando desde criança teria sido mais fácil, especialmente a gramática que você aprende por osmose de criança e como adulto não consegue assumir simplesmente.” P. vê grande relevância no conhecimento da língua alemã em sua vida, algo que, além de auxiliar na aquisição de trabalho das mulheres empreendedoras de sua família (mesmo que não sendo mais a única ou principal prerrogativa para tanto). Quando menciona este tema coloca “ser mais misturada”, pois seu pai é brasileiro. O que nomeia “ser mais misturada” é o fato de ser filha de um brasileiro e devido a tal mistura, não saber o idioma com fluência. P. é “misturada” e sua mãe “alemã pura” o que passa a ser um pequeno impeditivo no ideal que busca- o ser alemã falando o idioma com fluência. P. demonstra incômodo por não ter fluência no idioma, algo que busca retomar com persistência, uma vez que é parte importante de seu projeto de vidaviver na Alemanha. P. aprendeu alemão com sua mãe e sua avó em casa, seu pai não falava o idioma “só palavrão, é só isso que eles aprendem né (risos).” Para além do projeto de vida de P. cabe compreender o papel da língua como peça fundamental para concretização deste, mas também do significado que a língua tem para a comunidade alemã. Uma vez que é meio de expressão e apreensão da cultura- sentido proposto pelo Deutschtum (mencionado no capítulo 1). O Deutschtum é uma forma de expressão da germanidade que atravessa Nações em termos geográficos, permeando o sentido de identidade para os alemães ao redor do mundo. Esta leitura pode ser feita por todos os descendentes que crescem perpetuando costumes, língua, alimentação, tradições, adquirindo assim um modo de ser alemão no exterior e no caso de nosso estudo, no Brasil. (MALTZAHN, 2011). P. pode “ser menos alemã ” ao não falar a língua ou ao falar com pouca propriedade. Foetsch (2007, p.61-62) exemplifica a forma como o propósito do Deutschtum pode ser constituído, uma vez que pode ser visto como: (...) comunidade simbólica e é isso que explica seu poder de gerar sentimento de identidade e lealdade, onde os sentidos estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu 122 passado e imagens que dela são construídas e contribuem para o imaginário e sendo, portanto, muito mais do que uma porção de terras demarcadas por limites políticos. Em se tratando do Deutschtum, para o qual o conhecimento do alemão é prerrogativa fundamental, P. passa boa parte da entrevista falando sobre suas questões com relação à língua. Diz-se irritada por sua mãe não ter insistido que falasse alemão na infância, algo que hoje em dia lhe é custoso retomar. Em se tratando de sua mãe, abre se um parêntese para comentar a hipótese de que, uma vez que o conhecimento do idioma não bastou para que esta permanecesse estável no trabalho (por exemplo) e também pelo marido não falar o idioma, pode ter achado razoável que a filha determinasse qual seria o momento certo para aprender a língua, desta forma, não sendo uma imposição. Com o falecimento de seu pai há 10 anos, P. ficou ainda mais próxima de sua mãe e sua tia, tendo a chance de falar somente alemão em casa, se assim o quisesse. P. busca de modo bastante claro a apreensão da língua como expressão de sua identidade, de sua identidade “alemã”. Ao dizer quem é fala de seu projeto de vida e de seu desejo em saber a língua com propriedade. Sobre sua profissão, retrata em detalhes a empresa onde trabalha e a função que exerce. Conta que primeiramente formou-se em hotelaria, mas cansada de lidar com gente, resolveu mudar de rumo e por indicação da mãe, que já trabalhava nesta empresa (alemã), decidiu candidatar-se a uma vaga na mesma. Inicialmente foi assistente no departamento de planejamento e controle da produção e gostou muito. “É um trabalho muito concreto, por exemplo, eu vou lá, recebo uma lista da engenharia, processo aquilo de x maneiras e aí eu vejo a máquina saindo montada da fábrica e aí eu falo meu, eu tenho um dedo nisso! É uma coisa assim bem mais, como se fala, uma coisa mais feliz eu acho porque o seu trabalho não fica perdido no limbo(...) em hotelaria se você tá fazendo direito ou não o cara vai tar sempre reclamando. O hóspede é o ser mais chato do universo, não me adptei.” P. resolveu, após iniciar o trabalho na empresa em que sua mãe já trabalhava fazer um curso de tecnologia e gestão industrial. Não existe um departamento de engenharia industrial na empresa onde trabalha, somente na matriz na Alemanha. No Brasil P. é a representante deste setor, sente-se ali reconhecida e também diferenciada com o posto que ocupa. É a única mulher do setor e também dá ordens. No entanto, 123 comenta ter demorado a galgar os degraus para ascender, algo que acredita ocorrer de modo diferente na Alemanha. Exemplifica: “Aqui você tem que ter ensino superior de 80 anos para fazer café. Lá na Alemanha você tem várias opções, se não quiser fazer faculdade direto, pode fazer um curso profissionalizante, pode ir para outro país, tem várias possibilidades incríveis e aqui, se você quer ir para o Rio de Janeiro, você já deixa as calças.” P. sugere compreender as categorias educação e trabalho de modo imbricado. Considera que suas chances seriam outras na Alemanha, uma vez que no Brasil tem-se maior dificuldade para obter sucesso. O reconhecimento que almeja é de certa forma, mais difícil de acontecer no Brasil. Veremos, contudo, que a obtenção de “sucesso” de sua família foi algo igualmente demorado, fruto de luta e idas e vindas entre Brasil-Alemanha, intercalados por crises, guerras e perdas. Em seu projeto de vida P. associa a mudança para a Alemanha ao sucesso praticamente garantido, mas parece não destacar a elaboração destas idas e vindas de sua família, bem como, a construção da vida no Brasil como fato que pôde manter a família ao ponto de P. poder alcançar o que atualmente tem e assim vislumbrar o projeto de mudança para a Alemanha como possibilidade. Logo, devido ao momento em que a família se encontra no Brasil é possível que A.P. possa formular seu projeto de mudança para a Alemanha sem maiores percalços, guardando dinheiro, dando-se tempo para planejar melhor cada detalhe etc. A despeito de seu descontentamento para com o Brasil, há a falta de reconhecimento do sucesso que sua família conquistou neste país. O desejo em conhecer a Alemanha é antigo, algo que P. sempre quis. Questiona-se até que ponto o desejo antigo não a tenha, de certa forma, direcionado à forma como se sente atualmente no Brasil. P. tinha grande curiosidade em conhecer a Alemanha desde a infância, mas era muito caro e então decidiu: “falei não, vou começar a me preparar para isso, vou começar a guardar dinheiro e vou me preparar pra isso também.” Aqui se sugere o que foi abordado quanto a vida da família de P. no Brasil enquanto facilitador de sua tomada de resolução, que em termos práticos, pôde organizar-se financeiramente para a viagem. Explica-nos como tal preparação se deu: 124 “Eu tava numa empresa alemã já, então falei bom, já é um passo. Trabalhei muito, até que um dia pedi transferência e o pessoal ficava me enrolando, até que um dia falei não, cheguei pro meu chefe e falei pra ele, meu último dia é dia tal e eu tô indo embora, eu ia pedir demissão pronto e acabou.” Seu chefe informou haver uma vaga na Alemanha e que eles aguardariam o contrato para sua transferência. Entretanto, tal contrato ainda não chegou e P. diz que dará um “ultimato”, propondo seu último dia de trabalho. Posteriormente, informou-nos que seu plano dera certo e que viajaria em 7 semanas para a Alemanha, com a vaga de trabalho garantida. P. conta que “precisa” tentar qualquer coisa e mesmo que não dê certo com o trabalho, viverá na Alemanha, mesmo trabalhando no que considera “subempregos”. Mesmo com preparo, P. demonstra receio, mesmo com a vaga de trabalho seja certa. A passagem já havia sido comprada por P., mesmo antes de saber a resposta definitiva de seu chefe. Precavida, levará consigo passagem de ida e volta para sua segurança, mesmo tendo parentes na Alemanha e sabendo não “passar fome”. Curiosamente relata ter mais contato com sua família alemã (na Alemanha) do que com a família no Brasil. “Nossa com a família da parte de meu pai eu não tenho contato nenhum.” Com relação a isto, conta-nos um episódio marcante: “Um dia apareceram duas mulheres no portão de casa e eu odeio visita não programada, assim, essa coisa bem alemã, não apareça na minha casa que não vou abrir a porta, você nem me ligou pra perguntar se podia! Sabe? A minha avó já deixou muita gente na porta já e eu aprendi isso com ela, é o suprassumo da falta de educação né, pra eles. Então aí eu falei mãe tem duas mulheres ai no portão, batendo palmas. Ai minha mãe, nossa, é sua tia! Nossa, minha tia mora aqui do lado sabe (risos) e eu nem sabia que existia! Ela veio trazer convite de casamento de minha prima, que eu nem sabia que existia! Aí eu falei assim, que situação esquisita né?” Com o advento do Facebook (rede social ligada à internet) P. pede que sua mãe lhe dê o nome de todos os parentes. “Vou adicionar né, só pra lembrar que existe.” Demonstra como se deu tal processo, sem grande comoção: “Aí ela foi me mostrando, essa é sua tia, essa é sua prima, então (...)” 125 Mesmo que seus parentes brasileiros tenham sido adicionados à sua rede social na internet, estes não parecem configurar papel importante. O episódio destes no portão fora marcante devido ao fator surpresa, por existirem parentes e estes surgirem em seu portão sem aviso prévio, do que pelos laços ou busca por conhecimento ou pertencimento. Outro dado que promove curiosidade, foi o fato de P. ter mencionado muito pouco sobre seu pai, sobre os sentimentos envolvendo seu falecimento, sua relação com ele etc. Talvez se configure aí a razão para o elo faltante com a família brasileira. Ao revelar que a família era “separada mesmo” gera interesse o fato de P. não ter questionado ou procurado por seus parentes brasileiros, ao contrário do que se deu (e se dá) com os parentes alemães- na Alemanha. Desta forma, tal fato contribuiu para que sua socialização primária ocorresse de modo distante de costumes ligados ao Brasil, o que ainda se mantém durante a socialização secundária. P. escolhe permanecer em contato com os familiares ligados a Alemanha que lhe remetem ao pertencimento e reconhecimento almejados. P. diz ter mais contato com seus primos da Alemanha, o que relata com entusiasmo, diferente da forma como retratou o encontro junto aos parentes brasileiros no portão. P. não sabe dizer o motivo do distanciamento dos parentes brasileiros, conheceu apenas a avó, com quem teve pouco contato e deste encontro revela-nos apenas uma lembrança: “(...) tive pouco contato com ela, eu só lembro do doce de figo, nossa era sensacional, ela tinha um pé de figo, nossa era um doce caseiro de verdade, acho que a descendência dela era portuguesa.” A lembrança que traz de sua avó envolve o doce e este é relacionado à descendência portuguesa desta. Tal associação remete P. a outra parte de sua família e à origem desta- novamente europeia. De alguma forma a busca pela construção identitária não brasileira parece ser uma constante, que leva P. a negar suas origens brasileiras. Parte significativa da entrevista foi baseada nas diversas viagens que P. fez à Alemanha e de como estas a levaram ao que viria ser seu projeto de vida. 126 Ao falar da primeira viagem a Alemanha, P. menciona o falecimento de sua avó alemã. “Acho que ela ficou muito feliz de ter me visto indo (...)”. Sua avó faleceu logo depois que P. foi à Alemanha pela primeira vez, a isto P. acrescenta: “(...) quando fiz 15 anos o pessoal falou você quer uma festa ou uma viagem? E eu falei não, quero viagem! Então imagina gastar dinheiro com uma festa que dura 4 horas? Acho dinheiro jogado pela janela. E eu falei quero muito conhecer a Alemanha. Aí passei um mês lá conhecendo todos os parentes, pagando mico assim sabe? Típico. Teve um que eu lembro o primeiro choque que eu falei peraí a cultura é realmente diferente, embora eu não me pareça, porque eu me sinto mais diferente do pessoal daqui do Brasil, mas o que aconteceu que me deixou assim, opa, foi no trem, numa viagem e aí eu tinha 14 nem tinha completado 15 anos ainda. Aí eu tava no trem e do meu lado tinha uma menina nova assim, devia ter uns 18, 19 anos e eu abri a bolacha e ofereci, você quer? Ela, não, não, obrigada (faz um gesto imitando a garota, esta, perplexa ante o oferecimento da bolacha) então eu fiquei assim, sem entender, mas agora entendo.” P. estranha a reação causada por seu gesto espontâneo. Desta forma percebe também que, ainda que tenha descendência alemã e se sinta diferente das pessoas no Brasil, também não pertence àquele lugar- Alemanha, onde seu gesto espontâneo é interpretado de modo tão díspar. Tal episódio leva P. a refletir sobre o seu pertencimento, o que revela o prenúncio de um conflito: “Não dá pra você ser as duas coisas, mas você também não é nenhuma das duas individualmente.” Aqui se abre um parêntese para relembrar-se o que foi citado em capítulo anterior, sobre um aspecto aventado por Hommi Bhabha (2001). Fica clara a situação de “entre lugares” vivenciada por nossa colaboradora, bem como o conflito que disto advém. Quando colocada em uma situação onde sua atitude não é reconhecida tal qual, seu pertencimento também é colocado em cheque, ocasionando conflito. No entanto, o mesmo autor, ao falar sobre hibridismo cultural, aponta para a formação de um terceiro elemento que de certa forma, poderia levar à superação criativa do conflito. Naturalmente não é algo simples, mas algo a ser levado em consideração, sobretudo, em uma nação (aqui se pensando o Brasil) onde a população miscigenada tem em si presentes elementos e tradições diversas que, frente ao impasse da “escolha” podem agregar e assim transitar na composição identitária do terceiro elemento como possibilidade de superação do sentir-se “entre lugares”. 127 “Acho que tem uma coisa, justamente os dois, a gente não tá nem lá nem cá, eu sinto muito assim, especialmente aqui, mesmo porque lá eu tinha uma situação diferente, eu tenho muitos parentes lá. Eu tenho uma prima, que ela é adotada, tem cabelo enroladinho, então é assim, ela fala alemão fluentíssimo, muito melhor que eu, mas é assim, ela, andando na rua o pessoal não fala que ela é alemã. Então ela, pra arranjar amigos também foi muito mais difícil e ela acabou é conseguindo, mas assim, fez amigos do Cazaquistão, russos é estrangeiros em geral e aí através disso. O ex- namorado dela era do Cazaquistão e o pai dele tinha cidadania alemã e fez uma coisa parecida com o que minha avó fez, tinha todo tipo de problema no Cazaquistão, inverno é menos trinta graus (...) passando fome, falaram que tinham que comer pomba aí ele vendeu tudo o que tinham e veio com a família pra Alemanha, chegou numa prefeitura qualquer e falou: eu quero morar aqui, eu preciso de ajuda e ele conseguiu, conseguiu apartamento, num desses programas do governo, que são muito diferentes dos daqui né, e aí ele falou assim: olha, foi a melhor coisa que eu fiz, então é assim, eles são tecnicamente alemães, mas não são também né e foi assim, assim até que ela chegou nos alemães mesmo, que já tinham outros amigos e tal (...)” De alguma forma P. busca encaixar-se no que acredita ser “alemão” e o é, ironicamente, no Brasil. Neste país se vê como diferente das pessoas em seu comportamento, em sua aparência e em sua forma de pensar. Após o episódio da bolacha, retrata o exemplo da prima adotada, compara-a como também sendo “nem lá e nem cá” algo que tranquiliza P., uma vez que diferente da prima, P. se parece fisicamente com os alemães, então “é” alemã. Com base nisto legitima seu personagem, diminuindo o conflito gerado por não ser nem uma coisa e nem outra. Outro dado, demonstra que a história de vida de sua família tem pontos de aproximação com a história da família do namorado desta prima. Este emigrou devido às necessidades que passavam no Cazaquistão, assim como a família de P. Para ela a descendência alemã e sua aparência são considerados facilitadores de sua inclusão na sociedade alemã, enquanto a prima e o namorado do Cazaquistão, tiveram dificuldades “até chegarem, nos alemães mesmo.” Logo P. com tais colocações realiza alguns ensaios que a afastam de maiores dificuldades com a adaptação, pois é alemã. Após mais um parêntese para falar das bolachas e da associação com a história de emigração da prima e do namorado, seguiremos com apontamentos sobre outra viagem de P. a Alemanha. “Então assim eu lá já conheci um monte de alemães por causa disso, mas por causa do trabalho também né, quando eu fui pra lá, por exemplo, (visitou a empresa cuja filial trabalha aqui no Brasil), conheci a cidade (diz o nome da 128 idade) e achei horrível, não quero sair de São Paulo para ir pra uma cidade assim. Então fui a cidade (diz o nome da cidade) e lá tem um riozinho tranquilo e não era verão era outono já, e as pessoas são muito felizes lá e eu perguntei pra onde vocês vão quando tiram férias, porque isso aqui já é tão lindo e eles viajam muito porque tem condições também e aqui né, só de pedágio...” P. expressa o desejo de viver uma vida tranquila, em uma cidade diferente de São Paulo “onde as pessoas são felizes” e percebe que isto é possível na Alemanha, onde há uma cidade em que não se precisa viajar para se estar em férias... O contrário do que vive em seu cotidiano. Desta forma, para viver o que pretende ser seu projeto, valeria a pena arriscar-se, até mesmo em algo que em um primeiro momento, P. não pretende ser... “Então é esse tipo de coisa, se for pra ser vendedora, faxineira, garçonete, qualquer coisa, qualquer coisa. E essas situações acabam fazendo você crescer muito né, esse tipo de coisa e eu falei, eu preciso ir pra lá, pra fazer qualquer coisa. Eu preciso ver, tirar, tentar, tirar isso do meu sistema porque eu não me sinto feliz aqui no Brasil, é muito barulho, o barulho me incomoda muito.” P. vislumbra a vida em uma cidade que mesmo próxima à estrada é silenciosa e cheia de estrangeiros, é civilizada. “A casa da minha prima fica em uma zona industrial e a cidade tem muito estrangeiro, um alto grau de estrangeiros e assim sem preconceito, mas uma cidade que tem mais estrangeiros, você imagina, também é um lugar mais sujo e tal e não, ali é lindo e mesmo assim, um silêncio absurdo, minha tia pediu desculpas pelo barulho e eu falei barulho, que barulho, ah o barulho da Autobahn (estrada) e que Autobahn, imagina, eu tô ouvindo o barulho do Bach (riacho) e na verdade não era o Bach era a Autobahn! Um silêncio magnífico.” Quando P. se refere ao barulho pode associar este ao ruído da cidade grande onde mora atualmente e está descontente. Menciona para tanto, a paz que pretende encontrar na Alemanha- lugar onde mesmo um bairro “cheio de estrangeiros” pode ser silencioso e agradável. Ainda sobre o silêncio, P. comenta: “E aí um dia ia ter jogo Alemanha versus Áustria, e aí a gente foi assistir, eles tem um Party keller (salão de festas no porão) é tipo um pedaço do porão que eles usam quando querem fazer festas, pra não fazer barulho e não incomodar os vizinhos! E a gente chegou lá e eles puseram a TV e tal e eu falei e aí vocês não iam fazer barulho? Mas mesmo se não tivesse no Keller (porão) não ia ter barulho algum, então eu sinto muita falta disso do silêncio.” 129 O silêncio o qual P. sente falta parece representar a relação que ela faz deste com o respeito, ou com os preceitos que aprendeu em casa pela forma como foi educada (lembramos que é fato, os alemães costumam falar baixo em reuniões, ou restaurantes. Falam alto onde lhes “é permitido” como em festas de carnaval ou bares, por exemplo) e espera que outros correspondam. P. vivencia um desencontro entre o local onde vive sua conduta e forma que espera que outros se comportem. P. vive assim um conflito constante. “Então tipo sabe têm umas coisas assim né, hoje eu fui pra academia e um cara parou atrás de mim e bloqueou totalmente a minha saída eu fiquei doida, é muita falta de respeito entendeu e o cara achava que tava com razão, ah porque eu não achei lugar... E tive que chamar ele e ficar esperando... Então sabe esse tipo de detalhe e eu tenho uma amiga que mora em Cotia e eu tava devendo uma visita pra ela e aí, era aniversário dela e eu fui lá. Ela marcou o evento começando às 19 horas e eu, me esforçando pra me atrasar, geralmente me esforço, faço um esforço tremendo pra me atrasar pras coisas e era 7:20 e eu já tava lá, não tinha ninguém e ela nem tinha tomado banho ainda e aí eu ficava assim, tipo sentada no sofá e as pessoas arrumando as coisas e tipo assim né...” P. demonstra sua insatisfação, não se sente confortável em um ambiente onde sua forma de ser não seja a norma, não é comum. Acredita que foi criada deste modo e isto contribui para seu descontentamento atual. “Com certeza, eu acho que fui criada assim na coisa alemã de pensar o que quê a situação vai fazer para os próximos, sempre minha mãe, tudo o que eu ia fazer minha mãe falava você vai incomodar o próximo então, isso foi ficando foi ficando, então é assim se você marcar um horário e chegar mais tarde pô é falta de respeito a pessoa se preparou pra aquilo, pra aquele horário. É que nem você vai no médico, você marcou às sete horas e ficou até às 9 você vai ter que justificar duas horas pro seu chefe entendeu, o que na verdade, não tem por quê todo mundo perder seu tempo então era assim, ah não faz isso que você vai incomodar e assim isso você chega numa conclusão, se todo mundo fizesse isso, ninguém se incomodaria com ninguém né, é meio impossível mas, assim acho que foi de criação mesmo assim, com certeza.” Curiosamente, o barulho também pode fazer falta, quando este denota uma forma (brasileira?) de expressarem-se emoções. “Pra você ter uma noção a gente tava numa festa na Alemanha e tava tendo o jogo Alemanha versus Áustria, não era um jogo tão importante, tipo amistoso não sei e aí o tio do namorado da minha prima, a gente tava na casa dele (...) e ai a gente vendo o jogo e aí assim, não acompanho muito futebol, mas assim, quando tem algum jogo assim internacional, algum time de países aí acho legal e aí tava sentada no banquinho lá né, vendo aquela tevezona (...) aí a gente assistindo o 130 jogo e tava emocionante tal e o pessoal tão quieto! Eu parei, olhei pra minha mãe, minha mãe pra mim... É ta bom, em Roma, faça como os romanos né , aí tava ficando emocionante e saiu um gol da Alemanha e todo mundo quieto! Aí eu mãe, foi gol mãe? Será que foi mesmo gol? Nem o narrador gritou gol, nem um tipo de indicação, ai falou ah... 1 X 0 para Alemanha... Aí eu falei pro cara, vocês sempre assistem jogo assim? E ele ah, não tá valendo nada... Tá bom né...” Após percorrer-se o sentido do silêncio para P. o modo como percebeu as mulheres empreendedoras de sua família, a forma como se sente estrangeira no Brasil e algumas impressões iniciais que teve nas visitas à Alemanha, pode-se atentar para a compreensão de seu desejo de viver na Alemanha como um projeto de vida em construção permanente, reforçado a cada viagem, a cada experiência desagradável no Brasil. “O desejo de ir pra Alemanha acho que veio depois que fui a primeira vez, com 14 anos. Achei tudo muito bonito, muito organizado e aí eu falei gente é isso que quero pra mim, me identifico com isso e acho assim, isso deveria ser o normal. Aí fui crescendo e tal e aí assim, a vida entrou no caminho das coisas e aí em 2008 sabe quando dá a última crise de adolescência minha amiga me chamou pra ir no Wacken (festival de música na Alemanha) aí eu falei quer saber de uma coisa?Vamos! ” P. relaciona esta viagem com o início de sua vida adulta e independente. Percebe ainda que neste país é possível concretizar coisas com menos dinheiro e novamente reforça a ideia de uma vida melhor do que a que vive no Brasil. “Na época eu tinha um salário ridículo, mas dividi em 12 vezes, a gente vai lá e começa a contar as moedas e eu fiquei lá, nem sei, 8 dias (...) eu já tava adulta pagando tudo sozinha e aí eu percebi que o dinheiro que gastei lá eu não passaria 8 dias aqui, então assim, mesmo fazendo vezes três e aí eu falei nossa como eles conseguem?” P. desfruta a experiência no exterior percebendo a cidade, os espaços e a questão econômica, sempre como muito diferentes do que a realidade no Brasil. Entende que a Alemanha é um lugar que combina com o que pensa e também sente-se inserida nesta forma de organização. Sobre o Brasil retrata ainda o descontentamento produzido por sua dificuldade em encontrar roupas e sapatos para o seu tipo físico. P., em comparação, conta-nos sobre sua incursão por lojas na Alemanha, aonde as calças “chegavam até o chão”. 131 Faz ainda uma comparação entre a pequena cidade alemã que tem tudo e Guarulhos: “(...) falei gente como eles conseguem, Guarulhos tem milhões de pessoas e só tem uma livraria e ainda uma loja que é dentro do shopping... e eu falei assim como eles conseguem, tem tudo nesta cidade, eles não precisam ir pra uma cidade grande pra ter as coisas.” Em 2008 decidiu que “tinha que fazer alguma coisa” e relaciona este desejo à vivencia que teve na viagem. Hamburgo é a cidade natal de sua mãe, considerada linda por P. “eu fiquei apaixonada por aquela cidade”. E para explicar seu encantamento, segue trazendo exemplos. “A mulher contando as histórias de Hamburg, nossa eu achei fantástico, ela foi contando, naqueles passeios que a gente fez nos ônibus com dois andares que Hamburg é feita igualmente de um terço de água e um terço de natureza e nossa, é visível esse equilíbrio.” A cidade reflete o equilíbrio que P. busca para si, contudo, é questionável até que ponto tal equilíbrio provindo da ideia que P. faz da cidade, pode proporcionar equilíbrio pessoal? Talvez P. em sua busca identitária e desta associada a um local, ainda não tenha percebido que, o quê pretende ser não está somente relacionado ao que vai encontrar no lugar idealizado, mas ao que está sendo neste lugar, como, e porque o percebe de determinada maneira. O que se pensa aqui é a possibilidade de P. estar aprisionada a uma identidade pressuposta, ou seja, ligada ao papel que um “alemão” deve exercer, como deve comportar-se e como tudo ao seu redor funciona bem e de modo equilibrado. Questionase se este equilíbrio por P. almejado não seja o equilíbrio sugerido pela alusão a tal identidade pressuposta e assim re-posta por P. que em outros termos, pode aprisioná-la ao invés de libertar. Alude-se à questão ligada à política de identidade neste caso retratada. O funcionamento ideal, a limpeza, a educação, a ordem, o silêncio, entre outras prerrogativas do “ser alemão” ou do “modo alemão de ser” manifestam-se com frequência no projeto de quem P. gostaria de ser. Na Alemanha, P. acredita poder ser ela mesma, não precisar fingir sentir o que não sente. Para tanto, fala de características culturais tanto do Brasil como da Alemanha no modo como as pessoas se expressam no cotidiano. 132 “(...) lá isso é (...) muito claro e você não tem a obrigação de ficar sempre sorrindo o tempo tudo, acho que esse é o ponto e aqui você tem a obrigação de estar sorrindo o tempo tudo. Teve uma dia que eu não tava muito feliz no geral, no trabalho, eu tava assim, normal, mas não tava muito feliz e as pessoas nossa e aí tá tudo bem? E eu nossa sim, só não tô né... Mas lá você não tem essa obrigação, entendeu. Se eu tiver sem sorrir o tempo todo ninguém vai achar estranho, porque eles recebem melhor essas variações de humor eu acho. Aqui a gente aprende isso, desde criança se você não tá sorrindo o tempo todo, tem alguma coisa errada.(...) é impossível né a gente estar feliz assim, sorrindo o tempo todo, não é nem saudável eu acho.” No desenrolar da entrevista percebeu-se o descontentamento de P. com a vida que leva no Brasil e com a forma que as pessoas se comportam. Isto ilumina o que se referiu sobre a manutenção do ideal proporcionado pela identidade pressuposta (a partir de uma política de identidade) e a busca que se acredita emancipatória pelo sujeito (no caso de P. mudança para Alemanha com um contrato com a empresa onde já trabalha revela sua luta por autonomia e emancipação em outro país). A dita “emancipação” pode estar mascarada como sucesso- ascensão no trabalho e mudança para um país que corresponda o que se vislumbre como ideal. Incita-se “mascarada”, pois, no caso do sujeito vinculado à identidade pressuposta, o aprisionamento causado pode impedir-lhe o acesso a metamorfoses, gerando manutenção de preconceitos e visões em anamorfose, por exemplo, o impedimento a metamorfoses aqui compreendido como reposição da personagem ligada ao ideal de ordem, ao jeito que se construiu o “ser alemão” ocasionando a não abertura a críticas proporcionadas pelas situações que se vive. As situações podem ser analisadas, por vezes, com olhar enviesado. O dar-se da identidade como constante transformação, perpassa modelos, ideais, situações políticas, históricas e econômicas que vão se refletir no sujeito, no modo como faz suas escolhas e também na busca por um modelo que acredite condizente com o projetos de vida que formula. Seguir-se-á com um exemplo que poderá iluminar o que se explanou até aqui: “Meu vizinho faz dois anos cortou todas as árvores do quintal dele e minha tia foi lá e falou o que quê você tá fazendo cara? E ele disse que faz muito trabalho, faz muita sujeira... Então é com esse tipo de coisa que eu não consigo lidar, não é possível, não é normal.. E aí, ah eu preciso ir embora... E aí a vez passada eu já queria ficar na Alemanha, mas ai a vida entrou de novo no caminho, a gente foi só de férias.” Fica claro o pensamento de P. com relação ao comportamento que não é aquele por ela aprendido, muito menos almejado como ideal. Contudo, ainda que queira 133 encontrar um outro lugar onde comportamentos que não concorde não aconteçam, a vida ainda a prendeu a um lugar no qual não queria permanecer, onde não se reconhece. Como lidou com isto? P. fala da forma encontrada para lidar com tais conflitos, partindo da elaboração de seu projeto de vida. Novamente, conta-nos sobre outra viagem à Alemanha que desta vez, envolveu um planejamento para quando “ficasse de vez...” “Nossa, essa viagem foi muito legal, tava todo mundo junto e foi a primeira vez que minha mãe voltou pra Alemanha, então foi uma coisa muito especial. E aí a gente já foi com essa visão de ah será que a gente conseguiria morar aqui, vamo ver como é que é ficamos vendo os preços, anotando comparando, porque todo mundo fala ah mas lá você vai ter que pagar aquecimento e aqui você não paga aquecimento, mas em compensação você come lá um terço do preço que você come aqui né... As pessoas conseguem morar sozinhas e aqui eu jamais conseguiria morar sozinha, ou eu moro sozinha ou eu vivo né...” O projeto de P. vai além da identificação com a Alemanha ou com o modo de ser alemão, demonstra a dificuldade que o jovem tem no Brasil de sair da casa dos pais, ter autonomia, independência financeira. Cabe a reflexão de que todo projeto identitário envolve as condições sociais e históricas as quais o individuo está inserido. Estes decorrerão de uma falta sentida ou de uma meta visada (CIAMPA, 2012) um ou outro, impulsionam ao movimento. “Aí na última semana que eu tava lá fui pra cidade (tal) conhecer a empresa que trabalho, mas não tava legalmente a trabalho fui lá conhecer a cidade e aí tinha os meninos que eu já conhecia que sempre vêm na empresa aqui no Brasil trabalhar e eles ah legal vamos sair tal vamos fazer o que, aí tinha um jogo de futebol aí fomos no centro, nos barzinhos pra assistir ai falei bom, vai tar todo mundo quieto, mas nossa outra coisa, tinha até cavalaria no centro da cidade! (fala animada) me senti assim meio no centro de São Paulo só que um pouco mais seguro, porque né, eu não senti medo em nenhum momento, eu peguei trem, todo mundo vestindo as cores do time, com alguma coisa, era camiseta, chaveiro e tal, mas muito legal. Peguei o metrô cheio, era senhora, criança, cachorro era todo mundo com alguma coisa e a gente foi na Kneipe (bar), assistiu o jogo, todo mundo curtiu muito e ele ainda me pagou uma dose de, como chama, um licor de alcaçuz, uma coisa forte, um gosto forte, imagina né, fortíssimo, nossa que coisa e vamo embora , vamo embora, já era quase uma hora da manhã e a gente foi andando pelo meio da rua assim, sossegado, já tava tudo limpo, aí ah tô com fome, fomos comer, pegamos o metrô e quando fomos fazer a baldeação, perdemos o último trem(...) a gente andou na cidade no meio da madrugada e em nenhum momento eu vi alguma coisa estranha, muito sossegado.” 134 Neste contexto, P. traz mais um exemplo de como as coisas podem funcionar em outro lugar em detrimento de como funcionam no Brasil, que a encorajam a seguir com sua mudança, seu projeto. A isto acrescenta ainda, sua decepção pelo o fato de possuir algumas coisas apenas porque sua família a proporcionou em crítica às condições (não) proporcionadas pela sociedade onde vive. “Eu tenho carro porque eu herdei do meu pai, se ele não tivesse morrido, acho que eu não teria e minha prima de lá, assim, com todo respeito, é um zero a esquerda, ela tem carro, tem Ausbildung (formação técnica- curso profissionalizante financiado pelo Estado) tem emprego dela, então acho que assim, profissionalmente eu acho que consigo mais do que eles, então tenho que tentar.” Ainda que tudo funcione do modo como P. entende ser o melhor e o mais adequado para si, não sabe se será reconhecida em suas potencialidades. Está posto o conflito do que fazer caso seu ideal não se concretize. P. mostra-se pensativa... “Sabe eu li um estudo psicológico, uma matéria que diz que quando a pessoa vai pra lá ela tem muito trabalho em se adaptar, mas também, quando volta pra cá, daí nunca mais se adapta.” “(...) lá, vou ter que trabalhar que nem uma camela, eu não vou ter nenhum amigo, eu tô fixando muito nisso pra não chegar lá e ter um choque.” “Eu acho que tô muito preparada pra esse tipo de coisa, eu tô realmente esperando, porque assim você idealiza o normal, o ser humano idealiza sempre por bom(...).” Chegar ao lugar idealizado e ver que as coisas podem ser diferentes passa a ser uma possibilidade a ser considerada por P. que têm dúvidas sobre como será a adaptação em outro lugar. De outra forma, ponderaria ela regressar ao Brasil caso seu projeto não dê certo? A dúvida surge, mesmo que P. evite mencioná-la textualmente. O tema ocupa seus pensamentos. Surge ainda durante o relato, um descontentamento frente à sua luta por reconhecimento ao comparar-se a outros (na Alemanha) que não travaram semelhante esforço para atingir objetivos de ascensão e estabilidade como os buscados por P. “Então é revoltante, sabe eu estudei tanto, trabalhei tanto e chego lá às vezes a pessoa mal terminou a escola e fez só um curso assim pra pegar o certificado, mas pegou o certificado alemão” 135 Neste relato, P. revela sua revolta para com aqueles que não precisaram lutar como ela (lutou muito por estar no Brasil, em posição desprivilegiada) e ainda assim conseguiram obter o certificado alemão, algo que por si só, já é compreendido como sinônimo de êxito certo. Ao mesmo tempo, certifica-se que estará preparada para encarar as dificuldades no exterior, pois está muito acostumada no Brasil... “Então onde eu trabalho eu sou a única mulher na fábrica então já estou acostumada (colocação sobre ter que se esforçar mais do que os alemães para ter uma posição de destaque no trabalho) você tem que fazer muito mais que os outros pra ter uma posição.” Enquanto refere preparo para as dificuldades devido sua experiência no Brasil, menciona também um outro olhar, de alguém que admira e que, de modo semelhante a ela, viveu a experiência de morar e trabalhar em outros países. P. menciona este exemplo como o de alguém que, além de ter “dado certo” em seu plano de mudança (no caso- emigração), passou após a experiência fora do país a ter outro olhar para com os trabalhadores brasileiros. “(...) o meu chefe que passou quatro anos na Alemanha me disse que nunca conheceu uma pessoa assim tão alemã pra trabalhar como eu. Pra mim é assim , ou é , ou não é e por ex, na fábrica tem uma pintura no chão pras coisas, porque é muito difícil as coisas ficarem no lugar aqui no Brasil né, então tem uma pintura no chão lá na fábrica pra deixar o lixinho, do tamanho certinho, pra ele saber que o lixinho vermelho vai no quadradinho vermelho e o preto, no preto, uma coisa assim, super intuitiva e você imagina que a pessoa vai entender e aí você vira as costas e chega lá o negócio tá torto e aí você volta lá e fala, não, dentro! Outro dia eu falei pra ele que não aguento mais é uma coisa muito óbvia, muito simples e já tá pintado no chão pra facilitar a vida deles e eles não conseguem é tudo torto, nada tá reto e também, eu trabalho com tecnologia, engenharia e pra mim as coisas são todas retas, pra mim as coisas tem que estar retas, minha mesa esta sempre assim, 90 graus e eu ouvi uma expressão uma vez que é assim se não é um ângulo reto é um ângulo errado (risos) e eu achei o máximo porque me sinto assim, e aí eu cheguei na fábrica e disse assim que as pessoas são bagunceiras, não tem o menor método de trabalho sabe, não aguento mais e ele(chefe) falou assim você tá exigindo muito do pessoal. E eu tô exigindo uma coisa básica, ou é ou não é e ele falou assim não, pensa comigo, e ele passou 4 anos na Alemanha e eu, fiquei abismada com esse pensamento. Olha na rua, não tem uma rua reta, não tem uma calçada reta, não existe uma casa reta né, essas pessoas vem de classes mais pobres e não tem é, uma lei reta, não tem um serviço reto, então aí eu fiquei assim nossa é realmente, então assim a pessoa cresceu nesse ambiente, que não tinha nada, o natural é não ser reto e eu nunca tinha me tocado disso. E agora eu tô um pouco mais leniente com a coisa, mas mesmo assim eu acho que ou é ou não é e isso acho que vem muito da minha mãe e da minha avó porque ou é ou não é, se você pôs no prato vai comer, entendeu?” 136 No relato abaixo, P. exemplifica o pensamento “em ângulos retos” de sua mãe e sua avó, que justificam seu modo de ser e até mesmo de permanecer com estas referências. “Minha mãe, por exemplo, nunca teve paciência pra esse tipo de coisa. Eu acho que isso bem muito dela assim. Minha avó também não, era um amor, mas não me venha com churumelas. Assim, exatamente, sejamos práticas isso é, isso não é, não é.” Neste exemplo P. nos apresenta o modo como foi socializada por sua mãe, tia e avó e como esta socialização promoveu internalizações de olhares unilaterais em P. Entretanto, na conversa com um outro significativo (seu chefe- quem respeita por ter vivido e trabalhado na Alemanha) que P. percebe haver a chance de ampliar seu olhar e sua compreensão para o que ocorre ao seu redor, ainda que escolha não fazê-lo. Nota-se que o personagem “alemão” ou a “trabalhadora-alemã” repõe-se mantendo P. na mesmice, mesmo conhecendo uma outra forma de pensar os fenômenos. Este exemplo dá pistas sobre como P. vivência o mundo através de seu personagem que “em ângulos retos” não permite curvar-se, ressignificando modos de ver o mundo. Aqui, mais uma vez, um olhar ou talvez um modo de viver em anamorfose. Compreende-se o porquê de muitas vezes P. não conseguir adaptar-se às situações com as quais não concorda, sentindo-se como uma estrangeira. Foi socializada em ângulos retos e entende estes como corretos e assim, busca-os, também para seu projeto de vida. Esta questão, longe de ser algo meramente descritivo, causa sofrimento, expresso em palavras por A.P. “Eu acho que a gente sofre porque exatamente isso aqui é tudo muito torto e a gente foi criado de um jeito muito reto os móveis da minha casa, por exemplo, as pessoas vão em casa e dizem nossa sua casa é diferente, por que tá tudo alinhado de uma certa maneira sabe, é um cômodo pra isso, outro pra aquilo não é assim aquela coisa meio bagunçada né, que tem, que eu vejo nas outras casas então as coisas são todas mais altas, você entra no metrô e bate a cabeça, entendeu, as coisas não são adaptadas. Eu sinto que a gente não é...(pausa) Você viu os metrôs novos da linha amarela? Eu quase chorei! Eu nunca consegui sentar né, mas tudo bem, por que tá sempre cheio, mas você sempre tem que abaixar a cabeça pra entrar, um dia, eu entrei tive que abaixar a cabeça entendeu? E ai fico pensando assim, gente, não é normal. Isso por que são os trens novos e a tendência mundial é crescer por mais que a média brasileira ainda esteja bem atrás, você tem que pensar quando está fazendo uma linha de metrô, primeiro tem que pensar que vai 137 demorar pra ficar pronto e vai botar pra funcionar pra sempre, entendeu, então eu abaixei a cabeça assim pra entrar e meu, esse tipo de coisa assim, entendeu? Não sei falta um pouco de, sei lá, não sei só sei que me sinto muito estrangeira aqui assim, sabe? Até andando na rua as pessoas olham pra você assim e falam é estrangeira.” P. vivencia o lugar onde vive em anamorfose e busca uma forma perfeita para se encaixar. Contudo, qual será a fórmula para criação de formas em ângulos perfeitos, para se ter a vida perfeita? Uma alternativa seria talvez permitir-se enxergar outras formas que possam moldar-se às diferentes pressões, meios, temperaturas do ambiente etc; nestes exemplos que partem da concretude das formas para pensar-se o social e o sujeito em movimento, há que se exaltar a existência do sofrimento produzido pela crença da existência de tais “formas perfeitas” – formas de ser que no aprisionamento do indivíduo, também o impossibilitam de constituírem projetos pautados na autonomia que lhes viabilizaria liberdade para além dos modelos pré-moldados. Liberdade para construírem-se formas novas, deformar, mudar, permitir o surgimento da maleabilidade. Não é isto que o funcionamento capitalista ensina às pessoas? A lógica de funcionamento em ângulos retos mantém o aprisionamento aos modelos estabelecidos. P. coloca-se no mundo como forma angular e entende esta, como a forma ideal que compõe o personagem que re-põe e ainda, que cabe em seu projeto. Projeto este que combine com o modo como foi criada. “Então as pessoas falam que eu sou antissocial é isso de cumprimentar com beijinho, eu trabalho num setor que são, sei lá 20 pessoas, todo dia todo mundo cumprimenta todo mundo com beijinhos e eu já falei gente não, sem beijinho, bom dia tá ótimo, te vejo todo santo dia e eles ai você é muito fria, gelada. Aí eu falei eu, se você vê a pessoa uma vez no mês, mas todo dia fica difícil, então, não gosto dessas coisas de cumprimentar com beijinho e tal e coisa eu acho que é muito de criação porque na verdade, não sei, não sei...” P. repõe a personagem trabalhadora-alemã-antissocial e entende isto como parte de sua criação. Tal fato combina com o que busca nas formas perfeitas, mas, a longo prazo, ainda não sabe muito bem. Segue frente ao “não saber” repondo seu personagem, ainda que tente não dar respostas germânicas: “Ai outro dia o cara da produção ficou olhando pra mim e dizendo nossa que coisa feia você está toda de bota, pô eu trabalho de bota, é questão de segurança e aí eu fiquei olhando pra ele e pensando, bom eu vou me segurar, não vou ser 138 germânica nessa resposta. Porque na Alemanha eles não tem dó né, você faz uma pergunta idiota eles vão te responder né... A altura.” O que é uma “resposta germânica”? “Uma resposta germânica é quando você aponta uma resposta óbvia que os caras não enxergam. É uma coisa óbvia. Tem muita coisa assim, que eu penso eu não vou responder. Por exemplo eu sempre pego um café grande, já faz 6 anos que trabalho na empresa e sempre pego um café grande. Aí eles me falam, nossa vai tomar tudo isso eu digo não! É enfeite, sabe, esse tipo de coisa, não tenho paciência, eu respiro fundo, internalizo...” A resposta germânica passa a ser a resposta do ângulo reto, uma vez que, frente ao óbvio, não há que se questionar. Por um lado, existe a dificuldade no sentir-se estrangeira no Brasil, lugar onde nasceu e cresceu, entretanto, é algo por P. compreendido como positivo e mesmo que não seja a forma ideal, em um país onde os meios de transporte, as roupas e os comportamentos não lhe caibam. P. escolhe manter-se nesta posição e ser assim reconhecida. P. é a forma errada num lugar certo, ou melhor dizendo, possui a forma certa e o lugar está errado. Como estrangeira no lugar errado, mantém a mesmice de seu personagem que só caberá perfeitamente no encaixe proporcionado no país onde tudo é perfeitamente encaixável, lugar onde o modelo estruturado nos ângulos corretos é a norma, o aceitável e o propagado. Logo, o fato de ser estrangeira no Brasil pode não ser a motivação ideal para partir, mas ao perpetuar este personagem, busca ser reconhecida como uma outra P. que não brasileira dos de ângulos errados, passando a ser força motriz para a partida. Não é o ser estrangeira que a faz partir, mas sim ser reconhecida como P. alemã. Na concepção de ângulos corretos, parece não haver espaço para o improviso, para a constituição identitária diferente do planejado, diferente do que compõe a política de identidade na qual o indivíduo está inserido (ou almeja estar). Neste exemplo, ao comparar a cultura japonesa a alemã, P. se surpreende com o que encontra. “(...) no meu bairro tem muito japonês e eu sempre achei a cultura deles muito interessante, sabe eu acho muito, muito interessante, eu jamais moraria lá né, que 139 nem eu quero morar na Alemanha, mas acho muito interessante, muito curioso eu leio bastante e realmente os japoneses que eu conheço que tem minha idade, não têm a menor relação com a nave mãe. (se refere ao Japão). Isso que é pra eles é uma coisa mais opcional e eu nunca tinha pensado nisso, tenho uma colega de trabalho que é assim, japa de tudo e aí você fala e aí vamo fazer não sei o que lá, tipo comer sushi e ela assim, não... É uma prerrogativa nossa achar que o cara gosta né (risos) e aí não, não gosto. Mas tá bom e você viu aquele negócio e ela, não, então qualquer coisa relacionada ao Japão ela mantém uma distância e eu fico assim, nossa, mas por que será né? Eu até brinco com ela, nossa,, você nasceu no Paraguai né, porque... (risos) você não é japonesa de verdade, e eu achei isso curioso, nunca tinha pensado nisso assim, objetivamente. Não sei porque que os alemães são assim mais próximos (pausa) eu acho... (pausa) não sei mesmo...” Houve neste exemplo espaço para P. observar outro descendente de imigrantes atuando em algo considerado fora da norma, algo diferente do que se espera de um japonês. Na concepção de P., um japonês do Paraguai é um não japonês, um japonês falso. Neste comentário P., além de seu estranhamento para com a postura da amiga, traz a ideia de que as tradições e costumes sejam mais propagados e mantidos entre os alemães. Ainda falando dos japoneses, P. lembra-se do fator pontualidade. Algo muito importante: “Eu tô pensando aqui em algumas variáveis que não se repitam nas outras culturas, porque com relação a pontualidade, é uma coisa que os japoneses também têm e é uma coisa que me atrai demais pontualidade especialmente, tanto que assim, por exemplo a gente vai sair em turma e eu, eu tenho pavor de pegar carona, eu não pego carona, só eu vou dirigindo então eu é que dou carona pra todo mundo. Então eu falo assim: 10:20 eu passo na sua casa, 10:27 vou na casa do fulano e ai o pessoal começou a tirar sarro de mim. Eles imprimiam a lista que eu mandava e ficavam assim com o relógio do lado, aí eu encostava o carro e eles falavam não é possível! Como que você faz isso? Eu não sei, é instinto, não sei como que eu faço isso porque mesmo com ônibus e metrô eu consigo calcular o tempo correto e chego na hora que tenho que chegar, se eu não tenho certeza do horário que vou chegar então eu aviso, olha, entre 10 para as 3 e 3 e 10 eu estarei ai, mas nunca passo disso e no fim eu acabo chegando 3 horas em ponto, entendeu?” A questão ligada ao ser pontual vale um comentário à parte. Em nossa experiência na Alemanha esse era um ponto que provocava debates. Ouviam-se as pessoas discutindo este fato, de modo geral, de reuniões sociais a encontros na universidade e até mesmo, no bate papo em filas, ou nos transportes públicos. A pontualidade é vista como algo muito importante, muitas vezes associada à boa 140 educação e ao caráter do sujeito. A pessoa que atrasa, não importa o tipo de compromisso, seja este social, ou compromissos como trabalho ou entrevista de emprego é igualmente vista com maus olhos, com menor valor como alguém que não respeita normas e não respeita aos outros, sendo assim pouco confiável. Percebemos também, em nossa experiência com outras nacionalidades que o fato destes tenderem a atrasos os tipificava como estrangeiros, ou melhor dizendo, estrangeiros enquanto estigma. Logo, eram considerados “estrangeiros” por seu comportamento, por não adequarem-se às regras locais de convivência. Muitos sofriam consideravelmente, pois, ao não se adaptarem eram também vistos como “irrecuperáveis”. P. percebe os alemães mais próximos de sua cultura do que os japoneses, isto mesmo ambos há tempos no Brasil. Tal fato pode ser explicado pelo Deutschtum (já mencionado) que na história de P. se configura como a política identitária, na qual está inserida. Em termos gerais, P. faz um balanço e ao final da entrevista coloca as seguintes reflexões sobre quem é: “Eu não sei, não me sinto os dois ao mesmo tempo, tem momentos que me sinto meia brasileira e tem momentos que me sinto meia alemã mas em geral alemã. Eu tô tentando pensar aqui... (pausa) Não sei realmente. Talvez quando eu tiver lá eu consiga identificar isso, eu pensaria pô acho que isso seria mais legal no Brasil, ah esse ponto, esse...” “(...) ser descendente de alemã me afeta 100%. Muitas das minhas características de personalidade vêm, com certeza, disso. Seja genético ou comportamental... Muitas pessoas acham que sou efetivamente estrangeira e que vim parar no Brasil em algum momento da vida, por causa de coisinhas simples, que para mim, minha mãe, minha tia e qualquer alemão considera básico: pensar nas suas ações e se elas poderiam incomodar ou prejudicar o próximo. Exemplo besta: procurar um local adequado para atravessar a rua. Com certeza influenciou no meu projeto de vida, pois nunca me senti lá muito brasileira e isso fez com que eu buscasse alternativas de locais onde eu talvez me sentisse mais em paz. Antes de pensar em algo radical como voar pelo atlântico, pensei muito em mudar para o interior, ou para o sul, ou para o interior do sul (Risos). E o que eu pretendo ser é uma descendente de alemã na Alemanha: tento conscientemente unir o melhor que o meu lado alemão tem a oferecer com o melhor do que minha vivência e educação no Brasil tem a oferecer. Sei que não conseguirei ser alemã de tudo, nem é meu 141 objetivo. Descendente de alemã na Alemanha para mim é um objetivo que talvez consiga equilibrar as balancinhas internas da minha cabeça, sabe? ” Demonstra o que ficou da entrevista: uma questão para se pensar... “Olha agora eu vou ficar matutando sobre isso... Da onde viemos e quem somos não é uma coisa que pensamos todo dia né!” A identidade pressuposta “alemã” lhe é condicionada e P. busca nesta seu pertencimento, quando repõe o personagem “alemã” no cotidiano, na sua forma de trabalhar, pensar e também de agir. Questiona-se, contudo, o grau de idealização implicado em seu projeto. A Alemanha construída por P. é a Alemanha que já visitou algumas vezes, mas também, aquela relatada por seus familiares que de alguma forma, supomos terem mantido o projeto de retorno. P. parece lançar-se a este desafio, em que repondo o personagem alemão, mantém o plano da família em funcionamento de modo a “equilibrar as balancinhas internas.” 142 Ponderações acerca do bloco “jovens descendentes”: Neste bloco trouxemos o que chamamos “jovens descendentes”. Foi possível observar características distintas entre estes e também, algumas semelhanças. Com E. foi possível perceber a importância da questão relacionada ao ser descendente de alemães quando falou sobre sua relação com os familiares, a forma como os avós vieram para o Brasil, a questão quase épica envolvendo o navio Graf Spee, o modo de vida da família no Brasil, forma como empreenderam e a relação com a casa que seu avô construiu no litoral. O valor que E. associa à sua ascendênciavincula-se à experiência e histórias de sua família, pautadas no empreendedorismo, trabalho e força de vontade. Elementos que busca desenvolver enquanto qualidades assimiladas de seus familiares. A forma como se deu sua socialização, sobretudo, mediante a relação com o pai e as experiências da infância na Alemanha, permitiu-lhe criticar algumas posturas ou mesmo o modo de vida de seus familiares, por exemplo, quando questiona o fato de sua avó alemã não ter tido amigos no Brasil e ter optado por não aprender o português. Outro ponto importante foi a observação da relação de seu pai com o trabalho, o modo como foi levado a viver para trabalhar, culminando em adoecimento e por último, a crítica que pôde desenvolver partindo de suas experiências ligadas à religião na Alemanha- país de origem de seus ancestrais que, contudo, segmentaria o seu vir a ser quando escolhas para sua vida seriam impostas pelo Estado. Sua crítica quanto ao modo como a religião fora praticada na Alemanha, o levou à percepção de que fora direcionado, faltavam-lhe meios que proporcionassem autonomia para refletir sobre suas escolhas, no momento que tal direcionamento ocorria. Neste contexto, o papel do pai de E. foi relevante. Quando decidiu que a família deveria retornar ao Brasil para que os filhos pudessem frequentar a escola para no futuro poderem escolher quem queriam ser, mostrou-se como ponto importante para que E. percebesse o Brasil como um país onde há maior liberdade de escolha. No entanto, E. expressa também considerar o país como sendo “não grande coisa”, revelando com isto 143 sua insatisfação quanto a desorganização do país, entre outros aspectos. Importa ressaltar que o “não ser grande coisa” é fruto da crítica; Não nos parecendo algo construído a partir da visão de terceiros, parte da própria reflexão. E. apresentou em sua narrativa o modo como construiu a visão de que caberia a ele o desenvolvimento de sua autonomia para ser quem quer ser, aliando isto aos valores familiares somados à sua história construída no Brasil e na Alemanha. Seu projeto de vida visa o “trabalhar- ser seu próprio chefe- ter autonomia” algo que parece refletir seu posicionamento frente à vida, no modo como age. Foi possível observar que a relação que tem com sua ascendência alemã levou-o a construir o seu estar no mundo de modo crítico e não de maneira a aprisioná-lo a modelos, ou padrões pré-estabelecidos. Na história de M. observou-se a alusão significativa de suas percepções relacionadas ao meio onde cresceu e se socializou. O fato de ter crescido em uma família de trabalhadores do ramo agropecuário, em uma pequena comunidade de colonização alemã em Santa Catarina, foi preponderante no que apreendeu sobre como se comportar, bem como no entendimento que desenvolveu sobre questões relacionadas ao modo como sua comunidade fora tratada pelo Estado (lê-se como fora tratada pelo Brasil, em seu entendimento). M. desenvolveu-se em um meio cujas circunstâncias o levaram a relacionar sua descendência alemã ao abandono pelo Estado, à falta de infraestrutura como, por exemplo, falta de recursos para a saúde. Entendeu que deveria conquistar seu espaço por meios e esforços próprios, a exemplo do que se deu com a colonização alemã outrora, conforme o modo como seu avô e familiares se constituíram no Brasil. Associa o fato de ser descendente de alemães com algo considerado ruim (ou de menor valor) pelos brasileiros e entende que devido aos problemas de saúde, é estigmatizado, não tendo chances de trabalho iguais a outros. Logo, compreende que ser descendente de alemães no Brasil, aliado ao fato de ter problemas de saúde, o coloca em uma condição difícil no país, cujo sentimento de “ser estrangeiro” lhe causa sofrimento constante. 144 Devido à ligação afetiva com o avô alemão, quem lhe incentivou a prosseguir a despeito das dificuldades e o ensinou sobre costumes e tradições da cultura, relaciona-o a um modelo a ser continuado, implementando desta forma características deste, que vão desde a vestimenta até o modo de se comportar, o que lhe dá um caráter de personagem- um personagem “alemão do século 18 ” conforme relatou. O fato de querer ser alemão (enquanto identidade pressuposta) é o que M. entende ser seu meio de destaque nas atividades que exerce, contudo, de alguma forma é também algo que ao mesmo tempo lhe aprisiona. Ao repor tal personagem, M. repõe também ideias de preconceito contra sua origem e também a dificuldade de relacionamento com outros diferentes dele, o que lhe afasta das possibilidades de metamorfoses com sentido emancipatório, restringindo-lhe oportunidades outras de experimentar-se no meio, encarnando outros personagens. M. tem como projeto viver em uma Alemanha distante, confundida com o projeto de retorno de seu avô. Fixado ao plano ideal afasta-se, contudo, do conhecimento da Alemanha atual, onde também existem preconceitos e dificuldades de ordens diversas, tal qual no Brasil. M. ao não ter claro seu local de pertencimento, não enxerga outras perspectivas para si e ao manter-se na mesmice de seu personagem, cabe-lhe almejar dias melhores, em local que se sinta compreendido em seu jeito de ser. P. é uma jovem paulistana, cuja forma de socialização pôde revelar muito sobre quem é e também, sobre as origens de seu projeto de vida. Cresceu em meio a uma família com histórico de idas e vindas para a Alemanha e para a qual, educação e valores como pontualidade, regras e prosperidade pelo trabalho foram tomadas à risca. P. encaixa-se a estas prerrogativas de ordem e disciplina, buscando mantê-las de modo a muitas vezes, isolá-la de quem difere deste padrão. Pretende morar e trabalhar na Alemanha e para conquistar seu objetivo, se prepara há alguns anos com afinco. Demonstra certa insegurança para com o que lhe espera neste país, mas acredita que viver tal experiência possa trazer-lhe algumas respostas e até mesmo, equilíbrio emocional. Pensa viver de modo melhor na Alemanha, uma vez que no Brasil (à semelhança de M.) se sente estrangeira, devido sua educação, hábitos e visão de mundo. 145 É possível observar em P. o destaque dado à família alemã e à língua em detrimento da família brasileira, com a qual teve pouco contato. Isto pode tê-la levado a fixar-se no exemplo de conduta e costumes alemães, não possibilitando o conhecimento e ampliação de experiências sobre outros modos de vida, ou mesmo, negando-as. P. revelou o trilhar do tornar-se adulta independente, buscando tal independência em local que lhe proporcionasse meios para tanto. P. acredita ser este local a Alemanha, por julgar que existam condições sociais melhores de modo que os jovens possam ascender e viver vidas independentes da família (P. faz alusão aos jovens que vivem muitos anos na casa dos pais devido aos fatores econômicos, o que também é seu caso). Entende que seu projeto se vida - viver na Alemanha pode contemplar o seu ideal de independência relacionado, ao mesmo tempo, ao que gostaria e ao que busca ser: “descendente de alemães na Alemanha” enquanto solução para o conflito identitário que se apresenta - ser estrangeira no Brasil. Sua socialização contribuiu para que visse o mundo e também se reconhecesse como diferente - o que acarretou em alguns momentos, na mesmice de sua personagem cuja re-posição manteve-a presa a opiniões ora estereotipadas, com ausência de crítica ampliada sobre algumas de suas vivências; podendo tais questões, estarem relacionadas à política identitária delineada pelo Deutschtum. Dos três casos apresentados, notou-se aproximação entre dois, M.e P. enquanto socialização que os levou à manutenção de personagens ligados a uma identidade pressuposta, ou seja, deu-se a reprodução do que é considerado o “modo de ser alemão”, reproduzindo aspectos da política identitária que propõe como devem ser, e cuja manutenção da mesmice por vezes, os aprisiona, fixando-os em um “funcionamento” que lhes afastam da mesmidade, constituindo desta forma o que experienciam enquanto “estrangeiros” no Brasil. E., entretanto, ainda que tenha tido vivências parecidas enquanto descendente de alemães (estudou em escola alemã, conviveu com a família alemã, aprendeu o idioma em casa etc.) viveu alguns anos de sua infância na Alemanha (re)formulando opiniões a partir desta experiência, bem como, ressignificou a atitude de seu pai, quanto ao retorno 146 para o Brasil. Logo, é provável, que além de ideais transmitidos pela família e comunidade alemã no Brasil, E. teve a oportunidade de, pelas próprias experiências, formular suas críticas, fomentar escolhas ou mesmo, comparações consistentes. Tais fatos não excluem aspectos valorizados pela socialização alemã vivenciada por E., que, de um modo diferente, constrói sua identidade com base nas experiências vividas em ambos os países que lhe proporcionam um leque maior de opções para estruturar opiniões. Não tendo E. uma visão idealizada ou construída por terceiros, mas a própria, pôde abarcar para si aspectos diversos que envolvem cultura, tradição e apropriação crítica desta. Importa ressaltar que E., mesmo apresentando uma visão mais otimista do Brasil enquanto país que proporciona flexibilidade às pessoas, também o considera “não grande coisa.” Tal ressalva deve ser levada em consideração sobre a forma como jovens atualmente enxergam o país, apontando a existência de uma possível tendência73. Segundo bloco - “descendentes mais velhos” S. natural de São Paulo, 60 anos, bisneta de alemães e filha de um austríaco “(...) me defino como uma pessoa que viveu o seu tempo, entendeu? Eu acho isso. Eu vivi adolescência, vivi infância, vivi na época da ditadura, vivi aventura, entendeu, eu tô sempre mais ou menos né, vendo as coisas acontecendo e fazendo parte, hoje já não faço parte mais das organizações lá, mas você vê, você tá lendo, você tá escrevendo, então eu vejo assim, sou uma pessoa que sempre to envolvida com os 73 Especula-se a existência de uma tendência crescente (diferente do que fora a emigração dos anos 80 para o Japão, por exemplo, devido à instabilidade da economia brasileira) do desejo de saída do país por jovens, contudo, não se encontraram números que apontem sua saída atualmente (2013), mas sim dados do censo do IBGE (2010) que referem que a faixa de brasileiros entre 20 a 34 anos de idade corresponde a 60% de brasileiros no exterior. Segundo esta fonte, a principal motivação para o deslocamento de brasileiros foi a busca de emprego de forma individual, sem o acompanhamento de outros membros da família. (mais informações em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/noticias/censo-ibge-estima-brasileiros-no-exteriorem-cerca-de-500-mil). Outro dado que desperta curiosidade sobre a possibilidade de tal tendência, consta em uma reportagem do ano de 2013, que aponta ser a viagem internacional o sonho de consumo de jovens de 18 a 30 anos, diferindo do que fora tempos atrás, quando o sonho era a aquisição de um carro, por exemplo. (fonte: http://cmais.com.br/paraospais/viagem-internacional-e-sonho-de-consumo-dos-jovens-brasileiros). 147 acontecimentos, com a transformação, com a mudança e que eu vivi mesmo o meu tempo, entendeu, eu vivi mesmo, coisas boas, ruins, sabe?” S. nos foi apresentada por uma pessoa que havia sido sua professora. O interesse em conhecer sua história surgiu, pois, para além de sua descendência alemã (objeto de nosso estudo), S. interessava-se por estudar fatos relacionados à colonização alemã no Brasil, vindo a iniciar um doutorado sobre o assunto. S. recebeu-nos em seu apartamento, muito aberta para compartilhar sua história. Seu relato durou cerca de 5 horas, entre conversa e um passeio por sua residência, onde mostrou-nos suas lembranças (livros, quadros e o esboço em nanquim da Catedral da Sé feito por seu avô, bem como, a vasta biblioteca composta dentre outros, por muitos livros sobre a imigração alemã para o Brasil). S. preocupou-se em relatar sua história de modo didático, trazendo exemplos e datas cronologicamente. Disto, pôde-se observar que além de seu ofício-professora e historiadora S. demonstrou com a organização de seu relato em datas e aspectos históricos, o cuidado em transmitir-nos informações sobre a história da imigração alemã no Brasil perpassada por sua família, ao mesmo tempo em que nos mostrou o quanto isto, de certa forma, a influenciou no que veio a se tornar: professora- historiadoramilitante. Nossa colaboradora descende de uma geração de colonos alemães que fundaram a cidade de Blumenau em Santa Catarina. Inicia seu relato ressaltando aspectos históricos da imigração tanto de seu pai- austríaco como de sua mãe, terceira geração de descendentes de imigrantes alemães fundadores da cidade de Blumenau-SC. Seu avô austríaco veio para o Brasil em meados de 1909. Estabeleceu-se em São Paulo onde conseguiu um emprego na Catedral que estava sendo construída (Catedral da Sé). Ele fez muitas plantas de construções famosas da cidade, tendo S. inclusive uma destas guardada em sua casa- o esboço original em papel e nanquim da Catedral da Sé. Esta é uma amostra de como a história da imigração de sua família é presente em sua vida. S. possui materializadas em sua casa algumas destas lembranças, como documentos, quadros, livros e fotos. 148 Sua história de vida é entrelaçada por fatos como a participação de alguns de seus ancestrais na fundação de Blumenau (estes vieram junto à comitiva do Dr. Blumenau74 para o Brasil) e posteriormente, também do desenvolvimento de alguns negócios de destaque no ramo da construção e gastronomia, bem como, a fundação de uma escola em Santo Amaro o colégio Humboldt75 existente até os dias atuais. A partir do envolvimento com a escola, S. relata-nos algo ocorrido na política brasileira da época: “(...) na década de 40, o colégio sofreu a questão do Getúlio e então ele era lá do colégio alemão de Santo Amaro e que chamava-se assim, puseram o nome de Humboldt por causa da guerra por um nome que é alemão, mas mesmo assim, é um alemão que veio pro Brasil, é um cientista.” Este dado retrata a participação de sua família e da escola, imbricadas ao momento político do Brasil, bem como, traz um exemplo da mudança do nome do colégio ligada ao projeto de nacionalização, vigente à época. Sua mãe migrou para São Paulo, partindo de Blumenau ainda criança, durante a crise de 1929. Seu avô era confeiteiro e perdeu seus negócios no Sul. Em São Paulo fundou uma fábrica de mostardas, muito apreciada em Santo Amaro. Ao contar sobre sua mãe, S. recorda algo interessante: “(...) minha mãe então, de origem lá das colônias do Sul né, ela é descendente do Fritz Mueller76, ele foi um chamado príncipe da observação assim, era um cientista veio pro Brasil por questões políticas filosóficas e na colônia, era auxiliar do Dr. Blumenau, então eu sou descendente dessa pessoa. Essa pessoa é importante porque ele era um correspondente do Darwin, o Darwin o cita muito e eles mandavam suas pesquisas para o Darwin, então, ele está envolvido na 74 Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau, farmacêutico e filósofo, partiu do porto de Hamburgo em 1846 com destino ao Brasil. Seu intuito era fazer uma viagem de reconhecimento e exploração e encantado com Santa Catarina, decidiu comprar terras para a formação de uma colônia própria na região. Para mais informações consultar: http://www.arquivodeblumenau.com.br/museufamcolonial_3a.html 75 Hoje o colégio fica em Interlagos, São Paulo. 76 Para maiores informações sobre Fritz Mueller ver FONTES, L.R; HAGEN, S. Para Darwin- fuer Darwin, 1864 por Fritz Mueller. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009. 149 formação do evolucionismo do Darwin, ele (...) era considerado um cientista e acabou saindo da colônia, foi pra Florianópolis e aí ele tinha um cargo do Museu Nacional, Fundado por Dom Pedro II (...) no Rio de Janeiro, ele tinha um cargo e tal de professor e pesquisador desse museu e tem sua importância por ter sido correspondente do Darwin.” Ao falar de si e de sua mãe, S. retrata o movimento emigratório de sua família e ressalta um ascendente que considera ilustre. Este, um cientista, assim como S. envolvido com as questões do saber. “Então eu também tenho essa origem assim, bonita (...) minha mãe vem assim de origem mesmo, lá da fundação de Blumenau, os parentes dela chegaram juntos com o Dr. Blumenau. Então, já que toda família tem o seu herói, eu tenho aí um cientista darwiniano (risos). Então eu acho interessante esse movimento das pessoas e assim quanto à identidade dessa geração, eu já sou, sei lá, neta por um lado e por outro lado, já acabaram né, a raiz é 1850 né, eu acho assim que a identidade fica assim como um elemento né, assim, eu tenho um passado diferente do meu vizinho e do outro entendeu? Então eu sou lá de Blumenau, eu sou lá do pessoal que fundou a colônia de Santo Amaro, então eu sou, eu fui importante, então se tem sempre essa ideia de pessoa que tem um passado importante.” Nossa interlocutora ao falar sobre a própria identidade retrata sua origem e um personagem “famoso” que é parte de sua família e assim parte dela. Retrata isto como um ponto relevante, de um passado que a diferencia de outras famílias. Aqui cabe a observação a algo que Ciampa (2001) já ressaltara, acerca da relação existente entre História e identidade. Ambas imbricam-se, necessariamente. Destarte, parte significativa da constituição identitária de S. é permeada pela participação de sua família na História do Brasil. S., ao contar quem é, retrata ainda um dado sobre seu nome. S. tem dois nomes (nome composto) um considerado brasileiro “pras pessoas falarem” e o outro, alemão. Isto se deu, também com seus irmãos e em casa todos eram chamados pelos nomes alemães, na escola, pelo nome “brasileiro”. É possível que esta tenha sido uma estratégia adotada pela família para que seus filhos não sofressem preconceito na escola por possuírem nomes alemães, bem como, para “abrasileirá-los” frente ao momento político vivido no Brasil: o Estado-Novo. A narrativa de S., permeada por aspectos históricos da constituição de sua família revelou detalhes da formação de Santo Amaro, sobre como sua família 150 participou da constituição desta região (seu avô tem inclusive seu nome em uma rua) e de como as transformações da paisagem, devido às mudanças da sociedade marcaram S. Suas memórias de outrora, já não mais condizem com aspectos atuais de Santo Amaro e arredores. Mudanças e o crescimento da cidade fizeram com que Santo Amaro se integrasse a São Paulo, transformando a dinâmica de seu funcionamento77 e o seu espaço. Assim, foi possível perceber a relação existente entre o valor histórico das propriedades da família e da cidade como materialidade da história e identidade de S. Questões envolvendo o pioneirismo e o empreendedorismo de sua família são constantes em sua narrativa, bem como a forma como a mesma se estabeleceu no Brasil. S. acrescenta algumas considerações relacionadas à língua alemã (falavam o idioma em casa) e tradições, como frequentar a igreja luterana, participar de atividades em clubes e associações recreativas alemães, contudo, a presença de tradições alemãs nunca se deu em detrimento das origens brasileiras. S. foi socializada em meio às tradições alemãs, sem que isto impedisse ou negasse a existência de outros elementos culturais. “(...) vejo isso tudo como dados, sabe história, diferenciação, mas não acho nada excepcional. Todo mundo que é imigrante, vem com aquelas histórias assim de ah, não sei quem, porque meu avô era não sei o que lá e eu acho para! Ninguém veio rico pra cá, entendeu? (risos). Podiam até ter estudado, mas tavam falidos, não é? Possivelmente a vivência da guerra por seu pai (durante a infância viveu na Europa durante a Primeira Guerra) e o fato de sua família ter tido participação na constituição tanto de Blumenau, como de Santo Amaro, possam ter agregado valor ao pertencimento de S. no Brasil, bem como as condições dos imigrantes que saíram da Alemanha na era de Bismark78. S. considera ainda, que sua formação teve um “cunho politizado”. 77 Sobre a Santo Amaro de outrora ver mais informações no capítulo 1. 78 Otto von Bismarck foi o estadista mais importante da Alemanha do século 19. Coube a ele lançar as bases do Segundo Império, ou 2º Reich (1871-1918), que levou os países germânicos a conhecer pela primeira vez na sua história a existência de um Estado nacional único. Para formar a unidade alemã, Bismarck desprezou os recursos do liberalismo político, preferindo a política da força. (fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/otto-von-bismarck.jhtm) 151 “(...) o meu lugar, o lugar daqueles de origem alemã, daqueles de origem alemã mais de 1850 pegou, porque eles não, eles se sentiam numa cultura, na língua, numa coisa, mas num país que já não existia mais, a Alemanha que eles gostavam não existia, era a Alemanha do Bismark, talvez até antes né, aliás nem era Alemanha, eram os estados germânicos né então você vê assim, aí os caras devem ter sofrido uma dificuldade muito grande(...). Até hoje os mais velhos falam disso (...)” Este comentário demonstra que devido às condições desfavoráveis que os alemães viviam no final do século XIX sua emigração para o Brasil teve um sentido de reconstrução tanto da própria vida, como de uma nação, um lugar para se viver. Daí o pertencimento que S. demonstra sentir - este fora por sua família construído objetivamente, expressos nos exemplos que traz sobre as condições de vida à época da emigração de seus familiares e posteriormente, nos significados atribuídos pór S. aos movimentos da família no Brasil e, ao mesmo tempo, de si mesma. S. não frequentou a escola alemã, mas sim a escola pública “ não tinha a questão de ir pra escola alemã. Não tinha mais isso porque tinham se tornado escolas caras.” Este fato será importante na socialização de S. “Eu vivi num colégio muito democrático que era a escola pública, era mesmo muito democrática, você tinha influências eu tive professores maravilhosos, assim, o Tragtenberg, Celso Antunes, Alcione Abrãao, tudo isso era professor lá, entendeu? Não era pouca porcaria, eles eram bons mesmo e a gente ia , sei lá, no meu colégio, vários foram pra esquerda e tal e eu tinha isso sempre claro, que eu tinha que ser uma pessoa assim (...).” O mesmo avô que participara da fundação do colégio Humboldt, afastou-se do grupo fundador quando a escola começou a não conceder bolsas para filhos de imigrantes recém-chegados. “ele saiu fora, ele discutiu, disse que a escola tinha sido feita para que os filhos de alemães e austríacos tivessem uma escola e que estavam cobrando mensalidade e isso não podia, podia só de quem podia pagar e os novos não era pra fazer isso.” O avô, figura importante presente na narrativa de S., ao romper relações com a escola que já não compartilhava dos mesmos valores de sua fundação, fez com que S. de certa forma seguisse seu exemplo: 152 “Minhas filhas não estudaram em colégio alemão, porque eu não gosto, porque acho que é muito enquistamento e tal e nós vamos manter a tradição de não estudarmos em escolas alemãs (...).” S. relata que seu pai não gostava do contato com os considerados “novos alemães”. Estes vieram para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Havia divergências entre eles e os teuto-brasileiros, já há gerações no Brasil que falavam o idioma misturado (alemão com português) e adquiriram outros hábitos e costumes: “(...) não havia muita relação e um não gostava do outro, assim, os alemães antigos não falavam direito, erravam a língua e estavam às vezes muito abrasileirados e os outros se achavam importantes, porque vinham da Alemanha, então não combinava muito bem. Então eram os auslandsdeutsche (alemães do exterior) e os outros. Não havia muita colaboração entre esses dois grupos.” Com relação à diferença entre estes dois grupos, S. sugere que os alemães antigos “têm uma outra perspectiva.” “Nessas coisas que ainda implicam muito a origem, o colégio, por exemplo, poucos descendentes dos alemães antigos colocam seus filhos nos colégios alemães, ao passo que aqueles alemães da Alemanha mesmo, fazem questão de colocar nos colégios alemães. Às vezes um ou outro coloca, mas não por ser um colégio alemão, mas sim por ser um bom colégio, é uma outra perspectiva entendeu? Você não tem essa fixação, lembra das origens alemãs e tudo(...).” A forma como S. era vista na escola não foi considerada por ela um problema. Assim como colocado acima, sua perspectiva era outra... Em sua fala se percebe não haver motivos para chatear-se com comentários jocosos acerca da sua origem. Provavelmente a origem, bem como estar no Brasil, não era motivo de conflito para S. “(...) no colégio a gente encontrava muito alemão, assim, carinha loira e tal e inclusive, chamavam a gente de alemão batata essas coisas, tinha sardas, os loirinhos às vezes tinham alguma discriminação assim, mas a gente era criança e antigamente não tinha essa coisa, ninguém morreu por causa disso.” S. sugere ter tido uma visão crítica para o que acontecia a sua volta e a forma democrática como foi educada, levou-a a tomar partido contra situações as quais não concordava. Desde muito jovem participou ativamente do movimento em oposição à ditadura no Brasil, algo que nos relata com visível comoção: “Então é assim né, a história de vida, eu ainda muito jovem me envolvi com a esquerda, eu ah, militava em partido comunista, meu marido também e sofremos (...), sofremos a repressão e tal, eu 153 não fui presa, mas meu marido foi preso (...) e eu consegui ficar escondida (...).” A isto S. acrescenta: “Mas aí a gente se envolveu com esta questão e é por isso que eu não quero ser outra coisa, entendeu? Porque ser brasileira, naquele tempo, se eu tivesse uma identidade estrangeira era facílimo pra sair, mas a gente ficou aí, não foi pro exterior, aguentou a repressão etc., viu todo mundo e tal, então agora não interessa ter outra nacionalidade, entendeu? Não tenho absoluto interesse nisso. Eu tenho esse sentimento assim, realmente, nunca me passou pedir, meu irmão ainda fala ah, vai lá, eu não quero, não quero, as pessoas ficam assim, não, eu não quero! Aí levanta aí lá do seu avô materno e eu falei, não, eu não quero não me interessa! (S. se exalta) e então eu tenho isso, a gente se considera, eu, as pessoas pedem passaporte, pra entrar lá na fila dos outros mais fácil, mas é só isso não é? Vão passar pros seus filhos, mas eu nunca me interessei.” S. demonstra ter ligações importantes com sua origem e também com a forma como foi socializada; Contudo, a educação que nomeou como “democrática” parece ter lhe empregado um diferencial. Diferencial este que a levou a lutar por questões consideradas injustas e que considera possuir tal característica como parte de sua criação. “eu acho que eu, eu tive uma, não sei por que, talvez personalidade, talvez algumas coisas de criação, não é uma palavra que até não se usa mais né, criação é uma coisa muito específica né, como você é criado.” O fato de ter tido experiências cujo entorno permitiu que fizesse suas escolhas, sobretudo pensando-se o modo democrático de ver o mundo, a levou a um pertencimento às causas que acreditava e não à busca por identificar-se com uma nacionalidade, por exemplo. S. transita entre as culturas que consigo carrega e demonstra seu pertencimento junto ao Brasil, pautado na luta, enquanto Alemanha e Áustria são igualmente partes de si advindos e construídos junto às suas relações familiares. S. finaliza seu depoimento resgatando mais um exemplo de sua mãe, que exprime o caminho percorrido até chegar ao quem é . “(...) eu lembro que se eu quisesse pegar uma vassoura pra eu varrer minha mãe falava: você vai ter a vida inteira pra fazer isso então não faça agora (imitando a voz da mãe) ela falava assim: você vai ter a vida inteira pra fazer isso, não faça agora! Então aquilo foi despertando em mim uma ideia de que não era pra eu me dirigir pra esse lado, entendeu, uma ideia assim de que eu tinha que ter profissão, tanto que sou a primeira mulher da família a ter diploma, um curso superior, a 154 trabalhar fora, a primeira a separar né, então tem isso e eu acho que fui ficando assim.(...) não varre que você vai ter a vida inteira pra fazer isso eu já pensava não, não quero fazer isso a vida inteira, já imaginava, falava não, não quero, entendeu? Eu já meio assim, a minha mãe lá já me orientou. Então eu sempre tive uma vida bastante independente, (...) mas aí eu acho que eu me orientei pra estudar, trabalhar e tal, (...) não sei, me defino como uma pessoa que viveu o seu tempo, entendeu? Eu acho isso(...). Eu vivi essas coisas aí e tenho, exatamente por ter essa formação histórica, eu consigo ver minhas origens claramente, meus movimentos, os movimentos que a família fez, pra lá, pra cá (...)” Pode-se dizer que S é uma mulher se seu tempo (assim como ela mesma se define), cujas metamorfoses ocasionadas por seus movimentos e pelo conhecimento dos movimentos de seus outros significativos permitiram-lhe enxergar os fenômenos para muito além das aparências. A.58 anos, natural de São Paulo, filha de uma alemã e um belga “Eu quero viver minha vida na essência, na alma, sabe, é isso que busco (...). Desencanada no sentido de talvez não me prender a estereótipos, tipo ah você é alemã. Bom eu posso ser e ser uma alemã tipo essa que te falei (... )que eu fiquei impressionadíssima, pela delicadeza que ela tinha para lidar com as pessoas.” Conhecemos A. em uma palestra promovida por um instituto de ensino da língua alemã em São Paulo. Desde o começo, interessou-nos a forma como esta nos abordou. Naquele momento, acabávamos de fazer uma pergunta ao palestrante, relativa à pesquisa que realizávamos79. Ao final do debate em questão, A. se aproximou. Muito sorridente e aberta, dizia achar o tema de pesquisa muito interessante e prontamente começou a falar de si, mesmo sem ter sido questionada. Compartilhou que era professora de alemão e que em muitos momentos sentia se estranha, por “não ser nem uma coisa e nem outra” (falava sobre não ser nem brasileira e nem alemã) e também relatou como a língua alemã entrara em sua vida. A. fora, ainda na infância, obrigada a falar o idioma em casa de um modo coercitivo, algo que lhe marcou. 79 Tratou-se de uma pergunta referente ao tema desta dissertação. 155 Quando se tornou mãe, soube desde o início que não seria desta forma que ensinaria a língua alemã aos filhos. Descreveu-nos, para tanto, a imagem que lhe veio à cabeça: os filhos chegando animados da escola, querendo compartilhar seu dia, suas emoções e ela interrompendo-os - “Bitte auf Deutsch!”- Por favor, em alemão! Mais a frente nos diz que “o mais importante é que eles possam falar comigo assim, o que tá no coração deles(...).” Logo, percebemos que A. tinha muito a dizer e mais, queria fazê-lo, compartilhar sua experiência, refletir sobre quem é. Nossa interlocutora nos recebeu em sua residência por duas vezes (a primeira entrevista durou cerca de duas horas e a segunda, cerca de quatro horas) de modo muito afetuoso, algo incomum para pessoas que pouco se conhecem, sobretudo, em se tratando da experiência que tivemos com alemães, usualmente reservados. Sentimo-nos à vontade em uma casa com aspecto ligeiramente “alemão” com muitas plantas e um sofá típico80 o qual A. nos descreve como sendo este seu “cantinho alemão” onde nos convida para um chá com biscoitos. A. inicia a conversa contando sobre o encontro que tivemos no instituto de línguas. Conta que naquele dia, tinha um programa totalmente diferente e ao receber um e-mail pela manhã, que falava sobre o debate de uma peça de teatro envolvendo alemães e descendentes no Brasil81, mudou seus planos e foi para o local onde se realizaria o colóquio.“Quando vi aquilo de manhã, aquele e-mail pensei, nossa, mas isso é muito interessante! Essa conversa, nossa, eu vou aproveitar isso! Desmarquei tudo, mudei todo o meu programa, então eu vou lá né!” Seu entusiasmo acerca do tema 80 Na Alemanha muitas casas possuem o chamado “cantinho alemão” trata-se de um sofá que fica posicionado em um canto em “L” de modo que uma mesa pode ser posicionada em sua frente para que as pessoas assim se reúnam para as refeições, para beber ou também conversar, jogar. 81 Brasilien 13 Caixas. Uma exposição humana de Karin Beier com um epílogo de Elfriede Jelinek. Direção Karin Beier, realização: Sesc São Paulo e Goethe Institut; Cooprodução: Deutsches Schauspielhaus in Hamburg e produção. art.br; Patrocínio: Fundação Federal de Cultura da Alemanha. (exibição de 2 a 7 de julho, 2013 em São Paulo). 156 “ser descendente de alemães” visava uma busca pelo entendimento de si mesma, de sua construção identitária. Ao iniciar sua história, A. coloca existirem complicadores que não se tratam “só da descendência alemã”... “aí tem uns complicadores que não seria só essa questão da descendência alemã, porque, na realidade, minha mãe era alemã e meu pai era belga. Eu nasci aqui, minha mãe saiu de lá ainda bebê, meus avós, foram pra Argentina em 1924, meu avô era mestre cervejeiro e se não me engano (...) depois veio para São Paulo.” A. denota sua origem e os diversos movimentos de seus familiares, até a chegada ao Brasil. Ser descendente de alemães passa a ser um complicador para A. devido ao desenrolar de sua história familiar, permeada por regras (pouca flexibilidade), questões relativas à participação de seu pai na Segunda Guerra Mundial (aspectos presentes na vida de A. ainda hoje) bem como, a adequação da imigração à vida de A. que por vezes não se sente “nem cá e nem lá”. Os avós e a mãe de A. vieram para o Brasil em 1932, anteriormente viveram na Argentina, onde chegaram em 1924. No Brasil, migraram algumas vezes, A. não sabe a ordem exata das cidades onde sua família morou, mas conta ter descoberto, “mais ou menos”, após ler e separar as correspondências de sua mãe, depois de seu falecimento. Descobriu pelo endereçamento das cartas a ordem das cidades de moradia da família de seus avós e de seus pais. Comenta ter sido Corumbá, Curitiba, Santos e depois São Paulo, onde A. veio a nascer “No Pro Matre, sou bem paulistana (risos)!” O avô é considerado por A. “um pouco aventureiro”, por ter se mudado diversas vezes, da Argentina para o Brasil, primeiramente e depois, algumas vezes dentro do Brasil. O avô, mestre cervejeiro, recebeu uma oferta de emprego e assim mudou-se para o Brasil, vindo a trabalhar por anos em uma famosa cervejaria (existente até hoje). Quando a mãe se casou, A. comenta que era uma época de “colonizar as terras do Paraná” e seus pais foram para lá com este fim, depois seguiram para o Rio Grande do Sul e retornaram para São Paulo. Ao falar de si, A. nos conta sobre todos estes lugares e o local em que a família finalmente fixou-se, Guarulhos (São Paulo). Neste local existe um núcleo alemão ainda muito ativo atualmente. A. nos conta sobre os 157 clubes alemães ali existentes, sobre vínculos entre os descendentes que se reúnem, mantendo um grande grupo de atividades entre si. A., no entanto, não costuma participar destas reuniões. Sua mãe conheceu seu pai em São Paulo e segundo A. “Aí vem a parte mais complicada, digamos, da história, porque o meu pai era fugitivo de guerra, então meu pai veio com nome falso (pausa)... E isso foi uma história que pesou muito.” A. conta que tal questão traz “todo um peso” Em suas palavras: “ Você sabe que estas questões, não é você dizer agora eu tou aqui e tá todo bem, isso traz todo um peso, não é?” A. possui uma tia na Bélgica que é o único elo vivo entre A. e seu pai. A. nos conta sobre a viagem à Bélgica que fez recentemente, com grande riqueza de detalhes. Detalhes de quem realiza mais do que uma viagem, um resgate de sua história, de sua origem e da necessidade da completude, face ao entendimento do que fora a fuga de seu pai para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. “Ela (a tia) disse que meu pai era um aventureiro, não, ela usou outra palavra (pausa) então e ele se encantou com a juventude de Hitler, com tudo o que eles propunham da juventude, grupos, música, cantos e né e o meu pai se encantou com tudo aquilo. Só que aí ele foi contra a própria terra dele. A coisa andou assim, ele acabou se envolvendo e foi preso.” A tia revela alguns detalhes sobre a fuga do pai de A. para o Brasil e do envolvimento dele com a juventude de Hitler, algo até então não claro para A. “O que a tia contou foi a questão do envolvimento dele com o nazismo. Isto exatamente a gente não sabia a gente ficou sabendo, assim, sabíamos da fuga, mas não sabíamos exatamente qual era a situação. E eu imagino que ele deve ter sofrido muito porque imagino o que é alguém chegar pra você e falar seu próprio nome, e bem agora você vai se chamar Maria e não vai mais poder viver no Brasil, no caso dele, ele tinha uma família né, e aquilo ficou, ele não tinha mais acesso a família dele.Isso é muito doído, se voltasse poderia ser preso.” Em algum momento, seu pai e mais um amigo planejaram fugir: “(...) foi uma coisa meio de filme, tipo de fazer uma corda com lençol, descer pela janela e minha avó fez roupas pros dois, pra eles tirarem a roupa de onde estavam internados, porque se saíssem pra rua seriam reconhecidos”. Eles estavam em um hospital, de onde lhes foi 158 possível empreender a fuga. O outro irmão de seu pai não sabia dirigir, aprendeu a guiar e foi no hospital à noite, resgatar os dois jovens. Isto ocorreu em meados de 1945. O avô de A. tinha uma gráfica na Bélgica, onde os papéis fora feitos com o então novo nome a ser empregado por seu pai. O nome que seu pai passou a carregar era de um parente, já falecido (Posteriormente A. comenta a história de seu nome e do nome de seus irmãos, todos de alguma forma relacionados a amigos ou parentes da Alemanha). A. relata imaginar o quão difícil fora “carregar um nome que não é seu” por tanto tempo, ou melhor, por grande parte da vida, a vida de seu pai em terras estrangeiras. De certa forma, fora um modo de adquirir outra roupagem e em sendo um novo personagem, construir a vida em outro lugar. A relação com o nome, não é uma relação qualquer. Como nos lembra Ciampa (1999, p. 63) o nome é um substantivo e como tal, nomeia o nosso ser. Nós nos identificamos com nosso nome, que nos identifica num conjunto de outros seres, que indica nossa singularidade: nosso nome próprio (...) nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam. Nós nos ‘tornamos’ nosso nome. Segundo Ciampa, ao não sabermos algo relevante a respeito da identidade de outro que nos é próximo, questionamos nossa própria identidade “(...) a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele (...) ele só é meu pai porque sou seu filho.” (CIAMPA, 1999, p. 59) Esta ressalva cabe, para que se compreenda a relação de A. com o pai, quanto ao seu nome e quanto ao personagem deste junto à juventude de Hitler. Algo que A. ainda busca resolver, sentindo o que seu pai sentia, caminha de modo a ressignificar as experiências dele junto às suas. Tenta apreender o pai completo, uma vez que a parte do pai que conhecia não era o seu todo. Aliado a isto, está também a relação de A. com a Alemanha e até mesmo, alguns medos que acredita ter desenvolvido frente a esta história, frente ao não dito da família. Ainda conforme Ciampa nos alerta, A. reconfigura sua a própria identidade a partir da nova identidade do pai que desvelou. 159 “Hoje eu tenho consciência de que ele existe, mas não consegui ainda chegar a ter a pretensão que não vou ter mais medos. De colocar isso num nível, digamos assim aceitável, pra que eu possa, assim, isso muitas vezes, eu acho que eu tenho um potencial muito maior, que eu posso usar e que fica abafado por esses medos. Então acho que tem alguma coisa disso também. Por que a dor que senti naquele dia foi assim, inesquecível, assim, nossa eu chorei muito naquele dia, muito, muito e imagina meu pai faleceu fazia 40 anos! Parece que eu entrei em contato com a dor que ele tinha, e eu acho que dessa forma tem ligação com a Alemanha também porque ele entrou nessa história pelo nazismo né, pela simpatia, pelo fascínio, pela juventude nazista, que né, cantava e que, nossa minha tia conta que o que era por eles oferecido, era tudo o que os jovens queriam na época, eles tavam sedentos disso e aí, os jovens não conseguiam ter a visão mais ampliada, do que tava por trás daquilo. Então teve essa questão apesar do meu pai ser belga (silêncio).” Desta forma, é possível compreender que a questão que envolve seu pai e sua relação com a Alemanha amedrontam A., uma vez que uma parte de si é também uma parte de um passado difícil de elaborar. Com papéis e um novo nome o pai de A. teve a sua entrada possibilitada no Brasil. A. relata que houve uma outra pessoa que o ajudou na fuga, cujo nome, anos depois, lhe fora dado por seu pai. “(...) teve uma pessoa, o nome dela era A. e era filha desse senhor que ajudou o meu pai, não sei como, mas ajudou, isso já na Alemanha, essa pessoa era da Alemanha.” Fica clara a fuga do pai encarnada em A. em forma de nome. A. não soube recompor em detalhes a chegada de seu pai no Brasil, pois sua tia, quem lhe contou grande parte desta história, não participou mais do desenrolar da mesma, uma vez que ficou na Bélgica não mais em contato com o irmão no Brasil. “Mas aí lógico toda essa questão de você fugir, né, o meu pai nunca mais pôde voltar pra Bélgica, tanto é que ele depois em algum momento trabalhou em uma empresa e ela mandou ele pra Inglaterra e aí ele mandou carta pra mãe e eles acabaram se encontrando, se não me engano, em Paris, porque ele não podia ir pra Bélgica” A. coloca as questões de seu pai como de grande dificuldade para a família. Sua mãe não falava no assunto e seu pai, ainda que tenha tido sucesso em seus empregos no Brasil, tinha momentos de reclusão em que não se comunicava com ninguém, mesclados com momentos de grande euforia. A. coloca que na época, seu pai fora diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva (hoje transtorno bipolar). “Em algum momento da vida ficou claro pra mim que meu pai deve ter sofrido muito com essa fuga, com essa fuga dele,é não sei exatamente se ele em algum 160 momento teve a conscientização de pensar nossa mas como eu fui me interessar, como fui me envolver a esse ponto, nessa situação. Não sei, chegou a ter algum arrependimento alguma coisa, minha mãe nunca comentou sobre isso. Ou se ele defendeu essa postura até o final, né isso eu não sei e minha tia também não falou sobre isso.” A. relata-nos um episódio que demonstra que estas questões relacionadas ao passado de seu pai são fortes e retornam ao presente, como em uma aula na faculdade que frequenta atualmente. “Logo na primeira aula, eu cheguei e (...) eu cheguei e ele falou ah, eu não sei ele fez um comentário irônico na hora que eu entrei e depois, ah alemã, é nazista. Eu olhei assim pra ele... Então ele tem isso, às vezes faz uns comentários assim, então assim, depois passou, mas e aí.... E na época do nazismo eu nem era viva.Eu fiquei alguns dias com isso, cheguei a pensar em levar isso pra direção. Essa associação existe, as pessoas acham... Outro dia na classe, a professora perguntou quem aqui tem algum trabalho diferente? E eu falei ah eu dou aula de alemão e todo mundo ficou olhando, você percebe que as pessoas da classe, os que são brasileiros, brasileiros mesmo, eles te olham como se você fosse um ser extra terrestre, nossa você dá aula de alemão?(...) Eu percebo que às vezes as pessoas me olham como se eu fosse um E.T.” A questão ligada à forma como A. é reconhecida quando chamada de alemã, lhe causa desconforto, como se tal reconhecimento fosse sempre associado a algo ruim e quando A. se compara a um E.T. demonstra sentir-se como pertencendo de fato a outro mundo, outro universo, tamanho incômodo que sua condição oferece aos outros e por vezes, a si mesma. Com relação à língua alemã, A. retrata com emoção o modo como o idioma alemão lhes foi ensinado em casa: “A gente tinha que falar alemão, como não? E eu, às vezes ainda conto isso pros meus alunos, as pessoas querem saber, você não é nativa? E eu digo não, mas é quase, porque em casa era assim. Era uma coisa assim, imprescindível, (...) não era uma coisa leve, acabou ficando uma coisa pesada, entendeu? Por exemplo, quando a gente era criança ela (a mãe) fazia um cartão, com o nome dos quatro e aí a gente tinha que falar alemão dentro de casa, a gente podia falar português no quarto ou o quintal se a gente falasse português em algum lugar e ela ouvisse aí ela ia lá e fazia uma marquinha, aí no dia de receber mesada ela ia lá, contava e tipo assim, 10 centavos menos cada marquinha, entendeu?” O valor agregado ao conhecimento da língua extrapola o valor apenas da importância de se saber uma língua, que rompe fronteiras, mas sim, torna estas pessoas 161 conhecedoras do idioma alemão, sobretudo os descendentes pertencentes a um grupo. (como também observado na história de P., neste capítulo). “(...) quando vieram os filhos, minha mãe começou não, mas você tem que falar alemão, tem que falar alemão com eles e tal e aquilo foi uma coisa que me pesou muito e fiquei durante alguns anos muito angustiada com isso, porque era difícil, o meu pai e minha mãe, a língua de comunicação entre eles era o alemão, então eles falaram entre eles o alemão, mas a língua de comunicação minha com o pai dos meus filhos não era o alemão! A língua não era espontânea pra ele!” A. demonstra sua dificuldade em romper com algo tão importante para sua mãe e de certa forma, com a tradição que lhe fora passada. Contudo, um dia resolve mudar: “Eu fiquei por muito tempo angustiada com isso, até um dia, não me lembro exatamente quando foi isso, eu pensei nossa, espera, eu tenho que ter diálogo com os meus filhos! É , alemão, não é a prioridade, eu tenho que ter diálogo com eles! (...)E isso foi um dia que eu lembro que pensei assim, eles chegando da escola animados, dizendo ah mãe olha, e eu “Auf deutsch bitte”(em alemão, por favor). E aí eles iriam me contar.... Eu não cheguei a fazer isso, fiquei imaginando a cena...” A. remonta com este cenário a forma que usou para quebrar a tradição, para romper com a angústia que vinha sentindo. Esta quebra deu-se alavancada pela emoção. A própria angústia que sentira pela forma que o idioma lhe fora transmitido não quis que se repetisse com seus filhos. Foi então, ao pensar a relação de afeto e comunicação com estes, o quanto isto poderia ser prejudicado pela imposição da língua é que proporcionou que A. conseguisse dar este salto. Ao romper com a tradição vinda de sua mãe, A. pôde ser mãe, metamorfoseou-se ao permitir-se a apropriação deste papel, no que passou a tomar as rédeas da forma de educação que daria aos filhos dali em diante. Abre-se um parêntese ligado a este fato. Há que se comentar que, tempos depois desta entrevista, A. enviou-nos um e-mail com indicação de um curso, por achar a temática muito interessante e já ter participado de workshops do mesmo. A temática do curso versa sobre “comunicação não violenta”, ministrado em uma universidade no interior de São Paulo, por um alemão. A inter-relação que se faz aqui é clara. Talvez a comunicação “violenta” seja um tema importante para A. que percebeu a importância desta junto aos filhos e também à profissão que exerce (professora de alemão), bem como a não comunicação existente, quanto ao não dito na família. Ainda relacionado a 162 este parêntese aberto, compreendendo-se a identidade em movimento constante, se percebe que questões ocorridas na infância de A. ainda estão em atividade, em sendo reinventadas, por exemplo, na forma que A. se relaciona com os filhos e também no modo que exerce sua profissão. Supõe-se, nesta relação, pela forma como A. nos conta que a importância da transmissão da língua foi algo muito forte e importante para sua mãe. Uma forma de estar ligada a Alemanha, à família, às origens e também à tradição. Contudo, expressarse apenas em alemão e querer que todos ao seu redor correspondessem, foi algo que dificultou o relacionamento da avó com a neta, filha de A.“(...) minha mãe não conseguiu perceber que acima disso está a relação dela, com os netos, com as pessoas.” A. conta que a filha distanciou-se da Alemanha e de questões ligadas ao país. A. acredita que isto tem a ver “com essa questão dessa imposição, você tem que falar alemão. Eu acho que isso tinha que ser um pouco mais solto, uma coisa mais... sei que é difícil encontrar o equilíbrio e aquilo às vezes é uma coisa que te mantém, que te da força e ai você solta aquilo e parece que fica sem força, que a força ta indo embora eu não sei minha mãe segurava aquilo, né...” A relação existente entre a mãe e o idioma envolve o verbo “segurar”- destarte, segurar o idioma é exercitar uma parte de si, uma parte da Alemanha, parte de seus pais que fica viva em forma de idioma praticado no dia a dia. Perpetuar o idioma é muito mais do que a língua em si, mas traz indícios do pertencimento, da ligação com a cultura e também do que isso significa para o “ser” . Pensemos a relação desenvolvida com a língua pela mãe de A. para compreender os meandros da constituição identitária de A. A força da língua, perpetuada por sua mãe envolveu o medo da perda, uma transmissão obrigatória. No entanto, A. em sua experiência tornou a língua, antes obrigatória em sua forma de emancipar-se, conquistando trabalho e reconhecimento, bem como, mantendo sua mãe por perto simbólicamente. Nesse momento da entrevista, A. mostra-nos um papel, um 163 manuscrito82 original com a letra de sua mãe, encontrado nas arrumações que fez na casa desta. “(...) mexendo nas coisas dela achei esse papelzinho no meio de um monte de coisas, e daí olha achei isso aqui, e acho muito interessante, porque ela escreveu isso aqui em português!” (consultar o manuscrito nos anexos) A. Tem o hábito de distribuir o verso escrito por sua mãe que encontra para as pessoas e assim, em meio a sua forma afetiva de ser “segura a língua” e mantém sua mãe viva em si, diferentemente de uma obrigatoriedade, ressignifica a língua e por meio de seu afeto compartilha o amor que sente por sua mãe e o significado que vê nas palavras por ela escritas para outros. “acho interessante assim se você olhar cada um deles (versos) ela fez diferente. Ela fez isso quando ainda andava sozinha por aí (...)... Então aqui assim como se ela definisse, eu posso ter uma horinha com deus em qualquer circunstância, ela faz uma súplica por ela, mas fala também do próximo, é dividido.” Uma questão que nos chama a atenção, assim como chamou a atenção de A. foi de como uma pessoa que buscou perpetuar a língua alemã de modo tão rigoroso escreveu sua conversa com Deus justamente em português? Talvez este fosse também um conflito para sua mãe, pois precisava “segurar” o alemão para “não perder a força”. Estar no Brasil e falar o português significaria um desenraizamento83. Cabe-nos entender este movimento para A., que precisou estabelecer a própria relação com a língua, ainda que sua mãe a quisesse “segurar”. A. nos conta que quando criança não gostava dos livros e faz uma relação interessante que nos mostra que o não gostar, não era exatamente relacionado aos estudos: 82 O verso na íntegra encontra-se no Anexo 3 (página 240). 83 Maalouf (2005) em sua tese faz uma interessante análise sobre esta questão. Segundo o autor, o desenraizamento é um processo que pode deixar feridas profundas no sentimento de si mesmo do imigrante e também de seus descendentes. Ao longo de seu trabalho, Maalouf retrata a importância do enraizar-se, a importância das experiências positivas de aproximação à cultura de acolhimento. Para maiores informações consultar: MAALOUF, J.F. O sofrimento de imigrantes: Um estudo Clínico sobre os efeitos do desenraizamento no self. Doutorado em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. 164 “ Não sei dizer se isso poderia ter alguma ligação com o fato de ela, disso, dessa imposição, com relação ao alemão, a escola, né eu nunca me senti bem no Porto Seguro, nunca, porque era uma escola de elite, ali tavam fillhos de presidente da Volkswagen e a gente que ainda por cima morava em Guarulhos!” A menina que não gostava de estudar- trabalhou muito e apenas com a qualificação do ginásio, conseguiu trabalho em várias empresas alemãs. Conta que, naquela época, chegar em uma empresa e apenas mostrar que estudou no Porto Seguro já lhe garantia a vaga. Conta ainda sobre altos cargos em grandes empresas alemãs e que chegou a ser secretaria do diretor adjunto de uma destas grandes empresas. Vale ressaltar que a questão da língua, ainda que impositiva, ajudou A. a conquistar emprego e “ainda que não gostasse de estudar” foi o grande apoio da família e teve sucesso profissional. Ainda assim, de certa forma, A. continua seguindo o modelo da mãe. Trabalha em algo que foi aprovado por esta, trabalha com o mesmo ofício. A. iniciou o trabalho como auxiliar de secretaria e depois foi crescendo, sempre em empresas estrangeiras, o idioma esteve sempre presente “o idioma foi o meu diferencial.” Interessante pensar neste percurso de uma menina que não gostava de ir à escola dando se tão bem profissionalmente e escolhendo seguir aprofundando seus conhecimentos de alemão, língua que, até então era vista como imposição. Neste caso, a relação com a língua que até então lhe fora imposta, passou a ter caráter emancipatório A. obteve reconhecimento e êxito. Era enfim boa em algo, uma vez que não gostava de estudar. A. denota com isto o caráter progressivo e regressivo da identidade (LIMA, 2005), o caminho dinâmico do ir e vir e do ressignificar, abarcar novos sentidos às experiências vividas. No instituto Goethe faz uma prova, obtém a melhor nota e ganha uma bolsa para estudar alemão na Alemanha, então com 21 anos, esta foi a primeira vez que foi ao país. Seu chefe na época apoiou totalmente sua ida à Alemanha. A. é reconhecida pelo seu saber, mas além deste, por sua competência. “O alemão me deu o diferencial eu não teria chegado nestes cargos não fosse o alemão. Mas assim, essa questão da escola e você não gosta de estudar, foi uma 165 coisa que prevaleceu muitos anos. Minha mãe chegou a essa conclusão, você não gosta de estudar, você gosta de trabalhar.” O valor do trabalho tem ligação com a ascensão pelo trabalho, mas é também um valor de ordem, de disciplina e de caráter. Está ligado também com o sucesso nos estudos, valor observado também em nossos outros entrevistados. Mais à frente, A. nos conta que anos depois, ao levar o filho para a terapia tem uma conversa com a terapeuta que lhe diz: “ não gosta de estudar? Não acredito nisso, você o teu perfil é de fazer tudo o que faz da melhor maneira possível e eu não acredito que você não goste de estudar, tem alguma coisa aí. Aquilo ficou, tem alguma coisa aí, tem alguma coisa aí... e quando aconteceu minha separação, a primeira coisa que fui fazer, eu fui fazer supletivo!(...)E daí aquela coisa interessante, aquela coisa germânica (risos) eu me lembro que tinha ido super bem nas provas e aí eu liguei pra minha mãe e ai ela falou: é mas também na realidade você, também já tinha feito o primeiro colegial, então na verdade, sim, eu já tinha feito mas eu não tinha concluído, e eu fiquei muito feliz que tinha ido muito bem e ai eu liguei pra ela e ela e... Sabe, mas você já tinha feito o colegial, não tem nada demais você ter ido bem né(...) isso então é bem germânico” O valor agregado ao estudo foi buscado por A., mesmo quando já estabilizada profissionalmente. Era algo importante para si mesma, mas, de alguma forma, algo ligado também à busca de reconhecimento junto a esta mãe, cujos valores são “germânicos” ao ponto de não transcenderem a formalidade perante a emoção que A. sentia, algo que vê com crítica. A realização pelo próprio esforço em níveis diversos, que não só pelo trabalho, foi importante para nossa interlocutora, que buscou a escola depois de adulta e divorciada. A. fez da questão transformar o “não gostar de estudar” em realização que extrapolou o que dela era esperado. A. era novamente estudante,“(...) e aí a mãe de uma amiga de minha filha disse que eu tinha o alemão perfeito e que poderia dar aula de alemão. Aula de alemão?? Eu? Eu nunca dei aula de alemão... tá bom então tá eu vou pensar...aí resolvi fazer letras, pensei na usp, mas teria dificuldade em passar no vestibular, o nível de exigência seria muito maior. E na época eu conversei muito com uma pessoa que tinha sido professora de fonética na USP e ela falou que em termos de alemão a USP não me acrescentaria, pois meu alemão era perfeito.E aí quando comecei a fazer o curso, minha mãe também começou a pensar, nossa né ela ta fazendo faculdade e aí ela me deu dois livros do 166 Schiller que eram dela (que depois A. nos mostrou) aí ela pensou, nossa ela gosta de estudar!” A. recebe o reconhecimento de sua mãe, a sua maneira de demonstrar incentivo e afeto, lhe dá um livro de Schiller. Reconhece que A. agora gostando de estudarpoderia ler tal obra... Mais uma vez uma obra complexa, cujo alemão erudito implica em dedicação para a leitura, mais uma forma de “segurar a língua”... Importa ressaltar a trajetória de A. que ao tornar-se estudante, possibilitou o surgimento da professora de alemão, não sendo esta uma escolha feita pela relação com sua mãe, mas pelo reconhecimento de uma capacidade que já tinha (trabalhou como secretária com o uso do idioma) e que agora poderia usá-lo de outra maneira. A. segue adiante e não para mais de estudar. Percebe-se que o estudo está, no entanto, sempre relacionado à temática alemã, letras, literatura84 etc. “depois que eu terminei letras acabei indo como aluna ouvinte na USP e participei de um curso de pós- graduação. Fui lá, falei com o professor e acabei assistindo as aulas de literatura. Ele deu um seminário de pós-graduação de autobiografias e eu achei muito interessante! Teve a autobiografia do Goethe e eu achei muito interessante.” Depois disto, A. retoma o assunto de quando acompanhou o seminário sobre autobiografias como ouvinte e retoma o quanto gostou de ter feito o trabalho sobre a vida de Goethe. Posteriormente nos mandou o trabalho e pensa em continuar a escrita deste, mas ainda não sabe ao certo como. A. “a menina que não gostava de estudar” que agora estuda, frequenta seminários da pós-graduação e escreve um texto sobre Goethe! Sim, A. sabe que gosta de estudar, buscou o reconhecimento de sua mãe e desta forma, manteve-se fiel à língua. Seus estudos são sempre relacionados de alguma maneira a Alemanha. Mais uma vez sua forma de “segurar o idioma” que não implica em uma obrigação, mas desta vez, o faz com prazer e por sua própria escolha. 84 A. mostra-nos muitos livros que guardou de sua mãe, contando que ela os comprava em São Paulo e que tais livros circulavam com certa facilidade na cidade. Isto retrata-nos um pouco da importância, para os alemães, de manterem seus costumes, perpetuarem sua cultura, circularem seus saberes na cidade onde viviam. 167 Ao retomar a entrevista em um segundo encontro, A. diz ter a impressão de não ter assimilado às perguntas anteriormente feitas: “quem sou eu e quem gostaria de ser”. Responde-as, contudo, com absoluta clareza: “Bom quem eu sou? É na realidade eu me sinto como te disse não me sinto nem bem brasileira e nem bem alemã, acho que sou uma mistura meio que dos dois porque nasci de mãe alemã, mas me criei no Brasil e é, então alguns aspectos percebo que sou alemã mesmo assim, digo assim de, disciplina em alguns aspectos e de responsabilidade e comprometimento com aquilo que eu faço e eu me sinto ás vezes, bem, eu uso o termo germânica (risos). Às vezes me incomoda é, por exemplo, você manda um e-mail pra uma pessoa e a pessoa às vezes não te dá um retorno, e eu já percebi que isso é meio normal, e isso pra mim não é. Então quando recebo um e- mail, às vezes fico ali, quero dar um retorno e às vezes não consigo dar logo mas aquilo fica alí né... Então nestas coisas, eu me percebo mais alemã, então se a pessoa disse que ia enfim fazer determinada coisa então pra mim tá claro, vai ser feito e tal e às vezes não consegue e tal, e aí eu percebo que meu nível de cobrança é alto e aí eu olho às vezes à minha volta e percebo que as pessoas não cobram tanto, cobram menos né... Em parte acho que é bom, é você fica menos neurótico (risos) eu gosto disso então fico observando esses dois é lados, aspectos, sei lá como pode chamar. Mas, por exemplo, em questão de horário, ihhh... aí eu sou brasileiríssima (risos) eu vivo atrasada no final de semana então piorou, porque não consigo manter horário, se falo que vou chegar às 3, daí eu chego às 4, então isso é terrível.(...) confesso que tenho uma dificuldade grande com horário, uma fraqueza minha assim eu não sou nem um pouco alemã.” Ressalta-se que A. coloca a dificuldade com o horário como uma fraqueza sua, provavelmente por considerar este o ponto alto da disciplina que denomina “germânica” e parte de um valor alemão, que deveria ser, portanto, uma parte de si conforme foi socializada. A irmã, neste modo de entender a questão do horário e da disciplina, não tem “fraqueza” é forte. “Minha irmã é muito mais alemã nessa coisa de horário e eu né, já levei até bronca né, porque chego atrasada nos lugares né, principalmente se é uma festa e a pessoa fala que vai começar as sete, ah, aí eu vou chegar lá uma umas oito e meia né, por ai (risos)!” Logo A. atrasada é autêntica e mais, permite-se ser desta forma e revela: “Então assim eu não gosto que fica me cobrando, isso, se me cobrar horário assim, isso me incomoda. Então não sou germânica nisso.” Ainda que tenha a ideia de fraqueza, isto não parece incomodar A., que entende que pode ser flexível quando quer, talvez sendo mais brasileira. 168 “Na realidade eu acho que gostaria até de ser um pouco mais brasileira. Mais desencanada (risos) menos perfeccionista, também não sei se a gente pode atribuir isso tudo só ao fato de ser alemão ou não, acho que também tem muito da própria pessoa. Então acho que se eu fosse mais brasileira seria mais desencanada e isso, acho que eu gostaria.(...) mas também não negar isso, isso é meu também, mas me abrir para os outros aspectos da vida também, pra outras formas de não deixar isso totalmente de lado, mas me abrir pra outras formas de vida.” A. nos fala que foi sua história que a fez como é hoje, desta forma, se percebe o movimento que a família precisou fazer quando do falecimento de seu pai e este movimento com sentido deveras “econômico”. Teria sido sua mãe tão exigente com os filhos para que estes tivessem boas chances na vida, estudassem, progredissem etc? Não é impossível... Assim como não é impossível que o “estilo alemão” tenha se misturado a esta questão. “Hoje não saberia te dizer onde começa uma coisa e onde termina outra, ela se mistura um pouco. Eu acho que não tem a ver só, não, todas as pessoas alemãs são, digamos assim responsáveis, cumpridoras de suas obrigações, não todas né, então aí, é, por isso eu digo não necessariamente tem a ver com isso, tem a ver, minha mãe realmente deixou esse exemplo e eu penso que até pelo fato de, ela nunca falou nossa, eu tô com medo, eu tô preocupada, isso nunca ouvi minha mãe falar.” A fala de A. pode ser entendida à luz da perspectiva retratada por RochaTrindade (2006, p. 90): (...) as identidades de grupos e comunidades imigradas em terra estrangeira ou fruto da multiplicação das respectivas gerações acabam por revestir características híbridas de dupla pertença, podendo esta afirmar-se por via de traços simbólicos, exteriormente expressos ou, simplesmente, por uma teia de ligações afetivas à cultura e à terra dos seus ascendentes. Serão, em qualquer dos casos, identidades recriadas. A. relata ter participado de uma atividade a qual atribui grande sentido - uma atividade chamada “constelação familiar85” : 85 “Trata-se de uma prática fenomenológica e sua fundamentação é principalmente antropológica, filosófica e humanística. A base conceitual desta abordagem pode ser assim resumida: Além do inconsciente individual e do inconsciente coletivo existe um inconsciente familiar compartilhado pelos membros de uma mesma família e que se transmite às gerações seguintes e que é estruturado a partir de todos os acontecimentos que compõem a história da família (nascimentos, mortes, uniões, separações, rejeições e exclusões, sucessos, fracassos, padrões de conduta, etc...). Este inconsciente familiar influencia de forma intensa alguns membros da família afetando significativamente suas vidas. 169 “a constelação familiar é para você estar em paz com a tua família, não importa o que ela seja, não importa se teu pai é assassino, se tua mãe é prostituta, mas você estar em paz com a tua família de origem e cada um ter um espaço na sua vida, não tem aquela coisa, o fulano não existe mais pra mim.” Coloca que a constelação familiar é muito recomendada para trabalhar assuntos de imigração. Falecimentos, separação e suicídio. “No meu caso tinha a questão do meu pai, da separação, falecimento do meu irmão. E são coisas que vai te impregnando né(...) a imigração já marca e se ainda existe um fator agravante desses, os medos que ele tinha, a forma como ele, a postura de vida dele em função desses medos, então, ele vai transmitindo pra gente né, não precisa falar.” Após as reflexões que fez, a partir desta atividade A. resolveu cursar psicologia e assim segue em seu projeto de vida - ser “mais desencanada” buscando maior reflexão sobre si mesma e sobre o seu mundo - sua constelação. Estes membros ficam de alguma forma identificados ou "emaranhados" a outros membros da família, freqüentemente de gerações anteriores, que foram ¨excluídos¨ ou que tiveram um percurso de vida sofrido. Algumas vezes o membro emaranhado nem sequer tem conhecimento consciente do episódio de exclusão que ocorreu com os seus familiares. Porém, ele capta estas informações do inconsciente familiar e retoma/revive o “destino” desta pessoa, ou tenta compensar ou fazer o que outro familiar “deveria” ter feito. Pode acontecer ainda que ao perceber que um dos pais está emaranhado e tenta repetir o destino de alguém, um filho decide inconscientemente tomar para si esta “missão reparadora“ equivocada e, por exemplo, adoece ou fracassa ou deprime no lugar de seu pai ou mãe.” (Fonte: http://www.latec.ufrj.br/desenvolvimentopessoal/index.php/artigos/110-constelacaofamiliar.html) 170 Um projeto de Liberdade Porque o improviso... É o frescor da vida! 171 A História de J. 50 anos, natural do Rio Grande do Sul. Bisneta de alemães por parte de pai e mãe “A questão é a gente definir o que é mais importante pra gente. Pra mim, o mais importante nunca foi ficar do lado de alguém, ter uma estabilidade (...) o mais importante era poder estar onde eu quisesse, ser livre. (...) cada um com seu caminho, não fazer muito o que os outros acham que é bom.” Conhecemos J. na apresentação que fez de seu filme em um cinema. Os elementos apresentados e as palavras por ela proferidas ao final da sessão foram de grande motivação para que quiséssemos saber mais sobre sua história. Além do comovente filme, J. trouxe memórias de sua infância e mensagens de liberdade para os presentes. Muitos se emocionaram e logo a atmosfera se transformou e a sessão de cinema virou uma grande roda de conversa, onde as pessoas se sentiram à vontade para compartilhar lembranças e experiências. J. nasceu e cresceu em uma pequena cidade86 de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Fundada em meados de 1870, data que J. calcula terem chegado seus familiares ao Brasil. Nesta cidadezinha, mantém-se o dialeto e costumes alemães até hoje, sendo assim, um lugar semelhante ao que fora a Alemanha do final do século XIX. O dialeto falado, o Hunsruckisch, não é mais ouvido na Alemanha atualmente, o que torna a cidade um lugar parte de uma história viva, legado de uma população pioneira. Na colônia a vida é simples, as pessoas trabalham na roça e as crianças, em geral, aprendem o português somente quando são alfabetizadas na escola por volta dos sete anos de idade. Este é o contexto por onde J. inicia sua história de vida87. Nossa interlocutora morou nesta comunidade até os nove anos de idade quando, devido às irmãs expressarem o desejo de estudar (nesta comunidade a escola vai até o ensino 86 O nome da cidade não será revelado em razão do sigilo. 87 A entrevista teve duração de cerca de 7 horas em um mesmo dia, sendo a mais longa de todas realizadas. 172 fundamental) seus pais optaram pela mudança de cidade, com a expectativa de proporcionarem outras oportunidades às filhas. Assim, J. estudou, trabalhou muito e se tornou atriz de destaque e diretora de cinema. Sua história revelou-nos não apenas o alcance do sucesso, mas sim deste construído com base em sua busca por emancipação e esta, envolvendo um caminho de metamorfoses almejadas. O elemento “descendente de alemães” permeia a vida de J., conforme veremos ao longo das páginas que seguem. Ao iniciar sua história de vida, além de nos contar sobre sua “aldeia” J. colocou de modo enfático “já ser a pessoa que sempre quis ser.” Algo que ao aparecer em sua narrativa logo nos primeiros minutos de conversa, nos surpreendeu. “É sobre quem eu sou e quem eu gostaria de ser, eu acho que não tenho mais essa pergunta de quem eu gostaria de ser (risos) eu acho que já sou a pessoa que gostaria de ser (sorri) que eu quis ser né. Porque eu sempre quis, engraçado, eu mesma me pergunto, vendo minha própria história, eu mesma me assombro com esta pessoa que me tornei sabe?” J. revela seu assombro em ter seguido um caminho totalmente diferente de seus familiares, bem como das pessoas que permaneceram na colônia. Revela-nos: “(...) é muito distante a minha trajetória né, a trajetória da mulher que sou hoje do lugar de onde eu vim, do meio cultural que vivo né, trabalho com cinema, com teatro, televisão, eu sou atriz, fiz uma faculdade de artes cênicas né, eu me relaciono num universo muito cosmopolita e ter nascido no lugar onde nasci não é... A discrepância disto é muito grande, quando olho pra trás assim né, de um lugar de quando eu tinha sete anos, sete não, acho que até uns oito, eu nem conhecia um aparelho de televisão. Eu fui apresentada à TV quando já tinha uns 9 anos, por aí, eu nem sequer falava português, eu era uma pessoa muito, muito tímida, eu não tenho nenhuma influência familiar no sentido do campo das artes, não tem nenhum registro disso na minha família, não tem um músico, não tem um artista plástico, não tem ator, nada.” Retrata o modo simples de sua família. O pai ferreiro e mãe que trabalhava na roça. J. era uma menina tímida, que não sabia falar o português e assim, não vislumbraria chegar onde chegou. “É especialmente porque eu venho de uma família de gente muito simples né, de roça, meu pai era ferreiro, minha mãe trabalhava na roça né e todos eles estudaram até o 4º ano primário e não tinha assim, não tenho ninguém na família 173 assim com alguma erudição. No meu núcleo familiar assim, pai, mãe e irmãs, acho que sou a pessoa mais desenvolvida assim, intelectualmente. Fui a única que me formei (...).” Este é o pano de fundo do início da trajetória de J., que pertence a uma família “sem erudição” e que cresceu na roça. Aos poucos J. vai aprender que a erudição é uma construção e como tal, possibilidade... J. tenta explicar-nos como se tornou quem é, mas não encontra meios concretos para fazê-lo. Para ela, isto é um “assombro”. “(...) eu fui uma célula que se desgarrou disso tudo e né (risos) fiz um outro rumo, né outro rumo na minha vida assim muito diferente de tudo, de todo esse núcleo de onde eu vim. Então, às vezes eu acho, eu falo do assombro assim eu tô falando disso, eu também não sei explicar direito porque, como eu me tornei essa pessoa que eu sou.” J. acredita que uma explicação possível para que tenha sido esta “célula” seja seu gosto pela arte. Para nos falar deste gosto, revela-nos uma história, a qual define como “muito bonitinha” da forma como foi socializada por suas irmãs mais velhas, suas cuidadoras com criatividade, imaginação e com um idioma diferente daquele que falavam na comunidade, no caso, o português: “(...) quando eu fui pra escola com 7 anos de idade, eu não falava português, como a maioria das crianças, mas as minhas irmãs, eu tenho 4 irmãs mais velhas eu sou a mais nova e as minhas irmãs gostavam muito de ler fotonovela. Então assim, eu me lembro da minha infância, eu fiquei muito rapidamente familiarizada com este universo da fotonovela, porque elas liam muito fotonovela. E aí eu via aquelas revistas, aquelas imagens, aqueles desenhos e eu acho, uma suspeita, que isso tenha aguçado um pouco o meu desejo, dessa coisa fantasiosa né, essa fantasia, da novela, da fotonovela e eu aprendi a ler em casa e isso foi uma coisa que eu não sei explicar, eu aprendi a ler sem falar português né, eu aprendi a ler português é...” Furtado (2013) discorre sobre imaginação e criação enquanto capacidades humanas voltadas para o exercício da liberdade e deste exercício como potencializador da liberdade, permitindo um agir-em-liberdade. Para a autora, imaginação e criação permitem a transformação da natureza enquanto ação que transcende capacidades biológicas do homem. Desta forma, o agir- em- liberdade também pode ser considerado uma ferramenta política. Tal embasamento permite-nos compreender mais à frente aspectos do desenvolvimento político de nossa interlocutora. 174 “Claro que tinha uma familiaridade com o português, porque as minhas irmãs já falavam, mas em casa a gente só falava o dialeto, era o dialeto do Hunsruck88 que essa região fala. Mas elas falavam, já tinham saído mais do que eu e então elas tinham já o domínio do português, elas liam em português, já tinham ido pra escola. E então elas falavam, escutavam músicas no rádio, a gente ouvia né, aquelas músicas da jovem guarda, eu ouvia as músicas do Jerry Adriani no rádio, eu achava bonito é e essa coisa delas lerem as fotonovelas e eu tenho uma vaga lembrança de eu perguntar pra elas o que tava escrito ali o que as pessoas tavam falando e elas diziam: ah ta falando isso pra ela e aquilo me aguçava a imaginação né e eu sei que um belo dia, essa cena tenho muito presente assim, minha mãe tava no fogão e eu tava grudada nas revistas sempre e minha mãe cozinhando e eu disse pra ela, por que que você não faz um dia essa comida que tá aqui escrito na revista? Daí ela disse assim, que comida? E eu mostrei pra ela a página da revista e ela disse assim: mas tu nem sabe o que é isso eu disse sei sim e ela disse, como? E eu disse ué, eu sei ler. Como sabe ler? Então pra minha mãe foi uma surpresa eu saber ler né.” A mãe que não acredita que a filha tenha aprendido a ler o português sem ir à escola torna-se peça central no incentivo que daria a J. para tornar-se a pequenanotável. “Então aí ela não acreditou e falou como é que é isso? E me pediu pra ler e eu li, algumas frases e ela ficou impressionadíssima (eleva o tom de voz) não acreditou e disse: não é, isso aí tuas irmãs te ensinaram, e você decorou estas palavras né? Então aí eu disse me mostra aí qualquer outra coisa e ela virava a revista e eu lia, eu tava lendo”. Logo, a pequena J. ficou conhecida na colônia, tinha aprendido o português sem ir a escola! “Isso virou um acontecimento na colônia assim, eu já era uma pequena notável (risos) eu me lembro muito disso, virou um acontecimento assim, quase um milagre assim, como é que essa criança sabe ler? Eu tinha recém 7 anos, como é que sabe ler, então e aí eu me lembro disso, de me levarem nas casas assim à noite, porque tinha essa tradição nos sábados os colonos se visitavam, iam tomar um chimarrão na casa de um ou iam comer então né, essas visitas entre parentes, entre vizinhos se fazia e eu me lembro disso assim, de terminar a comida, as pessoas terminarem de comer e se fazia uma grande roda na sala e eu ficava no meio, no centro da roda lendo e era a 88 Região localizada no estado da Renânia-Palatinado, no sudoeste da Alemanha. 175 atração, porque a minha mãe meio que me exibia assim como né... E eu claro, não é que eu lesse trechos inteiros, assim, mas lia.” J. passa rapidamente de uma menina-comum-da-colônia que falava somente o dialeto em casa e ainda não sabia o português, para a pequena-notável reconhecida como uma criança com talento especial, notada e diferenciada na comunidade. Desta forma, J. ainda tentando responder quem é compartilha que tornar-se uma pequena-notável pode ter sido fator disparador para ser quem é hoje. “(...) diria que talvez isso, essa aceitação né, ser uma coisa diferente, fazer uma coisa diferente né, é uma aceitação, as pessoas olham pra você, gostam de você, você é valorizada né, então acho que essa coisa do ego né, de me sentir importante. E eu acho que isso motivou a coisa de querer o palco. Eu tenho um pouco essa sensação, essa coisa da infância de ter sido o destaque, por ter aprendido a ler é, me dá uma aceitação assim, uma coisa de né...” Seu reconhecimento como pequena-notável continuou, não somente entre as pessoas próximas na colônia, mas também na escola. Nesta, J. destaca o método usado pela professora para que as crianças aprendessem o português. Este a incentivava a continuar aprendendo: “A gente chegou na escola lá e a gente só falava alemão e a professora tinha um método engraçado (sorri) de que, quando ela tava alfabetizando, quem acertasse a palavra que ela escrevia no quadro negro, quem acertasse ganhava uma figurinha (risos), era um prêmio assim pra quem soubesse ler e eu ganhava todas né! Sabia ler... E aí eu tinha assim muitas figurinhas.” Cabe aqui um pequeno parêntese para refletir-se sobre a socialização na escola; no caso de J., a socialização com a inserção da Língua Portuguesa. Além de J. ter sido positivamente incentivada a continuar aprendendo o português, nota-se no exemplo desta colônia, a importância dada à língua como fator de ascensão das crianças na comunidade e também, como chance futura de seu desenvolvimento no país. Ao reverse a História da colonização alemã no Brasil sabe-se que os colonos, muitas vezes, não tinham acesso à aprendizagem da língua, portanto, não saber português não se tratava de uma escolha em muitos casos. A escola nesta colônia tem o papel de alfabetizar e de ampliar o universo da criança com o ensino da língua. Desta forma, saber o português era um elemento propiciador de emancipação. 176 Para explicar o desejo por atuar, J. refere um episódio que considera marcante vivenciado na escola e a relação disto com o português. Coloca ainda que, para os membros de sua comunidade, não saber a língua não era algo desejado, ao contrário, motivo de vergonha: “É e aí, teve um episódio que é muito marcante pra mim que sempre quando perguntam assim, de onde vem essa coisa da atuação é a primeira coisa que eu me lembro assim, desse registro. Que quando, assim, a gente tinha um único aluno na sala de aula que sabia falar o português bem, porque ele não era de lá, nasceu na cidade e a família depois mudou. Ele era o queridinho das professoras, era um garotinho muito bonito, ele usava sapato, meia né, isso eu me lembro muito claro. A gente andava de pé no chão, chinelo de dedo né a gente era pobre né, roça né, todo mundo era da roça e a gente não tinha esses luxos. Ele era todo arrumadinho, todo almofadinha assim e ele sabia ler, também chegou na escola já sabendo algumas coisas então ele era, assim, tinha eu e ele na turma que já sabíamos ler. Mas ele por outras razões, de família que não morava lá então, ele não era colono, não era da roça. É, e aí eu me lembro que num dia, ele era todo queridinho, tudo que era assim especial, ele era o queridinho da professora, então tudo era o (diz o nome do garoto) e aí no dia, era pra ter uma encenação pro dia das mães, tipo teatrinhos que as crianças montam era uma encenação pro dia das mães era pra ler um discurso em português e aí a professora perguntou quem gostaria de ler e ele, claro, levantou a mão e tal e eu me lembro que eu, muito, muito timidamente, eu era muito tímida, levantei a mão (reproduz o gesto de levantar a mão) também levantei o dedo, eu também queria ler. E aí ela (professora) ficou sem graça, porque ela achou que ninguém mais ia querer ler, ele era o preferido e obviamente ele leria e ela então teve que optar em quem faria o discurso e então ela falou, vamos para a diretora, os dois vão ler pra diretora e ela vai escolher quem lê melhor.” A diretora (lê-se figura de autoridade maior na escola) tem a tarefa de escolher o melhor leitor (lê-se legitimar o melhor leitor como tal) e para a surpresa de J., o que seguiu foi o seguinte: “(...) tenho essa lembrança assim tão forte, eu tenho essa lembrança viva assim, essa ida pra sala da diretora foi um suplício pra mim, porque eu pensava, porque fui dizer que queria ler? E agora? O que vai acontecer? Vou pra sala da diretora, aquilo foi tão assim eu pensei porque fui inventar isso de querer ler, já fui assim pensando em desistir no caminho, aí então é vamo pra sala da diretora né e aí assim, aquele corredor largo que ia pra sala da diretora né, então foi assim um negócio, até hoje tenho essa lembrança assim. E nós chegamos na sala da diretora e ele leu e eu li e a diretora disse uma coisa que sempre ficou muito marcada, ela disse: o (diz o nome do garoto) lê melhor, ele tem melhor pronúncia né, ele sabe ler melhor, mas a J. tem mais interpretação. Nossa eu fico arrepiada até hoje quando penso nisso é, a J. tem mais interpretação, acho que ela que deveria fazer o poema pro dia das mães. E aí essa palavra: interpretação, eu nem sabia o que significava né.” 177 A pequena-notável mantém seu status notável agora, além de ter o reconhecimento que já tinha de sua mãe e da colônia, tem este legitimado pela diretora da escola que acrescenta um novo fator: a interpretação. Com este novo elemento J. se sobrepôs ao queridinho da professora, almofadinha que já sabia o português porque morava em uma cidade maior onde o acesso à língua era diferente daquele que as pessoas tinham na pequena colônia de onde J. vinha. Logo, a pequena-notável se metamorfoseia em alguém que tem interpretação e é esta que fará toda a diferença em seu caminho. Ter interpretação a elevaria a um patamar outro, uma vez que o almofadinha só sabia ler bem, porque teve outras condições sociais. “Outra coisa que os professores diziam é que eu era muito inteligente e eu também não sabia o que queria dizer inteligente, então achava uma palavra muito comprida né, enorme, achava muito estranha, do que que elas tão me chamando né? Então eu até perguntava pras minhas irmãs, eu achava que tava até sendo xingada, porque a professora tinha dito que eu era muito inteligente e aí as pessoas diziam assim você é muito bobinha, tal e me explicavam.” J. interpreta e é inteligente! Mas o ser inteligente é uma construção que J. ainda faria, uma vez que não entendia o significado disto. Contudo, o reconhecimento recebido fez com que J. desse saltos cada vez maiores, assumindo rapidamente para si o sentido do ser inteligente somado à interpretação. J. recita o poema para o dia das mães e o reconhecimento obtido, agora não mais pela professora, diretora e mãe, mas também da plateia, fica marcado. J. se consolida como pequena-notável-inteligenteboa-intérprete “(...) eu me lembro desse reconhecimento, dos aplausos né, tal e isso foi pra mim a motivação da vida inteira, de continuar fazendo é todas as horas cívicas na escola, era dia das mães, dia dos pais, dia da bandeira, dia da pátria, eram todas (ênfase) todas as horas cívicas eu preparava alguma coisa, teatrinho, ou lia né, eu sempre, essa coisa teatral acabou nascendo ali, nessa coisa né e aí assim, de novo, do ponto de vista psicológico acho que é bem mais fácil identificar acho que é, era uma maneira de ser aceita né, eu era muito tímida, me sentia, era muito pequenininha em relação ao resto da turma, era uma criança muito pequena, muito mirrada, minguadinha, não me achava bonita, era assim uma menininha da roça e aí o fato de, né, desse dom de fazer as coisas bem, nesse sentido, dava uma certa destacada né, na turma tal. Então acho que essa coisa da aceitação vem muito daí, acho, minha vontade de teatro, de palco.” 178 J. nos fala do reconhecimento que a menininha-da-roça obteve por ler o português e interpretar e deste como muito importante, algo que lhe incentivou a buscar ainda maior reconhecimento, repondo o personagem que criara para si. No entanto, há uma passagem anterior em sua vida, que poderia ter mudado o rumo da história quanto ao reconhecimento positivo e à forma como J. passaria a ser vista pela família, pela colônia e principalmente por si mesma. Deixemos que J. nos conte: “(...) eu tive uma perda muito séria na minha infância, eu perdi uma irmã, menor do que eu mais nova é... De uma maneira muito trágica, assim... Ela caiu dentro do poço (pausa) eu tinha (pausa) 5 anos, mais ou menos, 5 pra 6 e ela devia ter 2 e eu encontrei ela, então assim, é uma coisa muito, muito forte, nem quero falar muito disso porque é uma coisa que ainda mexe muito comigo até hoje (pausa) é esse fato, esse acontecimento muito marcante de minha infância é, eu usava luto com 6 anos, me vestia de preto com 5 anos, é eu me senti muito responsável pela vida inteira, por isso a terapia, as coisas todas que foram acontecendo depois na minha vida assim foram importantes pra me reconectar um pouco, mas eu fiquei muito marcada por isso né, uma tragédia muito grande pra uma criança viver e, e aí assim, ela era a mais nova e eu passei a ser a mais nova. Então é como se eu não merecesse ocupar aquele lugar sabe?89 J. carrega consigo a lembrança de tal episódio, faz terapia, busca alternativas para lidar com o fato e segue adiante. “No fundo, a sensação que eu tinha de que eu, quando diz ah ela é a pequeninha da família, é... É porque a outra morreu né, então, é, era um lugar muito difícil pra mim, sempre foi né, então eu era uma criança, fui uma criança muito triste, eu acho assim, por muito tempo da minha vida eu... Isso me marcou e marca né, marcaria qualquer criança, assim, nessa idade (respira fundo) e talvez pelo fato, é de eu ter me sentido responsável por isso, também porque eu tava eu tava com ela né, quando isso aconteceu e minha mãe tinha ido pra missa, tinha deixado ela com a gente em casa, mas era, nunca ninguém usou essa acusação, mas é uma coisa minha né eu introjetei isso, então, eu fiquei com essa carga da minha infância muito grande assim, era a irmãzinha que eu perdi, uma coisa muito forte.” J. já adulta buscou entender o que se passava consigo e após a terapia, pensa ser a perda de sua irmã o motivo de alguns dos comportamentos que tem e do seu modo de 89 Este episódio da vida de J. nos remete ao filme sobre a vida de Ray Charles, em passagem onde ele vê a morte do irmão mais novo afogado em um tacho com água escaldante. Pouco tempo após este fato, o pequeno Ray começa a ficar cego e ao longo de sua vida, desenvolve problemas com álcool e drogas, tendo sempre em sua memória tal fato relacionado à culpa que sentiu por não ter conseguido evitar a morte do irmão. 179 ser atual. É possível que o reconhecimento positivo obtido por meio de sua atuação a tenha ajudado a conquistar seu espaço frente à perda sofrida ou mesmo, na criação e recriação de personagens, afastar-se da menina-tímida-medrosa-da-roça que vivenciara tamanho trauma. Contudo, mais a frente veremos que não é somente com relação ao ocorrido com a irmã, mas também o modo como fora socializada e como buscou lidar com seus personagens que influenciou seu modo de ser na atualidade. Percebeu-se que desde muito cedo, J. pensa muito em suas ações, procurando observar-se para entender sua forma de estar no mundo. “Depois, muitos anos depois na terapia, fazendo um trabalho de psicanálise, eu fui entender que assim, muitas coisas do meu comportamento né (pausa) de ser uma pessoa muito responsável, de nunca querer errar porque ai, meu, meu psicanalista me dizia isso, o erro podia ser a morte né? É... qualquer distração pode significar tragédia né, então eu acho que introjetei um pouco isso, eu acho que adquiri um pouco essa personalidade muito, como vou dizer, uma personalidade muito perseverante não é isso, muito, sempre muito alerta, sempre muito ligada nas coisas, assim, sempre muito no controle das coisas assim, no sentido de, como se eu não pudesse abrir minha guarda assim.” O controle passa a ser algo importante e consciente. Evita que J. erre mantémna a frente conduzindo seus objetivos. A morte da irmã pode ser interpretada como perda devido a falta de controle, controle que uma criança de 5 anos deveria ter tido? Sim, J. entendeu desta forma por anos, como um erro seu. A falta de controle fez com que perdesse a irmã mais nova de quem deveria tomar conta. O lugar que J. passa a assumir após tal perda não é, portanto, legítimo. “(...) já pra dizer que isso também revela e acho que é um dos pontos dessa coisa quando eu falo que o teatro quando eu comecei a fazer teatro, quando eu comecei a fazer uma representação essa aceitação, ser uma pessoa aceita, querida, né é elogiada, é isso me fazia muito bem, porque acho que no fundo preenchia também uma coisa que tinha ligação com essa história do falecimento da minha irmã (pausa) então, quando eu era muito ligada nas minhas amiguinhas da colônia e ai a distância de mim os minhas irmãs mais velhas já era maior, então assim, eu não tive mais uma irmã mais próxima, ela era minha irmã mais próxima (...) 180 O teatro a ajudou, por meio da representação a ser aceita, mas também, a aceitarse enquanto criava uma nova perspectiva. Por intermédio das personagens surge vida após a morte, como já nos ensinou a Severina desvelada tão bem por Ciampa (2001). Voltemos à mudança da colônia para a cidade grande, importante marco na história de J. vivido como um processo que de certa forma, foi uma vida nova com outros personagens implicados. Mais uma vez morte-vida... Aos nove anos de idade J., após o falecimento da irmã e suas vivências bem sucedidas com as leituras do português na escola, J. mudou-se com sua família para uma cidade maior, também no Rio Grande do Sul (o nome não será revelado). Retrata com esta mudança o medo da perda do espaço conquistado na colônia, onde era a pequena-notável que lia português e que interpretava. Na nova cidade seria tudo novo, uma nova forma de viver. “Aí me lembro que quando a gente se mudou eu tinha 9 anos, então foi na metade do ano e bem na metade do ano na escola eu peguei uma turma que já tava habituada né, no meio do ano e eu era uma criança estranha pra essa turma e eu era uma criança estranhíssima pra aquela turma, porque eu não falava português direito né, embora já soubesse tinha um sotaque muito forte e tinha dificuldade com algumas palavras, que eu não sabia dizer (...)” De pequena-notável J. ganha o posto de criança-estranhíssima o que para uma menina medrosa, era motivo de ainda maior assombro. Novamente J. tem frente a si um desafio, comparado em sua devida proporção, ao desafio de resolver o luto da irmã. Era como lidar com o luto de sua própria personagem. “(...) então eu era muito medrosa sempre fui uma criança muito medrosa, então tinha medo das coisas, assim, tinha medo de escuro, tinha medo de gente (risos) as minhas irmãs, quando elas me veem e às vezes assim, são perguntadas, assim, até por jornalistas e coisas né, elas falam ela é um fenômeno uma coisa, não imaginamos ela tão solta e desinibida como ela é hoje. Eu era um bicho-do-mato, tinha medo de gente então, quando as pessoas apareciam em casa eu me escondia no quarto e não saía nem pra comer enquanto a pessoa não fosse embora. Tinham que trazer comida no quarto... Eu tinha medo de várias coisas era muito medrosa, tinha medo de gente, de linguiça (risos) porque a linguiça era, depois né tu vai identificando os signos, mas eu imagino que era porque meu pai matava porco e eu tinha pânico do grito do porco, eram umas coisas assim, mais horríveis pra mim, eu me lembro do grito do porco morrendo e esse dia da matança do porco era o dia pra mim assim de morte que eu não queria sair de casa, ficava no quarto, pela história do porco e pela sujeira que dava o cheiro ruim daquilo ali tudo, 181 daquela coisa do porco, tudo, que é muito nojento, assim. Quando tudo terminava, aquele pesadelo chegava ao fim o que que sobrava? As linguiças penduradas... Então eu acho né, identifico assim, as minhas irmãs contam isso melhor, assim eu só me lembro desse medo, mas elas brincam, elas falam que era a maneira de me segurar assim, se eu quisesse ir pra rua, sair, era só botar uma linguiça na porta (risos) e eu recuava (...). J. fala sobre o medos ao contar sobre a nova cidade. Neste momento faz menção à sua relação com a morte e conta sobre a morte do porco, do terror que a acometia. A morte é algo assustador, como resolver? Talvez transformando a morte em vida mais uma vez, em recomeço criativo. Sigamos; a cidade grande era uma ameaça para uma menina pequena-e-estranhíssima que ali precisaria ainda constituir seu lugar em local novo e com questões totalmente amedrontadoras. J. descreve este processo: “(...) aí perdi minhas referências minhas amiguinhas, minha prima e aí eu tinha medo de negros, né isso é também importante porque, não tinham negros, não havia negros no lugar e quando a gente muda pra cidade, assim, e meu pai, que sempre foi racista, é, nunca assumiu claro, mas era, nunca teve um comportamento racista, mas eu digo isso porque ele tinha essa coisa pejorativa com os negros, então qualquer coisa era, ah isso é coisa de negrão, de negro, ou então uma coisa horrível que ele fazia era, se você não fizer tal coisa vou chamar um negro, bem preto, pra te levar, né, vou chamar o negro com saco, vai te botar dentro do saco, então assim, era muito perverso, então eu digo, pra mim, negro era uma coisa assustadora só a palavra e quando eu vi um negro, pela primeira vez, foi um andarilho que passava pelas estradas ali e todo sujo, maltrapilho, um mendigo, praticamente, então eu tinha essa imagem do negro, e então, eu tinha medo, eu lembro quando a gente mudou eu pedia, rezava assim silenciosamente pra não ter um negro na minha sala de aula, porque tinha medo.” A nova cidade lhe trazia elementos desconhecidos e o entorno amedrontador. Algo que era de certa maneira, reforçado por seu pai. J. vai se acostumando e à medida que interage, busca vencer seus medos frente ao novo elemento que encontra - o estigma. “E aí com o tempo fui me acostumando, fui vendo que negros eram pessoas e pessoas legais tal, tanto que não tenho nenhuma, isso passou, já tive namorado negro, meu parceiro hoje é mulato né, não tenho essa, felizmente, mas era uma questão forte da minha infância. Então, quando a gente se mudou eu tinha muitas coisas adversas nesse sentido, eu tava num lugar que eu não queria estar, que era ao lado do lugar que eu gostava muito, que eu não queria ir embora de lá (colônia) é, cheguei numa escola que de certa maneira, crianças são muito cruéis 182 né, elas debochavam de mim, pelo jeito que eu falava elas me chamavam de alemoa batata e alemoa batata é pejorativo (...). Essa visão que essa visão de que ah é bacana ser alemão, esse status não, não tinha nada disso, era o contrário, falar, ser de origem alemã significava ser da roça, ser colono naquela região e ser colono era uma coisa pejorativa, não era uma coisa positiva, o jeito que eu falava denotava isso, que eu era da colônia então era negativo, não era bacana.” A menina pequena-notável passa a ser estigmatizada, vira a alemoa-batatacolona. J. começa a ir mal na escola, seu rendimento não era mais o mesmo e as crianças zombavam dela. Definitivamente tinha perdido seu lugar como pequena-notável. Precisaria criar um novo personagem. Preocupada com o rendimento escolar e com o sofrimento da filha, sua mãe lhe faz a promessa de que caso passe de ano na escola, poderia voltar a morar na colônia. J acredita na promessa da mãe, se esforça e consegue passar de ano. “(...) quando terminou o ano eu fui pedir pra minha mãe e ela disse: mas tu acreditou nessa bobagem que eu te falei? E... eu me lembro que chorei muito, fiquei muito triste com minha mãe por ter feito isso e claro que, minha mãe era uma pessoa boníssima, querida, adorável, eu tinha uma relação assim, é, incrível com ela, era assim, ela falou aquilo por falar, não tinha dimensão né, do que isso pudesse, do que pudesse acontecer comigo(...)” Pode-se entender que o mecanismo do medo de J. tem razão de ser. Para além das experiências que lha causaram medo de fato, promessas feitas por pessoas significativas não são cumpridas. Logo, desenvolve-se algo novo. J. começa a ser independente. Desta forma as promessas não precisarão mais ser cumpridas, a própria J. poderá construir seu caminho sozinha. J. em sua experiência de independência relata sobre viagens que fazia sozinha à colônia aos 9 anos de idade, para passar os finais de semana com a prima “como uma forma de conseguir retornar à escola na Segunda-Feira” refere certa surpresa por sua mãe deixá-la com tão pouca idade, viajar sozinha de ônibus. J. teve muita dificuldade em se adaptar à nova cidade e queria ir todos os finais de semana visitar sua prima na colônia. Algo que aparentemente era ruim, lhe possibilitou vivenciar experiências de independência: 183 “(...) pra mim era uma grande viagem que eu fazia aos finais de semana, sozinha (ênfase) pela vontade de tar com minha prima eu acho que isso começou também assim a talvez essa coisa que eu tive da independência assim, tive desde cedo assim muito é, é decidida a fazer as coisas que eu quero assim, talvez isso tenha a ver com isso já, assim que desde pequena eu já me virava (...).” Aliado a isto, refere o papel do avô em sua vida, a quem mais a frente agregará o início da tomada de consciência de suas ações independentes e também do sentimento de vergonha. “E eu era muito ligada nesse avô, esse avô era tudo pra mim e eu, era o xodozinho do vovô, era o nenê, que ele chamava né, nenê pra cá, pra lá, eu ia junto com ele nas coisas, então meu vô é que me mostrou a cidade, ele ia sempre visitar uma pensão dos irmãos e eu ia com ele, então pegava o ônibus, saia né e conhecia um pouco o mundo assim, com meu avô. Era tudo muito perto, mas era pra mim assim, uma viagem na minha cabeça, então eu era muito ligada assim nesse meu avô. Então quando a gente se mudou pra cidade grande ele veio com a gente e ele não falava português, nunca falou, nunca aprendeu português e ai meu avô não falava, ele morreu com 80 anos e nunca aprendeu o português e quando a gente tava em Novo Hamburgo eu era a intérprete dele nos lugares, tinha que traduzir as coisas do alemão e daí ele falava em alemão em público e isso me dava uma vergonha (ênfase) uma vergonha assim, porque denotava né que era da colônia, então não bastava eu não falar direito, ainda tinha o avô ali, pra dizer que eu não sabia falar (risos) denotando a coisa do alemão é e aí tem coisas curiosíssimas assim, da primeira vez que ele andou de elevador, que ele nunca tinha andado, ele quis pagar o elevador, eu fiquei morrendo de vergonha.” Com o avô J. conhecia o mundo enquanto também o ajudava a estar nesse mundo, no entanto, sentia vergonha... Conquistar a independência tinha seus desafios. Os primeiros ainda a serem superados na escola, lembremos. “E bem aí esse período de adaptação na escola foi muito difícil e eu fiquei assim, cada vez mais introjetada, cada vez mais fui me fechando com essa dificuldade da comunicação, da coisa da língua né até aprender a falar bem tal ai até o 4º ano, quando comecei a ir de novo bem na escola, de novo era a primeira da turma e tal e aí comecei a me sentir melhor.” Mais uma vez a pequena-notável-inteligente-que-interpreta revive desta vez, na cidade grande. Ressurge porque estava viva em J. provavelmente aguardando o melhor momento para reestrear! E reestrear envolve o teatro, conforme J. segue contando-nos. “Mas aí me lembro que o teatro, aí entra o teatro, é com 10, 11 anos eu já fazia peças, de novo, fazia todas as horas cívicas da escola, teatrinhos, estava sempre metida nas coisas, inventando coisas e aí me chamaram pra fazer uma peça na 184 escola, uma peça que depois saiu, eu tinha uns 11 anos acho e eu me senti muito bem naquele lugar, o teatro era uma libertação pra mim (ênfase na voz), acho que essa coisa da timidez, do jeito que eu era, o teatro tirava tudo isso, o palco era, era o lugar que eu me sentia muito bem. E o aplauso, a valorização das pessoas tal acho que daí vem essa semente assim, da arte na minha vida.” O teatro é o lugar onde J. se liberta, sente-se bem e é valorizada. No palco não é a menina pequena e medrosa é a pequena-notável-inteligente que interpreta e é reconhecida por seus pontos fortes, ao mesmo tempo em que toma tal experiência para si como fator que agrega e continua a impulsiona-la a buscar mais. De acordo com Lima (2005, p. 212) “(...) sendo o teatro um ato de comunicação e logo, sujeito às regras do agir comunicativo, sua recepção será sempre a busca de um consenso sobre a validade ou não da apresentação.” Para o autor, apropriar-se de outros personagens faz com que o sujeito possa lidar consigo mesmo “tendo na sua performance reconhecimento e validando assim seu projeto de vida.” (LIMA, 2005, p. 214) Logo surge um novo elemento à personagem pequena-notável. O mundo do trabalho. Para falar de sua inserção neste, J. fala também do que entende ser a rigidez alemã, pois, mesmo não precisando de ajuda, seu pai julga que se as irmãs foram trabalhar então J. teria que ir também, mesmo que a família não enfrentasse mais dificuldades. Contudo isto se faz possibilidade, J. percebe que pode começar a dar vida à tal independência... “(...) comecei a trabalhar muito cedo, com 15 anos já trabalhava, porque tinha essa coisa, meu pai era muito rígido e tinha uma coisa muito assim, as filhas em determinada idade tinham que trabalhar (...). Quando eu fiz 15 anos nem acho que precisasse mais, mas aí, essa coisa rígida alemã (ênfase) todos foram trabalhar então você também vai trabalhar e era uma coisa que me revoltava tremendamente, porque eu queria estudar, queria fazer o que minhas colegas na época faziam, final de semana elas iam pra piscina, eram sócias de um clube, eu não tinha clube nenhum, não tinha piscina nenhuma, daí e acho que essa coisa de começar a ver as coisas que outros têm e você não tem, de querer melhorar, acho que me deu muita energia pra conseguir construir as coisas que eu construí na verdade.” Nasce assim a J. trabalhadora que sabe não ter o que outros têm, mas sabe o que pode conquistar. 185 “(...) aí eu fui trabalhar numa loja de roupas vendia roupas, era balconista. Eu fui estudar à noite, com 16 anos fui estudar de noite e trabalhava de dia. Aí fiz o 2º grau que foi todo assim, trabalhando de dia e estudando à noite e depois dessa loja fui trabalhar em um estúdio fotográfico, depois fui trabalhar de assistente de um arquiteto, secretária, até muito rapidamente já começar a fazer minhas próprias coisas, e me libertar um pouco desta história que eu nunca gostei (ênfase) nunca gostei de ser mandada, nunca gostei de ter patrão, nunca gostei de que dissesse o que eu tinha que fazer.” A trabalhadora começa a perceber de fato o que não gostava, começa a rascunhar seus próprios planos à maneira como gostaria de viver. “Então eu nunca coube muito nesse modelo sabe? Assim, certinho assim de horário, acorda tal hora, trabalha de tal hora a tal hora sabe? O meu pensamento era desde muito cedo, e sempre fazendo teatro, então eu trabalhava o dia inteiro, estudava e teve uma época, que a gente ensaiava uma peça, que acabava a escola, dez e meia da noite e ai a gente começava a ensaiar. O diretor da peça me buscava na escola e me levava no teatro, na sociedade onde a gente ensaiava, e a gente ensaiava, assim, de dez e meia até uma e meia da manha e eu ia pra casa e de manhã trabalhar.” O trabalho tinha a sua importância, estava ligado ao projeto de independência, mas o teatro estava sempre muito presente, J. não cogitou abandoná-lo por nenhum instante. “Então assim, eu não queria nunca deixar de fazer teatro, sempre gostei muito, foi minha grande, é, motivação. E aí com 16 anos, essa peça mesmo que era a que a gente ensaiava, era uma peça infantil que a gente apresentou, já logo no primeiro festival que a gente apresentou eu ganhei o prêmio de melhor atriz e isso já me motivou também pra continuar e ai eu sempre quis.” E assim a pequena-notável-que-sabia-interpretar retorna à cena e mais uma vez se consolida. Agora J. não pararia mais... Queria ser outra “outra”. “Então eu acho que assim, durante muito tempo, voltando à questão do que que eu gostaria de ser eu tava fazendo uma coisa, mas eu queria ser outra. Eu tava numa situação, mas eu queria outra situação pra minha vida. Então assim, aí eu comecei a construir uma vida de independência, logo, muito cedo, é primeiro com esta questão de não querer ser mandada, querer ter minhas próprias coisas, então com 18 anos eu comecei já a fazer minha própria vida, sempre assim estudando, fazendo uma faculdade junto e fazendo teatro, mas eu, eu, comecei a trabalhar com desfile de moda.” 186 Seu trabalho agora era ligado ao criar, algo que J. já dominava, desde as leituras que fazia sozinha das fotonovelas ainda na colônia. De acordo com Catoriadis (2000, p.51 apud FURTADO, 2013, p.87): (...) porque o ser humano nunca faz coisas por simples reflexo ou por simples necessidade, e que no mais simples fazer humano já existe esta dimensão absolutamente central aos meus olhos, a dimensão imaginária: a capacidade de formar um mundo e dar um sentido, uma significação a este mundo e a si mesmo, ao que fazemos. O seu criar dá resultado. J. mais uma vez tem seu talento reconhecido e não tarda a tornar-se sócia. “Eu era magra, alta, tinha a possibilidade de ser modelo e fui convidada a desfilar, mas logo assim, eu gostei da exposição, mas gostava mais do que tava por trás disso sabe? Achava mais interessante organizar aquilo tudo, fazer a coreografia. E ai eu comecei a trabalhar com uma pessoa que tinha essa agência de modelos e fazia produção de desfiles e a agência fazia, nessa época eu tinha por ai, uns 17, 18 anos. (...)” “(...) e eu virei sócia dessa pessoa! Acabei virando sócia porque eu tinha uma coisa com o trabalho, sempre tive, muito forte assim, então a gente, eu comecei a fazer os desfiles, e produzir e aí eu acho que essa coisa da arte, é muito inato na gente né, não importa o que você tá fazendo ela vem né, então eu era muito criativa, tinha ideias, fazia as coreografias, escolhia as músicas, fazia produção de moda, via as roupas e tal e ai eu gostei desse negocio e fiquei trabalhando um tempo com ele. E aí como a agência estava indo meio mal das pernas, ele não tinha mais dinheiro pra pagar meu salário, ele me propôs sociedade. E eu achei ótimo aquilo, porque eu era sócia (ênfase) não tinha mais patrão, não era mais empregada. Mas era uma sociedade assim, furada, porque o negócio tava indo mal e não ia segurar muito tempo. E eu me lembro claro disso, que quando falei isso em casa, minha mãe e meu pai foram muito contra.” A possibilidade de ser sócia era a forma real que J. daria ao seu plano de independência, de não ter patrão e relembrando o que colocou-se anteriormente, de não se decepcionar com promessas e manter o controle. J. sabia que o negócio ia mal, mas vislumbrou, ainda assim, uma forma de concretizar o que buscava. A trabalhadora agora era sócia-sem-patrão. Contudo, sua família que visava estabilidade, algo com futuro certo para J. foi resistente à tamanha mudança. “Eles ficaram assim é, bravos, assim, como é que você vai deixar de fazer uma coisa mais, mais que te deixasse capacitada, ter um trabalho certo, né como é que 187 pode isso, uma coisa que você não sabe se vai dar certo, uma coisa que você vai se aventurar e eu falo não me importa eu não vou ter patrão, vou ser sócia nesse negócio. Uma coisa que era forte pra mim.” Saber o que queria e também de suas potencialidades foi a alavanca para seguir em frente, a despeito da opinião dos pais. A sócia-sem-patrão surge com força e sabe do que é capaz. J. tem nesta sociedade a ajuda de uma amiga que tinha posses. A amiga entrou com o dinheiro e J. com seu trabalho. “E aí claramente ficou assim, eu realmente tenho uma capacidade de trabalho muito forte, assim e eu toquei aquele negócio praticamente sozinha, ela (a amiga) não tinha aptidão pra isso, não era uma pessoa com esse negócio, mas a gente juntas fez o negócio crescer e virou um grande negócio.” Apesar da pouca idade, J. tinha o próprio negócio, que funcionava muito bem. “Eu tinha 20 anos e já tinha uma, já era dona de uma agência de produção, já tinha o curso de modelo, que funcionava super bem e aí como o curso tinha uma sala grande, eu pensava, essa sala tinha que ser ocupada por outras coisas, e aí tinha o curso de teatro, dança, aula de yoga, porque eu gostava de fazer yoga, e tinha uma escola de dança, com formação de ballet, enfim, desde crianças de 4, 5 anos até e virou referência, assim, virou um grande negócio. Virou referência de escola na cidade.” J. nos conta que seu plano de independência também tinha outra motivação: sair de casa. “Minha família olhava aquilo tudo um pouco assim (pausa) no início, um pouco assustada e depois, achando legal assim né, assim, minha mãe sempre me apoiou e eu tinha muita dificuldade com meu pai, tinha dificuldade em relação com meu pai. Meu pai era alcoólatra (pausa) e era um homem muito violento, era muito difícil a relação com ele. Então eu queria muito sair logo de casa, queria muito, não queria ficar ali, naquele ambiente que era às vezes meio pesado (...). Então eu, eu queria sair logo.” Na busca por independência o elemento “descendente de alemães” aparece como fator importante. J. explana: “E como eu comecei a trabalhar muito cedo, com 15 anos, então com 18, já tinha três anos que eu trabalhava, com 19 meu pai tava me emancipando, eu precisava assinar já como dona do negócio, precisava ser emancipada e ele assinou a minha emancipação. E aí eu acho, eu entro um pouco nessa coisa de como é que é ser descendente de alemão é isso era um diferencial assim, porque eles, embora fossem pessoas muito simples, essa coisa da cultura alemã, da individualidade, da independência (ênfase) que isso é muito alemão né, muito mais do que brasileiro, 188 brasileiro fica quieto, todo mundo muito em volta né, eles tinham isso mais fácil, sabe? Eu acho que passei a ter muita admiração, pelo meu pai inclusive, pelo trabalho, pela capacidade de fazer as coisas sozinha, de me manter, ter meu próprio apartamento, já morar sozinha né com 20, 22 anos eu já tava comprando o meu apartamento já, é, então enfim, acho que ele tinha o respeito, antes de mais nada.” Ser descendente de alemães surge para J. como um fator que lhe proporciona emancipação, uma vez que a isto associa questões como sua capacidade de trabalho e independência. Ressignifica ainda a relação que tem com seu pai, passa a admirá-lo em sua forma de ser. Ainda que tenha sido motivada a construir seu projeto de independência motivada por querer sair de casa devido ao relacionamento com o pai, J. reconhece ter sido ele um exemplo por ser empreendedor, assim como ela também se tornou. De trabalhadora a sócia-sem-patrão-empreendedora. “É e eu acho até que minha história tem tudo a ver com ele assim, o jeito de ser assim, meu pai era bastante empreendedor. E depois eu fui saber isso que eu nem sabia, que ele era também, foi a primeira pessoa que fez o transporte do leite. Eles não tinham como escoar a produção e ele ia, pegava a carroça, muito cedo, saia, recolhia o leite nas casas e levava pro entreposto (diz o nome de outra cidade onde levava o leite) então ele começou o comércio do leite, que não, que não tinha né. Realmente tinha uma coisa, uma coisa muito forte.” J. entendeu, após viver e ressignificar sua trajetória como empreendedora, o empreendedorismo de seu pai. Algo que, posto que não tinham um bom relacionamento, foi de grande importância para que J. enxergasse seu pai de outra forma e assim assumisse também para si elementos deste. Assim “(...) a autonomia se concretiza na inclusão do outro, no reconhecimento das diferenças que o sujeito pode apresentar (LIMA, 2005, p. 214) e no caso de J. também no reconhecimento de semelhanças com seu pai. J. segue contando como fora o tempo em que era dona da academia. Como sua amiga não tinha muito “jeito para o negócio”, J. comprou sua parte. “acabei comprando a parte dela e assim, tudo absolutamente independente, com meu esforço pessoal, eu nunca tive assim um centavo de ajuda e nem pedi, porque a situação da minha família não era uma situação assim de que pudesse me apoiar, então tudo muito, muito, muito da minha força de vontade, da minha 189 vontade de fazer as coisas darem certo. E... (pausa) então assim, eu posso dizer isso, que nesse sentido eu triunfei profissionalmente muito rápido, rápido não, foi um trabalho muito árduo, mas eu ainda era muito nova é... Então a coisa boa disso e a coisa ruim disso é que eu, ao mesmo tempo também pulei uma fase da minha vida que é a fase da adolescência dos 15, 20 anos, sabe, podia ter assim só estudado e eu já tinha muita responsabilidade, já tinha um agência, academia, já tinha um negócio pra cuidar, assim, já contratando gente eu já tinha uma coisa muito precoce nesse sentido.” J. pulou uma fase importante de sua vida, mas viveu-a ainda assim, em outro momento conforme nos contará. Este caminho foi feito durante os tempos de estudante, fase que se descobrirá militante. “Então eu não fiz a faculdade que queria fazer na verdade. Aí comecei a fazer primeiro jornalismo, uma coisa que eu achava mais próxima, comunicação social, fiz um ano e depois entendi que não era isso. Aí depois abriu comunicação social em uma Universidade que pra mim era mais próxima e eu me transferi, mas não tinha jornalismo ai fui pra publicidade e propaganda, também não me achei ai fui pra Relações Públicas e achei uma bobagem e (risos) aí me envolvi com o movimento estudantil e aí pronto, acabou né ?(sorri). Vivia no DA (diretório acadêmico) aí entrei pro partido a corrente política era comunista era o PC do B era clandestino na época, então era uma aventura (ênfase) fazia reuniões clandestinas e tal e eu me envolvi totalmente nessa coisa política e não ia mais em sala de aula e a melhor coisa que eu ouvi de um professor na vida (ênfase) foi é, ele fazendo avaliação, que eu tava matriculada ainda nesse curso de relações públicas, esse que eu achava uma bobagem é, ele fez uma avaliação da turma, aquela coisa que o professor faz no final do ano, avalia alguns alunos, fala fulano isso, aquilo, aí ele diz: a J. poderia ser uma aluna brilhante, se ela quisesse né, tem tudo pra isso mas ela tá muito mais interessada em fazer o movimento estudantil e fazer teatro não é isso? Eu falei é! Ele disse: Eu não sei o quê que você ainda está fazendo aqui que não está fazendo teatro e eu olhei pra ele, sabe aquela coisa, quando bate assim?” J. descobriu-se militante na faculdade e precisou ouvir uma dica de um professor para dar o próximo passo e tomar uma atitude. Assumir que a sala de aula não era o lugar que queria estar. “Eu tive uma atitude incrível, eu fechei meus livros e falei muito obrigada professor pela dica! E saí da sala de aula e nunca mais voltei! (risos) Nunca mais voltei!” J. continuou a integrar o movimento estudantil, mesmo fora da universidade, movimento que nomeia não mais como estudantil, mas sim político. J. é militantepolítica, mas isto ainda não lhe bastava. J. queria fazer outra faculdade, esta era a sua busca, conforme nos conta: 190 “(...) a faculdade que queria fazer era uma coisa que pra mim era um pouco frustrante que a faculdade que eu queria fazer era o teatro então, eu acho que essa fase de ser estudante de ir pra escola e tal eu acabei realizando mais tarde que ai, com 27 anos né que quando eu saí da faculdade, em paralelo tinha essa coisa da academia né eu tava ganhando dinheiro já, também, fazer a faculdade, naquela época também não fazia muita diferença é.” Ao revelar sobre a faculdade que realmente queria fazer surge também o Rio de Janeiro em seus planos. “(...) quando resolvi vir pro Rio, aí eu entro nessa coisa né, do que você é e do que você gostaria de ser (ênfase) então eu me encontrei num momento da minha vida, muito dividida, que eu gostaria de fazer teatro, queria ser atriz, era isso que eu queria ser (ênfase) eu queria trabalhar com arte, cultura, cinema, TV tal, queria essa vida e eu tava presa, numa estrutura que eu mesma construí né, e que eu construí porque era aquilo que eu tinha, foi a ferramenta que eu tive, foi o que aconteceu, que né, aconteceu na minha vida naquele momento, mas eu não me sentia é totalmente realizada assim, eu tava realizando o lado empreendedor que eu tenho, inerente (...).” Eis que do conflito nasce uma ideia que pode mudar o rumo da vida de J. ela, dividida entre a estrutura que construiu e o seu lado empreendedor, viu-se presa à tal estrutura quando tinha que fazer coisas que não gostava para mantê-la, ou seja, não era somente dar vazão a sua criatividade, havia o outro lado. “(...) eu botava toda a minha criatividade, fazia a luz do espetáculo, fazia os figurinos né tal, mas eu tinha uma academia pra tomar conta né... (muda o tom de voz, fala mais vagarosamente) eu tinha que falar com mães que tinham assuntos que não me interessavam né, sabe, falar de sei la, do que de assunto de mãe né, de criança, de sei La, escola, de tricô, assim, assuntos que eu não tinha o menor saco aquilo não era meu interesse né e ao mesmo tempo, era uma dicotomia porque eu tava bem financeiramente já né, pouquíssima idade, assim, com 24 anos já tava super bem e pra quem não tinha nada né, eu já tinha construído uma história, assim, sozinha, sem ajuda de ninguém então eu fiquei, ficava muito dividida e ai eu resolvi fazer um espetáculo!” Ao produzir o espetáculo, J. adiciona um outro elemento à empreendedora, somado com algo que já trazia de outrora a pequena-notável que interpretava “(...) eu produzi, chamei o diretor e fui a protagonista é claro (risos) é... (pausa). Montei a primeira peça profissional assim, no sentido de teatro profissional em (cidade em que vivia), que até então, tinha um movimento forte a gente fazia teatro, mas era teatro amador né, então uma estrutura profissional, eu consegui aprovar um dinheiro com a secretaria de cultura, chamei um diretor renomado, um cara que renomado pra ensaiar a gente, tinha um cenógrafo, um figurinista tinha uma estrutura profissional que eu produzi e fazia era uma atriz só e era um 191 texto de um dramaturgo (...) é uma trama complicadíssima era assim um negócio, pesado assim (ênfase).” J. obtém êxito, agora tem o prêmio de melhor atriz “Mas aí assim, com este espetáculo a gente fez temporada, em Porto Alegre, aí começou a aflorar mais essa coisa em mim, mas aí mesmo tempo, eu continuava com a academia, continuava montando, com todo gás, eu trabalhava de dia e fazia a temporada à noite e aí eu inscrevi o espetáculo em São Paulo, em São José do Rio Preto, que até hoje tem um festival grande de teatro a peça foi selecionada, nós fomos e nisso a gente ganhou o terceiro melhor espetáculo e eu ganhei o prêmio de melhor atriz, fui premiada, imagina, esse espetáculo, imagina nível nacional (pausa).” J. ganha o prêmio de melhor atriz e o espetáculo que ela produziu, também foi premiado. Lembrando que ela empreendeu e levou com sua criatividade todo o projeto sem ter estudado (ainda) na faculdade que almejava. A pequena-notável que sabe interpretar e empreendedora agora assume a atriz. E segue, pois o reconhecimento que obtém tem sentido especial, conforme veremos. “Aí foi quando eu voltei assim, aquele negócio tava muito forte e eu me lembro que um das pessoas do Júri era o C. muito conhecido, era um dramaturgo, diretor conceituado tudo, e ele, gostou de mim e perguntou o que você ainda tá fazendo em? (nome da cidade). E essa pergunta nunca mais saiu da minha cabeça, por que você não vem pra São Paulo, pro Rio, você é tão talentosa tal, podia tentar sua carreira de atriz.” Foi a pergunta que disparou uma mudança que já estava de certa forma embutida em J., apenas aguardando o momento adequado para se concretizar. Foi novamente como em outros momentos de sua história, parte de um reconhecimento que fez todo o sentido para a busca de J. “(...) aí eu voltei e ai viajei com a peça e de novo a peça ganhou prêmio, de novo ganhei como melhor atriz, realmente o espetáculo tudo bem, acho que sou talentosa, mas acho também que eu fiz um espetáculo que me colocou, é assim o personagem era muito bom né então não era tão difícil também ser notada então assim, recebi esses prêmios e ai assim, o resto do elenco eu queria continuar a fazer mais o espetáculo e aí um tava preso com a família (muda a voz) tinha filho pequeno, não podia viajar coisa e ai eu comecei a me sentir inadequada alí, sabe não tinha mais pra onde andar dalí sabe, mesmo tendo prêmio, tendo uma peça bacana.” Mesmo com ideias, reconhecimento e prêmio, J. não encontra espaço para crescer como quer. A solução foi mudar de cidade, algo semelhante ao que fora a 192 mudança da colônia para que as irmãs pudessem estudar, foi uma mudança em bosca de novas oportunidades. Mas desta vez, J. não teve tantos medos. “E aí começou essa história de querer vir embora pra morar no Rio foi essa coisa que me puxou. E eu me lembro muito claro assim de uma coisa que um dia pensei, olhei em volta e pensei assim, nisso eu tinha 25 anos, aí falei bom, ta tudo muito bom, tá tudo muito bem mas e aí? Eu tinha um namorado lá e tinha meu apartamento, tinha meu carro, tinha minha própria academia era independente, ia muito a Porto Alegre, fazer as coisas que queria, ver as peças que queria tal mas eu pensava assim e aí? O que vai ser? Vou acabar casando aqui, talvez um empresário... Industrial do calçado (ironia pois sua cidade é muito conhecida como a cidade do calçado) vou ter filhos né, e o teatro? E a coisa que mais quero fazer? Ficam onde? Né minha grande realização vai ficar onde? Ai eu pensava assim não quero ter 40 anos, me olhar no espelho e dizer: eu não tentei sabe? Não tentei fazer aquilo que eu quis fazer.” Estas reflexões mostram o conflito e também o preparo para o próximo passo. A pequena-notável que sabe interpretar-empreendedora-atriz fará algo que julga corajoso. A menina medrosa que também fora estranhíssima, agora é corajosa. “(...) fiz a coisa mais corajosa da minha vida assim, realmente você precisa ter muita corajem pra largar uma coisa quando ela tá bem né? Quando elas tão ruins (...) e eu larguei tudo, larguei tudo. Deixei a academia lá ainda um tempo sendo administrada por uma pessoa de minha confiança (...) e vim pro Rio, assim totalmente na cara e na coragem (...). ” J. nos explica que sua coragem nasceu por querer sair da zona de conforto. Para ser quem queria ser era necessário migrar. Aqui, claramente a identidade em construção constante pede movimento. “Logo ficou essa coisa inadequada do lugar onde eu tou e que lugar eu gostaria de estar é muito difícil tomar essa decisão porque aos olhos dos outros eu tava num lugar muito bom e não é que era ruim, mas não era exatamente aquilo que eu tava querendo na minha vida né, então abrir mão de uma coisa que eu construí com tanto sacrifício, tanta dificuldade e tal foi muito difícil (...).” J. nos fala que abrir mão de uma personagem constituída e reconhecida, como era seu caso, frente a tudo o que construiu objetivamente é uma tarefa difícil. E daí compreende-se porque julga ter sido a coisa mais corajosa que fez na vida. J. decide ir para o Rio onde tinha um amigo e se emociona ao contar que este, morava exatamente no mesmo prédio onde ela mora atualmente . Logo, sua primeira referência de Rio de Janeiro foi no lugar onde vive até hoje. “(...) ele morava no 193 apartamento aqui do lado, este prédio onde eu moro hoje é o lugar onde foi minha referência de Rio de Janeiro quando eu cheguei aqui!! Forte né? (suspiro)” Sobre o negócio no Rio Grande do Sul, conta que depois de muitas idas e vindas, sem sua participação ativa veio a falir. Algo que ao contrário do que se pensa, mesmo que tenha deixado J. sem as condições econômicas as quais era acostumada, a deixou de alguma forma livre. J. viveria o que há tempos queria viver. Tornar-se-ia estudante-deteatro na Universidade. J. sabe que escolher uma coisa é também abrir mão de outra e ter consciência disto torna a perda algo “bom” fruto de uma escolha sua, à propósito de um projeto de vida. “De um negócio que era uma ótima coisa, acabou... Enfim... Se desfez e aí foi muito bom, quer dizer, foi muito bom não (risos) foi triste teve uma coisa positiva nisso que ai, quando eu vim pro Rio eu comecei a viver a vida que eu queria viver! Ai eu fui fazer a faculdade de teatro que eu tanto quis fazer e que eu não tinha como fazer quando eu tinha 18 ai eu fiz o vestibular, tudo direitinho, passei na Federal, entrei na Unirio que é uma das melhores escolas de teatro que tem no Rio, fiz a escola 4 anos e aí era isso, ai eu já não tinha mais 18 anos, entende? Ai eu já tinha 28 já era outra cabeça e aí eu já tinha meu carro, eu já tinha, é, não é que eu tivesse dinheiro, mas eu já tinha uma posição mais confortável um pouco, a academia ainda me rendia um pouco e dava pra me manter então podia estudar de dia né, ai eu ia pra escola, sabe? Então acho que vivi tardiamente esta fase, mas eu não deixei de viver, essa meu período de estudante eu tive e isso foi muito legal, eu vive, dessa coisa que eu quis viver e claro, produzindo, trabalhando e tal, na hora do intervalo, eu me lembro assim, eu pegava o orelhão, ainda tinha assim ficha né, eu ia pro orelhão trabalhar, fazer contatos, produzir é, fazer coisas também porque eu tinha que me manter né. Aí eu comecei a fazer produção de show, música, eventos, eu fazia muita coisa assim.” Desponta da necessidade econômica a produtora. J. justifica que no seu caso, a necessidade econômica não a abalava, ao contrário. “Mas aí a coisa era essa, assim. A felicidade de estar fazendo aquela coisa que eu queria sabe, é tão legal, isso é realmente não tem preço, você fazer aquilo que você quer fazer, que você gosta de fazer. Aí foi um período maravilhoso que eu vivi, assim, dura (ênfase) a diferença né, de padrão de vida era absurda, porque lá já tava num padrão de vida super legal, aqui pegava ônibus, coisa que não fazia mais, pegava ônibus, contava dinheiro, se dava pra comer na universidade ou não, essa coisa de estudante, só que eu vivi isso numa fase onde eu já tinha vivido outra coisa antes então foi bem estranho assim, mas tudo eu achava divertido, eu achava novo, foi um período muito legal, esses quatro anos.” “(...) me formei já com 32 (...), mas isso eu já comecei a trabalhar antes com teatro, fiz espetáculos por aqui, fiz televisão, é fiz muitas coisa como atriz, mas também, entendi logo, talvez por essa coisa, isso, engraçado, a gente vai falando e 194 vai pensando também, agora, pensando aqui junto, talvez até por isso, porque eu nunca tive esse temperamento de ficar pedindo (fala pausadamente) eu detesto pedir as coisas pra alguém, detesto ter que ficar correndo atrás, me humilhando pra alguma coisa (...) né esse caminho que o ator tem que seguir as vezes sabe, de ficar ali numa fila, fazendo testes, pedindo pelo amor de deus por uma vaguinha, tendo que usar mecanismos de sedução (...) isso nunca rolou comigo, eu nunca tive estômago pra isso, eu nunca consegui entrar nesse esquema, não tinha como, não dava!” Da J. produtora, à vontade de ser atriz de cinema, perpassando um momento difícil na política brasileira; “Aí depois é, (...) e continuei atuando e aí o cinema, é sempre foi muito, eu sempre gostei muito, sempre gostei muito de cinema e eu me via mais no cinema engraçado, tinha vontade de ser atriz de cinema! E olha como as coisas são eu cheguei em 91 e em 92 acabou o ministério da cultura, que foram os anos duros do governo Collor, (...) em 91 ele acabou com o ministério da cultura com a Câmara filme, acabou com tudo, não tinha mais produção de cinema no Brasil e foi justo na época que cheguei é, e depois começou a retomar.” Devido ao momento que o cinema se encontrava, uma saída para ainda estar próxima deste foi trabalhar na distribuição de filmes. J., depois passa para a produção e se identifica “(...) comecei a mudar um pouco o meu pensamento, ao invés de ser a atriz do filme comecei a pensar em fazer um filme.” J. produtora pensava em fazer um filme, mas este não seria um filme qualquer, como nos conta sobre a forma que sua ideia tomou. “E aí sempre eu pensava no que falar e aí essa coisa, que eu própria vivia que assim, isso é uma coisa que ficou muito forte pra mim (pausa) no Rio, essa questão da, da cultura alemã e da cultura brasileira, porque no Rio Grande do Sul, tudo bem, eu morava em (nome da cidade) né, não morava mais na colônia, tava relacionada com o mundo, mas é uma cidade germânica né, (...) é uma cultura ainda né, muito a forma como as pessoas fazem as coisas, a rigidez, o ritmo, a coisa muito dedicada ao trabalho, tem muitos aspectos da Cultura alemã ali né, nesse lugar e tinha um negócio que pra mim era muito opressor e eu acho que isso é do alemão sabe?” Talvez produzir um filme fosse dar vazão ao lugar de onde veio, libertá-la dos resquícios da opressão sendo autora da própria história, literalmente. “Tinha um negócio opressor assim (ênfase na voz), tinha uma coisa que parecia que tinha uma redoma ali negócio que me segurava assim, que não me deixava dar vazão (pausa) pra pessoa que eu era na verdade, entende assim, com toda a minha criatividade (ênfase) com todo o meu fluxo, pra minha doidera, pra minha 195 maluquice é, eu me sentia um pouco presa ali, naquela sociedade, naquela coisa formatada sabe?” “(...) uma coisa que sentia era necessidade de me expressar. (...) meu mote foi a expressão artística de também dizer a pessoa que sou expressar artisticamente todas essas coisas que estão dentro de mim botar isso no trabalho. (...) essa pessoa sou eu, que tem essa capacidade, que tem esse olhar, essa delicadeza, essa sutileza, essa poesia, isso tudo sou eu então, e talvez, ai talvez voltando naquilo tudo que a gente falou, talvez essa rigidez, da cultura não permitisse muito que as pessoas vissem isso, sabe?” Fazer um filme era ao mesmo tempo, expressão de sua arte e mostrar si mesma, seu lugar, dando sentido para quem é hoje; há que se ter coragem para tanto, mas a corajosa já é personagem existente há algum tempo. “(...) tem que ter coragem, pra falar da minha história, falar das minhas coisas, mostrar o meu lugar, é uma exposição né também você tá contanto tua vida ali, embora eu conduzi as coisas de uma maneira que eu que é legal, é sutil, eu não me coloco na primeira pessoa mas eu to ali totalmente assim, em várias coisas, (...) achar o seu lugar, dessa coisa(...) de como você se sente, falando de uma língua que não é a sua língua, do seu país, do se sentir uma pessoa desligada de tudo porque na verdade você não é uma pessoa e nem outra e eu me senti assim né, por muito tempo(...). Uma coisa que me deixou assim, inadequada, em situações por muito tempo da minha vida assim é, a pessoa que eu sou e como as pessoas me veem, as pessoas me veem muito mais dura do que sou, na verdade, entende? Não sei se mais dura, mas isso né, germânica, alemã, rígida, organizada, metódica né, eu tenho isso tudo dentro de mim, mas não só isso, eu sou outra pessoa também, misturada com isso tudo e eu acho que o filme, me permitiu me mostrar dessa maneira.” Para sair do que denomina “coisa formatada” o Rio de Janeiro foi o grande contraste que lhe apresentou outro modo de vida, outro modo de ser, mas também outra forma de se reconhecer, conforme J. nos contará mais adiante. J. tornou-se livre no Rio de Janeiro. “Liberdade de ser” “(...) e aí o Rio foi uma libertação (ênfase) assim sabe, foi tão bom pra mim pessoalmente, essa coisa de ser livre no Rio eu entendi o que é ser livre que é uma coisa que pra mim é muito importante, eu sou uma pessoa livre, gosto disso (ênfase) gosto de ter liberdade, não sei ficar presa né, às coisas. Isso já era um componente da minha personalidade lá com 15 anos, quando né, eu não queria, quando perguntavam o que que você quer ser profissionalmente e eu dizia alguma coisa onde eu não tenha chefe (risos) pausa, qualquer coisa onde não tenha ninguém que me diga o que que tenha que fazer (risos). Só que aqui eu podia exercitar isso então essa liberdade do RJ, onde você é o que você é, onde ninguém tá nem aí, entendeu? Pode, se você quiser sair e pegar um ônibus de biquíni ninguém vai nem se importar, se você é gordo, se você é magra, se você é feia, se você é bonita, né, você tem essa liberdade de ser né, acho que o Rio foi isso foi 196 muito importante isso eu, eu entendi muito claramente eu me sentia muito bem aqui, realmente sempre me senti muito bem no Rio e ai eu acho que a coisa da cultura alemã aqui pra mim começou a ficar muito mais evidente.” Conforme já mencionado no capítulo 2 deste trabalho, é no contato com o outro diferente, que muitas vezes ressaltam-se questões pessoais até então desconhecidas. Neste caso, J. renasce mais uma vez, quando dá vazão ao personagem livre que sempre buscou, algo que de fato lhe ficou claro ao perceber o modo “opressor” que vivia. “Porque aí eu via muito assim, mas você é muito alemã, mas você é muito gaúcha, e ai eu comecei a pensar, mas o que é ser muito gaúcha? O meu comportamento era diferenciado da maioria das pessoas né, então essa coisa, era uma coisa de me sentir, é... Eu tive por muito tempo eu me senti uma pessoa dividida, eu tinha realmente eu tinha uma sensação de divisão eu queria tar aqui, mas eu queria tar lá, eu tinha uma ligação, tenho até hoje uma ligação muito forte com o Rio Grande do Sul é, mas ao mesmo tempo me atraía muito por essa cultura brasileira (ênfase) que genuinamente é brasileira e que (...) não é a cultura do Rio Grande do Sul essa coisa mais genuína, mais malevolente, da permissividade sabe, de você se permitir as coisas né que é muito diferente dessa rigidez que a gente tem da cultura alemã, que claro que talvez naquele momento eu não entendesse assim, que eu fui entender depois, fui entender também muito quando eu fui morar em Berlim.” No Rio de Janeiro J. sente poder ser livre, ou permite-se assim sê-lo. Difere aqui da vivência da rigidez que paralisa, quando coloca que a cultura não permite certas coisas. “Mas é, por exemplo, essa coisa que o carioca tem muito de, ou os que moram no Rio, não precisam ser os cariocas de fazer a coisa que você tem vontade, sabe? E de não ter tanto pudor em deixar alguém esperando, em desmarcar alguma coisa, em não ir a uma coisa, furar com alguém. Isso é pra mim uma coisa inconcebível (ênfase), eu não conseguiria nunca fazer isso, porque minha cultura não permite, sabe?” Tanta liberdade, contudo, também lhe causou estranhamento e a adaptação foi necessária. “Então no início claro, eu ficava muito chateada quando as pessoas faziam isso comigo, eu ficava puta né, como marcou um negócio, nem me avisou e não aparece, como assim? Né? Ficava muito brava. Mas depois eu fui entender você aqui né, vamos ver, hoje é sábado eu marcar de na terça feira jantar na sua casa né, pra alemão isso ta marcado e não importa se na terça-feira ele acordar com dor de dente, indisposto, tá marcado ele vai no tal do jantar porque tá marcado. O carioca tem essa possibilidade de acordar na terça-feira sem vontade de ir neste jantar, entende? (...) e isso me irritava muito mas depois eu comecei a entender a 197 liberdade que tem nisso de você fazer o que você quer e de poder fazer isso e a pessoa não ficar brava com você porque você fez isso, porque se eu fizesse isso no Rio Grande do Sul ou na Alemanha, as pessoas iam ficar muito bravas comigo né, ou não iam me aceitar direito, iam me criticar, por tar fazendo uma coisa que não é legal, marcar uma coisa e deixar de ir.” J. vive a liberdade de ser quem quer ser e das pessoas não ficarem bravas por isto. Dá para ser sinuoso também no que J. aprende a “conjugar as duas coisas.” “E aí eu comecei a perceber os dois lados disso, eu não defendo isso tá, eu sou uma pessoa que até hoje eu tenho comigo essa cultura alemã né, muito presente, não é nem uma cultura alemã como eu te falei a gente tá muito distante da Alemanha, mas tem traços da cultura que tão muito enraizadas em mim, na minha família a gente é muito responsável, a gente faz as coisas de uma maneira muito organizada tem um metro quadrado né, tem uma coisa métrica no jeito de ser, mas eu descobri essa coisa sinuosa do Rio, assim do jeito de ser e eu acho que hoje eu consigo conjugar as duas coisas, o que eu acho que é perfeito que você nem é uma pessoa totalmente desleixada, mas você também não é uma pessoa totalmente rígida. Esse meio termo eu acho que eu, não sei se eu já alcancei ele como eu gostaria, mas eu acho que já tô bem mais perto (Risos) do que quando eu cheguei por exemplo(...)” Ser sinuoso é permitir novos caminhos que a “coisa métrica” cerceia. Mas o novo ainda a desafia... “Eu me sentia é uma estrangeira, por muito tempo aqui no Rio, me sentia uma pessoa de outro mundo, de uma outra cultura de outros valores mas talvez também porque eu fui pra esse universo da arte, do teatro, da música do cinema onde as pessoas também são livres, talvez se eu tivesse ido pra uma área um pouco mais burocrática talvez não tivesse sentido tanto essa diferença, mas como eu fui cair justamente numa outra coisa, então essa coisa da cultura alemã que a gente tem é ela fica mais evidenciada, bem mais evidenciada.” A cultura alemã fica mais evidenciada quando se está em um lugar onde é permitido ser livre. Ou seja, o tom opressor desta cultura só é de fato percebido quando se está em um lugar cuja cultura é totalmente diferente. Contudo, viver esta transição não é fácil e mesmo integrada ao universo artístico, J. sentiu-se como uma estrangeira no Rio. “Então assim eu tive é situações de ser chamada assim e das pessoas dizerem olha a gente gosta muito de você, do seu trabalho, você é muito competente agora você precisa ser menos gaúcha! E ser menos gaúcha, no meu entendimento, era ser menos alemã, né porque ah, porque você é muito do jeito que você fala as coisas, da forma muito incisiva né a forma de dizer às vezes parece que tá dando uma ordem né, na verdade, você ta só você tá pedindo, mas o jeito de pedir é como se 198 estivesse dando uma ordem é o jeito de falar, não é o que tem por trás disso, o jeito de se manifestar é assusta as pessoas, as pessoas não gostam disso, então eu tive um tempo que eu tive bastante dificuldade em alguns momentos, no trabalho, por essa coisa um pouco mais imperativa no jeito de ser, querer que funcione (...).” Ainda que o jeito imperativo de ser lhe tenha trazido algumas dificuldades, compreende que a competência apreendida da cultura germânica foi importante. “(...) uma coisa que eu descobri também, que eu acho que é muito legal é que a gente tem um valor é que os alemães e a cultura germânica imputa a competência né, você ser competente é muito importante, você tem que ser competente (ênfase) é eu acho também eu sou uma pessoa que eu acho que sou competente eu gosto das coisas bem feitas, não gosto de fazer mais ou menos(...), por exemplo só que aqui isso não é tudo, entende? Então não basta você ser competente então se você não tiver um jogo de cintura se você não tiver uma flexibilidade, você não vai, pode botar, pode mandar a tua competência pra onde você quiser, pode sentar em cima dela e ficar sentado em cima dela que você não vai pra lugar nenhum (ênfase) não adianta só isso, não adianta só você ter essa coisa. Tem que ter essa maleabilidade, essa flexibilidade né isso eu acho que o Rio me ajudou muito assim, acho que eu me tornei uma pessoa melhor(...)” Assim J. é competente e também maleável, no Rio de Janeiro entendeu que poderia unir as coisas. Ser mais flexível é uma prerrogativa para viver no Rio de Janeiro e para alguém que foi socializado em uma cultura “opressora”, tal contraste poderia ter dois caminhos: Dar errado ou dar certo, desde que J. se adequasse, ou melhor, flexibilizasse! Deixemos que ela nos conte como se deu tal flexibilização: “(...) às vezes eu ainda perco um pouco, eu me confundo, sabe, eu falo isso assim, como diz uma amiga(...) tá você tá agora aí, tomando um uisquinho no ar condicionado ligado tudo bem, agora, quando você tá no olho do furacão quero ver você ter essa clareza né, quando você tá no meio da coisa, você não consegue né? Porque às vezes isso ainda eu ainda perco as estribeiras, ainda boto os pés pelas mãos, ainda me confundo, mas tenho isso claro isso na minha cabeça, acho que essa clareza é importante, tenho claro que não basta você ser competente então assim, hoje eu administro tentando isso, tentando entender um pouco que o modo do lugar que funciona de outra maneira que eu gostando ou não, esse lugar funciona assim que se eu ficar ali querendo impor a minha vontade eu só vou me dar mal, porque eu sou minoria nisso, é assim é uma coisa que os paulistas me perguntam sempre como é que você aguenta o Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro é um lugar que não da pra trabalhar né, (...) você não consegue combinar nada com ninguém e ai eu fico pensando é, realmente, é difícil né, isso me incomoda também, não vou dizer que eu acho isso uma coisa boa, (...) aqui (Rio de Janeiro) você nunca consegue contar com nada, não consegue, mas ai eu acho que é o entendimento de que não existe um bom e um ruim, não existe um certo e um 199 errado existem formas das pessoas levarem as coisas e aqui as pessoas levam as coisas assim, elas não deixam de trabalhar, de ganhar dinheiro, não deixam de fazer suas coisas eu acho que a grande forma de aprendizado é você olhar pra uma outra forma de organização e mesmo que você ache que ela não tá correta, porque não é como você gostaria que fosse mas ela é, sabe é você ter a maturidade né, de se integrar a isso, e não querer mudá-la e não querer achar que ela vai funcionar de uma outra maneira porque você não é assim.” J. nos ensina que não se deve impor as próprias vontades e é possível aprender com o que está a sua volta, fazendo uso de um método pessoal criado de acordo com as experiências vividas. J. procura adequar o que apreendeu da cultura germânica à cultura do Rio de Janeiro de modo a integrar ambas como partes de si. “Então o que eu te diria hoje, a minha, o meu método, a minha organização pessoal, a forma como eu trabalho é um diferencial, então eu acho que isso me agrega valor na verdade, as pessoas, por exemplo, me contratam pra um trabalho é em geral gostam muito porque elas ficam tranquilas, elas sabem que eu não vou atrasar, eu não perdi isso né, eu não perdi (...) então o que eu te diria hoje, a minha, o meu método, a minha organização pessoal, a forma como eu trabalho é um diferencial, então eu acho que isso me agrega valor na verdade, as pessoas, por exemplo, me contratam pra um trabalho é em geral gostam muito porque elas ficam tranquilas, elas sabem que eu não vou atrasar, eu não perdi isso, né, eu não perdi a minha responsabilidade com as coisas, não perdi minha pontualidade, mas eu sei que estou me relacionando num meio que não é assim, então eu tenho que ter uma atenção redobrada, muito mais trabalho do que eu teria numa outra sociedade onde as coisas funcionam métricamente né é... É chato? É... Eu fico brava, chata, eu xingo, mando todo mundo a merda, assim tem esses momentos também, mas eu entendo que a sociedade aqui sob essa forma mas também entendo que também tem vantagens nisso e pra mim, particularmente,(...) esse traço eu já tenho eu já sou uma pessoa organizada, metódica, eu já tenho tudo isso, eu não preciso mais isso na minha vida, isso tudo eu já tenho dentro de mim que que eu preciso eu preciso conseguir quebrar isso um pouco, pra ser uma pessoa mais flexível e isso essa cidade, essa cultura me traz, entende?” “(...) essa coisa cultural introjetada, que você tem desde pequena com você, você não, eu acho que essa coisa cultural ela é muito forte assim, acho difícil você romper, né, você traz um traço né, acho que você pode ir moldando ir flexibilizando, relativizar um pouco as coisas, acho que é isso, você relativiza mais as coisas né, com outras culturas, quando você começa a ter contato com outras culturas você fica impregnado é se você for uma pessoa, lógico, né, porque você pode vir pro Rio e nunca mudar o seu jeito de vida, mas se você quiser né, deixar se impregnar do lugar onde você tá, quiser também absorver essa cultura acho que você vai, você vai trazendo ela pra dentro né, mas teu eixo, tua estrutura ela se mantém, eu acho.” O Rio lhe trouxe a sinuosidade que precisava para ser livre. É uma forma de se equilibrar, de dar espaço à J. empreendedora-produtora, que também buscava ser 200 livre! Liberdade conquistada pela ação e pela integração das personagens que J. possui em si e daquelas que no novo contexto construirá, porque as estimula, permite que existam. “Eu vivi isso assim, além de ter saído do Sul e vindo pro Rio, depois eu ainda fui morar em Berlim e tudo bem, foram três meses, mas lá eu entendi melhor, eu entendi o seguinte: eu acho que isso é a grande questão, é o seguinte a organização, a forma de vida dos alemães não tem espaço o improviso, isso é fatal, isso é terrível eles não tem espaço pro improviso! (ênfase) E o improviso é o frescor das coisas é alguma coisa poder acontecer diferente daquilo que tá planejado. É tudo essa frase é tudo, eles não tem espaço pro improviso e a gente tem muito improviso e o improviso tem esse frescor, tem essa novidade, essa coisa de você poder ser surpreendido você acha que a coisa vai por ali mas não vai, é uma outra coisa que vai acontecer, você começou a coisa de um jeito mas aí alguém te jogou pra outra coisa e você foi pra outra coisa, entende? Quebrar o protocolo e a outra coisa acabou sendo muito mais legal do que aquilo que você tinha imaginado, então esse espaço do improviso que eu acho que te diz tudo(...).” “(...) nos primeiros tempos que eu tava em Berlim eu ficava muito bem impressionada, pensava nossa, mas que coisa, que maravilha, eu posso organizar, dizer bom, eu vou sair de casa 10 pras 8, e às 8 horas e 3 vai chegar o ônibus e chega mesmo! (ênfase) não é balela não, tu fica encantada com aquilo né tal, nos primeiros momentos né, só que tudo traz uma coisa reboque, isso é bom? É bom, você poder se organizar, agora, por outro lado aí tem uma coisa meio estabelecida, tem um protocolo de um dia inteiro já organizado, traçado, esquadrinhado que ninguém sai daquilo, as pessoas, parece que têm uma força oculta externa que aprisiona as pessoas naquilo alí e que elas mesmas construíram aquilo pra elas, elas que se organizaram desta forma né e quando você quebra elas ficam, elas ficam desestruturadas, porque elas precisam daquilo alí ela não desenvolveu internamente uma capacidade de lidar com o inesperado, eu acho que é isso, os alemães se protegem muito neste sentido, então você fica muito protegido naquilo ali, aquilo tá planejado e tal, uma variávelzinha aqui outra ali, mas você tá seguro ali naquele esquema que você traçou, você tá numa zona alí que tá tudo, tá tudo sob seu controle se alguma coisa te tira daquilo alí tu perde o controle e aí eu acho que é uma coisa que os alemães, é muito difícil essa coisa de não ter o controle né da gente ser levado (...) eles (alemães) não conseguem quebrar essas regras só que quando você tá lá é mais difícil, porque aí, de novo você tá no país deles, você tá num país que se organiza assim, você ser uma pessoa diferente disso não é tão fácil lá.” “Isso mais ou menos me irritava na Alemanha até aqui pode mas passou daí não pode, mas por quê que não pode? Eu questionava e aí era assim porque não pode, porque é regra e regra não é pra ser questionada né e eu sempre falava isso lá, se pudesse juntar o jeitinho brasileiro com o rigor alemão seria lindo entendeu? Seria uma mistura perfeita, mas a gente pode fazer isso na nossa vida! A gente pode! 201 Ora, mas não era o controle o que outrora motivara J. a ser sóciaempreendedora? Percebe-se um salto, arriscamo-nos chamar de fragmento de emancipação, o modo como J. atua e percebe o mundo, bem como, seu lugar neste. Se foi estrangeira no Rio de Janeiro e aprendeu a ser sinuosa, J. em sua flexibilidade foi igualmente estrangeira em Berlim. Local onde sua cultura “métrica” é aceita. O que isto revela? J. demonstra o salto dado em sua vivência, demonstra autonomia quando consegue produzir crítica sobre os diferentes modos de vida, bem como, reflete o seu modo de agir adequando-se às situações. Logo, ser estrangeiro no Rio de Janeiro ou em Berlim abriu portas para que J. se reconhecesse em ambos lugares, ao mesmo tempo em que viu despontar-se sua singularidade. J. tem assim a oportunidade de mudar e a medida em que muda é cada vez mais si mesma. “(...) eu amei, eu amei Berlim eu acho que seria a cidade que eu elegeria pra viver, acho que se não morasse no Rio seria Berlim, duas cidades pra mim que são incríveis. Eu adorei, me senti muito bem todo tempo. E ai eu senti também uma coisa que eu acho que é curioso acho que foi a primeira vez, depois que sai do Rio Grande do Sul onde me senti uma igual, uma comum sabe? Nos sentido mais do externo, assim, de não ser tratada como turista como gringa, como estrangeira, eu era uma alemã, pra eles, até que eu falasse... Né meu comportamento denotasse, mas assim, era normal, então me senti igual, ao mesmo tempo e também (muda tom de voz) senti uma coisa de traço isso não sei te expressar por palavras, mas tinha uma coisa de me achar também alí entende? Também a cultura, ai batia também com as minhas coisas né, da minha formação e aquilo tava alí, funcionando e dando certo é, é como se eu dissesse assim, tudo o que eu aprendi, como uma coisa mais correta, né no Rio eu tive meio que esquecer, ou no mínimo me adaptar a outra coisa e em Berlim aquilo tudo é isso mesmo, entendeu? Isso é valorizado, é bacana, você ter horário, né você ser assertivo nas coisas, você ser organizado isso é muito bem visto e aqui é assim, as pessoas ah, tudo bem elas acham bacana que você tem isso, mas não é o mais importante então os teus traços, aqui eu praticamente precisei descobrir outras coisas importantes.(...) então o Rio é uma cidade que te trás outras coisas né, então, por um lado como eu te disse, pra mim foi importante, porque quebrou muitas coisas e me tornou uma pessoa mais maleável eu acho que hoje sou uma pessoa muito menos influenciada pela cultura alemã né, como era quando cheguei no Rio.” J. mais-maleável mesmo “sendo estrangeira” nos ensina que devido à maleabilidade aprendida no Rio de Janeiro pode ser assim em qualquer outro lugar que estiver. Pode sentir-se em casa, não importando se no Rio de Janeiro, ou em Berlim. J. maleável pode ser também pragmática, quando expõe em que a descendência alemã a afeta. 202 “(...) eu acho que pra voltar no que me perguntou, no que que a cultura alemã me afeta, o fato de morar numa cidade que é tão diversa, tão diferente e ter essa cultura germânica me afeta nas relações um pouco, as pessoas que me conhecem bem, que são meus amigos de fato é que tão muito próximos de mim, elas brincam agora quem não me conhece muito, às vezes me gera dificuldade, no sentido de me acharem autoritária, me acharem é o jeito, sempre é o jeito, o jeito de falar as coisas, sempre muito imperativa é como se eu não tivesse pedindo, mas mandando e acho que essa coisa também pragmática sabe, a gente é muito pragmático e eu acho isso bom eu não acho isso ruim, mas isso bate um pouco estranho, porque é, da uma certa, as vezes da um entendimento de frieza, então você é uma pessoa fria, você não é uma pessoa fria! Eu trabalho hoje(...) muito próxima a dois cariocas, duas pessoas daqui, um é absolutamente carioca, o outro é um pouco, assim tem um pézinho meio fora, assim mas, toda hora eu ouço isso, quando ele quer dar uma sacaneada me chama de “Fraulein”(senhorita) ou diz assim mas é a J , alemã né ? Você queria o que de uma alemã? Eu eu não sou alemã! (ênfase) que raio de ser alemã, não sou alemã, mas sabe toda hora tem um componente e eu acho que uma coisas também que eu te diria, que eu gosto muito dos alemães nesse sentido e eu tenho isso em mim é a gente tem uma noção da individualidade, que eu acho que o brasileiro não tem muito sabe? Do indivíduo, você é um indivíduo, seu jeito, você tem um jeito de perceber as coisas, é uma fragmentação assim de entender as coisas e de perceber que isso me toca e não me toca, se isso não me toca, isso não me diz respeito eu não tenho nada a ver com isso (...).” Em J. existem várias maneiras de ser, conforme o local onde está é de outra maneira e em todos estes é ela mesma. Assim, pode ser alemã no Rio de Janeiro e carioca, quando visita seus parentes no Rio Grande do Sul. Em Berlim é brasileira e não é gringa, algo que acontece no Brasil, onde é gringa. J. é diversa e múltipla, também para sua família que permaneceu no Rio Grande do Sul: “Qualquer coisa que acontece de estranho, ah mas tava esperando o que é a tia J. né? Então tenho fama de atrasada, não cumprir os compromissos direito e olha que aqui, eu tenho fama de ser pouco brasileira, ser pouco carioca, porque sou rigorosa com horários, pontualidade, com as coisas, e lá minha família, eu sou a carioca, porque eles, minhas irmãs tem o mesmo tipo de comportamento, os horários, assim, a vida toda muito esquadrinhada né, não tem espaço muito pro improviso, tudo muito esquadrinhadinho90, o dia-a-dia delas, a rotina tudo, os trabalhos, os horários, e quando elas vêm pro Rio ficam muito perdidas, por exemplo, eu almoço quando tenho fome, posso almoçar à uma, às duas, quando tenho fome, tem dias que acordo mais cedo, tomo café mais cedo e tal e gosto de ter a oportunidade de quebrar isso e quando vou pra lá é muito assim, o almoço é 90 “(...) disso eu consegui me livrar, que é da cultura germânica, da coisa do sofrimento das coisas, pra elas terem valor elas tem que ser sofridas, você tem que ter dado seu sangue, só tem valor aquilo que é muito suado, é o prazer a coisa do prazer ta muito distante dos valores. (...) Acho que essa coisa do prazer é muito né... E isso eu descobri na minha vida muito cedo, eu quero ter prazer no que eu faço né” J. sobre o prazer nas coisas, sobre o livrar-se do sofrimento embutido nesta cultura. 203 meio dia, não importa e eu digo, mas gente hoje é domingo, a gente podia almoçar mais tarde... Não não, horário é horário, sabe? Então eles continuam levando esse ritmo de vida, muito assim, às vezes marcam as coisas comigo e eu fico meio brava, eles marcam as coisas mais cedo comigo porque acham que eu vou me atrasar! Aí chego na hora e eles chegaram antes! (...) a gente marcou contigo né... Porque se tu te atrasas (risos). Então é curioso, mas eles têm assim essa coisa.” J. diversa91 ao retornar a sua cidadezinha, sua colônia, sente-se confortável está entre os seus. Talvez sua diversidade caiba muito bem no lugar de onde veio92, J. se constituiu assim em sua imaginação permitida pela forma de organização deste lugar. “(...) quando eu volto pra (colônia onde morava) eu encontro uma coisa ali que eu gosto muito também sabe, que é da cultura alemã também e assim, é uma coisa dividida, sabe? Eu gosto também daquilo ali, eu gosto de saber que as pessoas te convidam pra alguma coisa, eles se preparam, elas se organizam pra te receber e você chega e tudo tá ali, conforme foi combinado sabe? Isso também me dá um conforto, ao mesmo tempo, eu gosto. E eu me sinto no meio dos meus, me sinto muito, muito bem lá, tô muito mais no meio dos meus do que aqui e aqui, eu me sinto bem por outra razão, pela possibilidade, pela liberdade, possibilidade, por fazer porque quero, por não ter vínculos com muitas coisas tal, mas assim a coisa interna mesmo, do teu lugar assim, lugar que é mais parecido comigo, acho que é mais lá, eu não rompi com essas coisas93acho que com isso, a gente não rompe na verdade, sabe?” 91 A diversidade de J. pode também ser explicada pelo aprendizado que teve com sua mãe: “(...) então ela nunca, mesmo as minhas escolhas do teatro, as peças que eu quis fazer, minhas maluquices do teatro que eu inventava, ela nunca fez nenhuma objeção. E isso não tem nada a ver com cultura, valor, sociedade porque ela era uma pessoa totalmente simples. Eu sempre digo assim a informação é uma coisa e o conhecimento é outra. Ela não tinha informação, mas tinha muito conhecimento, conhecimento de coisas muito lindas assim, das plantas, da vida, da simplicidade das coisas.” 92 “(...) de fato acho que consegui ao longo do tempo um equilíbrio salutar. Eu sei que tenho estas coisas dentro de mim, quando eu preciso delas eu busco elas, porque elas também são importantes, se eu não tivesse essa disciplina toda que eu tenho eu não teria feito o filme que fiz se não tivesse a persistência (fala o nome da cidade de onde veio) que este lugar me trouxe, que esse modo de vida, essa vida dura, que as pessoas quando elas querem alguma coisa é tudo difícil, a gente aprendeu isso desde muito cedo né a viver com dificuldade né, então isso me dá muita força pra seguir com as coisas. Eu tenho certeza disso, a minha força, minha determinação de levar as coisas até o final vem muito disso e vem muito da cultura alemã que é não largue as coisas pelo caminho.” J. sobre de onde vem sua força- do lugar de onde veio que a possibilitou também ser diversa. 93 Neste momento J. cita Tolstói em alusão ao que sente: “É isso eu acho que aquela coisa do Tolstói (...) eu sempre pensei isso e sempre falei isso sabe, então acho que é isso queres ser universal fala da tua aldeia né é muito isso quando você fala de você mesma, quando você consegue falar de você, você compartilha isso com as outras pessoas e rola uma identificação(...).” 204 J. entende que é quem é por ter vindo de onde veio. Por este lugar ter lhe dado condições para criar uma nova forma de vida (via imaginação primeiramente) e ao mesmo tempo, ter continuado sendo seu lugar, seu refúgio. “Acho importante dizer que essa coisa (se reporta a sua criação na colônia) é que me permitiu viver no Rio, ora com alguém, ora sozinha, solitária né cercada de gente mas também muito assim, de vir me fazendo essa pergunta de o que que to fazendo aqui? (sobre estar no Rio) eu me fiz muito essa pergunta e hoje já não faço mais, hoje tenho claro o que que to fazendo mas muitas vezes eu me fiz essa pergunta, nossa o que to fazendo aqui nessa cidade, aqui sozinha, minha família toda lá meu amigos, as relações mais profundas(...), mas uma coisa que acho que foi muito bacana foi ter nascido nesse lugar(colônia) e ter tido a possibilidade de convívio com essas pessoas que também são as minhas pessoas, também é minha tribo, meu time, minha família que ta lá é, me dá um alimento assim de alma, muito bom sabe, aí as vezes eu olho tudo assim sabe e digo nossa bobagem isso a pessoa tar estressada quando o computador não funciona, bobagem a pessoa tar aqui querendo se matar porque perdeu não sei o quê sabe, a vida é muito mais do que isso acho que essa relativização das coisas é muito importante e eu sou muito agradecida de ter isso, isso meu namorado fala mas eu não sou da colônia, pra você as coisas são diferentes! (risos).” O namorado de J. expressa algo que a define. É diferente por ter crescido na colônia, vê o mundo e agrega a este outros valores, outros modos de ser à sua maneira à medida que é. J. singular. Após horas de conversa, J. reflete sobre as coisas que nos contou e busca de alguma forma sintetizar onde chegou, como chegou e quem é hoje... “Eu acho que consigo simplificar um pouco e às vezes entra um pouco a questão do pragmatismo assim um pouco, isso me ajuda. E a arte ajuda... Como isso surgiu eu não sei, como eu me tornei essa pessoa, como a arte entrou na minha vida né e me fez, e foi tão forte ao ponto de me fazer mudar de vida, porque eu mudei de vida isso, eu fui atrás do meu sonho, das coisas que eu queria fazer artisticamente né, então é, como isso se desenvolveu, eu não sei, mas que desde que entrou é muito forte, tanto que lembro que quando eu tava no Rio Grande do Sul eu me perguntava o quê que eu tenho, que é lógico, hoje eu tenho uma maturidade né, lógico, uma vivência, te dá uma certa tranquilidade emocional, com o passar dos anos você acaba abrandando um pouco as tuas questões. Mas quando mais nova eu tinha muito esse conflito assim de mas será? Porque eu preciso disso? Eu já não posso me contentar com o que eu tenho? Era como se esse desejo artístico fosse uma erva daninha, em algum momento, eu tinha a impressão que ela corroia algumas coisas, algumas bases, né, quando eu achava que tava tudo bem estabelecido, tinha alguma coisa ali que, tava corroendo as estruturas e me fazia ficar desconfortável dentro daquilo ali que eu tava organizando e aí eu pensava pra que isso? Mas depois quando eu parei de me perguntar pra que e passei a me jogar mais nisso e dar vazão pra isso eu acho que ai a coisa fluiu sabe? Porque 205 isso, uma coisa que eu diria hoje, tranquilamente pra uma pessoa mais jovem assim, quando eu tinha 20 anos eu tinha muitas dúvidas o que vou fazer, vou por aqui, vou por ali tal isso é uma coisa que eu diria hoje assim, muito tranquilamente pra qualquer pessoa que me perguntasse assim o que fazer eu diria: aquilo que teu coração mandar sabe? Que se você é uma pessoa sensível mesmo enquanto você não fizer aquilo que seu coração mandar, você não vai querer, faça logo cara, não postergue!” Em sua trajetória, ter dado vazão ao pensar e agir diferente de sua família foi o que a impulsionou a buscar sempre mais, contudo, em sendo doida94 pôde ir além, permitiu-se não seguir tradições ou o que dela era esperado. J. doida e também curiosa buscaria seu caminho para além das tradições, recriando sua própria história. “Eu acho que basicamente o fato de ter saído de la, de ter saído(...) eu não me adequava muito aquele esquema da minha família, da forma como minhas irmãs viviam. Eu olhava tudo aquilo ali e não achava aquilo legal, assim, como exemplo de vida pra mim, como modelo, eu sempre quis uma coisa assim mais doida pra mim, um pouco mais desordenada, menos certinha né. Mas eu não sei te responder, posso pensar junto aqui mas uma resposta pronta não tenho. Eu tenho realmente essa coisa, eu gosto do desafio, sempre gostei do desafio, sempre gostei do novo, do avesso da tapeçaria sabe? Então eu olho ali e penso, o quê que tem lá atrás? Eu sempre fui muito curiosa, esse é um traço muito forte da minha personalidade, eu sou muito curiosa! Quero saber, tenho interesse pelas coisas e eu acho que isso dá uma vivacidade também né,(...) Então é assim, mais uma vez quebrar um é, uma coisa que as pessoas esperam de ti né. Isso me ajudou nessa história toda né, é olhar pro outro, também com curiosidade do que é novo, do que isso pode me trazer.” E assim J. finaliza sua entrevista, revelando algo de si que em sua simplicidade nos ensina que identidade é metamorfose em busca de emancipação e que em suas idas e vindas, em seu re-inventar promove que medos permaneçam em algum lugar adormecidos, permitindo o revelar da coragem de se lançar a aventura que é conhecer e re-conhecer si mesmo, a despeito de tradições, costumes e cultura; apenas permitir-se ser em sua totalidade! “É eu podia né, nunca ter saído né (da colônia)... Eu acho que tem uma coisa nisso tudo que talvez seja uma pista, eu em algum momento da minha vida, não sei bem 94 “(...) eu tinha antes um namorado muito mais jovem e agora eu tenho um namorado muito mais velho (risos) e doido ! (risos) Então eu acho que consegui um lugar também confortável aí dentro, eu posso, ela pode, ela é doidinha mesmo então ela pode!” J. sobre as vantagens de ser “doida” 206 onde, (...) que em algum momento da minha vida eu acho que decidi que eu ia fazer a vida, que eu ia levar a vida como eu quis eu disse, eu olhei em volta e disse não, isso não é p mim, eu vou mudar isso, vou mudar esse jogo.“em algum momento eu disse não vou ser vitima disso, eu vou dar a volta por cima disso, eu vou reinventar! Essa história pra mim, dessa história eu não gosto eu vou inventar uma outra , eu vou atrás dela, mas aí, eu acho que o elemento principal, acho que é a coragem. Se existe uma coisa assim que eu acho que determina assim uma palavra pra minha trajetória é coragem. Os eu era uma criança muito medrosa, mas esse medo acho que ficou lá ou ele tá aqui e tá muito disfarçado, pode ser que né, mas acho que é isso a coragem de se lançar, de fazer as coisas, de ir atrás de mudar e... Então espero continuar fazendo isso até o fim da minha vida, sem grandes problemas com isso(...) tudo tem outro lado, por enquanto tá muito bom, não queria outra vida não! Não gostaria de ter outro tipo de vida!” J. demonstra, com sua trajetória algo que segue em acordo com a colocação de Habermas (1983, p. 69-70): Na identidade do Eu se expressa a relação paradoxal pela qual o Eu, como pessoa em geral, é igual a todas as outras pessoas, ao passo que enquanto indivíduo é diverso de todos os demais indivíduos. Por isso, a identidade do Eu pode se confirmar na capacidade que tem o adulto de construir em situações conflitivas, novas identidades, harmonizando-as com as identidades anteriores agora superadas, com a finalidade de organizar numa biografia peculiar a si mesmo e às próprias interações, sob a direção de princípios e modos de procedimento universais. Ponderações acerca do bloco “descendentes mais velhos”: Neste bloco ao trazerem-se relatos dos “descendentes mais velhos” observaramse semelhanças entre as entrevistadas e foi possível ainda, perceber a existência de elementos que diferem das colocações dos jovens descendentes. As três entrevistadas deste bloco apresentam em seus projetos o modo como sua geração foi afetada pela relação da História junto à construção da vida de seus antepassados no Brasil, bem como, a influência de momentos políticos do Brasil entremeando algumas passagens de suas trajetórias. S. trouxe “viver seu tempo” participando ativamente deste, desde sua juventude quando pôde frequentar “um colégio democrático” que lhe suscitou novas formulações ao ponto de decidir tomar um rumo militante, vindo a participar de movimentos contra 207 arbitrariedades na sociedade em que vivia. Atualmente, como professora e historiadora, procura manter-se atualizada do que se passa no mundo e no Brasil, acompanhando os fenômenos sociais, buscando compreendê-los e assim participar da sociedade. Hoje, não mais como militante, nos bastidores mantêm-se alerta, ligada ao mundo e às suas mudanças. A relação que S. tem com sua descendência alemã perpassa a História do Brasil junto à história de sua família, enquanto fundadores de Blumenau e também de Santo Amaro. Para S., a construção de sua identidade está imbricada com a constituição de sua família no Brasil e de como esta com isto lidou, adequando-se ao país de modo a suscitar a não existência de conflito entre quem S. é ou quem gostaria de ser. Imagina-se que a relação de seus pais com a guerra na Europa tenha proporcionando-lhes uma outra concepção do Brasil como pátria que permitiu a construção de suas vidas nesta. Desta forma, não abandonaram certas características de sua cultura, mas também não negou-se a existência e complementaridade de elementos brasileiros que assim permitiu que se constituísse o trânsito entre duas culturas de modo natural. S. percebe seus movimentos e mudanças, ao mesmo tempo em que busca compreender o movimento imigratório de sua família. Reconhece-se neste e configura seu lugar no mundo quando escolhe, por exemplo, não fazer o passaporte de outra nacionalidade por não ver neste importância ou sentido. Logo, um ponto relevante em sua história que talvez tenha relação com o exemplo dado sobre o passaporte, foi sua participação ativa nos movimentos de resistência contra a ditadura no Brasil. Algo que nos remete à ideia de S. ter construído seu pertencimento pautado, além dos princípios e tradições transmitidos pela família, na luta por democracia no lugar onde nasceu e onde vive. No caso de A., observou-se que mediante sua relação com as exigências da mãe referentes ao aprendizado da língua, ordem e disciplina, unidas ainda a elaboração do que fora o passado “não dito” de seu pai, desencadeou-se uma relação conflitante entre sua origem e o local onde está, muitas vezes, vertendo em sentimentos como “ser ambas as coisas” ou não “ser nem uma e nem outra.” (nem alemão e nem brasileiro). Desta 208 forma, A. procura ressignificar as tradições transmitidas mediadas pelo afeto, buscando quebrar paradigmas e (re)construir seu caminho, sua identidade de modo leve, afetuoso, conforme menciona: não quer ser identificada em estereótipos “alemães” (estes quando ligados à rigidez). Seu projeto de vida envolve o “ser mais desencanada” em menção ao que acredita ser uma prerrogativa brasileira positiva. A. permite-se ser mais flexível quando aponta, por exemplo, não ser pontual e frente à história de sua família, cuja relação com a língua era uma obrigação: “segurar a língua”. Pôde transformar coerção em profissão que lhe propiciou meios de se emancipar e mudar a relação com a língua, fazendo seu uso para benefício próprio, muito além de apenas perpetuar a tradição. Aponta-se a relevância percebida em seu discurso quando reconhece que seus filhos não deveriam aprender a língua por obrigação, uma vez que o importante era se comunicarem e estabelecerem o diálogo, não importando em qual língua isto se daria. Ao ressignificar o “seu jeito de ser alemã”, reinventa-se demonstrando viver para além dos estereótipos do alemão tido como rígido, inflexível. A. conforme se apresenta, demonstra conseguir aliar traços como disciplina e trabalho com flexibilidade e sensibilidade, aproximando-se do seu projeto, que visa o “ser desencanada”. Outro ponto interessante apresentado por A. é sua relação com a história de seu pai. Seu envolvimento com a juventude de Hitler é algo que busca ainda resolver e para tanto, participa de atividades como constelação familiar e cursa psicologia, demonstrando que a resolução de um conflito pode desmembrar-se em novas possibilidades no presente e também no futuro, em meio à reflexão que fomenta a atividade como possibilidade (no caso tornando-se psicóloga é possível, além da compreensão sob outros prismas de sua própria história, transformar esta experiência em trabalho e compreensão de outras pessoas e fenômenos, assim como pode transformar a aprendizagem da língua tida como “coerção” para o tornar-se professoraafetuosa). J. apresenta-nos um projeto de liberdade pautado primeiramente em suas vivências, tanto das tradições que considera “opressoras” como também, o falecimento 209 de sua irmã e a vergonha por ser colona e não falar português corretamente. Este projeto vai acompanhá-la em todas as suas escolhas e estimular suas metamorfoses. J. desta forma, rompe com algumas tradições, reinventando-as enquanto recria a própria história. Apresenta de modo claro acreditar que a união de elementos de ambas as culturas (brasileira e alemã) podem promover o equilíbrio salutar e deste é possível viver a liberdade em qualquer lugar do mundo. Cabe ressaltar que J. reconhece que ter pertencido à colônia (onde se deu sua socialização primária) cujos traços característicos como língua, trabalho na roça e o esforço, colaborou para ser quem é hoje. Coloca que estes elementos propiciaram a vazão à criatividade, mas também, à persistência e força de vontade de “não largar as coisas pelo caminho” acrescentando serem estas as características germânicas que o lugar de onde veio permitiu que internalizasse e constituísse em si. J. percebeu que era diferente em um ambiente totalmente novo (Rio de Janeiro) onde experienciou novas relações e modos de vida que lhe atestaram também o saber lidar com as diferenças como algo importante. Somado a isto, pôde perceber sua singularidade aliando sua alteridade ao cotidiano, ao mesmo tempo em que empregou para si novos elementos oferecidos pela agregada ao Rio de Janeiro. J. relata já ser quem gostaria de ser e vive de acordo com o seu projeto. Ainda assim, mantém-se em constante busca por mudanças e novas ideias, pois o que a mantém artista é a criação e o reinventar-se constantemente. Observa-se com o discorrer das reflexões acima, a existência de diferenças importantes entre a expressão identitária de nossos narradores “jovens descendentes”, em comparação aos “descendentes mais velhos”. Os jovens expressam o descontentamento com o Brasil, com o modo como percebem o país e como pensam ser neste percebidos. Há uma busca por um modelo identitário pautado no “ser alemão”, pertencente a uma Alemanha talvez idealizada, retrato que fazem daquilo que lhes foi transmitido. É possível levantar-se a hipótese de 210 que, por se tratarem de gerações mais novas, viram-se distantes do que seus ancestrais vivenciaram com as guerras, ou com os relatos do que foi esta experiência tal qual. Outra hipótese é formulada mediante ao que representou o momento político vivido no Brasil a partir das diretas já, nos anos 80, com a reestruturação democrática, maior abertura e trocas comercias, mudanças nas relações via globalização e posteriormente, mídia e a internet. Dito isto, pensa-se em jovens cuja contemporaneidade lhes atribua poucos elementos para lutar por mudanças. Talvez, a construção que fazem de si mesmos, una-se à lógica da sociedade cujo funcionamento é pautado na individualidade. Nas gerações mais antigas, percebeu-se maior amplitude de questões ligadas ao coletivo. Nos jovens, notou-se maior distanciamento entre quem são e quem gostariam de ser, quando se comparam os projetos de vida dos descendentes mais velhos; estes próximos daquilo que de fato são. É possível que pelo fato das famílias de nossos descendentes mais velhos terem tido no Brasil a opção de (re)construírem suas vidas vindos de uma Alemanha destruída isto possa ter influenciado o rumo que seus sucessores tomaram em suas vidas e identidades, implementando-lhes motivações outras no país de acolhimento. (Tal hipótese deve ser melhor investigada, uma vez que a família de P. também retornou ao Brasil em condições difíceis após a guerra. Nesta manteve-se o projeto de retorno que deve ser levado em consideração para a construção identitária de P.). Ainda que os descendentes mais jovens, tenham tido histórias compartilhadas de construção de suas famílias no Brasil, há uma apropriação da tradição alemã por vezes aliada à busca de sentido e pertencimento de modo acrítico. Nos descendentes mais velhos, percebem-se elementos de maior criticidade vinculados às tradições, bem como, maior participação social. Vivem suas possibilidades não exatamente adequando-se à política identitária transmitida pela tradição, mas com o exercício do questionamento, revelando-se identidades políticas, com sentido de maior autonomia. As histórias escolhidas como “principais” em cada bloco, apresentaram questões comuns, embora, interpretadas de outra forma. P. apresentou a importância que “a coisa 211 métrica” ou ângulo reto tem para sua vida. Valores como organização, disciplina e pontualidade foram colocados como relevantes e parte do que aprendeu com a cultura alemã. Assim P. coloca-se como estrangeira no Brasil em constante desejo de viver na Alemanha, onde acredita viver entre iguais e ser assim reconhecida. J. nos fala das mesmas questões, com outro enfoque. Revela a “coisa métricaesquadrinhada” como falta de improviso e flexibilidade, de modo à vida caminhar sem “frescor”. Revela ainda que mesmo pensando desta forma, valores como disciplina, pontualidade e organização lhe são igualmente importantes. Contudo, fez-se necessária a reinvenção destes valores de modo a flexibilizar situações, adequar-se ao ambiente e extrair o melhor deste. O equilíbrio foi encontrado por J., que semelhante a P. sente-se estrangeira, mas não somente no Brasil, também o é na Alemanha. O seu recriar ou reinventar constante lhe torna, singular: cidadã do mundo, com valores alemães e brasileiros. J. nos ensina que é possível fazer, escolher e reinventar o próprio caminho independente da origem; Importa o modo como esta se constituiu durante o caminhar. O ser estrangeiro pode indicar singularidade e não vincular-se a conflitos, necessariamente. 212 Capítulo 5 Quem somos nós, descendentes? Algumas reflexões A metamorfose humana de fato se concretiza durante todo o caminhar, quando o caminho inteiro se faz. (Antônio da Costa Ciampa) A discussão deste trabalho remete-nos ao retorno das questões iniciais da pesquisa, necessariamente. Caminho que se deu, conforme mencionado, quando ainda vivíamos na Alemanha. Neste país observamos a questão que abrange imigrantes turcos e seus descendentes, muitos em sua terceira ou quarta geração no país, como distante de ser resolvida, ao contrário. O conflito lá existente envolve o desejo por parte dos alemães, da adequação desta população ao país, compreendida, por exemplo, pela aprendizagem da língua, inserção nos costumes e tradições ligados, sobretudo, à educação, ordem, disciplina e trabalho. Arriscamo-nos falar em termos do Deutschtum enquanto expectativa de enquadramento à ordem social a partir deste princípio fundante, enquadrado em termos da política de identidade, central nesta problemática. Desta forma, turcos e descendentes encontram-se em um claro conflito identitário, expresso por formas de resistência como o abandono por parte dos jovens de suas atividades, sejam estas profissionalizantes ou mesmo a escola, comportamentos violentos, abuso de substâncias entorpecentes, brigas, depredação do patrimônio público, entre outros; Gerando desconforto, comoção social e para além disto, demonstrando claramente o mal estar nesta sociedade. Estes jovens clamam para que sua situação seja vista, buscam um espaço onde possam ser reconhecidos e desenvolverem-se conforme suas predicações, no país onde nasceram. Pensando-se a colonização alemã no Brasil e a vida dos seus descendentes nos trópicos, é possível equipararem-se estas diferentes populações ao cogitarem-se os conflitos despertados pela vivência dos teuto-brasileiros durante o Estado Novo (por exemplo), quanto à negação da expressão de sua língua e seus costumes. Busca-se, desta forma, demonstrar com tais exemplos que o tema imigração e a condição dos 213 descendentes de imigrantes, a constituição e expressão de suas identidades, extrapola países, culturas e momentos históricos. Este tema revela que, em primeiro lugar, está a condição humana de homens, mulheres e crianças em movimento, buscando melhores condições de vida e que possuem o direito de assim estar. Voltar nosso olhar para suas manifestações, para a expressão de suas crises e permitir vazão às alteridades, se faz necessário. Neste trabalho buscou-se caminhar de forma a desvelarem-se, por meio das histórias de vida de nossos sujeitos colaboradores, questões que para além das diferenças culturais, alcançam o indivíduo em esfera universal: como encontrar seu lugar no mundo? No contexto desta pesquisa se ressalta a escolha interessada pelo NEPIM (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade e Metamorfose da PUC-SP) cuja compreensão da identidade visa esta como processo, construção a qual a metamorfose constante é o mote de sua existência. Arriscamo-nos dizer que, dar vazão às metamorfoses da identidade é uma chave para lidar com conflitos e dificuldades, uma vez que a singularidade do eu expressada pela articulação entre suas metamorfoses e pela apropriação destas como novas possibilidades de ser, são condições para enfrentamento dos desafios impostos pelo cotidiano. Ciampa (2003, p.10-11) ilumina as considerações supracitadas, quando coloca: “(...) a identidade de um povo se apoia no consenso que se estabelece em torno dos sentidos que constituem sua cultura. Ou seja, identidade é sempre a articulação atual (presente) da tradição (passado) com a inovação (futuro).(...) incorporados pela maioria da população, numa sociedade democrática, esses significados vão constituir os sentidos que orientam a vida das pessoas nessa sociedade, ou seja, constituem as subjetividades individuais.” O que isto nos sugere e por que se escolheu trazer o exemplo dos turcos como parte introdutória da discussão para entender a questão identitária dos descentes alemães no Brasil é o quebra-cabeças que nos leva à compreensão do tema identidade como algo muito importante e tema de debates sempre atuais. Os jovens turcos mencionados, (lembrando que se encaixariam várias outras culturas, com questões parecidas) retratam o que Hommi Bhabha (2001) denomina “in between”, ou seja, eles vivem entre duas 214 culturas, ora a alemã, onde nasceram, cresceram e foram socializados, ora a turca, cuja origem de seus pais ou avós e bisavós é também presente em seu cotidiano, em sua constituição. Entretanto, uma crise se instala justamente quando estes jovens têm de dar uma resposta ao meio social que lhes indaga: “quem são?” ao mesmo tempo em que lhes impõe “serem” de determinada forma e “pertencerem” a determinado status que lhes define. Questão semelhante, particularmente nestes termos abordada, é amplamente discutida na obra de Amin Maloouf (2000) intitulada “Identidades Assassinas”. Nesta, o autor inicia suas considerações partindo da própria vivência. Maloouf é imigrante, tem origem libanesa, é cristão e vive há muitos anos na França, onde escreve e compartilha da cultura em vários âmbitos e aspectos. Maloouf depara-se frequentemente com questões relativas a seu pertencimento e ao que se considera pertencente: é mais libanês ou francês? O autor desenvolve suas considerações partindo desta vivência à problematização da origem e da imposição deste tipo de escolha, até o que esta pode provocar. Em seu ponto de vista, nasce deste tipo de “imposição identitária” a perpetuação de preconceitos e segregações, seguindo o surgimento de guerras e conflitos. Não é possível sermos duas ou mais coisas? Pertencermos a diversas culturas, costumes, ideias, ideais e ao mesmo tempo, termos e sermos uma unicidade, ainda que plural? Neste ponto cabe o retorno a Bhabha (2001) e suas colocações sobre o hibridismo cultural. Tal hibridismo pode ser compreendido como negociação cultural, enquanto condição e processo, logo, uma negociação de sentidos e significados sócioculturais. Contempla esta discussão a proposição de Cabreira (2002, p.02): “(...) o jogo entre a identidade e a alteridade passa a ser uma marca da imigração, que também possui uma representação ambígua e ambivalente do país que a acolhe, criando com isso um olhar que necessariamente irá se construindo no decorrer de sua inserção sociocultural. Tal processo acaba resultando num “imigrante nacional.” Outro autor que discute a questão da identidade partindo de um questionamento pessoal é Zygmmunt Baumman (2005). Este judeu polonês, obrigado em dado momento de sua vida a emigrar para Londres, se depara com uma escolha: frente a uma 215 solenidade da qual participara deveria escolher qual Hino deveria representá-lo. O Hino da Inglaterra, país que o acolheu e no qual leciona e vive há anos, ou o Hino da Polônia, país de seu nascimento? A saída para o aparente conflito, surgiu na escolha pelo Hino da Europa. Saída que não implica em solução, necessariamente. Prova esta, que incitou que o autor partisse deste episódio pessoal para discorrer sobre identidade na modernidade líquida. O que configura esta indagação com sentido tão importante para o ser humano: “quem sou eu”? Algo que o leitor desavisado entenderia como algo dado, uma vez que se nasce em uma família que já tem uma história, pela qual nos é concedido um nome, uma religião, entre tantas outras coisas, em uma construção anterior ao nascimento, mas que origina, contudo, questionamentos constantes senão, por toda a vida. Na perspectiva de Hommi Bhabha (2001), o citado hibridismo cultural é compreendido como uma construção constante cujo prisma, nos permite pensar sobre as questões identitárias de imigrantes e descendentes. O hibridismo cultural está implícito aos processos migratórios e frente nossas observações, no decorrer da pesquisa de campo, pôde agregar valores que permitiram o surgimento de perspectivas emancipatórias para os sujeitos, aqui observadas no revelar de maior autonomia e liberdade de escolha, consciência crítica acerca de si mesmo, do mundo e, sobretudo, atuação no mundo da vida em consonância com valores construídos entre culturas e perpetuados, ao ponto de revelarem-se identidades políticas. Cabe, a título de ilustração, a apresentação de alguns trechos de uma entrevista com a escritora Lya Luft, dada à Deutsche Welle online (2004) que colabora para o entendimento da temática que se propõe discutir, ao mesmo tempo em que se vincula ao que foi transmitido por nossos interlocutores. “Eu nasci em Santa Cruz do Sul, que sempre foi uma cidade típica de descendentes de imigrantes alemães. Meus antepassados de parte de pai e de mãe vieram naquelas primeiras levas, em 1825. Em geral eu digo que alemão fica bom depois de algumas gerações amaciando no Brasil.(grifos nossos) Passei a minha infância numa casa grande, com uma família divertida, mas com algumas coisas muito severas. Eu contestava isso(...).” (Anexo, p 242) “Na minha família se falava "nós, os alemães, e eles, os brasileiros". Isso era uma loucura, porque nós estávamos há gerações no Brasil. E como eu era uma menininha muito contestadora, um dia, com 7 ou 8 216 anos, numa Semana da Pátria, me dei conta: "Por que falam “die Brasilianer und wir'?" (os brasileiros e nós?). Eu quero ser brasileira. E aí começou essa história – claro que naquela época eu não sabia das negras de origem africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador –, mas eu digo que sou tão brasileira quanto qualquer negra de origem africana que vende acarajé nas ruas de Salvador. Talvez meus antepassados tenham vindo antes dos dela, então eu sou mais brasileira do que ela.” (Anexo, p.242) “Eu nunca concordei com essa afirmação generalizada no Brasil que diz "vocês lá no Sul nem são bem brasileiros, vocês são meio europeus". Isso não me elogia em nada, eu não quero ser européia. Eu tenho o maior respeito pela cultura, pelo trabalho, pelas artes, pelas tradições de vários lugares na Europa, mas eu sou brasileira e quero gostar do Brasil.”(Anexo, p. 243) “(...) há uma cultura alemã, como a Oktoberfest. (...) isso é simpático. Não devemos renegar as raízes. Isso é muito legal. É como você ter CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Mas daí a morar no Brasil, ser de várias gerações e falar em "Vaterland"(pátria pai)... Acho isso um horror. Então todos os açorianos devem falar: "Oh, pátria portuguesa!". Eu sou uma libertária e de certa forma anarquista. Eu não gosto disso. Tenho muito respeito e há uma raiz minha germânica, ligada à cultura e à educação, que me agrada. Agora, há uma certa arrogância e um preconceito que me desagradam. E um sentimento excessivo e rígido de dever. Mas eu não sou por cortar raízes ou renegar tradições.”(Anexo, p.243) “No Reunião de família, o professor, que era um cara muito frio, muito cruel, no começo ele era de origem alemã. Uns tipos que eu conheci na minha infância. Aí resolvi mudar. Eu não quero ser porta-voz dos descendentes de imigrantes alemães. Eu não quero ser porta-voz de nada. Eu quero ser completamente desligada. Eu quero minha liberdade para o exercício da minha arte, do meu trabalho.” (Anexo, p.243) “A cultura alemã te influenciou? Sim, muito. Essa é a parte que eu agradeço. Havia uma literatura alemã, francesa, italiana enorme na minha casa, além de brasileira e portuguesa. Li muito literatura alemã. Aos 11 anos decorava longos poemas de Goethe e Schiller. Para mim era natural. O que eu sempre combati é o seguinte: na Alemanha é melhor. Se na Alemanha é melhor, vá para lá. Eu não gosto das utopias que têm uma semente de arrogância. O Brasil tem muita coisa bagunçada, mas sempre que eu vou para o exterior e chego aqui, bom, esta é a minha terra. Eu gosto de morar aqui. E no Brasil, eu gosto de morar em Porto Alegre.” (Anexo,p.243) Nestes trechos da entrevista com Luft é possível a observação de traços semelhantes ao que foi encontrado em alguns de nossos descendentes mais velhos. Luft demonstra seu trânsito por duas culturas, bem como, suas escolhas e posicionamentos frente a isto. Possui crítica e apresenta algo próximo ao que Amin Maloof expressa na discussão sobre a necessidade de escolher-se quem se é e do que Bhabha fala sobre o hibridismo cultural e a construção do elemento entre lugares, sendo possível associar o que ambos autores problematizam juntamente a entrevista de Luft e ao que se observou 217 na pesquisa: vivenciar a imbricação do hibridismo cultural enquanto metamorfose da identidade como caminho para a emancipação do sujeito imigrante e seus descendentes. Fazer tal inferência não exclui, contudo, que esta perspectiva seja isenta de conflitos. Defende-se, entretanto, uma alternativa para vislumbrar-se a experiência da alteridade com perspectiva emancipatória, como salto qualitativo do indivíduo que vivencia o hibridismo e se apropria deste, não mais tendo que atender à demanda da escolha “quem sou” sendo híbrido, em sua totalidade singular. Ao estudar-se a questão identitária de descentes alemães no Brasil, levou-se em conta a construção da identidade como algo para além do que direcionaria a uma única resposta, enquadrando o sujeito em parâmetros pré-estabelecidos que direcionam respostas condicionadoras (estereótipos, por exemplo). Seguimos, ainda que intuitivamente, reflexões confluentes àquelas de Amin Maalouf. Categorizar identidades significa segregar, separar, como o ato de reconhecer o desconhecido dando-lhe, “uma cara” na intenção de atribuir-lhe características para autoproteção. No caso dos descendentes alemães, existem rótulos e nos coube compreender como estes são compreendidos pelos sujeitos e como eles destes escapam ou mesmo, se deixam aprisionar. A questão identitária dos descendentes de alemães entrevistados revelou-se como não sendo uma escolha, mas sim processo construído intersubjetivamente junto ao outro, o que por vezes, representou um problema para alguns, cuja questão identitária perpassa o ideal do reconhecimento via identidade pressuposta, geradora de sofrimento quando não consonante com a sociedade ou modo de vida. Logo, tais experiências corroboram com o que a literatura consultada nos ensinou: compreendida como processo, a identidade é uma soma de fatores, construídos, reconstruídos, algumas vezes consolidados e outras vezes, também reformulados no cotidiano, na forma como o indivíduo é socializado, reconhecido pelo outro e que neste movimento do conhecerreconhecer-se, se individualiza. O momento social e histórico no qual o indivíduo está inserido deve ser levado em consideração, bem como os meios que teve e tem de acesso à informação sobre o mundo, sobre si mesmo, sua história. 218 Acredita-se que ao não aceitarem-se as possibilidades identitárias como múltiplas e mutáveis, resultam respostas sociais em forma de violência, logo, a inserção de verdades “goela abaixo”- retira do indivíduo seu potencial criativo de reinventar-se em meio as tramas sociais. De acordo com Habermas, enquanto pessoas somos todos iguais- logo, passamos por processos sociais, educacionais e conflitos que podem nos assemelhar em nossa condição, mas enquanto indivíduos, somos únicos, diferenciados e será a experiência mediada intersubjetivamente, que nos tornará quem somos. Suspeita-se que a possibilidade de uma sociedade mais igualitária pode iniciar-se deste tipo de discussão. Do surgimento de possibilidades emancipatórias e de respeito ao que é singular no indivíduo que pode manifestar sua singularidade em meio a pluralidade, em meio a alteridade que o faz único e que também, sem a qual não seria possível desenvolver-se. A singularidade de nossos entrevistados revelou-se no exercício do deslocamento das identidades pressupostas, que os levam ao afastamento dos rótulos, ao que deles é esperado enquanto “descendentes de alemães” bem como, à construção híbrida que fazem de si mesmos vivendo no Brasil. O alemão é atrelado muitas vezes a identidades pressupostas, ligadas a estereótipos como -“o alemão”- enquanto sinônimo da figura ligada à ordem, inflexibilidade, organização e rigor. Nossos entrevistados fizeram menção à relação quase automática que se faz do alemão atrelado ao nazismo, fato que ainda leva descendentes, mesmo pertencentes às gerações mais distantes, à necessidade de elaboração do assunto. Independente das relações geradas pelos estereótipos reside o aprisionamento do indivíduo a tais papéis, seja pela falta da apropriação crítica que os sujeitos fazem de sua tradição (CAMPOS, 2013) via o modo como foram socializados ou, da construção e significado que a tradição lhes implica na relação que fazem entre suas histórias pessoais e a sociedade em que vivem. Revelou-se no decorrer da pesquisa, a internalização acrítica do Deutschtum pelos descendentes mais jovens, ou seja, o Deutschtum não foi ressignificado ao contexto em que vivem no Brasil. “A rigidez do comportamento delata a fusão de 219 coerções de papel e coerções pulsionais.” (HABERMAS, 1996, p. 195, apud ALMEIDA, 1999, p. 115) A sociedade pode, ora contribuir para que se perpetuem papéis e se disseminem comportamentos, contudo, será o indivíduo na concepção que tem de si mesmo, no resgate de sua história, na consciência de seu presente, mas também na (re)formulação de seu projeto de vida em meio à compreensão que tem de sua história de vida, que terá a chave para lidar com conflitos gerados pelas questões que envolvem a constituição de sua identidade, mas também e sobretudo, é o senhor de si que poderá verter tais estigmas para viver a inteireza de sua identidade, em perspectiva emancipatória. De acordo com Almeida (1999, p. 112): Movendo-se no tecido socialmente construído, cabe ao indivíduo estabelecer as pontes e as mediações entre sua condição e suas possibilidades, tipificando e singularizando sua trajetória. As relações entre a biografia e o contexto social onde ela se desenrola e a sociedade em última instância, têm múltiplas direções; não constituem vias de mão única. Percebeu-se que a relação de nossos sujeitos colaboradores desta pesquisa, com relação à pergunta “quem é você” levou a considerações que podem ser expressas em consonância a seguinte colocação de Maheirie (1997, p. 168 apud ALMEIDA, 1999, p. 109-110): (...) tem componentes contraditórios que se opõem e se negam, numa complicada dialética. Ela é concretização do contexto social, das relações sociais, materializando um mundo (...). Portanto, o esforço de autodeterminação não se faz com a ilusão da ausência de determinações. A autodeterminação supõe finalidade, projeto, desejo, mas ela se concretiza no cotidiano, através do fazer, do experienciar-se, na metamorfose que se faz através da práxis. Neste aspecto, sobre o “experienciar-se na práxis”, observou-se, por exemplo, a questão do fazer ou do ser pelo trabalho, pela eficiência como questão fortemente arraigada à cultura alemã, conforme a fala de nossa entrevistada J. e de como esta pôde ressignificar tal questão e desta maneira, ser quem queria ser. De acordo com Almeida (1999) é preciso aguçar a percepção para esquadrinhar as operações do eu que permitam dissolver a manutenção pela repetição ao papel dado e 220 guardar devida distância frente ao papel- quebrar a máscara do socialmente pré formulado. O autor ressalta a importância do sujeito aprender a posicionar-se frente ao domínio da sociedade, ou mesmo, nos casos que discutimos, frente às políticas de identidade que engessam comportamentos e pensamentos. Em suas palavras (p.116): “cabe ao indivíduo integrar as expectativas de papéis e ter clareza mental na resposta a elas, aprender a não se deixar aprisionar (...).” Dar, portanto, significado ao que se é e ao que se está sendo para que se possa, a partir daí, prefigurar o que se pretende ser. (idem, 1999) O mesmo autor parte da metáfora da anamorfose para discutir projetos emancipatórios: (...) construir um foco para a própria imagem que dê nova proporcionalidade à articulação entre papéis e desejos como forma de superar tanto o assumir papéis coercitivamente impostos, quanto o se deixar levar por impulsos irrefletidos. Este é o ponto da integração dialética entre os desejos pessoais e as expectativas dos papéis sociais, onde a autonomia se torna possível, onde o projeto pode se concretizar, em suma: o ponto da alterização da identidade, de sua metamorfose. (ALMEIDA, 1999, p. 116) Ainda para falar de emancipação, cita-se mais uma vez Habermas (1987, p. 141142) (...) capacidade de construir novas identidades a partir das identidades rompidas ou superadas e de reintegra-las de tal modo com as velhas, que no tecido das próprias interações se organiza na unidade de uma biografia peculiar e que, por ser capaz de responder por ela, pode lhe ser atribuída como sua. Boaventura Santos (2010b, p. 324) a isto, acrescenta: O vir a ser, projeto sonhado, é emancipação naquela que recusa a heteronomia e de enquadramentos: é vontade, possibilidade, potência e, também, contradição que se insere no presente. Empiricamente, é verdade, ele só é acessível acontecendo e não pode afirmar que ela já se realiza na existência dos sujeitos, mas ao se insinuar no presente ele anuncia como a utopia, a recusa ao fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades, a vontade de lutar por alternativas. Ou seja, ser capaz de produzir mudanças, experimentar, não fixar-se apenas ao condicionado, aos valores da sociedade colonizada, ou ainda, a partir de sua própria 221 imagem, prefigurar outras que diferem do que é imposto. Viver possibilidades seguidas de potencialidades. Segundo Habermas (1983) a ideia unificadora do desenvolvimento do eu engloba sua formação em um sistema de delimitações: a subjetividade da natureza interna como delimitada com relação à objetividade de uma natureza externa perceptível com relação à normatividade da sociedade e a intersubjetividade da linguagem. Habermas, desta forma, retrata o eu como instância que transcende os limites da subjetividade, no que realiza tal operação ao mesmo tempo, na cognição, linguagem e interação. O sujeito só pode tornar-se consciente de si mesmo em relação com e na construção do mundo objetivo (HABERMAS, 1983 p.16). O autor propõe a autoidentificação intersubjetivamente reconhecida. A autoidentificação exige o reconhecimento intersubjetivo do outro o que torna questões como aquelas ligadas ao estigma especialmente difíceis de serem trabalhadas ou desarticuladas dos sujeitos quando neste tipo de interação o reconhecimento parte do grupo social. Habermas (1983) retrata a existência de um direcionamento frente ao processo de formação do eu marcado por uma crescente autonomia, o Eu independente que pode então resolver com sucesso problemas adquire tal autonomia em parte “com a estrutura simbólica não objetivada de uma cultura e de uma sociedade parcialmente interiorizadas” (p.54). Explicita a formação de competências pela interação social, ao passo que esta é mais tarde garantida pela individualização “crescente independência com relação aos sistemas sociais” (HABERMAS, idem, ibid.) possível de se perceber em passagens de nossas colaboradoras, S. e J. Logo, o sistema social é responsável pela apresentação da cultura ao sujeito que a internaliza, mas que pelo processo de individualização adquire crítica, produz relações, escolhas, entre o que internaliza e o que disto elabora e de fato, interioriza. É o mecanismo de interiorização que, portanto, permitirá que o sujeito conquiste independência com relação aos objetos externos, pessoas de referência e até mesmo os próprios impulsos (idem, p.54). Quando finalmente o jovem aprende a questionar a validade de normas de ação e de papéis sociais, o setor de seu universo simbólico volta a se ampliar: 222 emergem princípios segundo os quais podem ser julgadas as normas em conflito recíproco (...) questões práticas podem ser esclarecidas de modo argumentativo”. (HABERMAS, 1983, p. 59) A autonomia é um processo construído socialmente e passível de ajustes constantes, uma vez que é parte da luta por reconhecimento dos indivíduos. A constituição identitária de nossos sujeitos teve como fator principal a forma como foram socializados e o desenrolar de suas experiências no Brasil, independente da proximidade geracional com os ancestrais alemães ou mesmo o território onde cresceram (ex. cidades do Sul do Brasil - antigas colônias alemãs ou São Paulo). “Onde” nossos entrevistados estão, mostrou-se como ponto importante na construção de suas identidades, que perpassa o “de onde vêm” que, no entanto, constitui força motriz ao modo como vão buscar os seus projetos. Logo, o “de onde vêm” é o pano de fundo para a maneira como serão socializados, mas não necessariamente é o que vai demarcá-los, determinar suas escolhas ou definir quem são. A forma como lidam com sua origem no local “onde" vivem é o que estimula o modo como constituem si mesmos e seus projetos. Será na proximidade entre o estar sendo e o vir a ser que se darão as identidades com fragmentos emancipatórios, que proporcionarão maior autonomia, liberdade. Não é possível dizer que exista um à priori para “ser descendente de alemães no Brasil.” Conforme retratado nos depoimentos, pessoas jovens e mais velhas têm concepções, visões de mundo e buscas diferenciadas, que perpassam suas histórias com relação à ascendência, mas também suas lutas, experiências sociais e aspirações, que darão o tom para o que buscam ser. Lidar com a ascendência alemã no Brasil mostrou-se um fator gerador de conflitos (de certa maneira) para os jovens na busca pela concretização de seus projetos. Percebeu-se dificuldade de adequação entre o que são e o ambiente onde vivem, colocando-os em constante embate com “o ser estrangeiro em si mesmos” para além do ser estrangeiro ao lugar, representando a dificuldade em estar entre dois mundos, cuja integração não lhes parece possível. Os jovens buscam desta forma, na repetição de modelos, vincular suas identidades. 223 Para os descendentes mais velhos, mais próximos da consonância entre seu eu e seu projeto de vida, ainda que vivendo a condição do estar “entre lugares” reside na hibridização a chave para sua autonomia, para o ser “teuto-brasileiro” enquanto junção de aspectos considerados positivos, tanto de uma cultura como de outra. Os descendentes mais velhos aperfeiçoaram as experiências passadas, ligadas à ancestralidade ressignificando-as para o presente, o que possibilitou a reinvenção de modos de vida. Os jovens ainda constroem suas histórias e nestas há uma Alemanha idealizada como solução para suas buscas identitárias; pertencer ao modelo ideal do “ser alemão” conforme formularam, ou conforme suas experiências assim os levaram a formular. Os mais velhos já têm suas histórias constituídas, já são quem querem ser, aparentemente. Buscam então, a possível integração entre culturas, firmando um terceiro elemento (como coloca BHABHA). Percebeu-se que os descendentes mais velhos que tiveram experiências de militância, construíram uma outra relação com o Brasil, com o seu “ser” brasileiro, vislumbrando o que se pode chamar como identidades políticas e estas, vinculadas à princípios construídos em atividade. É possível que a vivência da guerra, das memórias desta, herdadas de seus ancestrais, ou modo como as gerações lutaram para conquistar seu lugar no Brasil tenham sido relevantes. Para os jovens este tempo e espaço é outro, o que envolve uma construção diferente de significados com relação a Alemanha. Percebeu-se que descendentes mais velhos aproximam suas constiuições identitárias dos conceitos do hibridismo cultural, formando um “entre lugares” de modo positivo, ou seja, há o desejo e a percepção de serem e quererem ser híbridos, abarcando características tanto da cultura alemã, como da brasileira em suas concepções de si e em seus projetos de vida. É possível afirmar, desta forma, que os descendentes mais velhos não têm uma visão idealizada da Alemanha, ou do que é ser descendente de alemães. Constroem, com os aspectos acima citados, singularidades que lhes propiciam metamorfoses com sentido emancipatório. 224 Não se propõe dizer que os jovens descentes não caminhem para metamorfoses igualmente emancipatórias. Ocorre que, cabe a estes ainda desconstruir imagens préestabelecidas para encontrar caminhos e formulações próprias, que propiciem integração dos elementos de ambas culturas que não os aprisionem, mas sim, permitam-lhes viver com apropriações críticas de valores mediados culturalmente, alcançando maior liberdade. Considerações... Finais (?) Iniciar este tópico com um ponto de interrogação, expressa a intenção de apontar a multiplicidade própria da temática que se propôs discutir: a imigração. Esta, compreendida como tema cuja complexidade é multiforme, não gera conclusões, mas sim possibilidades, caminhos a serem seguidos e que também podem ser mudados, acrescidos por outras visões ou enfoques, a depender do momento histórico e político. É nossa intenção explicitar a necessidade da abertura cada vez maior para o debate das questões multifacetadas relativas à identidade de descendentes de imigrantes no Brasil, bem como as mais variadas questões que envolvem a imigração na atual fase do capitalismo tardio. Em face disso, o trânsito de pessoas não se interromperá; ao contrário, não deve ser associado a problemas, mas a diferentes contextos e formas criativas de vida. O Brasil, enquanto nação cuja população é miscigenada, tem características como a grande abertura às diferentes nacionalidades e se estima que todos “vivam em harmonia”. Isto deve ser discutido, sobretudo, vista a abertura que intensifica a entrada de refugiados no país. Algo que aponta para conflitos de ordens diversas, como economia, saúde pública, habitação etc. Como se dará a continuidade das trajetórias destes sujeitos no país e para além, como os brasileiros os receberão e lidarão com a alteridade que se apresentará? Logo, repete-se aqui o que ocorreu outrora, com os grandes contingentes de europeus (alemães, no caso deste estudo) que vinham convidados a construir o país e que precisaram enfrentar questões que se desmembram 225 ainda hoje, pela transmissão aos descendentes, pela forma que são vistos ou mesmo inseridos na sociedade. Assim, parte importante destas considerações, que pretendem “fechar” o trabalho, versam sobre a necessidade da ampliação do debate sobre o tema, não se esquecendo de que imigrantes e seus descendentes constroem suas vidas, ao mesmo tempo em que participam da construção do país. O decorrer desta pesquisa nos trouxe respostas, mas também se abriram novas indagações. No que concerne aos descendentes alemães, percebemos tratar-se de um tema por vezes “tabu”, em que instituições nos responderam com silêncio e colaboradores, encontrados em nossas incursões no cotidiano, ao contrário, tinham muito a falar e realmente falaram. Foi possível perceber que a questão identidade e imigração, no caso deste trabalho ligado aos descendentes, deve ser mais explorada, uma vez que existe a demanda dos sujeitos por conhecerem sua própria história, compreendendo-se que tal conhecimento promove a relação destes com a sociedade e também com a construção do futuro desta. Pode-se dizer com segurança que são questões que não interessam somente aos indivíduos que compartilham das mesmas, mas à sociedade, ao Brasil enquanto grande acolhedor de imigrantes no passado e também no presente. Dar voz aos descendentes é mostrar claramente o caminho que percorrem para se constituírem frente às adversidades vividas por seus ancestrais e, sobretudo, frente às representações criativas que fazem de si e que, ao mesmo tempo, colaboram com a construção de fato do Brasil, como Nação plural. Desta forma, é possível dizer ainda que o hibridismo cultural aliado às metamorfoses da identidade individual é parte relevante de um processo que não se esgota e que, se bem acolhido pelas sociedades, pode levar a convivências pacíficas, mesmo que frente à diversidade. Importa ressaltar a importância atribuída aos estudos de identidade enquanto visão política e construção sócio-histórica. É possível, com tal construção, não somente 226 discorrer sobre constituições identitárias, mas aliado a isto, entender ou mesmo estimular a participação política, a construção de uma sociedade mais justa, emancipadora. Ao discorrer sobre a sociedade plural, imigração e as trocas advindas deste processo, cabe uma pequena reflexão. O ano de 2013 é o ano Brasil-Alemanha, cujo objetivo versa sobre maior visibilidade acerca das importantes trocas comerciais, tecnológicas ou mesmo de ensino, advindas da antiga relação entre ambos os países. Concordamos e julgamos serem aspectos relevantes da construção e continuidade da relação iniciada no final do século XIX. Contudo, ao escutarem-se os relatos dos descendentes alemães surge a seguinte indagação: por que não unirem-se Alemanha e Brasil em suas culturas de fato, conforme o processo de hibridização, vivenciado pelos teuto-brasileiros? Onde brasileiros possam experienciar uma sociedade mais organizada, menos corrupta e alemães, maior calor, afetividade, e musicalidade em seu dia-a-dia? O hibridismo discutido junto a questão identitária pode ser aplicado a ambas sociedades, elevando-se seu potencial emancipatório ao promover abertura cada vez maior à construção dialética feita pelas pessoas nestas. Nossa discussão mostra-se desta forma pertinente, pois partindo-se da compreensão de como os sujeitos constroem seu pertencimento (de modo conflituoso ou não, identificação com figuras importantes de sua vida, como outros significativos) pode-se vislumbrar, no contexto global, tendências para violência e, em se percebendo isso, é possível se imaginarem formas de interação entre os diferentes pertencimentos; a ideia aqui é promover um debate que previna o conflito, uma vez que foi possível apreender as formas de construção do pertencimento. Concordamos com Bauman (2005) e Maloouf (2000), quando criticam a “necessidade” de se ter uma Pátria e de se responder a todo momento “quem se é” de acordo com o local de nascimento. É, portanto, na tentativa de contribuir com a formação de um eu autônomo, integral e livre de preconceitos e de amarras que se configura a importância deste trabalho: juntamente com a criação de alternativas de experiências de interiorização de diferentes culturas e modos de vida, livres de estigmas, que se espera creditar o alcance das reflexões propostas. 227 Quanto aos desdobramentos e indicações para novas pesquisas, desponta a necessidade de maiores estudos sobre as questões relacionadas ao reconhecimento e sua interface psíquica no local onde se vive. Pensar as questões identitárias, sobretudo, a compreensão da identidade como metamorfose em busca por emancipação, surge como interessante perspectiva para abordagens futuras no campo psicossocial ligado aos estudos migratórios, de forma que o enfoque não seja a “assimilação” do sujeito aos desafios impostos pela cultura, mas sim a reinvenção de modos de viver, a atualização de tradições, bem como a hibridização como processo propiciador de fragmentos de emancipação. Referências bibliográficas ALBERSHEIM, U. Uma comunidade teuto-brasileira. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério da Educação e Cultura, 1962. ALMEIDA, J.A.M. Identidade e Contexto Social. Projetos, Armadilhas e Emancipação. Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999. ALMEIDA, J.A.M. Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Doutorado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. _________________. 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Fica garantido aos sujeitos desta pesquisa o sigilo absoluto sobre os relatos, sendo resguardado o nome dos participantes. Os relatos serão tratados de forma anônima e confidencial. A privacidade será assegurada com o uso de pseudônimos, em caso de exemplificações necessárias. Os dados coletados serão utilizados apenas NESTA pesquisa e os resultados divulgados em eventos e/ou revistas científicas de circulação por meios impressos e também eletrônicos. Sua participação é voluntária, a qualquer momento você poderá recusar-se a responder qualquer pergunta ou desistir de participar, retirando seu consentimento. Não haverá riscos de qualquer natureza relacionados a sua participação. Seu envolvimento nesta pesquisa proporcionará o aumento do conhecimento científico para a área da Psicologia Social. A orientação desta pesquisa será feita pelo Professor Doutor Antônio da Costa Ciampa, que fica a disposição para maiores esclarecimentos no Programa de Estudos Pós- Graduados em Psicologia Social, situado na Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, bloco A, sala 4E-10, Perdizes, Cep: 05015-901, São Paulo- SP. Tel: (11) 3670-8520. E-mail: [email protected]. Fico também à disposição para esclarecimentos no mesmo endereço e E-mail: [email protected]. Professor Doutor Antônio da Costa Ciampa- Orientador/ Diane Portugueis- Orientanda. CEP- Comitê de ética em Pesquisa PUC-SP Declaro estar ciente do interior deste TERMO DE CONSENTIMENTO e estou de acordo em participar do estudo proposto, sabendo que poderei desistir a qualquer momento, sem sofrer qualquer tipo de constrangimento. Assinatura:__________________________________________________ 241 Anexo 2: Entrevista de Lia Luft a Deutsche Welle-online (2004)95 Lya Luft: "A cultura alemã me influenciou muito A escritora Lya Luft recebeu a DW-WORLD para uma conversa na sua casa, em Porto Alegre. Ela falou sobre a imigração alemã no Brasil, sua admiração por Rainer Maria Rilke e Günter Grass e a experiência de escrever para a "Veja". Gaúcha de Santa Cruz do Sul e descendente de imigrantes alemães, Lya é uma das escritoras de maior sucesso do Brasil na atualidade. Perdas e ganhos vendeu mais de 425 mil exemplares,Pensar é transgredir já chegou aos 180 mil e sua coluna na Vejaatinge um público em potencial de quatro milhões de leitores. A entrevista foi no pequeno escritório da escritora em sua casa, entre livros, fotos da família e CDs de Maria Bethânia, Elis Regina, Bach e Beethoven. DW-WORLD: Tu podes falar um pouco sobre tua infância? Lya Luft: Eu nasci em Santa Cruz do Sul, que sempre foi uma cidade típica de descendentes de imigrantes alemães. Meus antepassados de parte de pai e de mãe vieram naquelas primeiras levas, em 1825. Em geral eu digo que alemão fica bom depois de algumas gerações amaciando no Brasil.(grifos nossos DP) Passei a minha infância numa casa grande, com uma família divertida, mas com algumas coisas muito severas. Eu contestava isso e coloquei um pouco em dois ou três dos meus romances, principalmente na Asa esquerda do Anjo. Na minha família se falava "nós, os alemães, e eles, os brasileiros". Isso era uma loucura, porque nós estávamos há gerações no Brasil. E como eu era uma menininha muito contestadora, um dia, com 7 ou 8 anos, numa Semana da Pátria, me dei conta: "Por que falam 'die Brasilianer und wir'?". Eu quero ser brasileira. E aí começou essa história – claro que naquela época eu não sabia das negras de origem africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador –, mas eu digo que sou tão brasileira quanto qualquer negra de origem africana que vende acarajé nas ruas de Salvador. Talvez meus antepassados tenham vindo antes dos dela, então eu sou mais brasileira do que ela. Eu nunca concordei com essa afirmação generalizada no Brasil que diz "vocês lá no Sul nem são bem brasileiros, vocês são meio europeus". Isso não me elogia em nada, eu não quero ser européia. Eu tenho o maior respeito pela cultura, pelo trabalho, pelas artes, pelas tradições de vários lugares na Europa, mas eu sou brasileira e quero gostar do Brasil. Tua primeira língua foi o alemão? Eu nasci em 1938 e logo em seguida começou a guerra. Em casa falávamos alemão, mas em seguida tive que falar português porque o alemão foi proibido. Minhas avós falavam alemão. Nenhuma conheceu a Alemanha. Eu me lembro delas sempre lendo. Isso é uma coisa legal que eu tenho delas – todo um imaginário dos contos de fadas. Elas não conheceram a Alemanha, mas sempre tiveram essa imagem... Era o lugar ideal. Principalmente para a minha avó materna. "Nós, os alemães..." Havia uma utopia e que tem a ver com uma certa arrogância européia, de um modo geral, que eu acho detestável. Isso de elogiar os gaúchos dizendo que eles são europeus é tipicamente brasileiro. 95 Fonte:< http://www.dw.de/lya-luft-a-culturaalem%C3%A3-me-influenciou-muito/a1437528> acesso em 24.09.2013. 242 É um pouco de inferioridade que faz contraponto à arrogância européia. E com a ignorância européia e americana a nosso respeito, que é quase total. E um pouco... o sujeito que se sente inferior também ironiza. Há um desprezo, no fundo. Não é um elogio. É um distanciamento e uma coisa pejorativa. Por isso eu não gosto. Eu me lembro de nós recebermos, na Deutsche Welle, e-mails de pessoas jovens falando em "Vaterland"... Eu acho isso uma loucura. Então devem ir embora bem depressa. Isso é de uma pobreza... O sujeito que não consegue amar seu próprio país também não vai conseguir amar o Vaterland [pátria] utópico. Tu achas que dá para dizer que há um culto à Alemanha entre os descendentes? Eu nunca tinha ouvido falar nisso. Tu és a primeira pessoa que me diz isso. Meus filhos nem falam alemão. Fiz questão de cortar. Querem falar alemão? Vão aprender. Mas há uma cultura alemã, como a Oktoberfest. Claro, mas isso é simpático. Não devemos renegar as raízes. Isso é muito legal. É como você ter CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Mas daí a morar no Brasil, ser de várias gerações e falar em "Vaterland"... Acho isso um horror. Então todos os açorianos devem falar: "Oh, pátria portuguesa!". Eu sou uma libertária e de certa forma anarquista. Eu não gosto disso. Tenho muito respeito e há uma raiz minha germânica, ligada à cultura e à educação, que me agrada. Agora, há uma certa arrogância e um preconceito que me desagradam. E um sentimento excessivo e rígido de dever. Mas eu não sou por cortar raízes ou renegar tradições. No Reunião de família, o professor, que era um cara muito frio, muito cruel, no começo ele era de origem alemã. Uns tipos que eu conheci na minha infância. Aí resolvi mudar. Eu não quero ser porta-voz dos descendentes de imigrantes alemães. Eu não quero ser porta-voz de nada. Eu quero ser completamente desligada. Eu quero minha liberdade para o exercício da minha arte, do meu trabalho. A cultura alemã te influenciou? Sim, muito. Essa é a parte que eu agradeço. Havia uma literatura alemã, francesa, italiana enorme na minha casa, além de brasileira e portuguesa. Li muito literatura alemã. Aos 11 anos decorava longos poemas de Goethe e Schiller. Para mim era natural. O que eu sempre combati é o seguinte: na Alemanha é melhor. Se na Alemanha é melhor, vá para lá. Eu não gosto das utopias que têm uma semente de arrogância. O Brasil tem muita coisa bagunçada, mas sempre que eu vou para o exterior e chego aqui, bom, esta é a minha terra. Eu gosto de morar aqui. E no Brasil, eu gosto de morar em Porto Alegre. E em Porto Alegre, eu gosto de morar nesta casa. Quais teus autores favoritos em língua alemã? Günter Grass. E Rilke. É um autor que leio sempre. Tenho uma edição de poemas em papel de seda que meu pai me deu quando eu era adolescente. Uma coisa que agrada tão imensamente por tanto tempo tem a ver com uma afinidade. É a coisa do "belo sinistro", o que tem muito a ver com a minha literatura. Tem muito a ver, também, com o "belo sinistro" dos contos de fada. Não quer dizer que Rilke tem a ver com os contos de fada. Os contos de fadas nórdicos são todos belos e terríveis. Os personagens sofrem muito, todo mundo tem que pagar um preço horroroso para ser feliz. Aquela coisa que é bonita, mas também meio ameaçadora. Tem um pouco desse "belo sinistro" em Rilke, também, e tem muito na minha literatura. Fecha uma coisa dele comigo que eu gosto imensamente. Como está sendo a experiência de escrever para a "Veja"? Muito boa. Quando a Veja me convidou, minha primeira atitude seria dizer não. É uma loucura, são um milhão de assinantes. Eu pensei: "Não, eu não vou querer esse compromisso a essa altura da minha vida". Conversei com meus filhos. Eles acharam graça. "Mãe, só tem duas 243 razões para tu recusares. Uma é preguiça, a gente sabe que tu és meio preguiçosa. A segunda é covardia, e tu adoras um desafio, tu não és covarde." É a primeira vez que uma mulher é colunista da Veja. Se eu recuso, vão dizer "tá vendo? Convidamos uma mulher e ela já quer cair fora". É a primeira vez que tem um colunista gaúcho, tirando o Luis Fernando Verissimo. Não, eu não podia cair fora. Nas duas primeiras colunas eu fiquei mais tensa. Veio aquela enxurrada de emails. Mas como o ser humano se acostuma com tudo, hoje faz parte do meu cotidiano. 244 Anexo 3 Uma Horinha com Deus... Posso ter uma horinha com Deus quando estou na fila do ônibus ou numa sala de espera ou em qualquer outra circunstância: quando tenho que esperar por alguém, quando não consigo dormir. É bom saber que a qualquer instante posso me comunicar com Deus e pedir a sua orientação. Meu Deus, quero aproveitar estes minutos de espera para lembrar que não estou só, que posso refazer as minhas forças pela oração, que posso pedir ajuda e consolo, na certeza de que não serei deixada sem resposta. Quero permanecer sempre em tuas mãos. Suplico pelo próximo que está encontrando dificuldade para acertar na vida. Não posso forçá-lo a subordinar-se à tua vontade, mas peço que me guies, para que a minha atitude o ajude a aproximar-se de Ti e a reconhecer que não pode haver felicidade sem ser em Ti. (U. 1922-2010, mãe de A.) 245