FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE
MATEMÁTICA EM UM CONTEXTO INCLUSIVO
Gisela Maria da Fonseca Pinto
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, [email protected]
INTRODUÇÃO
A atividade docente nos últimos anos tem se tornado bastante difícil. Além da
já conhecida problemática de relação dos estudantes com o estudo de matemática, os
tempos mais recentes têm associado mais um fator que pode ser inicialmente encarado
como um dificultador pela comunidade escolar: a chegada cada vez mais frequente de
alunos incluídos às salas de aula da educação básica. De que forma pode o professor de
Matemática chegar até um aluno cego, por exemplo? Como trabalhar com ele conteúdos
abstratos, que dependem de algum tipo de visualização sem poder utilizar o recurso de
imagens, esquemas ou figuras, que muitas vezes já não são suficientes para os alunos
que não têm oficialmente alguma deficiência? Refletir sobre essa problemática e
apresentar uma experiência realizada com materiais pensados para este fim, sob a ótica
do professor, é o objetivo do estudo apresentado neste texto.
Este trabalho relaciona-se com estudos da pesquisa de doutoramento da autora
junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade
Anhanguera de São Paulo. Não serão apresentadas as conclusões da pesquisa de
doutoramento, visto que este é o segundo ano do curso. Os objetivos deste trabalho
consistem em compartilhar os resultados de um recorte desta pesquisa. Sob a
problemática da formação inicial de professores de matemática para o trabalho com
alunos incluídos e tomando como referencial teórico o panorama descrito por Ball,
Thames e Phelps (2008) sobre conhecimentos docentes, procurar-se-á relacionar a
formação de professores de matemática e a inclusão de alunos com deficiências em sala
de aula. Neste contexto, a experiência com alunos da autora sobre o uso de material tátil
será relatada reflexivamente em relação aos conhecimentos revelados pelos docentes em
formação perante o referencial teórico adotado.
A insuficiência da formação de professores em relação à educação dos alunos
com deficiências incluídos na sala de aula regular tem sido tema de pesquisas em
educação. Por exemplo, ao analisar o discurso dos professores sobre a inclusão de
alunos com deficiência, Taveira (2008) tece considerações sobre as concepções destes
professores sobre o sucesso e o fracasso escolar dos alunos com deficiência inseridos
em salas de aulas regulares. Dentre os resultados relatados em seu trabalho, destacamse, como elementos frequentes no discurso dos professores-sujeitos-da-pesquisa: (a)
necessidade de rotular o aluno, identificando quem é e quem não é normal; (b)
percepção do professor (pelo professor) como vítima nesse processo; (c)
encarteiramento do aluno, que se encontra inserido, mas isolado em sua carteira.
Taveira (2008) conclui que a inclusão é vista pela maioria dos professores participantes
da pesquisa como algo imposto, a que o professor precisa se adaptar, mesmo sem ter
tido acesso a estudos na área. As reações dos professores variam: enquanto alguns
tentam criar ou adaptar tarefas especialmente pensadas para estes alunos, outros não
conseguem fazer isto, demonstrando claramente todo o desconforto sentido com a
situação e a insatisfação em não dar conta do que é esperado deles.
Gil (2008) foca-se na questão do professor de Matemática que trabalha com
surdos ao pesquisar sobre as necessidades formativas de professores que ensinam
conceitos matemáticos a alunos com deficiências auditivas, tendo por objetivo a
caracterização da prática pedagógica destes professores a partir de situações de ensino e
aprendizagem e a identificação das necessidades formativas relatadas por eles. Alguns
dos resultados encontrados por Gil (2008) são bastante pertinentes ao contexto deste
estudo. Os professores identificam a necessidade de formação técnica para o trabalho
com alunos incluídos, como o conhecimento de LIBRAS neste caso específico. As
especificidades inerentes à tipologia desta linguagem, que tem forte apelo visual, e que
precisa ser explorada nas aulas, e suas relações com a aprendizagem e o ensino de
matemática são outro ponto destacado. A construção de uma dinâmica que abarque
todos os alunos, com ou sem deficiências oficiais, na aula de Matemática também
apresentou-se como uma preocupação dos sujeitos desta pesquisa, devendo ser tema,
segundo eles, de especial importância para a formação do professor. Outras questões
que emergem são o calendário escolar e o cumprimento do programa pelo professor e a
dependência para com o livro didático. O professor precisa refletir sobre isso durante a
sua formação, percebendo que pode modificar condições iniciais para favorecer o
aprendizado do seu grupo.
Araújo et al. (2010), em uma revisão bibliográfica de artigos que tratam da
formação de professores para a inclusão escolar da pessoa com deficiência realizado na
base SciELO, analisou as concepções de formação permanente, desenvolvimento e
aprendizagem profissional dos professores, inclusão e educação especial na perspectiva
da educação inclusiva. Os resultados dos 18 artigos encontrados e analisados indicam as
dificuldades dos professores em romper com modelos tradicionais, embora tentem usar
criatividade para lidar com os alunos incluídos – a inclusão de fato ainda não se
processa. Relatos sobre mudanças na atitude social do aluno incluído apareceram
também, indicando alguns resultados positivos neste aspecto. Professores indicam ainda
um sentimento de conforto com programas de formação continuada que abordem esta
problemática, visto que são momentos em que podem estudar, externar suas
dificuldades e trocar ideias, compartilhando fracassos e sucessos com seus colegas e
colhendo sugestões para usar em suas salas.
Ball, Thames e Phelps (2008), em suas considerações sobre a formação do
professor de matemática, sugerem uma especificação das ideias e da estrutura proposta
por Shulman (1986). O ponto de vista apresentado pelos autores transcende ao que o
professor precisa saber para ensinar, envolvendo o que eles precisam ser capazes de
fazer para efetivar o ensino. Fala-se aí de um tipo de raciocínio matemático próprio ao
ensino, mas que nem sempre existe nos adultos, independente de terem recebido uma
boa educação – são as demandas matemáticas especiais para o ensino de matemática
(p.398, tradução pessoal).
Considerando o objetivo deste trabalho, o conjunto de conhecimentos docentes
que podem ser relacionados à formação de professores para a inclusão parecem transitar
entre o conhecimento de conteúdo e ensino e o conhecimento de conteúdo e estudantes.
Questões relacionadas à dimensão horizontal e curricular do conhecimento também se
tornam importantes, visto que a percepção da continuidade do estudo de determinado
objeto e suas possíveis ampliações e aprofundamentos bem como a flexibilização de
currículo e avaliações são questões úteis e importantes para o professor de matemática
exercer, de maneira eficaz, seu papel no ensino inclusivo. Nesta direção, oferecer aos
professores em formação inicial ou continuada atividades que lhes permita vivenciar um
pouco do que pode ser encontrado em uma sala de aula inclusiva parece ser uma ideia
profícua. Destarte, colocando o professor-aluno em situação de aluno incluído ou aluno
companheiro de aluno incluído, ou ainda em situação de professor de turma com aluno
incluído permite uma antecipação de eventuais vivências e consequentemente uma
reflexão e análise acerca desta vivência.
No intuito de promover esta experiência, foi proposta aos alunos da disciplina
de Laboratório de Ensino de Matemática da Educação Básica II, do curso de
Licenciatura em Matemática da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro uma
atividade com um material denominado MatrizMat. Este material teve origem em uma
dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Matemática da Universidade Anhanguera de São Paulo, de autoria de Gerciane Gercina
da Silva, e concluída em 2012, sob a orientação da Profª. Dra. Solange Hassan Ahmad
Ali Fernandes.
A ferramenta material desenvolvida por Silva (2012) foi planejada de modo a
ser multissensorial, de maneira que cegos e surdos pudessem utilizá-la para mediar
processos de aprendizagem de matrizes. É composta por caixinhas (quadrix) em formato
de prisma reto com base quadrada medindo cerca de 5cm em cada lado e 3cm de altura.
Para o registro numérico, pode ser usado material de contagem, cartões com números ou
com representações em braile dos números, conforme pode ser visto na imagem a
seguir.
Figura 1 – MatrizMat (SILVA, 2012, p.66)
METODOLOGIA, RESULTADOS E DISCUSSÃO
A utilização deste material na experiência da autora deste trabalho foi feita
usando dois formatos de botões: coração, que representava unidades positivas, e flor,
que representava unidades negativas. Participaram 6 alunos da referida turma. O grupo
foi inicialmente dividido em dois grupos com 3 integrantes em cada, sendo que em cada
grupo dois integrantes mantiveram seus olhos fechados desde o começo da atividade e
um não. Como primeira atividade, entregou-se para cada trio um conjunto com 6
quadrix dispostos no formato 2 por 3, com botões. Não havia botões de tipo diferente no
mesmo quadrix. O solicitado foi que eles procurassem associar o que estavam vendo
(um com os olhos e os outros dois com as mãos) a algum objeto matemático que já
conhecessem. A analogia com matriz surgiu rapidamente, assim como a ideia de tabela.
A partir daí, fixada a ideia do trabalho com matrizes, ou seja, de que o material
representava matrizes, pediu-se que eles descrevessem a matriz que eles tinham. Para
isso, precisaram fixar um referencial de “base” para a matriz, a partir do que começaram
a contar. Perguntaram inicialmente qual era essa “base”, ao que orientou-se que eles
mesmos definissem e que a partir daí identificassem os elementos ij da matriz que
tinham. Os dois grupos concluíram a tarefa sem problemas.
As duas outras atividades desenvolvidas relacionaram-se a operações com
matrizes. Foram registradas no quadro negro duas matrizes e solicitado que
representassem essas matrizes. O aluno que não estava “cego” leu a matriz para os
colegas, que a representaram, sem dificuldades. A partir daí solicitou-se que somassem
as duas matrizes e em seguida, que diminuíssem. As operações foram realizadas de
forma colaborativa, espontaneamente, onde cada “cego” cuidou de uma matriz. Os dois
grupos trabalharam de forma semelhante. Um dos grupos usou sistema de compensação,
fazendo uma flor e um coração se anularem, deixando no quadrix correspondente a
sobra; já o outro grupo registrou mentalmente a quantidade existente em cada quadrix
correspondente de uma e outra matriz e então o “não cego” efetuou a soma dos dois
valores. Nenhum dos dois grupos apresentou dificuldades. No caso da subtração, um
dos grupos substituiu os elementos da segunda matriz pelos seus simétricos – corações
por flores e vice-versa. Conversando sobre a razão de terem procedido desta forma,
comentaram que se preocuparam com a compreensão da diferença de matrizes, que
poderia encontrar barreiras conceituais oriundas de dificuldades com operações com
números inteiros, e que por esta razão preferiram fazer desta forma. Ficou claro que este
grupo estava pensando no ensino usando este recurso, e não apenas em realizar o que
lhe era proposto.
O próximo e último passo foi solicitar que efetuassem o produto de A pela
matriz transposta de B, o que foi feito com processo de giro de 90º no sentido positivo
do círculo trigonométrico. Novamente aqui a noção de “base” da matriz foi importante
para referenciar qual a linha mais baixa. A associação com uma transformação
geométrica veio facilmente nos dois grupos. Por outro lado, efetuar o produto não foi
tão simples. O papel do “não cego” foi o de um “calculista” de apoio. Nos dois grupos,
o “não cego” atuou como uma espécie de tutor, tendo pouco papel ativo na realização
das atividades. Os grupos mantiveram as matrizes “coladas”, não tendo utilizado a
possibilidade de descolar as linhas da primeira e as colunas da segunda. Justificaram
isso posteriormente, quando perguntados, pelo receio de que fizessem confusão,
recolocando a fila em lugar diferente do que estava anteriormente. Vimos daí que
podemos orientar a realização de um algoritmo com os alunos realmente deficientes,
considerando que pode facilitar o processo como um todo, caso ele não surja
naturalmente ou ainda se o aluno encontrar dificuldade em realizar o processo.
Na aula seguinte, conversando sobre o material, surgiu a ideia de usar os
quadrix para estudar frações, reproduzindo atividades feitas com papel quadriculado
para representar frações no modelo contínuo. Outra possibilidade aventada no encontro
foi trabalhar com geometria espacial, montando sólidos por empilhamento dos quadrix,
ou ainda a contagem por organização retangular, remetendo a área de retângulos e à
multiplicação de naturais.
Conclusões
Utilizar o MatrizMat com os licenciandos foi uma experiência enriquecedora
tanto para a pesquisadora quanto para os alunos, que puderam se colocar, pela primeira
vez, segundo contaram, no papel da pessoa com deficiência e, ao mesmo tempo, do
professor deste. As conversas posteriores à aplicação da atividade giraram justamente
em torno da possibilidade real e concreta de que as situações simuladas se tornassem
reais – e sobre o quanto tinha sido produtivo ter tido oportunidade de pensar sobre isso.
Esta oportunidade atuou direta e simultaneamente na área dos conhecimentos de
conteúdo do estudante e para o ensino, na perspectiva de Ball, Thames e Phelps (2008).
Em um tempo de uma hora e meia, a sensação que fica é de que muito mais foi feito no
sentido de promover a formação para a ação docente matemática junto a alunos
incluídos do que tem sido feito em disciplinas como educação especial ou similares, que
normalmente tipificam as deficiências e tratam dos aspectos legais apenas, sem
promover a integração e a reflexão sobre o ensino de matemática a estes alunos em
conjunto com os não deficientes, e não isoladamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, M. V.; RUSCHE, R. J.; MOLINA, R. e CARREIRO, L. R. R. Formação de
professores e inclusão escolar de pessoas com deficiência: análise de resumos de artigos
na base SciELO. Rev. psicopedag. [online], vol.27, n.84 [citado 2014-09-06], pp. 405416, 2010.
BALL, D. L.; THAMES, M. H.; PHELPS, G. Content knowledge for teaching: What
makes it special? Journal of Teacher Education, New York, v. 59, n. 5, p. 389 - 407,
nov./dez. 2008.
GIL, R. S. A. Educação Matemática dos surdos: um estudo das necessidades formativas
dos professores que ensinam conceitos matemáticos no contexto de educação de
deficientes auditivos em Belém/PA. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Ciências e Matemática do Núcleo de Apoio ao Desenvolvimento
Científico. UFPA. Belém: 2008.
SILVA, G. G. O ensino de matrizes: um desafio mediado para aprendizes cegos e
aprendizes surdos. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática). Universidade
Anhanguera de São Paulo: São Paulo, 2012.
TAVEIRA, C. C. Representações Sociais de Professores sobre a Inclusão de Alunos
com Deficiência em turmas regulares. Dissertação (Mestrado em Educação).
Universidade Estácio de Sá: Rio de Janeiro, 2008.
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