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A Origem dos Direitos Humanos
Luiz Roberto Boettcher Cupertino *
As discussões sobre Direitos Humanos, nos dias atuais, tomam boa
parte dos espaços de publicações e telejornais, abordando inúmeros pontos de
conflito entre a prática e a norma, desde re latos de tortura feita por soldados
americanos a prisioneiros de guerra até as mais recentes discussões sobre
relatos de tortura por parte de policiais. Por toda a parte, acaloradas querelas
envolvem os defensores dos direitos humanos e aqueles que têm dif iculdade,
mesmo após longo período de consolidação desses direitos, para reconhecer
sua legitimidade, envolvidas, muitas vezes, em desconhecimento histórico e
das batalhas que foram travadas no desenvolvimento da humanidade rumo à
proteção da dignidade hum ana.
Neste breve texto, o objetivo é indicar como surgiram as discussões
sobre os direitos do homem, quais suas bases teóricas, como os direitos se
desenvolveram da teoria à prática, por meio da sua positivação e
especificação, de modo que possamos elucid ar, ainda que em linhas
condensadas, a origem dos direitos do homem.
Direito e Dever
Em agosto de 1789, um documento fundamental foi concebido na
França revolucionária. Trata -se da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que despertou empolgação internacional acerca de suas bases e
fundamentos. Kant, filósofo que viveu no séc. XVIII, uma das maiores cabeças
pensantes que a humanidade já promoveu, viu nesse momento histórico uma
disposição moral da humanidade. Para o filósofo, a humanidade outorga va a si
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mesma sua autonomia, sua liberdade, que consistia no direito do homem de
obedecer às leis sobre as quais ele pôde carimbar seu consentimento. Que os
homens pudessem legislar e seguir as leis que eles mesmos construíram,
estava aí a semente libertad ora que tanto fascinou Kant. Estava aí também a
base para a construção da longa, muitas vezes tortuosa, estrada dos direitos
do homem.
Alguns aspectos, porém, são passíveis de explicação. Em primeiro lugar,
cabe ressaltar que a figura do ‘direito’ se afig urava como um novo patamar de
reivindicações e garantias. A figura deôntica (que se relaciona com as normas)
originária não é o direito e sim o dever. Desde o s códigos antigos, passando
pelos 10 mandamentos e toda sorte de leis e ordenamentos pelos quais o s
homens foram disciplinados, notamos como critério fundamental a perspectiva
do governante, do Estado, a preocupação com o melhor governar, como na
República de Platão, em que se busca o governante ideal. O homem sempre
esteve a par de cumprir sobretudo o brigações. O ponto de vista da sociedade,
e não do indivíduo, é que prevalecia. Na Grécia Antiga, a título de ilustração, a
figura da lei se arquitetou tendo como fundamento a idéia de que o crime
cometido contra algum cidadão era um crime cometido contra a comunidade e,
em última instância, contra o Estado como instituição, substituindo a vingança
privativa de sangue contra o criminoso pela punição regida pelo ordenamento
jurídico e suas leis penais.
A função primária da lei é, porta nto, a de restringir liberdade. Essa
função, como vimos, se baseou no primado da sociedade sobre o indivíduo. Os
pensadores do jusnaturalismo (doutrina do direito natural , baseada na idéia de
que o homem nasce com direitos, universais, que são inerentes à sua natureza
humana e que devem ser protegidos a todo custo ), semente que deu seus
frutos na Revolução Francesa, na construção do Estado de Direito e da
democracia moderna, começaram a verdadeira revolução copernicana na
inversão desse princípio histórico. Partindo da perspecti va do indivíduo, o
direito natural concebia o homem como detentor de direitos de natureza inatos,
universais e inalienáveis, que deveriam s er garantidos. Sua vida, sua
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Liberdade, a sua segurança, sua propriedade, e o direito à resistência sobre
qualquer organismo que obstruísse a garantia desses direitos: essa s são as
principais heranças dos pensadores jusnaturalistas. Para John Locke, pai do
liberalismo, antes de surgir a sociedade civil e o estado, o homem vivia no
estado de natureza, estado esse anterior ao aparecimento de uma sociedade
civil, em plena liberdade e igualdade naturais, sem instituições. Igualdade que
consiste, inclusive, em todos serem os mesmos enquanto livres. O estado civil,
que suplantou o estado de natureza, tinha como objetivo, com suas instituições
e regras, somente a proteção desses direitos naturais por meio das garantias e
do poder do estado. A perspectiva do indivíduo foi a base para que fosse
possível passarmos da figura do dever estrito e das obrigações para a
reivindicação de direitos e garantias. Surgem , assim,
os direitos públicos
subjetivos.
A Evolução dos Direitos
Se concebemos o primado do indivíduo sobre a sociedade como um dos
principais legados do pensamento moderno, de Locke a Kant, podemos
também avaliar como os d ireitos surgidos daí deram ensejo ao aparecimento
de uma nova consciência política. Ora, a democracia é ela mesma
fundamentada no princípio do indivíduo singular. Quem toma decisões, num
sistema democrático, não é o povo, concebido como massa coletiva, e s im os
indivíduos singulares, por meio de seu voto particular na urna. A decisão da
maioria nada mais é do que uma soma aritmética de individualidades. Ao se
estabelecer sobre o pilar do individualismo, nascia também a democracia
moderna.
É interessante notar que os teóricos do jusnaturalismo travavam
uma briga historicamente situada, aquela da luta contra a opressão do estado
absoluto e dos abusos das entidades religiosas. Locke defendia a propriedade
como uma extensão da liberdade e do trabalho do indi víduo. Apesar desses
aspectos terem sido duramente criticados pelos movimentos sociais do século
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XIX, particularmente a concepção da propriedade pelos marxistas, que acabou
colando o nome de ‘revoluções burguesas’ à s revoluções americana, inglesa e
francesa, é preciso ter em vista que a propriedade, naquele momento histórico,
representava um importante instrumento de defesa contra o poder arbitrário do
soberano. Proteger a propriedade dos cidadãos, conseguida por meio do seu
trabalho, para Locke, era delimi tar o poder do governo e garantir a liberdade
fundamentada no direito natural, desde sempre cravada na natureza humana ,
livre assim dos braços coatores do absolutismo . O contrato social, firmando
entre os cidadãos e o governante, estabelecia, assim, que o poder do estado é
estabelecido e legitimado de baixo para cima, do povo para o governo. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não é outra coisa senão a
tentativa de dar concretude a essas teorias, por meio de sua codificação, e
representava a luta moderna por excelência, a saber, aquela de conciliar
interesses públicos com interesses privados. O seu título já é curioso: o que
diferencia afinal homens de cidadãos?
Rumo à Declaração Universal e à Especificação
Homem versus cidadão: apreender o q ue dessa suposta contraposição?
Primeiramente, devemos notar que ao homem genérico, detentor de direitos
tidos como universais, tais como a liberdade, abstrato s, contrapõe-se a figura
do cidadão, incluído no ordenamento social, com direitos específicos e
delimitados. São os horrores da segunda grande guerra que colocam em
funcionamento um processo interessante na evolução dos direitos: sua
universalização e sua especificação.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de
1948, é um marco histórico fundamental. Norberto Bobbio, contemporâneo
pensador político e jurista italiano, acredita, como Kant acreditou no século
XVIII, que a busca cada vez maior por universalização dos direitos e o debate
sobre o tema, representa, no conturbado fut uro que se avista para a
humanidade, um traço singular de otimismo. O art. 1ª da Declaração Universal
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fala em homens que nascem iguais em liberdade e direitos, no que dá
continuidade ao pensamento do direito natural como ideal, fazendo coro com
Rousseau. Em seu preâmbulo, está previsto também o direito de resistência,
caso um estado de direito não tutele os direitos fundamentais assegurados a
todo ser humano. A Declaração Universal representa um princípio que Kant já
havia defendido em seu célebre livro A Paz Perpétua: o chamado direito
cosmopolita, ou seja, o direito de hospitalidade de qualquer cidadão e m
qualquer parte do mundo. Num primeiro momento, o indivíduo emancipado da
opressão do Estado, agora o indivíduo é um cidadão do mundo. Para Bobbio, o
documento é sintomático porque representa a primeira vez que um sistema de
valores se torna universal de fato, através de um docum ento assinado por 48
Estados, configurando a maioria da população do mundo, num consensus
omnium gentium para o bem universal.
Mas não é somente a universalização dos valores um acontecimento
marcante. Os direitos vão evoluindo rumo a uma especificação cada vez maior.
Normalmente, podemos atribuir 3 fases à criação de direitos: a primeira se
configura como a fase de obter liberdade em relação ao Estado, limitando o
poder do Estado e protegendo o indivíduo. Podemos chamá-los de direitos de
primeira geração. Num segundo momento, nascem os direitos políticos, de
segunda geração, cujo mote é a participação cada vez maior de membros da
sociedade civil no poder estatal, se configurando como liberdade no Estado.
Posteriormente, nascem os direitos sociais, a terceira geração, que exigem do
Estado não mais um afastamento e um limite de atuação, mas cobram dele
assistência e proteção. A partir desses pilares básicos, surgem então novas
reivindicações, cada vez mais situadas, dando ensejo a direitos de gerações
posteriores. Antes o homem universal, agora um homem concreto, com sexo,
idade e estado mental delimitados e diferenciados. O direito da criança, da
mulher, do idoso, do deficiente mental e físico, todos esses específicos pólos
de preocupação vão sendo preenchidos por documentos cada vez mais
sofisticados. Alguns exemplos são
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a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952), a Dec laração da
Criança (1959), a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971), a
Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos ( 1975), a Resolução da
Assembléia da ONU pelos Direitos dos Anciãos (1982), dentre outros
documentos importantes. Em suma, primeiro foram assegurados os direitos
fundamentais do homem, fundamentados muitas vezes numa idéia racionalista
de natureza humana e direito natural, como vimos, e então passamos a, uma
vez estabelecidas as garantias fundamentais, uma busca pela defesa de
direitos específicos, de grupos distintos e com peculiaridades entre si. Mesmo a
defesa do meio ambiente é hoje algo que se coloca em voga, e sua defesa é
feita numa linha de raciocínio seqüencial aos direitos já conquistados, com
referências ao sofriment o da natureza e sua proteção. O que mostra a
historicidade dos direitos, o modo como eles vão se tornando mais ou menos
importantes à medida que se desenrola o processo histórico.
Considerações Finais
Os direitos do homem seguem um caminho que passa, como constata
Bobbio, pelo seu “nascimento como direitos naturais universais, desenvolvem se como direitos positivos particulares, para finalmente mostrarem sua plena
realização como direitos positivos universais”. Seu estágio atual não é mais
aquele da busca por sua fundamentação, mas sim da busca pela sua proteção.
O distanciamento entre a teoria e a prática é, sem dúvida, o que mais
preocupa. A questão de fazer com que se cumpra os códigos que foram
concebidos por homens de boa vontade e ideais humanos é um desafio que se
agiganta. Torna relevante o vislumbre de um ideal de justiça universal e sem
fronteiras para a humanidade por meio de suas novas gerações.
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*Assessor temático da Assembléia Legislativa de Goiás, mestre em política e professor
universitário.
Bibliografia
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. São Paulo: Ed. Campus, 1992.
Declaração Universal dos Direitos Humanos - www.un.org.
KANT, I. A Paz Perpétua e outros opúsculos . Lisboa: Ed. 70, s/d.
LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo . São Paulo: Nova Cultural, 1974.
ROUSSEAU, JJ. Do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1974.
VERNANT, J-P. As origens do Pensamento Grego . Rio de Janeiro: Difel, 2002.
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