ADJUNTO ADVERBIAL: REFLEXÕES ENTRE A SINTAXE E A SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO PRISCILA BRASIL GONÇALVES LACERDA Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos Faculdade de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 – 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil. [email protected] Resumo. Este texto apresenta reflexões que apontam para um sistema de traços constitutivos do lugar de adjunto adverbial, a partir de uma sintaxe de bases enunciativas, cujas diretrizes são perpassadas pela premissa básica de que os fatos sintáticos se fundam na relação entre a materialidade articulada da língua e o acontecimento enunciativo. Explicitam-se aqui, para a definição dos adjuntos adverbiais, os traços de fraqueza sintática e baixa proeminência na configuração do modo de enunciação da sentença. Palavras-chave. Adjunto adverbial. Sintaxe. Semântica da enunciação. Referência. Sistema de traços. Abstract. This paper presents some reflections that point to a system of features constituting the site named adverbial adjunct. These reflections are based on an enunciative syntax, whose guidelines are crossed by the basic premise that syntactic phenomena are based on relationship between the linguistic materiality and enunciative event. It is presented here, for definition of adverbial adjuncts, two features: syntactic weakness and low prominence in the configuration of reference mode of the sentence. Key-words. Adverbial adjunct. Syntax. Enunciative semantic. Reference. System of features. 1. Delimitação do objeto de estudos e apresentação do recorte teórico O presente texto apresenta uma análise do lugar sintático de adjunto adverbial, colocando-se na interface entre uma sintaxe e uma semântica de bases enunciativas. Tomar os adjuntos adverbiais como objeto de estudos não chega a ser uma restrição eficiente para a análise, dada a amplitude de subcategorias que podem ser encontradas sob esse rótulo. Desse modo, ainda que o nosso trabalho tenha o propósito de produzir explicações que articulem a sintaxe e a semântica do adjunto adverbial como um lugar sintático único, somos impelidos a fazer um recorte. Restringimo-nos, então, aos adjuntos adverbiais encabeçados pela preposição “em”. A perspectiva teórica que mobilizamos, denominada sintaxe de bases enunciativas, orienta-se pelos seguintes pressupostos: i) o emprego da língua é “um 1 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira”, sendo esse emprego – a enunciação – fenômeno tão necessário que parece se confundir com a própria língua (BENVENISTE, 2006, p. 82); ii) os fatos sintáticos se fundam na relação entre a materialidade articulada da língua e o acontecimento enunciativo (DIAS, 2009); iii) a enunciação é o “acontecimento sócio histórico da produção do enunciado” (GUIMARÃES, 1989, p. 78.), é um acontecimento que tem uma temporalidade própria, em cujo presente, convergem um passado e um futuro, ou seja, uma memória históricosocial releva-se na constituição dos sentidos configurados no presente do acontecimento, e essa configuração produz uma latência de futuro que constituirá, sob o signo da regularidade, o corpo memorável de outras enunciações (Idem, 2002); iv) os lugares sintáticos são lugares de constituição ou de configuração de referência; v) a referência, antes de se configurar como relação entre a linguagem e uma entidade do mundo, é um efeito de sentidos atribuídos pela relação de um enunciado com outros enunciados. Tomando como base essas premissas fundamentais, desenvolvemos na sessão seguinte uma reflexão que nos conduz a dois traços que julgamos serem constitutivos do lugar de adjunto adverbial. 2. Rastreando traços constitutivos do lugar de adjunto adverbial Acreditamos que seja produtivo, como ponto de partida, problematizar o julgamento tradicional que considera os adjuntos adverbais termos acessórios da oração. Antes, no que concerne à construção da referência da sentença, os adjuntos adverbiais parecem exercer um papel, senão fundamental, de relevância impar, o que seria demonstrável pelos exemplos (1) e (2). (1) Paulo não bebe café de manhã. (2) Paulo não bebe café. Em ambas as sentenças, temos a informação de que “Paulo não bebe café”. A diferença reside no fato de que em (1) tal informação tem caráter relativo, ao passo que em (2) a informação possui caráter absoluto. Ou seja, as sentenças em análise não podem se referir ao mesmo Paulo, e tal diferença se mostra unicamente pela presença do grupo preposicionado “de manhã” no lugar de adjunto adverbial. O Paulo referido em (1) bebe café, mas não o faz pela manhã. Já o Paulo referido em (2) não bebe café em momento nenhum. Apesar de os adverbiais apresentarem evidente relevância referencial, o lugar sintático que os abriga parece bastante suscetível de ser atingido pela negação. No mesmo par de exemplos, observamos que o “não” incide preferencialmente sobre o elemento ocupante do lugar de adjunto adverbial. Em (1), o “não” incide sobre a expressão de tempo “de manhã” e não sobre o predicado “bebe café”, embora este último figure como possibilidade. Revela-se, portanto, o primeiro traço do lugar de adjunto adverbial: baixa resistência à negação. Mais uma vez pelo contraste estabelecido entre a ocupação do lugar de adjunto em (1) e a não ocupação desse mesmo lugar sintático em (2), observamos o fato de esse 2 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin lugar não constituir referência in absentia, já que não há nenhuma referência memorável no escopo do lugar de adjunto adverbial da sentença em (2). O exemplo em (3) permitenos verificar essa característica, estabelecendo um contraste entre os lugares de adjunto adverbial e de objeto. (3) Paulo não bebe. A sentença (3) mostra claramente que a não ocupação do lugar de adjunto adverbial carece de um silêncio constitutivo de referência, pois lhe falta sustentação na sentença. O lugar de objeto, em contrapartida, está fortemente ancorado no verbo, de modo que a não ocupação desse lugar constitui uma referência vinculada à memória de dizeres de „beber‟, nesse caso, remetendo à bebida alcoólica. Desse modo, associando o fato de o lugar de adjunto adverbial ser alvo preferencial da negação ao fato de ele não ser passível de constituir referência in absentia, uma vez que não está vinculado à memória de enunciações do verbo, ganhamos evidências para indicar que o lugar de adjunto adverbial é sintaticamente frágil. Essa fraqueza também pode ser atestada pela diversidade de posições em que ele pode aparecer nas sentenças e dos efeitos que seus deslocamentos podem desencadear. Vejamos: (4) a- A Laura SUJ conheceu o José OBJ nas férias ADJ. b- O José OBJ, a Laura SUJ conheceu nas férias ADJ. c- (??) Conheceu a Laura SUJ o José OBJ nas férias ADJ. d- (??) A Laura SUJ o José OBJ conheceu nas férias ADJ. e- Nas férias ADJ, a Laura SUJ conheceu o José OBJ. f- (?) A Laura SUJ, nas férias ADJ, conheceu o José OBJ. g- (?) A Laura SUJ conheceu, nas férias ADJ, o José OBJ. As sentenças em (4) conformam a mesma sintaxe, uma vez que elas são constituídas pela articulação dos mesmos lugares sintáticos, a saber, de sujeito (SUJ), de objeto (OBJ) e de adjunto adverbial ( ADJ), sendo ocupados pelos mesmos grupos nominais (GNs) e grupo preposicionado (GPrep), além de contarem com a mesma forma verbal. O que as distingue é tão somente as posições dos elementos em cada sentença. A sentença (4a) apresenta os elementos ocupantes dos referidos lugares sintáticos alocados na posição considerada canônica pela tradição gramatical. O elemento ocupante do lugar de sujeito, o GN “a Laura”, posiciona-se antes da forma verbal em todas as sentenças bem formadas. O deslocamento do GN-sujeito para uma posição pós-verbal produz uma sentença pouco aceitável, como vemos em (4c), ao passo que a retirada desse GN de uma posição imediatamente anterior à forma verbal pode constituir outra sentença pouco aceitável, como em (4d), ou uma sentença 3 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin duvidosa, como em (4f). 1 Já o GN-objeto, “o José”, pode perfeitamente figurar em posição pré-verbal, sendo topicalizado como em (4b), mas constitui uma sentença duvidosa ao permanecer em posição pós-verbal sendo interceptado por um adjunto adverbial, como em (4g). Por sua vez, o GPrep-adjunto, “nas férias”, parece ter maior mobilidade dentro da sentença, já que os seus deslocamentos não resultam em nenhuma sentença pouco aceitável, o que mostra que a ligação entre lugar sintático e posição é bastante frouxa para o adjunto adverbial, se comparada à relação entre lugar sintático e posição que se observa para o sujeito e objeto, pois estes lugares estão muito mais arraigados à sua posição de recorrência do que aquele. A relação lugares sintáticos e posições é tão mais consistente para os lugares de sujeito e de objeto, que eles constituem referência, configuram um dizer pelo silêncio, mesmo não estando ocupados. Vamos agrupar em dois pares as sentenças pouco aceitáveis, (4c) e (4d), de um lado, e as sentenças duvidosas (4f) e (4g), de outro, a fim de explicitar essa divergência de classificação. As sentenças (4c) e (4d) seriam categorizadas como pouco aceitáveis porque colocamos, respectivamente, entre a forma verbal e o sujeito ou entre a forma verbal e o objeto, elementos ocupantes de outro lugar sintático igualmente forte. Assim, o elemento no lugar de sujeito serve de barreira para a articulação entre o lugar de objeto e a forma verbal na sentença (4c), enquanto na sentença (4d) ocorre exatamente o inverso. No segundo par de exemplos, em contrapartida, o elemento ocupante do lugar de adjunto não parece exercer de fato um bloqueio para a articulação da forma verbal com o elemento ocupante do lugar de sujeito, em (4f), nem mesmo para a articulação entre a forma verbal e o elemento ocupante do lugar de objeto, em (4g). Percebemos uma interferência mais ou menos significativa resultante do distanciamento desses lugares sintáticos fortes das adjacências da forma verbal, o que leva as sentenças a uma zona de dúvida quanto à aceitabilidade, mas não parece ser uma interferência suficientemente expressiva para configurá-las como sentenças pouco aceitáveis ou malformadas. Enfim, podemos extrair da comparação entre esses dois pares de exemplos indícios que comprovariam a avaliação do lugar de adjunto adverbial como um lugar sintaticamente frágil. Assim, para tornar o primeiro traço do lugar de adjunto adverbial mais abrangente, o renomeamos como traço de fraqueza sintática. Comparemos agora as sentenças de (5) a (7): (5) Lívia faz artesanato no exterior. (6) Faça curso de idiomas no exterior. (7) Quem faz no exterior merece o que constrói. Colocando as sentenças de (5) a (7) em uma escala que vai de um modo de enunciação mais especificador a um modo de enunciação mais genérico, como ilustramos adiante. A sentença em (5) estaria mais próxima da extremidade que representa o modo de enunciação mais especificador, já que o ocupante do lugar de sujeito dessa sentença, “Lívia”, constitui uma referência específica; a sentença em (6) 1 Perini (2010, p. 69) apresenta como regra de identificação do sujeito: “se houver mais de um SN [na constituição da sentença], então o sujeito é o SN que precede imediatamente o verbo”. Para os efeitos da presente explicação, SN equivale a GN. 4 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin estaria em uma zona intermediária tendendo à generalização, pois o seu lugar de sujeito remete a um interlocutor qualquer, a um “você” que possa se interessar por um curso de idiomas no exterior; e, finalmente, a sentença (7) estaria alocada mais próxima da região que representa um modo de enunciação mais genérico, uma vez que o lugar de sujeito dessa sentença é ocupado por um “Quem” equivalente a “Aquele que”, constituindo um elevado grau de amplitude referencial. O elemento ocupante do lugar de sujeito seria, portanto, proeminente na configuração do modo de enunciação das sentenças, variável que estabelece a abrangência do escopo de referência das sentenças. Contínuo dos modos de enunciação + especificador + genérico O lugar de objeto, por sua vez, mostra-se interveniente na determinação do direcionamento referencial da sentença. Em (5), o GN “artesanato”, ocupante do lugar de objeto, constitui um recorte na memória de dizeres do verbo „fazer‟, produzindo um direcionamento nos sentidos que perpassam esse verbo. Nesse caso, o verbo „fazer‟ atualiza um sentido de "confeccionar", ao passo que, em (6), o mesmo verbo atualiza um sentido de "praticar". Em ambos os exemplos, temos um escopo de referência dirigido pelo elemento ocupante do lugar de objeto. Na sentença (7), do mesmo modo, a não ocupação do lugar de objeto do verbo „fazer‟ é solidária à constituição de um amplo escopo de referência, pois há nesse lugar sintático um vazio significativo que constitui uma referência centrada no verbo. Nos três exemplos em questão, podemos observar diferenças, seja no direcionamento seja no escopo de referência das sentenças, entretanto, isso parece ocorrer à revelia de elas terem o lugar de adjunto adverbial ocupado pela mesma expressão indicadora de lugar, “no exterior”. Portanto, o elemento ocupante do lugar de adjunto adverbial não parece atuar diretamente na constituição de um recorte na memória de sentidos do verbo e tampouco parece definir a amplitude do seu escopo de referência. Observamos, assim, o segundo traço associado ao lugar de adjunto adverbial: baixa relevância na configuração do modo de enunciação da sentença. Ao investigarmos o primeiro traço aqui apontado como constitutivo do lugar de adjunto adverbial, defendemos a importância dos elementos ocupantes desse lugar para a constituição referencial da sentença. Entretanto, acabamos de demonstrar a baixa relevância dos adjuntos adverbiais na configuração do modo de enunciação da sentença, que diz respeito à extensão referencial. Há, portanto, um aparente contrassenso: afinal, qual é a relevância do adjunto adverbial para a referência da sentença? Para indicar uma resposta, é preciso pensar na terminologia utilizada em toda a discussão. Falamos em configuração de referência e em constituição de referência. „Configurar‟ consiste em ajustar, definir parâmetros; e „constituir‟ é ser parte essencial, formar, compor. Acreditamos que a avaliação da relevância do adjunto adverbial para a referência da sentença passa por essa diferença entre „configurar‟ e „constituir‟. O segundo traço que associamos ao lugar de adjunto adverbial diz respeito ao modo de enunciação da sentença. Atestamos, portanto, que esse lugar sintático parece ser pouco expressivo para a configuração da referência, mas não para a sua constituição. 5 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin Referências BENVENISTE, Émile (2006). O aparelho formal da enunciação. In: ______. Problemas de linguística geral II. 2 ed. Campinas: Pontes, p. 81-90. DIAS, Luiz Francisco (2009). Enunciação e regularidade sintática. In: Cadernos de estudos linguísticos. v. 1. Campinas, n. 51, p. 7-30. GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002, p. 11-31. ______ (1989). Enunciação e história. In: GUIMARÃES, E. (Org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, p.71-79. 6 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin