0 UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Programa de Pós-Graduação em Filosofia PAULO SERGIO SANTORO Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática São Paulo 2013 1 PAULO SERGIO SANTORO Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade São Judas Tadeu como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia Área de Concentração: Filosofia Antiga Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique Fernandes Silveira São Paulo 2013 2 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação da Publicação Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade São Judas Tadeu Santoro, Paulo Sergio. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática / Paulo Sergio Santoro; orientador Paulo Henrique Fernandes Silveira. – São Paulo, 2013. ___ f. Dissertação (Mestrado)–Universidade São Judas Tadeu, 2013. 1. ______________. 2. ___________________. 3. ___________________. I. Paulo Henrique Fernandes Silveira. II. Título. III. Título: __________. 3 Nome: SANTORO, Paulo Sergio Título: Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade São Judas Tadeu como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________ Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________ Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________ Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________ Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________ Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________ 4 AGRADECIMENTOS Este projeto de formação em Filosofia foi concebido há aproximadamente cinco anos, e teve por meta apenas fazer o curso de mestrado. Mas, após conversar com o professor Plínio Junqueira Smith (ex-coordenador da Pós-Graduação), recebi a recomendação de fazer o curso de graduação completo, com o objetivo de sedimentar meus conhecimentos em Filosofia, já que minha formação era exclusivamente na área de exatas. E, só posteriormente, tendo um domínio mais sólido dos conceitos filosóficos, partir para fazer o curso de mestrado. Naquele momento confesso que fiquei meio desapontado, porém hoje reconheço que foi a melhor coisa que poderia ter-me acontecido. Assim, agradeço a ele e a todo o grupo de docentes da USJT, constituído essencialmente por professores doutores, que, com sua competência, responsabilidade e dedicação, contribuíram para que este projeto fosse concluído com êxito. Aproveito também para agradecer ao professor Floriano Jonas Cesar (atual coordenador da Pós-Graduação), pela confiança em mim depositada, fornecendo-me sugestões e subsídios que sempre visaram a melhoria do projeto. Da mesma forma, fico extremamente grato à Capes pelo imenso apoio dela recebido ao conceder-me uma bolsa de estudos: sem ela teria sido impossível concretizar este meu sonho. Agradeço, em especial, ao professor Paulo Henrique Fernandes Silveira, pela orientação ao longo do mestrado, sempre precisa e oportuna, permitindo a evolução do projeto de uma forma bastante natural, principalmente com suas recomendações e correções de rota para que o projeto não se dispersasse em assuntos de menor interesse e em elucubrações, e a manutenção de seu principal foco. Ele foi muito mais que um orientador, foi um mestre e amigo, aplicando a todo momento o que Sócrates denominava philía, ou seja, a amizade virtuosa. Também agradeço profundamente aos membros da Banca de Qualificação e de Defesa pelas sugestões e pelo tempo que despenderam na análise deste texto, e, em consequência, por suas considerações, de grande utilidade, que foram fundamentais para aumentar a qualidade deste projeto. 5 Outro grupo de pessoas que foram fundamentais para a realização deste trabalho foram meus pais, fornecendo a força necessária em momentos de crise, minhas filhas Mariana e Isabella, as quais me auxiliaram efetivamente em diversas oportunidades ao longo deste trajeto, e, por fim, a Thelma, que, muito mais do que companheira, ajudou-me na leitura de alguns livros, na digitalização de outros, na formatação dos textos, na correção ortográfica e no apoio espiritual e material, sem os quais certamente não conseguiria chegar aonde cheguei. Enfim, agradeço a todos os que de forma direta ou indireta colaboraram para que esse sonho se tornasse realidade. 6 RESUMO SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2013. A paideía é um fenômeno educacional concebido no final do período clássico grego, e seus principais representantes foram os Sofistas e Sócrates, os quais participaram ativamente de sua evolução como um processo efetivo de formação consciente do espírito do homem; eles, todavia, divergiam sobre diversos conceitos e princípios pedagógicos, que resultaram em sua ramificação em dois programas educacionais distintos: a paideía sofista e a socrática. E é sobre essas paideîai que vou centralizar todo o foco deste estudo, tentando identificar suas principais características educacionais, suas particularidades pedagógicas e fundamentalmente suas diferenças e semelhanças. Palavras-chave: paideía, Sofistas, Sócrates. 7 ABSTRACT SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2013. The paideia is an educational phenomenon conceived in the end of the classical Greek period, and its main representatives were the sophists and Socrates, who were actively involved in its evolution as an effective, conscious establishment process; however, they disagree on various pedagogical concepts and principles, which resulted in two distinct educational programs, that is, the sophist paideia and the Socratic one. And this ramification will be the subject of this study; I will try to identify their leading educational features, their pedagogical particularities and fundamentally their distinction and similarities. Keywords: paideía, Sophists, Socrates. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................10 CAPÍTULO 1: Os sofistas e seus métodos educacionais..................................................14 1.1 Origens do movimento sofista....................................................................................14 1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego.............................................................14 1.1.2 A areté e a educação.................................................................................................16 1.1.3 Surgimento da paideía..............................................................................................18 1.2 Propostas e objetivos pedagógicos..............................................................................19 1.2.1 Os primeiros educadores profissionais.....................................................................20 1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista..............................................22 1.3 A paideía de Protágoras..............................................................................................23 1.3.1 Suas influências educacionais....................................................................................23 1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana...................................................28 1.3.3 O diálogo Protágoras ...............................................................................................30 1.4 A paideía de Górgias...................................................................................................34 1.4.1 Principais características.........................................................................................34 1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana..............................................................39 1.4.3 O diálogo Górgias.....................................................................................................40 1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias..............................................43 CAPÍTULO 2: Sócrates e seu ideal pedagógico................................................................46 2.1 O Sócrates histórico....................................................................................................46 2.1.1 A moral socrática ....................................................................................................46 2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates.................................51 2.2 Principais ideias..........................................................................................................55 2.2.1 O intelectualismo socrático......................................................................................55 2.2.2 A metodologia socrática...........................................................................................57 2.3 A paideía socrática......................................................................................................60 CAPÍTULO 3: Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática.............66 3.1 Conflitos entre suas paideîai.......................................................................................66 3.1.1 Abrangência dos programas educacionais...............................................................66 3.1.2 Em relação ao público-alvo......................................................................................69 3.1.3 Comprometimento com os educandos.....................................................................73 9 3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai.................................................................75 3.2 Similaridades entre suas paideîai................................................................................79 3.2.1 O uso da razão.........................................................................................................79 3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis...............................................................81 3.2.3 A observância às leis................................................................................................84 3.2.4 Sobre os ideais humanistas......................................................................................87 CONCLUSÃO.........................................................................................................................91 REFERÊNCIAS......................................................................................................................95 10 INTRODUÇÃO A Grécia no período clássico foi marcada por diversas transformações de cunho político, comercial e sociocultural. Esse conjunto de mudanças, além de proporcionar um desenvolvimento significativo nas suas cidades, mais especificamente em Atenas, também favoreceu a concepção de vários movimentos intelectuais que revolucionaram a forma de encarar os problemas relativos ao homem e seu real papel na sociedade. Embora esse movimento renovador tenha sido observado em vários segmentos da sociedade grega, a grande revolução ocorreu no seu sistema educacional, principalmente na concepção de novos modelos pedagógicos 1 e na alteração do significado da palavra paideía, que deixa de representar apenas o velho conceito de criação dos meninos e passa a ser composta por um conjunto de procedimentos educacionais que visavam uma formação completa do ser2. Esse fato exigiu uma mudança radical nos processos educacionais vigentes, ou seja, o centro dos estudos deslocou-se das coisas exteriores ao homem para o seu interior, e proporcionou o desenvolvimento de uma perspectiva educacional mais antropocêntrica, resultando em uma maior humanização na forma de aquisição do saber. Consequentemente, os métodos para a obtenção do conhecimento passaram por uma reformulação em seus princípios pedagógicos, e o seu fruto foi a concepção de dois movimentos de grande importância para a cultura europeia ocidental. O primeiro grupo, composto pelos sofistas3, tinha uma proposta pedagógica imediatista e utilitária, visando atingir o sucesso e a excelência política. O segundo grupo, formado pelos filósofos, aqui representados por Sócrates4, priorizava uma formação completa do homem em si, valorizando os aspectos que conduziam à obtenção da virtude, até chegar ao seu maior grau de interiorização, ou seja, a alma. 1 Os termos, modelo ou método pedagógico e programas ou processos educacionais, amplamente utilizados ao longo do estudo, apesar de indicarem certo anacronismo, referem-se a uma estrutura educativa mesmo que incipiente existente no século V a.C. e servem como um elemento conceitual para comparar as propostas educacionais dos sofistas e de Sócrates. 2 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. Tradução de A. M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 26. 3 GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 29. 4 JAEGER, op. cit., p. 192. 11 Apesar dessas escolas procurarem obter por meio da virtude, ou da areté5, seus objetivos educacionais, elas divergiam em vários de seus conceitos pedagógicos, notadamente na forma de aplicar e de compreender os elementos que compunham suas paideîai e na definição de qual é a real essência da virtude. As diferenças existentes entre essas duas tradições pedagógicas e suas possíveis semelhanças determinaram os rumos da educação grega e influenciaram fortemente as futuras gerações no que se refere à aquisição do saber. Estes aspectos e outros, tais como a divergência observada na forma de interpretar a essência da virtude, a possibilidade ou não de ensiná-la, a existência de uma paideía mais adequada para cumprir tal objetivo e se, apesar de todos os indícios contrários, existe alguma semelhança entre essas paideîai, são o principal objeto desse estudo. O ponto de partida para tentar atingir essa meta é a Atenas do século V a.C., local em que se deu a confluência das principais ideias dos representantes dessas duas correntes filosóficas. Segundo Werner Jaeger, os questionamentos e as alterações sociais e políticas que ocorreram em Atenas abalaram as bases cientificistas da escola pré-socrática e transformaram o homem no principal objeto de estudo de seus pensadores. Isto teve como consequência a concepção de um movimento educacional que veio como uma reação natural às necessidades e aos anseios dessa nova sociedade. Esse grupo de pensadores, denominados “sofistas”, deslocava-se entre as cidades gregas com a proposta de ensinar técnicas de retórica e de oratória para os jovens que desejavam assumir funções de destaque na vida pública. Seu principal objetivo era formá-los na arte de convencer e de persuadir os cidadãos nas assembleias. Eles também foram considerados os primeiros professores remunerados da Grécia; bem como os responsáveis pela adoção de ideais laicos nos métodos pedagógicos que visavam a obtenção do saber. Os sofistas surgiram como um movimento contrário à abordagem teórica e cientificista dos présocráticos, pois trouxeram uma visão mais cosmopolita e uma proposta pedagógica focada nas coisas da vida prática. Outro aspecto relevante foi que eles concentraram todos os seus esforços no sentido de criar um movimento essencialmente educativo. Jaeger 6 afirma que é nessa fase da cultura grega que surge efetivamente a paideiía, concebida como um processo de formação 5 “O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de areté, que remonta aos tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (id., ibid., p. 21). 6 JAEGER, 1995, p. 312. 12 consciente do homem. No entanto, a paideía sofista assentou suas bases no subjetivismo e no relativismo, característica que propiciou a adoção de uma multiplicidade de fontes para a obtenção do conhecimento, favorecendo significativamente uma educação orientada para a aquisição de uma grande diversidade de saberes, ou seja, um conhecimento enciclopédico baseado na erudição, isto é, a polymátheia. Outro tema que acompanhou a proposta dos sofistas é o ensino da virtude, pois, segundo eles, a formação de um bom governante não depende da natureza humana nem dos deuses, mas sim da aplicação de um conjunto de técnicas pedagógicas para atingir a areté política, já que a virtude seria um tipo de arte, ou tékhne. Embora os ideais pedagógicos dos sofistas tenham provocado controvérsias na sociedade ateniense, é inegável sua contribuição para o amadurecimento dos programas educacionais gregos. E é sob essa perspectiva, de grandes e influentes educadores da Grécia, que irei abordar dois dos maiores representantes do movimento sofista, isto é, Protágoras e Górgias. Ressalto que, apesar de existirem muitos fragmentos de seus escritos e uma sólida doxografia de suas obras, muito utilizadas como fonte para minhas pesquisas, optei por definir como pilares deste estudo as obras da juventude de Platão, também conhecidas como “diálogos socráticos”. Assim, destacarei as particularidades desses dois sofistas, fundamentalmente no que se refere às diferenças observadas em seus conteúdos pedagógicos, em seu modo de transferir o conhecimento, na sua aceitação da multiplicidade (respeito a diversidade), e, principalmente, na paideía de ambos. Mesmo porque cada um deles concebeu um tipo de paideía que cabe ser analisada com um maior nível de profundidade, pois foi objeto de estudo em diversos diálogos socráticos. Paralelamente, nesse mesmo momento histórico, a escola filosófica, aqui representada por Sócrates, deslocou o foco de seu estudo para as coisas e causas humanas, ou seja, para o seu interior. Essa preocupação com o processo de formação consciente do homem propiciou a concepção de uma paideía que valorizasse o autoconhecimento, o que é visível na frase “conhece-te a ti mesmo”, e utiliza a exortação e a refutação como elementos de seu modelo pedagógico, para adquirir a sabedoria ou obter o conhecimento da virtude em si. Da mesma forma que o movimento sofista, Sócrates criticou algumas das linhas de pensamento dos présocráticos, especialmente a cosmológica, pois acreditava que eles queriam conhecer coisas da natureza que pertenciam somente à sabedoria divina. Outro aspecto interessante a ser observado é que Sócrates não deixou nada escrito, portanto, tudo o que se sabe sobre suas ideias nos foi transmitido por outros pensadores, 13 principalmente Platão, seu amigo e discípulo, e autor de muitas obras. Assim, considero factível a possibilidade de haver certa interferência de Platão nas ideias socráticas, pois existe inegavelmente uma interpretação pessoal no processo de recepção e de transmissão de conceitos, em especial quando recebidos de terceiros. Mas acredito que os diálogos socráticos são o que temos de mais próximo das ideias de Sócrates. E é nesse Sócrates histórico que vou basear-me e tentarei esclarecer alguns pontos sobre seus ideais educacionais, tais como em que consiste a paideía socrática? Qual é o papel do preceito “conhece-te a ti mesmo” em sua filosofia? Qual é a importância da busca da unidade (conceito universal) no processo de aprendizado do educando? Por fim, na última fase deste estudo será feita uma análise comparativa entre a paideía de Sócrates e a paideía dos sofistas, com ênfase em suas possíveis similaridades e em suas divergências de maior relevância, com destaque ao que se refere aos processos pedagógicos de ambas as paideîai e seus reflexos educacionais para o período clássico grego e para a posteridade. Em suma, o estudo está dividido em três grandes momentos lógicos, começando pelo Capítulo 1, em que são abordadas as principais ideias do movimento sofista, representadas pelos ideais pedagógicos de Protágoras e de Górgias, determinando as características de sua paideía e a forma de ensinar a virtude política. No Capítulo 2, o foco está na filosofia socrática, baseada em diversos preceitos de moralidade e no autoconhecimento como forma de ter acesso ao que ele considerava como sendo o verdadeiro saber; bem como em questões relativas à obtenção da virtude política e também aos elementos e conceitos observados em sua paideía. Finalmente, no capítulo 3 é feita uma análise das possíveis semelhanças e diferenças entre a paideía socrática e a sofista. Além disso, aborda a contribuição e a influência que essas duas paideîai tiveram para o rumo dos futuros programas educativos ocidentais. 14 CAPÍTULO 1 Os sofistas e seus métodos educacionais O capítulo pretende abordar os aspectos de maior relevância que propiciaram o surgimento do movimento sofista e ressaltar as bases mais importantes de seu modelo pedagógico; bem como visa destacar as principais características da paideía sofista, que recebeu grande influência das ideias de Protágoras e de Górgias. 1.1 Origens do movimento sofista 1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego O advento da sofística é fruto de um conjunto de fatores econômicos, políticos e socioculturais que ocorreram na Grécia, mais especificamente em Atenas, após a bemsucedida guerra contra os persas, no final do século V a.C. Neste período, marcado por grandes transformações, os horizontes citadinos foram ampliados de forma significativa, devido à evolução nas relações sociais e comerciais com outros povos. Tal intercâmbio cultural influenciou fortemente os hábitos e os costumes do cidadão ateniense, que, entre outras coisas, passou a reivindicar maior participação nas decisões do Estado. Esses novos ideais democráticos suscitavam uma revisão nos modelos educacionais tradicionais, objetivando atender as exigências dessa sociedade mais rigorosa e participativa. Assim, o movimento sofista, com suas bases sedimentadas no racionalismo e no humanismo 7, surgiu como uma resposta natural para as necessidades educacionais da época, já que Atenas vivia um momento de modificações profundas em suas tradições, e impunham-se mudanças urgentes na maneira de encarar os processos de formação de seu cidadão. O modelo aristocrático até então vigente, com sua educação voltada para os nobres, e a insistência dos filósofos pré-socráticos em focar suas pesquisas nos fenômenos naturais, tão distantes das coisas humanas, não atendiam mais os anseios dessa sociedade em plena transformação. Logo, a humanização e a democratização do saber, por meio de uma formação 7 GUTHRIE, 1995, p. 30. 15 consciente, passaram a ser a grande meta a ser atingida pelos filósofos atenienses. Com base neste fato, um grupo de pensadores originários das mais diversas regiões da Grécia migrou para Atenas tendo o objetivo de suprir essas carências. Eles eram os sofistas e surgiram com uma proposta político-pedagógica para atender as necessidades oriundas dessa recente fase evolutiva que o Estado ateniense atravessava. Embora os sofistas representassem uma renovação nos modelos pedagógicos tradicionais gregos, eles foram influenciados pelas duas maiores forças educativas existentes até então, ou seja, as dos poetas8 e as dos filósofos pré-socráticos9. Neste mesmo sentido, William Guthrie10 afirma o seguinte: W. Jaeger definiu corretamente o movimento sofista como uma herança da tradição educacional dos poetas; bem como Nestlé também estava correto ao destacar a grande influência que os filósofos jônios tiveram nos ideais sofistas, principalmente no que se refere a seu racionalismo e a seu ceticismo. Portanto, nota-se que os sofistas são homens de seu tempo e foram marcados pelas duas maiores forças educacionais de sua época. Cabe também lembrar que nesse período os métodos didáticos estavam baseados na prosa11, e, como tal, eles a utilizaram como um instrumento pedagógico. Assim, os sofistas lançaram mão de todos os recursos educacionais disponíveis no sentido de facilitar o aprendizado de seus discípulos, bem como direcionavam todos os seus esforços para a educação política dos homens e a formação dos futuros governantes das cidades. Esse modelo pedagógico mais racional e focado no indivíduo acabou se transformando na marca do movimento sofista e veio ao encontro das necessidades dessa nova sociedade. E, até mesmo, esse é um dos motivos pelos quais eles se intitularam “mestres da sabedoria”, pois tinham como principal objetivo ensinar uma grande diversidade de saberes, ou polymátheia, visando a aquisição da areté política. 8 “Os sofistas reconheciam sua descendência da primitiva tradição educacional dos poetas” (GUTHRIE, 1995, p. 38). 9 “A influência dos eleatas sobre Protágoras e Górgias é inegável, também a de Heráclito sobre Protágoras, e Górgias se diz discípulo e seguidor de Empédocles” (id., ibid., p. 19). 10 Id., ibid., p. 33. 11 LOH, M. On Socrates Criticisms of the Education of the Sophists, p. 2. Taiwan Philosophical Association. Disponível em: <http://www.google.com.br/url?q=http://tpa.hss.nthu.edu.tw/files/annual/2011/TPA% 25202011%2520paper %2520-%252024.pdf&sa=U&ei=Xrm-Ts3zM4HVgQeB29S9Bw&ved=0CBAQFjAA &usg=AFQjCNEnWVauHiJwT4W7uu8mG_WBeG2crg>. Acesso em: 12 out. 2011. 16 1.1.2 A areté e a educação O conceito de areté sempre esteve fortemente associado aos processos de formação do homem grego, tanto que suas origens confundem-se com a própria história da educação grega. Basta observar que já no período homérico havia indícios da presença dos modelos de virtude a serem seguidos dentro de sua cultura. Outra particularidade dessa época é que a educação era de responsabilidade dos poetas, que estabeleciam as diretivas de conduta e os preceitos de moralidade dos indivíduos. Jaeger12 afirma que a areté serve como um fio condutor que dá unidade à história da educação grega. Logo, a areté deve ser tratada como um elemento central no processo educacional da Grécia, que em sua mais alta concepção de formação nos conduz ao conceito de paideía13. Os seus conceitos e características serão, contudo, analisados posteriormente com maior profundidade. Portanto, cabe ressaltar que a areté, enquanto associada a um processo educacional, procura obter como resultado um aperfeiçoamento do indivíduo nas questões éticas e morais. Logo, ela está diretamente vinculada às ações virtuosas. Segundo o mesmo Jaeger 14, o conceito de areté pode ser relacionado ao conceito de virtude, mas não esgota todo o seu sentido para os gregos. A título de homogeneização e de padronização, porém, vou adotar as palavras “virtude” e areté como sinônimos. Retomando a questão dos primórdios da areté, vale lembrar que suas origens remetem-nos ao período homérico (séculos XII a VIII a.C.), em que a tarefa de educar cabia aos poetas, principalmente Homero, cujas obras, em especial, a Ilíada15 e a Odisseia16, exerceram um papel fundamental nos processos pedagógicos da sociedade grega. Seu princípio educacional baseava-se essencialmente no exemplo vivo dos heróis míticos 17, que representavam o modelo de virtude a ser seguido por todos os homens. Nesse período, a virtude estava diretamente ligada à nobreza de caráter, ou seja, o homem virtuoso é aquele que reúne em si várias qualidades espirituais, físicas e morais. Esse conjunto de atributos 12 JAEGER, 1995, p. 19. “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paideía. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez” (id., ibid., p. 2). 14 Id., ibid., p. 20. 15 A Ilíada é o poema épico atribuído a Homero que trata a guerra de Troia (em grego, Illion). 16 A Odisseia é o poema épico atribuído a Homero que relata o retorno de Ulisses (Odisseus, em grego) para Ítaca, após a guerra de Troia. 17 MARROU, H. I. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1990, p. 2. 13 17 proporcionava a obtenção da coragem, da força física, da honra e, por fim, do heroísmo guerreiro. Posteriormente, no período arcaico (séculos VIII a V a.C.), surge uma nova visão do conceito de areté, isto é, para o homem ser considerado virtuoso, já não bastava possuir os atributos heroicos de honra e glória, que até então eram suficientes. A virtude agora estava associada a um novo conceito, denominado kalokagathía18, que priorizava a beleza e a bondade do homem. Para atingir tal objetivo foi necessário criar, visando a formação de suas crianças, um programa educacional, composto por dois elementos fundamentais, a ginástica para o fortalecimento do corpo e a música para o desenvolvimento do espírito, obtido por meio da leitura e do canto das obras dos grandes poetas. Nessa época, o ideal educacional grego passa a ter seu foco no indivíduo como um todo, ou seja, na formação de um homem que tem total domínio sobre seus instintos e começa a valorizar os atos regidos pela razão. Já no período clássico (séculos V a IV a.C.), o ideal grego de pensar a educação como algo que faz parte de um processo contínuo e em permanente evolução foi amadurecendo, e o homem passou a valorizar a razão, que se fundamenta em uma análise crítica do mundo e na liberdade de pensamento. Outro aspecto relevante a ser considerado é a contribuição trazida para o futuro da sociedade grega pelos ideais democráticos, como, por exemplo, a igualdade de todos os homens adultos perante a lei e o direito de todos participarem diretamente do governo das cidades, bem como a garantia a todos de tomarem parte nas decisões políticas e na manifestação pública de suas opiniões. Consequentemente, o indivíduo torna-se um cidadão a partir do momento em que compartilha as decisões, as discussões e as votações nas assembleias públicas. Portanto, mais uma vez é alterado o conceito de areté, e o ideal educacional passa a ter como principal objetivo a possibilidade de o homem grego assumir seus direitos políticos e tornar-se um cidadão atuante na pólis. Embora o movimento sofista tenha atribuído uma perspectiva mais utilitária ao novo conceito de areté, essa não foi a única forma de encará-la, pois os filósofos, representados por Sócrates, consideravam que a areté era algo mais amplo e complexo do que a virtude política preconizada pelos sofistas. 1.1.3 Surgimento da paideía 18 A palavra kalokagathía significa bem agir, cf. JAEGER, 1995, p. 688. 18 O conceito de paideía surge no momento em que se considerou estar a civilização grega em seu apogeu e desejava atender os ideais de uma educação completa para suprir todas as necessidades dessa nova sociedade. Conforme já abordado, até então os programas educacionais eram voltados essencialmente para a formação das crianças19, e eram compostos por um modelo bastante simples e elementar, baseado no ensino da música, da ginástica e de alguns fundamentos primários de gramática e cálculo. No entanto, a nova fase carecia de um processo que contemplasse o homem como um todo, desde a infância até a maturidade, abrangendo tanto o corpo quanto a alma. Neste sentido, a paideía foi concebida com vistas a suprir a necessidade de uma formação que incluísse aspectos culturais e políticos. Mesmo porque o momento suscitava um programa educacional que preparasse os cidadãos para exercer seus direitos e deveres na vida pública, dentro do Estado democrático ateniense. Dessa maneira, a paideía pode ser vista como um método de formação completa do ser, pois em seu programa educacional contempla fatores individuais e coletivos. Isto significa que o indivíduo e a comunidade são mutuamente responsáveis por seu sucesso, ou seja, por um lado, constitui-se um ideal de cultura e, por outro, gera-se um ser racional e político, que tenha como finalidade praticar ações que visam o bem da coletividade. Logo, a paideía está fundamentada na busca de uma formação integral, que, por meio da educação, objetive proporcionar uma mudança interior, espiritual, que nos transforme e molde nosso caráter, reformulando nossa visão de mundo, e permitindo adquirir um conhecimento efetivo e duradouro; bem como promover o desenvolvimento do espírito, em conjunto com a capacidade de aprender, o talento para compartilhar o aprendizado, o desejo de saber e de dividir esse saber com os outros. Portanto, podemos interpretar o significado da palavra paideía por duas perspectivas distintas e complementares. A primeira, como cultura, sob uma visão mais abrangente, que represente as características de uma determinada comunidade, com o total des suas manifestações sociais, principalmente em um conjunto de procedimentos que resultem em um ideal de construção consciente do saber, ou seja, um sistema educativo formal. A segunda, como formação, sob uma ótica mais particular, por meio da concepção da ideia de uma 19 “A Paideia pela primeira vez foi referida à mais alta areté humana e, a partir da criação dos meninos, ‘em cujo simples sentido a vemos em Ésquilo, pela primeira vez’ acaba por englobar o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais, que formam kalokagathía, no sentido duma formação espiritual consciente” (JAEGER, 1995, p. 312). 19 educação contínua ao longo da história que represente todo o esforço no sentido de conquistar a formação de um tipo elevado de ser, isto é, um homem que possa atingir conscientemente sua autonomia e sua liberdade20. Segundo Jaeger21, a paideía como um fenômeno educativo surge por volta do século V a.C. e foi nessa fase da história educacional grega que foram concebidos os dois principais objetos deste estudo, isto é, a paideía dos sofistas, baseada nos preceitos dos educadores profissionais que surgiram em Atenas, e a paideía socrática, fundamentada nas ideias propostas por Sócrates. 1.2 Propostas e objetivos pedagógicos Antes de entrar efetivamente no tema das propostas pedagógicas dos sofistas, cabe destacar que uma das maiores fontes sobre suas ideias tem como origem as obras de Platão, notoriamente um crítico contundente de seus métodos educacionais. No entanto, analisar todo este quadro sob um único ponto de vista levaria a uma leitura muito reducionista da questão. Logo, considero fundamental avaliar os diálogos platônicos, especialmente os que abordam as diferenças entre os ideais dos sofistas e os dos filósofos, sob uma perspectiva mais ampla e menos parcial. Em sua obra Guthrie22 fornece exemplos que corroboram essas diferentes interpretações, como o caso de Grote, que afirmou haver exagero nas críticas de seus contemporâneos ao movimento sofista; Sidgwick e Jowett alegam, entretanto, que Grote, na ânsia de contrapor-se às críticas de Platão aos sofistas, deixou de considerar outros aspectos relevantes presentes na época, tais como a aversão dos atenienses aos estrangeiros, a fortuna que os sofistas obtinham com a remuneração de suas aulas, a confusão provocada por suas ideias inovadoras nas mentes dos jovens, além do conhecido conflito entre seus ideais educacionais e os dos filósofos. Dado esse quadro, tornam-se um pouco menos particulares as críticas de Platão aos sofistas. Por outro lado, Popper não poupou elogios ao movimento 20 Autonomia e liberdade, termos utilizados no sentido de demonstrar a grande importância que tinha nessa época o ato de o indivíduo libertar-se da influência das divindades e dos mitos em sua vida. 21 JAEGER, 1995, p. 125. 22 GUTHRIE, 1995, p. 16. 20 sofista, considerando-os como a grande geração da Grécia, representando o pioneirismo do pensamento liberal e democrático. Assim, a diversidade de opiniões entre os estudiosos e os próprios filósofos posteriores a esse período é bastante significativa. Parece haver, contudo, um consenso entre eles, pois havia um respeito mútuo entre as duas escolas, no sentido de reconhecer a grande influência que ambas tinham na sociedade ateniense. Isto justifica o fato de Platão ter dedicado várias de suas obras a contrapor seus ideais filosóficos às práticas utilitaristas dos sofistas. Por esse motivo, considero fundamental obter essas informações de diversas fontes, desde que sérias, para que possam ser confrontadas com as existentes nos diálogos platônicos. 1.2.1 Os primeiros educadores profissionais O Estado democrático ateniense exigiu uma série de mudanças individuais, sociais e políticas que favoreceram a concepção de um novo modelo de cidadão, ou seja, a partir desse momento todos os indivíduos deveriam participar da vida citadina, pelo comparecimento às assembleias e audiências públicas. Para tal, os indivíduos que desejassem exercer seus deveres e direitos cívicos deveriam ser dotados de boa oratória e do poder de convencimento nas assembleias, utilizando seus argumentos de forma persuasiva durante seu discurso. Assim, o ateniense que tivesse a pretensão de ocupar algum cargo público nesse novo Estado, obrigatoriamente deveria adquirir esse conjunto de atributos. Nesse contexto surge o movimento sofista, composto por professores que cobravam por seus ensinamentos e utilizavam métodos pedagógicos baseados na oratória, na eloquência da fala e nos exercícios públicos de retórica. Sua principal proposta era ensinar a areté23 política, que era nesse período o grande objetivo a ser alcançado pelos jovens atenienses. Vale lembrar, todavia, que se verificou nessa época um processo de humanização na sociedade grega, e, consequentemente, o acesso à educação nunca esteve tão democratizado. Jaeger afirma, porém, que essa popularização somente foi aplicada ao ensino básico, e os 23 “Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer surgir aos olhos do homem atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os contemporâneos os chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se logo que interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica, isto é, no sentido de areté política, olhada sobretudo como aptidão intelectual e oratória, o que nas novas condições do séc. V era o decisivo” (JAEGER, 1995, p. 232). 21 sofistas foram um exemplo vivo dessa tendência, pois direcionavam todos os seus esforços no sentido de formar adultos, mais especificamente os futuros chefes. Portanto, seu ensino não contemplava indivíduos em geral, e sim os que se tornariam líderes, ou seja, tratava-se de uma nova versão da antiga educação, moldada para atender os nobres. Guthrie24 também fornece uma visão mais favorável aos sofistas, atenuada pelo momento que Atenas atravessava. Para ele: Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado. Ao ver de Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as paixões da democracia existente [...]. Assim, apesar de Platão divergir em vários aspectos dos pontos de vista do movimento sofista, nesse caso em particular isenta-os dessa culpa, pois responsabiliza a perda de valores sociais e morais de então ao regime democrático instaurado no Estado ateniense. Cabe lembrar que Platão, como simpatizante da aristocracia, era contrário aos moldes do regime político vigente em Atenas. Já o programa educacional dos sofistas era composto por duas modalidades que visavam atender dois grupos com características e objetivos distintos. A primeira buscava formar os futuros chefes de Estado e a outra preparava os jovens para exercer a profissão da sofística. O primeiro grupo era composto por jovens de origem nobre e aristocrática que utilizavam os conhecimentos fornecidos pelos sofistas de modo pragmático e utilitário. Esses jovens não tinham a menor intenção de seguir os passos de seus mestres. Enquanto o segundo, motivado pela fama e pela glória adquirida pelos sofistas na sociedade grega desejava alcançar o mesmo tipo de prestígio que seus professores25. Assim, no que se refere ao profissionalismo dos sofistas, Sócrates26 afirma que Protágoras foi o primeiro a exigir pagamento em troca de seus ensinamentos. Mas este, em contrapartida, defende-se dizendo que, se o aluno não estivesse satisfeito com suas lições não precisaria pagá-lo, bastando fazer uma doação ao templo no valor que considerasse justo pelo conhecimento adquirido. Apesar dessa particularidade de Protágoras, todos os sofistas cobravam por seus préstimos, aspecto que os caracterizou como os primeiros profissionais remunerados da educação do mundo ocidental. 24 GUTHRIE, 1995, p. 25. JAEGER, op. cit., p. 623. 26 “[...] tu te fazes proclamar abertamente diante de todos os helenos sob a denominação de sofista e te apresentas como mestre de educação e de virtude, sendo que foste o primeiro que exigiu pagamento por suas lições” (PLATÃO, Protágoras, 349a. In: PLATÃO, Protágoras, Górgias. Tradução de C. A. Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. III). 25 22 1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista A perspectiva aqui tratada não é a da típica relação existente entre os diferentes modos de interpretar a vida em sociedade dos naturalistas ou dos humanistas, ou seja, o problema do nómos em confronto com a phýsis, analisada por meio de um conjunto de normas e leis concebidas de forma artificial, por meio de ações humanas, versus as de ordem natural, visando obter uma sociedade mais justa e igualitária. O aspecto da contraposição entre nómos e phýsis, à qual desejo ater-me, é aquele que tenta esclarecer a dicotomia existente entre esses conceitos sob uma perspectiva educativo-pedagógica. Conforme dito anteriormente, o advento da sofística provocou uma revolução nos modelos educacionais atenienses. Assim, temas historicamente aceitos pela sociedade grega passaram a ser questionados pelos membros do movimento sofista. E entre eles, e o mais relevante, está o de areté, que até então era considerado um conjunto de atributos herdados dos pais, essencialmente associados às famílias nobres. Dessa forma, para os gregos, a areté não podia ser transmitida, a não ser por vínculos sanguíneos. Os sofistas, entretanto, surgem desafiando esses ideais, ao tentar destruir toda a tradição preestabelecida, e intitulam-se professores de areté política. Logo, a questão da phýsis, vista como elemento de transferência de dons pessoais, é fortemente atacada. E eles, movidos por seu humanismo exacerbado, creem na possibilidade de ensinar a virtude. Isto significa, que nessa nova visão educacional proposta pelos sofistas, os atributos herdados naturalmente dos pais perdem sua força, e passa a valer um conjunto de técnicas pedagógicas com o objetivo de transmiti-los. No caso da nómos, vista como o conjunto de leis e costumes, Protágoras27, sendo um grande representante do movimento sofista, afirma o seguinte: “Quando saem da escola, a cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para que não se deixem levar pela fantasia a praticar qualquer malfeitoria”. Portanto, ele considera que as leis auxiliam a moldar o espírito do homem, pois elas representam um instrumento normativo dos princípios sociais e agem como um elemento coercitivo que tem a função de corrigir qualquer falha comportamental dos indivíduos em sua sociedade. 27 PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III. 23 Logo, com base nos ideais sofistas, a phýsis deixou de representar um papel limitador e restritivo de acesso ao conhecimento, pois eles acreditavam que tudo poderia ser aprendido, desde que bem ensinado. Quanto à nómos, aquele aspecto negativo de norma artificial, vista por alguns sofistas como fruto de acordos humanos, sob a perspectiva de Protágoras passa a ter um caráter positivo de controle social, que permite a correção dos indivíduos com o objetivo de obter um bem viver em sociedade. 1.3 A paideía de Protágoras 1.3.1 Suas influências educacionais Protágoras de Abdera é conhecido como o principal representante do movimento sofista. Suas propostas educacionais foram extremamente inovadoras, pois deixaram de tratar o homem de maneira abstrata28 e passaram a encará-lo como membro ativo da sociedade. Assim, a educação deixou de ser vista de modo formal, intelectual e focada somente em conteúdos, para ser interpretada sob uma perspectiva mais sociocultural. Segundo ele, a educação está diretamente ligada ao mundo dos valores, em particular, os políticos. A Protágoras também é atribuída a racionalização dos procedimentos educacionais nos métodos pedagógicos, ao utilizar a poesia e a música como forças modeladoras da alma, em conjunto com a gramática, a dialética e a retórica. Para ele, esses elementos propiciam a formação do espírito e, a fim de atingir tal objetivo, fundamentou sua paideía em um programa educacional composto pelo ensino da cultura geral e da força do lógos29. Embora existam divergências em relação às suas posições sobre determinados temas, algumas de suas tendências pedagógicas ficaram bastante claras, especialmente as que se referem aos conceitos de como obter o conhecimento. No sentido de corroborar esta ideia, cito um fragmento que fez parte da introdução do livro Sobre a verdade, obra que abrange o fundamento teórico de seus juízos de valor, e nela observamos a seguinte passagem: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o 28 JAEGER, 1995, p. 315. Segundo Diógenes Laércio, Protágoras ministrava as seguintes disciplinas: Arte da Erística, Da Luta, Da Matemática, Do Estado, Da Ambição, Das Virtudes, Da Situação Originária, Dos Erros Humanos, do Discurso Imperativo, entre outras (SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução de A. A. Alves de Sousa e M. J. Vaz Pinto. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005, p. 58). 29 24 que não são”30. Este fragmento, deveras polêmico, foi muito discutido pelos pensadores e comentadores ao longo da história; entretanto, aqui serão abordadas somente as interpretações pertinentes ao estudo em questão. Platão e posteriormente Sexto Empírico atribuíram à palavra “medida” desse fragmento o caráter de “critério”, ou seja, o termo passa a ter, em sua visão, um significado associado a um padrão de julgamento individual. Segundo palavras de Guthrie, a interpretação a ser considerada é a seguinte: “São nossos próprios sentimentos e convicções que medem e determinam os limites e a natureza da realidade, que só existem em relação a elas e são diferentes para cada um de nós”31. Essa forma de pensar evidencia o caráter polêmico das afirmações de Protágoras e remete-nos a uma divergência que precede o século V a.C., isto é, às diferenças históricas entre as ideias de Parmênides e as de Heráclito. Julgo relevante fazer uma análise deste fato, para melhor entendimento das ideias de Protágoras. Então, vamos retomar alguns dos conceitos desses pré-socráticos: enquanto Parmênides acreditava existir total independência do objeto no processo de percepção do sujeito, Heráclito defendia a ideia de que tudo o que é percebido pelo sujeito já existe previamente no objeto32. Assim, Protágoras, com sua visão mais pragmática e utilitária, afirmava que devemos acreditar nos sentidos, e que nossa percepção é o resultado da mistura dos opostos existentes em todas as coisas, pensamento que segue a mesma linha de raciocínio dos jônios e de Heráclito, contrariando a visão dos eleatas, que negavam a realidade dos opostos e o valor dos sentidos como fonte do conhecimento. Para Protágoras, cada um de nós é o juiz de nossas impressões, e não existe nenhuma diferença entre o perceber e o efetivo ser das coisas. Logo, a verdade torna-se relativa, pois tudo o que é opinião ou aparência passa a ter o estatuto de verdade e é algo impossível de ser questionado pelos outros33. Na obra Grande tratado34, Protágoras começa a indicar de forma mais explícita seu programa educacional, composto por um conjunto de conceitos pedagógicos, construídos ao longo de sua experiência como profissional itinerante do ramo do saber. Nesses fragmentos 30 Fr. 1 obtido do livro Sobre a verdade em Guthrie (1995, p. 173) e no livro Verdade ou discursos demolidores (SOFISTAS, op. cit., p. 78). A obra de Protágoras aparece com títulos diferentes devido a divergências doxográficas. 31 GUTHRIE, op. cit., p. 174. 32 Platão aborda essa mesma questão na obra Teeteto, (151e-152b). Nela ele observa que pessoas diferentes são afetadas pelos seus sentidos de forma diferente, ou seja, o mesmo vento pode ser percebido por uma determinada pessoa como quente e por outra como frio. Logo, a questão é a seguinte: o vento é ao mesmo tempo quente e frio? ou ele não é nem quente nem frio? Cf. Platão, Theaetetus, 2006. Tradução de B. Jowett. Disponível em: <http://www.4 shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Theaetetus.html>. Acesso em: 08 abr. 2010. 33 SOFISTAS, 2005, p. 79. 34 “Para Untersteiner, o Grande tratado é um subtítulo atribuído, numa época tardia, à obra Sobre a verdade, de Protágoras” (id., ibid., p. 81). 25 observam-se indícios de preocupação com a formação de uma paideía sofista, a saber: “O ensino requer disposição natural e exercício” e “É preciso aprender começando desde jovem”35. Com base nessas diretivas, os ideais pedagógicos de Protágoras mostram-se fundamentados em um ensino aplicado desde a infância e levam em consideração as disposições naturais e a dedicação individual, fatores subjetivos que, em conjunto com a boa orientação de um mestre, conduzem à eficácia do aprendizado. Outro fragmento de grande importância pode ser encontrado no livro Sobre a existência dos deuses, o qual reforça a visão protagoriana de que o homem é a medida de todas as coisas, ou seja, os deuses existem para alguns, mas não para outros, sedimentando seu relativismo; bem como, conforme se vê nesse fragmento, declara explicitamente seu agnosticismo e ceticismo, pois afirma que, nessa questão em particular, prefere suspender o juízo. Em suma, o fragmento diz o seguinte: Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a 36 brevidade da vida humana . Também existem alguns textos atribuídos a Protágoras, cuja autenticidade não é comprovada, e enquadram-se em um grupo de fragmentos denominados “escritos incertos”, dos quais considero fundamental destacar os mais relevantes, como segue: Protágoras dizia que não existia prática sem arte, nem arte sem prática 37. Para ele a educação é composta por vários elementos interligados que se complementam. Entre eles, a arte ou tékhne, caracterizada pela presença de aspectos teoréticos, que, associados aos procedimentos práticos, contribuem de maneira mais específica na formação profissional do indivíduo 38. O outro diz o seguinte: “A educação não germina na alma, se não se aprofunda muito” 39. Para alguns especialistas, o uso metafórico do processo de germinação associado ao processo da educação demonstra sua complexidade, tanto nos aspectos internos do ser como em seus aspectos externos, ou seja, deve ser uma atividade desenvolvida desde a infância até a sua maturidade, demandando um cuidado prolongado e rigoroso para a obtenção do sucesso 40. 35 Fr. 173 obtido da obra Grande tratado de Protágoras (id., ibid.). Fr. 4 obtido na obra Sobre os deuses, de Protágoras (GUTHRIE, 1995, p. 218; SOFISTAS, 2005, p. 82). 37 Extraído de Escobeu, Plorilégio, 3, 29, 80 (cf. id., ibid., p. 85). 38 Id., ibid. 39 Extraído de Plutarco, Do exercício, 178, 25 169 (id., ibid., p. 86). 40 Id., ibid. 36 26 Como um típico sofista, Protágoras também incluiu técnicas de oratória e de retórica em seu modelo pedagógico. Conforme já abordado, o uso da linguagem como meio de persuasão foi uma característica marcante do movimento sofista. No entanto, ele tem alguns conceitos que o particularizam, tais como a crença de que há dois argumentos opostos sobre o mesmo assunto, de tal modo que não existe a possibilidade da contradição, ou seja, em um discurso é impossível falar falsamente. Essa máxima tem seu significado ratificado pelo fragmento “Os gregos afirmam, seguindo Protágoras, que se pode contrapor um argumento a qualquer argumento”41 e também pela frase “Pode-se argumentar a respeito de todas as coisas com o mesmo sucesso, tomando qualquer um dos dois lados” 42. O que para Guthrie43 resultou na afirmação de Aristóteles de que a doutrina de Protágoras é caracterizada pelo subjetivismo e pelo relativismo, pois, entre outras coisas, ao propor a possibilidade de fazer discursos antitéticos sobre qualquer realidade 44, ele nega o princípio da não contradição. Quanto aos fragmentos que abordam mais explicitamente seus conceitos pedagógicos, vale destacar o seguinte: Estou longe de negar a existência quer da sabedoria quer do homem sábio; mas chamo “sábio” precisamente àquele homem que, produzindo uma modificação em nós, faz o que aparece e é mau apareça e seja bom. Mas eu penso que, se a disposição da alma é má, ter-se-ão opiniões conformes com ela; uma boa disposição, pelo contrário, faz ter opiniões diferentes e adequadas a essa disposição; alguns, por ignorância, chamam-nas “verdadeiras”, enquanto eu as chamo de “melhores do que 45 as outras, mas nunca de mais verdadeiras” . Frase que deixa muito clara a sua visão sobre o programa educacional a ser adotado pelos sofistas, tanto no aspecto relativista, observado em seus juízos de valor, como na maneira de enaltecer o papel do mestre no processo de formação do indivíduo. Isto significa que Protágoras acredita exercer a natureza do homem um papel importante no processo de aquisição do saber, mas não o fundamental, pois desde que sejam aplicadas técnicas pedagógicas adequadas, essas disposições negativas e intrínsecas ao ser podem ser transformadas em disposições positivas. E, até mesmo, ele vai mais longe, pois questiona o critério de verdade e seu real valor, afirmando que seu peso é somente uma questão de 41 Extraído de Clemente de Alexandria, Miscelânia, 6, 65 (id., ibid., p. 95). Extraído de Sêneca, Cartas, 88, 43 (id., ibid., p. 94). 43 GUTHRIE, op. cit., p. 173-5. 44 Diógenes Laércio afirma que Protágoras foi o primeiro a sustentar que em todos os assuntos existem dois argumentos antitéticos entre si (SOFISTAS, op. cit., p. 108). 45 Extraído de Platão, Teeteto, 166d (PLATÃO, 2006; SOFISTAS, 2005, p. 98). 42 27 referência. Logo, Protágoras defende a ideia de que a verdade é relativa46, isto é, ela é individual e temporária, e não universal e permanente. De tal modo, que por meio da retórica e da oratória a verdade passa a ser aquela na qual o homem é persuadido a crer. No entanto, seria leviano acreditar que Protágoras sedimentou todos os seus ensinamentos nesses princípios, mesmo porque, em dado momento, ele recusou o uso indiscriminado da retórica, pois considerou-a inadequada quando utilizada por pessoas inescrupulosas. Em determinada fase de sua vida deslocou o foco de seu ensino para o que ele acreditava ser de fundamental importância para o homem, ou seja, cuidar dos próprios negócios e das coisas do Estado47. Ele também é considerado o precursor do relativismo epistemológico e do subjetivismo filosófico, devido às ideias existentes nas suas propostas educacionais que valorizam os critérios individuais, de acordo com o qual cada um de nós é o juiz de suas próprias crenças. Portanto, segundo ele, o que parece a cada um de nós é a única realidade possível. Com base na diversidade e na abrangência dos princípios pedagógicos propostos por Protágoras surge um programa educacional de formação de indivíduos denominado paideía protagoriana. Vale lembrar que o outro grande representante da sofística é Górgias48, o qual em seu modelo pedagógico priorizou outros aspectos educacionais, que serão posteriormente abordados. Logo, neste momento da presente exposição, é possível dizer que o conjunto de saberes que foram alvo do programa educacional de Protágoras continha a essência do ensino sofista, fundamentalmente representado pela aquisição da areté política. Por fim, com base nos testemunhos e fragmentos sobre os ideais pedagógicos de Protágoras, julgo interessante destacar as repercussões e as reações que suas ideias provocaram em alguns filósofos. No que se refere a Platão, o questionamento está relacionado à ideia do homem como medida de todas as coisas, pois entra em conflito com sua teoria epistemológica do conhecimento verdadeiro. Já para Aristóteles, o problema está associado à negação do princípio da não contradição, que fere as bases da ciência e da ontologia. No caso de Sexto Empírico, a defesa por parte de Protágoras da existência da verdade em todas as opiniões viola metodologicamente o critério de distinção entre o falso e o verdadeiro 49. 46 GUTHRIE, 1995, p. 52. PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III. 48 JAEGER, 1995, p. 234. 49 Além de todos os aspectos da pedagogia multidisciplinar de Protágoras, os pontos de vista que lhe são simultaneamente atribuídos, dos quais destacamos os seguintes: a preocupação com a correção dos nomes, a tese de que não é possível contradizer, a defesa da enunciação de juízos antitéticos sobre todas as coisas, a doutrina 47 28 Em suma, é inegável sua contribuição na reformulação e no amadurecimento dos processos educacionais do mundo ocidental, principalmente no que se refere à utilização da educação como um elemento que favorece a aceitação das diferenças entre os indivíduos, ou seja, a educação como um agente facilitador da convivência social, ao favorecer o respeito à individualidade e à opinião particular de cada um. Isto pode ser observado em suas propostas educacionais, as quais estão fundamentadas no agnosticismo, ao aceitar a pluralidade religiosa; no relativismo, fruto de seu conceito do homem como medida, respeitando as diferenças culturais existentes em uma determinada comunidade; e no valor atribuído às instituições, pois não foi somente professor, tendo sido também legislador, além de especializar-se na formação política dos jovens, futuros cidadãos. 1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana A paideía sofista, associada ao programa educacional proposto por Protágoras tinha algumas características marcantes, notadamente o empirismo, o ceticismo, o intelectualismo, o agnosticismo e o humanismo. Ora, dada essa diversidade de linhas de pensamento, torna-se claro o ecletismo do movimento sofista, a ponto de seus comentadores em alguns momentos destacarem mais fortemente alguns aspectos em detrimento de outros. Como, por exemplo, quanto a seu empirismo, analisado sob a ótica de um conjunto de práticas baseadas na experiência, ou seja, uma empeiria, Guthrie50 afirma que “os sofistas eram empiristas que negavam a possibilidade de uma definição geral de ‘bem’ pelo motivo de ela diferir relativamente aos indivíduos e às sociedades e suas circunstâncias”. Já Havelock 51, destaca seu intelectualismo: Tanto os socráticos quanto os sofistas, portanto, por volta do fim do século V a.C. – se a Apologia realmente reproduz a linguagem daquele período –, eram aceitos pela opinião pública como representantes do movimento intelectualista. Se eram chamados de “filosofadores”, não era por causa da sua doutrina como tal, mas pelo tipo de vocabulário e de sintaxe que empregavam e das energias psíquicas não familiares que representavam. do homem como “medida” das coisas, a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco (id., ibid., p. 58). 50 GUTHRIE, 1995, p. 177. 51 HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução de E. A. Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996, p. 205. 29 Por outro lado, Jaeger52 defende a ideia de que os sofistas e sua paideía promoveram uma revolução nos processos educacionais, proporcionando uma forma de ensino laico, racional e humanista. Ora, considero todos esses aspectos relevantes para entender a amplitude e a diversidade do modelo pedagógico proposto pelos sofistas; bem como acredito que seus comentadores identificaram corretamente essas diversas linhas de pensamento que influenciaram sua paideía, pois como os sofistas caracterizaram-se por serem professores itinerantes, certamente sofreram enormes influências das mais variadas correntes filosóficas e educacionais das diversas regiões da Grécia. Eles favoreceram essa diversidade pedagógica, ao desvincular-se dos procedimentos educacionais de qualquer outra escola da época. A esse respeito, Guthrie53 cita um fator relevante: Em geral, os sofistas não eram estudiosos escrevendo tratados filosóficos e científicos para o futuro. Eram antes mestres, conferencistas e oradores públicos, cujo propósito era influenciar sua era mais do que ser lidos pela posteridade. Ademais, uma vez que muito de suas obras era educacional, do tipo do manual, ficaria naturalmente incorporado nos manuais de mestres posteriores. Portanto, a amplitude de seus programas educacionais e o descomprometimento com qualquer tipo de modelo pedagógico preestabelecido foram uma característica típica do movimento sofista. Quanto à questão do subjetivismo e do relativismo, vale ressaltar que ambos estão presentes na paideía protagoriana. No caso do relativismo, ele afirma que nossos juízos de valor dependem de circunstâncias particulares que relativizam um determinado fato, baseado em seu aspecto individual. Já o subjetivismo, conforme Guthrie54, Protágoras o radicalizou de forma premeditada, ao afirmar que o que uma determinada pessoa sente é uma verdade para ela, e não pode ser questionado por mais ninguém. Por fim, Guthrie55 faz uma afirmação que reflete basicamente a essência do pensamento sofista, que é a seguinte: “Se há algo que se possa chamar de visão sofística geral, é a ideia de que não há nenhum ‘critério’”. Tu e eu não podemos, comparando e discutindo nossas experiências, corrigi-las e alcançar o conhecimento de uma realidade ulterior à de ambos, pois não existe essa realidade estável que possa ser conhecida. De modo semelhante, 52 Para melhor contextualização desses conceitos, ver JAEGER, 1995, p. 231-5. GUTHRIE, 1995, p. 053. 54 “Podemos concluir que Protágoras adotou extremo subjetivismo segundo o qual não havia nenhuma realidade atrás e independente das aparências, nenhuma diferença entre aparecer e ser, e cada um de nós é o juiz de nossas próprias impressões” (id., ibid., p. 178). 55 Id., ibid., p. 184. 53 30 na moral nenhum apelo a padrões gerais ou princípios gerais é possível, e a única norma só pode ser agir como em qualquer momento pareça mais adequado. 1.3.3 O diálogo Protágoras O Protágoras de Platão é uma excelente referência sobre os princípios pedagógicos de Protágoras. Nela, é possível identificar com certo nível de clareza alguns aspectos de sua proposta educacional e as divergências observadas nos conceitos entre suas ideias e as de Sócrates, bem como constatar o respeito mútuo visível após o término do diálogo. Com o objetivo de traçar uma linha cronológica coerente de suas ideias e contribuições para a paideía sofista, vou seguir a sequência dos fatos conforme narrados por Platão. Ressalto que esse diálogo é repleto de conceitos, porém, neste momento, somente serão tratados os que forem pertinentes à paideía sofista. O primeiro aspecto relevante é a conversa que Sócrates tem com Hipócrates, antes mesmo do encontro com Protágoras. Sócrates pergunta qual motivo o leva a procurar o sofista e se Hipócrates sabe o que ele ensina. Sócrates argumenta que, quando o desejo é tornar-se médico, deve-se procurar aprender medicina. E o mesmo processo ocorre com as demais profissões; contudo, qual é o tipo de aprendizado que ele visa obter com Protágoras? Hipócrates responde que é o de ser um sofista, no sentido de atingir a sabedoria para utilizá-la na vida profissional56. Mas Sócrates questiona a decisão dele, pois Hipócrates estaria delegando algo tão importante como a aquisição do saber, que, segundo ele, é o alimento de nossa alma57, para uma pessoa como Protágoras, cuja real intenção ele não sabe qual é e que faz isso em troca de dinheiro. Dessa maneira, Sócrates tenta esclarecer a importância que a educação tem para a formação do homem e torna clara sua preocupação com os impactos que ela pode provocar em seu espírito, principalmente por não estar ciente da essência da paideía sofista. E é isso que Protágoras tentará elucidar ao longo desse diálogo socrático. Sob esse aspecto, o diálogo começa com Sócrates perguntando a Protágoras qual é o grande objetivo de seu programa educacional, ao que ele responde: 56 57 PLATÃO. Protágoras, 312a. In: PLATÃO, 1973, v. III. JAEGER, 1995, p. 624. 31 Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que o porá em condições de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará mais do que apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles58. Com base nessa resposta, Sócrates conclui que o conjunto de saberes ao qual Protágoras se refere, com a possibilidade de ser ensinada, não deve ser considerada uma virtude, e sim uma arte, fundamentalmente, uma arte política59. Assim, nesse momento começa a delinear-se a principal perspectiva da atividade sofística, que, para Protágoras, está fundamentada essencialmente nas questões da vida prática, sem preocupar-se com a natureza das coisas, ou seja, seu real objetivo é atingir o sucesso por meio do poder do convencimento. Para tal, Protágoras propõe-se a ensinar a virtude política, vista por Sócrates como arte ou tékhne, já que pode ser ensinada. Sócrates questiona, contudo, esse estatuto da virtude política, também considerada pelos sofistas como a excelência do viver bem em sociedade, que concebe a virtude como uma arte. Mas essa questão e outras similares, relativas à visão de Sócrates sobre este tema, serão mais bem analisadas no Capítulo 2. O que cabe destacar, todavia, é que Sócrates não crê na possibilidade de ensinar-se a arte política (virtude política, para Protágoras) e alega que nessas questões todo ateniense tem o direito de opinar, pois cada um deles considera desnecessário ter um ensino prévio para que alguém possa delegar sobre as atividades pertinentes à administração das cidades. Por outro lado, em tudo o que consideram passível de ser ensinado, como a construção de navios e de imóveis, sempre procuram obter a opinião de um profissional, porque nas questões que exigem uma técnica especial, ou tékhne, para seu bom desempenho, ou seja, necessitam do conhecimento de uma arte específica, fruto de um aprendizado, não importa que o que se apresenta para enfrentá-las seja belo, rico ou influente, se não detiver a tékhne relativa ao campo daquelas questões, suas opiniões serão desprezadas nas assembleias60. Sócrates também afirma que, mesmo na vida privada, as pessoas, por mais sábias que sejam, não são capazes de transferir suas virtudes para os outros e cita como exemplo o caso de Péricles, o dirigente mais virtuoso, que não conseguiu passar nenhuma de suas qualidades para seus filhos61. Em suma, Sócrates, contrariamente a Protágoras, acredita que a virtude não pode ser ensinada. 58 PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III. “Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons cidadãos” (id., ibid., 319a). 60 Id., ibid., 319b. 61 Id., ibid., 320b. 59 32 Em resposta aos argumentos de Sócrates, Protágoras lança mão de um discurso bastante convincente, baseado na narrativa de um mito e em suas reflexões ético-pedagógicas. No mito62 ele relata que, na criação do mundo, os deuses delegaram a Prometeu e Epimeteu a responsabilidade de atribuir aos homens e aos animais as características específicas de cada um, para que pudessem viver de forma adequada sobre a face da Terra. Epimeteu solicitou, contudo, a seu irmão executar essa tarefa sozinho. Quando recebeu o consentimento de Prometeu, dotou todas as espécies animais de atributos que as fizessem sobreviver em harmonia; ao concluir sua tarefa, porém, e ter esgotado todos os atributos disponíveis para conceder às criaturas, Epimeteu percebeu que havia se esquecido dos homens. Assim, Prometeu para tentar reparar essa falha, rouba de Hefesto a arte de trabalhar com o fogo e de Atena a da inteligência, de tal modo que dotou os homens do poder derivado do saber técnico. Esse saber propiciou diversas vantagens à espécie humana, mas, no que se refere à convivência social, não houve nenhuma contribuição, condenando os homens a uma vida solitária que os tornava alvo fácil de predadores. Zeus, ao perceber o grande risco que a espécie humana corria por ser desprovida dos dons políticos e por não conseguir viver em sociedade, pediu a Hermes que, contrariamente à distribuição do saber técnico, atribuído apenas a uma parte específica dos homens, compartilhasse igualmente com todos o pudor e a justiça. Segundo Protágoras, é devido a esse fato que todos os homens julgam possuir a virtude política; entretanto, nas questões que exigem o saber de uma técnica específica, os atenienses, como qualquer outro povo sábio, somente ouvem os profissionais especializados nessa arte. Com base nesses argumentos de Protágoras, entram em cena os conceitos pedagógicos propostos pela paideía sofista, especialmente porque, se os atributos do viver bem em sociedade fossem comuns a todos os membros da espécie humana, onde entraria a possibilidade de sua contribuição? Ou melhor, qual seria a necessidade de alguém ensinar algo que já nos é dado por natureza? Conforme Jaeger63, Protágoras é o membro do movimento sofista mais indicado para esclarecer essas questões, pois ele foi o primeiro a preocupar-se com a temática ético-política muito presente no período que Atenas atravessava e focou todo o seu estudo nas ciências sociais, principalmente ao perceber que o antigo modelo da educação voltada para a nobreza, 62 63 PLATÃO. Protágoras, 320c-322d. In: PLATÃO, 1973, v. III. JAEGER, 1995, p. 631. 33 com base nos preceitos técnicos, já não atendia os anseios dessa nova sociedade. Embora a justiça, a piedade e a temperança sejam atributos dados por natureza, para que nos conduzam à virtude política, eles devem ser desenvolvidos por meio do estudo e de nosso próprio esforço. No entanto, para Protágoras o ensino da virtude política não segue os mesmos moldes do ensino técnico, que depende apenas do entendimento, e sim está muito mais voltado para o desenvolvimento pessoal e do conviver bem em sociedade, ou seja, é mais uma questão de hábito do que de entendimento. Em síntese, Protágoras diz que a educação das crianças tem seu início no nascimento, com seus pais e preceptores, depois continua na escola por meio da ginástica e da música, e, posteriormente, pela própria cidade por meio de suas leis64. Então, a paideía sofista é composta por um conjunto de elementos didáticos baseados em disciplinas como a gramática, a música, a poesia, a dialética e a retórica. Em suma, ela é essencialmente formada por três fases, a saber: A) Da família – Os pais e as amas ensinam às crianças, por meio da linguagem, noções sobre valores como o bom, o justo e os preceitos de moralidade; B) Da escola – Os professores ensinam conceitos básicos de leitura e de escrita, com os quais, ao ler as obras dos grandes poetas, aprendem o bem agir, por meio do exemplo dos heróis. Também aprendem a música e a ginástica, visando o equilíbrio da alma e o fortalecimento do corpo; C) Da cidade – Aprendem a ser cidadãos dignos, por meio das leis e do poder coercitivo do Estado. Consequentemente, o modelo pedagógico proposto por Protágoras contém uma série de etapas que visam a obtenção do desenvolvimento pessoal e intelectual de seus discípulos, ou seja, em cada uma dessas fases é possível adquirir uma ou mais virtudes, e o jovem, ao atingir a maturidade, está pronto para receber seus ensinamentos, resultando no total de atributos educacionais necessários para obter a virtude política. Assim, na fase familiar, receberá a hosion, ou a piedade; na fase escolar, adquirirá a sophrosyne, ou a temperança, e a andréia, ou a coragem; na fase citadina, terá acesso à dikaiosyne, ou a justiça, e, por fim, por meio da paideía sofista obterá a politike areté. Dessa forma, a virtude para Protágoras é um mero condicionamento social, e pode-se comprovar este fato ao observar seus pressupostos práticos e utilitários. Guthrie reforça essa ideia com a seguinte fala de Protágoras: 64 Resume as principais ideias desse trecho; para mais detalhes, ver PLATÃO. Protágoras, 325c. In: PLATÃO, 1973, v. III. 34 Entre os interesses humanos a educação é primária, pois em qualquer empreendimento, quando o começo é certo, é provável que o resultado também seja certo. Assim como se lança a semente fundo no chão e dela se pode esperar a colheita, assim também, quando se lança a boa educação nos jovens, seu efeito vive e brota pela vida inteira, e nem a chuva nem a seca podem destruí-la65. Ele continua dizendo: Sócrates concordava com Protágoras que era justo (no sentido de moralmente obrigatório) obedecer às leis ou então fazê-las mudar por persuasão pacífica, e que a omissão de fazê-lo destruiria a sociedade66. Bem como, segundo Jaeger67, a educação sofista deixa para trás uma formação abstrata do espírito e passa a olhar o homem como um membro participativo da sociedade, em sólida relação com os valores do mundo. Portanto, a educação passa a estar associada a uma formação espiritual consciente do ser. Enquanto Havelock 68 ainda julga que a forma de pensar da educação sofista estava fundamentada em conceitos puramente abstratos. Considero, todavia, a posição de Jaeger mais próxima da real proposta da paideía sofista e discordo de Havelock, pois creio que ele fez suas afirmações baseadas em um primeiro estágio da revolução do pensamento promovida pelos sofistas e por Sócrates. 1.4 A paideía de Górgias 1.4.1 Principais características Outro representante do movimento sofista é Górgias de Leontinos, reconhecido por ter um estilo didático mais utilitário e pragmático, caracterizado pela valorização do discurso retórico e pela força do lógos69, fundamentalmente utilizado como um meio para persuadir 65 GUTHRIE, 1995, p. 159. Id., ibid., p. 137. 67 JAEGER, 1995, p. 233. 68 “Os sofistas, os pré-socráticos e Sócrates tinham uma característica fatal em comum: estavam tentando descobrir e praticar um pensamento abstrato.” (HAVELOCK, 1996, p. 204). 69 SOFISTAS, 2005, p. 97-8. 66 35 seus interlocutores. Neste sentido, tanto Jaeger70 como Guthrie71 são unânimes no que se refere ao uso indiscriminado e abusivo que ele faz da retórica, o que a torna o principal elemento de seu modelo pedagógico. De tal forma que seus discípulos eram essencialmente treinados na arte da persuasão e do convencimento. No que se refere as suas obras o Tratado sobre o não existente, ou Sobre a natureza72, faz uma análise extremamente crítica da teoria ontológica de Parmênides, e o Elogio a Helena73 valoriza incondicionalmente o poder do discurso persuasivo. Essas obras, entre outras, são exemplos típicos do enorme valor que ele atribuía à arte da retórica. Em seu discurso Elogio a Helena, Górgias faz um verdadeiro tributo ao uso do lógos e do peithó74, afirmando o seguinte: “o discurso é um grande soberano, que com o mais diminuto e inaparente corpo as mais divinas obras executa; pois ele pode cessar o medo, arrancar a tristeza, suscitar a alegria e aumentar a compaixão”75. Logo, para Górgias o que deve ser avaliado na retórica não é o que ela pode oferecer no plano epistemológico, mas sim na eficácia dos efeitos produzidos pela transmissão das palavras e das emoções nas almas dos indivíduos76. Em outra parte do discurso, ele declara que, no caso de Helena, não importa se seus atos foram motivados pela paixão, pela violência, pela persuasão ou pela influência dos deuses. O que importa é que por meio da utilização de um discurso convincente é possível inocentá-la, ou seja, por meio da retórica o orador consegue convencer que o certo é errado e que o culpado é inocente77. 70 “Em todo o caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o ideal educativo da retórica. Isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na apreciação do resto das coisas, até ao ponto de ter havido sofistas, como Górgias, que não foram senão retóricos, nem ensinaram mais nenhuma coisa” (JAEGER, op. cit., p. 234). 71 “Górgias era primariamente mestre de retórica, associado a seu conterrâneo Tísias no uso do argumento de probabilidade. Ele escreveu manuais da arte, que podem ter consistido em larga medida de modelos de declamações a serem decoradas, uma vez que Aristóteles diz que era este o seu método de instrução” (GUTHRIE, 1995, p. 181). 72 Fragmentos que têm sua paráfrase em duas obras, uma, Contra os matemáticos de Sexto Empírico, e outra, uma pseudo-obra de Aristóteles sobre Melisso, Xenófanes e Górgia (id., ibid., p. 112). 73 Para maiores detalhes sobre a veracidade desse discurso, ver GUTHRIE, 1995, p. 180. 74 Segundo Guthrie, Górgias não estava preocupado com o destino de Helena, mas sim em elogiar e valorizar o poder do lógos e do peithó (id., ibid., p. 181). 75 GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de M. C. de M. N. Coelho. Cadernos de Tradução, São Paulo, DFUSP, 4, p. 15-9, 1999, parágrafo 8. 76 “A mesma palavra tem o poder do discurso perante a disposição da alma e a disposição dos remédios para a natureza dos corpos. Com efeito, como os diferentes remédios expulsam diferentes humores do corpo, e uns cessam a doença, outros a vida, assim os discursos, uns afligem, outros deleitam, outros atemorizam, outros dispõem os ouvintes à confiança, e outros por meio de uma persuasão maligna envenenam e enfeitiçam a alma” (GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 14). 77 Id., Ibid., Parágrafo 20. 36 Ao analisar de forma mais criteriosa essa obra, podemos detectar um exercício de retórica muito poderoso e convincente de seus argumentos. Inicialmente, Górgias deixa muito claro que seu principal objetivo será fazer uma defesa incondicional de Helena, propondo esclarecer e livrar seus acusadores da cegueira e da ignorância que os domina. Com base nisto, ressalta a relevância dos diversos aspectos a serem considerados no que tange à decisão de Helena, os quais foram determinantes para deflagrar a guerra entre gregos e troianos. Para tanto, ele defende a possibilidade da existência de quatro hipóteses que poderiam ser responsáveis por suas ações. Na primeira hipótese, se Helena agiu influenciada pela vontade dos deuses, seria humanamente impossível resistir a este desígnio, já que nenhuma pessoa é capaz de impedir sua concretização, devido à força e à sabedoria divinas serem infinitamente superiores às dos humanos; Na segunda hipótese, se Helena foi raptada e por meio da força violentada e ultrajada, nada mais justo do que penalizar o infrator e considerar a vítima digna de piedade, pois ela sofreu a dor da violência, da vergonha e da distância dos entes queridos; Na terceira hipótese, se helena foi enganada pelo discurso, deve ser considerada uma desafortunada, pois por meio das palavras um bom orador pode convencer e persuadir qualquer pessoa, principalmente se atingir as opiniões da alma, sendo capaz de seduzir, encantar e transformar suas crenças pelo enfeitiçamento, alterando de forma significativa seus juízos de valor, conduzindo-a ao erro e à ilusão. Por fim, na quarta hipótese, se Helena foi movida pelo amor, suas ações também possuem atenuantes, pois, se esse amor teve como agente motivador a influência dos deuses, não haveria a possibilidade de ela lutar contra esse poder divino; se esse, contudo, não for o caso, seu amor é fruto da doença tanto do corpo quanto da alma e deve ser considerado como uma desventura inerente ao ser. Dessa forma, por meio do poder da palavra e da força do convencimento, Górgias utiliza esses quatro argumentos no sentido de provar que um bom orador consegue persuadir qualquer pessoa ou plateia, mesmo que o objeto de sua defesa seja algo indefensável. Ele ressalta que, por meio do engano e do convencimento da alma, é possível persuadir qualquer um, de qualquer coisa. Mesmo porque na maioria das pessoas a opinião é sua maior conselheira, e, como a opinião tem suas bases sobre um solo instável, torna-se muito fácil conduzi-la para o lado de maior interesse do orador. O que possibilita ao retor ser detentor de 37 um imenso poder sobre os outros, principalmente quando a retórica é utilizada como um instrumento que visa a obtenção de destaque no cenário político. Portanto, torna-se fundamental ressaltar nesse discurso a relevância que Górgias atribui ao papel do lógos, e, com isso, à forma pela qual ele estruturou todo o seu arcabouço teórico educacional, ou seja, sua estratégia pedagógica está sedimentada na forma de o ser humano captar as informações e as perceber, transformando-as em juízo de valor. Em suma, Górgias acredita que as almas dos homens vivem sob a influência das opiniões 78, de tal modo que é possível influenciá-las e transformá-las por meio das palavras. Assim, podemos identificar esse conceito gorgiano de forma explícita em frases como a que segue: Os encantamentos inspirados divinamente, por meio das palavras, movem o prazer, removem a dor; conformando-se com a opinião da alma, o poder do encantamento a seduz, persuade e transforma essa alma pelo enfeitiçamento. De enfeitiçamento e magia duas técnicas se encontraram, que são erros da alma e ilusões da opinião79. Consequentemente, por meio da retórica, na obra Elogio a Helena, Górgias utiliza o poder do convencimento e da persuasão, com o objetivo de defender alguém que, para os gregos, era totalmente responsável pelos males decorrentes de suas ações. Dessa maneira, ele demonstra a força do lógos, e que, por meio dele, o orador pode mudar a opinião de qualquer um, seja quem for, conduzindo seu interlocutor ao engano. Este ponto de seu ideal pedagógico futuramente provará ser um aspecto muito importante de sua paideía, pois ele não considerava o engano como algo negativo. Essa maneira de pensar é observada em seu conceito do que é ser justo e sábio, já que o contrário da verdade não é o erro, e sim o engano, desde que traga satisfação e esteja sob o aval de quem está sendo enganado. Isto fica muito claro quando se observam ideias existentes em obras atribuídas a ele, mas sem confirmação de autenticidade, também conhecidas como “escritos incertos”, a saber: “Aquele que enganou mostra ser mais justo do que aquele que não enganou, e quem se deixou enganar é mais sábio do que quem não se deixou”. O que enganou é mais justo porque, tendo prometido algo, cumpre; e o enganado é mais sábio, pois só quem não é insensível se deixa vencer pelo prazer das palavras” 80. Outra frase de origem incerta, atribuída a Górgias, é que o orador deve “destruir a seriedade de um oponente pela risada, e 78 “[...] de maneira que, sobre o maior número de casos, a maioria tem a opinião como conselheira presente da alma. Mas a opinião, escorregadia e instável, em escorregadios e instáveis desencontros, arremessa os que dela se servem” (GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 11). 79 Id., ibid., Parágrafo 10. 80 GUTHRIE, 1995, p. 171. 38 sua risada pela seriedade”81. Assim, por esse fragmento, ele ratifica sua forma irônica de tratar os conflitos relativos às diferenças de opinião com seus interlocutores. No Tratado da não existência, sua obra mais polêmica, Górgias rejeita a possibilidade de existir uma ontologia, pois, contrariamente a Parmênides, que associava a aquisição do conhecimento a um lógos puramente racional, e duvidava do valor do saber obtido por intermédio das sensações, Górgias acreditava no conhecimento adquirido por meio das percepções sensíveis e das concebidas pela imaginação, questionando o estatuto rigoroso do eleatismo no que se refere à oposição entre o conhecimento verdadeiro e a mera opinião 82. Assim, nessa obra ele faz uma forte crítica ao poema de Parmênides, texto em que se dá a concepção da ontologia, por meio de uma espécie de inversão dos argumentos parmenídicos, de tal forma que ele radicaliza a proposta ontológica de que dizer é dizer o ser, desvinculando, por meio do absurdo, o discurso de seu comprometimento com as questões ontológicas. Logo, para Górgias não existe nenhuma ligação entre o discurso e o ser, com isso rejeitando a afirmação ontológica de Parmênides segundo a qual basta dizer algo sobre alguma coisa para que sua existência seja confirmada. Para tanto, ele baseou seu tratado em três teses ou argumentos, a saber: o primeiro diz que nada existe; o segundo afirma que, mesmo que existisse, é incompreensível ao homem; e, por fim, que, mesmo que fosse compreensível a alguém, não é comunicável a qualquer outro83. Assim, sobre o Tratado do não existente, muito se escreveu, tanto no sentido de interpretá-lo como no sentido de refutá-lo; contudo, apesar de sua repercussão ter sido imensa no que se refere aos conceitos gorgianos, uma análise mais profunda agregará muito pouco ao estudo em questão. Logo, com o objetivo de destacar mais um aspecto relevante de sua paideía, considero importante ressaltar que Górgias também atribuía à educação um papel importantíssimo no que diz respeito à convivência social, pois acreditava que ela é um instrumento eficiente para despertar nos indivíduos o entendimento e a tolerância recíproca, ou seja, a educação por meio do esclarecimento permite que uma pessoa, antes de julgar qualquer ação de outro indivíduo, ouça, pondere e escolha a decisão mais coerente, e, sempre que possível, opte pela 81 Extraído de Aristóteles, Retórica, 3, 18, 1419 b (cf. SOFISTAS, 2005, p. 144; GUTHRIE, op. cit., p. 183). Dessa forma, Górgias amplia as perspectivas do princípio da identidade, como segue: “assim como se aplica a um campo muito mais vasto o princípio da identidade entre pensar, dizer e ser, cujo uso legítimo se reduzia, para Parménides, ao ser uno e imutável, correlato do pensamento puro” (SOFISTAS, op. cit, p. 116). 83 Para maiores esclarecimentos sobre o Tratado do não existente, ver id., ibid., p. 112-22, ou GUTHRIE, op. cit., p. 181-5. 82 39 aceitação e compreensão dos atos alheios, principalmente por acreditar que existam diferenças significativas no grau de entendimento e de juízos de valor entre as pessoas. Isso fica muito claro em sua obra Elogio a Helena, na qual ele defende incondicionalmente todas as atitudes de Helena, elaborando diversas hipóteses que venham justificar suas escolhas equivocadas. Em uma análise mais acurada desse ideal gorgiano, observa-se o direito da plena defesa e a valorização do estado de direito dos indivíduos. 1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana Do mesmo modo que a paideía protagoriana, a paideía gorgiana tinha como principal objetivo ensinar o seu discípulo a oratória, o poder da persuasão e a eloquência no discurso, só que fundamentada nos ideais pedagógicos de Górgias, essencialmente baseados na retórica como único elemento necessário para atingir sua meta educacional. Outro aspecto interessante é que por meio de sua paideía não é possível ensinar as pessoas a agir de maneira justa e virtuosa, já que para ele é impossível comunicar a realidade aos outros. Em seu Tratado do não existente, ele resumidamente diz o seguinte: nada existe ao mesmo tempo como realidade imutável e como objeto do conhecimento humano, e, mesmo que houvesse esta realidade, não seria possível compreendê-la. Por fim, caso se pudesse, esse conhecimento nunca poderia ser comunicado a outros84. Então, fica muito clara a falta de perspectiva defendida por Górgias na questão da transmissão do conhecimento. Assim, graças a seu niilismo, Górgias não acredita ser possível fazer um discurso verdadeiro nem atingir a verdade por meio do lógos, porque para ele tudo é fruto de uma convenção social. Ele também afirma que com base em um bom argumento é possível convencer as pessoas, mesmo que seja por meio da opinião, que algo considerado errado é certo e que o certo é errado. Já a paideía proposta por Protágoras, apesar de seu relativismo, fornece subsídios para ensinar as pessoas a agir da melhor maneira possível, pela via da virtude e da justiça. Logo, a paideía proposta por Protágoras defende a possibilidade do ensino da virtude, mas o mesmo não ocorre com a paideía de Górgias; Guthrie85, entre outros comentadores, discorda, todavia, dessa ideia e afirma o seguinte: 84 85 GUTHRIE, 1995, p. 181. Id., ibid., p. 47. 40 Pode-se suspeitar que a recusa de Górgias era pouco sincera, pois seu ensino da retórica visava a assegurar para os alunos a mesma espécie de sucesso na vida que Protágoras prometia como mestre da areté política. Portanto, com base nos conceitos de sua paideía e em sua negação de aceitar os valores sociais preestabelecidos, Górgias formalmente não se propunha a ensinar a areté, mas seu programa educacional conduzia seus alunos a atingir um objetivo muito semelhante aos da paideía protagoriana. Em suma, o caráter desafiador de Górgias, observado em todos os seus escritos, deixa fragrante sua oposição aos costumes e tradições preestabelecidas. Outra particularidade é que sua pedagogia está fundamentada na aplicação de diversas técnicas de retórica. Segundo ele, a arte da persuasão supera qualquer outra, pois por meio do discurso é possível provocar no ouvinte uma submissão espontânea, sem o uso da força86. Cabe ressaltar que essa característica da pedagogia de Górgias é de grande relevância para a nova sociedade democrática ateniense, principalmente para as pessoas que desejavam exercer funções de liderança na pólis. 1.4.3 O diálogo Górgias Da mesma forma que a leitura do diálogo Protágoras é a melhor forma de analisar a proposta da paideía protagoriana, o diálogo Górgias é a fonte mais rica para a obtenção dos conceitos da paideía gorgiana. Assim, vou tentar obter nas idéias de Górgias e dos seus discípulos Pólo e Cálicles, as principais propostas pedagógicas contidas nesta obra platônica. Cabe destacar que, como no diálogo anterior, somente serão abordados os preceitos pertinentes ao estudo em questão. Inicialmente, vou ressaltar alguns conceitos extraídos da conversa entre Sócrates e Górgias, que antecedem a narrativa do diálogo propriamente dito. Górgias acredita que a retórica é uma arte ou tékhne, adquirida por meio do empirismo, e não do conhecimento. Essa arte retórica, para Sócrates, não é verdadeiramente uma arte, pois, para que algo seja considerado uma arte, tem de conter algum tipo de conhecimento intrínseco ou especialização, fruto de um aprendizado. Ele cita como exemplo, a astronomia, que depende 86 Id., ibid., p. 254. 41 integralmente do conhecimento dos cursos dos astros e de suas inter-relações87. E, em sua opinião, a retórica não atende esses pré-requisitos. Posteriormente, Sócrates pergunta a Górgias qual é o tipo de discurso proposto pela retórica, a que ele responde que o grande objetivo da retórica é a persuasão, e sua maior aplicabilidade é nas assembleias e nos júris populares; bem como na política e em qualquer tema pertinente à vida humana. Já que o objeto de que se ocupa a retórica são os assuntos humanos, Sócrates afirma que sob essa perspectiva a retórica deveria preocupar-se com as questões morais, ou seja, com os conceitos de justiça e de injustiça. Górgias, contudo, responde que as questões morais são indiferentes para a retórica. Jaeger 88 reforça esta ideia de Górgias, ao afirmar que, para a retórica, a moralidade é uma questão exclusivamente convencional. Górgias diz, até mesmo, que o bom ou o mau uso da retórica é de única responsabilidade de quem a utiliza. E ele ainda conclui dizendo que a retórica por meio da arte de persuasão é o maior bem que alguém pode ter, porque concede a quem a possui um grande poder, ou dynasthai89. Por considerar seu modelo pedagógico como a arte da persuasão, Górgias acreditava que os sofistas, ao utilizá-la, poderiam, por meio do convencimento, conquistar as multidões, ou seja, por meio da retórica eles exerceriam seu poder e chegariam pela sedução das palavras ao que os tiranos só conseguem com o uso da força90. Apesar do aspecto dual observado no processo de convencimento das pessoas, Sócrates não considera o uso da persuasão como algo negativo, mas sim a aplicação que a retórica gorgiana faz dela, isto é, ela usa a persuasão de forma indevida, pois não utiliza o conhecimento como instrumento para convencer os outros nem procura obter a verdade, somente visa atingir o interesse do orador. Além disso, a má persuasão não está apoiada no conhecimento, e sim na crença. Embora toda essa controvérsia ponha em questão sua paideía, Górgias91 ainda alega que ela tem uma grande versatilidade, principalmente por permitir ao orador convencer sua plateia, sem possuir um conhecimento pleno do tema a ser abordado. O que, consequentemente, promove uma falsa noção de sabedoria, em detrimento da ignorância dos outros. Górgias também reforça a ideia de que o mestre, ao ensinar a retórica, não tem nenhuma responsabilidade sob as atitudes de seus discípulos, e afirma que, se algum deles 87 PLATÃO. Górgias, 448a. In: PLATÃO, 1973, v. III. JAEGER, 1995, p. 652. 89 PLATÃO. Górgias, 452d. 90 PLATÃO. Górgias, 466b. In: PLATÃO, 1973, v. III. 91 Id., ibid., 455d-e. 88 42 fizer mau uso de suas técnicas deve ser punido de forma exemplar. Guthrie92 diz que “o retórico, pelo que parece, interessa-se inteiramente pelos meios, e não pelos fins, e seu ensino tem diferentes efeitos nos alunos, de acordo com o seu caráter”. Assim, termina a participação de Górgias no diálogo, e o foco passa a ser seu discípulo Pólo, que retoma o tema sobre se a retórica é uma empeiria ou experiência, em vez de ser uma arte, ou tékhne. Sócrates defende a ideia de que a retórica não pode ser considerada uma arte, pois falta um objeto do conhecimento associado a ela. Sócrates também traça um paralelo entre o que ele chama de imagens enganosas que são fruto da experiência e que apenas visam a agradar o corpo do homem, e o que ele considera como a verdadeira arte, que está baseada no conhecimento e é boa para a alma. Desse modo a retórica é para alma humana o que é a culinária para o corpo, isto é, como ambas fazem parte das imagens enganosas que somente servem para agradar o corpo, deduz-se que a retórica não é uma verdadeira tékhne. Segundo Jaeger93, as características essenciais do conceito de tékhne são: primeira, é um saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das suas atividades sempre que tem consciência das razões, segundo as quais procede; finalmente, tem por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa. Nenhuma dessas notas distintivas existe na retórica política. Já na última parte do diálogo, que se desenvolve com Cálicles, outro de seus discípulos, o principal foco incide sobre a diferença observada entre a nómos, percebida como lei artificial para proteger os mais fracos, e a phýsis, caracterizada como lei natural que privilegia os mais fortes94, concluindo sua fala com uma teoria hedonista que busca justificar qualquer tipo de ação, seja ela boa ou má, quando seu objetivo é suprir os apetites e os prazeres humanos95. Os conceitos abordados nesta parte da obra, porém, pouco contribuem no sentido de fornecer informações que acrescentem algum conteúdo significativo para a paideía gorgiana. Assim, sua paideía tem bases pedagógicas fundamentadas na polymátheia, ou seja, num conhecimento enciclopédico utilizado como meio de convencimento nos discursos argumentativos; bem como na oratória e na retórica como um poderoso instrumento de persuasão96. Este processo educacional, por ele adotado, não se preocupa com os métodos 92 GUTHRIE, 1995, p. 171-2. JAEGER, 1995, p. 655. 94 PLATÃO. Górgias, 486c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. 95 Id., ibid., 491e-492c. 96 “Dize-me, Górgias: é verdade o que afirmou o nosso amigo Cálicles, que te comprometes a responder seja o que for que te perguntarem? Górgias. É verdade, Querefonte; foi isso mesmo que declarei há pouco, e posso assegurar-te que há muitos anos ninguém me apresentou uma questão nova” (id., ibid., 477c). 93 43 pedagógicos até então empregados para a formação do indivíduo, focando todos os seus esforços em propiciar aos jovens e adultos a possibilidade de exercerem cargos de destaque no Estado ateniense. Em suma, para Górgias a paideía sofista, por meio do domínio dos recursos da linguagem, torna possível ao homem a obtenção de um saber universal. Mesmo porque, devido a seu relativismo e a seu ceticismo, os sofistas não acreditavam na possibilidade de o sujeito ter acesso ao real, e, para eles, a única forma de atingir-se a universalidade e a objetividade seria por meio do lógos. Portanto, a paideía gorgiana está sedimentada no discurso, ou no lógos, em busca do poder da persuasão, mas, quando utilizada de maneira inadequada, transforma-se em algo potencialmente perigoso. Até mesmo, compartilho o pensamento de Jaeger97 quando diz o seguinte: Este esboço de uma doutrina da sociedade baseada na teoria da luta pela sobrevivência deixa à educação um papel inferior. Sócrates opunha a filosofia da educação à filosofia da força. Era a paideía que era para ele o critério da felicidade humana, contida na kalokagathía (bem agir) do justo. Logo, a proposta pedagógica de Górgias, com o uso da retórica como um instrumento de persuasão, sob a perspectiva de um embate, como uma espécie de jogo de poder, em que haverá vencedores e perdedores, não corresponde ao papel que a educação deve exercer na sociedade, pois os programas educacionais, quando aplicados de forma adequada, só visam atingir um único objetivo, ou seja, a formação consciente do espírito, em que todos os envolvidos saiam vitoriosos. 1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias A análise dos ideais de ambos os sofistas auxiliou-nos a entender com maior grau de profundidade as características particulares de seus métodos pedagógicos; bem como possibilitou-nos identificar as similaridades entre suas propostas educacionais e os aspectos determinantes de seus conceitos de sabedoria. Esses fatores constituíram as bases do programa educacional dos sofistas e estão diretamente associados aos efeitos exercidos por eles nos indivíduos, tais como o poder de mudar as opiniões das pessoas por meio do estímulo 97 JAEGER, 1995, p. 668. 44 de suas paixões e de seus desejos, provocando transformações significativas em seus juízos de valor. Embora seja inquestionável a existência de várias diferenças em seus modelos pedagógicos, alguns aspectos demonstram certa semelhança entre ambos; enquanto o método protagoriano acredita que nossa alma, ao receber influências do meio, exteriores a ela, pode seguir tanto o caminho do bem quanto o caminho do mal, e que o papel do verdadeiro mestre é empregar técnicas que resultem em mudanças relevantes nessa alma, o método gorgiano nem se importa com esta característica, pois crê que a alma vive sob o jugo da opinião, e a função do verdadeiro mestre é alterar essa tendência, por meio do discurso persuasivo. Logo, nota-se que o elo entre seus modelos pedagógicos está relacionado à perspectiva, que ambos têm, de transformar o homem pela manipulação de suas opiniões e paixões. Portanto, a paideía desses dois grandes representantes da sofística está fundamentada na possibilidade de prover a seus discípulos uma grande diversidade de informações, para que eles, de posse desses conhecimentos, possam utilizá-los como instrumento de persuasão, ou seja, quanto maior a quantidade de conhecimento geral, maior é a probabilidade de fornecer subsídios para fortalecer e diversificar seus argumentos, e, consequentemente, ampliar seu poder de convencimento. Outro ponto em comum na paideía de ambos é a questão da tolerância entre os indivíduos, fortalecendo diversos aspectos da convivência social. Os dois priorizavam a aceitação das diferenças individuais, por meio do esclarecimento e da empatia, ou seja, tanto Protágoras como Górgias valorizavam a prudência, que, na visão protagoriana, está associada ao respeito pela diversidade religiosa e cultural, e, na gorgiana, é observada no direito à plena defesa, não permitindo o julgamento e a punição sem que se analisem todos os aspectos de uma determinada situação. Por fim, também cabe ressaltar que, segundo Sexto Empírico 98, havia outro ponto em comum entre seus programas educacionais: a impossibilidade da existência de um critério absoluto para atingir a verdade. Na perspectiva do pensamento protagoriano, este fato é devido a seu relativismo, ou seja, o homem como medida de todas as coisas. Já segundo o ponto de vista gorgiano, uma vez que não é possível a obtenção da identidade entre o dizer, o pensar e o ser, o ato de pensar algo não garante sua verdade, e isto não permite mais que seja utilizado como um critério para assegurar se esse algo é falso ou verdadeiro. 98 SOFISTAS, 2005, p. 78-80 e p. 112-8. 45 O capítulo apresentou as principais propostas da paideía dos sofistas, abordando suas características e particularidades. O próximo capítulo trará uma noção das ideias mais importantes de Sócrates e descreverá as bases que fundamentam sua paideía. 46 CAPÍTULO 2 Sócrates e seu ideal pedagógico O capítulo visa apresentar as principais características da paideía socrática, com base na análise dos elementos mais significativos de seus ideais pedagógicos. Nele serão abordados os princípios fundamentais de sua filosofia, em particular, os temas concernentes à busca da virtude, por meio de seus conceitos educacionais e de moralidade. Por fim, serão descritos os aspectos de maior relevância que compõem sua paideía. 2.1 O Sócrates histórico 2.1.1 A moral socrática Os filósofos, tanto quanto os sofistas, foram fortemente influenciados pelo movimento humanista que floresceu na Grécia no início do século V a.C. Essa valorização das coisas humanas, em detrimento das cosmológicas, provocou mudanças significativas no objeto de estudo de grande parte dos pensadores atenienses. Entre os filósofos, Sócrates99 foi reconhecidamente seu pioneiro e maior representante, pois empregou todo o seu esforço filosófico no sentido de tentar compreender os principais agentes motivadores das ações humanas. Consequentemente, seus estudos estavam focados nas questões éticas e morais, priorizando os atos regidos pela razão. Para atingir tal objetivo, Sócrates mergulhou no aspecto mais íntimo do ser e procurou decifrar o que ele julga ser o maior bem do homem, que é sua própria alma. Tanto que nos 99 “Viram-no ou ouviram-no alguma vez fazer ou dizer algo contrário à moral, ou à religião? Abstendo-se, ao revés da maioria dos outros filósofos, de dissertar sobre a natureza do universo, de indagar a origem espontânea do que os sofistas chamam ‘cosmos’ e a que leis fatais obedecem os fenômenos celestes, ia a ponto de demonstrar a loucura dos que trilham semelhantes especulações. Antes de tudo examinava se eles presumiam ter aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos para se ocuparem de tais assuntos, ou se achavam razoável pôr de parte o que está ao alcance do homem para intrometer-se no que aos deuses pertence” (XENOFONTE, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, I, 1, 11. Tradução, introdução e notas de A. E. Pinheiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, Col. Autores Gregos e Latinos, Série Textos. Disponível em: <https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/16/3/ memoraveis.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2012.). 47 diálogos socráticos ele faz inúmeras referências ao cuidado que o homem deve ter com ela100, de tal modo que, quando sua alma é direcionada para o conhecimento do bem, leva-o à aquisição da virtude, e, quando se dá o contrário, conduz-nos ao vício. Esse modo de pensar concebeu o que hoje conhecemos como o paradoxo moral socrático, ou seja, o conhecimento é a causa da virtude. Portanto, basta o homem conhecer a justiça para ser justo, e o mesmo ocorre com as demais virtudes. Dessa forma, Sócrates acredita que ninguém erra de forma deliberada, mas sim pela falta de conhecimento, condição que o leva a ignorar a melhor maneira de distinguir o bem do mal. Tal modo de pensar teve como consequência o vínculo de suas ideias com o intelectualismo, tema que será posteriormente abordado. Assim, para Sócrates, o grande objetivo a ser alcançado é a busca do conhecimento interior, e o caminho para tal está no processo de reconhecer e de descobrir a melhor forma de fazê-lo. Logo, sua teoria moral está fundamentada na possibilidade de a alma maximizar suas virtudes e de minimizar os vícios; bem como, na dicotomia observada entre as características que particularizam o corpo, ou seja, tendência do homem procurar satisfazer os prazeres materiais, dos da alma, que tem como principal atribuição controlar e nortear nossas ações sem render-se aos desejos do corpo101. Essa dualidade observada entre a pureza da alma e sua possível corrupção, fruto das tentações advindas do corpo, influenciou diversos segmentos das futuras sociedades, especialmente em seus aspectos religiosos, e foi responsável pelo florescer de várias linhas doutrinárias que perduram até a nossa contemporaneidade. Outro aspecto importante da moral socrática é a capacidade de atingir a essência das coisas, partindo da análise de suas características particulares. Este nível de abstração atribuiu a ela um caráter universalista e a desvinculou totalmente da influência das afecções humanas. Embora no diálogo Protágoras ele defenda veementemente esse tipo de raciocínio, no diálogo Górgias há uma alteração em seus conceitos, os quais passam a considerar a possibilidade de o homem submeter-se ao jugo das opiniões, fato que certamente o conduziria ao vício 102. No entanto, cabe destacar que essa mudança não ocorreu na essência do paradoxo 100 Ver PLATÃO, Apologia de Sócrates (29c-30b), Protágoras (310b-314c), entre outras obras de juventude (PLATÃO. Apologia, Critão, Laquete, Cármides, Líside. Tradução de C. A. Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. I; idem, v. III). 101 “Outra coisa não faço, senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que das riquezas não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm as riquezas e todos os outros bens, privados e públicos” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 30b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 102 Para maiores detalhes sobre este aspecto da moral socrática, ver na obra platônica Górgias o diálogo entre 48 moral socrático, e sim em sua aceitação de que o conhecimento, sob esse ponto de vista, não pode ser vinculado a uma característica comum a todos os seres. Logo, essas duas perspectivas são fundamentais para entender a visão socrática de que a alma passa a ser dual, na qual existe uma parte racional, que procura o bem, e outra irracional, fortemente influenciada pelas afecções e pelos prazeres do corpo. Então vamos tentar entender como essa transformação do paradoxo ocorre ao longo dos diálogos socráticos. No Protágoras103, o paradoxo moral socrático está fundamentado na negação da akrasia, ou seja, não é admissível alguém conhecer o bem e, de forma deliberada, cometer uma ação má. Isto significa que a alma por meio do contato com o bem não está mais sujeita ao jugo das vontades e dos desejos do corpo. Esse controle sobre as influências das afecções e dos apetites é uma característica encontrada em todos os indivíduos, resultando na crença de que existe bondade em todas as almas e que elas só desejam o bem. Portanto, segundo Sócrates, se erram, é devido as suas concepções equivocadas sobre o que é o verdadeiro bem. Outro conceito capital para compreender a moral socrática é sua teoria hedonista, a qual se propõe a analisar o efeito das ações agradáveis e das desagradáveis na vida do ser. Ela associa o prazer às coisas agradáveis, ao afirmar que elas são boas por gerarem consequências boas, e que as desagradáveis são más por gerarem consequências más104; essa questão não é, contudo, tão trivial quanto se apresenta, isto é, ao fazer uma análise mais criteriosa dos aspectos da moral socrática, podemos observar a grande importância que ele atribui ao conhecimento ou epistéme, que essencialmente descarta a possibilidade de alguém, após conhecer o bem, ser capaz de cometer uma ação insensata, unicamente com o objetivo de obter o prazer. Dessa forma, Sócrates desvincula totalmente o conhecimento do bem, da busca incondicional do prazer, já que ela não está preocupada com as consequências boas ou más dessa ação. Segundo ele, quem afirma ter se deixado levar pelo prazer, para justificar uma ação inadequada, está completamente equivocado, pois só a ignorância do bem pode levar alguém a cometer uma ação má. Logo, quem se deixa levar pelas afecções ou pelos apetites o faz movido por uma falsa opinião, e nunca pelo conhecimento105, ratificando sua posição de negar a possibilidade da akrasia, veementemente defendida no Protágoras. Sócrates e Cálicles. 103 Conceitos presentes em PLATÃO. Protágoras, 351a-358c. In: PLATÃO, 1973, v. III. 104 Id., ibid., 351a-b. 105 Id., ibid., 352a-353e. 49 Também vale lembrar que para Sócrates a meta da alma do homem é atingir o conhecimento do bem, o que consequentemente a conduzirá à obtenção da felicidade. Ora, se o prazer traz felicidade, é de se esperar que sua busca não esteja relacionada a algo ruim; Sócrates, contudo, faz uma ressalva a esses argumentos favoráveis à procura do prazer, ao afirmar que ela perde seu caráter positivo no momento em que ultrapassa um limite razoável, isto é, a medida106. Desse modo, Sócrates em sua teoria hedonista defende a ideia de que o prazer não é um mal em si, pois sua procura somente pode ser considerada algo ruim no momento em que visa a obtenção de uma satisfação imediata, ou quando ela provoca algum efeito negativo em sua vida. Já nos casos em que essa busca do prazer está associada a um bem-estar permanente, pode e deve ser considerada um bem. Isto significa que para Sócrates é impossível alguém cometer ações más apenas na busca do prazer, já que o prazer pode ser um bem. Logo, as pessoas só são influenciadas pelos desejos do corpo ou pelas afecções nas situações em que querem atingir o prazer sem ter o real conhecimento da medida ou do verdadeiro bem107. Em suma, no diálogo Protágoras, o pensamento socrático está fundamentado na efetiva busca da essência das coisas, e esse nível de abstração conduziu Sócrates a crer que a alma estava livre do vício e que todos os males dos seres tinham como origem as influências negativas advindas do corpo. Já no diálogo Górgias, essa visão da moral socrática baseada na diferença entre o corpo, associado às coisas ruins, e a alma, associada às coisas boas, é analisada sob uma nova perspectiva, a qual entende que a alma poderia ser influenciada por fatores externos e que seria suscetível a viver tanto na virtude quanto no vício. Dessa forma, Sócrates passa a admitir que nossa alma, além de ser composta por um lado racional, que sempre procura a aquisição do bem, também tem um lado irracional movido pelas afecções, que busca satisfazer nossos desejos e apetites. Neste sentido, a abordagem deste tema no diálogo é feita por meio de uma análise da retórica, entendida como um instrumento poderoso de convencimento e de persuasão das almas humanas, baseada em argumentos fundamentados em suas crenças e opiniões, isto é, uma atividade essencialmente sofísta108. 106 PLATÃO. Protágoras, 358b. In: PLATÃO, 1973, v. III. “[...] quem erra na escolha dos prazeres e dos sofrimentos, isto é, dos bens e dos males, erra por falta de conhecimento, não de conhecimento em geral, mas daquele que admitistes como sendo o conhecimento da medida. Toda ação errada por falta de conhecimento, como bem o sabeis, decorre da ignorância, de forma que ser vencido pelo prazer é a maior ignorância” (id., ibid., 354c-355e). 108 A retórica sofística, sedimentada na empeiria, ou seja, vista de forma negativa como prática ou rotina, futuramente é recuperada por Platão, em suas obras de maturidade, em especial, o Fedro, transformando-se na retórica filosófica, fundamentada na epistéme. 107 50 Para tanto, Górgias define a retórica como uma arte, ou tékhne, cujo objeto é o corpo e a alma dos homens, e seu fim é a obtenção da saúde e da beleza. Sócrates discorda, contudo, da visão gorgiana e afirma que a retórica sob a ótica dos sofistas não passa de uma empeiria, ou seja, uma adulação, que tem como único objetivo proporcionar prazer ao corpo e a alma, sem levar em consideração seus possíveis efeitos negativos. Assim, Sócrates divide a tékhne, ou arte, em medicina e ginástica, quando visa o bem do corpo, e em justiça e legislação, quando associada ao bem da alma. Já a arte em sua versão corrompida, empregada para proporcionar apenas o prazer, independentemente dos efeitos bons ou ruins, é denominada empeiria, ou adulação, que é a culinária e a cosmética, quando vinculada ao corpo, e retórica e sofística, quando direcionada a cativar o lado irracional da alma 109. E esse é o ponto relevante a ser tratado, pois agora para Sócrates a alma possui um lado racional que procura atingir o bem e um lado irracional que deseja obter o prazer, sem questionar se o agente motivador dessa ação é algo justo ou injusto, ou seja, enquanto no Protágoras ele associa o prazer ao bem, no Górgias ele admite a possibilidade de os prazeres não serem bons nem ruins, dependendo apenas dos fatores que motivaram suas ações para a obtenção desses prazeres110. Isto significa, que este novo conceito moral socrático, mais complexo, admite a possibilidade da existência de prazeres ruins, radicalmente antagônicos às almas que desejam adquirir a sabedoria. Portanto, para que nossas atitudes possam ser consideradas virtuosas, devem ser norteadas pela justiça, que somente é obtida pela arte, mediada pela parte racional de nossa alma, e não pela adulação, movida simplesmente pelos nossos apetites. Essa nova característica do pensamento socrático nos é revelada no diálogo com Pólo, sobre o hedonismo e sua relação com a justiça, e, especialmente, na conversa com Cálicles e seu hedonismo exacerbado. Em ambos os casos, Sócrates reitera que a verdadeira felicidade somente pode ser atingida ao obter-se o real conhecimento do bem e na procura dos prazeres saudáveis, que consequentemente nos conduzirão à virtude. Dessa maneira, o processo do autoconhecimento exerce um papel fundamental na teoria moral socrática, que, por meio da medida, isto é, da prática do saber racional existente no interior de toda alma humana, nos fornecerá subsídios suficientes para decidir se as ações 109 Para maiores detalhes sobre este tema, ver o diálogo entre Sócrates e Pólo (cf. PLATÃO. Górgias, 463a465e. In: PLATÃO, 1973, v. III) e o diálogo entre Sócrates e Cálicles (cf. id., ibid., 501a-502e). 110 Sócrates afirma que o desejo enquanto falta nos provoca dor e o mesmo desejo, após satisfeito, nos traz prazer, de tal modo que podemos concluir que dor e prazer podem ocorrer ao mesmo tempo. Logo, nem toda dor produz infelicidade nem todo prazer proporciona felicidade (cf. id., ibid., 496c a 497a). 51 que tomamos são justas ou injustas. Neste sentido, para Sócrates torna-se fragrante a grande importância do ensinamento contido na célebre frase: “conhece-te a ti mesmo”. 2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates O oráculo do Apolo de Delfos exerceu um papel fundamental no pensamento socrático e foi um verdadeiro divisor de águas no rumo dos seus ideais filosóficos. Este fato, analisado em conjunto com algumas de suas especulações filosóficas, que ocorreram em sua juventude, pode explicar algumas controvérsias sobre suas ideias e também justifica algumas interpretações equivocadas sobre o caráter de seus ensinamentos. Logo, para entender essa influência e as reais repercussões em sua vida, já que ele não deixou nada escrito, coube-nos obter essas informações com base nas declarações 111 de Platão, Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles; porém, neste estudo abordarei apenas os testemunhos dos três primeiros pensadores, que viveram e conviveram com ele, fazendo uma compilação de seus principais escritos e ideias. Para tanto, iniciaremos essa análise sob a ótica da imagem pejorativa que Aristófanes fez de Sócrates em suas obras, que corresponde ao período anterior a ele receber do oráculo de Delfos o que ele mesmo denominou como sua “tarefa divina”112. Assim, como todo grande pensador de sua época, Sócrates sofreu influências dos filósofos da natureza e de alguns segmentos do movimento sofista. Ao longo de seu amadurecimento filosófico, ele percorreu diversas vertentes dessas doutrinas, e após algum tempo nessa jornada percebeu que sua grande vocação estava no despertar do conhecimento de si mesmo; se considerarmos, contudo, alguns aspectos dos ideais do jovem Sócrates, é 111 GUTHRIE, 1995, p. 8. “Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?’ E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha obediência ao deus” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29c-e. In: PLATÃO, 1973, v. I). 112 52 possível observar algumas semelhanças com a linha de pensamento dos filósofos da natureza e dos sofistas. Só assim, sob esta perspectiva, conseguimos entender algumas das acusações que Aristófanes fez a ele em suas comédias. Guthrie113 afirma que Aristófanes em suas obras visou minar as bases desse movimento humanista por meio de ironias e de sátiras, focando principalmente a desmoralização da imagem de Sócrates, que era um personagem muito conhecido em Atenas. Por outro lado, Jaeger afirma que Aristófanes foi radicalmente contra as propostas renovadoras desses novos intelectuais que surgiram em Atenas, especialmente as de cunho educacional. Em Os comilões, ele destaca a dicotomia existente entre os valores apregoados pela pedagogia tradicional e a pedagogia iluminista114. Já na obra Os aduladores, critica diretamente os sofistas, os quais ele qualifica como parasitas que permaneciam ao redor das residências dos nobres, visando obter vantagens financeiras. Dessa forma, suas comédias continham essencialmente uma forte crítica cultural e repudiavam essa nova categoria de educadores, que, em sua opinião, eram excêntricos e mal-educados. Mas o aspecto relevante nessa questão é que Sócrates, sendo ateniense e simpatizante dessas novas tendências, em dado momento passou a ser um dos personagens de seus poemas satíricos115. Em sua obra As nuvens, ele descreve Sócrates como um iluminista afastado do povo e um cientificista ateu, com foco apenas nos mistérios cosmológicos, enquanto seus discípulos ficavam perscrutando as coisas do mundo subterrâneo. Assim, Aristófanes torna claro seu apego às tradições e demonstra seu caráter conservador, totalmente avesso às mudanças preconizadas pelos filósofos da natureza e pelos sofistas. Ele também considerava o fruto dos seus ensinamentos como um agente deformador dos valores e dos costumes. Por fim, em sua obra As rãs, ele pela comédia defende o valor da tragédia em detrimento dos novos modelos educacionais, fortemente caracterizados pelo iluminismo racionalista. Conforme o próprio Jaeger: Sócrates é também, para o poeta, o protótipo de um novo espírito, que matava o tempo com sofísticas sutilezas, abstrusas e minuciosas, desprezando os valores insubstituíveis da música e da tragédia. Com a segura intuição do homem que vê em perigo os valores aos quais deve toda a substância da sua vida e a sua formação mais elevada, ataca vigorosamente uma educação cuja maior força é o intelecto116. 113 GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy, v. IV (Socrates). Cambridge: Cambridge University Press, 1978, p. 13. 114 Aristófanes narra a história do filho de um camponês que foi enviado para a cidade para receber uma formação sob os novos moldes, enquanto seu irmão ficou junto a seu pai com o objetivo de ser educado pelo método tradicional. No entanto, quando o jovem retornou da cidade, grande foi a decepção de seu pai, pois ele voltou moralmente corrompido, e não servia para fazer nenhuma das tarefas necessárias no campo, só se preocupando com as questões políticas. Ver JAEGER, 1995, p. 418. 115 Para maiores detalhes, ver GUTHRIE, 1978, p. 39-47. 116 JAEGER, 1995, p. 431. 53 Portanto, com base nessas informações torna-se razoável inferir que Sócrates foi uma vítima circunstancial da fase que atravessava a sociedade ateniense, fruto de um momento de renovação dos valores sociais e culturais. Logo, o grande agente motivador dos ataques de Aristófanes foi esse novo movimento intelectual, que feria profundamente as bases da cultura tradicional grega. De tal modo, que utilizou sua criatividade com o objetivo de denegrir a imagem de Sócrates perante a sociedade ateniense. Mas o que nos cabe compreender é por que Aristófanes o escolheu para tal ataque? Jaeger117 atribui tal fato a três razões. A primeira estava associada às características físicas de Sócrates, que, segundo ele, tinha os olhos saltados, o nariz achatado e os lábios grossos, o que facilitaria a máscara cômica concebida por Aristófanes. A segunda, por ser uma pessoa muito conhecida na pólis, o que favorecia a associação do personagem da comédia com alguém da vida real, já que a maioria dos filósofos da natureza e dos sofistas não residia em Atenas. E, por fim, a terceira, por ser um intelectual que, segundo a opinião de Aristófanes, representava as novas tendências violadoras das tradições e dos bons costumes. O solo, contudo, em que Aristófanes sedimentou as bases de suas críticas não era sólido, pois estas foram fundamentadas em uma fase muito imatura da vida filosófica de Sócrates, a qual foi influenciada pelas ideias dos filósofos da natureza e dos sofistas. Mesmo porque, se não todos, a grande maioria dos intelectuais daquela época também o fora. Até mesmo, em um dos diálogos socráticos118, ele confessa que, apesar de na sua juventude ter tentado aprofundar-se nos estudos dos fenômenos naturais e cosmológicos, descobriu que não possuía a menor aptidão para fazer considerações sobre esses temas. Por outro lado, após algum tempo de estudo dos fatores externos ao homem, trilhou um caminho inverso e passou a investigar as questões humanas, em especial, os aspectos internos do ser. Nesse sentido, o oráculo de Delfos foi um grande marco no pensamento socrático e exerceu um papel fundamental no novo rumo que tomou sua filosofia. O evento que originou 117 Para maiores detalhes, ver id., ibid., p. 433. “Em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a que dão o nome de ‘exame da natureza’: parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam, por sua vez, a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira pela qual tudo isso se corrompe, e, também, os fenômenos que se passam na abóbada celeste e na terra. E acabei por me convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptidão notável!” (PLATÃO. Fédon, 19a-c. In: PLATÃO. Fedon, 2007. Disponível em: <http://www.4shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Fedon.html>. Acesso em: 08 abr. 2010.). 118 54 essa grande mudança foi a pergunta que Querefonte fez ao oráculo de Delfos sobre se havia alguém em Atenas mais sábio do que Sócrates. E quando o oráculo respondeu que não, Sócrates ficou extremamente intrigado e não conseguiu descansar enquanto não descobriu o real significado da afirmação oracular. Mesmo porque ele estava ciente de que não havia a menor possibilidade de a divindade estar enganada e tinha plena consciência de suas limitações pessoais. Assim, após muito meditar, Sócrates concluiu que essa afirmação somente estaria fundamentada na máxima de que sua sabedoria era a de reconhecer que nada sabia, ou seja, assumir sua própria ignorância119. Esse ponto foi imprescindível para a construção das bases da sua paideía, pois, a partir desse momento, Sócrates passou a interrogar os cidadãos atenienses, procurando identificar alguma sabedoria entre aqueles que diziam possuir algum tipo de autoridade sobre um determinado ramo de atividade, seja ela política, literária ou artesanal. Grande foi sua surpresa ao perceber que, com exceção dos artesãos, que tinham apenas um conhecimento técnico limitado a sua arte, os demais eram mais ignorantes do que ele, pois, contrariamente a sua postura, não assumiam desconhecer a verdade das coisas que intitulavam saber. Graças a essa missão divina120, ele concebeu um modelo pedagógico caracterizado por uma série de questionamentos que conduziam o interlocutor a rever seus conceitos, normalmente fundamentados em pseudoverdades, levando-o a tomar consciência da própria ignorância. Portanto, a experiência adquirida após o evento ocorrido com o oráculo do Apolo de Delfos determinou uma nova tendência para a filosofia socrática, que passou a priorizar as coisas interiores do ser, especialmente sua alma, estimulando por meio de sua paideía o autoconhecimento e a autoconsciência. Dessa forma, seu principal objetivo é despertar no interlocutor o conhecimento de si mesmo, ou seja, incentivar a alma dos homens a atingir a virtude por meio da consciência plena de seus atos e do domínio de seus impulsos. 119 Para maiores detalhes sobre essas afirmações, ver PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: PLATÃO, 1973, v. I; XENOFONTE. Apologia de Sócrates. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1972 (Coleção Os Pensadores, v. II, “Sócrates”). 120 “Enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?’” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixandoo, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29e30a. In: PLATÃO, 1973, v. I). 55 2.2 Principais ideias 2.2.1 O intelectualismo socrático Esse movimento que revolucionou a forma de pensar a cultura, a religião e a educação grega veio ao longo dos anos descrevendo uma trajetória lenta, mas contínua, até atingir seu ápice no período clássico (século V a.C.). Estas mudanças foram de tamanha abrangência, que afetaram diversas áreas do conhecimento; a transformação de maior relevância ocorreu no processo de formação política de seu povo, que alterou profundamente vários conceitos preestabelecidos na sociedade grega. Entre eles, e o de maior repercussão, foi a possibilidade de transformar qualquer membro da comunidade em um cidadão, com efetiva participação nas decisões da pólis. Esse novo modelo pedagógico surgiu como consequência natural de uma tendência humanista, que floresceu no espírito dos intelectuais desse período. E Sócrates não foi uma exceção a essa regra, pois concentrou todos os seus esforços no sentido de compreender as questões de caráter espiritual dos seres, especialmente as que tratavam dos fatores éticos e morais. Logo, seu objetivo era tentar entender os principais agentes motivadores das ações humanas. Nesse aspecto, Sócrates priorizou o uso da razão como um instrumento pedagógico em detrimento dos velhos modelos educacionais 121, tradicionalmente utilizados pelos educadores atenienses. Esse método estava fundamentado em um conjunto de modelos teóricos, baseados em uma forma de pensar sistemática caracterizada essencialmente pela valorização do intelecto122. Assim, com base nesses ideais pedagógicos, Aristóteles123 declarou que devemos creditar a Sócrates uma mudança na forma do pensamento dos gregos, por meio de uma metodologia fundamentada nos argumentos indutivos e nas definições gerais 124. No entanto, apesar de os argumentos indutivos serem um instrumento muito eficiente para a evolução dos processos científicos, o uso desses argumentos pelo método socrático a princípio causa-nos certa estranheza. Mesmo porque o objeto de estudo de Sócrates estava 121 122 Conforme já abordado no item 1.1.2, “A areté e a educação”, do Capítulo 1. JAEGER, 1995, p. 513. 123 “There are two things which may justly be credited to Socrates, inductive arguments and general definition” (GUTHRIE, 1978, p. 106, e também JAEGER, op. cit., p. 505). 124 Guthrie afirma que Aristóteles tende a particularizar alguns fatos, ao adequá-los a sua forma de pensar. Neste caso em especial identificou traços puramente lógicos no pensamento socrático, o que Zeller discorda, pois segundo ele, Sócrates procurava as definições gerais, através de um processo de depuração dialética, fundamentalmente baseada em preceitos morais e éticos (GUTHRIE, 1978, p. 107). 56 muito distante das ciências naturais, e o foco de suas especulações era a alma do homem, mais especificamente, suas questões morais. Então, por que Aristóteles afirmou que Sócrates utilizou os argumentos indutivos em sua metodologia? Segundo Guthrie 125, a afirmação aristotélica foi baseada no fato de que os argumentos indutivos são como uma ponte que serve para passar das características particulares, de um determinado objeto de pesquisa, para suas características universais, um dos grandes objetivos do programa educacional socrático. Dessa forma, Sócrates concentrou-se na busca da essência das coisas, o que Jaeger considerou como os conceitos universais e Guthrie, como as definições gerais. Se pusermos, contudo, à parte essa questão da nomenclatura, ele efetivamente pretendia, com base nos argumentos associativos ou indutivos126, sair dos conceitos particulares e atingir os conceitos universais, ou seja, obter de dentro da multiplicidade a unidade. Esta característica é observada com relativa frequência nos diálogos socráticos, como, por exemplo, no Laques, em que, no momento em que ele pergunta sobre o que é a coragem, uma virtude particular e individual, ele não está tentando distinguir esta virtude das demais, mas sim chegar a uma unidade superior e abstrata, aquilo que é comum a todas as virtudes, a virtude em si. Portanto, os diálogos socráticos abordam as virtudes sob uma perspectiva particular, as quais, após passarem por um processo de síntese de suas características essenciais, fornecem subsídios suficientes para determinar o que há de comum entre elas, isto é, sua unidade; bem como conceber uma virtude geral, ou seja, seu conceito universal. Para atingir tal propósito, Sócrates adotou o caminho de abordar nos diálogos socráticos as virtudes que ele considerou fundamentais para o aperfeiçoamento da alma. No Laques, o tema principal é a coragem, no Cármides é a temperança, no Eutífrom é a piedade, e as demais virtudes, a justiça e a sabedoria, não são tratadas em nenhuma obra específica, porém permeiam todos os diálogos socráticos. Em suma, o que ele deseja obter ao tratar essas questões de forma isolada são os fatores que definem a natureza essencial das virtudes. Assim, o tema da unidade das virtudes é um assunto de grande relevância na filosofia socrática, e, entre elas, a sabedoria exerce um papel de destaque, pois, segundo Sócrates, é o elo entre as demais virtudes. Conforme o Laques127, basta o indivíduo ter o conhecimento do bem e do mal para que ele possa agir de forma virtuosa, e assim ser um indivíduo virtuoso. Devido a essa postura, contudo, Sócrates foi acusado de ser intelectualista, já que para ele o 125 Id., ibid., p. 100. Segundo Guthrie, não devemos atribuir a Sócrates o uso pela primeira vez dos argumentos indutivos, mas ele seguramente foi o primeiro que deu importância a eles, com o objetivo de chegar as definições gerais (cf. id., ibid., p. 108). 127 PLATÃO. Laques, 198a-199d. In: PLATÃO, 1973, v. I. 126 57 saber é condição necessária e suficiente para que a alma do homem passe a ter atitudes virtuosas. Mas, posteriormente, no diálogo Protágoras128, entre outras obras, Sócrates foi obrigado a rever alguns de seus conceitos e concluiu que o conhecimento do bem e do mal é uma condição necessária, mas não suficiente para atingir-se a virtude, aspecto de sua pedagogia que posteriormente será mais bem abordado. Outro motivo pelo qual Sócrates foi acusado de pertencer ao movimento intelectualista é explicado com base nos argumentos de Havelock129, que, sob sua perspectiva, não só Sócrates, como também os sofistas e os filósofos da natureza representavam um grupo de intelectuais caracterizados por uma forma de pensamento abstrata, que surgiram no final do século V a.C. Embora Sócrates utilize, todavia, a abstração como um instrumento coadjuvante em seu modelo pedagógico, ele difere dos demais representantes desse movimento intelectualista, pois acreditava na existência de um deus moral, defendia o extremo cuidado que o homem tem de ter com sua alma e fazia uso da razão como um limite moral, e não como um fim. Portanto, na questão do intelecto, Sócrates segue o caminho das coisas divinas, que estão além do entendimento humano. 2.2.2 A metodologia socrática Conforme já abordado, Sócrates procura por meio de seu modelo pedagógico obter a essência das coisas, ou seja, aquilo que de forma inequívoca distingue e define a principal característica do objeto de seu estudo. Essa busca rigorosa das essências por meio da sublimação das opiniões equivocadas e da constante procura da verdade proporciona ao indivíduo um melhor conhecimento de sua alma130. E, como o grande objetivo de sua investigação eram as questões éticas e sua efetiva aplicação prática, o método socrático resulta no aperfeiçoamento do espírito do homem, especialmente em seus aspectos morais. De tal modo que estabelece um conjunto de parâmetros, em tal nível de abstração que, além de permitir o acesso aos conceitos universais, também conduz o interlocutor a rever muitas de suas crenças. 128 PLATÃO. Protágoras, 329a-c. In: PLATÃO, 1973, v. III. HAVELOCK, 1996, p. 205. 130 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29c. In: PLATÃO, 1973, v. I. XENOFONTE, 2009, I, 1, 11. 129 58 Essa determinação da natureza abstrata dos conceitos universais demonstra com clareza que a investigação dialética, característica típica de sua pedagogia, nada mais é do que um processo de obtenção do conhecimento como uma sinopse, isto é, a síntese do múltiplo, gerando uma unidade do conceito universal131. Então, quando no Eutífron, Sócrates pergunta o que é piedade, ou, no Laques, o que é coragem, ele não está querendo saber o significado formal das palavras “piedade” ou “coragem”, e, nem mesmo, obter uma lista de atitudes pias ou corajosas. Na verdade, ele quer saber o que caracteriza um homem pio ou corajoso, isto é, quer conhecer melhor a alma humana e compreender os fatores que a levam a tomar certas atitudes. Portanto, quando Sócrates pergunta a seu interlocutor “o que é X”, ele não quer saber sobre as qualidades contingentes de “X”, mas sim de todas as características necessárias que definam o que é “X”. Da mesma forma, quando Sócrates pergunta sobre o que é a coragem, a temperança, a piedade ou a justiça, ele não quer exemplos dessas virtudes, o que ele quer é uma definição que exprima a real essência por trás desses termos e que o interlocutor efetivamente conheça o que é “X”. Assim, no ponto em que Sócrates fala no Laques a respeito da arte da guerra, ele parte do pressuposto de que o indivíduo possuidor da coragem, ao ter o conhecimento do bem e do mal, sabe quais são os motivos e qual é o melhor momento para iniciar, ou não, uma guerra. Da mesma forma, no Cármides, em relação ao que se refere a prudência, e, no Eutífron, na procura incansável do conceito universal do que é piedade. Assim, seja na busca do conceito universal ou na procura do conhecimento do bem e do mal, os diálogos socráticos visam abordar temas associados aos valores morais, ou seja, às virtudes humanas. Dessa forma, a estratégia pedagógica concebida por Sócrates está baseada no diálogo, ou lógos132, e é constituída por um processo dialético composto por duas fases distintas e complementares, denominadas protréptico e élenkhos, as quais conduzem o homem a alcançar sua liberdade interior, por meio do aprimoramento de sua alma, propiciando a primazia da razão sobre os instintos. Na primeira fase, denominada protréptico, ou exortação, ele utiliza seu método com o objetivo de conduzir seu interlocutor ao caminho da filosofia, isto é, especula o real comprometimento dele com o valor e a verdade das coisas; bem como faz uma autoavaliação, 131 JAEGER, 1995, p. 524. O lógos foi o grande instrumento que Sócrates utilizou para atingir a alma do homem, seu grande objetivo pedagógico. Conforme Jaeger: “a forma de Sócrates abordar o problema ético não era uma mera profecia, uma pregação destinada a sacudir a moral do Homem, mas que a sua exortação ao ‘cuidado da alma’ traduzia-se no esforço de penetrar na essência da moral por meio da força do lógos” (id., ibid., p. 585). 132 59 questionando seus próprios juízos de valor 133. Neste sentido, o processo de exortação pretende despertar a consciência e o discernimento do que realmente é importante para a vida do ser, ou seja, se são os seus bens materiais ou sua alma134. Essa visão socrática no que se refere à hierarquia dos bens difere radicalmente do senso comum vigente até então na Grécia, que priorizava a saúde, a beleza, a juventude e a riqueza, enquanto Sócrates valorizava os bens da alma, do corpo e, por fim, as coisas materiais 135. Logo, sob esta perspectiva socrática, a alma ganha um papel de grande destaque em seu modelo pedagógico, e o processo de exortação é o primeiro passo no sentido de atingir uma formação completa do ser. Já a segunda fase, denominada élenkhos, ou refutação, é um complemento indispensável para o método socrático, pois, após a etapa de exortação, o interlocutor passa a tomar consciência de si mesmo e perceber que não sabe nada do que julga saber, e, assim, dispõe-se a começar uma nova etapa de seu aprendizado, reformulando suas antigas crenças. Dessa maneira, o élenkhos visa o crescimento ético e moral, mediante o despertar do indivíduo para o desejo de adquirir o conhecimento. No entanto, para que o método seja aplicado em sua plenitude, parte-se do pressuposto de que, entre os participantes, haja um comprometimento com a obtenção da verdade, isto é, que ao longo do diálogo eles estejam totalmente livres das opiniões. Assim, o processo inicia-se com um conjunto de perguntas e respostas, nas quais Sócrates conduz seu interlocutor a concluir que suas crenças estão fundamentadas em falsas “verdades”, normalmente fruto de percepções equivocadas, de opiniões subjetivas e de preconceitos injustificados. Esta etapa dentro do élenkhos é chamada de eiróneía, ou seja, questionamento, na qual Sócrates faz seu interlocutor perceber a falsidade de seus argumentos e, consequentemente, sua ignorância, até então interpretada como sabedoria. E por meio desse choque, provocando inicialmente raiva, e posteriormente vergonha136, que o interlocutor sente a necessidade de encontrar a verdade. A partir desse momento, ele está apto a entrar na segunda etapa do élenkhos, denominada maieutiké, ou seja, arte de ajudar a partejar. Dessa 133 “[...] quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de filósofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros [...]” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 28b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 134 “Sócrates fala como um médico cujo paciente fosse não o homem físico, mas o homem interior. Abundam extraordinariamente nos diálogos socráticos as passagens em que se fala do cuidado da alma ou da preocupação com a alma, como a missão suprema do Homem” (JAEGER, 1995, p. 536). 135 Id., ibid., p. 538. 136 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 20c-d. In: PLATÃO, 1973, v. I. 60 maneira, Sócrates nesta última fase de seu método continua a reafirmar nada saber e não fornece respostas para os temas analisados, pois acredita que sua função é atuar como um agente facilitador, para que o interlocutor acesse algo que ele já conhece. Portanto, Sócrates acredita que o conhecimento é algo natural, e basta estimular os indivíduos a recuperar esse saber. E ele o fazia por meio do auxílio de uma espécie de parto do espírito, da mesma forma que sua mãe auxiliava os partos do corpo137. Em suma, mediante a exortação e a refutação, a metodologia socrática pretende despertar nos indivíduos um conhecimento existente dentro de sua própria alma. Consequentemente, seu princípio básico é nada ensinar. Ela está essencialmente fundamentada nos exemplos de Sócrates, visto como homem medida 138, que serve como referência de moralidade e de respeito aos limites humanos; bem como na concepção de um ensino baseado em um modelo ético, desvinculado de qualquer linha doutrinária, prática que era muito comum nos processos educacionais gregos desse período. 2.3 A paideía socrática O método e os fundamentos da pedagogia socrática foram um marco nos processos educacionais do mundo ocidental. Nela é possível observar profundos traços de cisão com os modelos até então utilizados na sociedade grega. Dessa forma, o movimento renovador constituído pelos ideais educacionais dos filósofos da natureza, dos sofistas e de Sócrates eram um avanço tanto no método quanto no foco desses modelos pedagógicos. Apesar de existirem semelhanças nos fundamentos dessas escolas, também havia diversas diferenças entre elas. Enquanto os filósofos da natureza tinham uma tendência mais cientificista e dedicavam-se a compreender os fenômenos físicos, os sofistas e Sócrates tinham interesses mais humanistas, preocupando-se com os aspectos humanos e o papel do homem na sociedade. Essa diferença de perspectiva educacional foi cada vez mais relevante, principalmente nos temas cosmológicos, pois Sócrates considerava-os uma tremenda perda de tempo139, isto 137 “[...] O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira [...]” (id., ibid., 150c). 138 “Sócrates era para seus discípulos um modelo vivo de virtuosidade [...]” (XENOFONTE, 2009, I, 2, 4). 139 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 18c. In: PLATÃO, 1973, v. I. 61 é, eram especulações que não passavam de meras hipóteses140. Não era, todavia, todo objeto de estudo dos filósofos da natureza que desagradava Sócrates, pois para ele os que se referiam aos métodos empíricos, relativos às experiências da vida prática, eram dotados de grande interesse filosófico. Assim, Sócrates considerava a medicina como um excelente exemplo do uso do conhecimento com o objetivo de trazer algum tipo de benefício para a vida dos homens. Isto pode ser observado em sua preocupação com o cuidado que o indivíduo deve ter com a saúde, seja ela do corpo ou da alma 141. No entanto, sua grande prioridade sempre foi a saúde do espírito, o que direcionou todo o seu esforço educacional para o interior do próprio ser, ou seja, a obtenção do conhecimento de si mesmo. Nesse sentido, Sócrates concebeu uma paideía que visava a atingir a formação integral do homem, a qual considerava o autoconhecimento e o cuidado com a alma como sua principal missão142. Esta visão antropocêntrica, fruto de uma crise nos valores morais no Estado e na sociedade grega143, foi o fator que influenciou fortemente seus ideais pedagógicos, e o fez perceber a importância do cuidado e da manutenção da saúde da alma. Até mesmo, para Sócrates, a alma ou a psyche é a parte divina existente dentro dos seres humanos144. E é justamente na alma que ele irá concentrar todos os seus esforços educacionais, porque lá reside o nosso intelecto, a nossa racionalidade e o nosso poder de discernimento no que tange às questões éticas e morais. Segundo Burnet145, Sócrates foi o primeiro a encarar a alma sob essa perspectiva, pois até então ela possuía um caráter essencialmente místico-religioso. Jaeger exprimiu assim as idéias de Brunet: O novo sentido que Sócrates dá a esta palavra não se pode explicar nem a partir do eidolon épico de Homero, nem a sombra do Hades, nem da alma-sopro da filosofia jónica, nem do dáimon-alma dos órficos, nem da psykhé da tragédia antiga146. 140 JAEGER, 1995, p. 519; XENOFONTE, 2009, I, 1, 11. Id., ibid., I, 2, 5. 142 Tema bastante abordado nos diálogos socráticos, como em PLATÃO. Protágoras, 310b-314c. In: PLATÃO, 1973, v. III; em PLATÃO. Górgias, 465a-d (id., ibid.); e também em JAEGER, op. cit., p. 521. 143 “A Atenas de Péricles, que como cabeça de um grande império vê-se inundada por influências de todo o tipo e proveniência, está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu brilhante domínio em todos os campos da arte e da vida. Todos os valores herdados se esfumam num abrir e fechar de olhos, ao sopro de uma buliçosa loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no campo da moral que nesta altura o Estado e a sociedade são minados” (id., ibid., p. 523). 144 GUTHRIE, 1978, p. 149, e JAEGER, op. cit., p. 531. 145 GUTHRIE, 1978, p. 12, e JAEGER, 1995, p. 534. 146 Id., ibid., p. 525. 141 62 Portanto, a alma à qual Sócrates se refere tem como característica principal o intelecto e a essência dos seres. E na paideía socrática a alma exerce um papel de destaque, pois ela tem a possibilidade, sob o ponto de vista de Sócrates, de atingir o conhecimento, e, consequentemente, a virtude. Isto fica muito claro na primeira fase de sua metodologia pedagógica, denominada protréptico147, que em conjunto com o élenkhos promove um verdadeiro exame dialético no homem. Outro conceito que é extremamente caro para a paideía socrática é a dualidade corpo e alma, a qual vê o homem como um ser composto por duas partes distintas e simultaneamente inter-relacionadas. Uma delas é a material, denominada corpo, e a outra é a espiritual, denominada alma. A relevância de cada uma dessas partes em detrimento da outra, no modelo pedagógico socrático, acabou gerando algumas controvérsias entre seus estudiosos. Guthrie considera que Sócrates trata a alma com muita devoção, e por este motivo ela possui um grande privilégio dentro de sua paideía. Segundo ele, para Sócrates até mesmo a essência humana reside na alma, o que justificaria dedicar toda a sua força educacional ao objetivo de nela despertar a sabedoria, ou seja, a virtude. Logo, o corpo é apenas um instrumento de manifestação das vontades e dos desejos da alma, e, assim, ela seria o elemento mais importante da existência humana, e o corpo seria apenas um elemento coadjuvante148. Em contrapartida, Jaeger defende que corpo e alma são dois aspectos distintos da mesma natureza, isto é, não existe uma oposição do psíquico em relação ao físico. Assim, para Sócrates a alma espiritualiza a natureza física, da mesma forma que o corpo influencia a natureza psíquica, e, consequentemente, ambos pertencem ao mesmo cosmo. Portanto, o princípio que se manifesta em um deles manifesta-se em ambos. Assim, tanto a virtude física (saúde, força e beleza) como a espiritual (coragem, temperança, piedade e justiça) compõe o conjunto de atributos, que, quando em harmonia, conduzem o homem ao conhecimento do bem. Conforme Jaeger, essa simetria entre corpo e alma é um dos grandes objetivos a serem atingidos na paideía socrática149. Em suma, a divergência de interpretações entre ambos no que se refere a esse conceito fica muito clara quando Guthrie afirma não compreender o ponto de vista de Jaeger na questão do corpo e da alma, principalmente quando ele diz que no homem não existe oposição entre o psíquico e o físico, pois, para Guthrie, o corpo é algo externo a sua própria essência. Ele faz uma analogia em sua obra dizendo que o corpo é para a alma do homem o que a serra 147 Etapa de sua pedagogia denominada protréptico, ou exortação, já abordada no item 2.2.2. GUTHRIE, op. cit., p. 152. 149 JAEGER, 1995, p. 531. 148 63 é para o carpinteiro 150. Particularmente, julgo a posição de Jaeger mais próxima do pensamento socrático, mesmo porque Sócrates via o homem como um todo, e, assim, orientava suas práticas educacionais para atingir uma formação completa do ser, privilegiando um equilíbrio harmônico entre corpo e alma, tanto nas virtudes físicas, quanto nas virtudes psíquicas. Outro aspecto de sua paideía é a questão do autoconhecimento151, só que agora visto sob outra perspectiva, ou seja, como um instrumento para a obtenção do controle de si mesmo e do equilíbrio de nossas próprias atitudes. Atributos fundamentais para qualquer cidadão que se proponha a ser um futuro governante. Neste sentido, vale lembrar que para Sócrates uma das metas fundamentais de sua paideía era alcançar a virtude em especial a política. Para tal objetivo, ele lançou mão de um novo conceito, que foi o do domínio de si próprio, caracterizado pelo predomínio das atitudes racionais em detrimento das instintivas. Esse conceito do autodomínio resultou na priorização das coisas do espírito sobre a dos instintos humanos. E, como o espiritual é o verdadeiro eu do homem, consequentemente dentro de si começa a surgir a semente da justiça interior, concebida sob a égide das leis que habitam nossa própria alma 152. Esse aspecto da paideía socrática possibilitou a valorização da ética e da liberdade, que foram outros dois elementos importantíssimos para sua estrutura pedagógica. No caso da ética, Jaeger traduz sua relevância ao afirmar o seguinte: Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central da nossa cultura ética. Esta idéia concebe a conduta moral como algo que brota do interior do próprio indivíduo e não como a mera submissão exterior à lei, tal qual a exigia o conceito tradicional da justiça153. Assim, a paideía socrática pretende produzir no interior da alma humana uma consciência moral, a qual será o elemento norteador que conduzirá o homem a tomar decisões éticas. Já na questão da liberdade, cabe destacar que nesse período o conceito de liberdade era apenas o de algo oposto a escravidão, muito aquém do conceito que possuímos atualmente; 150 “It is difficult to understand what was in Jaeger’s mind when he wrote [paideía] that ‘in his [Socrates’s] thought, there is no opposition between psychical and physical man’. The body is as extraneous to the man himself, his psyche, as the saw is to the carpenter” (GUTHRIE, 1978, p. 153). 151 Além do tradicional conhecimento de si, fruto da célebre frase do oráculo de Delfos, Xenofonte destaca no diálogo de Sócrates com Eutidemo o grande valor do autoconhecimento, ao declarar que, apesar da cultura geral e da erudição, o fundamental para um governante é conhecer a si mesmo, a fim de trabalhar com suas limitações. Ver XENOFONTE, 2009, IV, 2, 8-13. 152 Id., ibid., I, 4, 4-8. 153 JAEGER, 1995, p. 548. 64 Sócrates propõe, contudo, uma liberdade ética, fundamentada na autonomia moral, que, segundo ele, é obtida por meio da conquista da liberdade interior. E esta liberdade é fruto da eficiência do domínio sobre nós mesmos, proporcionando uma independência da parte animal existente em todos os seres. Então, para Sócrates, o homem livre é aquele que não se deixa subjugar por seus apetites e paixões154. Outro conceito similar é o de autarquia, que também está associado à liberdade, mas refere-se a uma independência das coisas, ou seja, uma ausência de necessidades 155. Assim, essa liberdade seria adquirida por meio da força interior, capaz de limitar suas vontades e desejos, para tentar possuir apenas aquilo que lhe é possível. Logo, o homem sob esta perspectiva pode ser considerado autárquico, pois soube vencer seus instintos pelo autodomínio 156. E este fator em sua paideía é extremamente relevante, porque só por meio dessa liberdade interior é que o homem consegue ser realmente livre. Por fim, o último aspecto de seu modelo pedagógico que considero relevante abordar é o que se refere à relação de amizade entre o mestre e o discípulo, o que Sócrates denominava philía, ou amizade virtuosa. Ele até mesmo discordava dos termos “mestre” e “discípulo”, muito utilizado pelos pedagogos da época, preferindo empregar o termo “amigo”157, e de pôrse a seu serviço para qualquer necessidade, seja ela nas questões educacionais ou privadas158. Dessa forma, Sócrates, ao tratar seus pares como amigos utilizava durante seu processo educacional o respeito mútuo e abria caminho para a confiança recíproca, fator que ele considerava fundamental para que houvesse uma troca natural de ideias e de conceitos, sem permitir que houvesse julgamentos precipitados e rejeições prévias, facilitando, assim, o crescimento de todos os envolvidos no processo educacional. Em suma, a paideía socrática está fundamentada na consciência da própria ignorância, no conhecimento de si mesmo e no cuidado com a alma, elementos que nos levam a concluir que o fundamental de sua ação pedagógica é despertar a força existente dentro de nós mesmos, visando o aperfeiçoamento de nosso próprio interior, ou seja, de nossa alma. 154 PLATÃO. Protágoras, 355b-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. XENOFONTE, 2009, I, 3, 12 e I, 6, 10. 156 JAEGER, op. cit., p. 552. 157 “Admirava-se de que um homem que fizesse profissão de ensinar a virtude exigisse remuneração e que, em vez de ver na aquisição de um amigo virtuoso a maior das recompensas, temesse que um coração converso à virtude não pagasse o maior dos benefícios com o maior reconhecimento. Aliás, Sócrates nunca prometeu nada de semelhante a ninguém. Porém, abrigava a certeza de ganhar, naqueles que lhe seguiam os princípios, bons amigos que o amariam e se estimariam reciprocamente para o resto da vida” (XENOFONTE, op. cit., I, 2, 3). 158 “Sócrates põe o seu gênio para a amizade a serviço dos amigos, quando estes precisam dele para fazer novas amizades. Não é só como o aglutinante indispensável à cooperação política que ele conhece a amizade; esta é para ele a verdadeira forma de toda a associação profícua entre os homens. Por isso, ao contrário dos sofistas, nunca fala dos seus discípulos, mas sempre dos seus amigos” (JAEGER, op. cit., p. 568). 155 65 O capítulo apresentou as principais características e os aspectos mais relevantes da paideía socrática. O próximo capítulo irá destacar as divergências e as similaridades entre ambas as paideîai. 66 CAPÍTULO 3 Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática O presente capítulo tem como objetivo apresentar as principais divergências entre as paideîai dos sofistas e de Sócrates, bem como demonstrar que, apesar de suas diferenças, essas duas perspectivas pedagógicas possuem mais pontos em comum do que em uma análise menos minuciosa poderíamos supor. 3.1 Conflitos entre suas paideîai Os capítulos precedentes foram fundamentais para identificar as principais características pedagógicas de cada uma dessas paideîai. Até mesmo, com base em suas virtudes e limitações foi possível obter subsídios suficientes para fazer uma comparação mais criteriosa dos seus modelos pedagógicos, visando destacar os pontos de maior relevância que determinaram as diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 3.1.1 Abrangência dos programas educacionais O significado do termo “abrangência”, ao qual desejo ater-me neste item, refere-se à amplitude dos conceitos fornecidos por cada uma dessas linhas educacionais, tanto no que diz respeito a seu conteúdo pedagógico, quanto ao tempo necessário para atingir essa meta. Para tal objetivo, irei destacar alguns aspectos relevantes que particularizam essas duas escolas, focando as divergências na completude e na solidez dos conhecimentos transmitidos e na expectativa de alcançá-los dentro de um prazo pré-determinado. Assim, no que se refere à necessidade de despender maior ou menor tempo da vida do educando para atingir sua formação completa, Jaeger159 afirma que o ensinamento dos sofistas fundamentalmente visava a formação dos futuros chefes de Estado, e, consequentemente, seu programa educacional 159 JAEGER, 1995, p. 316. 67 deveria ser extremamente objetivo, pois necessitavam obter resultados efetivos em prazos relativamente curtos. Essa característica de sua paideía acabou justificando o alto investimento financeiro dos jovens candidatos a líderes e fortaleceu a fama dos sofistas como grandes mestres da pólis ateniense. Guthrie160 compartilha do mesmo ponto de vista que Jaeger ao declarar que a principal matéria-prima da paideía sofista é a palavra, ou lógos, normalmente utilizada como meio para persuadir e conquistar as pessoas nas assembleias públicas. No entanto, apesar de possuir alguns aspectos favoráveis, ela é considerada como sendo uma habilidade adquirida e tem um caráter essencialmente prático. De acordo com sua visão, o discurso sob a perspectiva da paideía sofista, ou seja, marcada pelo ensino da arte ou tékhne política, é algo que pode ser dominado com relativa rapidez. Já no que diz respeito à paideía de Sócrates, nos diálogos socráticos não há nenhuma referência direta ao tempo dispensado para o aprendizado de seus discípulos; o que, entretanto, nos parece claro é que, por meio de seus ensinamentos, ele não procurava obter resultados imediatos. Logo, podemos concluir que Sócrates provavelmente nunca se preocupou com essa questão161, já que o principal objetivo da sua paideía era a aquisição do conhecimento de si mesmo, ou seja, um processo evolutivo que conduz o educando à obtenção da areté, que é algo bastante incompatível com a imposição de limites temporais. Segundo Guthrie, o processo de aquisição da areté demanda muito tempo no ato de educar, no cuidado com as ações, no uso do discurso para evitar o mal que sua utilização equivocada pode causar e na obtenção do bem, que só é alcançado à custa de um esforço prolongado. Ele ratifica suas palavras ao dizer o seguinte: O que está no poder de um homem é mostrar que realmente deseja o bem, e dedicar tempo e trabalho necessários para adquiri-lo, pois em contraste com “a arte de falar”, que pode ser rapidamente dominada, a areté exige longo tempo e esforço162. 160 GUTHRIE, 1995, p. 71. A fala de Nícias fornece-nos uma ideia dos princípios socráticos quanto ao tema: “Pois pareces ignorar que quem se aproxima de Sócrates para conversar com ele, à maneira de mulheres que confabulam, muito embora se trate no começo de assunto diferente, de tal modo ele o arrasta na conversa, que o obriga a prestar-lhe contas de si próprio, de que modo vive e que vida levou no passado. Uma vez chegados a esse ponto, não o solta sem o ter examinado a fundo. Eu já estou acostumado com a maneira dele e sei que todos temos de passar por isso. Sendo assim, Lisímaco, de muito bom grado conversarei com ele; não vejo nenhum mal em sermos lembrados de algum torto que tivéssemos feito ou que estejamos a fazer; quem não se furta a esse exame passará necessariamente a tomar mais cuidado consigo mesmo, de acordo, nesse particular, com Sólon, quando disse que devemos aprender durante toda a vida, por ser de opinião que a sabedoria vem com a velhice” (PLATÃO. Láques, 187e-188b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 162 GUTHRIE, op. cit., p. 72. 161 68 Cabe ressaltar que esse aspecto da paideía sofista não foi unanimidade entre seus membros. E o caso mais relevante foi o de Protágoras, que em dado momento reconsiderou algumas de suas posições pedagógicas e passou a defender uma educação continuada e duradoura, a qual se propunha a acompanhar o processo evolutivo ao longo da vida do educando 163; sua opção pedagógica, contudo, pode ser considerada um caso pontual e não representa a totalidade dos ideais dos membros do movimento sofista. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a abrangência nos conteúdos pedagógicos de ambas as paideîai também diverge radicalmente. Enquanto a dos sofistas procurava a obtenção de um conjunto de conhecimentos enciclopédicos, baseados em uma grande diversidade de saberes, a paideía de Sócrates objetivava a obtenção de uma formação voltada para o esclarecimento da alma humana, através da busca da unidade, ou seja, dos conceitos universais, visando a concepção de um ser virtuoso. Assim, é possível em uma análise mais acurada da paideía sofista entender por que seus membros adotaram essa estratégia pedagógica, pois, conforme já abordado, a principal meta dos sofistas era formar seus discípulos para a obtenção do sucesso na pólis. Para tanto, eles priorizavam a erudição, que no fundo visava proporcionar uma maior flexibilidade argumentativa e uma grande diversidade temática em seus discursos. Essa variedade de saberes favorecia sua capacidade de articulação e transformava-os em excelentes oradores, com imenso poder de convencimento e de persuasão. Neste sentido, Jaeger corrobora esta ideia ao afirmar o seguinte: Os sofistas estão tão profundamente influenciados, nos problemas morais e políticos, pelo pensamento racional do seu tempo e pelas doutrinas dos fisiólogos, que criam uma atmosfera de educação multifacetada, a qual, na sua consciência clara, ativa vivacidade e sensibilidade comunicativa, nem sequer nos tempos de Pisístrato foi conhecida164. Contrariamente à visão mais pragmática do movimento sofista, a paideía socrática fundamentou seu programa educacional no autoconhecimento, processo que requer um trabalho contínuo de esclarecimento e de formação consciente do ser. Esse modelo pedagógico provê a cada um de seus educandos a possibilidade do conhecimento de si mesmos e o aprimoramento de sua alma, proporcionando a construção de um ser virtuoso. Como a metodologia socrática está sedimentada em um processo dialético, composto por dois elementos, denominados protréptico e élenkhos165, podemos concluir que o conteúdo 163 Conforme visto no item 1.3.1 deste estudo. JAEGER, 1995, p. 341. 165 Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo. 164 69 educacional proposto por Sócrates valorizava os aspectos morais, fundamentando as bases de sua paideía na formação completa do educando, e permitindo uma tal abrangência nos saberes, que os acompanharia para o resto de suas vidas. Conforme ele próprio afirmou na Apologia: [...] jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: “Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos166. Outro aspecto que cabe ser ressaltado na questão da abrangência de ambas as paideîai é o conteúdo das disciplinas a serem ministradas a seus educandos. Embora Sócrates tratasse a educação política como um elemento fundamental para a vida do indivíduo e da comunidade, não a encarava como um fim, pois a política era um entre outros elementos de seu programa educacional, que, quando aplicado em sua íntegra, visava a formação completa do espírito do homem. Por outro lado, os sofistas consideravam a educação política como um fim, priorizando o ensino de uma diversidade de saberes, em conjunto com a oratória e a retórica, como meio para atingir este fim. 3.1.2 Em relação ao público-alvo O público ao qual se destinavam suas paideîai é outro ponto de divergência entre seus programas educacionais. Os sofistas dedicavam grande parte de seus esforços a educar os jovens que gozavam de uma situação financeira e familiar de destaque na sociedade ateniense, já que sua principal meta era formar os futuros governantes. Jaeger ratifica essa tendência ao afirmar o seguinte: Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova forma da educação dos nobres167. 166 167 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29d. In: PLATÃO, 1973, v. I. JAEGER, 1995, p. 339. 70 Dessa forma, a paideía sofista privilegiava a formação de um pequeno grupo de escol, composto pelos candidatos a futuros líderes na pólis ateniense. Com o objetivo de reforçar essa ideia, transcrevo as palavras de um de seus membros, pois considero que nenhum outro argumento traduza com maior clareza as reais intenções do movimento sofista, a saber: [...] um professor nessas condições, Sócrates, que os levasse mais longe, não se me afigura muito fácil de encontrar. Por isso, devemos alegrar-nos quando aparece alguém de capacidade para fazer-nos avançar, por pouco que seja, no caminho da virtude. Tenho-me na conta de um desses, superior aos demais homens no conhecimento daquilo que os pode deixar melhores e mais honestos, e me julgo, sem dúvida, merecedor de receber o pagamento estipulado, se não maior ainda, conforme os próprios alunos o declaram168. Protágoras nesta passagem deixa muito claro que ministra seus ensinamentos somente para quem possa pagar por seus préstimos. Sócrates também contribui para reforçar essa ideia, ao declarar no Láques o seguinte: sou o primeiro a confessar que nunca frequentei professor dessa matéria, muito embora desde moço tivesse muita vontade de aprendê-la. Porém, sempre careci de recursos para pagar honorários aos sofistas, os únicos que se apresentavam como capazes de fazer de mim um homem de bem e de valor, não me tendo sido possível até agora descobrir por mim mesmo essa arte169. Portanto, os sofistas estavam interessados em atender as necessidades de um público seleto e diferenciado, tornando o acesso a sua paideía algo bastante restrito e limitado. Em contrapartida, a proposta da paideía socrática era formar qualquer pessoa que estivesse disposta a submeter-se a sua metodologia de ensino 170, a qual se caracterizava fundamentalmente por um diálogo entre Sócrates e seu interlocutor, normalmente efetuada em locais públicos. Esse processo racional utilizava a comunicação direta entre os participantes como uma forma de aquisição do conhecimento, o que inegavelmente foi um aspecto marcante em seu modelo pedagógico. Outro fator de grande relevância em seu processo educacional é a possibilidade de aplicá-lo a todos os cidadãos, desde que o interlocutor aceite as condições preestabelecidas pelo seu método educacional. Logo, sua paideía contemplava qualquer pessoa que concordasse de forma voluntária e consciente a trilhar o caminho do autoconhecimento, atribuindo à paideía socrática um caráter de ensino público e 168 PLATÃO. Protágoras, 326c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. PLATÃO. Láques, 164a. In: PLATÃO, 1973, v. I. 170 “É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29e. In: id. ibid.). 169 71 possibilitando a seus educandos o acesso ao conhecimento das virtudes, ou seja, do bem. Esses argumentos são confirmados por Xenofonte, como segue: Sócrates mostrava-se abertamente amigo do povo e filantropo. De feito, cercado de numerosos discípulos, atenienses e estrangeiros, jamais auferiu proveito algum desse comércio, transmitindo a todos e sem reserva o que sabia171. Por outro lado, a paideía socrática sofreu críticas relativas a sua efetiva aplicação em algumas situações específicas, principalmente, quando seu método educacional é aplicado para um grande número de pessoas. Segundo Hoerl, as bases que sustentam essas críticas estão fundamentadas no fato de a paideía socrática defender a ideia de que deve haver uma grande afinidade entre o educador e o educando, tornando o método socrático bastante adequado quando aplicado individualmente, mas falho quando empregado para ensinar simultaneamente diversas pessoas172. Assim, a philía, ou amizade virtuosa173, que é reconhecidamente um elemento de destaque em sua paideía, acabou sendo alvo de algumas críticas, pois foi considerada um fator de limitação em relação a sua aplicabilidade em grupos maiores. É óbvio que os atos de compreensão e de empatia quando utilizados no processo educativo favorecem o aprendizado e potencializam o grau de respeito mútuo, gerando um clima de harmonia, de intimidade e de confiança recíproca. No entanto, a partir do momento que a paideía socrática é utilizada para educar um número maior de indivíduos, segundo os argumentos de Hoerl, ela não poderá ser aplicada, pois não existe a menor hipótese de proceder-se conforme o modelo pedagógico proposto por Sócrates, já que seria impossível haver um sentimento sincero de amizade virtuosa em um grupo heterogêneo, composto por diversos indivíduos com características, origens e valores culturais tão diferentes. Para Hoerl, sob essas condições, o modelo da paideía sofista tende a ser mais bem-sucedido174. Assim, a paideía socrática oferece a possibilidade de prover a todos os indivíduos, desde que eles estejam interessados, um ensino gratuito que os conduzirá ao processo do 171 XENOFONTE, 2009, I, 2, 8. “Socratic paideia is limited and can only serve as one part of an educational program in a mass democratic government. Its major limitation is its explicit basis – recognized by both Jaeger and Plato, but not always by all political theorists – in the friendship that people have for one another. Because we can only friend a limited number of people, there is an inherent audience limitation to Socratic paideia that makes it a poor fit for modern politics” (HOERL, A. E. The Limitations of Socratic Paideia, 2007, p. 4. Disponível em: <http://citation.allacademic.com//meta/p_mla_apa_research_citation/1/4/2/3/5/ pages142350/p142350-1.php>). 173 “A sabedoria era algo que devia ser gratuitamente partilhado entre pessoas amigas e amadas” (XENOFONTE, op. cit., I, 6, 13). 174 HOERL, 2007, p. 15. 172 72 autoconhecimento e do autodomínio, proporcionando a prática do saber racional e consciente, ou seja, um conjunto de atributos que possibilitam ao ser tornar-se virtuoso, pela obtenção do conhecimento e da noção da medida. No entanto, ela também possui algumas limitações, principalmente nos casos em que é necessário aplicá-la a um grande número de pessoas, atribuindo à paideía socrática um caráter pedagógico de abrangência individual, e não coletiva. Já a paideía sofista tinha uma característica educacional fortemente seletiva e elitista, composta por um conjunto de técnicas pedagógicas formais que utilizava seus próprios escritos como material didático. Mas, por outro lado, era mais adequada nas situações em que havia a necessidade de educar um número maior de pessoas, pois não focava seu modelo pedagógico na afinidade e na amizade, e sim em uma relação distante e objetiva, marcada pela definição do papel de cada um dos envolvidos no processo educacional, ou seja, o do mestre, caracterizado por ser o responsável pela transmissão dos conhecimentos, e o do discípulo, simplesmente como receptor desses conhecimentos. Em suma, esses aspectos de ambas as paideîai são relevantes para que possamos compreender as diferenças entre esses dois programas educacionais; na questão da philía, contudo, vale fazer uma análise mais cuidadosa e criteriosa para tentar entender de forma inequívoca seu significado na Grécia do século V a.C., pois, conforme já abordado, foi devido a diferentes interpretações de seu real significado que se atribuíram algumas limitações à paideía socrática. Para tanto, lanço mão de um trecho da obra de Jaeger, o qual afirma que o conceito de amizade virtuosa do período referido por Sócrates está associado a algo muito mais amplo do que em nossa contemporaneidade podemos conceber. Assim, segundo ele, o significado do termo philía, ou amizade virtuosa, era o seguinte: É a forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética. É, portanto, um problema que ultrapassa em muito o âmbito do que nas modernas sociedades, extremamente individualizadas chamamos amizade. Para compreendermos claramente o verdadeiro alcance do conceito grego da philía, precisamos apenas seguir o desenvolvimento posterior deste conceito até chegarmos à teoria da amizade, sutilmente matizada, da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, teoria que deriva em linha reta da platônica. Essa teoria contém uma sistemática completa de todas as formas concebíveis de comunidade humana, desde as formas fundamentais e mais simples da vida familiar até os diversos tipos de Estado175. Logo, sob essa ótica, o conceito de philía na paideía socrática tem uma abrangência muito maior do que puderam supor alguns de seus críticos; mesmo assim, entretanto, 175 JAEGER, 1995, p. 719. 73 considero que os argumentos de Hoerl têm algum fundamento e que a paideía concebida por Sócrates tem vantagens inegáveis, mas também possui suas limitações. 3.1.3 Comprometimento com os educandos O comprometimento do educador no processo de formação de seus educandos é uma característica que pode muitas vezes determinar o sucesso ou o fracasso de um programa educacional; no entanto, é óbvio que esse aspecto tem um peso relativo ao ser comparado com todos os demais elementos que o compõem, mas, devido a sua influência no desempenho do educando em relação a seu aprendizado, esta característica pode e deve ser considerada como um item relevante no momento de analisar as diferenças entre as linhas educacionais dos sofistas e de Sócrates. Embora a paideía socrática represente um movimento renovador na forma de pensar a educação dos jovens, ainda se caracterizava por envolver um comportamento relativamente conservador, pois seguia um método educacional mais tradicional do que o proposto pelo movimento sofista. Isto pode ser observado a partir do momento em que se defende a manutenção dos valores relativos ao cuidado e ao respeito que os cidadãos deveriam ter com sua comunidade176. Vale destacar que para os gregos o modelo de virtuosidade e de cidadania manifestava-se no homem que visava obter de forma incondicional o bem-estar da comunidade, em detrimento de seu próprio bem. O fato de Sócrates ser um cidadão ateniense e estar intimamente ligado aos anseios e as expectativas de seus conterrâneos facilitou a incorporação em sua paideía do respeito às tradições e aos costumes existentes na sociedade ateniense. Assim, é possível identificar em sua paideía a presença de uma preocupação e de um maior comprometimento educacional com os cidadãos atenienses177, característica muito diferente da observada na dos sofistas. 176 Segundo Jaeger, a educação tinha como principal objetivo o seguinte: “Realizar a nova areté, encarando como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros conscientes da sociedade estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade” (id., ibid., p. 340). 177 “[...] em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?’ E se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos 74 Sua paideía priorizava o extremo cuidado no relacionamento entre o educador e o educando, característica que deu origem ao conceito de philía, ou amizade virtuosa, que defendia uma mudança na relação entre docente e discente, fundamentalmente baseada no respeito mútuo e no querer bem recíproco, algo muito mais inovador e revolucionário do que aquilo que existia nos processos educacionais vigentes na Atenas do período clássico 178. Logo, a paideía socrática, além de proporcionar a seus educandos a obtenção do autoconhecimento e do autodomínio, também os conduzia a um tal nível de conscientização social, que lhes proporcionava uma enorme satisfação em servir a sua comunidade sem importar-se em abrir mão de seus próprios interesses. Por outro lado, os sofistas eram professores itinerantes e não possuíam nenhum vínculo com a comunidade local, nem com seus valores culturais 179. Assim, seu comprometimento estava atrelado a sua satisfação pessoal e à de seus discípulos. Cabe lembrar que tanto a paideía socrática quanto a sofista representavam uma grande inovação nos processos educacionais gregos, e sua racionalidade juntamente com a valorização do intelecto foi extremamente importante para fortalecer a nova tendência humanista que imperava na sociedade ateniense. Seu caráter individualista, entretanto, foi destaque em várias passagens nas obras de Jaeger e de Guthrie, pois ambos concordam que, sob este ponto de vista, os sofistas não valorizavam nem a cultura nem as tradições preestabelecidas, demonstrando claramente o desejo de impor seu modo de pensar, sem a menor preocupação com a forma de obtê-lo180. Portanto, essa característica da paideía sofista em conjunto com as transformações políticas e sociais que reinavam na cidade de Atenas encontraram um solo fértil para o desenvolvimento de uma educação utilitária, que acabou se tornando uma marca no modelo pedagógico do movimento sofista. A questão do profissionalismo é outro ponto de divergência entre essas duas paideîai. Enquanto Sócrates propunha uma relação de amizade virtuosa sem nenhum tipo de vínculo financeiro, os sofistas objetivavam uma relação essencialmente profissional, fundamentada no sangue. [...]” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29d-e. In: PLATÃO, 1973, v. I). 178 XENOFONTE, 2009, I, 6. 179 “Os sofistas são muito bons fazedores de discursos em geral, mas que ‘seu hábito de andar de cidade em cidade e de não ter nenhuma casa fixa própria’ é uma desvantagem quando se chega a assuntos de cidadania na guerra ou na negociação” (GUTHRIE, 1995, p. 49). 180 “A sua existência fundamentava-se exclusivamente no seu significado intelectual. Não tinham cidadania fixa, devido à sua vida constantemente andarilha. Que na Grécia tenha sido possível este modo de vida tão independente é o mais evidente sintoma do aparecimento de um tipo de educação completamente novo, individualista na sua raiz mais íntima, por mais que se falasse de educação para a comunidade e das virtudes dos melhores cidadãos. Os sofistas são, com efeito, as individualidades mais representativas de uma época que na sua totalidade tende para o individualismo. Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam os autênticos representantes do espírito do tempo. É também sinal dos tempos viverem da educação” (JAEGER, 1995, p. 367); bem como, na seguinte afirmação: “Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais, competindo entre si por favor público” (GUTHRIE, op. cit., p. 49). 75 em bases estritamente comerciais que visavam uma remuneração financeira em troca de seus préstimos. Eles defendiam essa prática, pois consideravam sua atividade extremamente nobre, já que, segundo eles, poucos homens atingiam esse nível de competência e de sabedoria. Por outro lado, Sócrates não cobrava por sua atividade educacional, devido a diversas razões de foro íntimo, mas um dos motivos que considero dignos de destaque e que me parecem bastante pertinentes para o tema em questão é sua opinião sobre a postura de não cobrar por seus ensinamentos com o objetivo de manter sua liberdade. Conforme Guthrie, Sócrates acreditava no seguinte: Os sofistas se privavam de sua liberdade: estavam obrigados a conversar com todos os que podiam pagar suas taxas, ao passo que ele era livre para gozar da companhia de qualquer que escolhesse181. Assim, seu comprometimento com a educação era de ordem moral, sedimentada na liberdade total de todos os envolvidos em seu modelo pedagógico, ou seja, baseada no princípio fundamental da liberdade individual, fortalecendo as relações humanas por meio da valorização da autonomia e da autarquia. Já os sofistas tinham um comprometimento formal, com base em uma relação profissional de cunho educativo, firmada entre eles e seus discípulos. 3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai Este último item pode ser analisado sob dois pontos de vista que a princípio parecem divergentes, porém em sua essência são complementares, principalmente no que diz respeito aos aspectos fundamentais de suas paideîai. O primeiro refere-se a uma leitura conceitual de seus programas educacionais, ou seja, no momento em que eles aplicam suas técnicas didáticas visam atingir os mesmos fins? Já o segundo se atém ao detalhamento de como são aplicadas essas técnicas pedagógicas com o objetivo de identificar as diferenças entre suas paideîai. A primeira etapa irá abordar a questão da finalidade de ambas as paideîai, as quais buscam fundamentalmente a formação consciente do homem, visando a obtenção da areté. 181 GUTHRIE, 1995, p. 42. 76 Neste sentido surge uma polêmica, pois Sócrates considerava o ensinamento proposto pela paideía sofista como sendo uma arte182, mas não uma arte verdadeira, como a proposta por sua paideía, que é baseada na epistéme ou conhecimento, e sim uma arte corrompida, baseada na empeiria ou adulação183. Por outro lado, o movimento sofista não se importava com essas acusações, principalmente porque sua preocupação estava direcionada para as coisas da vida prática, especialmente no que eles consideravam como o cerne da virtude política, que era a excelência do viver bem em sociedade. Conforme palavras do próprio Protágoras, sua paideía procurava alcançar a seguinte meta: “Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons cidadãos”184. E Górgias, alinhado com esse mesmo ideal, afirmava que sua grande meta pedagógica era ensinar a arte de governar os homens por meio da persuasão185. Isso deixa muito claro o objetivo de sua paideía. Asssim, a proposta educacional do movimento sofista estava efetivamente fundamentada na busca da obtenção da virtude, porém tratava-se de um tipo muito particular de virtude, ou seja, a virtude política. Jaeger esclarece com muita eloquência esse tema tão controverso, ao dizer o seguinte: Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer surgir aos olhos do homem atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os contemporâneos os chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se logo que interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica, isto é, no sentido de areté política, vista sobretudo como aptidão intelectual e oratória, o que nas novas condições do século V era decisivo”186. Isso significa que a paideía sofista não tinha o objetivo de ensinar o mesmo tipo de areté proposta pela paideía socrática, ou seja, a areté política dos sofistas era apenas um dos elementos que faziam parte de um todo da areté da paideía socrática. Por outro lado, Guthrie alega que nem todos os membros da sofística encaravam o ensino da areté sob a perspectiva defendida por Jaeger. Segundo ele, Protágoras entendia a areté como algo muito mais complexo do que a visão simplista de alguns de seus companheiros do movimento sofista, como segue: 182 Conforme visto no item 2.1.1 deste estudo. No diálogo Górgias, Sócrates aponta o filósofo como o político ideal, pois somente ele possui a verdadeira arte política (PLATÃO. Górgias, 421d-422a. In: PLATÃO, 1973, v. III). 184 PLATÃO. Protágoras, 319a. In: id., ibid. 185 PLATÃO. Górgias, 425d. In: id., ibid. 186 JAEGER, 1995, p. 232. 183 77 As referências de Protágoras, em Platão, à “tékhne do artesão” e à “areté do artesão” evidenciam que para ele significavam a mesma coisa. Ele mesmo considera a instrução nas tekhnai específicas, que alguns sofistas ofereciam, como inferior a ele, e a “arte política” ou a “virtude política”, que é sua especialidade pessoal, aproxima-se mais da virtude moral, pois tem raízes nas qualidades éticas da justiça e do respeito por si mesmo e pelos outros. Sem estes, considera ele, a vida numa sociedade organizada é impossível187. Apesar dessa visão mais abrangente da paideía sofista, particularmente acredito que existam perspectivas diferentes entre elas, pois a paideía socrática trabalha com a ideia de uma depuração do espírito do homem, por meio do autoconhecimento, enquanto a sofista visa algo mais pragmático e imediato. O segundo aspecto está associado à questão da forma pela qual são aplicadas essas técnicas. A paideía sofista sedimentava seu modelo pedagógico em um conjunto de saberes, essencialmente transferido para seus educandos por meio de aulas ministradas com base em manuais concebidos por eles mesmos, os quais configuravam um tipo de educação fundamentada na transferência de conhecimentos. Além disso, depositavam todo o seu esforço pedagógico no sentido de seus educandos obterem uma grande quantidade de saberes, isto é, um conhecimento enciclopédico. Portanto, eles acreditavam que a única possibilidade de formação consciente do espírito do homem seria por meio da aplicação de técnicas de ensino que fornecessem a seus educandos diversos ensinamentos com base nos méritos e nos atributos pessoais do próprio educador. De tal modo que, com base em seus preceitos pedagógicos, a paideía sofista acabou rompendo com vários dogmas educacionais até então aceitos pela sociedade ateniense, principalmente no que se refere à aquisição da areté, pois tradicionalmente os gregos acreditavam que ela somente poderia ser conquistada por meio da transferência direta desses atributos de modo natural, ou seja, de forma consanguínea, herdada dos pais 188; apesar de Protágoras não contradizer totalmente essa crença, em seus discursos afirmava o seguinte: “O ensino com êxito, diz ele, requer que o aluno contribua com habilidade natural e assiduidade na prática, e acrescentou que para aprender é preciso começar desde pequeno”189. Dessa forma, os sofistas acreditavam que poderiam com a efetiva implantação de suas técnicas pedagógicas e de suas habilidades pessoais tornar possível a vitória sobre as tendências naturais dos seres, as quais impossibilitavam a qualquer indivíduo ter acesso à aquisição da areté, neste caso, em especial, a areté política. 187 GUTHRIE, 1995, p. 237. Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo. 189 Id., ibid., p. 239. 188 78 Por sua vez, a paideía socrática acreditava que o conhecimento já existia previamente dentro dos seres e que a única contribuição de seu método pedagógico seria abrir as portas para o educando atingir esses saberes. Isto significa que para Sócrates sua tarefa como educador seria apenas a de um agente facilitador do acesso a um conhecimento preexistente em todos os homens, independentemente de sua classe social. Assim, seu método é composto por duas partes, a primeira das quais é denominada protréptico, ou exortação, e procura despertar no homem o discernimento do que é realmente importante para sua vida, isto é, decidir entre os bens materiais ou a depuração de sua alma. E a segunda, chamada élenkhos, ou refutação, visa o crescimento ético e moral pelo desejo do educando de adquirir o conhecimento190. Esse processo dialético tinha como objetivo a obtenção do conhecimento de si mesmo, desenvolvendo intimamente o desejo espontâneo de tomar ações baseadas na racionalidade moral191. No diálogo Cármides existe um exemplo típico desse seu método, especialmente na passagem em que Sócrates refuta os argumentos de Cármides sobre sua definição de temperança, e em vez de ele procurar outros argumentos com o objetivo de chegar mais próximo da verdadeira definição, Cármides assume uma proposição de temperança que não era sua, demonstrando uma falha não só no aspecto intelectual, como no moral192. Logo, é sob esses pontos relacionados às falhas comportamentais e de caráter que a paideía socrática pretende atuar. E ao chegar ao final do processo, quando bem-sucedido, espera-se ter depurado o espírito do educando, propiciando a evolução de sua alma, que, consequentemente, o conduz à obtenção da areté. Em suma, a paideía sofista aposta na eficiência e no poder da transmissão de conhecimento de seus membros, valorizando de forma exacerbada a ação do educador. Enquanto a paideía socrática acredita que o educador somente atua como um agente facilitador para o educando acessar o que ele já sabe. 190 Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo. “The Socratic dialectic challenges the interlocutor not only to acquire the correct moral opinions, but to question himself and think for himself and develop his own moral rationality” (SCHMID, W. T. Socratic Paideia: How It Works and Why It So Often Fails, p. 5. Trabalho apresentado no 20th World Congress of Philosophy, Boston, Mass, 10-15 ago. 1998. Disponível em: <www.bu.edu/wcp/Papers/Teac/TeacSchm.htm>). 192 PLATÃO. Cármides, 160c-161b. In: PLATÃO, 1973, v. I. 191 79 3.2 Similaridades entre suas paideîai Quando pensamos na paideía dos sofistas e a de Sócrates, a primeira ideia que nos ocorre são seus pontos conflitantes, especialmente os relacionados a suas diferentes interpretações nos fatores educacionais e nas questões éticas e morais; no entanto, ao analisarmos de forma isenta suas paideîai é possível identificar alguns aspectos que nos levam a crer que existe uma grande quantidade de pontos em comum em seus programas educacionais, fornecendo de forma inequívoca elementos que identificam a existência de vários laços que unem suas perspectivas pedagógicas. Assim, o principal objetivo deste item será abordar as semelhanças observadas nas suas paideîai e contextualizar esses argumentos com base nas principais ideias dos seus membros. 3.2.1 O uso da razão Tanto os sofistas quanto Sócrates foram pioneiros no uso da razão nos processos educacionais e representaram um movimento renovador para a sociedade ateniense, pois romperam com alguns valores tradicionalmente aceitos e profundamente arraigados nos costumes do seu povo. Mas uma das características que reputo serem de grande importância, à qual desejo me ater, é o rompimento que ambas as paideîai propunham nas questões relativas aos aspectos míticos, que até então influenciavam diretamente as relações sociais, culturais e educacionais da maioria das cidades gregas. Cabe notar que para o Estado o culto aos deuses sempre foi utilizado como uma forma de poder coercitivo, atuando como um agente inibidor das atitudes consideradas inadequadas de seus cidadãos. Esse tipo de ação, desrespeitosa aos olhos dos deuses, denominada impiedade foi usada diversas vezes pelos governantes em benefício de seus próprios interesses. Portanto, a princípio houve uma reação contrária no sentido de coibir este processo de renovação, mesmo que velada, pois eles não tinham o menor interesse no fortalecimento 80 desse movimento revolucionário, já que um dos seus objetivos era desmotivar os cultos às divindades e desmistificar algumas crenças tradicionalmente incorporadas a sua cultura193. Por outro lado, a onda de puro racionalismo que florescia nas cidades gregas do século V a.C. tinha a finalidade de explicar cientificamente os fenômenos da natureza e de combater definitivamente o antropomorfismo e o culto aos deuses. Seus principais representantes foram os sofistas e Sócrates, que receberam essa herança dos poetas e dos filósofos pré-socráticos, os quais já vinham defendendo este processo de desmistificação194. A paideía sofista e a socrática sofreram inúmeras resistências por parte de alguns segmentos da sociedade ateniense, seja por meio das instituições representadas pelo Estado, seja pelo conservadorismo presente em alguns de seus intelectuais ou nos simples cidadãos, totalmente arraigados às velhas tradições e costumes. Assim, ambas as paideîai passaram por diversas restrições e trouxeram uma nova perspectiva para os processos educacionais gregos e contaram com uma grande dose de racionalidade em seu modelo pedagógico. Segundo Jaeger, o papel deles no período clássico grego foi o seguinte: “É com eles que a paideía, no sentido de uma ideia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um fundamento racional”195. Isso posto, considero irrefutáveis os argumentos utilizados por Guthrie e por Jaeger, que compartilham da mesma linha de pensamento, também observados em outras obras que abordam este mesmo tema, pois, segundo eles, o momento histórico foi extremamente favorável para o uso da razão em todos os segmentos de sua sociedade, especialmente ao ser utilizado como um elemento efetivo para facilitar e fortalecer os processos educacionais. Portanto, com o advento da sofística e o deslocamento do foco dos filósofos do estudo das coisas da natureza para os problemas do homem, o século V a.C. ganhou um grande aliado para sua evolução intelectual, que foi uma nova forma de pensar, mais ordenada e racional, a qual teve como fruto o surgimento da paideía sofista e da socrática. 193 GUTHRIE, 1995, p. 212-3. MARROU, 1990, p. 32. 195 JAEGER, 1995, p. 364. 194 81 3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis Neste item pretendo abordar as semelhanças observadas entre suas paideîai, mais especificamente no ponto em que seus programas educacionais passam a determinar os limites e as fronteiras de atuação das divindades nas vidas dos seres, ou seja, identificar claramente quais são as prerrogativas dos deuses e quais são as dos homens no processo de obtenção do conhecimento, e, consequentemente, atingir o bem viver. Esse aspecto dos homens respeitarem, ou não, os desígnios divinos, em sua essência tem um caráter mítico-religioso, e nos impele a penetrarmos mais profundamente nas tradições culturais do povo grego, que, apesar das grandes transformações que estavam ocorrendo no século V a.C., ainda sofriam muitas influências dos processos religiosos vigentes nesse período, fundamentalmente baseados no culto dos deuses. Assim, os conceitos de hybris e de phronesis exerceram um papel fundamental no rumo de suas paideîai. Então, vamos tentar entender como por meio da observância desses dois conceitos, muito caros para sua sociedade, foi possível aos gregos alimentar o desejo de obter algo tão almejado quanto a areté. Para tal objetivo, inicialmente devemos compreender a mudança que ocorreu em alguns desses conceitos ao longo desse século, e assim, conscientes dessas transformações e de suas repercussões nos hábitos e nos costumes de seus indivíduos, tornar possível entender sua influência nos processos educacionais, culturais e morais. O conceito de hybris foi um dos que recebeu uma nova interpretação, apesar de estar solidamente estabelecido na sociedade da época, com base em um significado puramente pragmático, concentrado apenas na esfera do direito, em que era visto simplesmente como uma oposição à dike. A hybris, sob essa nova perspectiva, ganhou todavia, uma roupagem mais transcendental e recebeu um viés religioso, o qual passou a tratar a hybris como um desejo incontrolável de possuir algo que pertence a outro, ou seja, a pretensão do homem de desejar possuir alguns atributos de exclusividade dos deuses. Nesta mesma linha de raciocínio, Jaeger afirma que a hybris representa “a pleonexia do homem em face da divindade” e, complementa, que ela também seria um tipo de “inveja dos deuses” 196. Portanto, com base no conceito de hybris que reinava na sociedade grega da época, ela deveria ser um tipo de sentimento reprovado e um modo de pensar descartado, especialmente para os homens que buscavam por suas ações e pensamentos atingir a virtude. 196 JAEGER, 1995, p. 197. 82 Contrariamente ao conceito de hybris, o conceito de phronesis tinha uma característica fundamentalmente positiva, composta por um conjunto de atributos baseados no real conhecimento dos valores éticos e morais, sedimentados na razão; bem como no autodomínio que conduzia o homem a um processo de compreensão de si mesmo e o levava a enxergar seus próprios limites. Segundo o mesmo Jaeger 197, o melhor caminho para a obtenção da phronesis é por meio da sophrosyne, também conhecida como temperança e prudência, que significava para o pensamento deste período o seguinte: “A medida apolínea não é a excrescência da tranquilidade e do conformismo burguês. A autolimitação individualista é um dique para a atividade humana”. Do mesmo modo, Guthrie 198 considera a sophrosyne um elemento de fundamental importância para atingir-se a phronesis, principalmente por recomendar o uso da ponderação e por defender em seus princípios a arte da medida. Desse modo, podemos identificar claramente o grande peso desses dois conceitos dentro do modelo pedagógico de ambas as paideîai; os fatores, contudo, que os levaram a adotar esses princípios foram totalmente diferentes. Enquanto os sofistas defendiam um agnosticismo e relativismo fundamentados na doutrina do homem como medida 199 e na questão de não se importarem com a existência, ou não, dos deuses200, Sócrates ainda respeitava os aspectos religiosos de sua comunidade e seguia os preceitos apolíneos do conhecimento de si mesmo e a preocupação com os limites do homem 201. Os sofistas valorizavam em seu modelo pedagógico as questões da vida prática e defendiam o uso da sophrosyne, ou prudência, com o objetivo de alcançar a phronesis. Embora eles seguissem certo padrão em seus programas educacionais, cada um deles tinha algo que os particularizava; enquanto Protágoras focava seu ensinamento no respeito às diversidades religiosas e culturais, Górgias visava o direito à plena defesa202. Logo, era uma paideía voltada para os negócios humanos, sem levar em consideração os aspectos e as influências das divindades, ou seja, uma phronesis fundamentada unicamente na razão, instrumentalizada pela arte da medida com base nos limites humanos, desprezando suas características religiosas. 197 JAEGER, 1995, p. 196. GUTHRIE, 1995, p. 241. 199 SOFISTAS, 2005, p. 58. 200 “Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana” (Fr. 4, obtido na obra Sobre os deuses, de Protágoras, apud GUTHRIE, op. cit., p. 218, e SOFISTAS, op. cit., p. 82). 201 JAEGER, op. cit., p. 201. 202 Conforme visto no item 1.5 deste estudo. 198 83 Já Sócrates seguia as tradições religiosas existentes em Atenas, sob uma perspectiva mais moderna e contemporânea, a qual estava desvinculada do misticismo bastante arraigado na sociedade ateniense. Dessa forma, em seu modelo pedagógico respeitava as opções religiosas de sua comunidade, defendendo o ato de prestar culto aos deuses e acreditando nos atributos divinos da onipresença e da onisciência. Segundo Xenofonte, Sócrates em seus discursos ensinava o seguinte: Tenho para mim que, assim falando, Sócrates ensinava seus discípulos a se absterem de toda a ação ímpia, injusta e reprovável, não somente em presença dos homens como também na soledade, visto convencê-los de que nada do que fizessem escaparia aos deuses203. Portanto, ele definitivamente respeitava as divindades, e a presença do conceito de hybris e de phronesis como dois elementos ativos em sua paideía é algo inquestionável204. Assim, o processo do autoconhecimento e do autodomínio, exaustivamente abordado em sua paideía, permite ao homem a obtenção do discernimento necessário para distinguir o que é do escopo dos deuses e do escopo dos homens. Ele pretende ensinar a arte da medida205, que estabelece limites às ações e às pretenções humanas, que é o caminho para se obter a phronesis. Jaeger afirma o seguinte: A virtude filosófica da phronesis é aquela única e vasta virtude que Sócrates investigou ao longo da vida toda. Está adstrita à parte mais divina do Homem, que sempre está presente nele, mas cujo desenvolvimento depende da atuação correta da alma e da sua essencial conversão para o Bem206. Em suma, as duas paideîai visavam ensinar a arte da medida, por meio da proposta de obter certo equilíbrio entre a hybris e a phronesis; no entanto, a paideía sofista baseava-se no agnosticismo e no relativismo, e a socrática estava fundamentada no reconhecimento dos limites humanos. 203 XENOFONTE, 2009, I, 5, 11. “Senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: ‘O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor’” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 20e. In: PLATÃO 1973, v. I). 205 “Por isso, pensa antes de dares rédeas a tuas paixões. Há aí pelo menos o germe do ‘cálculo hedônico’ que Sócrates advoga no Protágoras e que obviamente desempenhou papel importante na formação de seu pensamento. Tudo depende de fazer a decisão correta, isto é, o cálculo e a ponderação corretos dos próprios interesses. Isso nos aproxima do intelectualismo socrático. O que se requer para uma escolha correta de prazeres é, na frase de Sócrates, uma ‘arte da medida’” (GUTHRIE, 1995, p. 241). 206 JAEGER, 1995, p. 891. 204 84 3.2.3 A observância às leis O respeito que os membros dessas duas paideîai dedicavam às leis é mais um tema que considero de extrema relevância para este estudo. Apesar de o movimento sofista ter surgido com uma proposta revolucionária que constantemente entrava em conflito com os valores tradicionalmente aceitos pela sociedade grega, eles eram bastante conservadores no que se refere ao cumprimento das leis. Do mesmo modo, Sócrates também as respeitava de forma incondicional. Até mesmo, devido a sua extrema obediência as leis, mesmo sendo inocente das acusações que sofreu, resolveu acatar sua condenação imposta pelos juízes atenienses. Outra prova de seu respeito às leis foi o fato de ter recusado a oportunidade que foi oferecida por seus amigos de fugir da prisão, pois, segundo ele, com essa atitude iria ferir seus princípios morais e desprezaria algo que respeitou por toda sua vida, decisão que resultou em sua morte por envenenamento207. Embora houvesse diversas divergências entre a paideía sofista e a socrática, neste aspecto em particular havia um sincronismo e uma harmonia no modo de pensar a educação que seria oferecida para os futuros cidadãos de Atenas. Como o principal objetivo de seus programas educacionais era formar cidadãos que pudessem exercer seus direitos e deveres na pólis, somente um conjunto de normas e preceitos que procurassem preservar o mínimo de igualdade e de justiça social poderiam propiciar a manutenção da convivência pacifica entre indivíduos com tamanha diferença cultural, educacional, ética e moral. Esse elemento, graças ao poder coercitivo, foi capaz de unir as pessoas em uma única comunidade, mantendo os princípios básicos de respeito e de interesse mútuo208. Assim, as leis, com suas regras, premissas e conceitos, sempre acompanharam o programa educacional de ambas as paideîai. Jaeger corrobora esta ideia quando afirma que a educação é responsável pelo desenvolvimento sólido de uma sociedade, ou seja, a estabilidade das leis garante uma estrutura adequada para a obtenção dos fundamentos de uma educação de qualidade, que venha formar o espírito de seus indivíduos209. Neste sentido, é possível 207 “Finally, both mention his refusal of the offer of his friends to arrange his escape after condemnation, the subject of Plato’s Crito” (GUTHRIE, 1978, p. 58). 208 “Não sabes que dentre os magistrados de uma cidade, em todos os termos melhores são aqueles que mais inspiram aos cidadãos a obediência às leis? Que o Estado onde os cidadãos são mais submissos às leis é também o mais venturoso na paz e invencível na guerra? A concórdia é para as cidades o maior dos bens” (XENOFONTE, 2009, IV, 4, 19). 209 “A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem os seus membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade 85 entender o apoio incondicional que as paideîai dos sofistas e de Sócrates concederam às leis em seu programa educacional. A paideía socrática, por intermédio de Sócrates, seu principal personagem, foi reconhecidamente marcada por ensinar a prática da virtude, bem como, sendo ele um modelo de virtuosidade, acabou associando seu comportamento ao do homem medida 210. Logo, seu modelo pedagógico não poderia ter outra linha de pensamento que não fosse a busca da virtude, principalmente no que se refere à obediência às leis, pois para Sócrates o indivíduo que procura alcançar a essência da virtude jamais deve desrespeitar as leis, sejam elas escritas ou não. Segundo Guthrie, Sócrates demonstrou fidelidade e respeito às leis ao longo de toda sua vida, manifesta em seus atos e pensamentos. Basta observar diversos exemplos contidos nos diálogos socráticos, principalmente, na Apologia e no Críton211. Portanto, Sócrates em sua paideía procurava formar os homens com o objetivo de adquirir a areté, processo no qual, entre outras coisas, preparava seu educando para servir sua comunidade, ou seja, formar um homem político. E um dos atributos desse homem político é a observância às leis. Da mesma forma que a paideía socrática, a paideía sofista defendia o respeito as leis, pois, com base na valorização das instituições e da solidez de suas normas, seria possível estabelecer critérios que atendessem suas perspectivas educacionais, e o regime democrático existente em Atenas, favorecia plenamente a implantação de programas que visassem a formação do homem político. Sua observância às leis era tal, que defendiam em sua paideía o total respeito a elas, e ao menos um de seus membros acreditava que o poder coercitivo do Estado era um elemento constitutivo do processo de formação do espírito do homem 212. Assim, a experiência de seus representantes foi muito significativa no processo de valorização das instituições. Para fundamentar essa afirmação, cito o caso de Protágoras, que foi humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado. [...] A estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos fundamentos da educação. Da dissolução e destruição das normas advém a debilidade, a falta de segurança e até a impossibilidade absoluta de qualquer ação educativa” (JAEGER, 1995, p. 5). 210 “Quando os Trinta lhe davam ordens avessas às leis, não as acatava. Assim, quando lhe proibiram o palestrar com os jovens e o encarregaram, juntamente com outros cidadãos, de conduzir um homem que intentavam assassinar, só ele se recusou de obedecer, porque tais ordens eram ilegais. Chamado por Meleto perante os tribunais, longe de seguir o costume dos acusados, que, malgrado o proibirem as leis, tomam da palavra para ganhar o favor dos juízes, adulá-los e dirigir-lhes súplicas, e assim muitas vezes se fazem absolver, não quis de tal guisa infringir as leis: posto facílimo lhe fora lograr a absolvição, preferiu morrer dentro da lei a transgredi-la para viver” (XENOFONTE, 2009, IV, 4, 17). 211 GUTHRIE, 1978, p. 82. 212 PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III. 86 legislador e redigiu as leis de Thurii213 e de Górgias, que foi embaixador de sua cidade em Atenas214. Conforme dito anteriormente, o ensino da arte política foi a principal meta do programa educacional dos sofistas, e, tanto quanto Sócrates, estavam preocupados com o processo de formação consciente dos futuros cidadãos para atender as necessidades da comunidade e do Estado; no entanto, diferentemente do que ocorria com a paideía socrática, eles desejavam alcançar objetivos mais imediatos e focavam as questões da vida prática, como, por exemplo, o sucesso na pólis. Para tal, eles necessitavam fundamentar suas bases educacionais nas normas escritas e não escritas da localidade em que iriam ministrar seus ensinamentos, já que eram professores itinerantes. E o regime democrático encaixava-se perfeitamente em suas pretensões, pois a democracia, graças a sua proposta de liberdade e de igualdade, permitia a qualquer cidadão postular um cargo público na pólis. Portanto, o fortalecimento e a manutenção do Estado democrático era algo de seu máximo interesse, bem como um terreno fértil para o movimento sofista plantar a semente de uma formação utilitária e pragmática 215. Segundo Protágoras, são as leis, em conjunto com a justiça, que trazem ordem às nossas cidades e fortalecem os laços de amizade e de coesão entre os indivíduos de uma determinada comunidade216. Conforme suas próprias palavras: “O Estado estabelece as leis, que são invenção dos bons legisladores de tempos antigos, e compele os cidadãos a governar e serem governados em conformidade com elas”217. Logo, para eles as leis promovem a criação de uma sociedade organizada e justa, pois por meio delas é possível corrigir os desvios de caráter de seus cidadãos. Consequentemente, ambas as paideîai tinham um grande respeito pelas leis, as quais utilizavam em seus modelos pedagógicos conceitos que valorizavam e destacavam a importância da manutenção e da obediência às normas e preceitos estabelecidos pelo Estado218. Os sofistas empregavam em seus programas educacionais um método mais 213 BRÉHIER, É. História da filosofia, v. 1, t. 1. Tradução de E. Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 128. 214 GUTHRIE, 1995, p. 22. 215 “No séc. V, a democracia, como instituição política estabelecida e como ideal, atingiu seu clímax em Atenas e algumas outras cidades gregas. Ela constituía parte de um movimento geral rumo à igualdade, e a necessidade de defender a democracia era estímulo a ulteriores argumentos em seu favor” (id., ibid., p. 138). 216 “É a justiça que acarreta ordem em nossas cidades e cria laços de amizade e união” (PLATÃO. Protágoras, 322c. In: PLATÃO, 1973, v. III.). 217 Id., ibid., 326d. 218 “O Estado pode ser persuadido de que errou e a emendar suas leis, pelo que o conteúdo da ação justa neste Estado será alterado. Mas a observância daquelas leis defeituosas, até serem alteradas por processos constitucionais adequados, era moralmente correta como alternativa ao caos que seguiria se todo cidadão se sentisse livre para desconsiderá-las” (GUTHRIE, 1995, p. 137). 87 dogmático para ensinar seus discípulos o quanto é importante o respeito às leis, enquanto Sócrates acreditava que a obediência e o respeito as leis deveriam fazer parte de um processo natural de conscientização de seus educandos. 3.2.4 Sobre os ideais humanistas A tendência humanista que surgiu no período clássico grego foi fruto de um conjunto de circunstâncias históricas e sociais. Até mesmo, se forem analisadas de uma forma mais rigorosa, levam-nos a crer que não passaram de um processo evolutivo e natural de seu povo e de suas cidades. Portanto, aspectos ligados à religião, como o rompimento do culto às divindades, e fatores sociais, como a diversidade cultural, fruto do cosmopolitismo das suas principais cidades, podem ser considerados os maiores agentes motivadores dessas transformações. De qualquer modo, esses fatores propiciaram o amadurecimento e o despertar de seu povo para um progresso intelectual que conduziu seus indivíduos ao uso da razão, provocando uma verdadeira cisão com os valores culturais e religiosos tão profundamente entranhados em sua sociedade. Este processo renovador atingiu todos os segmentos da sociedade grega, e a educação não foi uma exceção à regra, pois houve uma reformulação no modo e no foco dos seus programas educacionais. Segundo Jaeger, as paideîai passaram a preocupar-se com a formação dos adultos e visavam a atingir a educação consciente do homem, como segue: “Esta educação ética e política é um traço fundamental da essência da verdadeira paideía. Nos tempos clássicos é essencial a ligação entre a alta educação e a ideia do Estado e da sociedade”219. Logo, a crise nos valores educativos que atingiu a sociedade grega não foi fruto do acaso, e sim parte de um processo que teve seu início na época dos poetas e chegou a seu ápice no período clássico. Essa evolução histórica teve como consequência um deslocamento dos interesses de seus intelectuais para a existência humana, e essas mudanças, por meio de um processo plenamente amadurecido, repercutiram em todos os ramos de atividade, em especial na educação, o que propiciou a concepção de uma nova forma consciente de educar. 219 JAEGER, 1995, p. 348. 88 Esse ideal de formação humana foi um marco nos processos educacionais gregos, e tanto a paideía sofista quanto a socrática foram influenciadas por essa tendência humanista de considerar a educação como algo universal, deslocando-a de um simples saber técnico para tratá-la de um modo mais abrangente e global, isto é, como cultura 220. Assim, devido às circunstâncias sociais e políticas, os sofistas e Sócrates, como homens de seu tempo foram os principais responsáveis por transformar e renovar os métodos educativos vigentes nessa época, pois passaram a encarar sua atividade formadora como um processo consciente de educação do espírito do homem221. Para cumprir tal objetivo, a paideía socrática, ainda influenciada pela religião 222, sedimentou suas bases educacionais na existência humana, isto é, dirigiu todo o seu esforço educativo para o interior do ser, priorizando o conhecimento de si mesmo. Deste modo, o modelo pedagógico socrático visava atingir a formação consciente do espírito, utilizando para tal o caminho do extremo cuidado com a alma humana 223. Segundo Sócrates, é na alma que encontramos o aspecto mais íntimo do ser e este é o local em que reside nossa realidade interior, manifesta em palavras e ações e que tem a possibilidade de conhecer e distinguir o bem do mal 224. Logo, a alma é a sede de nossa consciência e é a ela que Sócrates dedica todo o seu empenho educativo. Outro aspecto desse humanismo dentro da paideía socrática é que, além de concentrar suas preocupações no próprio ser, também buscava a obtenção de uma cultura geral baseada na virtude pessoal e na virtude política; isto, contudo, só foi possível, ao implementar em seu modelo pedagógico o uso da razão, simultaneamente com o conceito de philía, o qual tratava 220 “A posição central que Protágoras atribui à educação do Homem caracteriza o propósito espiritual da sua educação como ‘humanismo’, no sentido mais explícito. Este consiste na ordenação da educação humana por sobre todo o reino da técnica, no sentido moderno da palavra, isto é, da civilização. Esta separação clara e fundamental entre o poder e o saber técnico e a cultura propriamente dita converte-se no fundamento do humanismo” (JAEGER, 1995, p. 350). 221 “Socrates says that education does not mean handing over knowledge ready made, nor conferring on the mind a capacity that it did not have before, as sight might be given to a blind eye. The eye of the mind is not blind, but in most people it is looking the wrong way. To educate is to convert or turn it round so that it looks in the right direction” (GUTHRIE, 1995, p. 104). 222 A influência religiosa na paideía socrática estava fundamentada na distinção do que pertencia ao escopo dos deuses e ao que pertencia ao escopo dos homens. Portanto Xenofonte em sua obra nos dá uma luz sob essa questão com a seguinte máxima socrática: “Há mister ajudar-se da adivinhação, dizia, para bem gerir as casas e os Estados. A arquitetura, a metalurgia, a agricultura, a política e a teoria das ciências que tais, o cálculo, a economia, e todos os conhecimentos congêneres estão, opinava, ao alcance da inteligência humana, porém, agregava, o que de mais eminente encerram estas ciências, encofram-no os deuses para si, sequer entremostrando-o aos olhos dos homens.” E conclui dizendo: “aprendamos o que nos conferiram os deuses a faculdade de aprender, dizia, e deles procuremos saber o que nos é velado. Porque eles o revelam aos que distinguem com seus favores” (XENOFONTE, 2009, I, 1, 2). 223 Conforme visto no item 2.3. 224 “Tampouco vês tua alma, senhora de teu corpo: de sorte que poderias dizer nada fazeres com inteligência, mas tudo fazeres ao acaso” (id., ibid., I, 4, 3). 89 seus educandos de um modo diferenciado, ou seja, de uma forma denominada amizade virtuosa, em que todos os envolvidos no processo educativo eram considerados como iguais. Dessa maneira, por esse método Sócrates aplicava os preceitos do autoconhecimento, da autoconsciência e do autodomínio, fatores que permitem ao homem atingir um conjunto de virtudes, que o conduzem a exercer com sabedoria as atividades do seu dia a dia e as atividades políticas, caso lhe sejam atribuídas. Já a paideía sofista, totalmente distante das influências religiosas, aplicava em seu modelo pedagógico, de forma integral, o que os comentadores denominam um processo de educação consciente225, ou seja, trouxe para si a responsabilidade de educar e de formar os indivíduos, rompendo definitivamente com os fatores limitantes dos processos educacionais existentes neste período226. Assim, desvinculavam as questões religiosas, hereditárias e sociais de seu modelo pedagógico, tornando o homem o centro de suas preocupações educacionais. Essa paideía fundamentada em princípios laicos e humanistas facilitou a inclusão de conceitos abstratos em seu modelo pedagógico, característica típica do racionalismo. Dessa forma, os sofistas deixam para trás os métodos aplicados pela educação aristocrática e propõem uma educação completa, abarcando desde a infância até a vida adulta. Essa proposta educacional inicia-se na família e termina no Estado, por meio do poder coercitivo das leis. Logo, a paideía sofista, baseada em seu humanismo exacerbado 227, prioriza formar o homem político mediante o uso da razão, tornando-o um ser consciente e preparando-o para exercer um papel importante na sociedade, isto é, tem o objetivo de obter a formação consciente do espírito, atingindo sua grande meta, que era formar o homem para alcançar a areté política. Para tal, os sofistas conceberam um programa educacional composto por um conjunto de disciplinas formais que atuavam como forças formativas da alma. Sobre esse tema, Jaeger afirma: 225 “A velha educação helénica, anterior aos sofistas, ignora a distinção entre religião e cultura. Está profundamente enraizada no religioso. A cisão tem lugar no tempo dos sofistas, que é ao mesmo tempo a época da criação da idéia consciente da educação.” (JAEGER, 1995, p. 349). “É no mesmo período que o impulso total em direção ao abstrato começa a ser reconhecido como tal. Os atenienses tornam-se conscientes de si próprios historicamente; reconhecem que algo novo se introduziu em sua linguagem e em sua experiência e começam a chamá-lo de "filosofia". Até mesmo os escassos vestígios que subsistiram dos escritos sofísticos revelam imediatamente o tamanho do seu esforço para atingir um novo nível de discurso e um virtuosismo no vocabulário que visam a classificar tanto os processos psíquicos (por exemplo, emoção, razão, opinião etc.) quanto a motivação humana (por exemplo, esperança, medo) assim como o princípio ético (por exemplo, utilidade ou justiça).” (HAVELOCK, 1996, p. 212). 226 Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo. 227 “que a humanidade, o ‘ser do Homem’ se encontrava essencialmente vinculado às características do Homem como ser político” (JAEGER, op. cit., P. 15). 90 A nova técnica é evidentemente a expressão metódica do princípio de formação espiritual que se desprende da forma da linguagem, do discurso e do pensamento. Esta ação pedagógica é uma das grandes descobertas do espírito humano. É nestes três domínios da sua atividade que ele, pela primeira vez, adquire consciência das leis inatas da sua própria estrutura228. Portanto, o humanismo proposto pela paideía sofista construiu um programa educacional voltado para formar o espírito do homem, composto por técnicas pedagógicas que visavam atingir a arte política, por meio do uso do lógos, ou seja, o processo de comunicação oratória e racional utilizada como meio de persuasão. E, neste sentido, deixou-nos um legado indiscutível. O capítulo apresentou os pontos de divergência e de semelhança entre a paideía sofista e a socrática. E, até mesmo, conforme nossa proposta inicial, foram abordados os aspectos considerados mais relevantes em relação às diferenças entre suas paideîai; bem como nos itens que destacaram suas semelhanças foi possível observar que algumas delas estão muito mais associadas ao momento histórico que ambos compartilharam, do que uma semelhança efetiva nos seus ideais pedagógicos. 228 JAEGER, 1995, p. 363. 91 CONCLUSÃO O estudo apresentou as principais características pedagógicas dos representantes mais significativos de cada uma dessas paideîai, bem como analisou as diferenças e semelhanças entre as perspectivas educacionais da paideía sofista e da socrática. Agora nos cabe fazer uma reflexão sobre o que foi abordado e avaliar se as metas propostas foram atingidas de forma satisfatória e se forneceram elementos suficientes para esclarecer a enorme contribuição que a paideía dos sofistas e a de Sócrates trouxeram para os processos educacionais do mundo ocidental. Essa nova forma de educar, denominada Paideia, provocou grandes impactos na sociedade da época e influenciou de forma significativa seus programas educacionais. Nesse sentido, a descrição dos principais conceitos da paideía sofista e da socrática feitas ao longo do estudo foram fundamentais para avaliar a importância desse movimento educativo nos processos de formação dos indivíduos e destacar sua participação efetiva na concepção de um modelo pedagógico mais racional e humanista, que desempenhou um papel relevante nos rumos educacionais das futuras gerações. Quanto a essa característica, Guthrie faz a seguinte afirmação: “nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na história do pensamento ocidental até os nossos dias” 229; enquanto Jaeger diz o seguinte: O Estado do século V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e no qual tem origem a ideia ocidental da cultura. Como os gregos a viram, é integralmente político-pedagógica230. Dessa forma, tanto a paideía sofista quanto a socrática marcaram profundamente os modelos pedagógicos da Antiguidade e foram uma semente lançada ao solo de um movimento renovador, que germinou e influenciou efetivamente os processos educacionais contemporâneos. Outro aspecto observado ao longo do estudo foi a divergência na forma de interpretar a essência da virtude. Neste sentido, as passagens abordadas no diálogo Protágoras e sua subsequente evolução apontaram para algumas diferenças entre essas duas paideîai, principalmente no que diz respeito a seu conceito de areté. Segundo Sócrates, o grande 229 230 GUTHRIE, K. 1995, p. 12. JAEGER, W. 1995, p. 30. 92 objetivo da paideía sofista era a aquisição da areté política, algo que em sua concepção não passava de uma simples tékhne ou arte. Por sua vez, Protágoras defendia sua paideía ao afirmar que ela buscava alcançar algo muito maior do que a arte política, pois seu modelo pedagógico fundamentava-se em um conjunto de saberes que conduziam o educando à obtenção do que ele considerava como a excelência do viver bem em sociedade, ou seja, a areté política. Logo, com base nas passagens que tratam esse tema, foi possível concluir que as paideîai dos sofistas e de Sócrates concebiam o conceito de virtude sob perspectivas muito diferentes. Esse fato explica a pretensão de os sofistas ensinarem a areté, mais especificamente, a areté política, e demonstra que eles a encaravam sob um ponto de vista mais pragmático, ou seja, como um conjunto de conhecimentos que visava prover seus educandos do poder da oratória e da persuasão, e, consequentemente, o sucesso na pólis. Já Sócrates adotou um modelo pedagógico fundamentado no aperfeiçoamento da alma humana, obtido pelo processo do autoconhecimento e do autodomínio, não restrito apenas às questões políticas, mas sim a todos os âmbitos da vida humana, mesmo porque ele não concebeu sua paideía para atingir apenas um aspecto da areté, e sim o seu todo. Outro ponto de divergência entre a paideía sofista e a socrática foi a possibilidade de ensinar a virtude. Enquanto Sócrates acreditava que a única função do educador é servir como um agente facilitador para o educando descobrir o que ele já possui em sua alma, os sofistas intitulavam-se “mestres da sabedoria” e diziam ser capazes de ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa. Essas particularidades de seus programas educacionais trouxeram à tona uma das questões mais importantes do estudo, ou seja, se existe uma paideía mais adequada para ensinar a virtude. Esta problemática acabou apresentando um resultado bastante surpreendente, pois, se ambas as paideîai tratassem a areté sob o mesmo ponto de vista conceitual, até seria possível determinar qual delas é a mais adequada para cumprir tal objetivo; no entanto, conforme observado ao longo de todo o estudo, a areté que os sofistas buscavam alcançar por meio de sua paideía era diferente da que Sócrates visava atingir por meio de seus métodos pedagógicos. Assim, dadas as particularidades e especificidades de seus objetivos educacionais, tanto a paideía sofista quanto a socrática foram eficientes no sentido de alcançar o ensino do que cada uma delas considerava como sendo a virtude. Algo que também pôde ser esclarecido foi a possibilidade de haver alguma semelhança entre suas paideîai. Com base no exposto durante o estudo foi possível identificar que elas estavam muito mais associadas às tendências educacionais que elas compartilharam 93 no século V a.C. do que por uma real afinidade em seus ideais pedagógicos. Desse modo, como Sócrates e os sofistas foram contemporâneos, eles sofreram as mesmas influências das forças renovadoras existentes na época, propiciando alguns pontos em comum em suas paideîai; cabe, contudo, destacar que cada uma delas foi extremamente fiel a seus princípios pedagógicos. Assim sendo, o estudo abordou as características pedagógicas e as perspectivas educacionais da paideía sofista e da socrática, além de ter analisado suas principais diferenças e semelhanças. E, com base no conjunto das suas ações, é inquestionável a contribuição que elas deixaram para a civilização europeia ocidental, e, mais do que isso, os seus representantes foram os precursores de um tipo de educação voltada para a formação consciente do espírito do homem, isto é, os responsáveis pelas mudanças que influenciaram os métodos pedagógicos até nossos dias. Outra contribuição de extrema relevância que essas paideîai deixaram como legado para as futuras gerações foi a valorização da convivência social e a tolerância entre os indivíduos. Isto pode ser observado na paideía sofista, pelos ideais protagorianos do respeito às diferenças religiosas e culturais, e na gorgiana, no direito de plena defesa e no respeito ao estado de direito. Enquanto na socrática, após passar pelo processo do autoconhecimento e do autodomínio, o indivíduo obterá de forma consciente sua liberdade interior e sua autonomia moral, ou seja, um ser que não admite deixar-se dominar por seus apetites nem por suas paixões. Logo, a educação proposta por ambas paideîai, por meio do esclarecimento, permite que a pessoa, antes de julgar a ação do outro, pondere e passe a aceitar as diferenças, especialmente por compreender que cada um de nós tem seus próprios juízos de valor. Isso ficou claro quando Górgias defendeu o ideal de conceder a todos o direito de plena defesa, Protágoras ao apoiar o respeito à diversidade cultural, e Sócrates na busca incansável da liberdade plena do ser, por meio da autonomia e da autarquia. Desse modo, podemos concluir que tanto a paideía sofista quanto a socrática apresentam diversas perspectivas originais e importantes, e caso fizéssemos um exercício de abstração e concebêssemos uma paideía socrática com características gorgianas, teríamos um programa educacional com todas as qualidades encontradas na paideía socrática, incrementada pelos aspectos marcantes da gorgiana, em especial, na defesa incondicional dos direitos individuais, ou seja, poderíamos ter um Sócrates mais engajado em sua defesa, agindo perante o júri de uma maneira muito mais efetiva e persuasiva, com base em seus direitos e na convicção de sua inocência, e, quem sabe, não aceitasse tão passivamente sua condenação, já 94 que estava sendo acusado de forma indevida. De outro modo, se pensarmos na hipótese de uma paideía sofista, mais especificamente, a gorgiana, com traços da socrática, teríamos uma retórica menos focada no uso da persuasão como um instrumento de convencimento dos indivíduos e mais preocupada com o valor de verdade de seus argumentos, passando a respeitar os aspectos morais e individuais das pessoas, o que aproximaria a retórica sofista de um tipo de retórica que seria defendida futuramente por Aristóteles, ou seja, a retórica filosófica. Portanto, a paideía sofista, com objetivos mais pragmáticos e fundamentada na aceitação da multiplicidade, isto é, no respeito a diversidade, e a paideía socrática, baseada em uma formação mais abrangente, mas limitada em alguns aspectos pelo caráter individual do seu aprendizado e pela busca incansável da unidade, inegavelmente contribuíram para a formação dos processos educativos existentes na atualidade; bem como, auxiliaram na construção de diversas tendências educacionais, as quais serviram como modelo para o desenvolvimento de novas técnicas pedagógicas. O método sofista é útil para um tipo de formação mais célere, enquanto o método socrático para uma formação mais perene; no entanto, o que à primeira vista parece constituir uma desvantagem do método sofista, em algumas situações pode ser um ponto favorável, pois em um processo de formação mais imediata, ou mesmo de reciclagem de conhecimentos, ele pode ser bastante eficiente. Em suma, não existe nem a melhor nem a pior paideía, mas sim, a mais adequada para atingir um determinado objetivo educacional. 95 REFERÊNCIAS AUGUSTO, M. G. M. O filósofo e o sofista no Mênon de Platão. Kléos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 211-30, jul. 1997. BRÉHIER, É. História da filosofia, v. 1, t. 1. Tradução de E. Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977. FEITOSA, Z. M. L. A questão da unidade e do ensino das virtudes em Platão. Tese (doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2006. GLOTZ, G. A cidade grega. Tradução de H. A. Mesquita. São Paulo: Difel, 1980. GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de M. C. de M. N. Coelho. Cadernos de Tradução, São Paulo, DF-USP, 4, p. 15-9, 1999. ISSN 1414-8315. GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy, v. IV (Socrates). Cambridge: Cambridge University Press, 1978. XENOFONTE. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução de E. A. Dobránzsky. 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