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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
PAULO SERGIO SANTORO
Similaridades e diferenças entre
a paideía sofista e a socrática
São Paulo
2013
1
PAULO SERGIO SANTORO
Similaridades e diferenças entre
a paideía sofista e a socrática
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade
São Judas Tadeu como parte das exigências
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia
Área de Concentração: Filosofia Antiga
Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique
Fernandes Silveira
São Paulo
2013
2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer
meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que
citada a fonte.
Catalogação da Publicação
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade São Judas Tadeu
Santoro, Paulo Sergio.
Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática / Paulo Sergio Santoro;
orientador Paulo Henrique Fernandes Silveira. – São Paulo, 2013.
___ f.
Dissertação (Mestrado)–Universidade São Judas Tadeu, 2013.
1. ______________. 2. ___________________. 3. ___________________. I. Paulo
Henrique Fernandes Silveira. II. Título. III. Título: __________.
3
Nome: SANTORO, Paulo Sergio
Título: Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade
São Judas Tadeu como parte das exigências
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________
Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________
Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________
4
AGRADECIMENTOS
Este projeto de formação em Filosofia foi concebido há aproximadamente cinco anos, e teve
por meta apenas fazer o curso de mestrado. Mas, após conversar com o professor Plínio
Junqueira Smith (ex-coordenador da Pós-Graduação), recebi a recomendação de fazer o curso
de graduação completo, com o objetivo de sedimentar meus conhecimentos em Filosofia, já
que minha formação era exclusivamente na área de exatas. E, só posteriormente, tendo um
domínio mais sólido dos conceitos filosóficos, partir para fazer o curso de mestrado. Naquele
momento confesso que fiquei meio desapontado, porém hoje reconheço que foi a melhor
coisa que poderia ter-me acontecido.
Assim, agradeço a ele e a todo o grupo de docentes da USJT, constituído essencialmente por
professores doutores, que, com sua competência, responsabilidade e dedicação, contribuíram
para que este projeto fosse concluído com êxito. Aproveito também para agradecer ao
professor Floriano Jonas Cesar (atual coordenador da Pós-Graduação), pela confiança em
mim depositada, fornecendo-me sugestões e subsídios que sempre visaram a melhoria do
projeto. Da mesma forma, fico extremamente grato à Capes pelo imenso apoio dela recebido
ao conceder-me uma bolsa de estudos: sem ela teria sido impossível concretizar este meu
sonho.
Agradeço, em especial, ao professor Paulo Henrique Fernandes Silveira, pela orientação ao
longo do mestrado, sempre precisa e oportuna, permitindo a evolução do projeto de uma
forma bastante natural, principalmente com suas recomendações e correções de rota para que
o projeto não se dispersasse em assuntos de menor interesse e em elucubrações, e a
manutenção de seu principal foco. Ele foi muito mais que um orientador, foi um mestre e
amigo, aplicando a todo momento o que Sócrates denominava philía, ou seja, a amizade
virtuosa.
Também agradeço profundamente aos membros da Banca de Qualificação e de Defesa pelas
sugestões e pelo tempo que despenderam na análise deste texto, e, em consequência, por suas
considerações, de grande utilidade, que foram fundamentais para aumentar a qualidade deste
projeto.
5
Outro grupo de pessoas que foram fundamentais para a realização deste trabalho foram meus
pais, fornecendo a força necessária em momentos de crise, minhas filhas Mariana e Isabella,
as quais me auxiliaram efetivamente em diversas oportunidades ao longo deste trajeto, e, por
fim, a Thelma, que, muito mais do que companheira, ajudou-me na leitura de alguns livros, na
digitalização de outros, na formatação dos textos, na correção ortográfica e no apoio espiritual
e material, sem os quais certamente não conseguiria chegar aonde cheguei. Enfim, agradeço a
todos os que de forma direta ou indireta colaboraram para que esse sonho se tornasse
realidade.
6
RESUMO
SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas
Tadeu, São Paulo, 2013.
A paideía é um fenômeno educacional concebido no final do período clássico grego, e seus
principais representantes foram os Sofistas e Sócrates, os quais participaram ativamente de
sua evolução como um processo efetivo de formação consciente do espírito do homem; eles,
todavia, divergiam sobre diversos conceitos e princípios pedagógicos, que resultaram em sua
ramificação em dois programas educacionais distintos: a paideía sofista e a socrática. E é
sobre essas paideîai que vou centralizar todo o foco deste estudo, tentando identificar suas
principais características educacionais, suas particularidades pedagógicas e fundamentalmente
suas diferenças e semelhanças.
Palavras-chave: paideía, Sofistas, Sócrates.
7
ABSTRACT
SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas
Tadeu, São Paulo, 2013.
The paideia is an educational phenomenon conceived in the end of the classical Greek period,
and its main representatives were the sophists and Socrates, who were actively involved in its
evolution as an effective, conscious establishment process; however, they disagree on various
pedagogical concepts and principles, which resulted in two distinct educational programs, that
is, the sophist paideia and the Socratic one. And this ramification will be the subject of this
study; I will try to identify their leading educational features, their pedagogical particularities
and fundamentally their distinction and similarities.
Keywords: paideía, Sophists, Socrates.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................10
CAPÍTULO 1: Os sofistas e seus métodos educacionais..................................................14
1.1 Origens do movimento sofista....................................................................................14
1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego.............................................................14
1.1.2 A areté e a educação.................................................................................................16
1.1.3 Surgimento da paideía..............................................................................................18
1.2 Propostas e objetivos pedagógicos..............................................................................19
1.2.1 Os primeiros educadores profissionais.....................................................................20
1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista..............................................22
1.3 A paideía de Protágoras..............................................................................................23
1.3.1 Suas influências educacionais....................................................................................23
1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana...................................................28
1.3.3 O diálogo Protágoras ...............................................................................................30
1.4 A paideía de Górgias...................................................................................................34
1.4.1 Principais características.........................................................................................34
1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana..............................................................39
1.4.3 O diálogo Górgias.....................................................................................................40
1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias..............................................43
CAPÍTULO 2: Sócrates e seu ideal pedagógico................................................................46
2.1 O Sócrates histórico....................................................................................................46
2.1.1 A moral socrática ....................................................................................................46
2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates.................................51
2.2 Principais ideias..........................................................................................................55
2.2.1 O intelectualismo socrático......................................................................................55
2.2.2 A metodologia socrática...........................................................................................57
2.3 A paideía socrática......................................................................................................60
CAPÍTULO 3: Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática.............66
3.1 Conflitos entre suas paideîai.......................................................................................66
3.1.1 Abrangência dos programas educacionais...............................................................66
3.1.2 Em relação ao público-alvo......................................................................................69
3.1.3 Comprometimento com os educandos.....................................................................73
9
3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai.................................................................75
3.2 Similaridades entre suas paideîai................................................................................79
3.2.1 O uso da razão.........................................................................................................79
3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis...............................................................81
3.2.3 A observância às leis................................................................................................84
3.2.4 Sobre os ideais humanistas......................................................................................87
CONCLUSÃO.........................................................................................................................91
REFERÊNCIAS......................................................................................................................95
10
INTRODUÇÃO
A Grécia no período clássico foi marcada por diversas transformações de cunho
político, comercial e sociocultural. Esse conjunto de mudanças, além de proporcionar um
desenvolvimento significativo nas suas cidades, mais especificamente em Atenas, também
favoreceu a concepção de vários movimentos intelectuais que revolucionaram a forma de
encarar os problemas relativos ao homem e seu real papel na sociedade.
Embora esse movimento renovador tenha sido observado em vários segmentos da
sociedade grega, a grande revolução ocorreu no seu sistema educacional, principalmente na
concepção de novos modelos pedagógicos 1 e na alteração do significado da palavra paideía,
que deixa de representar apenas o velho conceito de criação dos meninos e passa a ser
composta por um conjunto de procedimentos educacionais que visavam uma formação
completa do ser2.
Esse fato exigiu uma mudança radical nos processos educacionais vigentes, ou seja, o
centro dos estudos deslocou-se das coisas exteriores ao homem para o seu interior, e
proporcionou o desenvolvimento de uma perspectiva educacional mais antropocêntrica,
resultando em uma maior humanização na forma de aquisição do saber.
Consequentemente, os métodos para a obtenção do conhecimento passaram por uma
reformulação em seus princípios pedagógicos, e o seu fruto foi a concepção de dois
movimentos de grande importância para a cultura europeia ocidental. O primeiro grupo,
composto pelos sofistas3, tinha uma proposta pedagógica imediatista e utilitária, visando
atingir o sucesso e a excelência política. O segundo grupo, formado pelos filósofos, aqui
representados por Sócrates4, priorizava uma formação completa do homem em si, valorizando
os aspectos que conduziam à obtenção da virtude, até chegar ao seu maior grau de
interiorização, ou seja, a alma.
1
Os termos, modelo ou método pedagógico e programas ou processos educacionais, amplamente utilizados ao
longo do estudo, apesar de indicarem certo anacronismo, referem-se a uma estrutura educativa mesmo que
incipiente existente no século V a.C. e servem como um elemento conceitual para comparar as propostas
educacionais dos sofistas e de Sócrates.
2
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. Tradução de A. M. Parreira. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 26.
3
GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 29.
4
JAEGER, op. cit., p. 192.
11
Apesar dessas escolas procurarem obter por meio da virtude, ou da areté5, seus
objetivos educacionais, elas divergiam em vários de seus conceitos pedagógicos, notadamente
na forma de aplicar e de compreender os elementos que compunham suas paideîai e na
definição de qual é a real essência da virtude. As diferenças existentes entre essas duas
tradições pedagógicas e suas possíveis semelhanças determinaram os rumos da educação
grega e influenciaram fortemente as futuras gerações no que se refere à aquisição do saber.
Estes aspectos e outros, tais como a divergência observada na forma de interpretar a essência
da virtude, a possibilidade ou não de ensiná-la, a existência de uma paideía mais adequada
para cumprir tal objetivo e se, apesar de todos os indícios contrários, existe alguma
semelhança entre essas paideîai, são o principal objeto desse estudo.
O ponto de partida para tentar atingir essa meta é a Atenas do século V a.C., local em
que se deu a confluência das principais ideias dos representantes dessas duas correntes
filosóficas. Segundo Werner Jaeger, os questionamentos e as alterações sociais e políticas que
ocorreram em Atenas abalaram as bases cientificistas da escola pré-socrática e transformaram
o homem no principal objeto de estudo de seus pensadores. Isto teve como consequência a
concepção de um movimento educacional que veio como uma reação natural às necessidades
e aos anseios dessa nova sociedade.
Esse grupo de pensadores, denominados “sofistas”, deslocava-se entre as cidades
gregas com a proposta de ensinar técnicas de retórica e de oratória para os jovens que
desejavam assumir funções de destaque na vida pública. Seu principal objetivo era formá-los
na arte de convencer e de persuadir os cidadãos nas assembleias. Eles também foram
considerados os primeiros professores remunerados da Grécia; bem como os responsáveis
pela adoção de ideais laicos nos métodos pedagógicos que visavam a obtenção do saber. Os
sofistas surgiram como um movimento contrário à abordagem teórica e cientificista dos présocráticos, pois trouxeram uma visão mais cosmopolita e uma proposta pedagógica focada nas
coisas da vida prática.
Outro aspecto relevante foi que eles concentraram todos os seus esforços no sentido de
criar um movimento essencialmente educativo. Jaeger 6 afirma que é nessa fase da cultura
grega que surge efetivamente a paideiía, concebida como um processo de formação
5
“O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de areté, que remonta aos tempos mais
antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua
acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma
conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (id., ibid.,
p. 21).
6
JAEGER, 1995, p. 312.
12
consciente do homem. No entanto, a paideía sofista assentou suas bases no subjetivismo e no
relativismo, característica que propiciou a adoção de uma multiplicidade de fontes para a
obtenção do conhecimento, favorecendo significativamente uma educação orientada para a
aquisição de uma grande diversidade de saberes, ou seja, um conhecimento enciclopédico
baseado na erudição, isto é, a polymátheia. Outro tema que acompanhou a proposta dos
sofistas é o ensino da virtude, pois, segundo eles, a formação de um bom governante não
depende da natureza humana nem dos deuses, mas sim da aplicação de um conjunto de
técnicas pedagógicas para atingir a areté política, já que a virtude seria um tipo de arte, ou
tékhne.
Embora os ideais pedagógicos dos sofistas tenham provocado controvérsias na
sociedade ateniense, é inegável sua contribuição para o amadurecimento dos programas
educacionais gregos. E é sob essa perspectiva, de grandes e influentes educadores da Grécia,
que irei abordar dois dos maiores representantes do movimento sofista, isto é, Protágoras e
Górgias. Ressalto que, apesar de existirem muitos fragmentos de seus escritos e uma sólida
doxografia de suas obras, muito utilizadas como fonte para minhas pesquisas, optei por definir
como pilares deste estudo as obras da juventude de Platão, também conhecidas como
“diálogos socráticos”. Assim, destacarei as particularidades desses dois sofistas,
fundamentalmente no que se refere às diferenças observadas em seus conteúdos pedagógicos,
em seu modo de transferir o conhecimento, na sua aceitação da multiplicidade (respeito a
diversidade), e, principalmente, na paideía de ambos. Mesmo porque cada um deles concebeu
um tipo de paideía que cabe ser analisada com um maior nível de profundidade, pois foi
objeto de estudo em diversos diálogos socráticos.
Paralelamente, nesse mesmo momento histórico, a escola filosófica, aqui representada
por Sócrates, deslocou o foco de seu estudo para as coisas e causas humanas, ou seja, para o
seu interior. Essa preocupação com o processo de formação consciente do homem propiciou a
concepção de uma paideía que valorizasse o autoconhecimento, o que é visível na frase
“conhece-te a ti mesmo”, e utiliza a exortação e a refutação como elementos de seu modelo
pedagógico, para adquirir a sabedoria ou obter o conhecimento da virtude em si. Da mesma
forma que o movimento sofista, Sócrates criticou algumas das linhas de pensamento dos présocráticos, especialmente a cosmológica, pois acreditava que eles queriam conhecer coisas da
natureza que pertenciam somente à sabedoria divina.
Outro aspecto interessante a ser observado é que Sócrates não deixou nada escrito,
portanto, tudo o que se sabe sobre suas ideias nos foi transmitido por outros pensadores,
13
principalmente Platão, seu amigo e discípulo, e autor de muitas obras. Assim, considero
factível a possibilidade de haver certa interferência de Platão nas ideias socráticas, pois existe
inegavelmente uma interpretação pessoal no processo de recepção e de transmissão de
conceitos, em especial quando recebidos de terceiros. Mas acredito que os diálogos socráticos
são o que temos de mais próximo das ideias de Sócrates. E é nesse Sócrates histórico que vou
basear-me e tentarei esclarecer alguns pontos sobre seus ideais educacionais, tais como em
que consiste a paideía socrática? Qual é o papel do preceito “conhece-te a ti mesmo” em sua
filosofia? Qual é a importância da busca da unidade (conceito universal) no processo de
aprendizado do educando?
Por fim, na última fase deste estudo será feita uma análise comparativa entre a paideía
de Sócrates e a paideía dos sofistas, com ênfase em suas possíveis similaridades e em suas
divergências de maior relevância, com destaque ao que se refere aos processos pedagógicos
de ambas as paideîai e seus reflexos educacionais para o período clássico grego e para a
posteridade.
Em suma, o estudo está dividido em três grandes momentos lógicos, começando pelo
Capítulo 1, em que são abordadas as principais ideias do movimento sofista, representadas
pelos ideais pedagógicos de Protágoras e de Górgias, determinando as características de sua
paideía e a forma de ensinar a virtude política. No Capítulo 2, o foco está na filosofia
socrática, baseada em diversos preceitos de moralidade e no autoconhecimento como forma
de ter acesso ao que ele considerava como sendo o verdadeiro saber; bem como em questões
relativas à obtenção da virtude política e também aos elementos e conceitos observados em
sua paideía. Finalmente, no capítulo 3 é feita uma análise das possíveis semelhanças e
diferenças entre a paideía socrática e a sofista. Além disso, aborda a contribuição e a
influência que essas duas paideîai tiveram para o rumo dos futuros programas educativos
ocidentais.
14
CAPÍTULO 1
Os sofistas e seus métodos educacionais
O capítulo pretende abordar os aspectos de maior relevância que propiciaram o
surgimento do movimento sofista e ressaltar as bases mais importantes de seu modelo
pedagógico; bem como visa destacar as principais características da paideía sofista, que
recebeu grande influência das ideias de Protágoras e de Górgias.
1.1 Origens do movimento sofista
1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego
O advento da sofística é fruto de um conjunto de fatores econômicos, políticos e
socioculturais que ocorreram na Grécia, mais especificamente em Atenas, após a bemsucedida guerra contra os persas, no final do século V a.C. Neste período, marcado por
grandes transformações, os horizontes citadinos foram ampliados de forma significativa,
devido à evolução nas relações sociais e comerciais com outros povos. Tal intercâmbio
cultural influenciou fortemente os hábitos e os costumes do cidadão ateniense, que, entre
outras coisas, passou a reivindicar maior participação nas decisões do Estado.
Esses novos ideais democráticos suscitavam uma revisão nos modelos educacionais
tradicionais, objetivando atender as exigências dessa sociedade mais rigorosa e participativa.
Assim, o movimento sofista, com suas bases sedimentadas no racionalismo e no humanismo 7,
surgiu como uma resposta natural para as necessidades educacionais da época, já que Atenas
vivia um momento de modificações profundas em suas tradições, e impunham-se mudanças
urgentes na maneira de encarar os processos de formação de seu cidadão.
O modelo aristocrático até então vigente, com sua educação voltada para os nobres, e a
insistência dos filósofos pré-socráticos em focar suas pesquisas nos fenômenos naturais, tão
distantes das coisas humanas, não atendiam mais os anseios dessa sociedade em plena
transformação. Logo, a humanização e a democratização do saber, por meio de uma formação
7
GUTHRIE, 1995, p. 30.
15
consciente, passaram a ser a grande meta a ser atingida pelos filósofos atenienses. Com base
neste fato, um grupo de pensadores originários das mais diversas regiões da Grécia migrou
para Atenas tendo o objetivo de suprir essas carências. Eles eram os sofistas e surgiram com
uma proposta político-pedagógica para atender as necessidades oriundas dessa recente fase
evolutiva que o Estado ateniense atravessava.
Embora os sofistas representassem uma renovação nos modelos pedagógicos
tradicionais gregos, eles foram influenciados pelas duas maiores forças educativas existentes
até então, ou seja, as dos poetas8 e as dos filósofos pré-socráticos9. Neste mesmo sentido,
William Guthrie10 afirma o seguinte: W. Jaeger definiu corretamente o movimento sofista
como uma herança da tradição educacional dos poetas; bem como Nestlé também estava
correto ao destacar a grande influência que os filósofos jônios tiveram nos ideais sofistas,
principalmente no que se refere a seu racionalismo e a seu ceticismo. Portanto, nota-se que os
sofistas são homens de seu tempo e foram marcados pelas duas maiores forças educacionais
de sua época. Cabe também lembrar que nesse período os métodos didáticos estavam
baseados na prosa11, e, como tal, eles a utilizaram como um instrumento pedagógico.
Assim, os sofistas lançaram mão de todos os recursos educacionais disponíveis no
sentido de facilitar o aprendizado de seus discípulos, bem como direcionavam todos os seus
esforços para a educação política dos homens e a formação dos futuros governantes das
cidades.
Esse modelo pedagógico mais racional e focado no indivíduo acabou se transformando
na marca do movimento sofista e veio ao encontro das necessidades dessa nova sociedade. E,
até mesmo, esse é um dos motivos pelos quais eles se intitularam “mestres da sabedoria”, pois
tinham como principal objetivo ensinar uma grande diversidade de saberes, ou polymátheia,
visando a aquisição da areté política.
8
“Os sofistas reconheciam sua descendência da primitiva tradição educacional dos poetas” (GUTHRIE, 1995, p.
38).
9
“A influência dos eleatas sobre Protágoras e Górgias é inegável, também a de Heráclito sobre Protágoras, e
Górgias se diz discípulo e seguidor de Empédocles” (id., ibid., p. 19).
10
Id., ibid., p. 33.
11
LOH, M. On Socrates Criticisms of the Education of the Sophists, p. 2. Taiwan Philosophical Association.
Disponível
em:
<http://www.google.com.br/url?q=http://tpa.hss.nthu.edu.tw/files/annual/2011/TPA%
25202011%2520paper
%2520-%252024.pdf&sa=U&ei=Xrm-Ts3zM4HVgQeB29S9Bw&ved=0CBAQFjAA
&usg=AFQjCNEnWVauHiJwT4W7uu8mG_WBeG2crg>. Acesso em: 12 out. 2011.
16
1.1.2 A areté e a educação
O conceito de areté sempre esteve fortemente associado aos processos de formação do
homem grego, tanto que suas origens confundem-se com a própria história da educação grega.
Basta observar que já no período homérico havia indícios da presença dos modelos de virtude
a serem seguidos dentro de sua cultura. Outra particularidade dessa época é que a educação
era de responsabilidade dos poetas, que estabeleciam as diretivas de conduta e os preceitos de
moralidade dos indivíduos.
Jaeger12 afirma que a areté serve como um fio condutor que dá unidade à história da
educação grega. Logo, a areté deve ser tratada como um elemento central no processo
educacional da Grécia, que em sua mais alta concepção de formação nos conduz ao conceito
de paideía13. Os seus conceitos e características serão, contudo, analisados posteriormente
com maior profundidade.
Portanto, cabe ressaltar que a areté, enquanto associada a um processo educacional,
procura obter como resultado um aperfeiçoamento do indivíduo nas questões éticas e morais.
Logo, ela está diretamente vinculada às ações virtuosas. Segundo o mesmo Jaeger 14, o
conceito de areté pode ser relacionado ao conceito de virtude, mas não esgota todo o seu
sentido para os gregos. A título de homogeneização e de padronização, porém, vou adotar as
palavras “virtude” e areté como sinônimos.
Retomando a questão dos primórdios da areté, vale lembrar que suas origens
remetem-nos ao período homérico (séculos XII a VIII a.C.), em que a tarefa de educar cabia
aos poetas, principalmente Homero, cujas obras, em especial, a Ilíada15 e a Odisseia16,
exerceram um papel fundamental nos processos pedagógicos da sociedade grega. Seu
princípio educacional baseava-se essencialmente no exemplo vivo dos heróis míticos 17, que
representavam o modelo de virtude a ser seguido por todos os homens. Nesse período, a
virtude estava diretamente ligada à nobreza de caráter, ou seja, o homem virtuoso é aquele
que reúne em si várias qualidades espirituais, físicas e morais. Esse conjunto de atributos
12
JAEGER, 1995, p. 19.
“Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura ou educação; nenhuma
delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paideía. Cada um daqueles termos se limita a exprimir
um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só
vez” (id., ibid., p. 2).
14
Id., ibid., p. 20.
15
A Ilíada é o poema épico atribuído a Homero que trata a guerra de Troia (em grego, Illion).
16
A Odisseia é o poema épico atribuído a Homero que relata o retorno de Ulisses (Odisseus, em grego) para
Ítaca, após a guerra de Troia.
17
MARROU, H. I. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1990, p. 2.
13
17
proporcionava a obtenção da coragem, da força física, da honra e, por fim, do heroísmo
guerreiro.
Posteriormente, no período arcaico (séculos VIII a V a.C.), surge uma nova visão do
conceito de areté, isto é, para o homem ser considerado virtuoso, já não bastava possuir os
atributos heroicos de honra e glória, que até então eram suficientes. A virtude agora estava
associada a um novo conceito, denominado kalokagathía18, que priorizava a beleza e a
bondade do homem. Para atingir tal objetivo foi necessário criar, visando a formação de suas
crianças, um programa educacional, composto por dois elementos fundamentais, a ginástica
para o fortalecimento do corpo e a música para o desenvolvimento do espírito, obtido por
meio da leitura e do canto das obras dos grandes poetas. Nessa época, o ideal educacional
grego passa a ter seu foco no indivíduo como um todo, ou seja, na formação de um homem
que tem total domínio sobre seus instintos e começa a valorizar os atos regidos pela razão.
Já no período clássico (séculos V a IV a.C.), o ideal grego de pensar a educação como
algo que faz parte de um processo contínuo e em permanente evolução foi amadurecendo, e o
homem passou a valorizar a razão, que se fundamenta em uma análise crítica do mundo e na
liberdade de pensamento. Outro aspecto relevante a ser considerado é a contribuição trazida
para o futuro da sociedade grega pelos ideais democráticos, como, por exemplo, a igualdade
de todos os homens adultos perante a lei e o direito de todos participarem diretamente do
governo das cidades, bem como a garantia a todos de tomarem parte nas decisões políticas e
na manifestação pública de suas opiniões. Consequentemente, o indivíduo torna-se um
cidadão a partir do momento em que compartilha as decisões, as discussões e as votações nas
assembleias públicas. Portanto, mais uma vez é alterado o conceito de areté, e o ideal
educacional passa a ter como principal objetivo a possibilidade de o homem grego assumir
seus direitos políticos e tornar-se um cidadão atuante na pólis.
Embora o movimento sofista tenha atribuído uma perspectiva mais utilitária ao novo
conceito de areté, essa não foi a única forma de encará-la, pois os filósofos, representados por
Sócrates, consideravam que a areté era algo mais amplo e complexo do que a virtude política
preconizada pelos sofistas.
1.1.3 Surgimento da paideía
18
A palavra kalokagathía significa bem agir, cf. JAEGER, 1995, p. 688.
18
O conceito de paideía surge no momento em que se considerou estar a civilização
grega em seu apogeu e desejava atender os ideais de uma educação completa para suprir todas
as necessidades dessa nova sociedade. Conforme já abordado, até então os programas
educacionais eram voltados essencialmente para a formação das crianças19, e eram compostos
por um modelo bastante simples e elementar, baseado no ensino da música, da ginástica e de
alguns fundamentos primários de gramática e cálculo.
No entanto, a nova fase carecia de um processo que contemplasse o homem como um
todo, desde a infância até a maturidade, abrangendo tanto o corpo quanto a alma. Neste
sentido, a paideía foi concebida com vistas a suprir a necessidade de uma formação que
incluísse aspectos culturais e políticos. Mesmo porque o momento suscitava um programa
educacional que preparasse os cidadãos para exercer seus direitos e deveres na vida pública,
dentro do Estado democrático ateniense.
Dessa maneira, a paideía pode ser vista como um método de formação completa do
ser, pois em seu programa educacional contempla fatores individuais e coletivos. Isto
significa que o indivíduo e a comunidade são mutuamente responsáveis por seu sucesso, ou
seja, por um lado, constitui-se um ideal de cultura e, por outro, gera-se um ser racional e
político, que tenha como finalidade praticar ações que visam o bem da coletividade.
Logo, a paideía está fundamentada na busca de uma formação integral, que, por meio
da educação, objetive proporcionar uma mudança interior, espiritual, que nos transforme e
molde nosso caráter, reformulando nossa visão de mundo, e permitindo adquirir um
conhecimento efetivo e duradouro; bem como promover o desenvolvimento do espírito, em
conjunto com a capacidade de aprender, o talento para compartilhar o aprendizado, o desejo
de saber e de dividir esse saber com os outros.
Portanto, podemos interpretar o significado da palavra paideía por duas perspectivas
distintas e complementares. A primeira, como cultura, sob uma visão mais abrangente, que
represente as características de uma determinada comunidade, com o total des suas
manifestações sociais, principalmente em um conjunto de procedimentos que resultem em um
ideal de construção consciente do saber, ou seja, um sistema educativo formal. A segunda,
como formação, sob uma ótica mais particular, por meio da concepção da ideia de uma
19
“A Paideia pela primeira vez foi referida à mais alta areté humana e, a partir da criação dos meninos, ‘em cujo
simples sentido a vemos em Ésquilo, pela primeira vez’ acaba por englobar o conjunto de todas as exigências
ideais, físicas e espirituais, que formam kalokagathía, no sentido duma formação espiritual consciente”
(JAEGER, 1995, p. 312).
19
educação contínua ao longo da história que represente todo o esforço no sentido de conquistar
a formação de um tipo elevado de ser, isto é, um homem que possa atingir conscientemente
sua autonomia e sua liberdade20.
Segundo Jaeger21, a paideía como um fenômeno educativo surge por volta do século V
a.C. e foi nessa fase da história educacional grega que foram concebidos os dois principais
objetos deste estudo, isto é, a paideía dos sofistas, baseada nos preceitos dos educadores
profissionais que surgiram em Atenas, e a paideía socrática, fundamentada nas ideias
propostas por Sócrates.
1.2 Propostas e objetivos pedagógicos
Antes de entrar efetivamente no tema das propostas pedagógicas dos sofistas, cabe
destacar que uma das maiores fontes sobre suas ideias tem como origem as obras de Platão,
notoriamente um crítico contundente de seus métodos educacionais. No entanto, analisar todo
este quadro sob um único ponto de vista levaria a uma leitura muito reducionista da questão.
Logo, considero fundamental avaliar os diálogos platônicos, especialmente os que abordam as
diferenças entre os ideais dos sofistas e os dos filósofos, sob uma perspectiva mais ampla e
menos parcial. Em sua obra Guthrie22 fornece exemplos que corroboram essas diferentes
interpretações, como o caso de Grote, que afirmou haver exagero nas críticas de seus
contemporâneos ao movimento sofista; Sidgwick e Jowett alegam, entretanto, que Grote, na
ânsia de contrapor-se às críticas de Platão aos sofistas, deixou de considerar outros aspectos
relevantes presentes na época, tais como a aversão dos atenienses aos estrangeiros, a fortuna
que os sofistas obtinham com a remuneração de suas aulas, a confusão provocada por suas
ideias inovadoras nas mentes dos jovens, além do conhecido conflito entre seus ideais
educacionais e os dos filósofos. Dado esse quadro, tornam-se um pouco menos particulares as
críticas de Platão aos sofistas. Por outro lado, Popper não poupou elogios ao movimento
20
Autonomia e liberdade, termos utilizados no sentido de demonstrar a grande importância que tinha nessa
época o ato de o indivíduo libertar-se da influência das divindades e dos mitos em sua vida.
21
JAEGER, 1995, p. 125.
22
GUTHRIE, 1995, p. 16.
20
sofista, considerando-os como a grande geração da Grécia, representando o pioneirismo do
pensamento liberal e democrático.
Assim, a diversidade de opiniões entre os estudiosos e os próprios filósofos posteriores a
esse período é bastante significativa. Parece haver, contudo, um consenso entre eles, pois
havia um respeito mútuo entre as duas escolas, no sentido de reconhecer a grande influência
que ambas tinham na sociedade ateniense. Isto justifica o fato de Platão ter dedicado várias de
suas obras a contrapor seus ideais filosóficos às práticas utilitaristas dos sofistas. Por esse
motivo, considero fundamental obter essas informações de diversas fontes, desde que sérias,
para que possam ser confrontadas com as existentes nos diálogos platônicos.
1.2.1 Os primeiros educadores profissionais
O Estado democrático ateniense exigiu uma série de mudanças individuais, sociais e
políticas que favoreceram a concepção de um novo modelo de cidadão, ou seja, a partir desse
momento todos os indivíduos deveriam participar da vida citadina, pelo comparecimento às
assembleias e audiências públicas. Para tal, os indivíduos que desejassem exercer seus
deveres e direitos cívicos deveriam ser dotados de boa oratória e do poder de convencimento
nas assembleias, utilizando seus argumentos de forma persuasiva durante seu discurso. Assim,
o ateniense que tivesse a pretensão de ocupar algum cargo público nesse novo Estado,
obrigatoriamente deveria adquirir esse conjunto de atributos.
Nesse contexto surge o movimento sofista, composto por professores que cobravam
por seus ensinamentos e utilizavam métodos pedagógicos baseados na oratória, na eloquência
da fala e nos exercícios públicos de retórica. Sua principal proposta era ensinar a areté23
política, que era nesse período o grande objetivo a ser alcançado pelos jovens atenienses.
Vale lembrar, todavia, que se verificou nessa época um processo de humanização na
sociedade grega, e, consequentemente, o acesso à educação nunca esteve tão democratizado.
Jaeger afirma, porém, que essa popularização somente foi aplicada ao ensino básico, e os
23
“Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer surgir aos olhos do homem
atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os
contemporâneos os chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se logo que
interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica, isto é, no sentido de areté política,
olhada sobretudo como aptidão intelectual e oratória, o que nas novas condições do séc. V era o decisivo”
(JAEGER, 1995, p. 232).
21
sofistas foram um exemplo vivo dessa tendência, pois direcionavam todos os seus esforços no
sentido de formar adultos, mais especificamente os futuros chefes. Portanto, seu ensino não
contemplava indivíduos em geral, e sim os que se tornariam líderes, ou seja, tratava-se de uma
nova versão da antiga educação, moldada para atender os nobres.
Guthrie24 também fornece uma visão mais favorável aos sofistas, atenuada pelo
momento que Atenas atravessava. Para ele:
Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a
cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado.
Ao ver de Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar
os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os
prazeres e as paixões da democracia existente [...].
Assim, apesar de Platão divergir em vários aspectos dos pontos de vista do movimento
sofista, nesse caso em particular isenta-os dessa culpa, pois responsabiliza a perda de valores
sociais e morais de então ao regime democrático instaurado no Estado ateniense. Cabe
lembrar que Platão, como simpatizante da aristocracia, era contrário aos moldes do regime
político vigente em Atenas.
Já o programa educacional dos sofistas era composto por duas modalidades que
visavam atender dois grupos com características e objetivos distintos. A primeira buscava
formar os futuros chefes de Estado e a outra preparava os jovens para exercer a profissão da
sofística. O primeiro grupo era composto por jovens de origem nobre e aristocrática que
utilizavam os conhecimentos fornecidos pelos sofistas de modo pragmático e utilitário. Esses
jovens não tinham a menor intenção de seguir os passos de seus mestres. Enquanto o segundo,
motivado pela fama e pela glória adquirida pelos sofistas na sociedade grega desejava
alcançar o mesmo tipo de prestígio que seus professores25.
Assim, no que se refere ao profissionalismo dos sofistas, Sócrates26 afirma que
Protágoras foi o primeiro a exigir pagamento em troca de seus ensinamentos. Mas este, em
contrapartida, defende-se dizendo que, se o aluno não estivesse satisfeito com suas lições não
precisaria pagá-lo, bastando fazer uma doação ao templo no valor que considerasse justo pelo
conhecimento adquirido. Apesar dessa particularidade de Protágoras, todos os sofistas
cobravam por seus préstimos, aspecto que os caracterizou como os primeiros profissionais
remunerados da educação do mundo ocidental.
24
GUTHRIE, 1995, p. 25.
JAEGER, op. cit., p. 623.
26
“[...] tu te fazes proclamar abertamente diante de todos os helenos sob a denominação de sofista e te apresentas
como mestre de educação e de virtude, sendo que foste o primeiro que exigiu pagamento por suas lições”
(PLATÃO, Protágoras, 349a. In: PLATÃO, Protágoras, Górgias. Tradução de C. A. Nunes. Belém:
Universidade Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. III).
25
22
1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista
A perspectiva aqui tratada não é a da típica relação existente entre os diferentes modos
de interpretar a vida em sociedade dos naturalistas ou dos humanistas, ou seja, o problema do
nómos em confronto com a phýsis, analisada por meio de um conjunto de normas e leis
concebidas de forma artificial, por meio de ações humanas, versus as de ordem natural,
visando obter uma sociedade mais justa e igualitária. O aspecto da contraposição entre nómos
e phýsis, à qual desejo ater-me, é aquele que tenta esclarecer a dicotomia existente entre esses
conceitos sob uma perspectiva educativo-pedagógica. Conforme dito anteriormente, o advento
da sofística provocou uma revolução nos modelos educacionais atenienses. Assim, temas
historicamente aceitos pela sociedade grega passaram a ser questionados pelos membros do
movimento sofista. E entre eles, e o mais relevante, está o de areté, que até então era
considerado um conjunto de atributos herdados dos pais, essencialmente associados às
famílias nobres. Dessa forma, para os gregos, a areté não podia ser transmitida, a não ser por
vínculos sanguíneos.
Os sofistas, entretanto, surgem desafiando esses ideais, ao tentar destruir toda a
tradição preestabelecida, e intitulam-se professores de areté política. Logo, a questão da
phýsis, vista como elemento de transferência de dons pessoais, é fortemente atacada. E eles,
movidos por seu humanismo exacerbado, creem na possibilidade de ensinar a virtude. Isto
significa, que nessa nova visão educacional proposta pelos sofistas, os atributos herdados
naturalmente dos pais perdem sua força, e passa a valer um conjunto de técnicas pedagógicas
com o objetivo de transmiti-los.
No caso da nómos, vista como o conjunto de leis e costumes, Protágoras27, sendo um
grande representante do movimento sofista, afirma o seguinte: “Quando saem da escola, a
cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para
que não se deixem levar pela fantasia a praticar qualquer malfeitoria”. Portanto, ele considera
que as leis auxiliam a moldar o espírito do homem, pois elas representam um instrumento
normativo dos princípios sociais e agem como um elemento coercitivo que tem a função de
corrigir qualquer falha comportamental dos indivíduos em sua sociedade.
27
PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III.
23
Logo, com base nos ideais sofistas, a phýsis deixou de representar um papel limitador
e restritivo de acesso ao conhecimento, pois eles acreditavam que tudo poderia ser aprendido,
desde que bem ensinado. Quanto à nómos, aquele aspecto negativo de norma artificial, vista
por alguns sofistas como fruto de acordos humanos, sob a perspectiva de Protágoras passa a
ter um caráter positivo de controle social, que permite a correção dos indivíduos com o
objetivo de obter um bem viver em sociedade.
1.3 A paideía de Protágoras
1.3.1 Suas influências educacionais
Protágoras de Abdera é conhecido como o principal representante do movimento
sofista. Suas propostas educacionais foram extremamente inovadoras, pois deixaram de tratar
o homem de maneira abstrata28 e passaram a encará-lo como membro ativo da sociedade.
Assim, a educação deixou de ser vista de modo formal, intelectual e focada somente em
conteúdos, para ser interpretada sob uma perspectiva mais sociocultural. Segundo ele, a
educação está diretamente ligada ao mundo dos valores, em particular, os políticos.
A Protágoras também é atribuída a racionalização dos procedimentos educacionais nos
métodos pedagógicos, ao utilizar a poesia e a música como forças modeladoras da alma, em
conjunto com a gramática, a dialética e a retórica. Para ele, esses elementos propiciam a
formação do espírito e, a fim de atingir tal objetivo, fundamentou sua paideía em um
programa educacional composto pelo ensino da cultura geral e da força do lógos29. Embora
existam divergências em relação às suas posições sobre determinados temas, algumas de suas
tendências pedagógicas ficaram bastante claras, especialmente as que se referem aos
conceitos de como obter o conhecimento. No sentido de corroborar esta ideia, cito um
fragmento que fez parte da introdução do livro Sobre a verdade, obra que abrange o
fundamento teórico de seus juízos de valor, e nela observamos a seguinte passagem: “O
homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o
28
JAEGER, 1995, p. 315.
Segundo Diógenes Laércio, Protágoras ministrava as seguintes disciplinas: Arte da Erística, Da Luta, Da
Matemática, Do Estado, Da Ambição, Das Virtudes, Da Situação Originária, Dos Erros Humanos, do Discurso
Imperativo, entre outras (SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução de A. A. Alves de Sousa e M. J. Vaz
Pinto. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005, p. 58).
29
24
que não são”30. Este fragmento, deveras polêmico, foi muito discutido pelos pensadores e
comentadores ao longo da história; entretanto, aqui serão abordadas somente as interpretações
pertinentes ao estudo em questão.
Platão e posteriormente Sexto Empírico atribuíram à palavra “medida” desse
fragmento o caráter de “critério”, ou seja, o termo passa a ter, em sua visão, um significado
associado a um padrão de julgamento individual. Segundo palavras de Guthrie, a
interpretação a ser considerada é a seguinte: “São nossos próprios sentimentos e convicções
que medem e determinam os limites e a natureza da realidade, que só existem em relação a
elas e são diferentes para cada um de nós”31. Essa forma de pensar evidencia o caráter
polêmico das afirmações de Protágoras e remete-nos a uma divergência que precede o século
V a.C., isto é, às diferenças históricas entre as ideias de Parmênides e as de Heráclito. Julgo
relevante fazer uma análise deste fato, para melhor entendimento das ideias de Protágoras.
Então, vamos retomar alguns dos conceitos desses pré-socráticos: enquanto Parmênides
acreditava existir total independência do objeto no processo de percepção do sujeito, Heráclito
defendia a ideia de que tudo o que é percebido pelo sujeito já existe previamente no objeto32.
Assim, Protágoras, com sua visão mais pragmática e utilitária, afirmava que devemos
acreditar nos sentidos, e que nossa percepção é o resultado da mistura dos opostos existentes
em todas as coisas, pensamento que segue a mesma linha de raciocínio dos jônios e de
Heráclito, contrariando a visão dos eleatas, que negavam a realidade dos opostos e o valor dos
sentidos como fonte do conhecimento. Para Protágoras, cada um de nós é o juiz de nossas
impressões, e não existe nenhuma diferença entre o perceber e o efetivo ser das coisas. Logo,
a verdade torna-se relativa, pois tudo o que é opinião ou aparência passa a ter o estatuto de
verdade e é algo impossível de ser questionado pelos outros33.
Na obra Grande tratado34, Protágoras começa a indicar de forma mais explícita seu
programa educacional, composto por um conjunto de conceitos pedagógicos, construídos ao
longo de sua experiência como profissional itinerante do ramo do saber. Nesses fragmentos
30
Fr. 1 obtido do livro Sobre a verdade em Guthrie (1995, p. 173) e no livro Verdade ou discursos demolidores
(SOFISTAS, op. cit., p. 78). A obra de Protágoras aparece com títulos diferentes devido a divergências
doxográficas.
31
GUTHRIE, op. cit., p. 174.
32
Platão aborda essa mesma questão na obra Teeteto, (151e-152b). Nela ele observa que pessoas diferentes são
afetadas pelos seus sentidos de forma diferente, ou seja, o mesmo vento pode ser percebido por uma determinada
pessoa como quente e por outra como frio. Logo, a questão é a seguinte: o vento é ao mesmo tempo quente e
frio? ou ele não é nem quente nem frio? Cf. Platão, Theaetetus, 2006. Tradução de B. Jowett. Disponível em:
<http://www.4 shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Theaetetus.html>. Acesso em: 08 abr. 2010.
33
SOFISTAS, 2005, p. 79.
34
“Para Untersteiner, o Grande tratado é um subtítulo atribuído, numa época tardia, à obra Sobre a verdade, de
Protágoras” (id., ibid., p. 81).
25
observam-se indícios de preocupação com a formação de uma paideía sofista, a saber: “O
ensino requer disposição natural e exercício” e “É preciso aprender começando desde
jovem”35. Com base nessas diretivas, os ideais pedagógicos de Protágoras mostram-se
fundamentados em um ensino aplicado desde a infância e levam em consideração as
disposições naturais e a dedicação individual, fatores subjetivos que, em conjunto com a boa
orientação de um mestre, conduzem à eficácia do aprendizado.
Outro fragmento de grande importância pode ser encontrado no livro Sobre a
existência dos deuses, o qual reforça a visão protagoriana de que o homem é a medida de
todas as coisas, ou seja, os deuses existem para alguns, mas não para outros, sedimentando
seu relativismo; bem como, conforme se vê nesse fragmento, declara explicitamente seu
agnosticismo e ceticismo, pois afirma que, nessa questão em particular, prefere suspender o
juízo. Em suma, o fragmento diz o seguinte:
Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm;
pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a
36
brevidade da vida humana .
Também existem alguns textos atribuídos a Protágoras, cuja autenticidade não é
comprovada, e enquadram-se em um grupo de fragmentos denominados “escritos incertos”,
dos quais considero fundamental destacar os mais relevantes, como segue: Protágoras dizia
que não existia prática sem arte, nem arte sem prática 37. Para ele a educação é composta por
vários elementos interligados que se complementam. Entre eles, a arte ou tékhne,
caracterizada pela presença de aspectos teoréticos, que, associados aos procedimentos
práticos, contribuem de maneira mais específica na formação profissional do indivíduo 38. O
outro diz o seguinte: “A educação não germina na alma, se não se aprofunda muito” 39. Para
alguns especialistas, o uso metafórico do processo de germinação associado ao processo da
educação demonstra sua complexidade, tanto nos aspectos internos do ser como em seus
aspectos externos, ou seja, deve ser uma atividade desenvolvida desde a infância até a sua
maturidade, demandando um cuidado prolongado e rigoroso para a obtenção do sucesso 40.
35
Fr. 173 obtido da obra Grande tratado de Protágoras (id., ibid.).
Fr. 4 obtido na obra Sobre os deuses, de Protágoras (GUTHRIE, 1995, p. 218; SOFISTAS, 2005, p. 82).
37
Extraído de Escobeu, Plorilégio, 3, 29, 80 (cf. id., ibid., p. 85).
38
Id., ibid.
39
Extraído de Plutarco, Do exercício, 178, 25 169 (id., ibid., p. 86).
40
Id., ibid.
36
26
Como um típico sofista, Protágoras também incluiu técnicas de oratória e de retórica
em seu modelo pedagógico. Conforme já abordado, o uso da linguagem como meio de
persuasão foi uma característica marcante do movimento sofista. No entanto, ele tem alguns
conceitos que o particularizam, tais como a crença de que há dois argumentos opostos sobre o
mesmo assunto, de tal modo que não existe a possibilidade da contradição, ou seja, em um
discurso é impossível falar falsamente. Essa máxima tem seu significado ratificado pelo
fragmento “Os gregos afirmam, seguindo Protágoras, que se pode contrapor um argumento a
qualquer argumento”41 e também pela frase “Pode-se argumentar a respeito de todas as coisas
com o mesmo sucesso, tomando qualquer um dos dois lados” 42. O que para Guthrie43 resultou
na afirmação de Aristóteles de que a doutrina de Protágoras é caracterizada pelo subjetivismo
e pelo relativismo, pois, entre outras coisas, ao propor a possibilidade de fazer discursos
antitéticos sobre qualquer realidade 44, ele nega o princípio da não contradição.
Quanto aos fragmentos que abordam mais explicitamente seus conceitos pedagógicos,
vale destacar o seguinte:
Estou longe de negar a existência quer da sabedoria quer do homem sábio; mas
chamo “sábio” precisamente àquele homem que, produzindo uma modificação em
nós, faz o que aparece e é mau apareça e seja bom. Mas eu penso que, se a
disposição da alma é má, ter-se-ão opiniões conformes com ela; uma boa disposição,
pelo contrário, faz ter opiniões diferentes e adequadas a essa disposição; alguns, por
ignorância, chamam-nas “verdadeiras”, enquanto eu as chamo de “melhores do que
45
as outras, mas nunca de mais verdadeiras” .
Frase que deixa muito clara a sua visão sobre o programa educacional a ser adotado pelos
sofistas, tanto no aspecto relativista, observado em seus juízos de valor, como na maneira de
enaltecer o papel do mestre no processo de formação do indivíduo. Isto significa que
Protágoras acredita exercer a natureza do homem um papel importante no processo de
aquisição do saber, mas não o fundamental, pois desde que sejam aplicadas técnicas
pedagógicas adequadas, essas disposições negativas e intrínsecas ao ser podem ser
transformadas em disposições positivas. E, até mesmo, ele vai mais longe, pois questiona o
critério de verdade e seu real valor, afirmando que seu peso é somente uma questão de
41
Extraído de Clemente de Alexandria, Miscelânia, 6, 65 (id., ibid., p. 95).
Extraído de Sêneca, Cartas, 88, 43 (id., ibid., p. 94).
43
GUTHRIE, op. cit., p. 173-5.
44
Diógenes Laércio afirma que Protágoras foi o primeiro a sustentar que em todos os assuntos existem dois
argumentos antitéticos entre si (SOFISTAS, op. cit., p. 108).
45
Extraído de Platão, Teeteto, 166d (PLATÃO, 2006; SOFISTAS, 2005, p. 98).
42
27
referência. Logo, Protágoras defende a ideia de que a verdade é relativa46, isto é, ela é
individual e temporária, e não universal e permanente. De tal modo, que por meio da retórica
e da oratória a verdade passa a ser aquela na qual o homem é persuadido a crer.
No entanto, seria leviano acreditar que Protágoras sedimentou todos os seus
ensinamentos nesses princípios, mesmo porque, em dado momento, ele recusou o uso
indiscriminado da retórica, pois considerou-a inadequada quando utilizada por pessoas
inescrupulosas. Em determinada fase de sua vida deslocou o foco de seu ensino para o que ele
acreditava ser de fundamental importância para o homem, ou seja, cuidar dos próprios
negócios e das coisas do Estado47.
Ele também é considerado o precursor do relativismo epistemológico e do
subjetivismo filosófico, devido às ideias existentes nas suas propostas educacionais que
valorizam os critérios individuais, de acordo com o qual cada um de nós é o juiz de suas
próprias crenças. Portanto, segundo ele, o que parece a cada um de nós é a única realidade
possível.
Com base na diversidade e na abrangência dos princípios pedagógicos propostos por
Protágoras surge um programa educacional de formação de indivíduos denominado paideía
protagoriana. Vale lembrar que o outro grande representante da sofística é Górgias48, o qual
em seu modelo pedagógico priorizou outros aspectos educacionais, que serão posteriormente
abordados. Logo, neste momento da presente exposição, é possível dizer que o conjunto de
saberes que foram alvo do programa educacional de Protágoras continha a essência do ensino
sofista, fundamentalmente representado pela aquisição da areté política. Por fim, com base
nos testemunhos e fragmentos sobre os ideais pedagógicos de Protágoras, julgo interessante
destacar as repercussões e as reações que suas ideias provocaram em alguns filósofos. No que
se refere a Platão, o questionamento está relacionado à ideia do homem como medida de todas
as coisas, pois entra em conflito com sua teoria epistemológica do conhecimento verdadeiro.
Já para Aristóteles, o problema está associado à negação do princípio da não contradição, que
fere as bases da ciência e da ontologia. No caso de Sexto Empírico, a defesa por parte de
Protágoras da existência da verdade em todas as opiniões viola metodologicamente o critério
de distinção entre o falso e o verdadeiro 49.
46
GUTHRIE, 1995, p. 52.
PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III.
48
JAEGER, 1995, p. 234.
49
Além de todos os aspectos da pedagogia multidisciplinar de Protágoras, os pontos de vista que lhe são
simultaneamente atribuídos, dos quais destacamos os seguintes: a preocupação com a correção dos nomes, a tese
de que não é possível contradizer, a defesa da enunciação de juízos antitéticos sobre todas as coisas, a doutrina
47
28
Em suma, é inegável sua contribuição na reformulação e no amadurecimento dos
processos educacionais do mundo ocidental, principalmente no que se refere à utilização da
educação como um elemento que favorece a aceitação das diferenças entre os indivíduos, ou
seja, a educação como um agente facilitador da convivência social, ao favorecer o respeito à
individualidade e à opinião particular de cada um. Isto pode ser observado em suas propostas
educacionais, as quais estão fundamentadas no agnosticismo, ao aceitar a pluralidade
religiosa; no relativismo, fruto de seu conceito do homem como medida, respeitando as
diferenças culturais existentes em uma determinada comunidade; e no valor atribuído às
instituições, pois não foi somente professor, tendo sido também legislador, além de
especializar-se na formação política dos jovens, futuros cidadãos.
1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana
A paideía sofista, associada ao programa educacional proposto por Protágoras tinha
algumas características marcantes, notadamente o empirismo, o ceticismo, o intelectualismo,
o agnosticismo e o humanismo. Ora, dada essa diversidade de linhas de pensamento, torna-se
claro o ecletismo do movimento sofista, a ponto de seus comentadores em alguns momentos
destacarem mais fortemente alguns aspectos em detrimento de outros. Como, por exemplo,
quanto a seu empirismo, analisado sob a ótica de um conjunto de práticas baseadas na
experiência, ou seja, uma empeiria, Guthrie50 afirma que “os sofistas eram empiristas que
negavam a possibilidade de uma definição geral de ‘bem’ pelo motivo de ela diferir
relativamente aos indivíduos e às sociedades e suas circunstâncias”. Já Havelock 51, destaca
seu intelectualismo:
Tanto os socráticos quanto os sofistas, portanto, por volta do fim do século V a.C. –
se a Apologia realmente reproduz a linguagem daquele período –, eram aceitos pela
opinião pública como representantes do movimento intelectualista. Se eram
chamados de “filosofadores”, não era por causa da sua doutrina como tal, mas pelo
tipo de vocabulário e de sintaxe que empregavam e das energias psíquicas não
familiares que representavam.
do homem como “medida” das coisas, a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco (id., ibid., p. 58).
50
GUTHRIE, 1995, p. 177.
51
HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução de E. A. Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996, p. 205.
29
Por outro lado, Jaeger52 defende a ideia de que os sofistas e sua paideía promoveram uma
revolução nos processos educacionais, proporcionando uma forma de ensino laico, racional e
humanista.
Ora, considero todos esses aspectos relevantes para entender a amplitude e a
diversidade do modelo pedagógico proposto pelos sofistas; bem como acredito que seus
comentadores identificaram corretamente essas diversas linhas de pensamento que
influenciaram sua paideía, pois como os sofistas caracterizaram-se por serem professores
itinerantes, certamente sofreram enormes influências das mais variadas correntes filosóficas e
educacionais das diversas regiões da Grécia. Eles favoreceram essa diversidade pedagógica,
ao desvincular-se dos procedimentos educacionais de qualquer outra escola da época. A esse
respeito, Guthrie53 cita um fator relevante:
Em geral, os sofistas não eram estudiosos escrevendo tratados filosóficos e
científicos para o futuro. Eram antes mestres, conferencistas e oradores públicos,
cujo propósito era influenciar sua era mais do que ser lidos pela posteridade.
Ademais, uma vez que muito de suas obras era educacional, do tipo do manual,
ficaria naturalmente incorporado nos manuais de mestres posteriores.
Portanto, a amplitude de seus programas educacionais e o descomprometimento com qualquer
tipo de modelo pedagógico preestabelecido foram uma característica típica do movimento
sofista.
Quanto à questão do subjetivismo e do relativismo, vale ressaltar que ambos estão
presentes na paideía protagoriana. No caso do relativismo, ele afirma que nossos juízos de
valor dependem de circunstâncias particulares que relativizam um determinado fato, baseado
em seu aspecto individual. Já o subjetivismo, conforme Guthrie54, Protágoras o radicalizou de
forma premeditada, ao afirmar que o que uma determinada pessoa sente é uma verdade para
ela, e não pode ser questionado por mais ninguém.
Por fim, Guthrie55 faz uma afirmação que reflete basicamente a essência do
pensamento sofista, que é a seguinte: “Se há algo que se possa chamar de visão sofística geral,
é a ideia de que não há nenhum ‘critério’”. Tu e eu não podemos, comparando e discutindo
nossas experiências, corrigi-las e alcançar o conhecimento de uma realidade ulterior à de
ambos, pois não existe essa realidade estável que possa ser conhecida. De modo semelhante,
52
Para melhor contextualização desses conceitos, ver JAEGER, 1995, p. 231-5.
GUTHRIE, 1995, p. 053.
54
“Podemos concluir que Protágoras adotou extremo subjetivismo segundo o qual não havia nenhuma realidade
atrás e independente das aparências, nenhuma diferença entre aparecer e ser, e cada um de nós é o juiz de nossas
próprias impressões” (id., ibid., p. 178).
55
Id., ibid., p. 184.
53
30
na moral nenhum apelo a padrões gerais ou princípios gerais é possível, e a única norma só
pode ser agir como em qualquer momento pareça mais adequado.
1.3.3 O diálogo Protágoras
O Protágoras de Platão é uma excelente referência sobre os princípios pedagógicos de
Protágoras. Nela, é possível identificar com certo nível de clareza alguns aspectos de sua
proposta educacional e as divergências observadas nos conceitos entre suas ideias e as de
Sócrates, bem como constatar o respeito mútuo visível após o término do diálogo.
Com o objetivo de traçar uma linha cronológica coerente de suas ideias e contribuições
para a paideía sofista, vou seguir a sequência dos fatos conforme narrados por Platão.
Ressalto que esse diálogo é repleto de conceitos, porém, neste momento, somente serão
tratados os que forem pertinentes à paideía sofista.
O primeiro aspecto relevante é a conversa que Sócrates tem com Hipócrates, antes
mesmo do encontro com Protágoras. Sócrates pergunta qual motivo o leva a procurar o sofista
e se Hipócrates sabe o que ele ensina. Sócrates argumenta que, quando o desejo é tornar-se
médico, deve-se procurar aprender medicina. E o mesmo processo ocorre com as demais
profissões; contudo, qual é o tipo de aprendizado que ele visa obter com Protágoras?
Hipócrates responde que é o de ser um sofista, no sentido de atingir a sabedoria para utilizá-la
na vida profissional56. Mas Sócrates questiona a decisão dele, pois Hipócrates estaria
delegando algo tão importante como a aquisição do saber, que, segundo ele, é o alimento de
nossa alma57, para uma pessoa como Protágoras, cuja real intenção ele não sabe qual é e que
faz isso em troca de dinheiro. Dessa maneira, Sócrates tenta esclarecer a importância que a
educação tem para a formação do homem e torna clara sua preocupação com os impactos que
ela pode provocar em seu espírito, principalmente por não estar ciente da essência da paideía
sofista. E é isso que Protágoras tentará elucidar ao longo desse diálogo socrático.
Sob esse aspecto, o diálogo começa com Sócrates perguntando a Protágoras qual é o
grande objetivo de seu programa educacional, ao que ele responde:
56
57
PLATÃO. Protágoras, 312a. In: PLATÃO, 1973, v. III.
JAEGER, 1995, p. 624.
31
Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que o porá em condições
de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará
mais do que apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles58.
Com base nessa resposta, Sócrates conclui que o conjunto de saberes ao qual Protágoras se
refere, com a possibilidade de ser ensinada, não deve ser considerada uma virtude, e sim uma
arte, fundamentalmente, uma arte política59.
Assim, nesse momento começa a delinear-se a principal perspectiva da atividade
sofística, que, para Protágoras, está fundamentada essencialmente nas questões da vida
prática, sem preocupar-se com a natureza das coisas, ou seja, seu real objetivo é atingir o
sucesso por meio do poder do convencimento. Para tal, Protágoras propõe-se a ensinar a
virtude política, vista por Sócrates como arte ou tékhne, já que pode ser ensinada. Sócrates
questiona, contudo, esse estatuto da virtude política, também considerada pelos sofistas como
a excelência do viver bem em sociedade, que concebe a virtude como uma arte. Mas essa
questão e outras similares, relativas à visão de Sócrates sobre este tema, serão mais bem
analisadas no Capítulo 2.
O que cabe destacar, todavia, é que Sócrates não crê na possibilidade de ensinar-se a
arte política (virtude política, para Protágoras) e alega que nessas questões todo ateniense tem
o direito de opinar, pois cada um deles considera desnecessário ter um ensino prévio para que
alguém possa delegar sobre as atividades pertinentes à administração das cidades. Por outro
lado, em tudo o que consideram passível de ser ensinado, como a construção de navios e de
imóveis, sempre procuram obter a opinião de um profissional, porque nas questões que
exigem uma técnica especial, ou tékhne, para seu bom desempenho, ou seja, necessitam do
conhecimento de uma arte específica, fruto de um aprendizado, não importa que o que se
apresenta para enfrentá-las seja belo, rico ou influente, se não detiver a tékhne relativa ao
campo daquelas questões, suas opiniões serão desprezadas nas assembleias60. Sócrates
também afirma que, mesmo na vida privada, as pessoas, por mais sábias que sejam, não são
capazes de transferir suas virtudes para os outros e cita como exemplo o caso de Péricles, o
dirigente mais virtuoso, que não conseguiu passar nenhuma de suas qualidades para seus
filhos61. Em suma, Sócrates, contrariamente a Protágoras, acredita que a virtude não pode ser
ensinada.
58
PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III.
“Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons cidadãos” (id., ibid., 319a).
60
Id., ibid., 319b.
61
Id., ibid., 320b.
59
32
Em resposta aos argumentos de Sócrates, Protágoras lança mão de um discurso
bastante convincente, baseado na narrativa de um mito e em suas reflexões ético-pedagógicas.
No mito62 ele relata que, na criação do mundo, os deuses delegaram a Prometeu e Epimeteu a
responsabilidade de atribuir aos homens e aos animais as características específicas de cada
um, para que pudessem viver de forma adequada sobre a face da Terra. Epimeteu solicitou,
contudo, a seu irmão executar essa tarefa sozinho. Quando recebeu o consentimento de
Prometeu, dotou todas as espécies animais de atributos que as fizessem sobreviver em
harmonia; ao concluir sua tarefa, porém, e ter esgotado todos os atributos disponíveis para
conceder às criaturas, Epimeteu percebeu que havia se esquecido dos homens. Assim,
Prometeu para tentar reparar essa falha, rouba de Hefesto a arte de trabalhar com o fogo e de
Atena a da inteligência, de tal modo que dotou os homens do poder derivado do saber técnico.
Esse saber propiciou diversas vantagens à espécie humana, mas, no que se refere à
convivência social, não houve nenhuma contribuição, condenando os homens a uma vida
solitária que os tornava alvo fácil de predadores. Zeus, ao perceber o grande risco que a
espécie humana corria por ser desprovida dos dons políticos e por não conseguir viver em
sociedade, pediu a Hermes que, contrariamente à distribuição do saber técnico, atribuído
apenas a uma parte específica dos homens, compartilhasse igualmente com todos o pudor e a
justiça. Segundo Protágoras, é devido a esse fato que todos os homens julgam possuir a
virtude política; entretanto, nas questões que exigem o saber de uma técnica específica, os
atenienses, como qualquer outro povo sábio, somente ouvem os profissionais especializados
nessa arte.
Com base nesses argumentos de Protágoras, entram em cena os conceitos pedagógicos
propostos pela paideía sofista, especialmente porque, se os atributos do viver bem em
sociedade fossem comuns a todos os membros da espécie humana, onde entraria a
possibilidade de sua contribuição? Ou melhor, qual seria a necessidade de alguém ensinar
algo que já nos é dado por natureza?
Conforme Jaeger63, Protágoras é o membro do movimento sofista mais indicado para
esclarecer essas questões, pois ele foi o primeiro a preocupar-se com a temática ético-política
muito presente no período que Atenas atravessava e focou todo o seu estudo nas ciências
sociais, principalmente ao perceber que o antigo modelo da educação voltada para a nobreza,
62
63
PLATÃO. Protágoras, 320c-322d. In: PLATÃO, 1973, v. III.
JAEGER, 1995, p. 631.
33
com base nos preceitos técnicos, já não atendia os anseios dessa nova sociedade. Embora a
justiça, a piedade e a temperança sejam atributos dados por natureza, para que nos conduzam
à virtude política, eles devem ser desenvolvidos por meio do estudo e de nosso próprio
esforço.
No entanto, para Protágoras o ensino da virtude política não segue os mesmos moldes
do ensino técnico, que depende apenas do entendimento, e sim está muito mais voltado para o
desenvolvimento pessoal e do conviver bem em sociedade, ou seja, é mais uma questão de
hábito do que de entendimento. Em síntese, Protágoras diz que a educação das crianças tem
seu início no nascimento, com seus pais e preceptores, depois continua na escola por meio da
ginástica e da música, e, posteriormente, pela própria cidade por meio de suas leis64.
Então, a paideía sofista é composta por um conjunto de elementos didáticos baseados
em disciplinas como a gramática, a música, a poesia, a dialética e a retórica. Em suma, ela é
essencialmente formada por três fases, a saber:
A) Da família – Os pais e as amas ensinam às crianças, por meio da linguagem,
noções sobre valores como o bom, o justo e os preceitos de moralidade;
B) Da escola – Os professores ensinam conceitos básicos de leitura e de escrita, com
os quais, ao ler as obras dos grandes poetas, aprendem o bem agir, por meio do exemplo dos
heróis. Também aprendem a música e a ginástica, visando o equilíbrio da alma e o
fortalecimento do corpo;
C) Da cidade – Aprendem a ser cidadãos dignos, por meio das leis e do poder
coercitivo do Estado.
Consequentemente, o modelo pedagógico proposto por Protágoras contém uma série
de etapas que visam a obtenção do desenvolvimento pessoal e intelectual de seus discípulos,
ou seja, em cada uma dessas fases é possível adquirir uma ou mais virtudes, e o jovem, ao
atingir a maturidade, está pronto para receber seus ensinamentos, resultando no total de
atributos educacionais necessários para obter a virtude política. Assim, na fase familiar,
receberá a hosion, ou a piedade; na fase escolar, adquirirá a sophrosyne, ou a temperança, e a
andréia, ou a coragem; na fase citadina, terá acesso à dikaiosyne, ou a justiça, e, por fim, por
meio da paideía sofista obterá a politike areté.
Dessa forma, a virtude para Protágoras é um mero condicionamento social, e pode-se
comprovar este fato ao observar seus pressupostos práticos e utilitários. Guthrie reforça essa
ideia com a seguinte fala de Protágoras:
64
Resume as principais ideias desse trecho; para mais detalhes, ver PLATÃO. Protágoras, 325c. In: PLATÃO,
1973, v. III.
34
Entre os interesses humanos a educação é primária, pois em qualquer
empreendimento, quando o começo é certo, é provável que o resultado também seja
certo. Assim como se lança a semente fundo no chão e dela se pode esperar a
colheita, assim também, quando se lança a boa educação nos jovens, seu efeito vive
e brota pela vida inteira, e nem a chuva nem a seca podem destruí-la65.
Ele continua dizendo:
Sócrates concordava com Protágoras que era justo (no sentido de moralmente
obrigatório) obedecer às leis ou então fazê-las mudar por persuasão pacífica, e que a
omissão de fazê-lo destruiria a sociedade66.
Bem como, segundo Jaeger67, a educação sofista deixa para trás uma formação abstrata do
espírito e passa a olhar o homem como um membro participativo da sociedade, em sólida
relação com os valores do mundo. Portanto, a educação passa a estar associada a uma
formação espiritual consciente do ser. Enquanto Havelock 68 ainda julga que a forma de pensar
da educação sofista estava fundamentada em conceitos puramente abstratos. Considero,
todavia, a posição de Jaeger mais próxima da real proposta da paideía sofista e discordo de
Havelock, pois creio que ele fez suas afirmações baseadas em um primeiro estágio da
revolução do pensamento promovida pelos sofistas e por Sócrates.
1.4 A paideía de Górgias
1.4.1 Principais características
Outro representante do movimento sofista é Górgias de Leontinos, reconhecido por ter
um estilo didático mais utilitário e pragmático, caracterizado pela valorização do discurso
retórico e pela força do lógos69, fundamentalmente utilizado como um meio para persuadir
65
GUTHRIE, 1995, p. 159.
Id., ibid., p. 137.
67
JAEGER, 1995, p. 233.
68
“Os sofistas, os pré-socráticos e Sócrates tinham uma característica fatal em comum: estavam tentando
descobrir e praticar um pensamento abstrato.” (HAVELOCK, 1996, p. 204).
69
SOFISTAS, 2005, p. 97-8.
66
35
seus interlocutores. Neste sentido, tanto Jaeger70 como Guthrie71 são unânimes no que se
refere ao uso indiscriminado e abusivo que ele faz da retórica, o que a torna o principal
elemento de seu modelo pedagógico. De tal forma que seus discípulos eram essencialmente
treinados na arte da persuasão e do convencimento.
No que se refere as suas obras o Tratado sobre o não existente, ou Sobre a natureza72,
faz uma análise extremamente crítica da teoria ontológica de Parmênides, e o Elogio a
Helena73 valoriza incondicionalmente o poder do discurso persuasivo. Essas obras, entre
outras, são exemplos típicos do enorme valor que ele atribuía à arte da retórica.
Em seu discurso Elogio a Helena, Górgias faz um verdadeiro tributo ao uso do lógos e
do peithó74, afirmando o seguinte: “o discurso é um grande soberano, que com o mais
diminuto e inaparente corpo as mais divinas obras executa; pois ele pode cessar o medo,
arrancar a tristeza, suscitar a alegria e aumentar a compaixão”75. Logo, para Górgias o que
deve ser avaliado na retórica não é o que ela pode oferecer no plano epistemológico, mas sim
na eficácia dos efeitos produzidos pela transmissão das palavras e das emoções nas almas dos
indivíduos76. Em outra parte do discurso, ele declara que, no caso de Helena, não importa se
seus atos foram motivados pela paixão, pela violência, pela persuasão ou pela influência dos
deuses. O que importa é que por meio da utilização de um discurso convincente é possível
inocentá-la, ou seja, por meio da retórica o orador consegue convencer que o certo é errado e
que o culpado é inocente77.
70
“Em todo o caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o
ideal educativo da retórica. Isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na
apreciação do resto das coisas, até ao ponto de ter havido sofistas, como Górgias, que não foram senão retóricos,
nem ensinaram mais nenhuma coisa” (JAEGER, op. cit., p. 234).
71
“Górgias era primariamente mestre de retórica, associado a seu conterrâneo Tísias no uso do argumento de
probabilidade. Ele escreveu manuais da arte, que podem ter consistido em larga medida de modelos de
declamações a serem decoradas, uma vez que Aristóteles diz que era este o seu método de instrução”
(GUTHRIE, 1995, p. 181).
72
Fragmentos que têm sua paráfrase em duas obras, uma, Contra os matemáticos de Sexto Empírico, e outra,
uma pseudo-obra de Aristóteles sobre Melisso, Xenófanes e Górgia (id., ibid., p. 112).
73
Para maiores detalhes sobre a veracidade desse discurso, ver GUTHRIE, 1995, p. 180.
74
Segundo Guthrie, Górgias não estava preocupado com o destino de Helena, mas sim em elogiar e valorizar o
poder do lógos e do peithó (id., ibid., p. 181).
75
GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de M. C. de M. N. Coelho. Cadernos de Tradução, São Paulo, DFUSP, 4, p. 15-9, 1999, parágrafo 8.
76
“A mesma palavra tem o poder do discurso perante a disposição da alma e a disposição dos remédios para a
natureza dos corpos. Com efeito, como os diferentes remédios expulsam diferentes humores do corpo, e uns
cessam a doença, outros a vida, assim os discursos, uns afligem, outros deleitam, outros atemorizam, outros
dispõem os ouvintes à confiança, e outros por meio de uma persuasão maligna envenenam e enfeitiçam a alma”
(GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 14).
77
Id., Ibid., Parágrafo 20.
36
Ao analisar de forma mais criteriosa essa obra, podemos detectar um exercício de
retórica muito poderoso e convincente de seus argumentos. Inicialmente, Górgias deixa muito
claro que seu principal objetivo será fazer uma defesa incondicional de Helena, propondo
esclarecer e livrar seus acusadores da cegueira e da ignorância que os domina. Com base
nisto, ressalta a relevância dos diversos aspectos a serem considerados no que tange à decisão
de Helena, os quais foram determinantes para deflagrar a guerra entre gregos e troianos. Para
tanto, ele defende a possibilidade da existência de quatro hipóteses que poderiam ser
responsáveis por suas ações.
Na primeira hipótese, se Helena agiu influenciada pela vontade dos deuses, seria
humanamente impossível resistir a este desígnio, já que nenhuma pessoa é capaz de impedir
sua concretização, devido à força e à sabedoria divinas serem infinitamente superiores às dos
humanos;
Na segunda hipótese, se Helena foi raptada e por meio da força violentada e ultrajada,
nada mais justo do que penalizar o infrator e considerar a vítima digna de piedade, pois ela
sofreu a dor da violência, da vergonha e da distância dos entes queridos;
Na terceira hipótese, se helena foi enganada pelo discurso, deve ser considerada uma
desafortunada, pois por meio das palavras um bom orador pode convencer e persuadir
qualquer pessoa, principalmente se atingir as opiniões da alma, sendo capaz de seduzir,
encantar e transformar suas crenças pelo enfeitiçamento, alterando de forma significativa seus
juízos de valor, conduzindo-a ao erro e à ilusão.
Por fim, na quarta hipótese, se Helena foi movida pelo amor, suas ações também
possuem atenuantes, pois, se esse amor teve como agente motivador a influência dos deuses,
não haveria a possibilidade de ela lutar contra esse poder divino; se esse, contudo, não for o
caso, seu amor é fruto da doença tanto do corpo quanto da alma e deve ser considerado como
uma desventura inerente ao ser.
Dessa forma, por meio do poder da palavra e da força do convencimento, Górgias
utiliza esses quatro argumentos no sentido de provar que um bom orador consegue persuadir
qualquer pessoa ou plateia, mesmo que o objeto de sua defesa seja algo indefensável. Ele
ressalta que, por meio do engano e do convencimento da alma, é possível persuadir qualquer
um, de qualquer coisa. Mesmo porque na maioria das pessoas a opinião é sua maior
conselheira, e, como a opinião tem suas bases sobre um solo instável, torna-se muito fácil
conduzi-la para o lado de maior interesse do orador. O que possibilita ao retor ser detentor de
37
um imenso poder sobre os outros, principalmente quando a retórica é utilizada como um
instrumento que visa a obtenção de destaque no cenário político.
Portanto, torna-se fundamental ressaltar nesse discurso a relevância que Górgias
atribui ao papel do lógos, e, com isso, à forma pela qual ele estruturou todo o seu arcabouço
teórico educacional, ou seja, sua estratégia pedagógica está sedimentada na forma de o ser
humano captar as informações e as perceber, transformando-as em juízo de valor. Em suma,
Górgias acredita que as almas dos homens vivem sob a influência das opiniões 78, de tal modo
que é possível influenciá-las e transformá-las por meio das palavras. Assim, podemos
identificar esse conceito gorgiano de forma explícita em frases como a que segue:
Os encantamentos inspirados divinamente, por meio das palavras, movem o prazer,
removem a dor; conformando-se com a opinião da alma, o poder do encantamento a
seduz, persuade e transforma essa alma pelo enfeitiçamento. De enfeitiçamento e
magia duas técnicas se encontraram, que são erros da alma e ilusões da opinião79.
Consequentemente, por meio da retórica, na obra Elogio a Helena, Górgias utiliza o
poder do convencimento e da persuasão, com o objetivo de defender alguém que, para os
gregos, era totalmente responsável pelos males decorrentes de suas ações. Dessa maneira, ele
demonstra a força do lógos, e que, por meio dele, o orador pode mudar a opinião de qualquer
um, seja quem for, conduzindo seu interlocutor ao engano. Este ponto de seu ideal pedagógico
futuramente provará ser um aspecto muito importante de sua paideía, pois ele não
considerava o engano como algo negativo.
Essa maneira de pensar é observada em seu conceito do que é ser justo e sábio, já que
o contrário da verdade não é o erro, e sim o engano, desde que traga satisfação e esteja sob o
aval de quem está sendo enganado. Isto fica muito claro quando se observam ideias existentes
em obras atribuídas a ele, mas sem confirmação de autenticidade, também conhecidas como
“escritos incertos”, a saber: “Aquele que enganou mostra ser mais justo do que aquele que não
enganou, e quem se deixou enganar é mais sábio do que quem não se deixou”. O que enganou
é mais justo porque, tendo prometido algo, cumpre; e o enganado é mais sábio, pois só quem
não é insensível se deixa vencer pelo prazer das palavras” 80. Outra frase de origem incerta,
atribuída a Górgias, é que o orador deve “destruir a seriedade de um oponente pela risada, e
78
“[...] de maneira que, sobre o maior número de casos, a maioria tem a opinião como conselheira presente da
alma. Mas a opinião, escorregadia e instável, em escorregadios e instáveis desencontros, arremessa os que dela
se servem” (GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 11).
79
Id., ibid., Parágrafo 10.
80
GUTHRIE, 1995, p. 171.
38
sua risada pela seriedade”81. Assim, por esse fragmento, ele ratifica sua forma irônica de tratar
os conflitos relativos às diferenças de opinião com seus interlocutores.
No Tratado da não existência, sua obra mais polêmica, Górgias rejeita a possibilidade
de existir uma ontologia, pois, contrariamente a Parmênides, que associava a aquisição do
conhecimento a um lógos puramente racional, e duvidava do valor do saber obtido por
intermédio das sensações, Górgias acreditava no conhecimento adquirido por meio das
percepções sensíveis e das concebidas pela imaginação, questionando o estatuto rigoroso do
eleatismo no que se refere à oposição entre o conhecimento verdadeiro e a mera opinião 82.
Assim, nessa obra ele faz uma forte crítica ao poema de Parmênides, texto em que se dá a
concepção da ontologia, por meio de uma espécie de inversão dos argumentos parmenídicos,
de tal forma que ele radicaliza a proposta ontológica de que dizer é dizer o ser, desvinculando,
por meio do absurdo, o discurso de seu comprometimento com as questões ontológicas. Logo,
para Górgias não existe nenhuma ligação entre o discurso e o ser, com isso rejeitando a
afirmação ontológica de Parmênides segundo a qual basta dizer algo sobre alguma coisa para
que sua existência seja confirmada. Para tanto, ele baseou seu tratado em três teses ou
argumentos, a saber: o primeiro diz que nada existe; o segundo afirma que, mesmo que
existisse, é incompreensível ao homem; e, por fim, que, mesmo que fosse compreensível a
alguém, não é comunicável a qualquer outro83.
Assim, sobre o Tratado do não existente, muito se escreveu, tanto no sentido de
interpretá-lo como no sentido de refutá-lo; contudo, apesar de sua repercussão ter sido imensa
no que se refere aos conceitos gorgianos, uma análise mais profunda agregará muito pouco ao
estudo em questão.
Logo, com o objetivo de destacar mais um aspecto relevante de sua paideía, considero
importante ressaltar que Górgias também atribuía à educação um papel importantíssimo no
que diz respeito à convivência social, pois acreditava que ela é um instrumento eficiente para
despertar nos indivíduos o entendimento e a tolerância recíproca, ou seja, a educação por
meio do esclarecimento permite que uma pessoa, antes de julgar qualquer ação de outro
indivíduo, ouça, pondere e escolha a decisão mais coerente, e, sempre que possível, opte pela
81
Extraído de Aristóteles, Retórica, 3, 18, 1419 b (cf. SOFISTAS, 2005, p. 144; GUTHRIE, op. cit., p. 183).
Dessa forma, Górgias amplia as perspectivas do princípio da identidade, como segue: “assim como se aplica a
um campo muito mais vasto o princípio da identidade entre pensar, dizer e ser, cujo uso legítimo se reduzia, para
Parménides, ao ser uno e imutável, correlato do pensamento puro” (SOFISTAS, op. cit, p. 116).
83
Para maiores esclarecimentos sobre o Tratado do não existente, ver id., ibid., p. 112-22, ou GUTHRIE, op.
cit., p. 181-5.
82
39
aceitação e compreensão dos atos alheios, principalmente por acreditar que existam diferenças
significativas no grau de entendimento e de juízos de valor entre as pessoas.
Isso fica muito claro em sua obra Elogio a Helena, na qual ele defende
incondicionalmente todas as atitudes de Helena, elaborando diversas hipóteses que venham
justificar suas escolhas equivocadas. Em uma análise mais acurada desse ideal gorgiano,
observa-se o direito da plena defesa e a valorização do estado de direito dos indivíduos.
1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana
Do mesmo modo que a paideía protagoriana, a paideía gorgiana tinha como principal
objetivo ensinar o seu discípulo a oratória, o poder da persuasão e a eloquência no discurso,
só que fundamentada nos ideais pedagógicos de Górgias, essencialmente baseados na retórica
como único elemento necessário para atingir sua meta educacional.
Outro aspecto interessante é que por meio de sua paideía não é possível ensinar as
pessoas a agir de maneira justa e virtuosa, já que para ele é impossível comunicar a realidade
aos outros. Em seu Tratado do não existente, ele resumidamente diz o seguinte: nada existe ao
mesmo tempo como realidade imutável e como objeto do conhecimento humano, e, mesmo
que houvesse esta realidade, não seria possível compreendê-la. Por fim, caso se pudesse, esse
conhecimento nunca poderia ser comunicado a outros84. Então, fica muito clara a falta de
perspectiva defendida por Górgias na questão da transmissão do conhecimento. Assim, graças
a seu niilismo, Górgias não acredita ser possível fazer um discurso verdadeiro nem atingir a
verdade por meio do lógos, porque para ele tudo é fruto de uma convenção social.
Ele também afirma que com base em um bom argumento é possível convencer as
pessoas, mesmo que seja por meio da opinião, que algo considerado errado é certo e que o
certo é errado. Já a paideía proposta por Protágoras, apesar de seu relativismo, fornece
subsídios para ensinar as pessoas a agir da melhor maneira possível, pela via da virtude e da
justiça. Logo, a paideía proposta por Protágoras defende a possibilidade do ensino da virtude,
mas o mesmo não ocorre com a paideía de Górgias; Guthrie85, entre outros comentadores,
discorda, todavia, dessa ideia e afirma o seguinte:
84
85
GUTHRIE, 1995, p. 181.
Id., ibid., p. 47.
40
Pode-se suspeitar que a recusa de Górgias era pouco sincera, pois seu ensino da
retórica visava a assegurar para os alunos a mesma espécie de sucesso na vida que
Protágoras prometia como mestre da areté política.
Portanto, com base nos conceitos de sua paideía e em sua negação de aceitar os valores
sociais preestabelecidos, Górgias formalmente não se propunha a ensinar a areté, mas seu
programa educacional conduzia seus alunos a atingir um objetivo muito semelhante aos da
paideía protagoriana.
Em suma, o caráter desafiador de Górgias, observado em todos os seus escritos, deixa
fragrante sua oposição aos costumes e tradições preestabelecidas. Outra particularidade é que
sua pedagogia está fundamentada na aplicação de diversas técnicas de retórica. Segundo ele, a
arte da persuasão supera qualquer outra, pois por meio do discurso é possível provocar no
ouvinte uma submissão espontânea, sem o uso da força86. Cabe ressaltar que essa
característica da pedagogia de Górgias é de grande relevância para a nova sociedade
democrática ateniense, principalmente para as pessoas que desejavam exercer funções de
liderança na pólis.
1.4.3 O diálogo Górgias
Da mesma forma que a leitura do diálogo Protágoras é a melhor forma de analisar a
proposta da paideía protagoriana, o diálogo Górgias é a fonte mais rica para a obtenção dos
conceitos da paideía gorgiana. Assim, vou tentar obter nas idéias de Górgias e dos seus
discípulos Pólo e Cálicles, as principais propostas pedagógicas contidas nesta obra platônica.
Cabe destacar que, como no diálogo anterior, somente serão abordados os preceitos
pertinentes ao estudo em questão.
Inicialmente, vou ressaltar alguns conceitos extraídos da conversa entre Sócrates e
Górgias, que antecedem a narrativa do diálogo propriamente dito. Górgias acredita que a
retórica é uma arte ou tékhne, adquirida por meio do empirismo, e não do conhecimento. Essa
arte retórica, para Sócrates, não é verdadeiramente uma arte, pois, para que algo seja
considerado uma arte, tem de conter algum tipo de conhecimento intrínseco ou
especialização, fruto de um aprendizado. Ele cita como exemplo, a astronomia, que depende
86
Id., ibid., p. 254.
41
integralmente do conhecimento dos cursos dos astros e de suas inter-relações87. E, em sua
opinião, a retórica não atende esses pré-requisitos.
Posteriormente, Sócrates pergunta a Górgias qual é o tipo de discurso proposto pela
retórica, a que ele responde que o grande objetivo da retórica é a persuasão, e sua maior
aplicabilidade é nas assembleias e nos júris populares; bem como na política e em qualquer
tema pertinente à vida humana. Já que o objeto de que se ocupa a retórica são os assuntos
humanos, Sócrates afirma que sob essa perspectiva a retórica deveria preocupar-se com as
questões morais, ou seja, com os conceitos de justiça e de injustiça. Górgias, contudo,
responde que as questões morais são indiferentes para a retórica. Jaeger 88 reforça esta ideia de
Górgias, ao afirmar que, para a retórica, a moralidade é uma questão exclusivamente
convencional. Górgias diz, até mesmo, que o bom ou o mau uso da retórica é de única
responsabilidade de quem a utiliza. E ele ainda conclui dizendo que a retórica por meio da
arte de persuasão é o maior bem que alguém pode ter, porque concede a quem a possui um
grande poder, ou dynasthai89.
Por considerar seu modelo pedagógico como a arte da persuasão, Górgias acreditava
que os sofistas, ao utilizá-la, poderiam, por meio do convencimento, conquistar as multidões,
ou seja, por meio da retórica eles exerceriam seu poder e chegariam pela sedução das palavras
ao que os tiranos só conseguem com o uso da força90. Apesar do aspecto dual observado no
processo de convencimento das pessoas, Sócrates não considera o uso da persuasão como
algo negativo, mas sim a aplicação que a retórica gorgiana faz dela, isto é, ela usa a persuasão
de forma indevida, pois não utiliza o conhecimento como instrumento para convencer os
outros nem procura obter a verdade, somente visa atingir o interesse do orador. Além disso, a
má persuasão não está apoiada no conhecimento, e sim na crença.
Embora toda essa controvérsia ponha em questão sua paideía, Górgias91 ainda alega
que ela tem uma grande versatilidade, principalmente por permitir ao orador convencer sua
plateia, sem possuir um conhecimento pleno do tema a ser abordado. O que,
consequentemente, promove uma falsa noção de sabedoria, em detrimento da ignorância dos
outros. Górgias também reforça a ideia de que o mestre, ao ensinar a retórica, não tem
nenhuma responsabilidade sob as atitudes de seus discípulos, e afirma que, se algum deles
87
PLATÃO. Górgias, 448a. In: PLATÃO, 1973, v. III.
JAEGER, 1995, p. 652.
89
PLATÃO. Górgias, 452d.
90
PLATÃO. Górgias, 466b. In: PLATÃO, 1973, v. III.
91
Id., ibid., 455d-e.
88
42
fizer mau uso de suas técnicas deve ser punido de forma exemplar. Guthrie92 diz que “o
retórico, pelo que parece, interessa-se inteiramente pelos meios, e não pelos fins, e seu ensino
tem diferentes efeitos nos alunos, de acordo com o seu caráter”.
Assim, termina a participação de Górgias no diálogo, e o foco passa a ser seu discípulo
Pólo, que retoma o tema sobre se a retórica é uma empeiria ou experiência, em vez de ser uma
arte, ou tékhne. Sócrates defende a ideia de que a retórica não pode ser considerada uma arte,
pois falta um objeto do conhecimento associado a ela. Sócrates também traça um paralelo
entre o que ele chama de imagens enganosas que são fruto da experiência e que apenas visam
a agradar o corpo do homem, e o que ele considera como a verdadeira arte, que está baseada
no conhecimento e é boa para a alma. Desse modo a retórica é para alma humana o que é a
culinária para o corpo, isto é, como ambas fazem parte das imagens enganosas que somente
servem para agradar o corpo, deduz-se que a retórica não é uma verdadeira tékhne. Segundo
Jaeger93,
as características essenciais do conceito de tékhne são: primeira, é um saber baseado no
conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das
suas atividades sempre que tem consciência das razões, segundo as quais procede;
finalmente, tem por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa. Nenhuma
dessas notas distintivas existe na retórica política.
Já na última parte do diálogo, que se desenvolve com Cálicles, outro de seus
discípulos, o principal foco incide sobre a diferença observada entre a nómos, percebida como
lei artificial para proteger os mais fracos, e a phýsis, caracterizada como lei natural que
privilegia os mais fortes94, concluindo sua fala com uma teoria hedonista que busca justificar
qualquer tipo de ação, seja ela boa ou má, quando seu objetivo é suprir os apetites e os
prazeres humanos95. Os conceitos abordados nesta parte da obra, porém, pouco contribuem no
sentido de fornecer informações que acrescentem algum conteúdo significativo para a paideía
gorgiana.
Assim, sua paideía tem bases pedagógicas fundamentadas na polymátheia, ou seja,
num conhecimento enciclopédico utilizado como meio de convencimento nos discursos
argumentativos; bem como na oratória e na retórica como um poderoso instrumento de
persuasão96. Este processo educacional, por ele adotado, não se preocupa com os métodos
92
GUTHRIE, 1995, p. 171-2.
JAEGER, 1995, p. 655.
94
PLATÃO. Górgias, 486c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III.
95
Id., ibid., 491e-492c.
96
“Dize-me, Górgias: é verdade o que afirmou o nosso amigo Cálicles, que te comprometes a responder seja o
que for que te perguntarem? Górgias. É verdade, Querefonte; foi isso mesmo que declarei há pouco, e posso
assegurar-te que há muitos anos ninguém me apresentou uma questão nova” (id., ibid., 477c).
93
43
pedagógicos até então empregados para a formação do indivíduo, focando todos os seus
esforços em propiciar aos jovens e adultos a possibilidade de exercerem cargos de destaque
no Estado ateniense. Em suma, para Górgias a paideía sofista, por meio do domínio dos
recursos da linguagem, torna possível ao homem a obtenção de um saber universal. Mesmo
porque, devido a seu relativismo e a seu ceticismo, os sofistas não acreditavam na
possibilidade de o sujeito ter acesso ao real, e, para eles, a única forma de atingir-se a
universalidade e a objetividade seria por meio do lógos.
Portanto, a paideía gorgiana está sedimentada no discurso, ou no lógos, em busca do
poder da persuasão, mas, quando utilizada de maneira inadequada, transforma-se em algo
potencialmente perigoso. Até mesmo, compartilho o pensamento de Jaeger97 quando diz o
seguinte:
Este esboço de uma doutrina da sociedade baseada na teoria da luta pela sobrevivência
deixa à educação um papel inferior. Sócrates opunha a filosofia da educação à filosofia
da força. Era a paideía que era para ele o critério da felicidade humana, contida na
kalokagathía (bem agir) do justo.
Logo, a proposta pedagógica de Górgias, com o uso da retórica como um instrumento de
persuasão, sob a perspectiva de um embate, como uma espécie de jogo de poder, em que haverá
vencedores e perdedores, não corresponde ao papel que a educação deve exercer na sociedade,
pois os programas educacionais, quando aplicados de forma adequada, só visam atingir um único
objetivo, ou seja, a formação consciente do espírito, em que todos os envolvidos saiam vitoriosos.
1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias
A análise dos ideais de ambos os sofistas auxiliou-nos a entender com maior grau de
profundidade as características particulares de seus métodos pedagógicos; bem como
possibilitou-nos identificar as similaridades entre suas propostas educacionais e os aspectos
determinantes de seus conceitos de sabedoria. Esses fatores constituíram as bases do
programa educacional dos sofistas e estão diretamente associados aos efeitos exercidos por
eles nos indivíduos, tais como o poder de mudar as opiniões das pessoas por meio do estímulo
97
JAEGER, 1995, p. 668.
44
de suas paixões e de seus desejos, provocando transformações significativas em seus juízos de
valor.
Embora seja inquestionável a existência de várias diferenças em seus modelos
pedagógicos, alguns aspectos demonstram certa semelhança entre ambos; enquanto o método
protagoriano acredita que nossa alma, ao receber influências do meio, exteriores a ela, pode
seguir tanto o caminho do bem quanto o caminho do mal, e que o papel do verdadeiro mestre
é empregar técnicas que resultem em mudanças relevantes nessa alma, o método gorgiano
nem se importa com esta característica, pois crê que a alma vive sob o jugo da opinião, e a
função do verdadeiro mestre é alterar essa tendência, por meio do discurso persuasivo. Logo,
nota-se que o elo entre seus modelos pedagógicos está relacionado à perspectiva, que ambos
têm, de transformar o homem pela manipulação de suas opiniões e paixões.
Portanto, a paideía desses dois grandes representantes da sofística está fundamentada
na possibilidade de prover a seus discípulos uma grande diversidade de informações, para que
eles, de posse desses conhecimentos, possam utilizá-los como instrumento de persuasão, ou
seja, quanto maior a quantidade de conhecimento geral, maior é a probabilidade de fornecer
subsídios para fortalecer e diversificar seus argumentos, e, consequentemente, ampliar seu
poder de convencimento.
Outro ponto em comum na paideía de ambos é a questão da tolerância entre os
indivíduos, fortalecendo diversos aspectos da convivência social. Os dois priorizavam a
aceitação das diferenças individuais, por meio do esclarecimento e da empatia, ou seja, tanto
Protágoras como Górgias valorizavam a prudência, que, na visão protagoriana, está associada
ao respeito pela diversidade religiosa e cultural, e, na gorgiana, é observada no direito à plena
defesa, não permitindo o julgamento e a punição sem que se analisem todos os aspectos de
uma determinada situação.
Por fim, também cabe ressaltar que, segundo Sexto Empírico 98, havia outro ponto em
comum entre seus programas educacionais: a impossibilidade da existência de um critério
absoluto para atingir a verdade. Na perspectiva do pensamento protagoriano, este fato é
devido a seu relativismo, ou seja, o homem como medida de todas as coisas. Já segundo o
ponto de vista gorgiano, uma vez que não é possível a obtenção da identidade entre o dizer, o
pensar e o ser, o ato de pensar algo não garante sua verdade, e isto não permite mais que seja
utilizado como um critério para assegurar se esse algo é falso ou verdadeiro.
98
SOFISTAS, 2005, p. 78-80 e p. 112-8.
45
O capítulo apresentou as principais propostas da paideía dos sofistas, abordando suas
características e particularidades. O próximo capítulo trará uma noção das ideias mais
importantes de Sócrates e descreverá as bases que fundamentam sua paideía.
46
CAPÍTULO 2
Sócrates e seu ideal pedagógico
O capítulo visa apresentar as principais características da paideía socrática, com base
na análise dos elementos mais significativos de seus ideais pedagógicos. Nele serão abordados
os princípios fundamentais de sua filosofia, em particular, os temas concernentes à busca da
virtude, por meio de seus conceitos educacionais e de moralidade. Por fim, serão descritos os
aspectos de maior relevância que compõem sua paideía.
2.1 O Sócrates histórico
2.1.1 A moral socrática
Os filósofos, tanto quanto os sofistas, foram fortemente influenciados pelo movimento
humanista que floresceu na Grécia no início do século V a.C. Essa valorização das coisas
humanas, em detrimento das cosmológicas, provocou mudanças significativas no objeto de
estudo de grande parte dos pensadores atenienses. Entre os filósofos, Sócrates99 foi
reconhecidamente seu pioneiro e maior representante, pois empregou todo o seu esforço
filosófico no sentido de tentar compreender os principais agentes motivadores das ações
humanas. Consequentemente, seus estudos estavam focados nas questões éticas e morais,
priorizando os atos regidos pela razão.
Para atingir tal objetivo, Sócrates mergulhou no aspecto mais íntimo do ser e procurou
decifrar o que ele julga ser o maior bem do homem, que é sua própria alma. Tanto que nos
99
“Viram-no ou ouviram-no alguma vez fazer ou dizer algo contrário à moral, ou à religião? Abstendo-se, ao
revés da maioria dos outros filósofos, de dissertar sobre a natureza do universo, de indagar a origem espontânea
do que os sofistas chamam ‘cosmos’ e a que leis fatais obedecem os fenômenos celestes, ia a ponto de
demonstrar a loucura dos que trilham semelhantes especulações. Antes de tudo examinava se eles presumiam ter
aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos para se ocuparem de tais assuntos, ou se achavam
razoável pôr de parte o que está ao alcance do homem para intrometer-se no que aos deuses pertence”
(XENOFONTE, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, I, 1, 11. Tradução, introdução e notas de A. E. Pinheiro.
Coimbra: Universidade de Coimbra, Col. Autores Gregos e Latinos, Série Textos. Disponível em:
<https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/16/3/ memoraveis.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2012.).
47
diálogos socráticos ele faz inúmeras referências ao cuidado que o homem deve ter com ela100,
de tal modo que, quando sua alma é direcionada para o conhecimento do bem, leva-o à
aquisição da virtude, e, quando se dá o contrário, conduz-nos ao vício. Esse modo de pensar
concebeu o que hoje conhecemos como o paradoxo moral socrático, ou seja, o conhecimento
é a causa da virtude. Portanto, basta o homem conhecer a justiça para ser justo, e o mesmo
ocorre com as demais virtudes.
Dessa forma, Sócrates acredita que ninguém erra de forma deliberada, mas sim pela
falta de conhecimento, condição que o leva a ignorar a melhor maneira de distinguir o bem do
mal. Tal modo de pensar teve como consequência o vínculo de suas ideias com o
intelectualismo, tema que será posteriormente abordado.
Assim, para Sócrates, o grande objetivo a ser alcançado é a busca do conhecimento
interior, e o caminho para tal está no processo de reconhecer e de descobrir a melhor forma de
fazê-lo. Logo, sua teoria moral está fundamentada na possibilidade de a alma maximizar suas
virtudes e de minimizar os vícios; bem como, na dicotomia observada entre as características
que particularizam o corpo, ou seja, tendência do homem procurar satisfazer os prazeres
materiais, dos da alma, que tem como principal atribuição controlar e nortear nossas ações
sem render-se aos desejos do corpo101.
Essa dualidade observada entre a pureza da alma e sua possível corrupção, fruto das
tentações advindas do corpo, influenciou diversos segmentos das futuras sociedades,
especialmente em seus aspectos religiosos, e foi responsável pelo florescer de várias linhas
doutrinárias que perduram até a nossa contemporaneidade. Outro aspecto importante da moral
socrática é a capacidade de atingir a essência das coisas, partindo da análise de suas
características particulares. Este nível de abstração atribuiu a ela um caráter universalista e a
desvinculou totalmente da influência das afecções humanas.
Embora no diálogo Protágoras ele defenda veementemente esse tipo de raciocínio, no
diálogo Górgias há uma alteração em seus conceitos, os quais passam a considerar a
possibilidade de o homem submeter-se ao jugo das opiniões, fato que certamente o conduziria
ao vício 102. No entanto, cabe destacar que essa mudança não ocorreu na essência do paradoxo
100
Ver PLATÃO, Apologia de Sócrates (29c-30b), Protágoras (310b-314c), entre outras obras de juventude
(PLATÃO. Apologia, Critão, Laquete, Cármides, Líside. Tradução de C. A. Nunes. Belém: Universidade
Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. I; idem, v. III).
101
“Outra coisa não faço, senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do
corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que das riquezas não vem a virtude
para os homens, mas da virtude vêm as riquezas e todos os outros bens, privados e públicos” (PLATÃO, Apologia
de Sócrates, 30b. In: PLATÃO, 1973, v. I).
102
Para maiores detalhes sobre este aspecto da moral socrática, ver na obra platônica Górgias o diálogo entre
48
moral socrático, e sim em sua aceitação de que o conhecimento, sob esse ponto de vista, não
pode ser vinculado a uma característica comum a todos os seres. Logo, essas duas
perspectivas são fundamentais para entender a visão socrática de que a alma passa a ser dual,
na qual existe uma parte racional, que procura o bem, e outra irracional, fortemente
influenciada pelas afecções e pelos prazeres do corpo. Então vamos tentar entender como essa
transformação do paradoxo ocorre ao longo dos diálogos socráticos.
No Protágoras103, o paradoxo moral socrático está fundamentado na negação da
akrasia, ou seja, não é admissível alguém conhecer o bem e, de forma deliberada, cometer
uma ação má. Isto significa que a alma por meio do contato com o bem não está mais sujeita
ao jugo das vontades e dos desejos do corpo. Esse controle sobre as influências das afecções e
dos apetites é uma característica encontrada em todos os indivíduos, resultando na crença de
que existe bondade em todas as almas e que elas só desejam o bem. Portanto, segundo
Sócrates, se erram, é devido as suas concepções equivocadas sobre o que é o verdadeiro bem.
Outro conceito capital para compreender a moral socrática é sua teoria hedonista, a
qual se propõe a analisar o efeito das ações agradáveis e das desagradáveis na vida do ser. Ela
associa o prazer às coisas agradáveis, ao afirmar que elas são boas por gerarem consequências
boas, e que as desagradáveis são más por gerarem consequências más104; essa questão não é,
contudo, tão trivial quanto se apresenta, isto é, ao fazer uma análise mais criteriosa dos
aspectos da moral socrática, podemos observar a grande importância que ele atribui ao
conhecimento ou epistéme, que essencialmente descarta a possibilidade de alguém, após
conhecer o bem, ser capaz de cometer uma ação insensata, unicamente com o objetivo de
obter o prazer.
Dessa forma, Sócrates desvincula totalmente o conhecimento do bem, da busca
incondicional do prazer, já que ela não está preocupada com as consequências boas ou más
dessa ação. Segundo ele, quem afirma ter se deixado levar pelo prazer, para justificar uma
ação inadequada, está completamente equivocado, pois só a ignorância do bem pode levar
alguém a cometer uma ação má. Logo, quem se deixa levar pelas afecções ou pelos apetites o
faz movido por uma falsa opinião, e nunca pelo conhecimento105, ratificando sua posição de
negar a possibilidade da akrasia, veementemente defendida no Protágoras.
Sócrates e Cálicles.
103
Conceitos presentes em PLATÃO. Protágoras, 351a-358c. In: PLATÃO, 1973, v. III.
104
Id., ibid., 351a-b.
105
Id., ibid., 352a-353e.
49
Também vale lembrar que para Sócrates a meta da alma do homem é atingir o
conhecimento do bem, o que consequentemente a conduzirá à obtenção da felicidade. Ora, se
o prazer traz felicidade, é de se esperar que sua busca não esteja relacionada a algo ruim;
Sócrates, contudo, faz uma ressalva a esses argumentos favoráveis à procura do prazer, ao
afirmar que ela perde seu caráter positivo no momento em que ultrapassa um limite razoável,
isto é, a medida106.
Desse modo, Sócrates em sua teoria hedonista defende a ideia de que o prazer não é
um mal em si, pois sua procura somente pode ser considerada algo ruim no momento em que
visa a obtenção de uma satisfação imediata, ou quando ela provoca algum efeito negativo em
sua vida. Já nos casos em que essa busca do prazer está associada a um bem-estar permanente,
pode e deve ser considerada um bem. Isto significa que para Sócrates é impossível alguém
cometer ações más apenas na busca do prazer, já que o prazer pode ser um bem. Logo, as
pessoas só são influenciadas pelos desejos do corpo ou pelas afecções nas situações em que
querem atingir o prazer sem ter o real conhecimento da medida ou do verdadeiro bem107.
Em suma, no diálogo Protágoras, o pensamento socrático está fundamentado na
efetiva busca da essência das coisas, e esse nível de abstração conduziu Sócrates a crer que a
alma estava livre do vício e que todos os males dos seres tinham como origem as influências
negativas advindas do corpo. Já no diálogo Górgias, essa visão da moral socrática baseada na
diferença entre o corpo, associado às coisas ruins, e a alma, associada às coisas boas, é
analisada sob uma nova perspectiva, a qual entende que a alma poderia ser influenciada por
fatores externos e que seria suscetível a viver tanto na virtude quanto no vício. Dessa forma,
Sócrates passa a admitir que nossa alma, além de ser composta por um lado racional, que
sempre procura a aquisição do bem, também tem um lado irracional movido pelas afecções,
que busca satisfazer nossos desejos e apetites. Neste sentido, a abordagem deste tema no
diálogo é feita por meio de uma análise da retórica, entendida como um instrumento poderoso
de convencimento e de persuasão das almas humanas, baseada em argumentos fundamentados
em suas crenças e opiniões, isto é, uma atividade essencialmente sofísta108.
106
PLATÃO. Protágoras, 358b. In: PLATÃO, 1973, v. III.
“[...] quem erra na escolha dos prazeres e dos sofrimentos, isto é, dos bens e dos males, erra por falta de
conhecimento, não de conhecimento em geral, mas daquele que admitistes como sendo o conhecimento da
medida. Toda ação errada por falta de conhecimento, como bem o sabeis, decorre da ignorância, de forma que
ser vencido pelo prazer é a maior ignorância” (id., ibid., 354c-355e).
108
A retórica sofística, sedimentada na empeiria, ou seja, vista de forma negativa como prática ou rotina,
futuramente é recuperada por Platão, em suas obras de maturidade, em especial, o Fedro, transformando-se na
retórica filosófica, fundamentada na epistéme.
107
50
Para tanto, Górgias define a retórica como uma arte, ou tékhne, cujo objeto é o corpo e
a alma dos homens, e seu fim é a obtenção da saúde e da beleza. Sócrates discorda, contudo,
da visão gorgiana e afirma que a retórica sob a ótica dos sofistas não passa de uma empeiria,
ou seja, uma adulação, que tem como único objetivo proporcionar prazer ao corpo e a alma,
sem levar em consideração seus possíveis efeitos negativos. Assim, Sócrates divide a tékhne,
ou arte, em medicina e ginástica, quando visa o bem do corpo, e em justiça e legislação,
quando associada ao bem da alma. Já a arte em sua versão corrompida, empregada para
proporcionar apenas o prazer, independentemente dos efeitos bons ou ruins, é denominada
empeiria, ou adulação, que é a culinária e a cosmética, quando vinculada ao corpo, e retórica
e sofística, quando direcionada a cativar o lado irracional da alma 109.
E esse é o ponto relevante a ser tratado, pois agora para Sócrates a alma possui um
lado racional que procura atingir o bem e um lado irracional que deseja obter o prazer, sem
questionar se o agente motivador dessa ação é algo justo ou injusto, ou seja, enquanto no
Protágoras ele associa o prazer ao bem, no Górgias ele admite a possibilidade de os prazeres
não serem bons nem ruins, dependendo apenas dos fatores que motivaram suas ações para a
obtenção desses prazeres110. Isto significa, que este novo conceito moral socrático, mais
complexo, admite a possibilidade da existência de prazeres ruins, radicalmente antagônicos às
almas que desejam adquirir a sabedoria. Portanto, para que nossas atitudes possam ser
consideradas virtuosas, devem ser norteadas pela justiça, que somente é obtida pela arte,
mediada pela parte racional de nossa alma, e não pela adulação, movida simplesmente pelos
nossos apetites.
Essa nova característica do pensamento socrático nos é revelada no diálogo com Pólo,
sobre o hedonismo e sua relação com a justiça, e, especialmente, na conversa com Cálicles e
seu hedonismo exacerbado. Em ambos os casos, Sócrates reitera que a verdadeira felicidade
somente pode ser atingida ao obter-se o real conhecimento do bem e na procura dos prazeres
saudáveis, que consequentemente nos conduzirão à virtude.
Dessa maneira, o processo do autoconhecimento exerce um papel fundamental na
teoria moral socrática, que, por meio da medida, isto é, da prática do saber racional existente
no interior de toda alma humana, nos fornecerá subsídios suficientes para decidir se as ações
109
Para maiores detalhes sobre este tema, ver o diálogo entre Sócrates e Pólo (cf. PLATÃO. Górgias, 463a465e. In: PLATÃO, 1973, v. III) e o diálogo entre Sócrates e Cálicles (cf. id., ibid., 501a-502e).
110
Sócrates afirma que o desejo enquanto falta nos provoca dor e o mesmo desejo, após satisfeito, nos traz
prazer, de tal modo que podemos concluir que dor e prazer podem ocorrer ao mesmo tempo. Logo, nem toda dor
produz infelicidade nem todo prazer proporciona felicidade (cf. id., ibid., 496c a 497a).
51
que tomamos são justas ou injustas. Neste sentido, para Sócrates torna-se fragrante a grande
importância do ensinamento contido na célebre frase: “conhece-te a ti mesmo”.
2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates
O oráculo do Apolo de Delfos exerceu um papel fundamental no pensamento socrático
e foi um verdadeiro divisor de águas no rumo dos seus ideais filosóficos. Este fato, analisado
em conjunto com algumas de suas especulações filosóficas, que ocorreram em sua juventude,
pode explicar algumas controvérsias sobre suas ideias e também justifica algumas
interpretações equivocadas sobre o caráter de seus ensinamentos. Logo, para entender essa
influência e as reais repercussões em sua vida, já que ele não deixou nada escrito, coube-nos
obter essas informações com base nas declarações 111 de Platão, Xenofonte, Aristófanes e
Aristóteles; porém, neste estudo abordarei apenas os testemunhos dos três primeiros
pensadores, que viveram e conviveram com ele, fazendo uma compilação de seus principais
escritos e ideias.
Para tanto, iniciaremos essa análise sob a ótica da imagem pejorativa que Aristófanes
fez de Sócrates em suas obras, que corresponde ao período anterior a ele receber do oráculo
de Delfos o que ele mesmo denominou como sua “tarefa divina”112.
Assim, como todo grande pensador de sua época, Sócrates sofreu influências dos
filósofos da natureza e de alguns segmentos do movimento sofista. Ao longo de seu
amadurecimento filosófico, ele percorreu diversas vertentes dessas doutrinas, e após algum
tempo nessa jornada percebeu que sua grande vocação estava no despertar do conhecimento
de si mesmo; se considerarmos, contudo, alguns aspectos dos ideais do jovem Sócrates, é
111
GUTHRIE, 1995, p. 8.
“Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver
alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda
ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais
importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas,
fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua
alma?’ E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar,
examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por
estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou
velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são
as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha
obediência ao deus” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29c-e. In: PLATÃO, 1973, v. I).
112
52
possível observar algumas semelhanças com a linha de pensamento dos filósofos da natureza
e dos sofistas. Só assim, sob esta perspectiva, conseguimos entender algumas das acusações
que Aristófanes fez a ele em suas comédias. Guthrie113 afirma que Aristófanes em suas obras
visou minar as bases desse movimento humanista por meio de ironias e de sátiras, focando
principalmente a desmoralização da imagem de Sócrates, que era um personagem muito
conhecido em Atenas.
Por outro lado, Jaeger afirma que Aristófanes foi radicalmente contra as propostas
renovadoras desses novos intelectuais que surgiram em Atenas, especialmente as de cunho
educacional. Em Os comilões, ele destaca a dicotomia existente entre os valores apregoados
pela pedagogia tradicional e a pedagogia iluminista114. Já na obra Os aduladores, critica
diretamente os sofistas, os quais ele qualifica como parasitas que permaneciam ao redor das
residências dos nobres, visando obter vantagens financeiras. Dessa forma, suas comédias
continham essencialmente uma forte crítica cultural e repudiavam essa nova categoria de
educadores, que, em sua opinião, eram excêntricos e mal-educados. Mas o aspecto relevante
nessa questão é que Sócrates, sendo ateniense e simpatizante dessas novas tendências, em
dado momento passou a ser um dos personagens de seus poemas satíricos115. Em sua obra As
nuvens, ele descreve Sócrates como um iluminista afastado do povo e um cientificista ateu,
com foco apenas nos mistérios cosmológicos, enquanto seus discípulos ficavam perscrutando
as coisas do mundo subterrâneo. Assim, Aristófanes torna claro seu apego às tradições e
demonstra seu caráter conservador, totalmente avesso às mudanças preconizadas pelos
filósofos da natureza e pelos sofistas. Ele também considerava o fruto dos seus ensinamentos
como um agente deformador dos valores e dos costumes. Por fim, em sua obra As rãs, ele
pela comédia defende o valor da tragédia em detrimento dos novos modelos educacionais,
fortemente caracterizados pelo iluminismo racionalista. Conforme o próprio Jaeger:
Sócrates é também, para o poeta, o protótipo de um novo espírito, que matava o
tempo com sofísticas sutilezas, abstrusas e minuciosas, desprezando os valores
insubstituíveis da música e da tragédia. Com a segura intuição do homem que vê em
perigo os valores aos quais deve toda a substância da sua vida e a sua formação mais
elevada, ataca vigorosamente uma educação cuja maior força é o intelecto116.
113
GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy, v. IV (Socrates). Cambridge: Cambridge University
Press, 1978, p. 13.
114
Aristófanes narra a história do filho de um camponês que foi enviado para a cidade para receber uma
formação sob os novos moldes, enquanto seu irmão ficou junto a seu pai com o objetivo de ser educado pelo
método tradicional. No entanto, quando o jovem retornou da cidade, grande foi a decepção de seu pai, pois ele
voltou moralmente corrompido, e não servia para fazer nenhuma das tarefas necessárias no campo, só se
preocupando com as questões políticas. Ver JAEGER, 1995, p. 418.
115
Para maiores detalhes, ver GUTHRIE, 1978, p. 39-47.
116
JAEGER, 1995, p. 431.
53
Portanto, com base nessas informações torna-se razoável inferir que Sócrates foi uma
vítima circunstancial da fase que atravessava a sociedade ateniense, fruto de um momento de
renovação dos valores sociais e culturais. Logo, o grande agente motivador dos ataques de
Aristófanes foi esse novo movimento intelectual, que feria profundamente as bases da cultura
tradicional grega. De tal modo, que utilizou sua criatividade com o objetivo de denegrir a
imagem de Sócrates perante a sociedade ateniense. Mas o que nos cabe compreender é por
que Aristófanes o escolheu para tal ataque? Jaeger117 atribui tal fato a três razões. A primeira
estava associada às características físicas de Sócrates, que, segundo ele, tinha os olhos
saltados, o nariz achatado e os lábios grossos, o que facilitaria a máscara cômica concebida
por Aristófanes. A segunda, por ser uma pessoa muito conhecida na pólis, o que favorecia a
associação do personagem da comédia com alguém da vida real, já que a maioria dos
filósofos da natureza e dos sofistas não residia em Atenas. E, por fim, a terceira, por ser um
intelectual que, segundo a opinião de Aristófanes, representava as novas tendências violadoras
das tradições e dos bons costumes.
O solo, contudo, em que Aristófanes sedimentou as bases de suas críticas não era
sólido, pois estas foram fundamentadas em uma fase muito imatura da vida filosófica de
Sócrates, a qual foi influenciada pelas ideias dos filósofos da natureza e dos sofistas. Mesmo
porque, se não todos, a grande maioria dos intelectuais daquela época também o fora. Até
mesmo, em um dos diálogos socráticos118, ele confessa que, apesar de na sua juventude ter
tentado aprofundar-se nos estudos dos fenômenos naturais e cosmológicos, descobriu que não
possuía a menor aptidão para fazer considerações sobre esses temas. Por outro lado, após
algum tempo de estudo dos fatores externos ao homem, trilhou um caminho inverso e passou
a investigar as questões humanas, em especial, os aspectos internos do ser.
Nesse sentido, o oráculo de Delfos foi um grande marco no pensamento socrático e
exerceu um papel fundamental no novo rumo que tomou sua filosofia. O evento que originou
117
Para maiores detalhes, ver id., ibid., p. 433.
“Em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a que dão o nome de ‘exame da
natureza’: parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência,
por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como
alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o
sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá
as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam, por sua vez, a memória e a opinião, ao passo que
destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira pela qual
tudo isso se corrompe, e, também, os fenômenos que se passam na abóbada celeste e na terra. E acabei por me
convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptidão notável!” (PLATÃO. Fédon, 19a-c. In:
PLATÃO. Fedon, 2007. Disponível em: <http://www.4shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Fedon.html>. Acesso
em: 08 abr. 2010.).
118
54
essa grande mudança foi a pergunta que Querefonte fez ao oráculo de Delfos sobre se havia
alguém em Atenas mais sábio do que Sócrates. E quando o oráculo respondeu que não,
Sócrates ficou extremamente intrigado e não conseguiu descansar enquanto não descobriu o
real significado da afirmação oracular. Mesmo porque ele estava ciente de que não havia a
menor possibilidade de a divindade estar enganada e tinha plena consciência de suas
limitações pessoais. Assim, após muito meditar, Sócrates concluiu que essa afirmação
somente estaria fundamentada na máxima de que sua sabedoria era a de reconhecer que nada
sabia, ou seja, assumir sua própria ignorância119.
Esse ponto foi imprescindível para a construção das bases da sua paideía, pois, a partir
desse momento, Sócrates passou a interrogar os cidadãos atenienses, procurando identificar
alguma sabedoria entre aqueles que diziam possuir algum tipo de autoridade sobre um
determinado ramo de atividade, seja ela política, literária ou artesanal. Grande foi sua surpresa
ao perceber que, com exceção dos artesãos, que tinham apenas um conhecimento técnico
limitado a sua arte, os demais eram mais ignorantes do que ele, pois, contrariamente a sua
postura, não assumiam desconhecer a verdade das coisas que intitulavam saber. Graças a essa
missão divina120, ele concebeu um modelo pedagógico caracterizado por uma série de
questionamentos que conduziam o interlocutor a rever seus conceitos, normalmente
fundamentados em pseudoverdades, levando-o a tomar consciência da própria ignorância.
Portanto, a experiência adquirida após o evento ocorrido com o oráculo do Apolo de
Delfos determinou uma nova tendência para a filosofia socrática, que passou a priorizar as
coisas interiores do ser, especialmente sua alma, estimulando por meio de sua paideía o
autoconhecimento e a autoconsciência. Dessa forma, seu principal objetivo é despertar no
interlocutor o conhecimento de si mesmo, ou seja, incentivar a alma dos homens a atingir a
virtude por meio da consciência plena de seus atos e do domínio de seus impulsos.
119
Para maiores detalhes sobre essas afirmações, ver PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: PLATÃO, 1973, v. I;
XENOFONTE. Apologia de Sócrates. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1972 (Coleção Os
Pensadores, v. II, “Sócrates”).
120
“Enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar
ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um
ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de
adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de
melhorar quanto mais a tua alma?’” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixandoo, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a
adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a
quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais
próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29e30a. In: PLATÃO, 1973, v. I).
55
2.2 Principais ideias
2.2.1 O intelectualismo socrático
Esse movimento que revolucionou a forma de pensar a cultura, a religião e a educação
grega veio ao longo dos anos descrevendo uma trajetória lenta, mas contínua, até atingir seu
ápice no período clássico (século V a.C.). Estas mudanças foram de tamanha abrangência, que
afetaram diversas áreas do conhecimento; a transformação de maior relevância ocorreu no
processo de formação política de seu povo, que alterou profundamente vários conceitos
preestabelecidos na sociedade grega. Entre eles, e o de maior repercussão, foi a possibilidade
de transformar qualquer membro da comunidade em um cidadão, com efetiva participação nas
decisões da pólis. Esse novo modelo pedagógico surgiu como consequência natural de uma
tendência humanista, que floresceu no espírito dos intelectuais desse período. E Sócrates não
foi uma exceção a essa regra, pois concentrou todos os seus esforços no sentido de
compreender as questões de caráter espiritual dos seres, especialmente as que tratavam dos
fatores éticos e morais. Logo, seu objetivo era tentar entender os principais agentes
motivadores das ações humanas.
Nesse aspecto, Sócrates priorizou o uso da razão como um instrumento pedagógico em
detrimento dos velhos modelos educacionais 121, tradicionalmente utilizados pelos educadores
atenienses. Esse método estava fundamentado em um conjunto de modelos teóricos, baseados
em uma forma de pensar sistemática caracterizada essencialmente pela valorização do
intelecto122. Assim, com base nesses ideais pedagógicos, Aristóteles123 declarou que devemos
creditar a Sócrates uma mudança na forma do pensamento dos gregos, por meio de uma
metodologia fundamentada nos argumentos indutivos e nas definições gerais 124.
No entanto, apesar de os argumentos indutivos serem um instrumento muito eficiente
para a evolução dos processos científicos, o uso desses argumentos pelo método socrático a
princípio causa-nos certa estranheza. Mesmo porque o objeto de estudo de Sócrates estava
121
122
Conforme já abordado no item 1.1.2, “A areté e a educação”, do Capítulo 1.
JAEGER, 1995, p. 513.
123
“There are two things which may justly be credited to Socrates, inductive arguments and general definition”
(GUTHRIE, 1978, p. 106, e também JAEGER, op. cit., p. 505).
124
Guthrie afirma que Aristóteles tende a particularizar alguns fatos, ao adequá-los a sua forma de pensar. Neste
caso em especial identificou traços puramente lógicos no pensamento socrático, o que Zeller discorda, pois
segundo ele, Sócrates procurava as definições gerais, através de um processo de depuração dialética,
fundamentalmente baseada em preceitos morais e éticos (GUTHRIE, 1978, p. 107).
56
muito distante das ciências naturais, e o foco de suas especulações era a alma do homem, mais
especificamente, suas questões morais. Então, por que Aristóteles afirmou que Sócrates
utilizou os argumentos indutivos em sua metodologia? Segundo Guthrie 125, a afirmação
aristotélica foi baseada no fato de que os argumentos indutivos são como uma ponte que serve
para passar das características particulares, de um determinado objeto de pesquisa, para suas
características universais, um dos grandes objetivos do programa educacional socrático.
Dessa forma, Sócrates concentrou-se na busca da essência das coisas, o que Jaeger
considerou como os conceitos universais e Guthrie, como as definições gerais. Se pusermos,
contudo, à parte essa questão da nomenclatura, ele efetivamente pretendia, com base nos
argumentos associativos ou indutivos126, sair dos conceitos particulares e atingir os conceitos
universais, ou seja, obter de dentro da multiplicidade a unidade. Esta característica é
observada com relativa frequência nos diálogos socráticos, como, por exemplo, no Laques,
em que, no momento em que ele pergunta sobre o que é a coragem, uma virtude particular e
individual, ele não está tentando distinguir esta virtude das demais, mas sim chegar a uma
unidade superior e abstrata, aquilo que é comum a todas as virtudes, a virtude em si.
Portanto, os diálogos socráticos abordam as virtudes sob uma perspectiva particular, as
quais, após passarem por um processo de síntese de suas características essenciais, fornecem
subsídios suficientes para determinar o que há de comum entre elas, isto é, sua unidade; bem
como conceber uma virtude geral, ou seja, seu conceito universal. Para atingir tal propósito,
Sócrates adotou o caminho de abordar nos diálogos socráticos as virtudes que ele considerou
fundamentais para o aperfeiçoamento da alma. No Laques, o tema principal é a coragem, no
Cármides é a temperança, no Eutífrom é a piedade, e as demais virtudes, a justiça e a
sabedoria, não são tratadas em nenhuma obra específica, porém permeiam todos os diálogos
socráticos. Em suma, o que ele deseja obter ao tratar essas questões de forma isolada são os
fatores que definem a natureza essencial das virtudes.
Assim, o tema da unidade das virtudes é um assunto de grande relevância na filosofia
socrática, e, entre elas, a sabedoria exerce um papel de destaque, pois, segundo Sócrates, é o
elo entre as demais virtudes. Conforme o Laques127, basta o indivíduo ter o conhecimento do
bem e do mal para que ele possa agir de forma virtuosa, e assim ser um indivíduo virtuoso.
Devido a essa postura, contudo, Sócrates foi acusado de ser intelectualista, já que para ele o
125
Id., ibid., p. 100.
Segundo Guthrie, não devemos atribuir a Sócrates o uso pela primeira vez dos argumentos indutivos, mas ele
seguramente foi o primeiro que deu importância a eles, com o objetivo de chegar as definições gerais (cf. id.,
ibid., p. 108).
127
PLATÃO. Laques, 198a-199d. In: PLATÃO, 1973, v. I.
126
57
saber é condição necessária e suficiente para que a alma do homem passe a ter atitudes
virtuosas. Mas, posteriormente, no diálogo Protágoras128, entre outras obras, Sócrates foi
obrigado a rever alguns de seus conceitos e concluiu que o conhecimento do bem e do mal é
uma condição necessária, mas não suficiente para atingir-se a virtude, aspecto de sua
pedagogia que posteriormente será mais bem abordado.
Outro motivo pelo qual Sócrates foi acusado de pertencer ao movimento intelectualista
é explicado com base nos argumentos de Havelock129, que, sob sua perspectiva, não só
Sócrates, como também os sofistas e os filósofos da natureza representavam um grupo de
intelectuais caracterizados por uma forma de pensamento abstrata, que surgiram no final do
século V a.C. Embora Sócrates utilize, todavia, a abstração como um instrumento coadjuvante
em seu modelo pedagógico, ele difere dos demais representantes desse movimento
intelectualista, pois acreditava na existência de um deus moral, defendia o extremo cuidado
que o homem tem de ter com sua alma e fazia uso da razão como um limite moral, e não
como um fim. Portanto, na questão do intelecto, Sócrates segue o caminho das coisas divinas,
que estão além do entendimento humano.
2.2.2 A metodologia socrática
Conforme já abordado, Sócrates procura por meio de seu modelo pedagógico obter a
essência das coisas, ou seja, aquilo que de forma inequívoca distingue e define a principal
característica do objeto de seu estudo. Essa busca rigorosa das essências por meio da
sublimação das opiniões equivocadas e da constante procura da verdade proporciona ao
indivíduo um melhor conhecimento de sua alma130. E, como o grande objetivo de sua
investigação eram as questões éticas e sua efetiva aplicação prática, o método socrático
resulta no aperfeiçoamento do espírito do homem, especialmente em seus aspectos morais. De
tal modo que estabelece um conjunto de parâmetros, em tal nível de abstração que, além de
permitir o acesso aos conceitos universais, também conduz o interlocutor a rever muitas de
suas crenças.
128
PLATÃO. Protágoras, 329a-c. In: PLATÃO, 1973, v. III.
HAVELOCK, 1996, p. 205.
130
PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29c. In: PLATÃO, 1973, v. I. XENOFONTE, 2009, I, 1, 11.
129
58
Essa determinação da natureza abstrata dos conceitos universais demonstra com
clareza que a investigação dialética, característica típica de sua pedagogia, nada mais é do que
um processo de obtenção do conhecimento como uma sinopse, isto é, a síntese do múltiplo,
gerando uma unidade do conceito universal131. Então, quando no Eutífron, Sócrates pergunta
o que é piedade, ou, no Laques, o que é coragem, ele não está querendo saber o significado
formal das palavras “piedade” ou “coragem”, e, nem mesmo, obter uma lista de atitudes pias
ou corajosas. Na verdade, ele quer saber o que caracteriza um homem pio ou corajoso, isto é,
quer conhecer melhor a alma humana e compreender os fatores que a levam a tomar certas
atitudes.
Portanto, quando Sócrates pergunta a seu interlocutor “o que é X”, ele não quer saber
sobre as qualidades contingentes de “X”, mas sim de todas as características necessárias que
definam o que é “X”. Da mesma forma, quando Sócrates pergunta sobre o que é a coragem, a
temperança, a piedade ou a justiça, ele não quer exemplos dessas virtudes, o que ele quer é
uma definição que exprima a real essência por trás desses termos e que o interlocutor
efetivamente conheça o que é “X”. Assim, no ponto em que Sócrates fala no Laques a
respeito da arte da guerra, ele parte do pressuposto de que o indivíduo possuidor da coragem,
ao ter o conhecimento do bem e do mal, sabe quais são os motivos e qual é o melhor
momento para iniciar, ou não, uma guerra. Da mesma forma, no Cármides, em relação ao que
se refere a prudência, e, no Eutífron, na procura incansável do conceito universal do que é
piedade. Assim, seja na busca do conceito universal ou na procura do conhecimento do bem e
do mal, os diálogos socráticos visam abordar temas associados aos valores morais, ou seja, às
virtudes humanas.
Dessa forma, a estratégia pedagógica concebida por Sócrates está baseada no diálogo,
ou lógos132, e é constituída por um processo dialético composto por duas fases distintas e
complementares, denominadas protréptico e élenkhos, as quais conduzem o homem a
alcançar sua liberdade interior, por meio do aprimoramento de sua alma, propiciando a
primazia da razão sobre os instintos.
Na primeira fase, denominada protréptico, ou exortação, ele utiliza seu método com o
objetivo de conduzir seu interlocutor ao caminho da filosofia, isto é, especula o real
comprometimento dele com o valor e a verdade das coisas; bem como faz uma autoavaliação,
131
JAEGER, 1995, p. 524.
O lógos foi o grande instrumento que Sócrates utilizou para atingir a alma do homem, seu grande objetivo
pedagógico. Conforme Jaeger: “a forma de Sócrates abordar o problema ético não era uma mera profecia, uma
pregação destinada a sacudir a moral do Homem, mas que a sua exortação ao ‘cuidado da alma’ traduzia-se no
esforço de penetrar na essência da moral por meio da força do lógos” (id., ibid., p. 585).
132
59
questionando seus próprios juízos de valor 133. Neste sentido, o processo de exortação pretende
despertar a consciência e o discernimento do que realmente é importante para a vida do ser,
ou seja, se são os seus bens materiais ou sua alma134. Essa visão socrática no que se refere à
hierarquia dos bens difere radicalmente do senso comum vigente até então na Grécia, que
priorizava a saúde, a beleza, a juventude e a riqueza, enquanto Sócrates valorizava os bens da
alma, do corpo e, por fim, as coisas materiais 135. Logo, sob esta perspectiva socrática, a alma
ganha um papel de grande destaque em seu modelo pedagógico, e o processo de exortação é o
primeiro passo no sentido de atingir uma formação completa do ser.
Já a segunda fase, denominada élenkhos, ou refutação, é um complemento
indispensável para o método socrático, pois, após a etapa de exortação, o interlocutor passa a
tomar consciência de si mesmo e perceber que não sabe nada do que julga saber, e, assim,
dispõe-se a começar uma nova etapa de seu aprendizado, reformulando suas antigas crenças.
Dessa maneira, o élenkhos visa o crescimento ético e moral, mediante o despertar do
indivíduo para o desejo de adquirir o conhecimento. No entanto, para que o método seja
aplicado em sua plenitude, parte-se do pressuposto de que, entre os participantes, haja um
comprometimento com a obtenção da verdade, isto é, que ao longo do diálogo eles estejam
totalmente livres das opiniões.
Assim, o processo inicia-se com um conjunto de perguntas e respostas, nas quais
Sócrates conduz seu interlocutor a concluir que suas crenças estão fundamentadas em falsas
“verdades”, normalmente fruto de percepções equivocadas, de opiniões subjetivas e de
preconceitos injustificados. Esta etapa dentro do élenkhos é chamada de eiróneía, ou seja,
questionamento, na qual Sócrates faz seu interlocutor perceber a falsidade de seus argumentos
e, consequentemente, sua ignorância, até então interpretada como sabedoria. E por meio desse
choque, provocando inicialmente raiva, e posteriormente vergonha136, que o interlocutor sente
a necessidade de encontrar a verdade. A partir desse momento, ele está apto a entrar na
segunda etapa do élenkhos, denominada maieutiké, ou seja, arte de ajudar a partejar. Dessa
133
“[...] quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de filósofo, submetendo a
provas a mim mesmo e aos outros [...]” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 28b. In: PLATÃO, 1973, v. I).
134
“Sócrates fala como um médico cujo paciente fosse não o homem físico, mas o homem interior. Abundam
extraordinariamente nos diálogos socráticos as passagens em que se fala do cuidado da alma ou da preocupação
com a alma, como a missão suprema do Homem” (JAEGER, 1995, p. 536).
135
Id., ibid., p. 538.
136
PLATÃO. Apologia de Sócrates, 20c-d. In: PLATÃO, 1973, v. I.
60
maneira, Sócrates nesta última fase de seu método continua a reafirmar nada saber e não
fornece respostas para os temas analisados, pois acredita que sua função é atuar como um
agente facilitador, para que o interlocutor acesse algo que ele já conhece. Portanto, Sócrates
acredita que o conhecimento é algo natural, e basta estimular os indivíduos a recuperar esse
saber. E ele o fazia por meio do auxílio de uma espécie de parto do espírito, da mesma forma
que sua mãe auxiliava os partos do corpo137.
Em suma, mediante a exortação e a refutação, a metodologia socrática pretende
despertar nos indivíduos um conhecimento existente dentro de sua própria alma.
Consequentemente, seu princípio básico é nada ensinar. Ela está essencialmente
fundamentada nos exemplos de Sócrates, visto como homem medida 138, que serve como
referência de moralidade e de respeito aos limites humanos; bem como na concepção de um
ensino baseado em um modelo ético, desvinculado de qualquer linha doutrinária, prática que
era muito comum nos processos educacionais gregos desse período.
2.3 A paideía socrática
O método e os fundamentos da pedagogia socrática foram um marco nos processos
educacionais do mundo ocidental. Nela é possível observar profundos traços de cisão com os
modelos até então utilizados na sociedade grega. Dessa forma, o movimento renovador
constituído pelos ideais educacionais dos filósofos da natureza, dos sofistas e de Sócrates
eram um avanço tanto no método quanto no foco desses modelos pedagógicos.
Apesar de existirem semelhanças nos fundamentos dessas escolas, também havia
diversas diferenças entre elas. Enquanto os filósofos da natureza tinham uma tendência mais
cientificista e dedicavam-se a compreender os fenômenos físicos, os sofistas e Sócrates
tinham interesses mais humanistas, preocupando-se com os aspectos humanos e o papel do
homem na sociedade.
Essa diferença de perspectiva educacional foi cada vez mais relevante, principalmente
nos temas cosmológicos, pois Sócrates considerava-os uma tremenda perda de tempo139, isto
137
“[...] O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas
belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira [...]” (id., ibid., 150c).
138
“Sócrates era para seus discípulos um modelo vivo de virtuosidade [...]” (XENOFONTE, 2009, I, 2, 4).
139
PLATÃO. Apologia de Sócrates, 18c. In: PLATÃO, 1973, v. I.
61
é, eram especulações que não passavam de meras hipóteses140. Não era, todavia, todo objeto
de estudo dos filósofos da natureza que desagradava Sócrates, pois para ele os que se referiam
aos métodos empíricos, relativos às experiências da vida prática, eram dotados de grande
interesse filosófico.
Assim, Sócrates considerava a medicina como um excelente exemplo do uso do
conhecimento com o objetivo de trazer algum tipo de benefício para a vida dos homens. Isto
pode ser observado em sua preocupação com o cuidado que o indivíduo deve ter com a saúde,
seja ela do corpo ou da alma 141. No entanto, sua grande prioridade sempre foi a saúde do
espírito, o que direcionou todo o seu esforço educacional para o interior do próprio ser, ou
seja, a obtenção do conhecimento de si mesmo.
Nesse sentido, Sócrates concebeu uma paideía que visava a atingir a formação integral
do homem, a qual considerava o autoconhecimento e o cuidado com a alma como sua
principal missão142. Esta visão antropocêntrica, fruto de uma crise nos valores morais no
Estado e na sociedade grega143, foi o fator que influenciou fortemente seus ideais
pedagógicos, e o fez perceber a importância do cuidado e da manutenção da saúde da alma.
Até mesmo, para Sócrates, a alma ou a psyche é a parte divina existente dentro dos seres
humanos144. E é justamente na alma que ele irá concentrar todos os seus esforços
educacionais, porque lá reside o nosso intelecto, a nossa racionalidade e o nosso poder de
discernimento no que tange às questões éticas e morais.
Segundo Burnet145, Sócrates foi o primeiro a encarar a alma sob essa perspectiva, pois
até então ela possuía um caráter essencialmente místico-religioso. Jaeger exprimiu assim as
idéias de Brunet:
O novo sentido que Sócrates dá a esta palavra não se pode explicar nem a partir do
eidolon épico de Homero, nem a sombra do Hades, nem da alma-sopro da filosofia
jónica, nem do dáimon-alma dos órficos, nem da psykhé da tragédia antiga146.
140
JAEGER, 1995, p. 519; XENOFONTE, 2009, I, 1, 11.
Id., ibid., I, 2, 5.
142
Tema bastante abordado nos diálogos socráticos, como em PLATÃO. Protágoras, 310b-314c. In: PLATÃO,
1973, v. III; em PLATÃO. Górgias, 465a-d (id., ibid.); e também em JAEGER, op. cit., p. 521.
143
“A Atenas de Péricles, que como cabeça de um grande império vê-se inundada por influências de todo o tipo e
proveniência, está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu brilhante domínio em todos
os campos da arte e da vida. Todos os valores herdados se esfumam num abrir e fechar de olhos, ao sopro de
uma buliçosa loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no campo da moral
que nesta altura o Estado e a sociedade são minados” (id., ibid., p. 523).
144
GUTHRIE, 1978, p. 149, e JAEGER, op. cit., p. 531.
145
GUTHRIE, 1978, p. 12, e JAEGER, 1995, p. 534.
146
Id., ibid., p. 525.
141
62
Portanto, a alma à qual Sócrates se refere tem como característica principal o intelecto e a
essência dos seres. E na paideía socrática a alma exerce um papel de destaque, pois ela tem a
possibilidade, sob o ponto de vista de Sócrates, de atingir o conhecimento, e,
consequentemente, a virtude. Isto fica muito claro na primeira fase de sua metodologia
pedagógica, denominada protréptico147, que em conjunto com o élenkhos promove um
verdadeiro exame dialético no homem.
Outro conceito que é extremamente caro para a paideía socrática é a dualidade corpo e
alma, a qual vê o homem como um ser composto por duas partes distintas e simultaneamente
inter-relacionadas. Uma delas é a material, denominada corpo, e a outra é a espiritual,
denominada alma. A relevância de cada uma dessas partes em detrimento da outra, no modelo
pedagógico socrático, acabou gerando algumas controvérsias entre seus estudiosos. Guthrie
considera que Sócrates trata a alma com muita devoção, e por este motivo ela possui um
grande privilégio dentro de sua paideía. Segundo ele, para Sócrates até mesmo a essência
humana reside na alma, o que justificaria dedicar toda a sua força educacional ao objetivo de
nela despertar a sabedoria, ou seja, a virtude. Logo, o corpo é apenas um instrumento de
manifestação das vontades e dos desejos da alma, e, assim, ela seria o elemento mais
importante da existência humana, e o corpo seria apenas um elemento coadjuvante148.
Em contrapartida, Jaeger defende que corpo e alma são dois aspectos distintos da
mesma natureza, isto é, não existe uma oposição do psíquico em relação ao físico. Assim,
para Sócrates a alma espiritualiza a natureza física, da mesma forma que o corpo influencia a
natureza psíquica, e, consequentemente, ambos pertencem ao mesmo cosmo. Portanto, o
princípio que se manifesta em um deles manifesta-se em ambos. Assim, tanto a virtude física
(saúde, força e beleza) como a espiritual (coragem, temperança, piedade e justiça) compõe o
conjunto de atributos, que, quando em harmonia, conduzem o homem ao conhecimento do
bem. Conforme Jaeger, essa simetria entre corpo e alma é um dos grandes objetivos a serem
atingidos na paideía socrática149.
Em suma, a divergência de interpretações entre ambos no que se refere a esse conceito
fica muito clara quando Guthrie afirma não compreender o ponto de vista de Jaeger na
questão do corpo e da alma, principalmente quando ele diz que no homem não existe oposição
entre o psíquico e o físico, pois, para Guthrie, o corpo é algo externo a sua própria essência.
Ele faz uma analogia em sua obra dizendo que o corpo é para a alma do homem o que a serra
147
Etapa de sua pedagogia denominada protréptico, ou exortação, já abordada no item 2.2.2.
GUTHRIE, op. cit., p. 152.
149
JAEGER, 1995, p. 531.
148
63
é para o carpinteiro 150. Particularmente, julgo a posição de Jaeger mais próxima do
pensamento socrático, mesmo porque Sócrates via o homem como um todo, e, assim,
orientava suas práticas educacionais para atingir uma formação completa do ser, privilegiando
um equilíbrio harmônico entre corpo e alma, tanto nas virtudes físicas, quanto nas virtudes
psíquicas.
Outro aspecto de sua paideía é a questão do autoconhecimento151, só que agora visto
sob outra perspectiva, ou seja, como um instrumento para a obtenção do controle de si mesmo
e do equilíbrio de nossas próprias atitudes. Atributos fundamentais para qualquer cidadão que
se proponha a ser um futuro governante. Neste sentido, vale lembrar que para Sócrates uma
das metas fundamentais de sua paideía era alcançar a virtude em especial a política. Para tal
objetivo, ele lançou mão de um novo conceito, que foi o do domínio de si próprio,
caracterizado pelo predomínio das atitudes racionais em detrimento das instintivas.
Esse conceito do autodomínio resultou na priorização das coisas do espírito sobre a
dos instintos humanos. E, como o espiritual é o verdadeiro eu do homem, consequentemente
dentro de si começa a surgir a semente da justiça interior, concebida sob a égide das leis que
habitam nossa própria alma 152. Esse aspecto da paideía socrática possibilitou a valorização da
ética e da liberdade, que foram outros dois elementos importantíssimos para sua estrutura
pedagógica.
No caso da ética, Jaeger traduz sua relevância ao afirmar o seguinte:
Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central
da nossa cultura ética. Esta idéia concebe a conduta moral como algo que brota do
interior do próprio indivíduo e não como a mera submissão exterior à lei, tal qual a
exigia o conceito tradicional da justiça153.
Assim, a paideía socrática pretende produzir no interior da alma humana uma
consciência moral, a qual será o elemento norteador que conduzirá o homem a tomar decisões
éticas. Já na questão da liberdade, cabe destacar que nesse período o conceito de liberdade era
apenas o de algo oposto a escravidão, muito aquém do conceito que possuímos atualmente;
150
“It is difficult to understand what was in Jaeger’s mind when he wrote [paideía] that ‘in his [Socrates’s]
thought, there is no opposition between psychical and physical man’. The body is as extraneous to the man
himself, his psyche, as the saw is to the carpenter” (GUTHRIE, 1978, p. 153).
151
Além do tradicional conhecimento de si, fruto da célebre frase do oráculo de Delfos, Xenofonte destaca no
diálogo de Sócrates com Eutidemo o grande valor do autoconhecimento, ao declarar que, apesar da cultura geral
e da erudição, o fundamental para um governante é conhecer a si mesmo, a fim de trabalhar com suas limitações.
Ver XENOFONTE, 2009, IV, 2, 8-13.
152
Id., ibid., I, 4, 4-8.
153
JAEGER, 1995, p. 548.
64
Sócrates propõe, contudo, uma liberdade ética, fundamentada na autonomia moral, que,
segundo ele, é obtida por meio da conquista da liberdade interior. E esta liberdade é fruto da
eficiência do domínio sobre nós mesmos, proporcionando uma independência da parte animal
existente em todos os seres. Então, para Sócrates, o homem livre é aquele que não se deixa
subjugar por seus apetites e paixões154.
Outro conceito similar é o de autarquia, que também está associado à liberdade, mas
refere-se a uma independência das coisas, ou seja, uma ausência de necessidades 155. Assim,
essa liberdade seria adquirida por meio da força interior, capaz de limitar suas vontades e
desejos, para tentar possuir apenas aquilo que lhe é possível. Logo, o homem sob esta
perspectiva pode ser considerado autárquico, pois soube vencer seus instintos pelo
autodomínio 156. E este fator em sua paideía é extremamente relevante, porque só por meio
dessa liberdade interior é que o homem consegue ser realmente livre.
Por fim, o último aspecto de seu modelo pedagógico que considero relevante abordar é
o que se refere à relação de amizade entre o mestre e o discípulo, o que Sócrates denominava
philía, ou amizade virtuosa. Ele até mesmo discordava dos termos “mestre” e “discípulo”,
muito utilizado pelos pedagogos da época, preferindo empregar o termo “amigo”157, e de pôrse a seu serviço para qualquer necessidade, seja ela nas questões educacionais ou privadas158.
Dessa forma, Sócrates, ao tratar seus pares como amigos utilizava durante seu processo
educacional o respeito mútuo e abria caminho para a confiança recíproca, fator que ele
considerava fundamental para que houvesse uma troca natural de ideias e de conceitos, sem
permitir que houvesse julgamentos precipitados e rejeições prévias, facilitando, assim, o
crescimento de todos os envolvidos no processo educacional.
Em suma, a paideía socrática está fundamentada na consciência da própria ignorância,
no conhecimento de si mesmo e no cuidado com a alma, elementos que nos levam a concluir
que o fundamental de sua ação pedagógica é despertar a força existente dentro de nós
mesmos, visando o aperfeiçoamento de nosso próprio interior, ou seja, de nossa alma.
154
PLATÃO. Protágoras, 355b-d. In: PLATÃO, 1973, v. III.
XENOFONTE, 2009, I, 3, 12 e I, 6, 10.
156
JAEGER, op. cit., p. 552.
157
“Admirava-se de que um homem que fizesse profissão de ensinar a virtude exigisse remuneração e que, em
vez de ver na aquisição de um amigo virtuoso a maior das recompensas, temesse que um coração converso à
virtude não pagasse o maior dos benefícios com o maior reconhecimento. Aliás, Sócrates nunca prometeu nada
de semelhante a ninguém. Porém, abrigava a certeza de ganhar, naqueles que lhe seguiam os princípios, bons
amigos que o amariam e se estimariam reciprocamente para o resto da vida” (XENOFONTE, op. cit., I, 2, 3).
158
“Sócrates põe o seu gênio para a amizade a serviço dos amigos, quando estes precisam dele para fazer novas
amizades. Não é só como o aglutinante indispensável à cooperação política que ele conhece a amizade; esta é
para ele a verdadeira forma de toda a associação profícua entre os homens. Por isso, ao contrário dos sofistas,
nunca fala dos seus discípulos, mas sempre dos seus amigos” (JAEGER, op. cit., p. 568).
155
65
O capítulo apresentou as principais características e os aspectos mais relevantes da
paideía socrática. O próximo capítulo irá destacar as divergências e as similaridades entre
ambas as paideîai.
66
CAPÍTULO 3
Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática
O presente capítulo tem como objetivo apresentar as principais divergências entre as
paideîai dos sofistas e de Sócrates, bem como demonstrar que, apesar de suas diferenças,
essas duas perspectivas pedagógicas possuem mais pontos em comum do que em uma análise
menos minuciosa poderíamos supor.
3.1 Conflitos entre suas paideîai
Os capítulos precedentes foram fundamentais para identificar as principais
características pedagógicas de cada uma dessas paideîai. Até mesmo, com base em suas
virtudes e limitações foi possível obter subsídios suficientes para fazer uma comparação mais
criteriosa dos seus modelos pedagógicos, visando destacar os pontos de maior relevância que
determinaram as diferenças entre a paideía sofista e a socrática.
3.1.1 Abrangência dos programas educacionais
O significado do termo “abrangência”, ao qual desejo ater-me neste item, refere-se à
amplitude dos conceitos fornecidos por cada uma dessas linhas educacionais, tanto no que diz
respeito a seu conteúdo pedagógico, quanto ao tempo necessário para atingir essa meta. Para
tal objetivo, irei destacar alguns aspectos relevantes que particularizam essas duas escolas,
focando as divergências na completude e na solidez dos conhecimentos transmitidos e na
expectativa de alcançá-los dentro de um prazo pré-determinado. Assim, no que se refere à
necessidade de despender maior ou menor tempo da vida do educando para atingir sua
formação completa, Jaeger159 afirma que o ensinamento dos sofistas fundamentalmente visava
a formação dos futuros chefes de Estado, e, consequentemente, seu programa educacional
159
JAEGER, 1995, p. 316.
67
deveria ser extremamente objetivo, pois necessitavam obter resultados efetivos em prazos
relativamente curtos. Essa característica de sua paideía acabou justificando o alto
investimento financeiro dos jovens candidatos a líderes e fortaleceu a fama dos sofistas como
grandes mestres da pólis ateniense. Guthrie160 compartilha do mesmo ponto de vista que
Jaeger ao declarar que a principal matéria-prima da paideía sofista é a palavra, ou lógos,
normalmente utilizada como meio para persuadir e conquistar as pessoas nas assembleias
públicas. No entanto, apesar de possuir alguns aspectos favoráveis, ela é considerada como
sendo uma habilidade adquirida e tem um caráter essencialmente prático. De acordo com sua
visão, o discurso sob a perspectiva da paideía sofista, ou seja, marcada pelo ensino da arte ou
tékhne política, é algo que pode ser dominado com relativa rapidez.
Já no que diz respeito à paideía de Sócrates, nos diálogos socráticos não há nenhuma
referência direta ao tempo dispensado para o aprendizado de seus discípulos; o que,
entretanto, nos parece claro é que, por meio de seus ensinamentos, ele não procurava obter
resultados imediatos. Logo, podemos concluir que Sócrates provavelmente nunca se
preocupou com essa questão161, já que o principal objetivo da sua paideía era a aquisição do
conhecimento de si mesmo, ou seja, um processo evolutivo que conduz o educando à
obtenção da areté, que é algo bastante incompatível com a imposição de limites temporais.
Segundo Guthrie, o processo de aquisição da areté demanda muito tempo no ato de
educar, no cuidado com as ações, no uso do discurso para evitar o mal que sua utilização
equivocada pode causar e na obtenção do bem, que só é alcançado à custa de um esforço
prolongado. Ele ratifica suas palavras ao dizer o seguinte:
O que está no poder de um homem é mostrar que realmente deseja o bem, e dedicar
tempo e trabalho necessários para adquiri-lo, pois em contraste com “a arte de falar”,
que pode ser rapidamente dominada, a areté exige longo tempo e esforço162.
160
GUTHRIE, 1995, p. 71.
A fala de Nícias fornece-nos uma ideia dos princípios socráticos quanto ao tema: “Pois pareces ignorar que
quem se aproxima de Sócrates para conversar com ele, à maneira de mulheres que confabulam, muito embora se
trate no começo de assunto diferente, de tal modo ele o arrasta na conversa, que o obriga a prestar-lhe contas de
si próprio, de que modo vive e que vida levou no passado. Uma vez chegados a esse ponto, não o solta sem o ter
examinado a fundo. Eu já estou acostumado com a maneira dele e sei que todos temos de passar por isso. Sendo
assim, Lisímaco, de muito bom grado conversarei com ele; não vejo nenhum mal em sermos lembrados de
algum torto que tivéssemos feito ou que estejamos a fazer; quem não se furta a esse exame passará
necessariamente a tomar mais cuidado consigo mesmo, de acordo, nesse particular, com Sólon, quando disse que
devemos aprender durante toda a vida, por ser de opinião que a sabedoria vem com a velhice” (PLATÃO.
Láques, 187e-188b. In: PLATÃO, 1973, v. I).
162
GUTHRIE, op. cit., p. 72.
161
68
Cabe ressaltar que esse aspecto da paideía sofista não foi unanimidade entre seus membros. E
o caso mais relevante foi o de Protágoras, que em dado momento reconsiderou algumas de
suas posições pedagógicas e passou a defender uma educação continuada e duradoura, a qual
se propunha a acompanhar o processo evolutivo ao longo da vida do educando 163; sua opção
pedagógica, contudo, pode ser considerada um caso pontual e não representa a totalidade dos
ideais dos membros do movimento sofista.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a abrangência nos conteúdos pedagógicos
de ambas as paideîai também diverge radicalmente. Enquanto a dos sofistas procurava a
obtenção de um conjunto de conhecimentos enciclopédicos, baseados em uma grande
diversidade de saberes, a paideía de Sócrates objetivava a obtenção de uma formação voltada
para o esclarecimento da alma humana, através da busca da unidade, ou seja, dos conceitos
universais, visando a concepção de um ser virtuoso. Assim, é possível em uma análise mais
acurada da paideía sofista entender por que seus membros adotaram essa estratégia
pedagógica, pois, conforme já abordado, a principal meta dos sofistas era formar seus
discípulos para a obtenção do sucesso na pólis. Para tanto, eles priorizavam a erudição, que no
fundo visava proporcionar uma maior flexibilidade argumentativa e uma grande diversidade
temática em seus discursos. Essa variedade de saberes favorecia sua capacidade de articulação
e transformava-os em excelentes oradores, com imenso poder de convencimento e de
persuasão. Neste sentido, Jaeger corrobora esta ideia ao afirmar o seguinte:
Os sofistas estão tão profundamente influenciados, nos problemas morais e políticos,
pelo pensamento racional do seu tempo e pelas doutrinas dos fisiólogos, que criam
uma atmosfera de educação multifacetada, a qual, na sua consciência clara, ativa
vivacidade e sensibilidade comunicativa, nem sequer nos tempos de Pisístrato foi
conhecida164.
Contrariamente à visão mais pragmática do movimento sofista, a paideía socrática
fundamentou seu programa educacional no autoconhecimento, processo que requer um
trabalho contínuo de esclarecimento e de formação consciente do ser. Esse modelo
pedagógico provê a cada um de seus educandos a possibilidade do conhecimento de si
mesmos e o aprimoramento de sua alma, proporcionando a construção de um ser virtuoso.
Como a metodologia socrática está sedimentada em um processo dialético, composto por dois
elementos, denominados protréptico e élenkhos165, podemos concluir que o conteúdo
163
Conforme visto no item 1.3.1 deste estudo.
JAEGER, 1995, p. 341.
165
Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo.
164
69
educacional proposto por Sócrates valorizava os aspectos morais, fundamentando as bases de
sua paideía na formação completa do educando, e permitindo uma tal abrangência nos
saberes, que os acompanharia para o resto de suas vidas. Conforme ele próprio afirmou na
Apologia:
[...] jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos
em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: “Meu
caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e
poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e
honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar
quanto mais a tua alma?” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei
embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que
afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar
menos o que vale mais e mais o que vale menos166.
Outro aspecto que cabe ser ressaltado na questão da abrangência de ambas as paideîai
é o conteúdo das disciplinas a serem ministradas a seus educandos. Embora Sócrates tratasse a
educação política como um elemento fundamental para a vida do indivíduo e da comunidade,
não a encarava como um fim, pois a política era um entre outros elementos de seu programa
educacional, que, quando aplicado em sua íntegra, visava a formação completa do espírito do
homem. Por outro lado, os sofistas consideravam a educação política como um fim,
priorizando o ensino de uma diversidade de saberes, em conjunto com a oratória e a retórica,
como meio para atingir este fim.
3.1.2 Em relação ao público-alvo
O público ao qual se destinavam suas paideîai é outro ponto de divergência entre seus
programas educacionais. Os sofistas dedicavam grande parte de seus esforços a educar os
jovens que gozavam de uma situação financeira e familiar de destaque na sociedade ateniense,
já que sua principal meta era formar os futuros governantes. Jaeger ratifica essa tendência ao
afirmar o seguinte:
Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas
não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova
forma da educação dos nobres167.
166
167
PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29d. In: PLATÃO, 1973, v. I.
JAEGER, 1995, p. 339.
70
Dessa forma, a paideía sofista privilegiava a formação de um pequeno grupo de escol,
composto pelos candidatos a futuros líderes na pólis ateniense. Com o objetivo de reforçar
essa ideia, transcrevo as palavras de um de seus membros, pois considero que nenhum outro
argumento traduza com maior clareza as reais intenções do movimento sofista, a saber:
[...] um professor nessas condições, Sócrates, que os levasse mais longe, não se me
afigura muito fácil de encontrar. Por isso, devemos alegrar-nos quando aparece
alguém de capacidade para fazer-nos avançar, por pouco que seja, no caminho da
virtude. Tenho-me na conta de um desses, superior aos demais homens no
conhecimento daquilo que os pode deixar melhores e mais honestos, e me julgo, sem
dúvida, merecedor de receber o pagamento estipulado, se não maior ainda, conforme
os próprios alunos o declaram168.
Protágoras nesta passagem deixa muito claro que ministra seus ensinamentos somente para
quem possa pagar por seus préstimos. Sócrates também contribui para reforçar essa ideia, ao
declarar no Láques o seguinte:
sou o primeiro a confessar que nunca frequentei professor dessa matéria, muito
embora desde moço tivesse muita vontade de aprendê-la. Porém, sempre careci de
recursos para pagar honorários aos sofistas, os únicos que se apresentavam como
capazes de fazer de mim um homem de bem e de valor, não me tendo sido possível
até agora descobrir por mim mesmo essa arte169.
Portanto, os sofistas estavam interessados em atender as necessidades de um público seleto e
diferenciado, tornando o acesso a sua paideía algo bastante restrito e limitado.
Em contrapartida, a proposta da paideía socrática era formar qualquer pessoa que
estivesse disposta a submeter-se a sua metodologia de ensino 170, a qual se caracterizava
fundamentalmente por um diálogo entre Sócrates e seu interlocutor, normalmente efetuada em
locais públicos. Esse processo racional utilizava a comunicação direta entre os participantes
como uma forma de aquisição do conhecimento, o que inegavelmente foi um aspecto
marcante em seu modelo pedagógico. Outro fator de grande relevância em seu processo
educacional é a possibilidade de aplicá-lo a todos os cidadãos, desde que o interlocutor aceite
as condições preestabelecidas pelo seu método educacional. Logo, sua paideía contemplava
qualquer pessoa que concordasse de forma voluntária e consciente a trilhar o caminho do
autoconhecimento, atribuindo à paideía socrática um caráter de ensino público e
168
PLATÃO. Protágoras, 326c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III.
PLATÃO. Láques, 164a. In: PLATÃO, 1973, v. I.
170
“É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos
cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29e. In: id. ibid.).
169
71
possibilitando a seus educandos o acesso ao conhecimento das virtudes, ou seja, do bem.
Esses argumentos são confirmados por Xenofonte, como segue:
Sócrates mostrava-se abertamente amigo do povo e filantropo. De feito, cercado de
numerosos discípulos, atenienses e estrangeiros, jamais auferiu proveito algum desse
comércio, transmitindo a todos e sem reserva o que sabia171.
Por outro lado, a paideía socrática sofreu críticas relativas a sua efetiva aplicação em
algumas situações específicas, principalmente, quando seu método educacional é aplicado
para um grande número de pessoas. Segundo Hoerl, as bases que sustentam essas críticas
estão fundamentadas no fato de a paideía socrática defender a ideia de que deve haver uma
grande afinidade entre o educador e o educando, tornando o método socrático bastante
adequado quando aplicado individualmente, mas falho quando empregado para ensinar
simultaneamente diversas pessoas172. Assim, a philía, ou amizade virtuosa173, que é
reconhecidamente um elemento de destaque em sua paideía, acabou sendo alvo de algumas
críticas, pois foi considerada um fator de limitação em relação a sua aplicabilidade em grupos
maiores. É óbvio que os atos de compreensão e de empatia quando utilizados no processo
educativo favorecem o aprendizado e potencializam o grau de respeito mútuo, gerando um
clima de harmonia, de intimidade e de confiança recíproca.
No entanto, a partir do momento que a paideía socrática é utilizada para educar um
número maior de indivíduos, segundo os argumentos de Hoerl, ela não poderá ser aplicada,
pois não existe a menor hipótese de proceder-se conforme o modelo pedagógico proposto por
Sócrates, já que seria impossível haver um sentimento sincero de amizade virtuosa em um
grupo heterogêneo, composto por diversos indivíduos com características, origens e valores
culturais tão diferentes. Para Hoerl, sob essas condições, o modelo da paideía sofista tende a
ser mais bem-sucedido174.
Assim, a paideía socrática oferece a possibilidade de prover a todos os indivíduos,
desde que eles estejam interessados, um ensino gratuito que os conduzirá ao processo do
171
XENOFONTE, 2009, I, 2, 8.
“Socratic paideia is limited and can only serve as one part of an educational program in a mass democratic
government. Its major limitation is its explicit basis – recognized by both Jaeger and Plato, but not always by all
political theorists – in the friendship that people have for one another. Because we can only friend a limited
number of people, there is an inherent audience limitation to Socratic paideia that makes it a poor fit for modern
politics” (HOERL, A. E. The Limitations of Socratic Paideia, 2007, p. 4. Disponível em:
<http://citation.allacademic.com//meta/p_mla_apa_research_citation/1/4/2/3/5/ pages142350/p142350-1.php>).
173
“A sabedoria era algo que devia ser gratuitamente partilhado entre pessoas amigas e amadas” (XENOFONTE,
op. cit., I, 6, 13).
174
HOERL, 2007, p. 15.
172
72
autoconhecimento e do autodomínio, proporcionando a prática do saber racional e consciente,
ou seja, um conjunto de atributos que possibilitam ao ser tornar-se virtuoso, pela obtenção do
conhecimento e da noção da medida. No entanto, ela também possui algumas limitações,
principalmente nos casos em que é necessário aplicá-la a um grande número de pessoas,
atribuindo à paideía socrática um caráter pedagógico de abrangência individual, e não
coletiva.
Já a paideía sofista tinha uma característica educacional fortemente seletiva e elitista,
composta por um conjunto de técnicas pedagógicas formais que utilizava seus próprios
escritos como material didático. Mas, por outro lado, era mais adequada nas situações em que
havia a necessidade de educar um número maior de pessoas, pois não focava seu modelo
pedagógico na afinidade e na amizade, e sim em uma relação distante e objetiva, marcada pela
definição do papel de cada um dos envolvidos no processo educacional, ou seja, o do mestre,
caracterizado por ser o responsável pela transmissão dos conhecimentos, e o do discípulo,
simplesmente como receptor desses conhecimentos.
Em suma, esses aspectos de ambas as paideîai são relevantes para que possamos
compreender as diferenças entre esses dois programas educacionais; na questão da philía,
contudo, vale fazer uma análise mais cuidadosa e criteriosa para tentar entender de forma
inequívoca seu significado na Grécia do século V a.C., pois, conforme já abordado, foi devido
a diferentes interpretações de seu real significado que se atribuíram algumas limitações à
paideía socrática. Para tanto, lanço mão de um trecho da obra de Jaeger, o qual afirma que o
conceito de amizade virtuosa do período referido por Sócrates está associado a algo muito
mais amplo do que em nossa contemporaneidade podemos conceber. Assim, segundo ele, o
significado do termo philía, ou amizade virtuosa, era o seguinte:
É a forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente natural,
mas sim uma comunidade espiritual e ética. É, portanto, um problema que ultrapassa
em muito o âmbito do que nas modernas sociedades, extremamente individualizadas
chamamos amizade. Para compreendermos claramente o verdadeiro alcance do
conceito grego da philía, precisamos apenas seguir o desenvolvimento posterior
deste conceito até chegarmos à teoria da amizade, sutilmente matizada, da Ética a
Nicômaco, de Aristóteles, teoria que deriva em linha reta da platônica. Essa teoria
contém uma sistemática completa de todas as formas concebíveis de comunidade
humana, desde as formas fundamentais e mais simples da vida familiar até os
diversos tipos de Estado175.
Logo, sob essa ótica, o conceito de philía na paideía socrática tem uma abrangência
muito maior do que puderam supor alguns de seus críticos; mesmo assim, entretanto,
175
JAEGER, 1995, p. 719.
73
considero que os argumentos de Hoerl têm algum fundamento e que a paideía concebida por
Sócrates tem vantagens inegáveis, mas também possui suas limitações.
3.1.3 Comprometimento com os educandos
O comprometimento do educador no processo de formação de seus educandos é uma
característica que pode muitas vezes determinar o sucesso ou o fracasso de um programa
educacional; no entanto, é óbvio que esse aspecto tem um peso relativo ao ser comparado com
todos os demais elementos que o compõem, mas, devido a sua influência no desempenho do
educando em relação a seu aprendizado, esta característica pode e deve ser considerada como
um item relevante no momento de analisar as diferenças entre as linhas educacionais dos
sofistas e de Sócrates.
Embora a paideía socrática represente um movimento renovador na forma de pensar a
educação dos jovens, ainda se caracterizava por envolver um comportamento relativamente
conservador, pois seguia um método educacional mais tradicional do que o proposto pelo
movimento sofista. Isto pode ser observado a partir do momento em que se defende a
manutenção dos valores relativos ao cuidado e ao respeito que os cidadãos deveriam ter com
sua comunidade176. Vale destacar que para os gregos o modelo de virtuosidade e de cidadania
manifestava-se no homem que visava obter de forma incondicional o bem-estar da
comunidade, em detrimento de seu próprio bem.
O fato de Sócrates ser um cidadão ateniense e estar intimamente ligado aos anseios e
as expectativas de seus conterrâneos facilitou a incorporação em sua paideía do respeito às
tradições e aos costumes existentes na sociedade ateniense. Assim, é possível identificar em
sua paideía a presença de uma preocupação e de um maior comprometimento educacional
com os cidadãos atenienses177, característica muito diferente da observada na dos sofistas.
176
Segundo Jaeger, a educação tinha como principal objetivo o seguinte: “Realizar a nova areté, encarando
como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros
conscientes da sociedade estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade” (id., ibid., p. 340).
177
“[...] em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense,
da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o
máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar
quanto mais a tua alma?’ E se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei
de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de
repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu
encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos
74
Sua paideía priorizava o extremo cuidado no relacionamento entre o educador e o educando,
característica que deu origem ao conceito de philía, ou amizade virtuosa, que defendia uma
mudança na relação entre docente e discente, fundamentalmente baseada no respeito mútuo e
no querer bem recíproco, algo muito mais inovador e revolucionário do que aquilo que existia
nos processos educacionais vigentes na Atenas do período clássico 178. Logo, a paideía
socrática, além de proporcionar a seus educandos a obtenção do autoconhecimento e do
autodomínio, também os conduzia a um tal nível de conscientização social, que lhes
proporcionava uma enorme satisfação em servir a sua comunidade sem importar-se em abrir
mão de seus próprios interesses. Por outro lado, os sofistas eram professores itinerantes e não
possuíam nenhum vínculo com a comunidade local, nem com seus valores culturais 179. Assim,
seu comprometimento estava atrelado a sua satisfação pessoal e à de seus discípulos.
Cabe lembrar que tanto a paideía socrática quanto a sofista representavam uma grande
inovação nos processos educacionais gregos, e sua racionalidade juntamente com a
valorização do intelecto foi extremamente importante para fortalecer a nova tendência
humanista que imperava na sociedade ateniense. Seu caráter individualista, entretanto, foi
destaque em várias passagens nas obras de Jaeger e de Guthrie, pois ambos concordam que,
sob este ponto de vista, os sofistas não valorizavam nem a cultura nem as tradições
preestabelecidas, demonstrando claramente o desejo de impor seu modo de pensar, sem a
menor preocupação com a forma de obtê-lo180. Portanto, essa característica da paideía sofista
em conjunto com as transformações políticas e sociais que reinavam na cidade de Atenas
encontraram um solo fértil para o desenvolvimento de uma educação utilitária, que acabou se
tornando uma marca no modelo pedagógico do movimento sofista.
A questão do profissionalismo é outro ponto de divergência entre essas duas paideîai.
Enquanto Sócrates propunha uma relação de amizade virtuosa sem nenhum tipo de vínculo
financeiro, os sofistas objetivavam uma relação essencialmente profissional, fundamentada
no sangue. [...]” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29d-e. In: PLATÃO, 1973, v. I).
178
XENOFONTE, 2009, I, 6.
179
“Os sofistas são muito bons fazedores de discursos em geral, mas que ‘seu hábito de andar de cidade em
cidade e de não ter nenhuma casa fixa própria’ é uma desvantagem quando se chega a assuntos de cidadania na
guerra ou na negociação” (GUTHRIE, 1995, p. 49).
180
“A sua existência fundamentava-se exclusivamente no seu significado intelectual. Não tinham cidadania fixa,
devido à sua vida constantemente andarilha. Que na Grécia tenha sido possível este modo de vida tão
independente é o mais evidente sintoma do aparecimento de um tipo de educação completamente novo,
individualista na sua raiz mais íntima, por mais que se falasse de educação para a comunidade e das virtudes dos
melhores cidadãos. Os sofistas são, com efeito, as individualidades mais representativas de uma época que na
sua totalidade tende para o individualismo. Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam os
autênticos representantes do espírito do tempo. É também sinal dos tempos viverem da educação” (JAEGER,
1995, p. 367); bem como, na seguinte afirmação: “Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais,
competindo entre si por favor público” (GUTHRIE, op. cit., p. 49).
75
em bases estritamente comerciais que visavam uma remuneração financeira em troca de seus
préstimos. Eles defendiam essa prática, pois consideravam sua atividade extremamente nobre,
já que, segundo eles, poucos homens atingiam esse nível de competência e de sabedoria. Por
outro lado, Sócrates não cobrava por sua atividade educacional, devido a diversas razões de
foro íntimo, mas um dos motivos que considero dignos de destaque e que me parecem
bastante pertinentes para o tema em questão é sua opinião sobre a postura de não cobrar por
seus ensinamentos com o objetivo de manter sua liberdade. Conforme Guthrie, Sócrates
acreditava no seguinte:
Os sofistas se privavam de sua liberdade: estavam obrigados a conversar com todos
os que podiam pagar suas taxas, ao passo que ele era livre para gozar da companhia
de qualquer que escolhesse181.
Assim, seu comprometimento com a educação era de ordem moral, sedimentada na liberdade
total de todos os envolvidos em seu modelo pedagógico, ou seja, baseada no princípio
fundamental da liberdade individual, fortalecendo as relações humanas por meio da
valorização da autonomia e da autarquia. Já os sofistas tinham um comprometimento formal,
com base em uma relação profissional de cunho educativo, firmada entre eles e seus
discípulos.
3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai
Este último item pode ser analisado sob dois pontos de vista que a princípio parecem
divergentes, porém em sua essência são complementares, principalmente no que diz respeito
aos aspectos fundamentais de suas paideîai. O primeiro refere-se a uma leitura conceitual de
seus programas educacionais, ou seja, no momento em que eles aplicam suas técnicas
didáticas visam atingir os mesmos fins? Já o segundo se atém ao detalhamento de como são
aplicadas essas técnicas pedagógicas com o objetivo de identificar as diferenças entre suas
paideîai.
A primeira etapa irá abordar a questão da finalidade de ambas as paideîai, as quais
buscam fundamentalmente a formação consciente do homem, visando a obtenção da areté.
181
GUTHRIE, 1995, p. 42.
76
Neste sentido surge uma polêmica, pois Sócrates considerava o ensinamento proposto pela
paideía sofista como sendo uma arte182, mas não uma arte verdadeira, como a proposta por
sua paideía, que é baseada na epistéme ou conhecimento, e sim uma arte corrompida, baseada
na empeiria ou adulação183.
Por outro lado, o movimento sofista não se importava com essas acusações,
principalmente porque sua preocupação estava direcionada para as coisas da vida prática,
especialmente no que eles consideravam como o cerne da virtude política, que era a
excelência do viver bem em sociedade. Conforme palavras do próprio Protágoras, sua paideía
procurava alcançar a seguinte meta: “Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons
cidadãos”184. E Górgias, alinhado com esse mesmo ideal, afirmava que sua grande meta
pedagógica era ensinar a arte de governar os homens por meio da persuasão185. Isso deixa
muito claro o objetivo de sua paideía. Asssim, a proposta educacional do movimento sofista
estava efetivamente fundamentada na busca da obtenção da virtude, porém tratava-se de um
tipo muito particular de virtude, ou seja, a virtude política. Jaeger esclarece com muita
eloquência esse tema tão controverso, ao dizer o seguinte:
Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer
surgir aos olhos do homem atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a
pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os contemporâneos os
chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se
logo que interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica,
isto é, no sentido de areté política, vista sobretudo como aptidão intelectual e
oratória, o que nas novas condições do século V era decisivo”186.
Isso significa que a paideía sofista não tinha o objetivo de ensinar o mesmo tipo de areté
proposta pela paideía socrática, ou seja, a areté política dos sofistas era apenas um dos
elementos que faziam parte de um todo da areté da paideía socrática. Por outro lado, Guthrie
alega que nem todos os membros da sofística encaravam o ensino da areté sob a perspectiva
defendida por Jaeger. Segundo ele, Protágoras entendia a areté como algo muito mais
complexo do que a visão simplista de alguns de seus companheiros do movimento sofista,
como segue:
182
Conforme visto no item 2.1.1 deste estudo.
No diálogo Górgias, Sócrates aponta o filósofo como o político ideal, pois somente ele possui a verdadeira
arte política (PLATÃO. Górgias, 421d-422a. In: PLATÃO, 1973, v. III).
184
PLATÃO. Protágoras, 319a. In: id., ibid.
185
PLATÃO. Górgias, 425d. In: id., ibid.
186
JAEGER, 1995, p. 232.
183
77
As referências de Protágoras, em Platão, à “tékhne do artesão” e à “areté do
artesão” evidenciam que para ele significavam a mesma coisa. Ele mesmo considera
a instrução nas tekhnai específicas, que alguns sofistas ofereciam, como inferior a
ele, e a “arte política” ou a “virtude política”, que é sua especialidade pessoal,
aproxima-se mais da virtude moral, pois tem raízes nas qualidades éticas da justiça e
do respeito por si mesmo e pelos outros. Sem estes, considera ele, a vida numa
sociedade organizada é impossível187.
Apesar dessa visão mais abrangente da paideía sofista, particularmente acredito que
existam perspectivas diferentes entre elas, pois a paideía socrática trabalha com a ideia de
uma depuração do espírito do homem, por meio do autoconhecimento, enquanto a sofista visa
algo mais pragmático e imediato.
O segundo aspecto está associado à questão da forma pela qual são aplicadas essas
técnicas. A paideía sofista sedimentava seu modelo pedagógico em um conjunto de saberes,
essencialmente transferido para seus educandos por meio de aulas ministradas com base em
manuais concebidos por eles mesmos, os quais configuravam um tipo de educação
fundamentada na transferência de conhecimentos. Além disso, depositavam todo o seu
esforço pedagógico no sentido de seus educandos obterem uma grande quantidade de saberes,
isto é, um conhecimento enciclopédico. Portanto, eles acreditavam que a única possibilidade
de formação consciente do espírito do homem seria por meio da aplicação de técnicas de
ensino que fornecessem a seus educandos diversos ensinamentos com base nos méritos e nos
atributos pessoais do próprio educador.
De tal modo que, com base em seus preceitos pedagógicos, a paideía sofista acabou
rompendo com vários dogmas educacionais até então aceitos pela sociedade ateniense,
principalmente no que se refere à aquisição da areté, pois tradicionalmente os gregos
acreditavam que ela somente poderia ser conquistada por meio da transferência direta desses
atributos de modo natural, ou seja, de forma consanguínea, herdada dos pais 188; apesar de
Protágoras não contradizer totalmente essa crença, em seus discursos afirmava o seguinte: “O
ensino com êxito, diz ele, requer que o aluno contribua com habilidade natural e assiduidade
na prática, e acrescentou que para aprender é preciso começar desde pequeno”189. Dessa
forma, os sofistas acreditavam que poderiam com a efetiva implantação de suas técnicas
pedagógicas e de suas habilidades pessoais tornar possível a vitória sobre as tendências
naturais dos seres, as quais impossibilitavam a qualquer indivíduo ter acesso à aquisição da
areté, neste caso, em especial, a areté política.
187
GUTHRIE, 1995, p. 237.
Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo.
189
Id., ibid., p. 239.
188
78
Por sua vez, a paideía socrática acreditava que o conhecimento já existia previamente
dentro dos seres e que a única contribuição de seu método pedagógico seria abrir as portas
para o educando atingir esses saberes. Isto significa que para Sócrates sua tarefa como
educador seria apenas a de um agente facilitador do acesso a um conhecimento preexistente
em todos os homens, independentemente de sua classe social. Assim, seu método é composto
por duas partes, a primeira das quais é denominada protréptico, ou exortação, e procura
despertar no homem o discernimento do que é realmente importante para sua vida, isto é,
decidir entre os bens materiais ou a depuração de sua alma. E a segunda, chamada élenkhos,
ou refutação, visa o crescimento ético e moral pelo desejo do educando de adquirir o
conhecimento190. Esse processo dialético tinha como objetivo a obtenção do conhecimento de
si mesmo, desenvolvendo intimamente o desejo espontâneo de tomar ações baseadas na
racionalidade moral191. No diálogo Cármides existe um exemplo típico desse seu método,
especialmente na passagem em que Sócrates refuta os argumentos de Cármides sobre sua
definição de temperança, e em vez de ele procurar outros argumentos com o objetivo de
chegar mais próximo da verdadeira definição, Cármides assume uma proposição de
temperança que não era sua, demonstrando uma falha não só no aspecto intelectual, como no
moral192. Logo, é sob esses pontos relacionados às falhas comportamentais e de caráter que a
paideía socrática pretende atuar. E ao chegar ao final do processo, quando bem-sucedido,
espera-se ter depurado o espírito do educando, propiciando a evolução de sua alma, que,
consequentemente, o conduz à obtenção da areté.
Em suma, a paideía sofista aposta na eficiência e no poder da transmissão de
conhecimento de seus membros, valorizando de forma exacerbada a ação do educador.
Enquanto a paideía socrática acredita que o educador somente atua como um agente
facilitador para o educando acessar o que ele já sabe.
190
Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo.
“The Socratic dialectic challenges the interlocutor not only to acquire the correct moral opinions, but to
question himself and think for himself and develop his own moral rationality” (SCHMID, W. T. Socratic
Paideia: How It Works and Why It So Often Fails, p. 5. Trabalho apresentado no 20th World Congress of
Philosophy, Boston, Mass, 10-15 ago. 1998. Disponível em: <www.bu.edu/wcp/Papers/Teac/TeacSchm.htm>).
192
PLATÃO. Cármides, 160c-161b. In: PLATÃO, 1973, v. I.
191
79
3.2 Similaridades entre suas paideîai
Quando pensamos na paideía dos sofistas e a de Sócrates, a primeira ideia que nos
ocorre são seus pontos conflitantes, especialmente os relacionados a suas diferentes
interpretações nos fatores educacionais e nas questões éticas e morais; no entanto, ao
analisarmos de forma isenta suas paideîai é possível identificar alguns aspectos que nos levam
a crer que existe uma grande quantidade de pontos em comum em seus programas
educacionais, fornecendo de forma inequívoca elementos que identificam a existência de
vários laços que unem suas perspectivas pedagógicas.
Assim, o principal objetivo deste item será abordar as semelhanças observadas nas
suas paideîai e contextualizar esses argumentos com base nas principais ideias dos seus
membros.
3.2.1 O uso da razão
Tanto os sofistas quanto Sócrates foram pioneiros no uso da razão nos processos
educacionais e representaram um movimento renovador para a sociedade ateniense, pois
romperam com alguns valores tradicionalmente aceitos e profundamente arraigados nos
costumes do seu povo. Mas uma das características que reputo serem de grande importância, à
qual desejo me ater, é o rompimento que ambas as paideîai propunham nas questões relativas
aos aspectos míticos, que até então influenciavam diretamente as relações sociais, culturais e
educacionais da maioria das cidades gregas.
Cabe notar que para o Estado o culto aos deuses sempre foi utilizado como uma forma
de poder coercitivo, atuando como um agente inibidor das atitudes consideradas inadequadas
de seus cidadãos. Esse tipo de ação, desrespeitosa aos olhos dos deuses, denominada
impiedade foi usada diversas vezes pelos governantes em benefício de seus próprios
interesses. Portanto, a princípio houve uma reação contrária no sentido de coibir este processo
de renovação, mesmo que velada, pois eles não tinham o menor interesse no fortalecimento
80
desse movimento revolucionário, já que um dos seus objetivos era desmotivar os cultos às
divindades e desmistificar algumas crenças tradicionalmente incorporadas a sua cultura193.
Por outro lado, a onda de puro racionalismo que florescia nas cidades gregas do século
V a.C. tinha a finalidade de explicar cientificamente os fenômenos da natureza e de combater
definitivamente o antropomorfismo e o culto aos deuses. Seus principais representantes foram
os sofistas e Sócrates, que receberam essa herança dos poetas e dos filósofos pré-socráticos,
os quais já vinham defendendo este processo de desmistificação194.
A paideía sofista e a socrática sofreram inúmeras resistências por parte de alguns
segmentos da sociedade ateniense, seja por meio das instituições representadas pelo Estado,
seja pelo conservadorismo presente em alguns de seus intelectuais ou nos simples cidadãos,
totalmente arraigados às velhas tradições e costumes. Assim, ambas as paideîai passaram por
diversas restrições e trouxeram uma nova perspectiva para os processos educacionais gregos e
contaram com uma grande dose de racionalidade em seu modelo pedagógico. Segundo Jaeger,
o papel deles no período clássico grego foi o seguinte: “É com eles que a paideía, no sentido
de uma ideia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um
fundamento racional”195.
Isso posto, considero irrefutáveis os argumentos utilizados por Guthrie e por Jaeger,
que compartilham da mesma linha de pensamento, também observados em outras obras que
abordam este mesmo tema, pois, segundo eles, o momento histórico foi extremamente
favorável para o uso da razão em todos os segmentos de sua sociedade, especialmente ao ser
utilizado como um elemento efetivo para facilitar e fortalecer os processos educacionais.
Portanto, com o advento da sofística e o deslocamento do foco dos filósofos do estudo
das coisas da natureza para os problemas do homem, o século V a.C. ganhou um grande
aliado para sua evolução intelectual, que foi uma nova forma de pensar, mais ordenada e
racional, a qual teve como fruto o surgimento da paideía sofista e da socrática.
193
GUTHRIE, 1995, p. 212-3.
MARROU, 1990, p. 32.
195
JAEGER, 1995, p. 364.
194
81
3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis
Neste item pretendo abordar as semelhanças observadas entre suas paideîai, mais
especificamente no ponto em que seus programas educacionais passam a determinar os
limites e as fronteiras de atuação das divindades nas vidas dos seres, ou seja, identificar
claramente quais são as prerrogativas dos deuses e quais são as dos homens no processo de
obtenção do conhecimento, e, consequentemente, atingir o bem viver.
Esse aspecto dos homens respeitarem, ou não, os desígnios divinos, em sua essência
tem um caráter mítico-religioso, e nos impele a penetrarmos mais profundamente nas
tradições culturais do povo grego, que, apesar das grandes transformações que estavam
ocorrendo no século V a.C., ainda sofriam muitas influências dos processos religiosos
vigentes nesse período, fundamentalmente baseados no culto dos deuses. Assim, os conceitos
de hybris e de phronesis exerceram um papel fundamental no rumo de suas paideîai.
Então, vamos tentar entender como por meio da observância desses dois conceitos,
muito caros para sua sociedade, foi possível aos gregos alimentar o desejo de obter algo tão
almejado quanto a areté. Para tal objetivo, inicialmente devemos compreender a mudança que
ocorreu em alguns desses conceitos ao longo desse século, e assim, conscientes dessas
transformações e de suas repercussões nos hábitos e nos costumes de seus indivíduos, tornar
possível entender sua influência nos processos educacionais, culturais e morais.
O conceito de hybris foi um dos que recebeu uma nova interpretação, apesar de estar
solidamente estabelecido na sociedade da época, com base em um significado puramente
pragmático, concentrado apenas na esfera do direito, em que era visto simplesmente como
uma oposição à dike. A hybris, sob essa nova perspectiva, ganhou todavia, uma roupagem
mais transcendental e recebeu um viés religioso, o qual passou a tratar a hybris como um
desejo incontrolável de possuir algo que pertence a outro, ou seja, a pretensão do homem de
desejar possuir alguns atributos de exclusividade dos deuses. Nesta mesma linha de
raciocínio, Jaeger afirma que a hybris representa “a pleonexia do homem em face da
divindade” e, complementa, que ela também seria um tipo de “inveja dos deuses” 196. Portanto,
com base no conceito de hybris que reinava na sociedade grega da época, ela deveria ser um
tipo de sentimento reprovado e um modo de pensar descartado, especialmente para os homens
que buscavam por suas ações e pensamentos atingir a virtude.
196
JAEGER, 1995, p. 197.
82
Contrariamente ao conceito de hybris, o conceito de phronesis tinha uma característica
fundamentalmente positiva, composta por um conjunto de atributos baseados no real
conhecimento dos valores éticos e morais, sedimentados na razão; bem como no autodomínio
que conduzia o homem a um processo de compreensão de si mesmo e o levava a enxergar
seus próprios limites. Segundo o mesmo Jaeger 197, o melhor caminho para a obtenção da
phronesis é por meio da sophrosyne, também conhecida como temperança e prudência, que
significava para o pensamento deste período o seguinte: “A medida apolínea não é a
excrescência da tranquilidade e do conformismo burguês. A autolimitação individualista é um
dique para a atividade humana”. Do mesmo modo, Guthrie 198 considera a sophrosyne um
elemento de fundamental importância para atingir-se a phronesis, principalmente por
recomendar o uso da ponderação e por defender em seus princípios a arte da medida.
Desse modo, podemos identificar claramente o grande peso desses dois conceitos
dentro do modelo pedagógico de ambas as paideîai; os fatores, contudo, que os levaram a
adotar esses princípios foram totalmente diferentes. Enquanto os sofistas defendiam um
agnosticismo e relativismo fundamentados na doutrina do homem como medida 199 e na
questão de não se importarem com a existência, ou não, dos deuses200, Sócrates ainda
respeitava os aspectos religiosos de sua comunidade e seguia os preceitos apolíneos do
conhecimento de si mesmo e a preocupação com os limites do homem 201.
Os sofistas valorizavam em seu modelo pedagógico as questões da vida prática e
defendiam o uso da sophrosyne, ou prudência, com o objetivo de alcançar a phronesis.
Embora eles seguissem certo padrão em seus programas educacionais, cada um deles tinha
algo que os particularizava; enquanto Protágoras focava seu ensinamento no respeito às
diversidades religiosas e culturais, Górgias visava o direito à plena defesa202. Logo, era uma
paideía voltada para os negócios humanos, sem levar em consideração os aspectos e as
influências das divindades, ou seja, uma phronesis fundamentada unicamente na razão,
instrumentalizada pela arte da medida com base nos limites humanos, desprezando suas
características religiosas.
197
JAEGER, 1995, p. 196.
GUTHRIE, 1995, p. 241.
199
SOFISTAS, 2005, p. 58.
200
“Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos
empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana” (Fr. 4, obtido na obra
Sobre os deuses, de Protágoras, apud GUTHRIE, op. cit., p. 218, e SOFISTAS, op. cit., p. 82).
201
JAEGER, op. cit., p. 201.
202
Conforme visto no item 1.5 deste estudo.
198
83
Já Sócrates seguia as tradições religiosas existentes em Atenas, sob uma perspectiva
mais moderna e contemporânea, a qual estava desvinculada do misticismo bastante arraigado
na sociedade ateniense. Dessa forma, em seu modelo pedagógico respeitava as opções
religiosas de sua comunidade, defendendo o ato de prestar culto aos deuses e acreditando nos
atributos divinos da onipresença e da onisciência. Segundo Xenofonte, Sócrates em seus
discursos ensinava o seguinte:
Tenho para mim que, assim falando, Sócrates ensinava seus discípulos a se absterem
de toda a ação ímpia, injusta e reprovável, não somente em presença dos homens
como também na soledade, visto convencê-los de que nada do que fizessem
escaparia aos deuses203.
Portanto, ele definitivamente respeitava as divindades, e a presença do conceito de hybris e de
phronesis como dois elementos ativos em sua paideía é algo inquestionável204.
Assim, o processo do autoconhecimento e do autodomínio, exaustivamente abordado
em sua paideía, permite ao homem a obtenção do discernimento necessário para distinguir o
que é do escopo dos deuses e do escopo dos homens. Ele pretende ensinar a arte da medida205,
que estabelece limites às ações e às pretenções humanas, que é o caminho para se obter a
phronesis. Jaeger afirma o seguinte:
A virtude filosófica da phronesis é aquela única e vasta virtude que Sócrates
investigou ao longo da vida toda. Está adstrita à parte mais divina do Homem, que
sempre está presente nele, mas cujo desenvolvimento depende da atuação correta da
alma e da sua essencial conversão para o Bem206.
Em suma, as duas paideîai visavam ensinar a arte da medida, por meio da proposta de
obter certo equilíbrio entre a hybris e a phronesis; no entanto, a paideía sofista baseava-se no
agnosticismo e no relativismo, e a socrática estava fundamentada no reconhecimento dos
limites humanos.
203
XENOFONTE, 2009, I, 5, 11.
“Senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum
tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo,
como se dissesse: ‘O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é
verdadeiramente desprovida do mínimo valor’” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 20e. In: PLATÃO 1973, v. I).
205
“Por isso, pensa antes de dares rédeas a tuas paixões. Há aí pelo menos o germe do ‘cálculo hedônico’ que
Sócrates advoga no Protágoras e que obviamente desempenhou papel importante na formação de seu
pensamento. Tudo depende de fazer a decisão correta, isto é, o cálculo e a ponderação corretos dos próprios
interesses. Isso nos aproxima do intelectualismo socrático. O que se requer para uma escolha correta de prazeres
é, na frase de Sócrates, uma ‘arte da medida’” (GUTHRIE, 1995, p. 241).
206
JAEGER, 1995, p. 891.
204
84
3.2.3 A observância às leis
O respeito que os membros dessas duas paideîai dedicavam às leis é mais um tema
que considero de extrema relevância para este estudo. Apesar de o movimento sofista ter
surgido com uma proposta revolucionária que constantemente entrava em conflito com os
valores tradicionalmente aceitos pela sociedade grega, eles eram bastante conservadores no
que se refere ao cumprimento das leis. Do mesmo modo, Sócrates também as respeitava de
forma incondicional. Até mesmo, devido a sua extrema obediência as leis, mesmo sendo
inocente das acusações que sofreu, resolveu acatar sua condenação imposta pelos juízes
atenienses. Outra prova de seu respeito às leis foi o fato de ter recusado a oportunidade que
foi oferecida por seus amigos de fugir da prisão, pois, segundo ele, com essa atitude iria ferir
seus princípios morais e desprezaria algo que respeitou por toda sua vida, decisão que resultou
em sua morte por envenenamento207.
Embora houvesse diversas divergências entre a paideía sofista e a socrática, neste
aspecto em particular havia um sincronismo e uma harmonia no modo de pensar a educação
que seria oferecida para os futuros cidadãos de Atenas. Como o principal objetivo de seus
programas educacionais era formar cidadãos que pudessem exercer seus direitos e deveres na
pólis, somente um conjunto de normas e preceitos que procurassem preservar o mínimo de
igualdade e de justiça social poderiam propiciar a manutenção da convivência pacifica entre
indivíduos com tamanha diferença cultural, educacional, ética e moral. Esse elemento, graças
ao poder coercitivo, foi capaz de unir as pessoas em uma única comunidade, mantendo os
princípios básicos de respeito e de interesse mútuo208.
Assim, as leis, com suas regras, premissas e conceitos, sempre acompanharam o
programa educacional de ambas as paideîai. Jaeger corrobora esta ideia quando afirma que a
educação é responsável pelo desenvolvimento sólido de uma sociedade, ou seja, a estabilidade
das leis garante uma estrutura adequada para a obtenção dos fundamentos de uma educação
de qualidade, que venha formar o espírito de seus indivíduos209. Neste sentido, é possível
207
“Finally, both mention his refusal of the offer of his friends to arrange his escape after condemnation, the
subject of Plato’s Crito” (GUTHRIE, 1978, p. 58).
208
“Não sabes que dentre os magistrados de uma cidade, em todos os termos melhores são aqueles que mais
inspiram aos cidadãos a obediência às leis? Que o Estado onde os cidadãos são mais submissos às leis é também
o mais venturoso na paz e invencível na guerra? A concórdia é para as cidades o maior dos bens”
(XENOFONTE, 2009, IV, 4, 19).
209
“A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem os seus
membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade
85
entender o apoio incondicional que as paideîai dos sofistas e de Sócrates concederam às leis
em seu programa educacional.
A paideía socrática, por intermédio de Sócrates, seu principal personagem, foi
reconhecidamente marcada por ensinar a prática da virtude, bem como, sendo ele um modelo
de virtuosidade, acabou associando seu comportamento ao do homem medida 210. Logo, seu
modelo pedagógico não poderia ter outra linha de pensamento que não fosse a busca da
virtude, principalmente no que se refere à obediência às leis, pois para Sócrates o indivíduo
que procura alcançar a essência da virtude jamais deve desrespeitar as leis, sejam elas escritas
ou não. Segundo Guthrie, Sócrates demonstrou fidelidade e respeito às leis ao longo de toda
sua vida, manifesta em seus atos e pensamentos. Basta observar diversos exemplos contidos
nos diálogos socráticos, principalmente, na Apologia e no Críton211.
Portanto, Sócrates em sua paideía procurava formar os homens com o objetivo de
adquirir a areté, processo no qual, entre outras coisas, preparava seu educando para servir sua
comunidade, ou seja, formar um homem político. E um dos atributos desse homem político é
a observância às leis.
Da mesma forma que a paideía socrática, a paideía sofista defendia o respeito as leis,
pois, com base na valorização das instituições e da solidez de suas normas, seria possível
estabelecer critérios que atendessem suas perspectivas educacionais, e o regime democrático
existente em Atenas, favorecia plenamente a implantação de programas que visassem a
formação do homem político. Sua observância às leis era tal, que defendiam em sua paideía o
total respeito a elas, e ao menos um de seus membros acreditava que o poder coercitivo do
Estado era um elemento constitutivo do processo de formação do espírito do homem 212.
Assim, a experiência de seus representantes foi muito significativa no processo de valorização
das instituições. Para fundamentar essa afirmação, cito o caso de Protágoras, que foi
humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto,
como um grupo étnico ou um Estado. [...] A estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos
fundamentos da educação. Da dissolução e destruição das normas advém a debilidade, a falta de segurança e até
a impossibilidade absoluta de qualquer ação educativa” (JAEGER, 1995, p. 5).
210
“Quando os Trinta lhe davam ordens avessas às leis, não as acatava. Assim, quando lhe proibiram o palestrar
com os jovens e o encarregaram, juntamente com outros cidadãos, de conduzir um homem que intentavam
assassinar, só ele se recusou de obedecer, porque tais ordens eram ilegais. Chamado por Meleto perante os
tribunais, longe de seguir o costume dos acusados, que, malgrado o proibirem as leis, tomam da palavra para
ganhar o favor dos juízes, adulá-los e dirigir-lhes súplicas, e assim muitas vezes se fazem absolver, não quis de
tal guisa infringir as leis: posto facílimo lhe fora lograr a absolvição, preferiu morrer dentro da lei a transgredi-la
para viver” (XENOFONTE, 2009, IV, 4, 17).
211
GUTHRIE, 1978, p. 82.
212
PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III.
86
legislador e redigiu as leis de Thurii213 e de Górgias, que foi embaixador de sua cidade em
Atenas214.
Conforme dito anteriormente, o ensino da arte política foi a principal meta do
programa educacional dos sofistas, e, tanto quanto Sócrates, estavam preocupados com o
processo de formação consciente dos futuros cidadãos para atender as necessidades da
comunidade e do Estado; no entanto, diferentemente do que ocorria com a paideía socrática,
eles desejavam alcançar objetivos mais imediatos e focavam as questões da vida prática,
como, por exemplo, o sucesso na pólis. Para tal, eles necessitavam fundamentar suas bases
educacionais nas normas escritas e não escritas da localidade em que iriam ministrar seus
ensinamentos, já que eram professores itinerantes. E o regime democrático encaixava-se
perfeitamente em suas pretensões, pois a democracia, graças a sua proposta de liberdade e de
igualdade, permitia a qualquer cidadão postular um cargo público na pólis.
Portanto, o fortalecimento e a manutenção do Estado democrático era algo de seu
máximo interesse, bem como um terreno fértil para o movimento sofista plantar a semente de
uma formação utilitária e pragmática 215. Segundo Protágoras, são as leis, em conjunto com a
justiça, que trazem ordem às nossas cidades e fortalecem os laços de amizade e de coesão
entre os indivíduos de uma determinada comunidade216. Conforme suas próprias palavras: “O
Estado estabelece as leis, que são invenção dos bons legisladores de tempos antigos, e
compele os cidadãos a governar e serem governados em conformidade com elas”217. Logo,
para eles as leis promovem a criação de uma sociedade organizada e justa, pois por meio delas
é possível corrigir os desvios de caráter de seus cidadãos.
Consequentemente, ambas as paideîai tinham um grande respeito pelas leis, as quais
utilizavam em seus modelos pedagógicos conceitos que valorizavam e destacavam a
importância da manutenção e da obediência às normas e preceitos estabelecidos pelo
Estado218. Os sofistas empregavam em seus programas educacionais um método mais
213
BRÉHIER, É. História da filosofia, v. 1, t. 1. Tradução de E. Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p.
128.
214
GUTHRIE, 1995, p. 22.
215
“No séc. V, a democracia, como instituição política estabelecida e como ideal, atingiu seu clímax em Atenas e
algumas outras cidades gregas. Ela constituía parte de um movimento geral rumo à igualdade, e a necessidade de
defender a democracia era estímulo a ulteriores argumentos em seu favor” (id., ibid., p. 138).
216
“É a justiça que acarreta ordem em nossas cidades e cria laços de amizade e união” (PLATÃO. Protágoras,
322c. In: PLATÃO, 1973, v. III.).
217
Id., ibid., 326d.
218
“O Estado pode ser persuadido de que errou e a emendar suas leis, pelo que o conteúdo da ação justa neste
Estado será alterado. Mas a observância daquelas leis defeituosas, até serem alteradas por processos
constitucionais adequados, era moralmente correta como alternativa ao caos que seguiria se todo cidadão se
sentisse livre para desconsiderá-las” (GUTHRIE, 1995, p. 137).
87
dogmático para ensinar seus discípulos o quanto é importante o respeito às leis, enquanto
Sócrates acreditava que a obediência e o respeito as leis deveriam fazer parte de um processo
natural de conscientização de seus educandos.
3.2.4 Sobre os ideais humanistas
A tendência humanista que surgiu no período clássico grego foi fruto de um conjunto
de circunstâncias históricas e sociais. Até mesmo, se forem analisadas de uma forma mais
rigorosa, levam-nos a crer que não passaram de um processo evolutivo e natural de seu povo e
de suas cidades. Portanto, aspectos ligados à religião, como o rompimento do culto às
divindades, e fatores sociais, como a diversidade cultural, fruto do cosmopolitismo das suas
principais cidades, podem ser considerados os maiores agentes motivadores dessas
transformações.
De qualquer modo, esses fatores propiciaram o amadurecimento e o despertar de seu
povo para um progresso intelectual que conduziu seus indivíduos ao uso da razão, provocando
uma verdadeira cisão com os valores culturais e religiosos tão profundamente entranhados em
sua sociedade. Este processo renovador atingiu todos os segmentos da sociedade grega, e a
educação não foi uma exceção à regra, pois houve uma reformulação no modo e no foco dos
seus programas educacionais. Segundo Jaeger, as paideîai passaram a preocupar-se com a
formação dos adultos e visavam a atingir a educação consciente do homem, como segue:
“Esta educação ética e política é um traço fundamental da essência da verdadeira paideía. Nos
tempos clássicos é essencial a ligação entre a alta educação e a ideia do Estado e da
sociedade”219.
Logo, a crise nos valores educativos que atingiu a sociedade grega não foi fruto do
acaso, e sim parte de um processo que teve seu início na época dos poetas e chegou a seu
ápice no período clássico. Essa evolução histórica teve como consequência um deslocamento
dos interesses de seus intelectuais para a existência humana, e essas mudanças, por meio de
um processo plenamente amadurecido, repercutiram em todos os ramos de atividade, em
especial na educação, o que propiciou a concepção de uma nova forma consciente de educar.
219
JAEGER, 1995, p. 348.
88
Esse ideal de formação humana foi um marco nos processos educacionais gregos, e
tanto a paideía sofista quanto a socrática foram influenciadas por essa tendência humanista de
considerar a educação como algo universal, deslocando-a de um simples saber técnico para
tratá-la de um modo mais abrangente e global, isto é, como cultura 220. Assim, devido às
circunstâncias sociais e políticas, os sofistas e Sócrates, como homens de seu tempo foram os
principais responsáveis por transformar e renovar os métodos educativos vigentes nessa
época, pois passaram a encarar sua atividade formadora como um processo consciente de
educação do espírito do homem221.
Para cumprir tal objetivo, a paideía socrática, ainda influenciada pela religião 222,
sedimentou suas bases educacionais na existência humana, isto é, dirigiu todo o seu esforço
educativo para o interior do ser, priorizando o conhecimento de si mesmo. Deste modo, o
modelo pedagógico socrático visava atingir a formação consciente do espírito, utilizando para
tal o caminho do extremo cuidado com a alma humana 223.
Segundo Sócrates, é na alma que encontramos o aspecto mais íntimo do ser e este é o
local em que reside nossa realidade interior, manifesta em palavras e ações e que tem a
possibilidade de conhecer e distinguir o bem do mal 224. Logo, a alma é a sede de nossa
consciência e é a ela que Sócrates dedica todo o seu empenho educativo.
Outro aspecto desse humanismo dentro da paideía socrática é que, além de concentrar
suas preocupações no próprio ser, também buscava a obtenção de uma cultura geral baseada
na virtude pessoal e na virtude política; isto, contudo, só foi possível, ao implementar em seu
modelo pedagógico o uso da razão, simultaneamente com o conceito de philía, o qual tratava
220
“A posição central que Protágoras atribui à educação do Homem caracteriza o propósito espiritual da sua
educação como ‘humanismo’, no sentido mais explícito. Este consiste na ordenação da educação humana por
sobre todo o reino da técnica, no sentido moderno da palavra, isto é, da civilização. Esta separação clara e
fundamental entre o poder e o saber técnico e a cultura propriamente dita converte-se no fundamento do
humanismo” (JAEGER, 1995, p. 350).
221
“Socrates says that education does not mean handing over knowledge ready made, nor conferring on the mind
a capacity that it did not have before, as sight might be given to a blind eye. The eye of the mind is not blind, but
in most people it is looking the wrong way. To educate is to convert or turn it round so that it looks in the right
direction” (GUTHRIE, 1995, p. 104).
222
A influência religiosa na paideía socrática estava fundamentada na distinção do que pertencia ao escopo dos
deuses e ao que pertencia ao escopo dos homens. Portanto Xenofonte em sua obra nos dá uma luz sob essa
questão com a seguinte máxima socrática: “Há mister ajudar-se da adivinhação, dizia, para bem gerir as casas e
os Estados. A arquitetura, a metalurgia, a agricultura, a política e a teoria das ciências que tais, o cálculo, a
economia, e todos os conhecimentos congêneres estão, opinava, ao alcance da inteligência humana, porém,
agregava, o que de mais eminente encerram estas ciências, encofram-no os deuses para si, sequer
entremostrando-o aos olhos dos homens.” E conclui dizendo: “aprendamos o que nos conferiram os deuses a
faculdade de aprender, dizia, e deles procuremos saber o que nos é velado. Porque eles o revelam aos que
distinguem com seus favores” (XENOFONTE, 2009, I, 1, 2).
223
Conforme visto no item 2.3.
224
“Tampouco vês tua alma, senhora de teu corpo: de sorte que poderias dizer nada fazeres com inteligência,
mas tudo fazeres ao acaso” (id., ibid., I, 4, 3).
89
seus educandos de um modo diferenciado, ou seja, de uma forma denominada amizade
virtuosa, em que todos os envolvidos no processo educativo eram considerados como iguais.
Dessa maneira, por esse método Sócrates aplicava os preceitos do autoconhecimento, da
autoconsciência e do autodomínio, fatores que permitem ao homem atingir um conjunto de
virtudes, que o conduzem a exercer com sabedoria as atividades do seu dia a dia e as
atividades políticas, caso lhe sejam atribuídas.
Já a paideía sofista, totalmente distante das influências religiosas, aplicava em seu
modelo pedagógico, de forma integral, o que os comentadores denominam um processo de
educação consciente225, ou seja, trouxe para si a responsabilidade de educar e de formar os
indivíduos, rompendo definitivamente com os fatores limitantes dos processos educacionais
existentes neste período226. Assim, desvinculavam as questões religiosas, hereditárias e sociais
de seu modelo pedagógico, tornando o homem o centro de suas preocupações educacionais.
Essa paideía fundamentada em princípios laicos e humanistas facilitou a inclusão de
conceitos abstratos em seu modelo pedagógico, característica típica do racionalismo. Dessa
forma, os sofistas deixam para trás os métodos aplicados pela educação aristocrática e
propõem uma educação completa, abarcando desde a infância até a vida adulta. Essa proposta
educacional inicia-se na família e termina no Estado, por meio do poder coercitivo das leis.
Logo, a paideía sofista, baseada em seu humanismo exacerbado 227, prioriza formar o homem
político mediante o uso da razão, tornando-o um ser consciente e preparando-o para exercer
um papel importante na sociedade, isto é, tem o objetivo de obter a formação consciente do
espírito, atingindo sua grande meta, que era formar o homem para alcançar a areté política.
Para tal, os sofistas conceberam um programa educacional composto por um conjunto
de disciplinas formais que atuavam como forças formativas da alma. Sobre esse tema, Jaeger
afirma:
225
“A velha educação helénica, anterior aos sofistas, ignora a distinção entre religião e cultura. Está
profundamente enraizada no religioso. A cisão tem lugar no tempo dos sofistas, que é ao mesmo tempo a época
da criação da idéia consciente da educação.” (JAEGER, 1995, p. 349).
“É no mesmo período que o impulso total em direção ao abstrato começa a ser reconhecido como tal. Os
atenienses tornam-se conscientes de si próprios historicamente; reconhecem que algo novo se introduziu em sua
linguagem e em sua experiência e começam a chamá-lo de "filosofia". Até mesmo os escassos vestígios que
subsistiram dos escritos sofísticos revelam imediatamente o tamanho do seu esforço para atingir um novo nível
de discurso e um virtuosismo no vocabulário que visam a classificar tanto os processos psíquicos (por exemplo,
emoção, razão, opinião etc.) quanto a motivação humana (por exemplo, esperança, medo) assim como o
princípio ético (por exemplo, utilidade ou justiça).” (HAVELOCK, 1996, p. 212).
226
Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo.
227
“que a humanidade, o ‘ser do Homem’ se encontrava essencialmente vinculado às características do Homem
como ser político” (JAEGER, op. cit., P. 15).
90
A nova técnica é evidentemente a expressão metódica do princípio de formação
espiritual que se desprende da forma da linguagem, do discurso e do pensamento.
Esta ação pedagógica é uma das grandes descobertas do espírito humano. É nestes
três domínios da sua atividade que ele, pela primeira vez, adquire consciência das
leis inatas da sua própria estrutura228.
Portanto, o humanismo proposto pela paideía sofista construiu um programa educacional
voltado para formar o espírito do homem, composto por técnicas pedagógicas que visavam
atingir a arte política, por meio do uso do lógos, ou seja, o processo de comunicação oratória e
racional utilizada como meio de persuasão. E, neste sentido, deixou-nos um legado
indiscutível.
O capítulo apresentou os pontos de divergência e de semelhança entre a paideía sofista
e a socrática. E, até mesmo, conforme nossa proposta inicial, foram abordados os aspectos
considerados mais relevantes em relação às diferenças entre suas paideîai; bem como nos
itens que destacaram suas semelhanças foi possível observar que algumas delas estão muito
mais associadas ao momento histórico que ambos compartilharam, do que uma semelhança
efetiva nos seus ideais pedagógicos.
228
JAEGER, 1995, p. 363.
91
CONCLUSÃO
O estudo apresentou as principais características pedagógicas dos representantes mais
significativos de cada uma dessas paideîai, bem como analisou as diferenças e semelhanças
entre as perspectivas educacionais da paideía sofista e da socrática. Agora nos cabe fazer uma
reflexão sobre o que foi abordado e avaliar se as metas propostas foram atingidas de forma
satisfatória e se forneceram elementos suficientes para esclarecer a enorme contribuição que a
paideía dos sofistas e a de Sócrates trouxeram para os processos educacionais do mundo
ocidental.
Essa nova forma de educar, denominada Paideia, provocou grandes impactos na
sociedade da época e influenciou de forma significativa seus programas educacionais. Nesse
sentido, a descrição dos principais conceitos da paideía sofista e da socrática feitas ao longo
do estudo foram fundamentais para avaliar a importância desse movimento educativo nos
processos de formação dos indivíduos e destacar sua participação efetiva na concepção de um
modelo pedagógico mais racional e humanista, que desempenhou um papel relevante nos
rumos educacionais das futuras gerações. Quanto a essa característica, Guthrie faz a seguinte
afirmação: “nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de
seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na
história do pensamento ocidental até os nossos dias” 229; enquanto Jaeger diz o seguinte:
O Estado do século V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande
movimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e no qual
tem origem a ideia ocidental da cultura. Como os gregos a viram, é integralmente
político-pedagógica230.
Dessa forma, tanto a paideía sofista quanto a socrática marcaram profundamente os modelos
pedagógicos da Antiguidade e foram uma semente lançada ao solo de um movimento
renovador,
que
germinou
e
influenciou
efetivamente
os
processos
educacionais
contemporâneos.
Outro aspecto observado ao longo do estudo foi a divergência na forma de interpretar
a essência da virtude. Neste sentido, as passagens abordadas no diálogo Protágoras e sua
subsequente evolução apontaram para algumas diferenças entre essas duas paideîai,
principalmente no que diz respeito a seu conceito de areté. Segundo Sócrates, o grande
229
230
GUTHRIE, K. 1995, p. 12.
JAEGER, W. 1995, p. 30.
92
objetivo da paideía sofista era a aquisição da areté política, algo que em sua concepção não
passava de uma simples tékhne ou arte. Por sua vez, Protágoras defendia sua paideía ao
afirmar que ela buscava alcançar algo muito maior do que a arte política, pois seu modelo
pedagógico fundamentava-se em um conjunto de saberes que conduziam o educando à
obtenção do que ele considerava como a excelência do viver bem em sociedade, ou seja, a
areté política. Logo, com base nas passagens que tratam esse tema, foi possível concluir que
as paideîai dos sofistas e de Sócrates concebiam o conceito de virtude sob perspectivas muito
diferentes.
Esse fato explica a pretensão de os sofistas ensinarem a areté, mais especificamente, a
areté política, e demonstra que eles a encaravam sob um ponto de vista mais pragmático, ou
seja, como um conjunto de conhecimentos que visava prover seus educandos do poder da
oratória e da persuasão, e, consequentemente, o sucesso na pólis. Já Sócrates adotou um
modelo pedagógico fundamentado no aperfeiçoamento da alma humana, obtido pelo processo
do autoconhecimento e do autodomínio, não restrito apenas às questões políticas, mas sim a
todos os âmbitos da vida humana, mesmo porque ele não concebeu sua paideía para atingir
apenas um aspecto da areté, e sim o seu todo. Outro ponto de divergência entre a paideía
sofista e a socrática foi a possibilidade de ensinar a virtude. Enquanto Sócrates acreditava que
a única função do educador é servir como um agente facilitador para o educando descobrir o
que ele já possui em sua alma, os sofistas intitulavam-se “mestres da sabedoria” e diziam ser
capazes de ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa.
Essas particularidades de seus programas educacionais trouxeram à tona uma das
questões mais importantes do estudo, ou seja, se existe uma paideía mais adequada para
ensinar a virtude. Esta problemática acabou apresentando um resultado bastante
surpreendente, pois, se ambas as paideîai tratassem a areté sob o mesmo ponto de vista
conceitual, até seria possível determinar qual delas é a mais adequada para cumprir tal
objetivo; no entanto, conforme observado ao longo de todo o estudo, a areté que os sofistas
buscavam alcançar por meio de sua paideía era diferente da que Sócrates visava atingir por
meio de seus métodos pedagógicos. Assim, dadas as particularidades e especificidades de
seus objetivos educacionais, tanto a paideía sofista quanto a socrática foram eficientes no
sentido de alcançar o ensino do que cada uma delas considerava como sendo a virtude.
Algo que também pôde ser esclarecido foi a possibilidade de haver alguma
semelhança entre suas paideîai. Com base no exposto durante o estudo foi possível identificar
que elas estavam muito mais associadas às tendências educacionais que elas compartilharam
93
no século V a.C. do que por uma real afinidade em seus ideais pedagógicos. Desse modo,
como Sócrates e os sofistas foram contemporâneos, eles sofreram as mesmas influências das
forças renovadoras existentes na época, propiciando alguns pontos em comum em suas
paideîai; cabe, contudo, destacar que cada uma delas foi extremamente fiel a seus princípios
pedagógicos.
Assim sendo, o estudo abordou as características pedagógicas e as perspectivas
educacionais da paideía sofista e da socrática, além de ter analisado suas principais diferenças
e semelhanças. E, com base no conjunto das suas ações, é inquestionável a contribuição que
elas deixaram para a civilização europeia ocidental, e, mais do que isso, os seus representantes
foram os precursores de um tipo de educação voltada para a formação consciente do espírito
do homem, isto é, os responsáveis pelas mudanças que influenciaram os métodos pedagógicos
até nossos dias.
Outra contribuição de extrema relevância que essas paideîai deixaram como legado
para as futuras gerações foi a valorização da convivência social e a tolerância entre os
indivíduos. Isto pode ser observado na paideía sofista, pelos ideais protagorianos do respeito
às diferenças religiosas e culturais, e na gorgiana, no direito de plena defesa e no respeito ao
estado de direito. Enquanto na socrática, após passar pelo processo do autoconhecimento e do
autodomínio, o indivíduo obterá de forma consciente sua liberdade interior e sua autonomia
moral, ou seja, um ser que não admite deixar-se dominar por seus apetites nem por suas
paixões. Logo, a educação proposta por ambas paideîai, por meio do esclarecimento, permite
que a pessoa, antes de julgar a ação do outro, pondere e passe a aceitar as diferenças,
especialmente por compreender que cada um de nós tem seus próprios juízos de valor. Isso
ficou claro quando Górgias defendeu o ideal de conceder a todos o direito de plena defesa,
Protágoras ao apoiar o respeito à diversidade cultural, e Sócrates na busca incansável da
liberdade plena do ser, por meio da autonomia e da autarquia.
Desse modo, podemos concluir que tanto a paideía sofista quanto a socrática
apresentam diversas perspectivas originais e importantes, e caso fizéssemos um exercício de
abstração e concebêssemos uma paideía socrática com características gorgianas, teríamos um
programa educacional com todas as qualidades encontradas na paideía socrática,
incrementada pelos aspectos marcantes da gorgiana, em especial, na defesa incondicional dos
direitos individuais, ou seja, poderíamos ter um Sócrates mais engajado em sua defesa, agindo
perante o júri de uma maneira muito mais efetiva e persuasiva, com base em seus direitos e na
convicção de sua inocência, e, quem sabe, não aceitasse tão passivamente sua condenação, já
94
que estava sendo acusado de forma indevida. De outro modo, se pensarmos na hipótese de
uma paideía sofista, mais especificamente, a gorgiana, com traços da socrática, teríamos uma
retórica menos focada no uso da persuasão como um instrumento de convencimento dos
indivíduos e mais preocupada com o valor de verdade de seus argumentos, passando a
respeitar os aspectos morais e individuais das pessoas, o que aproximaria a retórica sofista de
um tipo de retórica que seria defendida futuramente por Aristóteles, ou seja, a retórica
filosófica.
Portanto, a paideía sofista, com objetivos mais pragmáticos e fundamentada na
aceitação da multiplicidade, isto é, no respeito a diversidade, e a paideía socrática, baseada
em uma formação mais abrangente, mas limitada em alguns aspectos pelo caráter individual
do seu aprendizado e pela busca incansável da unidade, inegavelmente contribuíram para a
formação dos processos educativos existentes na atualidade; bem como, auxiliaram na
construção de diversas tendências educacionais, as quais serviram como modelo para o
desenvolvimento de novas técnicas pedagógicas. O método sofista é útil para um tipo de
formação mais célere, enquanto o método socrático para uma formação mais perene; no
entanto, o que à primeira vista parece constituir uma desvantagem do método sofista, em
algumas situações pode ser um ponto favorável, pois em um processo de formação mais
imediata, ou mesmo de reciclagem de conhecimentos, ele pode ser bastante eficiente. Em
suma, não existe nem a melhor nem a pior paideía, mas sim, a mais adequada para atingir um
determinado objetivo educacional.
95
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