(DES) TERRITORIALIDADE: CAMINHOS PERCORRIDOS POR TRABALHADORES SUJEITOS AO PROCESSO MIGRATÓRIO INTERNO E SUA RELAÇÃO SUBJETIVA COM O TRABALHO Daniele Almeida Duarte1 Cristina Amélia Luzio INTRODUÇÃO 1. A que contexto nos referimos? Segundo Ianni (1993), a globalização e seu processo de desterritorialização e desenraizamento podem promover outras possibilidades de ser, agir, sentir, pensar, sonhar e imaginar. Ainda são incognoscíveis as condições que podem surgir do encontro de indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos, projetos de vida individual e coletivo e estilos de pensamento tão díspares, os quais estão sendo lançados progressivamente na sociedade global: [...] Ampliam-se e generalizam-se outras e novas condições de realização das diversidades, singularidades, universalidades (...) uns e outros deixam de estar vinculados a somente, ou principalmente, uma cultura, história, tradição, língua, religião, ideologia, utopia. O desenraizamento que acompanha a formação e o funcionamento da sociedade global põe uns e outros, situados em diferentes lugares e distintas condições sócio-culturais diante de novas, desconhecidas e surpreendentes formas e fórmulas, possibilidades e perspectivas. Compreendido em suas diversas conotações, o processo de desterritorialização liberta horizontes sociais, mentais, imaginários, abrindo novos e distintos ângulos à ciência, à filosofia e à arte (p. 101, 102). Em meio a tais transformações, estão sendo rompidos os antigos quadros mentais de referências e desconstituídos significados tradicionais para se inserirem novas formas de subjetivação. Joel Birman (2001), ao apresentar e avaliar as novas formas de mal-estar na atualidade e suas respectivas formas de subjetivação, aponta que o sofrimento está sendo silenciado. 1 Aluna do curso de Pós-Graduação, nível mestrado, em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras – campus de Assis. Rua Rodrigues, 744 apto. 25 – Vila Rodrigues, CEP 19807-270, Assis – SP. (18) 3323-1850, [email protected] No discurso pós-moderno, há um modelo a ser seguido, um enquadramento, um imperativo do que deve ser o sujeito e uma norma de sanidade que submete cada indivíduo. Na denominação de Debors (1992 apud Birman, 2001) a “Sociedade do Espetáculo” tem seu preço, pois o sujeito ao perder suas relações com as idéias de tempo e história, ao centrar-se na pontualidade do momento, sofre as conseqüências do silenciamento de sua memória. Isto decorre da obsessão e importância demasiadas atribuídas ao tempo presente. Também implica no estreitamento do horizonte futuro, pois o imediatismo da presença obnubila a dimensão do devir do indivíduo: “[...] uma nova concepção do sujeito centrado na presença e na pontualidade do tempo, no aqui e agora, em que as instâncias do passado e do futuro se silenciaram relativamente” (Birman, 2001, p. 246). Vivenciamos uma época em que as relações com o tempo e o espaço foram profundamente transformadas. De acordo com Bauman (1999), estamos todos em movimento. Muitos mudam de lugar, seja de casa ou viajando por locais que não são da residência. Também há deslocamentos diários ou sazonais rumo a destinos variados, mediante transportes terrestres, aéreos ou marítimos. Além disso, podemos nos movimentar através da Web2 e da TV percorrendo espaços virtuais e estrangeiros com altíssima velocidade. Enfim, não ficamos mais em nenhum lugar tempo suficiente para nos tornamos mais que visitantes ou ao menos nos sentirmos em casa. No mundo de hoje, a distância parece não importar mais; o modo como lidamos com os espaços no cotidiano refletem isso. A relação do homem com o espaço é desafiadora, como se este não fosse mais respeitado, mas negado e refutado. Isto é, o espaço e toda a distância envolvida deixou de ser um obstáculo e basta um “clique” para superá-los em segundos. Toda esta mobilidade decorrente da nova ordem mundial, denominada globalização, afeta os indivíduos de diferentes maneiras, suas relações são comprometidas, inclusive as do trabalho, familiar e consigo mesmo. 2 World Wide Web ou “rede de alcance mundial”, conhecido pelo famoso “www” das páginas eletrônicas. Para Octavio Ianni (1993), os fios da teia global são as tecnologias de ponta, os computadores, as máquinas de reprodução facsimilar, os satélites, os monitores perante os quais são tomadas as decisões primordiais. Todos estes são instrumentos tecnológicos vinculados a planejadores, engenheiros, contratantes, licenciadores e negociadores por todo o mundo que vencem fronteiras, ultrapassam o poderio das nações e se movem à velocidade instantânea por todo o planeta a fim de trocar, negociar produtos, serviços e conhecimentos. Segundo Ianni (1993), por onde a globalização passar, tende a desenraizar. É o processo de desterritorialização, característica essencial da sociedade global em formação, que dia-a-dia ganha ganha mais força, tornando-se gradativamente intenso e generalizado. De acordo com Bauman (1999, p. 8) a contemporaneidade está marcada por esta incessante mobilidade procedente da globalização, a qual estamos sujeitos aos seus efeitos: Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E no entanto os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se plena e verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua “localidade” – transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. Para este autor, estar localizado num mundo globalizado é sinonímia de privação e degradação social, pois os centros de produção de significado e valor dizem respeito a uma restrita elite extraterritorial, a qual se encontra emancipada das restrições locais e espaciais – o que não condiz com a condição humana, cujos valores e significados de tais elementos devem informar e dar sentido à sua existência. Bauman (1999) aponta que o mundo não se parece mais com uma totalidade e sim com um campo de forças, que por sua vez, são dispersas e díspares, sem previsão e contenção. O poder encontra-se despersonificado, sem um centro específico ou um painel de controle, uma comissão diretora ou um gabinete administrativo. A economia já não se atrela ao controle político dos Estados, não dependem mais destes, o capital é extraterritorial, ocupa e suga o espaço até seus dividendos serem comprometidos. São as tecnologias que tornam o capital global livre das compressões têmporo-espaciais. O que se tem por conseqüência é afirmativo-imperativo: “as riquezas são globais, a miséria é local” (Bauman, 1999, p. 82). Com a tecnologia tornando o capital verdadeiramente global faz com que aqueles que não podem ser nômades como o capital, observem impotentes o empobrecimento e destruição do espaço local, isto é, o despovoamento qualitativo, a destruição das economias locais que outrora sustentaram seus habitantes e a exclusão de milhares que não podem adentrar à nova economia global. 2. O valor subjetivo do trabalho para o homem e seus significados no cerne da globalização Neste cenário relatado, observamos como protagonista e mantenedor de todas estas transformações, as grandes Organizações. Estas reverberam todo este campo de forças e influenciam seus empregados tanto na esfera profissional quanto privada. Exige-se um perfil profissional capaz de se adaptar às constantes mudanças de equipe proporcional à velocidade do desenvolvimento tecnológico, o qual recai sobre o econômico e o social. Desta forma, para assegurar seu sucesso e segurança, as empresas utilizam mecanismos de poder cada vez mais sofisticados que envolvem o trabalhador por completo a fim de que este esteja sempre disposto a responder às demandas da Organização. Sujeito às constantes mobilidades e instabilidades profissionais, o trabalhador tem que estar “pronto” para ser deslocado para outras filiais da Organização, da qual faz parte, e enfrentar o custoso processo de desterritorialização e desenraizamento. Já não há um ambiente profissional que lhe seja tão familiar e enraizado, o que interfere em sua íntima relação com o trabalho e o vínculo estabelecido com este e seus companheiros. Dejours (1996) afirma que o valor do trabalho para o homem está além da realização pessoal e do status, pois está atrelado ao reconhecimento e identidade conferidos pela sublimação como também à promoção e manutenção da saúde mental: O sujeito que, submetendo seu trabalho à crítica, solicita o julgamento dos pares, pode esperar, em troca, ser reconhecido. O reconhecimento é a retribuição fundamental da sublimação. Isso significa que a sublimação tem um papel importante na conquista da identidade. Reconhecimento social e identidade como condição da sublimação conferem a essa última uma função essencial na saúde mental (Dejours, 1996, p. 158). É no trabalho que o indivíduo irá dispor de elementos constituintes desde a sua infância para poder exercê-lo e enfrentá-lo de diversas maneiras. Dejours (1996) considera dois elementos fundamentais que permitem analisar mais a fundo a relação psíquica do trabalhador com a situação do trabalho. O primeiro diz respeito ao encontro do registro imaginário (produção do sujeito) com o registro da realidade (que por sua vez, é produzido pela situação de trabalho). Já o segundo, é o encontro do registro diacrônico (relacionado com a história particular do indivíduo, ou seja, seu passado, sua memória e sua personalidade) com o registro sincrônico (o qual está atrelado ao contexto material, social e histórico das relações de trabalho). A partir de tal concepção é que Dejours elabora outras considerações sobre a subjetividade do homem, diverge daquela presente nas ciências da administração e gestão; isto é, não está em cena um homem abstrato, padronizado e desprovido de uma história de vida afetiva, mas sim um homem concreto, vivo, sensível, reativo e sofredor, avivado por uma subjetividade em constante transformação. Nesse contexto, Dejours (1996) cita a ressonância simbólica; através desta há a possibilidade de reconciliação entre o inconsciente e os objetivos da produção – condição necessária para uma articulação promissora da dicotomia do singular com o coletivo. É a ressonância simbólica que possibilita ao trabalho (qualidade e produção) o usufruto da força extraordinária originária da mobilização dos processos psíquicos inconscientes. Atualmente, imperam no mundo as Organizações hipermodernas, denominação de Pagès et al. (1987) para as Organizações divergentes das capitalistas clássicas. A partir das transformações do aparelho produtivo, ou seja, a intensa intelectualização das tarefas, a ciência ocupando um papel de destaque em todos os níveis de produção, a crescente divisão técnica do trabalho e a interdependência das tarefas, é exigido um outro perfil de trabalhador. São pessoas que não só aceitem, mas também desejem a mudança, a renovação e a atualização constante; que anseiem por transformações, sejam cooperadores uns com os outros e capazes de se adaptarem rapidamente a equipes mutantes e variáveis, empregados devidamente instruídos, dotados de iniciativa, cientes de suas ações e não meros cumpridores de tarefas. O trabalhador ao optar por uma determinada empresa, onde nesta investirá sua atividade criadora e dedicar-se-á, estará implicado na adesão de um sistema de valores pertinentes à Organização, uma filosofia que quando introjetada é combinada com uma ideologia capaz de excitar as energias para que haja dedicação de “corpo e alma” à sua atividade profissional (Pagès et al., 1987). O indivíduo na situação de trabalho não lida somente com seus pares, lida principalmente consigo mesmo e com seus conteúdos psíquicos mais obscuros (inconscientes) que são despertados pela Organização. Isto se torna possível porque a ideologia difundida por uma empresa é praticada, reproduzida e ampliada por seus funcionários. Sua validade está no mérito de ir ao encontro das aspirações, dos desejos e dos valores mais profundos do homem que não dizem respeito apenas ao âmbito individual. O desejo do trabalhador de construir uma carreira (elemento de destaque presente entre a Organização e o indivíduo) é uma via que impele o indivíduo a engajar-se e canalizar suas energias, desejos e sonhos de onipotência e perfeição para conter seu medo do fracasso e de irreconhecimento. Com isto, a Organização consegue captar a força de trabalho do seu funcionário de modo que esta tal força não se reverta em revolta contra a exploração, mesmo que haja uma constante de carga de trabalho opressiva, de tensão perene e de pressões contínuas. É o seu desejo de ascender na carreira que o impelirá a trabalhar sempre mais e melhor, entretanto, ele sofrerá efeitos de poder, pois através da obstinação de “fazer carreira” o trabalhador se encontrará ainda mais preso às amarras da Organização. 3. O território, a territorialidade e o enraizamento Por tratarmos das relações de trabalho vinculadas ao processo migratório interno (atrelado ao contexto da globalização), é necessário compreender os conceitos de território, territorialidade e enraizamento, os quais serão alvos de desmantelamento e transformação. Albagli (2004) parte de uma perspectiva histórica para realizar uma reflexão destes conceitos na atualidade e no processo de globalização (acompanhado das transformações técnico-produtivas); são mencionadas distintas dimensões, as quais, podem assumir um caráter social, político, econômico e cultural. Sendo assim, o território não se refere apenas à dimensão concreta e material, mas também a um campo de forças, de relações de poder e social, que se projeta no espaço. Logo, há uma diferenciação entre os conceitos de espaço e território. Enquanto o termo espaço representa um nível elevado de abstração, no qual se insere a perspectiva territorial, o território, por sua vez, é parte de um espaço apropriado pelo indivíduo que agirá sobre este para delimitá-lo e defini-lo através das relações de poder. O território pode assumir diversos significados em cada formação socioespacial. Sua gênese, dinâmica e diferenciação admitem características específicas que são resultantes das distintas dimensões envolvidas em sua constituição e manutenção, isto é, a dimensão física, a econômica, a simbólica e a sociopolítica. Podemos observar que o território, em sua dimensão simbólica, está repleto de significados afetivos para o indivíduo por estar vinculado à construção da história individual e coletiva. É suporte e produto da formação da identidade, pois nele são suscitados os sentimentos de pertencimento, enraizamento e especificidade. Através de uma série de representações sociais, imaginárias, simbólicas e míticas dos indivíduos, é possível projetar e materializar no espaço símbolos geográficos que serão tomados como referência e modelos comuns. De acordo com Maffesoli (1984 apud Albagli, 2004), a sociabilidade necessita de um solo para se enraizar – o que remete os indivíduos a um passado, a uma memória coletiva, a uma identidade cultural como também a construção de um projeto futuro. Por sua vez, o conceito de territorialidade geralmente está vinculado aos preceitos jurídicos que aliam a base territorial dos Estados à territorialidade das leis, das regras e das normas aplicáveis aos habitantes e aos elementos constitutivos de um país. A partir do momento que tal conceito passa a ser incorporado pelas ciências humanas e sociais (antropologia, psicologia, sociologia e geografia) a condição humana passa também a ser analisada na dimensão espacial. O conceito torna-se mais rico e complexo, referindo-se então: às relações entre um indivíduo ou grupo social e seu meio de referência, manifestando-se nas várias escalas geográficas – uma localidade, uma região ou um país – e expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir no âmbito de um dado espaço geográfico. No nível individual, territorialidade refere-se ao espaço pessoal imediato, que em muitos contextos culturais é considerado um espaço inviolável. Em nível coletivo, a territorialidade torna-se também um meio de regular as interações sociais e reforçar a identidade de grupo ou comunidade (Albagli, 2004, p. 28). Deste modo, a territorialidade remete a algo extremamente abstrato, que faz com que um território seja diferenciado em relação aos outros e torne-se depositário de afeto; o que se vive no território é refletido nas dimensões cultural, política, econômica e social. Sendo assim, territorialidade não pode ser considerado sinonímia de raízes territoriais por possuir característica dinâmica e transportável – como o exemplo dos migrantes que podem se apropriar de novos territórios que não lhes são os de origem e constituir uma identidade territorial em novos espaços. Como atributo humano, a territorialidade, é moldada pelas normas sociais e valores culturais3 que se distinguem de sociedade para sociedade, assim como de um período para outro, por estar marcada pela interação entre os seres humanos mediado pelo espaço. Após estas considerações, podemos avançar e pensar o conceito enraizamento, a compreensão de sua construção e desconstrução na vida do homem e sua relação com o território e a territorialidade. É num espaço, numa superfície territorial (num contexto de uma territorialidade específica) que será enraizada a identidade do indivíduo – um direito humano fundamental e que está sendo esquecido, conforme Simone Weil (2001, p. 43): “o enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana”. Está atrelado à sua participação ativa e comprometida com seu meio afetivo e integra a sua história biográfica: Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente. Tal afirmativa não isenta a troca entre os espaços alheios e as diferentes influências oriundas destes, menos ainda significa isolar um meio social das influências externas, mas destaca a importância de se ter um determinado meio como referência, que aclame o sentimento de pertença para assegurar o desenvolvimento do indivíduo como um todo. Pois o passado, para Simone Weil (2001), é um tesouro herdado, assimilado e recriado por cada indivíduo, sendo uma das necessidades mais vitais da existência do homem. De acordo com Ecléa Bosi (1987) os espaços estão intimamente ligados à memória, à história afetiva do indivíduo, principalmente em relação às primeiras referências constituídas na infância, como a casa e tudo o que contém em seu interior. 3 De acordo com Alfredo Bosi (2000), não existe uma cultura brasileira que possa ser caracterizada como homogênea e matriz do discurso e comportamento de cada indivíduo, mas sim, uma cultura plural, A autora afirma que os contínuos deslocamentos que a vida moderna nos obriga, impedem o enraizamento num determinado espaço, numa comunidade. O passado é desmantelado quando ocorre uma mobilidade extrema, rumo a um percurso errante – quando a rede de significações é desarticulada da história pessoal, a manifestação do sofrimento psíquico tornar-se mais provável de se efetivar. Segundo Weil (2001), há uma condição geradora de sofrimento e a qual ela denomina “doença do desenraizamento”. Esta condição é definida como desagregadora; é principiada pela dominação econômica, pelo dinheiro e interfere no predomínio destes elementos em detrimento de outros vínculos sociais: A conquista colonial causa desenraizamento e morte com a supressão brutal das tradições. A conquista militar, também. Mas a dominação econômica de uma região sobre outra no interior de um país causa a mesma doença. Age como conquista colonial e militar ao mesmo tempo, destruindo raízes, tornando os nativos estrangeiros em sua própria terra (Bosi, 2000, p. 17). Ecléa Bosi (2000) refere-se ao migrante que mergulha no mundo operário, aquele que teve que deixar suas tradições e sua história de vida obscurecidas por sua condição operária que o segrega do resto da humanidade. Trata-se da produção em série, da automação e racionalização que exigirá do indivíduo formas de adaptação desenraizadas. A cultura que lhe é imposta é desprovida de sentido por ser fragmentada, tecnicista e voltada para o efeito imediato. O desenraizamento atinge também a cultura. A fragmentação desta remete a um tipo de escravidão, de isolamento e de sofrimento. A expansão do modo de produção capitalista infiltra-se por todos os territórios e transforma seus recursos naturais e humanos em mercadorias; a tradição perde seu lugar e as pessoas que não podem se atualizar numa economia de mercado internacional têm seus saberes despojados. O capitalismo segue inexorável de modo a consumir e desagregar os valores conquistados pela práxis da coletividade. Não é permitido o passado adentrar ao presente e nem projetar sonhos para o futuro, o que culminará no esvaziamento de significação do trabalho humano. O indivíduo sofre a depredação de seus sentidos, de suas lembranças e de suas memórias bem como de suas aspirações. De modo sintético polimorfa, de “notável multiplicidade” e um “espetáculo de variedades”, resultado de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço. nas palavras de Ecléa Bosi (2000, p. 21): “Entre os mais fortes motivos desenraizadores está a separação entre a formação pessoal, biográfica mesmo, e a natureza da tarefa, entre a vida no trabalho e a vida familiar, de vizinhança e cidadania”. 4. O desenraizamento e a desterritorialidade como desdobramentos do processo da globalização e das novas formas de organização do trabalho Para Octávio Ianni (1993), a desterritorialidade e o desenraizamento tornam-se ainda mais acentuados pelas engrenagens que impulsionam a globalização. É esta a força motriz que tende a desenraizar as coisas, as gentes e as idéias. As noções de origens, de marcas de nascimento e de determinações primordiais passam a adquirir os significantes de genérico, de indiferença, de descolado, de desgarrado e de esvaziamento. As diferenças dão mostras de terem desaparecido (ou ao menos são ignoradas) e os lugares parecem se fundir uns aos de modo drástico e despersonalizado. Lança-se no cerne da pós-modernidade, a sociedade global. Rompem-se os tradicionais quadros geográficos e históricos, transmutam as noções de espaço-tempo e até a forma de produzir conhecimentos. O processo de desterritorialização não se limita ao plano particular e coletivo, interfere em distintas instâncias de relacionamento, em diferentes esferas simultaneamente, como as da economia, da política, da sociedade e da cultura. Este também implica na generalização e na proeminência da solidão, pois tal processo altera referências fundamentais para o indivíduo. Em tal desconcerto, indivíduos, famílias, grupos, classes e diversos segmentos sociais perdem-se, desarticulam-se e se esvaziam de sentido e significado (Ianni, 1993). O trabalhador além de sofrer a desterritorialização concreta quando se submete a um processo migratório e necessita desbravar outra cidade, outro local de trabalho, outras relações pessoais, isto é, um território que não lhe é familiar, mas desconhecido; sofre também a desterritorialização simbólica, decorrente de sua intensa dedicação à Organização em detrimento da vivência familiar, social e de lazer. A constante possibilidade de migrar é um dos meios da Organização invadir a vida privada do trabalhador, o que repercutirá diretamente em sua esfera particular e familiar. Dejours (1996) já apontava que o sofrimento no trabalho está articulado com os dados da história singular, pessoal e com referências à situação atual. Ou seja, há o atravessamento da dimensão temporal que se desdobra além do espaço, pois tal sofrimento relaciona-se com os processos vivenciados no ambiente organizacional mais os processos que irão se estender fora da Organização, isto é, no espaço doméstico e na economia familiar do trabalhador: A desterritorialização (...) é o conjunto dos mecanismos que consistem em separar o indivíduo de suas origens sociais e culturais em destituí-lo de sua história pessoal para reescrevê-la no código da organização, em desenraizá-lo de sua terra originária para melhor enraizá-lo (...) apagar suas referências originais para substituí-las por outras mais conformes aos interesses da empresa. [...] Trata-se, portanto, realmente de “deformar” o indivíduo em relação aos seus laços culturais e geográficos para criar uma personalidade nova que está impregnada do espírito e das normas da empresa (Pagès et al., 1987, p. 119, 121). Para encarar tais mudanças, alguns renunciam a vida familiar e outros a adaptam às exigências da empresa. Isto se verifica quando o trabalhador assume a responsabilidade de enfrentar os encargos de uma mudança que vai afora do ato de desmontar móveis e encaixotar objetos. São mudanças profundas que acometem a escolaridade e a sociabilidade dos filhos, a carreira do cônjuge, as atividades de lazer e as festividades da família, seus cultos religiosos e sua própria vida social dentro e fora da empresa. Pagès et al. (1987) alertam que por detrás da constante mobilidade no ambiente organizacional e o deslocamento dos indivíduos por diversas filiais, estão dispostos mecanismos de poder que impedem uma organização coletiva dos trabalhadores de tal forma que estes não venham a intervir nos objetivos, nas finalidades e nas políticas da Organização. Assim, quando fragmentados e dispersos, induzidos à individualidade, sujeitos às constantes mudanças, os trabalhadores estão impossibilitados de se apropriarem do poder (tanto como indivíduo quanto como grupo) por estarem desmantelados, desarticulados. Isto pode se desdobrar num crescente individualismo e competitividade entre os trabalhadores, pois estes não mais se identificam com um grupo específico, limitam-se apenas a uma aglutinação de pessoas sem constituir verdadeiramente um grupo. A mobilidade constante também implicará na idéia do quanto cada um pode ser intercambiável e substituível com facilidade, quantas vezes for necessário. A prática ideológica da constante mudança, o discurso da velocidade, das transformações tecnológicas, econômicas e a exigência de versatilidade (um dos inúmeros itens do novo perfil profissional), ocultam os efeitos de poder que perpassam tais discursos. Quanto mais o trabalhador consegue se integrar, se adaptar perfeitamente ao sistema e eliminar os conflitos oriundos da mobilidade dentro e fora da empresa, mais a Organização consegue exercer e conservar sua dominação e poder sobre cada um e sobre a sociedade. Neste cenário, o trabalhador está submetido a pressões constantes, constrangimentos e instabilidades. Para enfrentar esta situação de trabalho, são elaboradas estratégias defensivas para combater a doença mental e se manter, custosamente, numa situação frágil e de equilíbrio precário, na normalidade. O custo desta luta resulta na vivência do sofrimento (Dejours, 1996). OBJETIVOS 1. Geral: • Investigar como o trabalhador enfrenta o processo migratório interno quando sujeito às transferências compulsória e/ou opcional4 para outras filiais da Organização, da qual faz parte, e o tipo de relação subjetiva que ele estabelece com sua atividade profissional. 2. Específicos: • Analisar os processos de desconstrução das principais referências psíquicas do indivíduo, isto é, a relação espaço-tempo, território, territorialidade e enraizamento. • Avaliar como estão organizadas as novas relações de trabalho no contexto da globalização e como isto interfere na história do indivíduo. METODOLOGIA 4 A denominação caráter optativo e compulsório refere-se às condições de escolha ou não do trabalhador no momento deste ser transferido de uma empresa atual (localizada numa cidade que lhe é conhecida) para outra sede da mesma empresa (situada em outra cidade que geralmente lhe é alheia e pode estar numa região ou estado diferente). O processo desencadeado pela migração interna confrontará o desejo do indivíduo com o modo deste se adaptar ou não a um novo território (que não inclui apenas sua nova residência, mas também todos os elementos constituintes de seu novo ambiente de trabalho). Sabemos que a modernidade possibilitou uma gradativa conquista, mediante o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que trouxe benefícios inestimáveis para a humanidade. Porém, o que buscamos, é promover uma discussão de alguns elementos componentes da contemporaneidade articulados às novas relações de trabalho, isto é, como o trabalhador enfrenta o processo migratório interno quando sujeito às transferências compulsória e/ou opcional para outras filiais da Organização, da qual faz parte, e o tipo de relação subjetiva estabelecida com sua atividade profissional. Sendo o trabalho um importante meio que influencia no processo saúde/doença, buscarse-á compreender, através de uma discussão teórica fundamentada na pesquisa qualitativa5, como as relações de trabalho são vivenciadas no cenário da globalização. Para realizar isto, optamos por dois caminhos que se intercomunicarão. Um deles, para analisar a dinâmica subjetiva e a adaptação a um novo ambiente de trabalho, está baseado na teoria da Psicodinâmica do Trabalho desenvolvida por Dejours, a qual está fundamentada nos preceitos psicanalíticos e relacionada com o sofrimento psíquico e com a saúde mental. O outro caminho enveredado será através da exposição dos conceitos de território, territorialidade e enraizamento – que por sua vez, estão atrelados a um contexto marcado pelas novas formas de lidar com o espaço e o tempo na contemporaneidade. Os autores que fundamentam tal empreitada são Bauman, Bosi, Ianni, Pagès et al. e Weil, que tratam dos principais elementos de referência psíquica que a migração irá desmantelar. RESULTADOS E CONCLUSÕES Dejours (1992) afirma que um dos principais meios que interferem na satisfação do indivíduo com sua atividade profissional, está relacionado com a organização do trabalho6. Esta, por sua vez, é elaborada por um serviço especializado da empresa, é 5 A abordagem qualitativa é um meio privilegiado que permite aprofundar no mundo das significações das ações e das relações humanas; um nível da realidade que não pode ser quantificado, pois serão trabalhados os universos das significações, aspirações, crenças, valores e atitudes (Dejours, 1992). 6 Dejours (1997) diferencia organização de trabalho de condições de trabalho. O primeiro refere-se à divisão do trabalho, ao conteúdo da tarefa, ao sistema hierárquico, às modalidades de comando, às relações de poder e às questões de responsabilidade. Já o segundo, diz respeito às condições de higiene e de segurança que remetem ao ambiente físico (temperatura, pressão, barulho, radiação, altitude etc), ao ambiente químico (produtos manipulados, vapores, fumaças, poeiras etc.) e ao ambiente biológico (vírus, bactérias, parasitas, fungos etc.). estranho aos trabalhadores e choca-se diretamente com a vida mental destes, como também com suas aspirações, desejos e motivações. Ela entre em conflito com a história individual, pois não somente ignora o sofrimento do sujeito como também o desejo deste. Quando tal organização é rígida, esta manifesta-se como obstáculo ainda maior à adaptação do indivíduo ao desempenhar suas tarefas profissionais – o que desencadeia frustrações e esforço de adaptação das potencialidades e das necessidades do trabalhador ao realizar o conteúdo significativo das tarefas. Isto contribui para a geração de sofrimento e para ser evitado um estado patológico, a normalidade é mantida de maneira custosa. O sofrimento é invisível muitas vezes, porém não deixa de trazer conseqüências e nem deixa de ser vivenciado; também está mascarado através das estratégias defensivas elaboradas pelos trabalhadores. Ele é a porta de entrada para as descompensações mentais e para as doenças somáticas. Por isso, a necessidade de estudar como o sofrimento é vivenciado e seus destinos que podem ser de duas naturezas distintas: patológico ou criativo. O sofrimento patológico é oriundo das pressões psíquicas causada pela cisão entre o trabalho de concepção e execução (o que cria uma clivagem entre o pensamento e o corpo), favorece a manifestação de doenças somáticas e mentais. O sofrimento criativo refere-se ao sofrimento que pode transformar-se em criatividade, favorecer a saúde, o reconhecimento e a restauração da identidade conferida pelo trabalho – além de favorecer a atividade sublimatória que favorece não só o indivíduo como a produção. Desta forma, ao retomarmos a relação homem-trabalho, verificamos o quanto que o indivíduo está numa situação de sofrimento encetado tanto pelos desdobramentos da globalização (que atingem sua relação com o trabalho) quanto pela própria organização do trabalho da empresa que tende a isolar cada vez mais o indivíduo de sua história pessoal, de seu(s) território(s) e territorialidade(s) eleito(s) – locais onde podem ser lançados seus afetos, inseguranças e desejos. Falta criar espaços de diálogo nas Organizações para que estas, ao invés de ser fomento para o sofrimento, possam ser uma fonte privilegiada de prazer e saúde na medida em que possibilitem a intermediação entre a mobilidade profissional com o projeto pessoal de vida. Esperamos com este estudo não mais silenciar o sofrimento dos indivíduos que se encontram forçados a constituir uma história de vida distanciada de seus projetos afetivos, de sua vida singular e familiar e desarticulados de seu desejo para tão somente atender às demandas do imperativos econômicos-Organizacionais. O trabalhador está cada vez mais incitado a responder às exigências da Organização. A dimensão de si encontra-se cada vez mais obnubilada e poder pensar em seu desejo e demanda pessoal pode assumir muitas vezes o caráter de acessório, de artigo de luxo, ser ridicularizado ou considerado irrelevante. Por isso, a necessidade de voltarmos um olhar crítico e reflexivo para denunciar os distintos meios em que o homem é colocado numa posição de sofrimento e a possibilidade de criar espaços de discussão, para que o indivíduo possa não somente assumir seus desejos, projetos pessoais e ter o direito de alcançar e usufruir um bem-estar psíquico como também uma posição política de emancipação. Enfim, que o trabalhador possa ser também participante privilegiado na dinâmica da (des) constituição de seu território, territorialidade e enraizamento. REFERÊNCIAS ALBAGLI, S. Território e territorialidade. In: LAGES, V., BRAGA, C., MORELLI, G. (Org.). Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção competitiva. Rio de Janeiro: Relume Damará/Brasília: SEBRAE, 2004. BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3 ed. 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