Albano Martins Poe s i a E st r a n ge i r a As escarpas do dia Al ba no M a rti ns N asceu em 1930 na aldeia do Telhado, concelho do Fundão, província da Beira Baixa, Portugal. Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exerce, desde 1994, funções docentes na Universidade Fernando Pessoa, do Porto. Poeta, é autor duma vasta obra, três vezes reunida em volume, a primeira com o título de Vocação do silêncio (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1990), com prefácio de Eduardo Lourenço; a segunda, intitulada Assim são as algas (Campo das Letras, Porto, 2000), e a terceira em 2010, na passagem dos seus 60 de poesia, com o título de As escarpas do dia e prefácio de Vítor Aguiar e Silva (Edições Afrontamento, Porto, 2010). Além de poeta, é também tradutor de poetas – latinos, gregos do período clássico, espanhóis, italianos e sul-americanos. Dentre eles salientam-se: Giacomo Leopardi, Rafael Alberti, Nicolás Guillén, Roberto Juarroz, Pablo Neruda. A tradução de Canto general, do último dos referidos poetas, valeu-lhe, em 1999, o Grande Prémio de Tradução A. P. T. / Pen Clube Português. Graças às suas traduções de diversas obras (sete, no total) do mesmo poeta, o governo do Chile conferiu-lhe, em 2004, a Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral, no grau de Grande Oficial. Em 2008, foi agraciado pelo Presidente da 323 Albano Martins República Portuguesa com a Ordem do Infante D. Henrique, também no grau de Grande Oficial. Em 2000, assinalando a passagem dos seus cinquenta anos de vida literária, a Universidade São Marcos, de S. Paulo, conferiu-lhe o título de doutor honoris causa, tendo, na mesma ocasião, a Unimarco Editora lançado uma sua Antologia poética, com prefácio de Carlos Vechi e organização de Álvaro Cardoso Gomes. Com o título de Ofício e morada, organização e prefácio do último dos referidos professores, uma outra antologia da sua poesia está sendo publicada no Brasil por Letras Contemporâneas – Oficina Editorial Ltda. É estreita a relação de Albano Martins com o Brasil. A “descoberta” deste país, em 1995, impulsionou-o à escrita de dois livros que atestam o grau de sedução provocado pelo seu encontro com a realidade geográfica brasileira e as suas gentes: A voz do chorinho ou os apelos da memória e Poemas do retorno. A sua obra tem, aliás, despertado a atenção e o interesse dos meios universitários brasileiros, traduzidos, essa atenção e esse interesse, em dissertações de mestrado e de doutoramento defendidas, desde os anos noventa do século passado, em universidades do Rio de Janeiro. A crítica portuguesa autorizada de há muito considera Albano Martins um dos mais importantes poetas portugueses contemporâneos. Dentre os que ao estudo da sua obra se têm dedicado citam-se: Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, Fernando Guimarães, Fernando J. B. Martinho, Maria Lúcia Lepecki, António Ramos Rosa, Luís Adriano Carlos, Eugénio Lisboa, Urbano Tavares Rodrigues, Álvaro Manuel Machado, Manuel Frias Martins, Maria João Reynaud, Salvato Trigo, Carlos Reis, Maria Bernardette Capelo-Pereira, Annabela Rita, Fernando Castro Branco, Vítor Aguiar e Silva e outros. É deste último, prestigiado professor e notável ensaísta, a seguinte afirmação: “A voz poética de Albano Martins é talvez a mais bela, a mais depurada e sutil expressão do modo elegíaco na poesia portuguesa da segunda metade do século XX”. E, sobre o caráter da obra, assim se exprime Eugénio Lisboa: “Estou a sugerir – e não timidamente – que Albano Martins é um grande poeta mas não um “homem de letras”. Culto como poucos, com uma sólida formação clássica, leitor inteligente e intenso, Albano Martins “salva-se de uma certa ‘literatura’ que vive de ‘literatura’, se ocupa de ‘literatura’ e se destina à ‘literatura’. (...) o fazer poético deste singular poeta que é, não por acaso, e em convergência com a vida, um prodigioso fabbro”. 324 As escar pas do dia Espaço disponível Deito-me no teu corpo como se fosses a minha última cama no meu quarto de hóspede dos dias. Deito-me e velo a criança lúcida que dorme reclinada na orla marítima do silêncio. Ali onde o tempo se anula e renova na substância palpável dum gesto ou dum olhar colhidos sobre a água construo a minha casa, habito o espaço inteiro disponível para a vida, necessário para a morte. Barcos é que Somos A teu lado viajo. Contigo navego. Remos são as palavras que te digo e escrevo. Âncoras de ternura com elas compomos e mastros de espuma. Barcos é que somos. 325 Albano Martins Ipê roxo Ipê roxo, disseste. E foi como se o dia, álamo azul, se constelasse. Rosalia Rosa lírica dos jardins da Galiza. Em tua garganta cantam verdes rouxinóis, a flor do verde pino, as ondas do mar de Vigo. Canta, enamorado, um trovador antigo. Cantigas de amor, cantigas de amigo. 326 As escar pas do dia Geografia Pertenço a esta geografia, ao lume branco da resina, ao gume do arado. A minha casa é esta: um leito de estevas e uma rosa de caruma abrindo no teto do orvalho. As palavras em trânsito Resvalas neste sopro. Sabes que tens o olhar ferido desde sempre, que o incêndio das palavras em trânsito celebra prescritas sílabas, ancorados ritos, desprevenidos equinócios. Dantes, havia um mar crispado na fissura dos lábios. Hoje, apenas algumas gotas de sal. 327 Albano Martins O mesmo nome Cabem ali todos os indícios. De nenhuma casa, nem mesmo dos seus alpendres, te consideras dono e senhor. E, por mais que escrevas, escreverás sempre o mesmo nome. Visitação Quando a porta se abriu, perguntaste quem era. Não se pergunta ao amor que nome tem. Insônia Perguntarás aos peixes como se dorme de olhos abertos. Porque o sono dos vivos é um fosso de víboras insones. E precisas por isso de estar atento. De dormir acordado. 328 As escar pas do dia Delfos Entrarás em Delfos pela porta secreta – a da serpente. É esse, e não outro, o caminho para o templo. Junto à pedra da ara colherás o ouro exausto do tempo e o sangue inútil dos sacrifícios. E saberás que amor e morte são a outra face do mito. Epidauro 2 Pinheiros à volta. Às vezes cai no chão uma pinha e o silêncio aplaude. 329 Albano Martins Quase marinha Desta luz, mais branca do que o branco – ou do que o leite, como diria Safo –, o que pode dizer-se é isto: um dia o céu acordou sem nuvens e a linha do horizonte, de tão fresca e tão nítida e tão próxima, era o parapeito onde a infância vivia debruçada. E era ali que o voo das gaivotas começava. 330 As escar pas do dia Uma cidade Uma cidade pode ser apenas um rio, uma torre, uma rua com varandas de sal e gerânios de espuma. Pode ser apenas um cacho de uvas numa garrafa, uma bandeira azul e branca, um cavalo de crinas de algodão, esporas de água e flancos de granito. Uma cidade pode ser o nome dum país, dum cais, um porto, um barco de andorinhas e gaivotas ancoradas na areia. E pode ser um arco-íris à janela, um manjerico de sol, um beijo de magnólias ao crepúsculo, um balão aceso numa noite de junho. Uma cidade pode ser um coração, um punho. 331 Albano Martins Ao grilo não digas Ao grilo não digas: não cantes! Porque onde um grilo canta canta o verão, cantam as espigas. Assim será. Ninguém virá depois recolher os ecos, acordar os sons da flauta estrangulada. As portas estarão fechadas mesmo para o silêncio. 332